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Labirintos da

precarização do trabalho
e das condições de vida
Editora CRV - Proibida a comercialização

Organizadores
Rosangela Nair de Carvalho Barbosa
Ney Luiz Teixeira de Almeida
Editora CRV - Proibida a comercialização
Rosângela Nair de Carvalho Barbosa
Ney Luiz Teixeira de Almeida
(Organizadores)
Editora CRV - Proibida a comercialização

LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO
DO TRABALHO E DAS
CONDIÇÕES DE VIDA

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Imagem de Capa: Freepik
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores
Edição financiada com apoio da Capes / Proex - Programa de Excelência Acadêmica.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

L112

Editora CRV - Proibida a comercialização


Labirintos da precarização do trabalho e das condições de vida / Rosangela Nair de Carvalho
Barbosa, Ney Luiz Teixeira de Almeida – Curitiba: CRV, 2023.
466 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5287-8
ISBN Físico 978-65-251-5286-8
DOI 10.24824/978652515286.8

1. Serviço social 2. Precarização do trabalho 3. Reprodução social 4. Contrarreforma I.


Barbosa, Rosangela Nair de Carvalho, org. II. Almeida, Ney Luiz Teixeira de, org. III. Título IV.
Série.

CDU 364 CDD 360


Índice para catálogo sistemático
1. Serviço social - 360

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
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de La Havana – Cuba)
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de La Havana – Cuba)
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Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 11

PREFÁCIO ..................................................................................................... 21

PARTE 1
O DEBATE TEÓRICO SOBRE A PRECARIZAÇÃO
SOCIAL NO CAPITALISMO

TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E PRECARIEDADE: considerações


teóricas à luz de um balanço (auto) crítico ...................................................... 37
Graça Druck
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DOI: 10.24824/978652515286.8.37-66

MISÉRIA AUTOMATIZADA: a crise do valor como fundamento da


precarização do trabalho ................................................................................. 67
Lana Carrijo
Mariela Becher
DOI: 10.24824/978652515286.8.67-84

CRISE DO CAPITAL, PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E TICS: o


trabalho de assistentes sociais no “fio da navalha” ........................................ 85
Raquel Raichelis
DOI: 10.24824/978652515286.8.85-108

AS FORMAS DE SER DO TRABALHO NO CAPITALISMO


CONTEMPORÂNEO: do Taylorismo-Fordismo à acumulação flexível e
digital ............................................................................................................. 109
Ricardo Antunes
Luci Praun
DOI: 10.24824/978652515286.8.109-122

GEOGRAFIAS DA REPRODUÇÃO SOCIAL CRÍTICA: fraturas e


fronteiras em territórios periféricos durante a crise ....................................... 123
Thiago Canettieri
DOI: 10.24824/978652515286.8.123-148

A CRÍTICA À PRECARIEDADE .................................................................. 149


Rosangela Nair de Carvalho Barbosa
DOI: 10.24824/978652515286.8.149-176
PARTE II
A VIOLÊNCIA DA DINÂMICA CAPITALISTA PRECARIZANTE
E A GESTÃO DOS SEUS ESCOMBROS

EXPROPRIAÇÃO E VIOLÊNCIA: reflexões a partir dos impactos dos


grandes projetos de desenvolvimento no espaço agrário do Rio de Janeiro ....177
Ana Costa
Paulo Alentejano
Pedro Catanzaro da Rocha Leão
DOI: 10.24824/978652515286.8.177-198

OS DANOS DA MINERAÇÃO SOBRE O MUNICÍPIO DE


GOVERNADOR VALADARES: instrumentalização do território para a
cadeia de valor .............................................................................................. 199
Fábio Fraga dos Santos

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DOI: 10.24824/978652515286.8.199-222

“ACIDENTE INDUSTRIAL AMPLIADO” COMO CONSEQUÊNCIA DO


PROCESSO DE VALORIZAÇÃO: o caso da minério-dependência de
Mariana/MG ................................................................................................... 223
Roberto Coelho do Carmo
DOI: 10.24824/978652515286.8.223-244

REGIÃO PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO E HABITAÇÃO


SOCIAL: da invisibilidade à reivindicação do habitar ................................... 245
Maria Gorete da Gama
DOI: 10.24824/978652515286.8.245-264

TRABALHO E POPULAÇÕES TRADICIONAIS NO CAPITALISMO:


considerações sobre a pesca artesanal ........................................................ 265
Maria Fernanda Escurra
DOI: 10.24824/978652515286.8.265-288

TRABALHO E POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: uma análise à


luz da questão social no Ceará ..................................................................... 289
Régia Maria Prado Pinto
DOI: 10.24824/978652515286.8.289-316
TRABALHO E REPRODUÇÃO SOCIAL NO CONTEXTO (ULTRA)
NEOLIBERAL: reflexões sobre condições de vida e ilicitude do comércio
das drogas em terras brasileiras ................................................................... 317
Valeria Forti
Juliana Menezes
André Menezes
DOI: 10.24824/978652515286.8.317-342

PARTE 3
A PRECARIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E SUA
INCIDÊNCIA SOBRE O TRABALHO, OS DIREITOS SOCIAIS E A
REPRODUÇÃO DAS FRAÇÕES DA CLASSE TRABALHADORA

TRABALHO E CRISE NO CONTEXTO DAS CONTRARREFORMAS


BRASILEIRAS NO SÉCULO XXI ............................................................... 343
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Inez Stampa
Tatiane Valéria Cardoso dos Santos
DOI: 10.24824/978652515286.8.343-364

TRABALHO E SAÚDE-DOENÇA: a condição precária pós-reabilitação


profissional .................................................................................................... 365
Monica de Jesus Cesar
Paula Cristina Nunes de Sá
Ana Inês Simões Cardoso de Melo
DOI: 10.24824/978652515286.8.365-390

CONTRARREFORMA ADMINISTRATIVA, GERENCIALISMO E


SERVIÇO SOCIAL: as alterações no processo de trabalho coletivo na
Previdência Social ......................................................................................... 391
Gênesis de Oliveira Pereira
DOI: 10.24824/978652515286.8.391-412

ADOECIMENTO E MAL-ESTAR NO MUNDO DO TRABALHO:


discutindo a educação superior ..................................................................... 413
Deise Mancebo
DOI: 10.24824/978652515286.8.413-426

EXPANSÃO PRECARIZADA DA FORMAÇÃO PARA O TRABALHO


COMPLEXO NO BRASIL NO SÉCULO XXI .............................................. 427
Amanda da Silva Belo
Carlos Felipe Nunes Moreira
Ney Luiz Teixeira de Almeida
DOI: 10.24824/978652515286.8.427-452
ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 453

SOBRE OS(AS) AUTORES(AS) ................................................................. 459

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APRESENTAÇÃO
Esse livro chega ao público por iniciativa do Programa de Pós-Gra-
duação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), com o apoio da CAPES, para dar visibilidade às inquieta-
ções teóricas e empíricas dos diferentes integrantes da Linha de Pesquisa
“Trabalho, Relações Sociais e Serviço Social”. Em adição, concomitan-
temente, recebe a colaboração valiosa de pesquisadores de outras uni-
versidades que partilham conosco os desafios de produzir conhecimentos
sobre os desdobramentos das contradições internas da forma-mercadoria
para a vida humana e a natureza, expressos nas diferentes manifestações
de precariedade social do modo de vida no capitalismo, violentamente
exacerbada nos últimos anos.
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A reunião desses textos num único veículo editorial e sua divulgação no


atual contexto de acirrada devastação do trabalho se presta a colaborar com os
esforços reflexivos sobre o labirinto social do capital, forjado historicamente
pelos homens, mas que os afronta com os grilhões da forma-valor. Parecendo
transitar das histórias kafkianas – que se movem entre o absurdo e a eversiva
normalidade –, a metáfora do labirinto possibilita entender o realismo dos
paradoxos capitalistas, pois a sociedade que universaliza o trabalho abstrato
– reduzindo a vida ao trabalho – progressivamente limita o acesso ao traba-
lho-valor e amplia a viração incerta como meio de vida de que são expressões
o desemprego estrutural e a informalidade laboral, acentuadas nos últimos
quarenta anos.
O desfecho trágico da humanidade é não compreender essa sociedade e
sequer safar-se dela até hoje, como no labirinto de Creta da mitologia grega
com seus corredores de portas falsas e armadilhas que aprisionam à cilada e
à repetição. A própria incerteza sobre como levar à frente a vida, diante de
ganhos incertos e ações públicas furtivas de reprodução social, enebria de
positividade o empreendedorismo, alimentando a competitividade neoliberal
entre trabalhadores ciosos por um lugar ao sol. O processo de precarização
conta com essa disseminação oficial da penúria como ferramenta da compe-
titividade, com o trabalhador como empreendedor de si mesmo, pelos corre-
dores da cidade crescentemente mercantilizada. Ao lado dessa artimanha, a
ampliação das pessoas redundantes aciona também políticas agressivas nada
desprezíveis de controle populacional, de encarceramento e de militarização
do cotidiano. Consubstanciando uma formação social desimplicada com a vida
humana em si e com a própria natureza de que depende, como demonstram
os problemas climáticos e o extrativismo predatório.
12

Em síntese, a crítica social enlaça a coletânea de textos, dando significado


especial a esse compartilhamento de reflexões promovido pela universidade.
Por prismas diferentes, os autores amparam-se na crítica da economia política
e recortam a crise capitalista como decisiva para a análise hoje. Inclusive, os
textos são críticos às respostas do capital a sua crise, que já somam mais de
quarenta anos, desde a abertura comercial engendrada pela mundialização
do capital, a ampliação dos dispositivos de capital fictício e de endividamen-
tos, assim como da neoliberalização do Estado com o enfraquecimento dos
serviços públicos e a ampliação da mercantilização dos serviços de reprodu-
ção social. Ao contrário, o alto desemprego, a queda da renda e o aumento
da desigualdade social se acentuaram com essa agenda socorrista, que pro-
voca sobreprecarização.
Como poderá ser apreciado pelos leitores, os escritos que apresentamos
ao público resultam de reflexões atuais sobre trabalhos acadêmicos realiza-

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dos ao longo dos últimos anos, em diferentes contextos do país. Os textos,
reforçamos, versam sobre o assombro da precariedade das condições de vida
e trabalho no capitalismo, apresentando reflexões apuradas sobre categorias
teóricas explicativas, manifestações descritivas da realidade social e mapea-
mento dos desafios para lidar com as agruras desse tempo sombrio. Para expor
isso, o livro está estruturado em três partes, sendo a primeira parte, intitulada
“O debate teórico sobre a precarização social no capitalismo”, composta de
seis capítulos que abordam aspectos centrais dos fundamentos da precarização
social no capitalismo.
O primeiro capítulo, de autoria de Graça Druck e alcunhado “Trabalho,
precarização e precariedade: considerações teóricas à luz de um balanço (auto)
crítico”, examina a produção bibliográfica sobre precarização, dialogando com
variados autores que tratam o tema e com os próprios escritos anteriores da
autora. A precisão conceitual e os aspectos históricos das transformações do
capitalismo orientam o desafio reflexivo do capítulo que sublinha as mutações
neoliberais como chave-histórica decisiva para as (contra) inovações laborais
que se expressam como regra e estratégia revigorada de dominação. Esse é o
sentido das contrarreformas trabalhistas, da terceirização, da uberização, do
empreendedorismo, do trabalho análogo à escravidão e da erosão da estrutura
pública dos serviços de reprodução social. A heterogeneidade das formas e
níveis de precariedade nos países parece decorrer da força da mundialização
do capital, tornando a precarização aparentemente quase-inevitável, toda-
via, para a autora, esse é o próprio núcleo metabólico da dinâmica mercan-
til reconfigurada.
Lana Carrijo e Mariela Becher acentuam no segundo capítulo – “Miséria
automatizada: a crise do valor como fundamento da precarização do trabalho”
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 13

– que a precarização neste século é inteligível somente se apreciada como


resultado do agravamento da crise estrutural do capital, aberta nos anos de
1970. Isso porque, desde então, a economia capitalista não foi capaz de impul-
sionar um processo de recuperação da acumulação de modo coerente com
a compulsão por mais valor. Nesse sentido, entendem que a flexibilização
laboral e o desemprego estrutural resultam dos limites à valorização do valor,
em razão da produtividade e da mundialização comprimir a expansão do
capitalismo através do trabalho. Concentram a argumentação na observação
sobre o fundamento do amplo processo de desmonte social no capitalismo
contemporâneo – expresso em menos emprego, erosão de direitos e políticas
sociais – delimitando como decifrador dessa peleja a base da produção de
valor. Ainda que o trabalho continue como mediação das relações sociais no
capitalismo, a dinâmica das inovações tecnológicas e a mobilidade global
do capital ampliam a constituição social de humanos supérfluos à econo-
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mia capitalista.
Raquel Raichelis escreve o terceiro capítulo – “Crise do capital, pre-
carização do trabalho e TICs – o trabalho de assistentes sociais no ‘fio da
navalha’”– onde reflete, em outro diapasão, sobre a centralidade da crise do
capital, acentuando que ela desencadeia o severo contexto de precariedade
social, pois para reverter os limites aciona-se agendas profundamente pre-
carizantes que agravam a questão social, o que repercute sobre o trabalho
dos assistentes sociais, notadamente, por conta das novas configurações do
mercado de trabalho da área profissional e da própria fragilização neoliberal
dos serviços públicos. A autora estabelece alguns parâmetros sobre como a
dinâmica capitalista contemporânea impacta a profissão, refuncionalizando o
assalariamento dos profissionais, assim como as respostas às demandas sociais
e a racionalização instrumental do trabalho através das novas tecnologias
de informação. Desse modo, examina as mudanças do trabalho profissional
como parte dos processos societários maiores que formam a totalidade social
capitalista, em crise.
Ricardo Antunes e Luci Praun escrevem o quarto capítulo – “As formas
de ser do trabalho no capitalismo contemporâneo: do taylorismo-fordismo à
acumulação flexível e digital”. O texto toma como ponto de partida o enten-
dimento sobre a redução do indivíduo à unidimensionalidade do trabalho
no capitalismo, ao transformar a capacidade laboral em mercadoria força de
trabalho, apequenando e exaurindo a vida humana no assalariamento. Com
esse eixo analítico o capítulo percorre os ciclos expansionista do fordismo e
de crise do capitalismo que redundou no toyotismo e, mais recentemente, na
digitalização, apontando aspectos do processo de trabalho nesses contextos. Os
autores centram-se na arguição sobre os sentidos intrínsecos, visando superar,
14

portanto, o enfoque que restringe a abordagem das transformações do trabalho


à mera organização e gestão do trabalho, distanciada da dinâmica constitutiva
da sociedade capitalista. Nessa argumentação tratam da precariedade como
signo do trabalho capitalista com contornos de maior asselvajamento em
escala global, nas últimas décadas, com novas engenharias de sujeição ao
domínio do capital.
Sob outro prisma, a presente coletânea enfatiza também que a repro-
dução do capital em crise envolve dinâmicas sociais peculiares que tendem
a aproximar a totalidade social às adversidades da reprodução da vida nas
periferias e essa hipótese é a base substancial do capítulo cinco –“Geografias
da reprodução social crítica: fraturas e fronteiras em territórios periféricos
durante a crise” – de autoria de Thiago Canettieri. De modo instigante, diz
o autor, que a periferia existe como lugar da exclusão das formas básicas de
sociabilidade do valor e, paradoxalmente, essa incongruência passa a compor

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também o núcleo do sistema social das mercadorias, que absorve com maior
proeminência cenas sociais de precariedade, informalidade e irregularidades
para realização da forma-valor, como outrora era específico da periferia, onde
a relação salarial não se completou dada a superexploração estrutural que sem-
pre implicou em estratégias precárias de reprodução social. Se o contexto da
crise estrutural do capital provocou a universalização da condição periférica,
o desafio do autor, por conseguinte, é o de pensar o capitalismo na periferia,
para então tratar do sistema como totalidade, no contexto do acirramento
crítico do valor.
O sexto capítulo – “A crítica à precariedade” – encerra a Parte I do
livro, com Rosangela Nair de Carvalho Barbosa interpelando também o
significado e o sentido social da precariedade nesse modo de produção.
Para isso, faz uma breve digressão sobre a abordagem do tema nas Ciên-
cias Sociais para depois tratar da orgânica vinculação dessa corda bamba à
natureza social do modo de produção capitalista e das mutações metabóli-
cas pós-1970, com o acirramento das contradições internas da forma-valor
e, consequentemente, da barbárie social. Acentua a importância da volta
às categorias fundamentais que dão sentido à sociabilidade capitalista e
suas contradições, que tendem a forjar realidades críticas e precariedades
sociais como parte de sua natureza social. Enfatiza as novas dimensões que
se impõem à essa dinâmica social a partir da instrumentalidade digital da
produtividade e dos novos entraves da forma-valor, abrindo um tempo de
crise estrutural no capitalismo.
A segunda parte do livro é composta por sete capítulos que, sob o título
“A violência da dinâmica capitalista precarizante e a gestão dos seus escom-
bros”, aborda a continuidade e a atualidade dos processos de expropriação
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 15

social, da produção econômica destrutiva, com destaque aos seus impactos


na natureza e nas condições de vida da população, em diferentes territórios.
O capítulo sete que inicia a Parte II versa sobre “Expropriação e violên-
cia: reflexões a partir dos impactos dos grandes projetos de desenvolvimento
no espaço agrário do Rio de Janeiro” e foi escrito por Ana Costa, Paulo Alen-
tejano e Pedro Catanzaro da Rocha Leão. Os autores analisam dois Grandes
Projetos de Desenvolvimento (GDP) realizados no Estado do Rio de Janeiro:
o do Complexo Portuário do Açu (São João da Barra) e o condomínio de
luxo Aretê no Quilombo da Baia Formosa (Búzios). Partem da compreensão
de que a ação do Estado é um elemento imprescindível para os processos de
expropriação, considerando seu nítido sentido de classe. O ponto de partida
dessa rica e potente reflexão é o reconhecimento de que ainda existem áreas
nas quais o capital não fez incidências com o intuito de objetivar a sua pró-
pria razão de ser: a acumulação incessante. Deste modo, o mapeamento dos
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referidos espaços agrários no Estado do Rio de Janeiro é abordado a partir das


iniciativas de consolidação de empreendimentos econômicos que têm provo-
cado acirrada expropriação do modo de vida das populações locais por meio
de violência e violação de direitos, através da associação entre agentes eco-
nômicos privados, nacionais e internacionais, com forte mediação do Estado.
Os processos de espoliação e a violência do capital e do Estado são tam-
bém o foco da reflexão teórica de Fábio Fraga dos Santos. O autor contribui,
com o oitavo capítulo intitulado “Os danos da mineração sobre o município
de Governador Valadares: instrumentalização do território para a cadeia de
valor”. Aborda o impacto do desastre ambiental do rompimento da barragem
de rejeitos minerais – Mariana/MG (2015) – sobre o município de Governa-
dor Valadares. Em diálogo com a teoria marxista, ele recupera a busca pelas
altas taxas de lucro realizada pelo capital em sua fase tardia, reafirmando as
funções do Estado no processo de garantia das condições de sua reprodução
ampliada, com destaque para as novas modelagens sociais que decorrem da
mercadorização da natureza através da apropriação do solo e do subsolo, como
ocorre no caso das atividades de mineração. O texto, examina a relação entre a
Companhia Vale do Rio Doce e a cidade de Governador Valadares em Minas
Gerais, apresentando um resgate histórico de como a mineração se integra
ao período de boom das commodities desses anos iniciais do século XXI,
se constituindo em um componente estratégico na dinâmica acumulativa do
capital na cadeia produtiva global de valor e na economia brasileira.
No nono capítulo, intitulado “ ‘Acidente industrial ampliado’ como
consequência do processo de valorização: o caso da minério-dependência
de Mariana/MG”, Roberto Coelho do Carmo fortalece a perspectiva aberta
nessa parte do livro em relação à marca destrutiva do avanço do capital
16

sobre a natureza em busca de taxas de lucro mais vantajosas na economia


minerária focalizando, sob outro ângulo, o mesmo crime socioambiental do
complexo de Germano com o rompimento da Barragem do Fundão na cidade
de Mariana, Minas Gerais. A abordagem enfatiza a dimensão econômica, mas
também o ponto de vista dos efeitos que provocou na saúde física e mental
da população de Mariana, precarizando profundamente seu modo de vida.
Para tanto se vale do conceito de “acidente industrial ampliado” e reforça
que o boom das commodities é chave para entender a gestão empresarial
predatória, situando a realidade analisada a partir do marco compreensivo
da minério-dependência, quando uma determinada localidade fica “refém”
dessa atividade econômica.
A violação de direitos à cidade, à moradia e ao habitar é tratada pela
autora Maria Gorete da Gama em “Região Portuária do Rio de Janeiro e

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habitação social: da invisibilidade à reivindicação do habitar”, décimo capí-
tulo da presente coletânea. A análise empreendida se debruça sobre a Opera-
ção Urbana Consorciada do Porto na Região Portuária da Cidade do Rio de
Janeiro, demonstrando ser ela um dispositivo de precarização social. Maria
Gorete reforça a função que o Estado exerce na garantia das condições de
reprodução do capital, nessa nova fase da cidade mercantilizada. Identifica,
nesse sentido, como os diferentes agentes públicos - Prefeitura da cidade do
Rio de Janeiro e a Caixa Econômica Federal, vinculada ao Governo Federal
- criam uma modelagem de utilização do espaço urbano que transfere recur-
sos do fundo público para a valorização da terra mediante investimentos de
natureza urbanística. Essas intervenções urbanas se sustentam ideologicamente
em discursos de revitalização de áreas abandonadas na cidade, mas expressam
na verdade formas de negação do direito à cidade a partir do forte impacto
que provocam nas condições de vida da população que vive na região e que,
desse modo, produz novos espaços para o capital.
Em “Trabalho e populações tradicionais no capitalismo: considerações
sobre a pesca artesanal”, décimo primeiro capítulo, Maria Fernanda Escurra
trata da subsunção da artesania pesqueira à dinâmica empresarial capitalista
sufocando a tradição da pesca voltada para valores de uso. Mas, não se trata
de exclusão do pescador artesanal, pois o capitalismo combina exploração da
força de trabalho da pesca industrial com a subordinação do trabalho autônomo
da produção mercantil simples. Ao problematizar as condições de trabalho
dos pescadores artesanais em conexão com a pesca empresarial-capitalista,
Maria Fernanda Escurra ressalta a precarização inerente aos processos de
despossessão dos meios de produção, dos excedentes e da apropriação pelos
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 17

capitalistas. Além disso, nesse processo, a relação orgânica do pequeno pes-


cador com a natureza é revolucionada pelas relações de produção capitalista
derrubando as barreiras ao seu avanço.
O décimo segundo capítulo, elaborado por Régia Maria Prado Pinto,
“Trabalho e população em situação de rua: uma análise à luz da questão social
no Ceará”, desvela as principais determinações do aumento da população em
situação de rua no Estado do Ceará. A autora parte da compreensão das par-
ticularidades da questão social tomando a condição periférica do capitalismo
dependente brasileiro como ponto de análise basilar, para então estabelecer
as mediações com a particularidade da realidade cearense. Nesse movimento
analítico reconhece que a seca e a pobreza guardam relação com a ampliação
da população em situação de rua no território cearense. Para além da iden-
tificação imediata ou quantitativa do cenário de vida vivida nas ruas, Régia
Maria apresenta um resgate histórico para compreensão das condições de
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acirramento desses fenômenos na atualidade, o que nos ajuda a cotejar como


a dinâmica do capital matizada pelo coronelismo e o neoliberalismo se nutrem
- em momentos distintos da realidade, histórica e econômica -, da fome e da
sede da população. A reflexão ainda enlaça as expressões da questão social,
especificamente as condições de trabalho e de vida manifestas na realidade
das cidades de Fortaleza, Marcanaú e Caucaia.
A Parte II do livro se encerra com o décimo terceiro capítulo escrito
por Valeria Forti, Juliana Menezes e André Menezes, intitulado “Trabalho
e reprodução social no contexto (ultra)neoliberal: reflexões sobre con-
dições de vida e ilicitude do comércio das drogas em terras brasileiras”.
A relação trabalho e comércio de drogas envolvendo a juventude prole-
tária empobrecida ganha atenção especial neste capítulo, que principia
expondo determinações fundamentais do trabalho no capitalismo, seguida
pelo mapeamento das transformações ensejadas pela crise do capital que
redundou na flexibilização produtiva e laboral, ao lado da perniciosa neo-
liberalização. Destaque aos traços que caracterizam a situação brasileira
desde os anos de 1990 e a ênfase ao aprofundamento da erosão dos direitos
trabalhistas e o encolhimento do emprego, nos últimos anos. A juventude
não absorvida no mercado de trabalho e com “frágil sentimento de per-
tencimento social” inserida no comércio de drogas é abordada a partir da
teoria do valor-trabalho, apreendendo que essa mercantilização do ilícito
se sustenta tanto na exploração como na forte punição da força de trabalho,
em dispositivos violentos de produção, circulação e consumo, onde a vida
humana é drasticamente relegada.
A terceira e última parte dessa obra reúne cinco capítulos que abordam a
temática da precarização sob o prisma das contrarreformas e dos retrocessos
18

no campo dos direitos e das condições de vida dos trabalhadores em geral


como daqueles que atuam no âmbito do Estado. Intitulada “A precarização
das políticas públicas e sua incidência sobre o trabalho, os direitos sociais e
a reprodução das frações da classe trabalhadora”, encerra a coletânea, mas
não o debate, que esperamos seja rico e potentemente ampliado com a lei-
tura de vocês.
Em “Trabalho e crise no contexto das contrarreformas brasileiras no
século XXI”, o décimo quarto capítulo que inicia a terceira parte do livro,
Inez Stampa e Tatiane Valéria Cardoso dos Santos realizam um denso e
minucioso exame das legislações que flexibilizam as normativas e a regres-
são dos direitos sociais a partir do final dos anos de 1990. Para as autoras as
contrarreformas, acentuadas nos últimos sete anos, colocam os trabalhadores
ainda mais submetidos às inseguranças do mercado e à precarização do
trabalho. A análise que desenvolvem toma como objeto as transformações

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recentes na legislação trabalhista brasileira nos governos Michel Temer
(2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022). A flexibilização da legislação
trabalhista analisada redunda no crescimento da ocupação precarizada. As
novas normativas conduzem a formas ainda mais precárias de relações con-
tratuais, acentuando e ampliando as práticas da terceirização, a subocupa-
ção, além de fortalecer o trabalho por conta própria ou trabalho autônomo,
reeditando a informalidade laboral historicamente marcante no mercado de
trabalho brasileiro.
Em sequência, no décimo quinto capítulo – “Trabalho e saúde-doença:
a condição precária pós-reabilitação profissional” –, Monica de Jesus Cesar,
Paula Cristina Nunes de Sá e Ana Inês Simões Cardoso de Melo analisam a
relação entre trabalho e processo saúde-doença por meio dos fundamentos
estruturais do modo de produção capitalista e da particularidade da formação
social brasileira, com destaque para a superexploração da força de trabalho e
os desdobramentos nocivos à depreciação da saúde dos trabalhadores. O foco
da pesquisa empírica que embasa a reflexão são os processos de adoecimento
e/ou de acidentes de trabalho que resultam na inserção de trabalhadores em
programa de reabilitação profissional da Previdência Social, após ser eviden-
ciada a impossibilidade de retorno à função laboral exercida anteriormente.
A opção por nova atividade para esses trabalhadores envolve inclusive a
requalificação profissional, levada à frente pela Previdência Social. Todavia,
as autoras mostram que a empresa contratante anterior não é obrigada por
lei a reinserir os trabalhadores, o que comumente leva à aprendizagem de
nova atividade, sendo, a maioria, executada fora da empresa originária e
na informalidade. As autoras tomam como chave analítica desses dados a
precarização estrutural do trabalho, enfatizando a flexibilização neoliberal
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 19

que, entre outros fatores, mobiliza a fragilização dos vínculos de trabalho, a


gestão por metas, a compressão do tempo não-produtivo e, também, o acir-
ramento da degradação das condições de trabalho. Concluem as autoras, que
os processos de adoecimento/acidente-reabilitação se inserem no contexto de
acirrada precarização social, inclusive apresentando-se como dispositivo de
ampliação da superpopulação relativa, dada a depreciação da força de trabalho
e sua reinserção em atividade econômica rebaixada e, de maneira geral, em
relações informais de trabalho.
No décimo sexto capítulo – “Contrarreforma administrativa, gerencia-
lismo e Serviço Social: as alterações no processo de trabalho coletivo na
Previdência Social” – Gênesis de Oliveira Pereira desvela, a partir da expo-
sição de categorias centrais da teoria do valor-trabalho, tendências do mundo
empresarial que adentram à esfera estatal, a ponto de transformar substantiva-
mente os serviços prestados no campo da Previdência Social. Sua análise leva
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em conta a mediação concreta dos processos de contrarreforma do Estado e a


adoção das práticas gerencialistas no percurso das mudanças implementadas
na esfera previdenciária. Dá destaque ao uso recorrente das tecnologias da
informação nas práticas gerenciais que incidem na algoritimização da política
previdenciária pela via da avaliação social média e da gestão por metas(pro-
dutivismo) para os processos abertos pelos trabalhadores contribuintes ou
requerentes do Benefício de Prestação Continuada. Ao realizar um importante
inventário das normativas que alteram as formas de gestão e de realização
do trabalho, o autor aponta a modificação da base técnica do trabalho reali-
zado pelos assistentes sociais. Destacando no texto que a atividade central
desenvolvida por essa categoria profissional passou a ser realizada através
das chamadas avaliações sociais remotas ou teleavaliações, problematiza a
repercussão dessas mudanças sobre as condições de trabalho e a qualidade
da prestação de serviços aos trabalhadores.
O décimo sétimo capítulo “Adoecimento e mal-estar no mundo do traba-
lho: discutindo a educação superior”, Deise Mancebo identifica que os avanços
tecnológicos têm progressivamente eliminado o trabalho vivo, aumentado o
desemprego, a informalidade do trabalho e a desigualdade social. Adicional-
mente, enfatiza que a dinâmica do capitalismo contemporâneo, sob a égide
do neoliberalismo, tem produzido um individualismo exacerbado, além de
modos de gestão da vida, paradoxalmente, com base nos valores e nas práticas
empresariais. Como desdobramento a autora destaca os processos de adoe-
cimento social, manifestos em depressão, que passa a figurar como narrativa
hegemônica de sofrimento. Desse quadro, o capítulo recorta o adoecimento
na universidade que tem se dado de forma silenciosa. Dentre os variados
aspectos aí envolvidos, sublinha o não-reconhecimento do/no trabalho e as
20

limitações das estratégias defensivas e das resistências ao modelo de gestão


gerencialista espalhado pelo neoliberalismo. A competitividade, o indivi-
dualismo e a submissão às avaliações quantitativas, associadas à crescente
intensificação do trabalho são processos hoje flagrantemente presentes no
cotidiano da universidade e que concorrem para esse quadro de adoecimento.
Encerra a Parte III do livro o décimo oitavo capítulo, escrito por Amanda
da Silva Belo, Carlos Felipe Nunes Moreira e Ney Luiz Teixeira de Almeida,
com o título “Expansão precarizada da formação para o trabalho complexo
no Brasil no século XXI”. A ampliação das redes de educação superior e de
educação profissional e tecnológica públicas é analisada sob uma dupla e
articulada perspectiva: a das particularidades que a política de educação e o
acesso à educação, por ela mediatizada, têm no Brasil em função de inserção
periférica e dependente na dinâmica do capitalismo mundial e a das necessida-
des de formação para o trabalho complexo. É a partir dessa articulação que o

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texto explora o novo quadro institucional da área entre os anos de 2003-2016,
em decorrência da especificidade da coalização de classes que caracterizou
os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, levando à expansão
dessas redes pela ação do Estado – muito embora também tenha sido experi-
mentada em larga escala na esfera mercantil privada, sobretudo, a educação
superior. A expansão da rede ocorreu de forma inédita no país incorporando
segmentos sociais alijados desses níveis e modalidades de educação, ainda que
isso tenha se dado de forma precarizada e sintonizada aos processos maiores
de precarização do trabalho e das condições de vida.
Em suma, com essa diversidade de temas e abordagens sobre a preca-
rização das condições de vida e trabalho a coletânea contribui com o ama-
durecimento da perspectiva teórica crítica sobre o capitalismo, reforçando
a exigência de se tomar a totalidade social engendrada pelo valor e que se
expressa nas múltiplas manifestações e dinâmicas singulares das nossas vidas.
Portanto, o propósito é o de apresentar um entendimento apurado sobre o
tema da precarização, que graça hoje nas narrativas políticas e acadêmicas
inquietas com o acachapante avanço violento do capital sobre as dimensões
da reprodução social e da dinâmica do trabalho, em razão dos limites internos
para reprodução ampliada do valor. Mobilizar maior capacidade teórica para
pensar esse tempo faz parte da cumplicidade que desejamos, no momento,
estabelecer com os leitores e leitoras, de modo a enfrentarmos os labirintos
que nos enredam a esse tempo de instrumentalização humana e barbárie social.

Ney Luiz Teixeira de Almeida


Rosangela Nair de Carvalho Barbosa
Organizadores
PREFÁCIO
Preliminarmente, saudamos a iniciativa de organização da coletânea
Labirintos da precarização do trabalho e das condições de vida, tema da
maior relevância na atualidade e alvo de distintas interpretações em debate
no universo de autores especializados europeus e brasileiros. Nossas congra-
tulações aos responsáveis pela sua organização, as /aos pesquisadoras(es) que
partilham seus estudos e pesquisas: autoras e autores, docentes de distintas
universidades e egressos do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Agradecemos a honra do convite para prefaciar este livro necessário,
corajoso, polêmico e revelador de processos históricos em curso. Reconhe-
cemos o privilégio da leitura prévia de textos inéditos, provocativos e desa-
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fiadores teoricamente, que enriquecem a diversidade de angulações sobre a


precarização do trabalho e das condições de vida, a partir da contribuição de
autores consagrados que vêm se dedicando ao tema, assim como da crítica
e autocrítica de interpretações veiculadas. Esta coletânea, ao reunir estudos
referenciais sobre precarização das condições de trabalho e de vida, abre,
simultaneamente, inéditas sendas para novas pesquisas.
Esta é uma obra enraizada na história recente e no debate contemporâ-
neo sobre as transformações operadas no universo do trabalho na trama da
valorização do valor em um longo ciclo de crise do capital, em tempos de
hegemonia das finanças e do Estado capturado pelos interesses do grande
capital voltado a garantir as condições gerais da reprodução, pautado pela
“nova razão do mundo” (DARDOT e LAVAL, 2016). Os textos reunidos são
resultados de pesquisas voltadas a elucidar tanto as transformações operadas
no trabalho quanto na coletividade dos sujeitos trabalhadores na sua dimen-
são de classe enquanto unidade de diversidade: de sexo, raça/ etnia, geração,
território e nacionalidade.
Esta coletânea constrói fecundas interlocuções entre áreas de conheci-
mento ao romper fronteiras disciplinares em favor da perspectiva de totalidade
histórica, preservando particularidades nacionais e regionais.
A superacumulação de capacidades de produção especialmente ele-
vadas e a superprodução em tempos de hegemonia do capital financeiro e
fictício sem precedentes ante o capital produtivo, impulsionam crises, reper-
cutindo na difícil situação dos trabalhadores em qualquer parte do mundo
(CHESNAIS, 2001, 2013). Sabe-se que o capital, na sua busca incessante
de lucro, incorpora inovações científicas e tecnológicas voltadas tanto ao
aumento da produtividade do trabalho social quanto ao aperfeiçoamento
22

das comunicações, reduzindo o tempo de rotação do capital (tempo de pro-


dução mais o tempo de circulação), elementos determinantes na elevação da
lucratividade (MARX, 2017, p. 97). O capital, no seu incessante movimento
de expansão amplia a parcela do mais-valor investida em meios de produção
(capital constante) ao mesmo tempo em que reduz relativamente a parcela
investida na compra da força de trabalho (capital variável), tendo em vista
a redução de custos, lançando mão de renovadas estratégias na sua busca de
legitimação social.
É na esteira desses processos que tem lugar o tema desta coletânea. A
elevação da produtividade social do trabalho, a intensificação do trabalho da
parte da classe trabalhadora empregada, a contração da oferta de emprego
ante o volume do investimento realizados ampliam a superpopulação
relativa – ou população “sobrante” para as necessidades médias do
capital–, condição e resultado contraditório da acumulação. Tais processos

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condicionam a “precarização do trabalho e das condições de vida”, sendo
algumas de suas expressões aqui ressaltadas: a defasagem do salário em
relação ao valor da força de trabalho, a ampliação do subemprego e do
desemprego, a degradação das condições de trabalho cujo auge é trabalho
similar à escravidão, a intensificação do consumo da força de trabalho e o
prolongamento das jornadas de trabalho, a desproteção das relações no
trabalho, a pauperização relativa e/ou absoluta de segmentos de classe,
a pobreza e desnutrição, dentre outros. Naquela dinâmica expansionista e
na contratendência de seus efeitos sociais deletérios tem sido fundamen-
tal o suporte dos Estados nacionais e do fundo público, que hoje figura
como condição e pressuposto da acumulação (OLIVEIRA, 1998; BEH-
RING, 2022).
A radicalização neoliberal favorece o livre curso do capital finan-
ceiro, a acumulação e centralização do capital produtivo em trustes e
cartéis ao nível mundial; e, ao capturar os Estados nacionais instaura políticas
monetaristas restritivas aos direitos sociais, avessas aos direitos humanos,
obstruindo propostas distributivas voltadas aos sujeitos da classe traba-
lhadora. Mas contraditoriamente, impulsiona a resistência na defesa da
vida e da natureza.
Como já anunciara Marx (1980, p. 221, vol. 2) no século XIX, “Dar à
produção um caráter científico é, por fim a tendência do capital e se reduz o
trabalho a mero momento desse processo”. Ampliam-se as forças produtivas
do trabalho social – derivadas da ciência, dos inventos, da combinação social
do trabalho, dos meios de comunicação, do mercado mundial, do emprego
da maquinaria enquanto capital fixo– e com elas o poder do capital sobre
o trabalho vivo. No universo do valor e de sua valorização, o emprego de
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 23

novas tecnologias incorporadas ao capital constante fixo e circulante no


processo produtivo tem, como contrapartida, a redução relativa da demanda
de trabalhadores - de trabalho vivo - e o consequente crescimento da popu-
lação sobrante para as necessidades médias dessa forma de organização da
produção, impulsionando o crescimento das desigualdades e as crises. Ao
mesmo tempo em que o capital tende a reduzir o tempo de trabalho vivo a
um mínimo – imprescindível, porém subalterno -, ele é erguido como única
medida da riqueza. “O capital trabalha, assim, em favor de sua própria dis-
solução como forma dominante de produção”. (MARX,1980, p. 22, v. 2).
Nesse processo contraditório, o capital diminui o tempo de trabalho na forma
de tempo de trabalho necessário à reprodução do trabalhador - trabalho pago
sob a forma de salário - para aumentá-lo como tempo de trabalho excedente.
Coloca assim, o tempo de trabalho excedente como condição do tempo de
trabalho necessário. Mas move todos os poderes da ciência e da natureza, da
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cooperação e do intercâmbio sociais para fazer com que criação da riqueza


seja, cada vez mais, relativamente independente do tempo de trabalho vivo
nela empregado, reduzindo-o ao limite para que o valor já criado, corporificado
nos meios de produção, conserve o seu valor transferindo-o aos produtos. Tal
dinâmica expressa que o capital é contradição em processo. (MARX,1980,
livro II, p. 229; IAMAMOTO, 2022).
Nas últimas décadas, as transformações operadas nos processos materiais
de produção e de formação de valor e valorização têm sido matrizados pela
robótica, pela microeletrônica, por tecnologias da informação e comunicação
(TICS) e desenvolvimento da inteligência artificial (IA), frutos da pesquisa
científica de ponta. A automação dos processos foi seguida da chamada “4ª
revolução industrial”, caracterizada pela conectividade e pelo processamento
de dados, pela adoção de tecnologias capazes de executar tarefas com inte-
ligência artificial. Tais inovações tecnológicas permitem reduzir o tempo de
rotação do capital, diminuindo o tempo em que o capital permanece impro-
dutivo sob as formas de capital mercadoria e capital dinheiro e favorecendo
o retorno mais rápido do valor capital à forma de capital produtivo, única
forma que lhe permite conservar valor, recriar valor e criar mais-valor. As
novas tecnologias contribuem também para elevar a produtividade do tra-
balho, para ampliar as massas de lucro e para gerar lucros extraordinários
mediante a incorporação pioneira de inovações científicas e tecnológicas em
esferas produtivas de ponta, acima do padrão médio vigente. A elevação das
forças produtivas sociais do trabalho e o aumento da composição orgânica
do capital – isto é, da composição de valor condicionada pela composição
técnica (MARX, 2017, p. 180) - incidem diretamente na elevação das massas
de lucros em que pese o rebaixamento das taxas de lucro.
24

Essas tensões inerentes à dinâmica expansionista do capital se ancoram na


maior exploração do trabalho vivo, isto é, na elevação da taxa de mais-valor,
que se expressa, de forma transfigurada na taxa de lucro, na qual se encobre
o segredo de sua existência e sua origem. Na taxa de lucro, o crescimento
do capital aparece, de forma mistificada, como fruto de qualidade inerente
ao próprio capital, numa relação consigo mesmo; ou seja, entre o mais-valor
criado e o capital total investido, obliterando a distinção entre capital cons-
tante e capital variável. Assim, a taxa de lucro “expulsa” a visibilidade do
trabalho vivo que faz crescer todo o capital: conserva valor dos meios de
produção transferindo- aos produtos; recria o valor o capital variável e cria
um mais-valor para além dos custos de produção, quando pensado sob a ótica
do capitalista (MARX, 2017, p. 54), em cuja compreensão, o preço de custo
apenas repõe o capital investido (capital constante e variável). Assim, para
o capitalista, o lucro teria como fonte a circulação, isto é, a compra e venda

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de mercadorias capitalistas no mercado. Ocultar a exploração do trabalho é
essencial nesse processo de mistificação.
A “precarização” no senso comum tende a ser naturalizada e tomada
como noção “auto revelada”, parte da estratégia de ocultamento da explora-
ção, indispensável nesses tempos de “deificação dos mercados”, erigidos à
condição de “entidade” inatingível, que se impõe como um poder superior
à vida dos “homens simples” (IANNI, 1975). A “precarização”, na lin-
guagem corrente, poderia ser pensada como parte da lógica capitalista de
obscurecimento da exploração do trabalho vivo que, em sua dupla e indisso-
ciável dimensão de trabalho concreto e abstrato, que conserva e faz crescer
o valor de todo o capital. A precarização esconde e simultaneamente revela
o aumento da exploração da força de trabalho, cujo preço fica abaixo de seu
valor historicamente determinado, impulsionado pela imposição de “redução
de custos”. Esta depreciação do preço da força de trabalho é também deter-
minada pelo crescimento da população trabalhadora excedente, que amplia a
concorrência entre os próprios trabalhadores por empregos e pela capacidade
de organização e luta da coletividade de trabalhadores. Na cena contempo-
rânea, consoante preceitos neoliberais, aquela depreciação é acompanhada
da desmontagem e/ou restrição de serviços públicos universais atinentes aos
direitos sociais em favor de sua privatização e mercantilização. Tais proces-
sos atingem duplamente o conjunto da classe trabalhadora, tanto no trabalho
quanto na sua vida cotidiana.
O registro descritivo de novas formas multifacetadas de “precarização”
experimentadas nas condições de vida e no trabalho de distintos segmentos
de trabalhadores é fundamental para trazer à luz as particularidades das trans-
formações ocorridas nos processos de produção e de circulação do capital na
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 25

atualidade, que merecem ser elucidadas. Elas são indissociáveis do respaldo


político e legal dos Estados nacionais, comprometidos com o grande capital
mundializado, em suas particularidades nas sociedades dependentes, peri-
féricas aos centros econômicos mundiais. Entretanto, como aqui se revela e
se reafirma, a noção multifacetada de precarização contém segredos ocultos,
que não se mostram de imediato, sendo necessário revelá-los e decifrá-los
na dinâmica contraditória do processo de reprodução global do capital e na
dinâmica de sua crise.
Uma das vertentes explicativas, presente nesta coletânea, reconhece o
fenômeno da “precariedade”como estrutural ao capitalismo, indissociável de
sua lógica expansionista sustentada no trabalho não-pago - ou mais-valor-
em sua busca crescente de lucratividade, impensável respaldo dos Estados
nacionais. Mas também se reconhece que a “precarização” assume formas
históricas que se alteram ao longo do tempo, consoante a correlação de forças
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entre as classes, expandindo-se a partir da década de setenta nos marcos da


financeirização, da acumulação flexível (HARVEY, 1993) e da radicalização
neoliberal, em uma época de crise. Esta é interpretada sob distintas angula-
ções, mas a questão central é a capacidade do capital continuar se expandindo
por meio do trabalho com a hipertrofia financeira. Apenas em sua forma
mistificada, o capital dinheiro cresce numa relação consigo mesmo (D-D’)
independente do trabalho (MARX, 2017, IAMAMOTO, 2007). Para além de
seus fetiches, o capital é uma relação social indissociável do trabalho assala-
riado. Quando a capacidade viva de trabalho se incorpora às partes objetivas
do capital, este se torna um monstro animado e começa a trabalhar como “se
o amor no corpo houvesse” (MARX, 2022, p. 78), parafraseando o Fausto,
de Goethe. Reiterando o já salientado, o trabalho vivo, enquanto trabalho útil,
transfere o valor dos meios de produção ao produto; mas o mesmo trabalho
vivo enquanto trabalho abstrato reproduz o valor do capital variável e cria um
incremento de valor – um mais-valor – mediante a objetivação no produto de
um quantum de trabalho excedente, acima do salário. (MARX, 2022, p. 57).
O trabalho vivo como esforço, dispêndio de energia vital, é função pessoal do
trabalhador, realização de suas capacidades produtivas em movimento. Mas
como formador de valor é um modo de existência do valor-capital: força de
preservação de valor e criação de valor novo, que aparece como processo de
autovalorização do capital e empobrecimento do trabalhador. Este, ao criar o
valor, cria-o como valor que lhe é estranho. Ora, trabalho pertence ao capita-
lista assim como as condições materiais para realização do trabalho - meios de
produção e meios de subsistência. Estranhadas pelo próprio trabalhador, essas
mercadorias aparecem como “fetiches dotados de vontade e alma próprias”:
figuram como coisas compradoras de pessoas, obscurecendo a relação social
26

de produção que o capital expressa. O domínio do capitalista sobre os traba-


lhadores é o domínio das condições de trabalho sobre o trabalhador (meios de
produção e meios de subsistência), que se tornam autônomas frente a ele, o
que só se realiza no processo de produção sob o controle do capital (MARX,
2022, p. 60). Este livro não é alheio esse universo analítico. Ao contrário,
tem a ventura de trazê-lo ao palco do debate ao lado de outras referências de
interpretação do tema em questão.
A expansão das finanças vem contribuindo para fragilizar a luta da cole-
tividade dos trabalhadores, o desmonte direitos sociais conquistados no pós-
-guerra, no marco do pacto fordista-keynesiano, mediante desenvolvimento
das lutas operárias e sindicais em defesa dos direitos do trabalho e das con-
dições de vida. Certamente as abordagens do tema aqui veiculadas ultrapas-
sam qualquer nostalgia do welfare state europeu, de cujo debacle dataria o
nascedouro do fenômeno da “precarização”. Esta visão é alvo de contestação

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visto desconsiderar a própria dinâmica contraditória da sociedade do capital
e a história do trabalho e dos trabalhadores nas sociedades dependentes, com
seu passado colonial e/ou escravista, que não experimentaram nada similar
ao Estado social europeu.
A presente coletânea está organizada em três partes: a) O debate teórico
sobre a precarização social no capitalismo; b) A violência da dinâmica capita-
lista precarizante e a gestão de seus escombros; c) A precarização das políticas
púbicas e sua incidência sobre o trabalho, os direitos sociais e a reprodução
das frações da classe trabalhadora.
A primeira parte, a precarização do trabalho e das condições de vida,
coloca em relevo os desafios teórico-metodológicos de seu tratamento, enfren-
tando-os sob angulações distintas que se complementam, mas também deba-
tem entre si. O leitor se encanta e se surpreende com um rico e rigoroso
balanço crítico de distintos significados atribuídos à precariedade do trabalho
e as formas de “precarização” do trabalho na expansão capitalista contem-
porânea, tratada na multidimensionalidade de suas dimensões: econômica,
político-ideológica e jurídica. Mas o debate vai além, ao apontar pistas e
polêmicas teóricas em percursos para sua elucidação, especialmente em
autores europeus e latino-americanos. Sob a órbita das finanças acompa-
nhada da acumulação flexível e da radicalização neoliberal, esta coletânea
apresenta interpretações sobre as metamorfoses da coletividade dos sujeitos
que trabalham. Ou, em outros termos, sobre a compreensão mesma da classe
trabalhadora hoje e seus segmentos: formas de ser, de viver, de organizar-se
e de lutar para se defender, considerando sua territorialização.
Consoante uma das interpretações veiculadas nesta coletânea, a crise
estrutural do capital em sua feição contemporânea, marcada pela “hipertrofia
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 27

financeira”, provoca o aumento do desemprego e a flexibilização dos vín-


culos trabalhistas, decorrentes do estreitamento da valorização do valor, ou
seja, da efetiva dificuldade do capitalismo continuar sua expansão por meio
do trabalho. Assim, a precarização seria uma face da própria crise de valo-
rização do capital acompanhada do desmonte da proteção social, isto é, um
processo de corrosão das bases de afirmação da sociedade burguesa sob o
crescimento acelerado do capital fictício. Mas a crise estrutural, expansio-
nista e destrutiva do capital em suas nefastas derivações na degradação tanto
na força humana de trabalho quanto do meio ambiente é também abordada
sob outros matizes: o significado da crise apreendido não como falência,
mas expressão do capital enquanto “contradição em processo”, que tende a
reduzir a um mínimo o tempo de trabalho ao mesmo tempo que o erige com
única medida e fonte de valor.
Em vários momentos, neste livro, realiza-se uma fecunda articulação
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entre a precarização do trabalho, as tecnologias da informação e comunicação


digitais, as políticas públicas e o trabalho assalariado de distintas especiali-
zações, dentre as quais o trabalho de assistentes sociais. Em outros termos,
coloca-se em relevo as metamorfoses presentes na morfologia do trabalho na
expansão capitalista: da inspiração taylorista no gerenciamento científico do
trabalho, ao fordismo na organização da produção e à acumulação flexível,
considerada em suas particularidades históricas nas sociedades dependentes,
consoante a divisão social, técnica, sexual e racial do trabalho. Na atualidade,
são exploradas transformações inéditas da morfologia do trabalho apoiadas
no “trabalho uberizado” e nas tecnologias da informação e comunicação digi-
tais cuja expansão é acelerada no marco da pandemia da COVID19 - com a
flexibilidade, a expansão do trabalho digital, a gestão por metas, estratégias
combinadas tanto de exploração acentuada do trabalho quanto de sua sub-
sunção ao capital. Registram-se também originais elaborações que buscam
inscrever o significado das novas morfologias do trabalho no movimento do
capital como totalidade.
A precariedade das condições de reprodução social da vida em territórios
periféricos reconhece a heterogeneidade de estratégias presentes no seu inte-
rior. A inexistência de garantias de reprodução social baseadas na socialização
do valor impulsiona um conjunto de práticas, denominadas de “reprodução
social crítica”, imersas no contexto de crise do capital: o “assistencialismo de
crise”, o “microempreendedorismo”, o “rentismo periférico”, os “ilegalismos
populares” e o “associativismo popular”
A primeira parte desta coletânea se encerra com um criterioso e sem
precedentes balanço crítico da precariedade, em suas múltiplas angulações,
construído no lastro da crítica da economia política, descortinando férteis e
28

inéditas perspectivas no tratamento da temática. Os fundamentos da precarie-


dade na lógica do valor e de sua valorização no regime especificamente capita-
lista de produção na sua forma histórica hodierna, em cujo desenvolvimento,
contraditoriamente, cultiva sua própria crise. A precarização do trabalho e das
condições de vida emergem como uma das respostas aos óbices enfrentados
pelo capital como relação social fetichizada, na desafiadora trama social da
valorização do valor.
A segunda parte, volta-se a análise da “violência da dinâmica capitalista
precarizante e a gestão de seus escombros”. Tem-se a denúncia da barbá-
rie fruto da exploração e da violência na expropriação de trabalhadores em
favor da privatização da propriedade fundiária, enquanto monopólio da terra
para fins de exploração capitalista por parte de grandes empreendimentos
produtivos com o suporte e/ou conivência do Estado. As análises recaem
sobre processos e manifestações históricas concretas de múltiplas formas de

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precarização social da existência humana. Elas são reveladoras das novas
(e velhas) ofensivas do capital sobre amplos segmentos da população traba-
lhadora na fase contemporânea do capitalismo dependente no Brasil.
Dois capítulos têm como foco a compreensão dos danos e ruínas
gerados pelos crimes sócio-ambientais com o rompimento das barragens
da Mineradora Samarco, consorciada da Vale do Rio Doce em Mariana
(2015), repetido em barragem da Vale em Brumadinho (2019), ambas terri-
torializadas no estado de Minas Gerais. Ainda que abordados por diferentes
angulações, as análises desses desastres inscrevem suas determinações nas
relações sociais de produção e reprodução ampliada do capital, trazendo
as marcas das suas particularidades na formação social brasileira.
A indústria de mineração de ferro assenta-se na dinâmica violenta do
extrativismo predatório para a vida humana e a natureza cujos impactos,
em todos os processos produtivos que a envolvem, reverberam em cadeia
sobre amplos territórios, com consequências múltiplas e destrutivas, atin-
gindo comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, tradicionais e de
pequenos agricultores familiares em sua condição física e material, suas
fontes de trabalho e vida, suas dinâmicas sociais e culturais. As análises
denunciam as condições e os riscos permanentes e ampliados de acidentes
e desastres, adoecimentos e mortes para os que trabalham nessa atividade
econômica, vivendo nas jornadas cotidianas, as situações que caracterizam
a exponenciação da exploração da força de trabalho.
Aqui também se retratam impactos dos denominados grandes projetos
de desenvolvimento (petroquímicos, hidroelétricos, portuários), no estado
do Rio de Janeiro, vinculados às corporações de capitais transnacionais,
favorecidos pelo Estado por meio de parcerias público-privado que efetuam
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 29

estratégias diversas de expropriação de terras e demais recursos naturais,


atingindo sobretudo, os segmentos despossuídos dos trabalhadores refe-
ridos, além da dinâmica precarizante nas relações e condições de trabalho
no interior de seus projetos. No trato de ambas as realidades, os/as autores
evidenciam o papel do Estado, em viabilizar as condições financeiras, com
garantias de acesso ao fundo público pelo capital e seus agentes priva-
dos, com arcabouços políticos e jurídicos, acrescidas de reordenamento
da gestão territorial e dos próprios escombros direcionado aos interesses
acumulação do capital. Destacam também a busca de legitimidade das
empresas e empreendimentos, mediante mecanismos diversos de mani-
pulação dos sistemas políticos e convencimento de seus trabalhadores e
populações locais, na tentativa de neutralizar e apaziguar práticas sociais
e consciências.
Mas, as resistências e lutas sociais contraditoriamente marcam estas
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realidades. Elas são sinalizadas nas análises da coletânea pelas referências


ao papel histórico e violento do Estado para criminalizar, reprimir e destruir
essas manifestações dos trabalhadores, dos segmentos atingidos e seus
aliados na defesa de seus direitos fundamentais, ainda que não seja esse
o foco temático central de suas abordagens. São registradas ainda ações
coletivas, movimentos pelo direito de usufruir da cidade como valor de
uso e solidariedade de trabalhadores/ moradores de Zona Portuária do Rio
de Janeiro no enfrentamento das precárias condições de vida e habitação
face a projetos espoliativos de reurbanização do território, - típicos de
empresariamento das cidades para a lógica do mercado.
Ainda na segunda parte, tem-se a análise das relações de trabalho
de um segmento das populações tradicionais, no caso, da pesca arte-
sanal e da população em situação de rua, pouco tratadas em estudos
do mundo do trabalho. Elas lançam luz, a partir das características
próprias do capitalismo no país e no desafio do estudo de como as
formas não-capitalistas de exploração do trabalho tornam-se meios de
reprodução ampliada do capital, seja na apreensão do modo precário de
inserção em contextos de trabalho de frações de trabalhadores que com-
põem o vasto exército industrial de reserva. Em abordagem inovadora
são destacadas as condições de vida, história, cultura e trabalho das
comunidades tradicionais de pescadoras/res, sua importância e papel na
produção pesqueira brasileira que, longe de excluí-los, subordina seu
trabalho autônomo, apropria-se da tradição dos seus saberes e técnicas,
combinadas com a exploração direta da força de trabalho de pesca-
dores industriais. Manifestações precárias e insalubres de trabalho da
população em situação de rua, marcadas pela informalidade, incluem
30

os catadores/as de materiais recicláveis, cujas atividades são inseridas


no circuito produtivo da indústria de reciclagem, ao fornecerem parte da
matéria-prima de novas mercadorias, a custos extremamente baixos ou
mesmo sem custos. Suas atividades laborais e meios de subsistência (a
catação/separação de materiais e a comercialização) são invisibilizados
nos processos industriais, mediante exploração de sua força de trabalho
que também nada custa ao capital.
A terceira parte tematiza a precarização das políticas públicas e
sua incidência sobre o trabalho, os direitos sociais e a reprodução das
frações da classe trabalhadora, com densas pesquisas e análises centradas
na crítica à demolição das conquistas, dos direitos sociais e das barreiras
jurídicas e políticas, constituídas na dinâmica contraditória da luta de
classe no combate à voracidade do capital sobre o trabalho.
São examinadas as contrarreformas do Estado brasileiro das últimas

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décadas reconfigurando a morfologia da regulação e proteção social do
trabalho, com um conjunto de alterações regressivas na legislação tra-
balhista, que instaura a terceirização irrestrita, com contratos de trabalho
intermitente e parcial, flexibilização das jornadas, rebaixamento salarial,
alterações nas normas de saúde e segurança, ampla diluição dos direitos
e restrição do acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho, entre outras,
apostando na fragilização sindical. Processos regressivos dos direitos do
trabalho que, articulados as mudanças na Previdência Social e a uma série
de medidas econômicas e políticas de subfinanciamento do conjunto das
políticas sociais, aprofundam o rebaixamento dos meios de reprodução
social do conjunto das classes assalariadas.
A análise da recente expansão da educação profissional e tecnoló-
gica e da educação superior no país é aqui apanhada tanto na dimensão
do assalariamento precarizado do trabalhado docente, quanto da própria
educação como um direito não universalizado, no exercício crítico de des-
vendar como são forjadas as novas exigências de formação para o trabalho
complexo na periferia do capitalismo.
Outra fértil e provocativa exposição debruça sobre relações traba-
lho e processo saúde-doença, a decorrente inserção dos trabalhadores
vinculados ao mercado de trabalho formal em programas de reabilitação
profissional no âmbito da política previdenciária e as (im)possibilidades
de retorno ao trabalho, demarcando a descartabilidade da força de traba-
lho. São analisados os nexos entre precarização da força de trabalho e a
configuração da superpopulação relativa, considerando a inserção depen-
dente e subordinada do Brasil na divisão internacional do trabalho. Na
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 31

explicação destes vínculos, ilumina-se a análise recorrendo à categoria da


superexploração da força trabalho, formulada no campo da teoria mar-
xista da dependência. Há avanços significativos com esse ângulo analítico
no desvendamento crítico da condição precária da força de trabalho e da
profunda heterogeneização da classe trabalhadora no Brasil, de suas reper-
cussões nas debilidades da organização sindical, bem como no âmbito das
políticas sociais. O leitor poderá identificar esta preocupação de análise
em textos que integram a coletânea, ainda que com pesos diferenciados.
Por fim, a exposição tematiza trabalho de assistentes sociais no
contexto da contrarreforma administrativa de caráter trabalhista do
Estado brasileiro, sob o predominio do gerencialismo, tendo como refe-
rência a Previdência Social. O estudo apresenta os pilares da reestrutu-
ração do aparelho estatal, sustentado na mercadorização da instituição
pública com a adoção da lógica empresarial, detalhando as profundas
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alterações no processo coletivo de trabalho, assentadas especialmente na


introdução de TI’s que vem provocando, entre outras consequências,
a descaracterização do trabalho profissional. A reflexão dá visibilidade
às condições e relações de condições de trabalho que presidem a ativi-
dade de assistentes sociais, em uma nítida denúncia do esvaziamento
do conteúdo socioeducativo inerente a esse trabalho, contribuindo para
que segmentos de trabalhadores violentados em seus direitos tenham
acesso a eles. Demarca-se, ainda, o campo tenso de disputa de projetos
profissionais nesse espaço sócio-ocupacional face à exigência de efe-
tivar alternativas de resistência, polarizando a relativa autonomia que
conforma a condição assalariada do trabalho de assistentes sociais na
defesa da natureza pública da política previdenciária e da qualidade dos
serviços sociais prestados.
A ampliação sem limites e barreiras da condição estrutural de
precariedade do trabalho e de formas de vida, com a generalização
diversificada do trabalho abstrato integrando o circuito de valori-
zação do capital em seu estágio atual, na contrapartida criam-se as
possibilidades históricas da unidade do conjunto da classe trabalha-
dora na superação da ordem capitalista.
Muitas indagações teóricas e políticas são suscitadas pelas rea-
lidades retratadas e submetidas à análise nessa coletânea, interpe-
lando o leitor. Realidades que repercutem também na poesia indignada
de Drumond, em Lira Itabirana:
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
32

Ai, antes fosse


Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos

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Sem berro?”

***

Marilda Villela Iamamoto1


Maria Rosângela Batistoni2
Juiz de Fora (MG) e São Paulo (SP) setembro de 2023,
anunciando a primavera.

1 (UERJ/CNPQ)
2 (UNIFESP)
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 33

REFERÊNCIAS
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Inclui Enquete operária. São Paulo: Boitempo, 2022. Tradução: Ronaldo Vielmi
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34

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global da produção capitalista. Edição de Friedrich Engels. Seleção de extras
e tradução de Rubens Enderle, 1ªed. Paulo: Boitempo, 2017 .

OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia


imperfeita. Petrópolis: Vozes, 1998.

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PARTE 1
O DEBATE TEÓRICO SOBRE
A PRECARIZAÇÃO SOCIAL
NO CAPITALISMO
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TRABALHO, PRECARIZAÇÃO E
PRECARIEDADE: considerações teóricas
à luz de um balanço (auto) crítico
Graça Druck
DOI: 10.24824/978652515286.8.37-66

O objetivo desse capítulo é revisitar alguns escritos meus sobre a temá-


tica, com o espírito de buscar fazer um balanço crítico, avançando e atuali-
zando o diálogo com autores estrangeiros e nacionais, bem como introduzir
considerações sobre transformações recentes no trabalho, especialmente o
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processo de uberização em suas especificidades, que tornam a precarização


ainda mais central e radicalizada.
A discussão apresentada é fundamentalmente teórica, com o intuito de
precisar alguns conceitos e suas diferenças, como o de precarização, precarie-
dade e precariado, exposta na primeira parte do texto. Em seguida, discute-se
a relação entre a atual precarização social do trabalho e o neoliberalismo,
articulando diferentes abordagens que têm em comum a centralidade das
transformações do trabalho como campo privilegiado para se compreender o
conteúdo e os objetivos centrais do projeto neoliberal, a exemplo das novas
formas de organização do trabalho propiciadas pelas tecnologias de informa-
ção e comunicação, bem como de velhas modalidades como a terceirização.
Na terceira parte, se expõe o debate sobre a precarização e as classes
sociais, problematizando a noção de precariado em diferentes autores. E, por
fim, como considerações finais, apresentam-se algumas especificidades da
precarização nos países da periferia e, em especial, o caso brasileiro.

Alguns elementos conceituais

Os termos precarização e precariedade, embora tenham a mesma raiz


etimológica, não são sinônimos. A precarização é um processo social, um
movimento que se desenvolve historicamente, e que provoca uma situação
de regressão social numa condição moderna, nova, reconfigurando o velho,
mantendo-o e introduzindo novos elementos. É uma metamorfose da preca-
riedade que, mesmo presente desde as origens do capitalismo, assume novos
contornos, consequência dos processos históricos marcados por diferentes
padrões de desenvolvimento e pelas lutas dos trabalhadores.
38

A precariedade é estrutural no capitalismo desde os seus primórdios,


mas as suas formas sócio-históricas se alteram, se redefinem, se reconfi-
guram, indicando processos qualitativamente diferentes de precarização
do trabalho.
A atual precariedade social do trabalho é um velho e novo fenômeno.
Compreendê-la dessa forma, é reconhecer que ela sofreu uma metamorfose.
Não é mais a mesma precariedade dos tempos da revolução industrial. Não
é mais a que os países periféricos, como o Brasil, tiveram desde os tempos
coloniais, com o trabalho escravo. No entanto, o padrão de assalariamento
constituído no país, com limitados direitos sociais e trabalhistas conquistados
pelos trabalhadores brasileiros, estabelecidos na CLT e na Constituição Federal
que foram, em toda a nossa história, afrontados pelo empresariado brasileiro
e sistematicamente desrespeitados.
Na atualidade, as transformações no trabalho decorrentes do processo

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de globalização financeira, da reestruturação produtiva e da implantação de
políticas neoliberais, colocaram a precarização social do trabalho como cen-
tro da dinâmica do capitalismo nos países centrais e nos países da periferia.
Klaus Dörre (2022) discorre sobre a centralidade que a precariedade
assume no discurso político e no campo das análises das ciências sociais
na Europa, a fim de responder se a precariedade é a nova questão social do
século XXI. Retomando algumas das principais formulações de sociólogos
franceses – Gorz, Bourdieu, Castel – e com base em estudos empíricos e teó-
ricos na Alemanha, afirma sobre o lugar central que os termos precariedade,
precarização e precariado passam a ocupar no cotidiano do trabalho e da vida
no país no período recente.
Vale enfatizar que os estudos europeus, sobretudo os franceses, desde as
primeiras análises acerca dos processos de precarização do trabalho, tinham
como referência primeira para classificar as mudanças no trabalho como
precárias, a “condição salarial”, ou seja, o trabalho regulado e protegido,
com contratos por tempo indeterminado. Situação que predominou por pelo
menos três décadas nos principais países que viveram os Estados de bem-es-
tar social. Nos anos 1980, essa condição foi se alterando, com a introdução
dos contratos flexíveis, temporários e mal pagos. Foi essa transformação
que avançou pelos anos subsequentes até os dias atuais, invertendo a rela-
ção entre empregos protegidos e os chamados empregos precários. Nestas
análises restritas ao plano empírico, os indicadores examinados para carac-
terizar a precarização estavam limitados à regulação do trabalho e, portanto,
aos direitos trabalhistas. As taxas de desemprego, a incapacidade do mer-
cado de trabalho absorver um conjunto de trabalhadores “supranumerários”
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 39

(CASTEL, 1995, 1998) e os contratos flexíveis, de curta duração, por tempo


limitado, trabalho intermitente etc. são os indicadores quase exclusivos para
concluir sobre a precarização.3
Em meus estudos sobre precarização do trabalho, a partir das pesquisas
empíricas no Brasil e do uso dos conceitos de flexibilização e precarização
(DRUCK, 2007, 2011) busquei demonstrar que o fenômeno da precarização é
multifacetado, com diversas dimensões e que não pode ser limitado ao campo
dos direitos do trabalho ou da regulação, embora essa seja uma das expres-
sões fundamentais do processo de precarização. As análises sobre o caráter
social da precarização do trabalho, buscam romper determinadas dualidades,
a exemplo dos excluídos e incluídos, empregados e desempregados, formais
e informais, ou seja, há um processo de precarização que se generaliza para
todas as regiões e para todos os diferentes segmentos de trabalhadores; como
uma « institucionalização da instabilidade », que passa a ser incorporada pela
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sociedade como um processo « natural » determinado pelo capitalismo flexível


(APPAY; THEBAUD-MONY, 1997).
Dörre (2022) em sua análise sobre « precariedade, precarização e preca-
riado » traz uma excelente contribuição, ao discutir conceitualmente no plano
teórico e empírico, as múltiplas dimensões da precariedade, diferenciando ocu-
pação e trabalho, os planos quantitativo e qualitativo, as formas subjetivas de
manifestação da « ocupação insegura » e do « trabalho precário ». Pois « [...]
uma ocupação precária pode ser vinculada a um trabalho criativo, e a recíprova é
verdadeira: um trabalho seguro pode ser combinado com formas extremamente
precárias de atividade » (p. 108). No caso da Alemanha, ele observa que se vive
uma transição para uma « sociedade precária de pleno emprego » (idem), pois
os empregos criados são mal remunerados, inseguros e pouco reconhecidos,
em grande parte ocupado por mulheres em prestação de serviços pessoais, num
movimento que a ocupação precária supera o trabalho protegido. A generali-
zação da precarização vai atingindo todos os segmentos, mesmo que de forma
desigual, e aqueles que ainda estão numa condição protegida de emprego, vivem
« medos coletivos » numa clara manifestação de precariedade.
As implicações destas transformações do trabalho atingem todas as
demais dimensões da vida social : a família, o estudo, o lazer e a restrição
do acesso aos bens públicos (especialmente saúde e educação) (DRUCK,
2013, 2020). Laval (2017), numa perspectiva teórica da biopolítica do capital,
defende a tese que a precariedade se tornou um « estilo de vida » ou uma «

3 Vale registrar que algumas estudiosas da precarização, como Annie Thebaud-Mony, Beatrice Appay, (1997),
Helena Hirata (2002), dentre outros, para o caso da França, analisaram outros indicadores além da inserção
no mercado de trabalho, a exemplo da saúde do trabalhador e o trabalho das mulheres.
40

forma de existência », típida da era neoliberal, para além de ser um modo


de gestão do trabalho. Nesta medida sob a hegemonia do neoliberalismo,
se produz uma política de insegurança social, provocada pela instabilidade
e perda da segurança dos empregos e por uma « cultura da precariedade »
que, na visão empresarial, passa a ser defendida como empreendedorismo
do trabalho. Uma racionalidade empresarial ou uma « empresarialidade »,
que se apresenta como um « novo modo de governo dos trabalhadores, [...] e
um modo de existência novo, que, além do emprego, faz da ligação instável,
móvel, instrumental com a organização produtiva e com as instituições sua
própria marca e o seu valor agregado » (LAVAL, 2017, p. 101).
Na minha compreensão, inspirada em Marx/Engels e Gramsci, trata-se,
na realidade, de analisar as transformações do trabalho a partir da ideia-força
: a todo modo de produção corresponde um modo de vida. Foi assim na revo-
lução industrial, compreendida como um processo de revolução social, a partir

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das relações de subordinação real do trabalho ao capital, com o surgimento
da fábrica, da mecanização, no uso da força de trabalho da família (mulhe-
res e crianças), da constituição de um operariado industrial, cujo modo de
vida se alterou radicalmente, nas condições de moradia, na urbanização, no
empobrecimento, nas relações familiares e assim por diante. Na história da
sociedade capitalista, as transformações históricas no trabalho, propiciadas
pelas revoluções tecnológicas e organizacionais, como taylorismo, fordismo,
toyotismo, microeletrônica, tecnologias de informação e comunicação, rede-
finiram não só as relações de trabalho, mas as formas de vida.
Conforme nos ensina Gramsci em « Americanismo e Fordismo », a luta
pela hegemonia do capital que começa na fábrica, trascende seus muros e
passa a conformar uma conduta condizente com a nova racionalidade capita-
lista, do industrialismo, da produção em massa, do homem disciplinado para
dedicar integralmente sua capacidade intelectual e física para o trabalho e de
uma nova moralidade:

[...] pois os novos métodos de trabalho são indissoluvelmente ligados a um


determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível obter
êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro. Na América a
racionalização do trabalho e o proibicionismo estão indubitavelmente ligados
aos inquéritos dos industriais sobre a vida íntima dos operários, os serviços
de inspeção criados por algumas empresas para controlar a ‘moralidade’ dos
operários são necessidades do novo método de trabalho. Quem risse destas
iniciativas (mesmo falidas) e visse nelas apenas uma manifestação hipócrita
de ‘puritanismo’ estaria desprezando qualquer possibilidade de compreender
a importância, o significado e o alcance objetivo do fenômeno americano,
que é também o maior esforço coletivo realizado até agora para criar, com
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 41

rapidez incrível e com uma consciência jamais vista na História, um tipo


novo de trabalhador e de homem (GRAMSCI, 1984, p. 396).

Conforme já registrado em outros escritos, Druck (2013, 2020,p. 501-502):

Na atualidade, as transformações trazidas pela ruptura com o padrão


fordista geraram um outro modo de trabalho e de vida pautados na fle-
xibilização e precarização do trabalho, como exigências do processo de
financeirização da economia, que viabilizaram a mundialização do capital
num grau nunca antes alcançado. Uma evolução da esfera financeira que
passou a determinar todos os demais empreendimentos do capital, subor-
dinando e contaminando todas as práticas produtivas e os modos de gestão
do trabalho, apoiada centralmente numa nova configuração do Estado que
passa a desempenhar um papel cada vez mais de “gestor dos negócios da
burguesia”, pois age em defesa da desregulamentação dos mercados, espe-
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cialmente o financeiro e o de trabalho, reafirmando os valores neoliberais.

Na realidade, poderia se pensar, inspirada em Gramsci, que a acumulação


flexível trouxe uma ideologia e uma cultura do empreendedorismo que expres-
sam o crescente processo de individualização do trabalhador, responsável
pelos riscos do seu empreendimento, uma condição que passa a ser defendida
não só como única saída à crise do emprego, mas a ser considerada como
libertadora do controle, como conquista de autonomia e de autogestão do
trabalho (LIMA, 2010). Tal transformação da relação de trabalho determina
uma conduta muito diferente do trabalhador assalariado “fordista”, pois sua
forma de vida está orientada pela postura de um “empresário de si mesmo”,
motivado pela concorrência e absorvendo a lógica do mercado como valor
maior para seu comportamento em todas as esferas de sociabilidade. O que
faria do empreendedorismo, segundo Amorim, Moda e Mevis (2021), uma
forma análoga ao americanismo em tempos neoliberais.

A relação entre flexibilização e precarização do trabalho

Numa perspectiva teórica mais geral, concorda-se com David Harvey


(1992), quando formula a concepção de acumulação flexível:

A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto


direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos pro-
cessos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de
consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção intei-
ramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros,
42

novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação


comercial, tecnológica e organizacional [...] (p 140).
[...] envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual,
tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo,
um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem
como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então
subdesenvolvidas (tais como a “Terceira Itália”, Flandres, os vários vales
e gargantas do silício, para não falar da vasta profusão de atividades dos
países recém-industrializados) (p. 140).
[...] um novo movimento que chamarei de “compressão do espaço-tempo”
[...] no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões
privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a
queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão ime-
diata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado (p. 140).
[...] A acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos de

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“desemprego estrutural” (em oposição ao “friccional”), rápida destruição
e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários
reais [...] e o retrocesso do poder sindical – uma das colunas políticas do
regime fordista (p. 140-141).

Harvey aponta o processo de reorganização do sistema financeiro inter-


nacional, como central nessa nova configuração da acumulação capitalista,
tornando-se uma “novidade” sem igual, cujas implicações redefinem a ordem
econômica e social do sistema:

O que parece realmente especial no período iniciado em 1972 é o floresci-


mento e transformação extraordinários dos mercados financeiros. [...] Na
atual fase, contudo, o que importa não é tanto a concentração de poder em
instituições financeiras quanto a explosão de novos instrumentos e merca-
dos financeiros, associada à ascensão de sistemas altamente sofisticados de
coordenação financeira em escala global. Esse sistema financeiro foi o que
permitiu boa parte da flexibilidade geográfica e temporal da acumulação
capitalista. [...] O Estado-nação, embora seriamente ameaçado como poder
autônomo, retém mesmo assim grande poder de disciplinar o trabalho e de
intervir nos fluxos de mercados financeiros, enquanto se torna muito mais
vulnerável a crises fiscais e à disciplina do dinheiro internacional. Estou,
portanto, tentado a ver a flexibilidade conseguida na produção, nos mercados
de trabalho e no consumo antes como um resultado da busca de soluções
financeiras para as tendências de crise do capitalismo do que o contrário. Isso
implicaria que o sistema financeiro alcançou um grau de autonomia diante da
produção real sem precedentes na história do capitalismo, levando este último
a uma era de riscos financeiros igualmente inéditos (HARVEY, 1992, p. 181).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 43

Portanto, identifica-se um movimento do capital comandado pela


esfera financeira, pautado na flexibilidade levada a seu grau extremo. Essa
flexibilidade, embora inerente ao sistema capitalista, se metamorfoseia,
centrada no curtíssimo prazo, na volatilidade e instabilidade como nunca
antes alcançados.
Conforme exposto em análises anteriores (DRUCK, 2013, 2020) :

A hegemonia da “lógica financeira” ultrapassa o terreno estritamente eco-


nômico do mercado e impregna todos os âmbitos da vida social. Trata-se
de uma rapidez inédita do tempo social, que parece não ultrapassar o
presente contínuo, um tempo sustentado na volatilidade, efemeridade e
descartabilidade, sem limites, de tudo o que se produz e, principalmente,
dos que produzem - os homens e mulheres que vivem do trabalho. O curto
prazo – como elemento central dos investimentos financeiros –, impõe
processos ágeis de produção e de trabalho, e para tal, é indispensável tra-
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balhadores que se submetam a quaisquer condições para atender ao novo


ritmo e às rápidas mudanças (2020, p. 501-502).

Em meus estudos sobre a precarização do trabalho, iniciados de forma


mais sistemática, a partir de 2002, com o projeto “Trabalho, Flexibilização e
Precarização: (re)construindo conceitos à luz de estudos empíricos”, passei a
analisar a realidade do trabalho no Brasil, e suas especificidades, através de
diferentes recortes e objetos de estudo, que indicavam um movimento mais
geral de flexibilização e precarização do trabalho que perpassava por todos
os casos empíricos pesquisados. Neste projeto, já considerava que:

No quadro mais geral das transformações do mundo do trabalho num


contexto de globalização, reestruturação produtiva e de políticas neoli-
berais, observa-se um fenômeno que articula e sintetiza esses três gran-
des movimentos: a flexibilização, que tem, no trabalho – nas formas de
produzir, na organização dos processos produtivos, na legislação sobre
os trabalhadores, nas modalidades de emprego/ocupação e de regimes de
trabalho, o seu substrato maior (DRUCK, 2002, p. 2).

No levantamento dos estudos sobre a temática, publicados desde 1990, em


sua imensa maioria, demonstravam para todos os setores de atividades e casos
pesquisados, que a flexibilização do trabalho era o elemento chave do processo de
reestruturação, expresso no quadro das mudanças organizacionais e tecnológicas,
do mercado de trabalho, do emprego, da legislação trabalhista e dos sindicatos.
Nestas abordagens, a flexibilização do trabalho revelada pelas pesquisas
era invariavelmente associada ao fenômeno da precarização do trabalho e do
emprego. E, nesta medida, os estudos apontavam os resultados negativos,
44

expressos num conjunto de indicadores como: desemprego, instabilidade,


situações de risco e insegurança no trabalho, falta de segurança e condições
propícias ao trabalho, aumento de doenças ocupacionais e de acidentes de
trabalho, perda de vínculos e direitos, intensificação do trabalho, e outros.
Entretanto, ao incorporar o debate com outros autores e formulações,
a exemplo de Robert Castel (1995), Annie Thebaut-Mony e Beatrice Appay
(1997), passei a compreender a centralidade da precarização social do trabalho
neste novo regime de acumulação. Assim, passei a considerar que não são
dois fenômenos distintos, nem entrelaçados, como a maioria das pesquisas
analisa, e como eu afirmei em outros textos. No plano empírico, os indicadores
das transformações do trabalho imputam à precarização como resultado da
flexibilização. E, ao fazer isso, permitem pensar a flexibilização como fenô-
meno necessário e inexorável ao capitalismo mundializado e financeirizado e,
sob uma abordagem economicista, lhe dá um status que possibilita conceber

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o trabalho flexível como mudança positiva que não necessariamente leva à
precarização4. Mais recentemente, embasada no debate teórico e nos estudos
empíricos, objeto dos levantamentos realizados, passei a conceber a flexibi-
lização como sinônimo de precarização do trabalho, “...consideradas como
fenômenos idênticos, que expressam a “institucionalização da instabilidade”
– como forma de dominação social do trabalho e de uma precarização social
de novo tipo, metamorfoseada, mundializada, marcada pelas especificidades
históricas de cada país (DRUCK, 2007). Assim, conforme sintetizado no
verbete “Precarização social do trabalho” (DRUCK, 2013, 2020, p. 500-501),
entendemos que é um processo econômico, social e político que se tornou
hegemônico e central na atual dinâmica do novo padrão de desenvolvimento
capitalista – a acumulação flexível – no contexto de mundialização do capital
e das políticas de cunho neoliberal. Trata-se de uma estratégia patronal, em
geral apoiada pelo Estado e seus governos, que tem sido implementada em
todo o mundo, cujos resultados práticos se diferenciam muito mais por conta
da história passada de cada país, refletindo os níveis de democracia e de con-
quistas dos trabalhadores, do que da história presente, cujos traços principais
os aproximam e os tornam semelhantes, pois a precarização social do trabalho
se impõe como regra e como estratégia de dominação assumindo um caráter
cada vez mais internacionalizado.
Entendê-la como estratégia de dominação significa perceber que o capi-
tal se utiliza da força e do consentimento, como recursos para viabilizar um
grau de acumulação sem limites materiais e morais. A força se materializa
principalmente na imposição de condições de trabalho e de emprego precárias
frente à permanente ameaça de desemprego estrutural criado pelo capitalismo.

4 O que Appay e Thébaud-Mony (1997) chamaram de paradigma da flexibilidade positiva.


LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 45

Afinal, ter qualquer emprego é melhor que não ter nenhum. Aplica-se aqui,
de forma generalizada, o que Marx e Engels elaboraram acerca da função
política principal do exército industrial de reserva, qual seja: a de criar uma
profunda concorrência e divisão entre os próprios trabalhadores e, com isso,
garantir uma quase absoluta submissão e subordinação do trabalho ao capital.
O consenso se produz a partir do momento em que os próprios trabalhadores,
influenciados por seus dirigentes políticos e sindicais, passam a acreditar
que as transformações no trabalho são inexoráveis e, como tal, passam a ser
justificadas como resultados de uma nova época ou de um “novo espírito do
capitalismo” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

A atual precarização social do trabalho e o neoliberalismo

Na atualidade, ao lado do processo de financeirização – e condição


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necessária para a sua expansão – o neoliberalismo se tornou hegemônico,


cuja proposição tem origem no final de 1930 (Colóquio Walter Lippman em
1938) e na fundação da Sociedade Mont Pelerin em 1947, como uma reação
teórica e política contra o Estado « intervencionista » e de bem-estar. O projeto
neoliberal só se concretizou quase 30 anos após a sua formulação teórica e
teve sua primeira experiência no Chile, em 1973, com o golpe e a contrarevo-
lução comandada por uma junta militar, implantando uma das ditaduras mais
violentas da América Latina. Na sequência, foi na Inglaterra em 1979 e nos
EUA, em 1981, que o neoliberalismo se impôs e se consolidou, tornando-se
referência para o mundo inteiro.
Nas diversas perspectivas de análise do neoliberalismo, há em comum a
ideia central sobre o processo de mercantilização como elemento chave, isto
é, o mercado passa a ocupar um lugar decisivo nas novas relações sociais,
assim [...] Ele [o neoliberalismo] sustenta que o bem social é maximizado se
se maximizam o alcance e a freqüência das transações de mercado, procurando
enquadrar todas as ações humanas no domínio do mercado (HARVEY, 2014,
p. 14). A troca no mercado se transforma numa ética que deve guiar a ação
humana. Corroborando essa interpretação, Dardot e Laval (2016, p. 7) afirmam
sobre uma « racionalidade neoliberal », cujo âmago é estabelecer « a concor-
rência como norma de conduta e a empresa como modelo de subjetivação » .
Em ambas perspectivas, mesmo com referenciais teóricos diferentes,
as relações de trabalho, marcadas pela precarização, são determinates para
a mercantilização da vida no processo de neoliberalização da sociedade.
Sauvetre et al. (2021) qualificam as transformações no « front do traba-
lho » como uma guerra econômica da concorrência – cujas fórmulas estão
sintetizadas na defesa do « modernizar », « flexibilizar », « fazer baixar o
46

custo do trabalho (p. 228) –, que se estende ao conjunto dos trabalhadores,


estabelecendo uma « guerra de todos contra todos » no espaço do trabalho,
visando reforçar a dominação do trabalho numa ofensiva dos capitalistas
contra o compromisso fordista e as possibilidades democráticas do trabalho.
Para os autores :

[...] as principais dimensões dessa guerra que, longe de se reduzir à globa-


lização econômica, implica o plano das práticas, dos discursos e dos modos
de subjetivação necessários à flexibilização e precarização do trabalho.
[...] uma ofensica geral cujo principal objetivo não é apenas impor novas
normas de trabalho pelo direito e a reorganização do trabalho, mas torná-
-las aceitáveis, apresentando-as sob as vestes sedutoras da emancipação
e autorealização (SAUVETRE et al., 2021, p. 229).

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Destruir as condições de uma possível “consciência de classe”, deslo-
cando para as lutas entre indivíduos, como inimigos potenciais, e “fazer-se
radicalmente inimigo de si mesmo, jogando as regras de um jogo do qual a
grande maioria sai perdedora” (Idem, p. 229).
Neste mesmo sentido, Harvey (2014, p. 63) sustenta:

As virtuosas reivindicações de especialização flexível nos processos de


trabalho e de flexibilização dos contratos de trabalho puderam tornar-se
partes da retórica neoliberal capazes de ser persuasivas para trabalhado-
res individuais, particularmente aqueles que haviam sido excluídos dos
benefícios monopolistas, que a forte sindicalização às vezes trazia. Uma
maior liberdade em geral e a liberdade de ação no mercado de trabalho
podiam ser louvadas como uma virtude tanto para o capital como para o
trabalho, e também nesse caso não foi difícil integrar valores neoliberais
ao «senso comum» de boa parte da força de trabalho.

A neoliberalização do trabalho, para além da guerra aos sindicatos –


empoderados durante o fordismo e os Estados de bem-estar e acusados de
responsáveis pela queda da rentabilidade das empresas –, busca desmantelar
os coletivos de trabalho e, para isso, procura substituir as relações de assa-
lariamento protegido pelo empreendedorismo, através da « uberização » ou
capitalismo de plataforma. Processo também referido por Brown (2020, p.
49) quando destaca que « [...] a desmassificação ordoliberal visava combater a
proletarização por meio da empreendedorização (logo da reindividualização)
dos trabalhadores, por um lado, e da realocação dos trabalhadores em práticas
de autoprovisão familiar, por outro.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 47

É neste contexto que se inserem algumas práticas de gestão e organi-


zação do trabalho que se tornam centrais e estratégicas de precarização. É o
caso da terceirização que tem como um dos principais objetivos, se desven-
cilhar dos custos trabalhistas e da subordinação ao direito do trabalho. As
“empresas prestadoras de serviços”, por exemplo, são contratadas através
de uma relação comercial com a contratante e esta se desobriga dos direitos
trabalhistas. A contratada, comprimida pela pressão dos custos e prazos,
aumenta o grau de exploração dos trabalhadores e cria uma “cultura” de
negação e desrespeito aos direitos do trabalho, buscando anular a função
protetiva do Estado. Numa economia comandada pela lógica financeira sus-
tentada no curtíssimo prazo, as empresas buscam garantir seus altos lucros,
exigindo e transferindo aos trabalhadores a pressão pela maximização do
tempo, pelas altas taxas de produtividade, pela redução dos custos com o
trabalho e pela “volatilidade” nas formas de inserção e de contratos. É o que
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sintetiza a terceirização, que, como nenhuma outra modalidade de gestão,


garante e efetiva essa “urgência produtiva” determinada pelo processo de
financeirização (DRUCK, 2016).
A terceirização potencializa a concorrência entre os trabalhadores, pois
além da redução de custos e da transferência de responsabilidades pelo vínculo
empregatício para um terceiro, o empresariado tem uma motivação política
ao provocar a fragmentação dos coletivos de trabalho, a criação de divisão
e discriminação entre os trabalhadores, classificando-os como de primeira e
segunda categoria e levando a um processo de dispersão dos sindicatos, já
que trabalhadores de uma mesma unidade produtiva podem ser representados
por vários sindicatos, quebrando a sua unidade e fragilizando as suas lutas
(DRUCK, 2016 ; DRUCK ; BASUALDO, 2022).
As inúmeras pesquisas têm demonstrado a indissociabilidade entre ter-
ceirização e precarização em todas as dimensões: nas modalidades de contra-
tação precárias, que se estabelecem por períodos determinados cada vez mais
curtos, nas condições de trabalho, na remuneração, na jornada de trabalho,
na saúde do trabalhador, na representação sindical e nos direitos trabalhis-
tas. Os terceirizados recebem menos, trabalham mais, têm menos direitos e
benefícios, têm maior rotatividade e instabilidade no trabalho, têm menos
capacitação e treinamento, menos equipamentos de segurança; se acidentam
e morrem mais e estão crescendo mais do que os demais. (KREIN, 2016;
BIAVASCHI e TEIXEIRA, 2015, DROPPA e BIAVASCHI, 2014;TEIXEIRA
et al., 2016; MARCELINO, 2004; DAU et al. 2009, DRUCK e BASUALDO,
2022). Nessa medida, a terceirização antecipa o que as reformas trabalhistas
objetivam legalizar para todos os trabalhadores : a precarização como regra.
48

No plano empírico, a terceirização demonstra a precarização como um


fenômeno multifacetado, quando se trata das suas diferentes dimensões : a) nas
formas de mercantilização da força de trabalho, que produziu um mercado de
trabalho heterogêneo, segmentado, marcado por uma vulnerabilidade estrutural
e com formas de inserção (contratos) precários, sem proteção social e altas
taxas de rotatividade; b) nos padrões de gestão e organização do trabalho – que
tem levado a condições extremamente precárias, através da intensificação do
trabalho (imposição de metas inalcançáveis, extensão da jornada de trabalho,
polivalência etc.) sustentados na gestão pelo medo, na discriminação e nas
formas de abuso de poder através do assédio moral; c) nas condições de (in)
segurança e saúde no trabalho – resultado dos padrões de gestão, que desrespei-
tam o necessário treinamento, as informações sobre riscos, medidas preventivas
coletivas, etc. na busca incessante de redução de custos, mesmo que à custa de
vidas humanas, levando a altos índices de acidentes de trabalho, adoecimento

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e mortes; d) no isolamento, na perda de enraizamento, de vínculos, de inser-
ção, resultantes da descartabilidade, da desvalorização e da discriminação,
condições que afetam decisivamente a solidariedade de classe, solapando-a
pela brutal concorrência que se desencadeia entre os próprios trabalhadores,
dificultando a sua identidade de classe; e) no enfraquecimento da organização
sindical e das formas de luta e representação dos trabalhadores, decorrentes
da violenta concorrência entre os mesmos, da sua heterogeneidade e divisão,
implicando numa pulverização dos sindicatos; e) na negação do direito do
trabalho, impulsionada pelo comportamento patronal, que questiona a sua
tradição e existência, expressa na reforma trabalhista de 2017, que liberou a
terceirização sem limites, além de outras mudanças na CLT que esvaziaram
seu conteúdo protetivo. (DRUCK, 2011; DRUCK e BASUALDO, 2022)
Mais recentemente, uma nova forma de organização do trabalho se tor-
nou o centro do debate e das pesquisas no campo da sociologia do trabalho
: a uberização. O uso de aplicativos se disseminou para inúmeras atividades
profissionais, com destaque para os entregadores e motoristas. A natureza
principal dessa forma de trabalho é a negação absoluta da condição de assa-
lariado dos trabalhadores, pois estabelece que eles são prestadores autônomos
de serviços. Os aplicativos se apresentam apenas como intermediários técnicos
que permitem uma ponte entre esses autônomos e os clientes. Sob o fetiche da
tecnologia, as empresas donas dos aplicativos querem esconder uma relação
de trabalho e de produção e não reconhecem qualquer vínculo empregatício
com esses trabalhadores.
A terceirização e a uberização são fenômenos distintos – inclusive porque
esta última está determinada pela economia das plataformas, onde a tecnologia
de informação tem papel central para ocultar a relação de emprego e onde os
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 49

meios de trabalho estão sob as custas dos trabalhadores, e tem na ideologia


do empreendedorismo um elemento central, levando a que a maioria dos
entregadores de aplicativos não se considere um trabalhador, mas um “empre-
sário de si mesmo”, acreditando que tem autonomia para definir seu trabalho
e sua jornada, na condição de autônomo. Entretanto, pode se afirmar que a
terceirização abriu as portas para a uberização, antecipando em algumas de
suas modalidades o não reconhecimento da relação de assalariamento, como
é o caso as cooperativas, a pejotização, o trabalho integrado, trabalho avulso,
trabalhadores independentes ou autônomos, dentre outras.
A inovação trazida pelas TICs é a combinação entre a negação do assa-
lariamento com modernos e sofisticados instrumentos de controle do trabalho
(registro dos tempos e movimentos em tempo real de cada tarefa propiciado
por essas tecnologias), amplificando de forma inédita a organização taylorista
do trabalho, sobre indivíduos supostamente autônomos que, contaminados
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pela ideologia do empreendedorismo, se subordinam ao controle das gran-


des corporações, assumindo todos os riscos e custos e acreditando que tem
liberdade no trabalho flexível e sem nenhum “patrão” ou “chefe” para lhe dar
ordens. (ANTUNES e FIGUEIRAS, 2020)
Tal condição coloca em risco a integridade subjetiva do trabalhador,
pois passa a sofrer uma coerção sobre si mesmo (SAUVETRE et al., 2021,
p. 240-241), o « empresário de si é constrangido a fazer-se o inimigo de si
», pois : « [...] a promoção de um modelo de autoempresariamento vai de
encontro aos interesses da maioria. Jogar o jogo do empresário de si é, neste
sentido, aceitar ‘voluntariamente’ a condição do ‘precariado’ e se apropriar de
normas e valores contrários aos próprios interesses.» Ou o que outros autores
denominam como « servidão voluntária » (ANTUNES, 2018).
É uma das expressões do que Gaulejac e Hanique (2015) nomeiam de
« capitalismo paradoxal », uma concepção crítica sobre as sociedades hiper-
modernas, em que se exacerbam as contradições da modernidade, ancorada
num individualismo extremo, quando os indivíduos são considerados como
únicos responsáveis pelo seu sucesso ou fracasso. Gaulejac e Hanique ana-
lisam como esse “capitalismo paradoxal” vai psicologizando os problemas
sociais, pois o desemprego deixa de ser uma questão econômica e social, fruto
do sistema produtivo, e passa a ser considerado como um problema pessoal,
daqueles que não têm competência, que fracassam por não se adaptarem às
novas exigências da modernização capitalista. Os autores desenvolvem uma
análise pormenorizada das transformações na organização do trabalho, das
relações de poder, do lugar da gerência, da redefinição das hierarquias, da
cultura dos resultados e da urgência, da compressão dos tempos, da “discreta”
violência institucional, da “autonomia controlada”, dentre outros aspectos,
50

para demonstrar como há um deslocamento da relação capital trabalho da


era fordista, centrada no capitalismo industrial, para a era dos paradoxos,
expressão do capitalismo financeiro, cuja lógica torna-se hegemônica con-
taminando todos os espaços de sociabilidade, principalmente o campo do
trabalho, cada vez mais reduzido a um custo que precisa diminuir e se adap-
tar ao curto prazo, à volatilidade, descartabilidade, enfim, a uma condição
precária como forma de vida.

A precarização e as classes sociais: existe um precariado?

O debate acerca da precariedade como condição permanente e não mais


provisória na Europa, conforme análise de Castel (2010), qualifica as trans-
formações do trabalho a partir da crise da « condição salarial » do fordismo,
agora substituída pela « condição precária ». Nas palavras do autor :

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[...] Se converte assim em uma condição de alguma maneira ‘normal’ da
organização do trabalho, com suas características próprias e seu próprio
regime de existência. Assim como se fala de ‘condição salarial’ (caracte-
rizada pelo estatuto do emprego da sociedade salarial), teria que se falar
de condição precária, [...]. Uma precariedade permanente que já não teria
nada de excepcional ou de provisório. Poder-se-ia chamar ‘precariado’
a esta condição sob a qual a precariedade se converte em um regime
próprio da organização do trabalho (CASTEL, 2010, p. 132 – tradução
livre, grifos meus).

Na condição precária, há um processo de individualização profundo que


dissolve a capacidade de existir como coletivo. Sob a ameaça do desemprego
e da precarização, os trabalhadores são forçados a serem flexíveis, adaptáveis,
sendo obrigados a “entrar no jogo” do capitalismo flexível. Neste cenário,
promove-se uma brutal concorrência entre “iguais”, ou seja, entre trabalha-
dores que disputam as mesmas posições de inserção no mercado de trabalho,
quando são levados a adotar estratégias individuais e não mais coletivas para
enfrentar essa disputa (DRUCK, 2018).
Ainda na visão de Castel, essa condição de precariado desmonta um
conjunto de direitos e constitui uma enorme heterogeneidade entre os tra-
balhadores, dificultando sobremaneira a sua existência como classe social.
Em diálogo com o marxismo, afirma que « a classe operária perdeu a par-
tida » (2010, p. 285), desfazendo-se da condição de organização e luta por
outra sociedade. Entretanto, reconhece que os elementos que a constituíram
não desapareceram.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 51

Guy Standing (2013) concebe o « precariado » como uma nova classe


em formação e qualificada como « perigosa » no contexto da globalização
e de novas relações sociais que exigem uma nova denominação, pois os ter-
mos “classe trabalhadora”, “trabalhadores” e “proletariado” estão superados
e não expressam mais esse novo momento do capitalismo do século XXI. E
apresenta a sua concepção:

O precariado tem características de classe. Consiste em pessoas que têm


relações de confiança mínima com o capital e o Estado, o que as torna
completamente diferentes do assalariado. E ela não tem nenhuma das
relações de contrato social do proletariado, por meio das quais as garantias
de trabalho são fornecidas em troca de subordinação e eventual lealdade,
o acordo tácito que serve de base para os Estados de bem-estar social.
Sem um poder de barganha baseado em relações de confiança e sem poder
usufruir de garantias em troca de subordinação, o precariado é sui generis
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em termos de classe [...] (STANDING, 2013, p. 25).

Para Standing (2013), o precariado é composto por aqueles que estão fora
da “cidadania industrial”, isto é, sem garantia de vínculo empregatício, sem
segurança no emprego e no trabalho, sem garantia de reprodução de habili-
dade, insegurança de renda e sem garantia de representação. Vivem, portanto,
numa situação de instabilidade, irregularidade e insegurança permanentes
em todos os níveis sem qualquer possibilidade de um pertencimento a uma
“comunidade trabalhista solidária”. Sem perspectivas de futuro, se movem
no curtíssimo prazo, influenciados pelas novas tecnologias e mídias sociais,
seu pensamento é rápido e curto e não há memória de longo prazo. Nessa
condição de “incerteza crônica”, não conseguem criar vínculos nem formas
de solidariedade, não se identificam uns com os outros, pois são “[...] uma
crescente massa de pessoas [...] em situações que só podem ser descritas como
alienadas, anômicas, ansiosas e propensas à raiva. O sinal de advertência é
o descompromisso político” (STANDING, 2013, p. 47) (DRUCK, 2018).
Ainda segundo Standing (2013, p. 48), constituem uma “classe perigosa”:

‘o precariado não é uma classe organizada que busca ativamente seus interes-
ses, em parte porque está em guerra consigo mesmo.’ [...] As tensões dentro
do precariado estão colocando as pessoas umas contra as outras, impedin-
do-as de reconhecer que a estrutura social e econômica está produzindo seu
conjunto de vulnerabilidades. Muitos serão atraídos por políticas populistas
e mensagens neofascistas, um desenvolvimento que já é claramente visí-
vel através da Europa e dos EUA e em outros lugares. É por isso que o
precariado é a classe perigosa, e é por isso que ‘uma política de paraíso’ é
necessária para responder aos seus medos, inseguranças e aspirações.
52

Uma análise que vai ao encontro das formulações referidas anteriormente


sobre a relação entre a precarização do trabalho e o neoliberalismo (SAUVE-
TRE et al, 2021; HARVEY, 2014; BROWN, 2019), que indicam o processo de
individualização, da concorrência, do empresário de si mesmo, transformado
em inimigo de si mesmo, desconstruindo a condição subjetiva de classe social.
Dörre (2022, p. 142) discute a “erosão da sociedade de classe inte-
grada”, isto é, a era fordista, em que houve um “status coletivo reconhe-
cido”, conquistando-se uma cidadania social, com um conjunto de conquistas
que estabeleciam um padrão de vida de classe média para os trabalhadores
empregados. Foram condições socioeconômicas específicas do capitalismo
que propiciaram essa configuração naqueles países que viveram os Estados
de bem-estar. Situação que vai se esgotando e leva à mobilização e lutas
reivindicativas dos trabalhadores para manter a sua condição. O “regime de
expropriação do capitalismo financeiro” foi a resposta à crise do fordismo.
Segundo Dörre (2022, p. 145):

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[...] o capitalismo de mercado financeiro se refere ao surgimento de uma
determinada formação capitalista. Ela combina uma acumulação de capi-
tal – baseada em um domínio relativo do capital financeiro – modelos de
produção e disposições regulatórias (vínculos entre o discurso público e
as práticas institucionais) flexíveis, centradas no mercado, que priorizam
a responsabilidade individual e a competitividade em detrimento do prin-
cípio de solidariedade.

O novo modus operandi desse regime de expropriação do capita-


lismo financeirizado provocou uma desestruturação e reestruturação das
relações de classe, sobrepondo velhas e novas estruturas. No campo das
classes dominantes, novas frações e reposicionamentos provocados pela
transnacionalização, juntando segmentos mais tradicionais, a exemplo dos
banqueiros, com novos ricos especuladores, uma nova elite de executivos
numa gestão empresarial orientada para os acionistas e o surgimento de
“uma classe de prestadores de serviço ao capitalismo do mercado finan-
ceiro” (DÖRRE, 2022, p. 148). Essa nova elite não tem compromisso
corporativo e é movida por interesses pessoais diante das possibilidades
de rápido enriquecimento através da especulação no mercado financeiro.
Uma composição de classe constituída por novas frações numa condição de
permanente instabilidade, gerada pelo caráter volátil dos investimentos e
seus resultados. Entretanto contam com uma reestruturação das instituições
e das formas de regulação estabelecidas pelo Estado, que lhes garantem
uma liberdade quase sem limites para atuar no processo de financeirização,
reforçadas pela remercantilização e expropriação, típicas da “acumulação
por espoliação” (HARVEY, 2004).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 53

No campo das classes trabalhadoras, a acumulação flexível comandada


pelo regime de expropriação do capitalismo financeiro faz amplificar o “exér-
cito industrial de reserva”, potencializando a insegurança e instabilidade,
repercutindo sobre a composição das frações de classe, quebrando o status
social e coletivo, reduzindo seu efetivo e substituindo-o pela crescente ocupa-
ção precária. Neste processo, perde-se a crença na organização coletiva e só
o sucesso individual é possível. O que “...dá origem a orientações sociais que
provocam lutas classificatórias dentro da classe trabalhadora ao mesmo tempo
que desencadeiam o repúdio a partes da sociedade consideradas improdutivas
e ‘parasitárias” (DÖRRE, 2022, p. 150).
Neste contexto, os trabalhadores com carteira assinada e contratos por
tempo indeterminado tendem a defender a manutenção das suas condições,
assumindo uma postura corporativa e de transferência de riscos aos segmen-
tos mais precarizados, pois a relativa segurança dos primeiros depende da
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insegurança dos últimos.


Dörre (2022) defende o surgimento de um novo subproletariado, aqueles
trabalhadores que não têm propriamente um emprego, mas trabalho incerto,
são mal remunerados e socialmente desqualificados e negligenciados. Embora
considere que:

É verdade que as formas estruturais contemporâneas da precariedade


abrangem todas as “zonas de coesão social” e estão presentes em diferentes
classes (frações) e estratos. A esse respeito, não há uma subclasse homo-
gênea nem um precariado claramente definível.” (DÖRRE, 2022, p. 152).

É nesta mesma perspectiva que analisei (DRUCK, 2018, p. 88):

[...] compreende-se que a precariedade sofreu mais uma grande metamor-


fose, como “dialética do mesmo e diferente” (CASTEL, 1998), tornando-se
de outra natureza, tanto no Brasil como nos países do centro: deixou de ser
“residual”, ou ainda reflexo do “atraso”, para se transformar no centro da
dinâmica do capitalismo flexível, se constituindo num fenômeno mundial
que passou de “condicionado a condicionante” (MATOS, 2010). A preca-
rização – como processo, como movimento – se generalizou para todos
os lugares (centro e periferia), para todos os setores (urbano e rural), para
todas as atividades (indústria, serviços públicos e privados, comércio),
para todos os segmentos de trabalhadores (mais qualificados, menos qua-
lificados, jovens, velhos, homens, mulheres, negros, brancos, migrantes,
nativos), mesmo que atingidos em graus diferentes por essa precarização.

Nesta medida, reafirmo o que já expus em escritos anteriores Druck


(2016, 2018), o atual debate sobre precarização e precariado contribui para
54

explicitar o caráter histórico das classes sociais em sua processualidade. A


precarização social do trabalho – como um movimento que está no centro da
dinâmica do atual padrão de desenvolvimento capitalista, sob a hegemonia
da lógica financeira e do neoliberalismo –, reconfigura as relações entre as
classes e intraclasses, alterando a sua composição e morfologia. Observa-se
o surgimento de novos contingentes de trabalhadores, constituídos a partir
das novas formas de organização do trabalho e de transformações tecnoló-
gicas, cujo perfil difere em muito do velho operário industrial, a exemplo
dos trabalhadores em telemarketing e, mais recentemente, os trabalhadores
de aplicativos. Denominados por Antunes (2018) de “novo proletariado de
serviços”, considerado como parte da classe-que-vive-do-trabalho e, portanto,
em discordância com Standing em sua afirmação sobre o precariado como
uma nova classe, pois:

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[...] a classe-que-vive-do-trabalho, em sua nova morfologia, compreende
distintos polos que são expressões visíveis da mesma classe trabalhadora,
ainda que eles possam se apresentar de modo bastante diferenciado (dife-
renciação, aliás, que não é novidade na história da classe trabalhadora,
sempre clivada por gênero, geração, etnia/raça, nacionalidade, migração,
qualificação etc.) (ANTUNES, 2018, p. 58).

Em síntese, a descrição empírica das condições objetivas e subjetivas dos


novos segmentos de trabalhadores que crescem em todo o mundo, classificados
como “precários”, ou como “condição precária” – fora da relação de assalaria-
mento fordista ou “condição salarial” –, apesar de evidenciar as diferenças nas
condições de trabalho, nos salários, nos direitos sociais e trabalhistas, não é sufi-
ciente para afirmar sobre o surgimento de uma nova classe social: o precariado.
Este debate teórico, referenciado, principalmente nos países do centro,
sobretudo naqueles em que se constituíram os Estados de bem-estar social,
pode ser problematizado e adaptado para o caso das regiões periféricas, a
exemplo do Brasil?

As especificidades da precarização nos países da periferia: o caso


brasileiro

A especificidade do caso brasileiro só pode ser compreendida a partir da sua


história passada. Um país colonial sustentado no trabalho escravo, que se especia-
lizou numa economia agrário-exportadora e cuja industrialização tardia, através
do modelo de substituição de importações, o condenou a uma posição subordi-
nada às economias centrais, condição similar para os países latino-americanos.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 55

O desenvolvimento mundial do capitalismo se deu de forma desigual


e combinada, criando uma divisão internacional do trabalho, em que as
antigas colônias na América Latina transformaram-se em países dependen-
tes, exportadores de matérias primas, enquanto a dinâmica industrial e de
matrizes tecnológicas avançava nos países do centro. No caso do Brasil, a
industrialização, mesmo que tardia, tornou a economia mais complexa e
dinâmica, instalando-se no país as principais indústrias de bens de consumo
durável, diferenciando a sua estrutura produtiva em relação a outros paí-
ses latino-americanos.
As transformações do trabalho em tempos de globalização financeira e
do neoliberalismo no Brasil precisam ser analisadas a partir da constatação de
que aqui não se constituiu um Estado de Bem Estar Social, mas um sistema de
proteção social (CLT – Consolidação das Leis do Trabalho) datado de 1943,
condicionado pelo controle do Estado sobre os sindicatos, embora estabele-
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cendo um conjunto de direitos sociais e trabalhistas restritos ao setor urbano,


reivindicados pelos trabalhadores desde o pré 1930, e que representaram um
avanço importante em direção à “condição salarial” da qual falam os estudos
sobre a experiência europeia.
Diferentemente dos países mais desenvolvidos, onde foi possível estabe-
lecer um grau de integração e homogeneidade social maior durante os “30 anos
gloriosos”, que tinham a “condição salarial” como hegemônica; no Brasil, essa
“condição salarial” nunca foi atingida plenamente, mas sempre foi fortemente
desejada e perseguida pelas lutas sociais e serviu de inspiração política para a
crítica ao “capitalismo selvagem” brasileiro. Nesta medida, o “espírito capi-
talista” do padrão fordista de desenvolvimento e de regulação, que propiciou
o período de prosperidade e progresso social naqueles países, era, de certa
forma, reivindicada ou buscada como caminho para superar as condições de
miséria, de pobreza, de subemprego e de “mal-estar social” em nosso país.
Historicamente o mercado de trabalho brasileiro foi marcado por uma
enorme heterogeneidade e desigualdade, onde a precariedade estrutural do
capitalismo dependente se manifestou desde as suas origens no Brasil, mesmo
que sofrendo mudanças conjunturais.
No atual contexto, após três décadas de manifestação sistêmica da crise
fordista no Brasil, pode-se afirmar que a precarização do trabalho se consti-
tuiu como um novo fenômeno, cujas principais características, modalidades e
dimensões sugerem um processo de precarização social inédito no país neste
último período, revelado pelas mudanças nas formas de organização/gestão do
trabalho, na legislação trabalhista e social, no papel do Estado e suas políticas
sociais, no novo comportamento dos sindicatos e nas novas formas de atuação
de instituições públicas e de associações civis.
56

O caráter desta nova precarização social do trabalho está sustentado na


ideia de que é um processo que instala – econômica, social e politicamente -
uma institucionalização da flexibilização e da precarização modernas do traba-
lho de caráter mundial, renovando e reconfigurando a precarização histórica e
estrutural do trabalho no Brasil, agora justificada – na visão hegemonizada pelo
capital –, pela necessidade de adaptação aos novos tempos globais, marcados
pela inevitabilidade e inexorabilidade de um processo mundial de precarização,
também vivido a passos largos pelos países desenvolvidos. Assim, a referência
para os países periféricos não está mais na cidadania fordista ou na condição
salarial daqueles países, mas no capitalismo flexível e global como “única
saída” para a modernidade no mundo contemporâneo (DRUCK, 2011). Nesta
medida, o capitalismo neoliberal procura enterrar o “sonho socialdemocrata”,
responsabilizando as políticas sociais, a conquista de direitos e os sindicatos
de trabalhadores pelas dificuldades no processo de acumulação.

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A precarização em escala global, determinado pela acumulação flexível
tem expressões históricas nacionais e regionais diversas, pois é resultado das
diferentes histórias do trabalho e do emprego, que marcaram as condições
socioeconômicas e políticas de cada país. Entretanto, atualmente as realida-
des do trabalho na América Latina, na Europa, nos EUA e países asiáticos
vêm se tornando cada vez mais semelhantes, conforme inúmeras pesquisas
têm demonstrado.
No Brasil e nos países latino-americanos, a natureza da dinâmica da
precarização do trabalho é a mesma, mas a sua potencialidade de genera-
lização é diferente, pois apenas um conjunto minoritário de trabalhadores
conquistou uma relativa estabilidade, ou seja, a vulnerabilidade social sempre
foi muito grande, mas também diferenciada entre os próprios trabalhadores e,
hoje, mesmo aqueles protegidos pela legislação (os “formais”) estão também
expostos e sofrem a precarização do trabalho.

Alguns elementos para a discussão sobre o precariado no Brasil5

Sem ter a pretensão de sistematizar a discussão sobre “precariado” no


Brasil, destaco algumas formulações, com cujos autores tenho dialogado. É
o caso de Giovanni Alves (2013a, 2013b, 2014), Ruy Braga (2012) e Ricardo
Antunes (2018).
Alves (2013a) considera que o surgimento do precariado é uma demons-
tração histórica da crise dessa ordem social burguesa sustentada no emprego,
nos direitos sociais, na inclusão pelo consumo e no Estado social. O novo

5 Na primeira parte desse tópico, reproduzo resumidamente uma discussão apresentada em: Druck (2018).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 57

caráter da precarização do trabalho na contemporaneidade surge da “nova


precariedade salarial vigente no capitalismo global”, já que essa precarização
é um “movimento de desconstrução da relação salarial constituída no capita-
lismo do pós-guerra”, assim como pode ser compreendida como “desmonte
das formas reguladas da força de trabalho como mercadoria” (ALVES, 2013a,
p. 85). Ainda na sua concepção a precarização não se limita ao “trabalho”, pois
se estende ao “homem-que-trabalha”, que se desefetiva como ser genérico.
Assim, considera que essa dupla precarização (do trabalho e do homem-
-que-trabalha) abre uma “[...] tríplice crise da subjetividade humana: a crise
da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de autorreferência pessoal”
(ALVES, 2013a, p. 87).
Assim no plano descritivo, classifica o precariado:

[...] como camada social média do proletariado urbano precarizado [...]


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constituído, por exemplo, por um conjunto de categoriais sociais imersas


na condição de proletariedade como, por exemplo, jovens empregados
do novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil, jovens empregados ou
operários altamente escolarizados, principalmente no setor de serviços e
comércio, precarizados nas suas condições de vida e trabalho, frustrados
em suas expectativas profissionais; ou ainda os jovens-adultos recém-gra-
duados desempregados ou inseridos em relações de emprego precário; ou
mesmo estudantes de nível superior (estudantes universitários são traba-
lhadores assalariados em formação e muitos deles, estudam e trabalham
em condições de precariedade salarial) (ALVES, 2013b, p. 3).

No caso do Brasil, Alves (2013a, p.88) salienta que é a partir dos anos
de 1990 que se constitui um “novo e precário mundo do trabalho”, fruto da
combinação de políticas neoliberais e da reestruturação produtiva, cuja centra-
lidade é a “nova precariedade salarial”, como elemento que sintetiza as demais
dimensões da precarização. Ademais, reflete as transformações no campo da
tecnologia, dos novos métodos de gestão/organização do trabalho, dos coletivos
geracionais híbridos e das novas relações flexíveis de trabalho, cujas expressões
empíricas são a remuneração flexível, a jornada de trabalho flexível e os novos
contratos flexíveis de trabalho. Em escritos mais recentes, afirma:

Temos utilizado os conceitos de precariado e ‘proletaróides’ para caracte-


rizar camadas sociais da classe do proletariado, personagens sociais predo-
minantes (embora não exclusivas), de manifestações sociais no Brasil do
neodesenvolvimentismo. Por isso, intitulamos as manifestações de junho
de 2013 como ‘a revolta do precariado’; e os ‘rolezinhos’ ocorridos em
dezembro de 2013 e janeiro de 2014 como ‘a invasão dos proletaróides’.
Na verdade, a utilização dos conceitos de precariado e ‘proletaróides’
58

visa caracterizar (e dar visibilidade) a novos personagens sociais que se


constituíram na era do neodesenvolvimentismo e que explicitam em si e
para si contradições da ordem burguesa hipertardia no Brasil (ALVES,
2014, p. 1).

Assim, na visão do autor, o precariado é uma camada social do proleta-


riado, que é possível identificar empiricamente, fruto da crise do fordismo e do
capitalismo e da resposta do capital, através dos processos de reestruturação
produtiva e da implementação do neoliberalismo. E, portanto, não se trata de
uma nova classe social.
Braga (2012) também parte do debate internacional que associa a
nova realidade do trabalho à crise do fordismo e dos Estados de bem-es-
tar social. Entretanto, destaca que a precariedade é “constitutiva da relação
salarial” e, consequentemente, “[...] o precariado não deve ser interpretado

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como antípoda do salariado, seu ‘outro’ bastardo ou recalcado” (BRAGA,
2012, p. 17), como o fazem as análises de Castel (2010) e Standing (2013).
Retoma a formulação de Marx sobre a população trabalhadora excedente
como necessária ao modo de produção capitalista, subdividida em flutuante,
latente, estagnada e pauperizada, e com base nesta concepção, compreende
o precariado como “proletariado precarizado”, ou o que Marx denominou
de “superpopulação relativa”. Nas palavras de Braga (2012, p. 18), o preca-
riado está no “coração do próprio modo de produção capitalista e não como
um subproduto da crise do modo de desenvolvimento fordista”, e é parte
integrante da classe trabalhadora.
Entretanto, considera essencial definir o precariado como um segmento
diferenciado, que reúne a “[...] a fração mais mal paga e explorada do proleta-
riado urbano e dos trabalhadores agrícolas, excluídos a população pauperizada
e o lumpemproletariado, por considerá-la própria à reprodução do capitalismo
periférico”. (BRAGA, 2012, p. 19). Embora reafirme que a precariedade nos
países periféricos nunca deixou de ser a regra, diferente dos países capita-
listas do centro; e, nesta medida, sempre foi tema dos estudos da sociologia
do trabalho no Brasil, reconhece as especificidades da atual precarização do
trabalho decorrente do neoliberalismo e da transição para um “pós-fordismo
financeirizado”, que se firmou nos anos 2000.
Braga (2012) dialoga com distintas análises de autores brasileiros, como
a ideia de “subproletariado” de André Singer e de “batalhadores brasileiros”
de Jessé de Souza, e defende que o precariado, como categoria descritiva, é
formado pela população latente, população flutuante e população estagnada,
com renda entre um e dois salários-mínimos, e tem capacidade de mobili-
zação coletiva. Num outro plano de análise, retoma algumas das principais
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 59

teses desenvolvidas sobre a classe trabalhadora brasileira, com o fordismo


periférico, o populismo, as lutas políticas e os sindicatos; e identifica, em
cada momento histórico, as relações diversas entre os diferentes precaria-
dos (migrantes, metalúrgicos, pós-fordistas) e o Estado brasileiro, admitindo
que houve “metamorfoses do precariado em condições sociais periféricas”
(BRAGA, 2012, p. 88). Desta forma, apresenta o conceito de “precariado
pós-fordista e periférico”, que está associado ao contexto da “empresa neo-
liberal”, em que:

[...] os trabalhadores foram subsumidos a um regime de acumulação


mundializado organizado em torno da dominância dos mercados finan-
ceiros [...]. A financeirização da gestão estimula a multiplicação das
formas de contratação da força de trabalho, a terceirização, o aumento
da rotatividade, o achatamento dos níveis hierárquicos, a administração
por metas e a flexibilização da jornada de trabalho, em uma escala iné-
Editora CRV - Proibida a comercialização

dita se comparada ao regime de acumulação fordista (BRAGA, 2012,


p. 186-87).

É a hegemonia financeira que provoca um enfraquecimento da posição


coletiva dos trabalhadores e transfere para eles uma parte considerável dos
riscos da concorrência intercapitalista, reduzindo a sua capacidade de negocia-
ção coletiva. Segundo Braga (2012), o setor de telemarketing é paradigmático
dessas transformações, pois se utiliza de um precariado jovem e se situa na
conjunção da terceirização, privatização neoliberal e financeirização do tra-
balho: são os infoproletários (ANTUNES; BRAGA, 2009).6
Em síntese, para Braga, existe um novo precariado, mesmo no Brasil,
como proletariado precarizado em condições específicas determinadas pela
subordinação à financeirização e ao neoliberalismo, que dificultam, mas não
impedem a sua organização coletiva, à medida que são estimulados a uma
concorrência permanente entre eles mesmos, minando a sua solidariedade.
Antunes (2018), ao discutir sobre o “novo proletariado de serviços”, se
posiciona criticamente aos autores que defendem o precariado como uma nova
classe. E salienta sobre a necessidade de se caracterizar as especificidades
das sociedades periféricas como o Brasil, em que o proletariado já surgiu em
alta precariedade, herdada da escravidão, condição histórica muito diferente
dos países do Norte. Para ele:

6 Em artigo mais recente Braga e Silva (2022, p. 120) discutem sobre os trabalhadores de plataformas,
classificando-os como parte do precariado, compreendido como: “Por “precariado” entendemos aquele
segmento das classes subalternas formado pela fusão das populações latentes, fluentes ou estagnadas da
classe trabalhadora, mais aqueles setores médios que estão em processo de proletarização, notadamente os
grupos sociais formados por jovens em trânsito mais ou menos permanente entre o aumento da exploração
econômica e a ameaça de exclusão social. Para mais detalhes, ver Braga (2012).” (tradução livre)
60

[...] o precariado – se assim o quisermos chamar – deve ser compreendido


como parte constitutiva do nosso proletariado desde sua origem, o seu
polo mais precarizado, ainda que seja evidente, como já indicamos ao
longo deste capítulo, que entre nós também venha se desenvolvendo com
rapidez um novo contingente do proletariado, largamente vinculado aos
serviços, com um traço geracional marcante (juventude) e cujas relações
de trabalho estão mais próximas da informalidade, do trabalho por tempo
determinado, dos terceirizados e intermitentes, modalidades que não param
de se expandir (ANTUNES, 2018, p. 62).

No caso dos países do centro capitalista, há uma constituição recente do


precariado, como um dos segmentos mais precarizados da classe trabalhadora,
que os diferencia da condição “fordista”, propiciada pelo Estado de bem-estar
social. Na periferia, como o Brasil, “...ele não só não se constitui como uma
nova classe, como também não é tão profundamente diferenciado em relação

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ao proletariado mais regulamentado, pois aqui nunca floresceu um padrão
societal típico do welfare State...”
Portanto, coerente com suas análises sobre as transformações da classe
trabalhadora, Antunes (2018) reafirma sua original contribuição no sentido
de explicar que a nova morfologia do trabalho define também uma nova
morfologia da “classe-que-vive-do-trabalho”, cuja heterogeneidade em sua
forma de ser que passa pela etnia, gênero, geração, migração, qualificação, e às
tantas formas de inserção no mercado de trabalho é complementada por uma
“... homogeneização que resulta da condição crescente pautada pela precari-
zação, cada vez mais desprovida de direitos do trabalho e de regulamentação
contratual” (ANTUNES, 2018, p.64). Tais transformações abarcam também
as formas de lutas sociais e sindicais, constituindo uma nova morfologia das
formas de organização, de representação e de ação coletiva dos trabalhadores.
Por fim, o debate acerca do precariado como nova classe ou fração de
classe merece continuar, pois, expressa o grau de heterogeneidade do trabalho
e da classe trabalhadora hoje. Sou partidária das críticas à concepção de uma
nova classe social, mas é preciso registrar que tanto Standing, como Alves,
Braga e Antunes estão afirmando a existência de um precariado, a partir de
uma descrição empírica das condições de trabalho impostas pela atual preca-
rização. Todos estão preocupados em classificar e identificar quem compõe o
precariado, dando-lhe um status de uma categoria descritiva.

Notas Finais

Em primeiro lugar, busquei neste capítulo, “prestar contas” e reconhe-


cer (auto) criticamente algumas imprecisões conceituais no debate sobre
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 61

precariedade e precarização, revisitando meus escritos, à luz das mais recen-


tes transformações do trabalho e procurando atualizar o debate conceitual
contextualizado no capitalismo contemporâneo.
Neste esforço de sistematização, reafirmei determinadas análises e tam-
bém registrei suas limitações, assim como as necessárias mudanças na com-
preensão dos fenômenos neste campo temático da precarização social do
trabalho, propiciadas pela observação das realidades empíricas e pelo diálogo
com velhos e novos autores.
Considero que uma das chaves principais para compreender o presente e
o futuro do trabalho é a ideia que vivemos hoje, no capitalismo neoliberal, uma
precariedade revigorada com novos contornos fazendo da precarização moderna
a regra e estratégia de dominação, expressa nas diferentes dimensões que se
pode identificar no plano empírico: “reformas trabalhistas” que decretam o fim
da hipossuficiência do trabalhador, deixando-os à mercê do mercado; a “uberi-
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zação” que nega a condição de trabalhadores e os trata como empreendedores


e empresários de si mesmos; a terceirização que discrimina e estabelece traba-
lhadores de segunda categoria; o trabalho análogo ao escravo, cada vez mais
utilizado por capitalistas de todo tipo, no campo e nas cidades; a destituição do
caráter público dos bens e serviços necessários à reprodução, com a privatização
interna e externa do Estado, reduzindo o contingente de servidores públicos ou
transformando-os em “servidores privados”, dentre outros indicadores.
O poder de generalização da precarização social e de sua “institucio-
nalização” – aceita como parte necessária e inevitável do capitalismo finan-
ceirizado sob a hegemonia neoliberal –, é diferenciado nas várias regiões
do mundo, dada as especificidades históricas de cada país e, portanto, se
constituem níveis diferentes de precariedade, a exemplo dos países da peri-
feria como o Brasil. Entretanto, a mundialização do capital impôs e tornou a
precarização o centro da sua dinâmica.
Um dos principais objetivos dessa lógica capitalista é retirar qualquer
limite material e moral à exploração do trabalho. Limites que são postos
como resultado das lutas e da organização dos trabalhadores. Portanto, para o
capital trata-se de negar a condição de classe dos trabalhadores, seja no plano
subjetivo e ideológico ou nas condições objetivas de trabalho. Para isso, é
preciso negar a existência de uma relação social, que é central no capitalismo:
a relação de assalariamento, a partir da qual, se ergue o trabalhador como ser
coletivo. Sob a radical mercantilização da vida, do culto ao indivíduo versus
o coletivo, da imposição da concorrência como forma de vida, transformando
homens e mulheres em empresários de si mesmos, vive-se também a descar-
tabilidade da força de trabalho e a sua degradação a exemplo do crescente
uso do trabalho análogo ao escravo.
62

A força ideológica da precarização como regra está, por um lado, na


banalização dessas transformações concebidas como fenômenos “naturais”, ou
seja, inexoráveis, na atual fase do capitalismo. Entretanto, existem contra-mo-
vimentos, em diferentes formas e manifestações. A dificuldade – sociológica
e política – de compreender a heterogeneidade das expressões de resistência
dos trabalhadores passa pelas experiências históricas de cada país, mas passa
fundamentalmente, pela compreensão do que são as classes sociais em sua
historicidade e como a classe se manifesta ou “se faz ao mesmo tempo em que
é feita”, como diria Thompson (1987). É preciso romper com o reducionismo
presente na noção de classe trabalhadora, cuja expressão política estaria na
somente na organização sindical e partidária. Os movimentos dos desempre-
gados, dos trabalhadores das empresas de aplicativos, dos movimentos dos
sem teto e dos sem-terra, dos indígenas, não passam necessariamente pelos
sindicatos ou pelos partidos institucionalizados, mas são também classistas,

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questionam a propriedade, as relações de trabalho e a precarização do traba-
lho e da vida. É preciso examinar as experiências de organização de redes de
contra-poderes que articulam todos esses movimentos numa perspectiva de
superação da precarização e de emancipação do trabalho, na construção de
um outro modo de trabalho e de vida.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 63

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É um homem quem mata, é um homem quem comete ou suporta


injustiças; não é um homem que, perdida já toda reserva,
compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu vizinho
acabasse de morrer para tirar-lhe um pedaço de pão, está mais
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longe (embora sem culpa) do modelo do homem pensante do que


o pigmeu mais primitivo ou o sádico mais atroz. Uma parte da
nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por
isso, não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais
o homem foi apenas uma coisa ante os olhos do outro homem
Primo Levi

A sociedade que se apresenta nesse início do século XXI, traz consigo


a continuidade e o agravamento da crise estrutural que vivenciamos desde
meados da década de 1970. Apesar disso, é significativo que, após quase meio
século, a economia capitalista não tenha impulsionado um novo processo de
acumulação capaz de proporcionar um desempenho econômico “saudável”,
nem mesmo para os países da Europa ocidental e os EUA.
A crise contemporânea (que se configura em várias dimensões: crise do
Estado, crise econômica, crise ecológica) expressa apenas a camada mais
superficial de problemas que se encontram na base da produção capitalista.
No campo do trabalho, por exemplo, a crise aparece como causadora da
precarização dos vínculos empregatícios, seja pelo ponto de vista do grande
capital, que justifica a “flexibilização” do trabalho e o aumento do desemprego
a partir da queda nas taxas de lucro, principalmente após 2008. Seja pelo
ponto de vista dos defensores do trabalho, que apontam a crise como mais um
mecanismo de expansão da acumulação de capital, dessa vez marcada pelo
predomínio do capital financeiro, que intensifica a expropriação do trabalho
por encontrar no mercado de capitais (títulos, ações e derivativos) uma fonte
mais rentável de aplicação da mais-valia produzida.
Queremos, no entanto, demonstrar que o agravamento da questão social,
principalmente do desemprego estrutural nas últimas décadas, decorre do
68

estreitamento da capacidade de valorização do valor diante do nível de produ-


tividade e globalização atingido, ou seja, da real dificuldade de o capitalismo
continuar se expandindo por meio do trabalho. Nesse caso, a precarização
expressa a própria crise da valorização do capital. Mas não porque há um
Estado grandioso que controla e absorve a maior parte do valor produzido
no mercado, como argumenta o liberalismo econômico, ou porque não há um
Estado forte no que se refere à proteção social e que redireciona maior parte
do fundo público para o pagamento da dívida pública, priorizando a garantia
de liquidez dos capitais que são investidos no mercado financeiro ao invés
da inversão em políticas sociais.
Sem dúvida, essa última é uma característica do capitalismo contem-
porâneo, mas quando se trata de apontar o fundamento desse processo de
desmonte social, precisamos olhar para as mudanças que ocorreram na base
da produção de valor. Nesse sentido, apontamos alguns aspectos da conjuntura

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específica da precarização do trabalho contemporânea, porque as condições
econômicas e sociais que estimularam a expansão no período denominado
como fordismo, não podem ser reproduzidas nesse princípio do século XXI.
Com isso queremos chamar atenção para o fato de que, a crise contemporâ-
nea do capital expressa um processo de implosão das bases que permitiram
a afirmação da sociedade burguesa.

Trabalho e capital fictício

No “mundo do trabalho”7 contemporâneo, assistimos às novas formas


de contratação, com redução dos direitos do trabalho, contratos temporários,
extensão da jornada de trabalho (o que demonstra uma sobreposição da
mais-valia relativa com a mais valia absoluta), remunerações extremamente
baixas e instáveis, na maioria das vezes restritas ao mínimo da sobrevivência.
Entretanto, por trás dessa precarização estrutural do trabalho, viven-
ciamos um processo de crise fundamental do capitalismo. A degradação das
condições de trabalho, da periferia ao centro do capital, ao invés de expressar
um novo mecanismo de acumulação para a reprodução ampliada do capital,
representa processos particulares, porém integrados, de corrosão da estrutura
capitalista. Observamos esse movimento a partir do crescimento acelerado
das montanhas de capital fictício que tem garantido a sobrevivência, muito
precária, da economia de mercado. Assim como no efeito cascata desenca-
deado por qualquer surto de desvalorização, como aconteceu com a crise

7 Um termo que por si já faz alusão à cisão da vida entre as esferas da produção e reprodução social, própria
da sociedade capitalista, que coloca o valor como fundamento e produz a ideia de um “exterior” no qual
existem atividades que não geram valor.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 69

no mercado imobiliário em 2008 nos EUA, que em maior ou menor medida


atingiu todos os países do mercado global.
Se, como sabemos, a questão social antes da industrialização era determi-
nada pela escassez de recursos, e a partir do desenvolvimento do capitalismo
passou a coexistir com a abundância da produção em larga escala, servindo
para um processo de acumulação acelerada de capital. No século XXI ela
representa um extremo nível de superacumulação de capital que agora descarta
parcelas crescentes de força de trabalho que se tornaram supérfluas para o
capitalismo desenvolvido e globalizado.
O processo de “hipertrofia financeira” é consequência de uma crise
que se arrasta nos últimos quarenta anos, com a busca incessante do capital
para encontrar novos espaços e dimensões da vida que possa mercantilizar
e escoar suas mercadorias. Em que a necessidade de expansão da riqueza
capitalista não cabe mais dentro do seu próprio padrão de produtividade,
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que foi levado ao extremo e se aproxima agora de seus limites lógicos e


concretos de reprodução.
Como assinala Trenkle,

Se a miséria no início do capitalismo na Europa e nas colônias europeias


era um momento de imposição e ascensão da sociedade capitalista, a atual
produção globalizada da miséria em massa resulta de um processo secular
de deterioração e decadência dessa formação social que, em seu declínio,
volta a desencadear todo o seu processo destrutivo (2020a, p. 40-41).

Esse processo destrutivo se expressa nas mudanças climáticas que


ameaçam a continuidade da vida humana e de outras espécies, na situação
de pobreza se agravando entre os trabalhadores empregados e a miséria
daqueles que não conseguem nem mesmo ocupar a condição de explorado.
A sociedade do trabalho após se impor como modo de vida universal,
agora põe em andamento um processo crescente de eliminação negativa
do trabalho.
Nesse sentido, a precarização do trabalho vivo, claramente reflete nas
atividades consideradas de “segunda ordem”8. Isto se aplica não só às ativi-
dades caritativas e voluntárias, mas fundamentalmente ao trabalho doméstico
e cuidado familiar, que são cindidas e estruturalmente atribuídas as mulheres
(TRENKLE, 2020b). Na medida que as condições de trabalho existentes se
tornam cada vez mais degradantes, mais e mais pessoas, fundamentalmente
as mulheres, precisam de um esforço cada vez maior para cumprir com as

8 Se referem às atividades que são tratadas como periféricas e secundárias em relação ao trabalho e a
produção de valor, consideradas em sentido capitalista, a centralidade da vida social.
70

atividades de cuidado e a realização de algum trabalho precarizado que permita


níveis mínimos subsistência econômica.
Seguindo com o autor, a lógica da externalização baseia-se na separação
da produção capitalista de riqueza do contexto social. Da mesma forma, a
exploração da natureza, em um contexto de colapso econômico, precisa ser
cada vez mais destrutiva, de modo que permita um retorno rápido da acumu-
lação de valor, e possibilite a produção de riqueza. Neste cego mecanismo
de funcionamento, a lógica autodestrutiva rompe de maneira contínua as
barreiras na produção, aproximando-se de maneira acelerada ao limite lógico.
Assim como as atividades de cuidado são consideradas “sem valor” em
uma noção restrita de riqueza social, tomada unicamente como dispêndio
de trabalho produtor de mercadorias, os recursos naturais andam no mesmo
plano: eles não possuem nenhum valor, e, portanto, nenhuma riqueza abstrata,
embora sejam pré-requisito indispensável e base de toda produção de merca-

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dorias. Esta noção deve ser entendida de maneira historicamente específica,
já que a sociedade capitalista é a única sociedade na qual a produção de
riqueza é dividida em um lado material e um lado abstrato. Como assinala
Trenkle, “a produção capitalista da riqueza baseia-se sempre, portanto, na
externalização de todo um espectro de atividades vitais que não assumem
a forma da mercadoria, mas, por isso mesmo, podem ser apropriadas sem
custo” (2020b, p. 65).
Na sociedade capitalista os recursos naturais são explorados e desgas-
tados sem nenhum tipo de consideração já que não pertencem ao mundo
do valor, mas são considerados seu “exterior”, pertencendo ao mundo dos
“acréscimos” sem custos para a produção de riqueza social. O problema se
agrava quando esse “exterior”, não considerado como base indispensável da
reprodução social, é utilizado como suporte à percepção de que sempre estará
disponível para sustentar a riqueza abstrata, e dessa forma não é levado em
consideração o limite concreto que eles apresentam.
Assim, esta “externalização”, que faz parte orgânica da sociedade capi-
talista, se aprofunda no contexto de acirramento da crise estrutural. Já que no
processo de eliminação negativa do trabalho vivo, e na destruição da natureza,
base fundamental para a produção de riqueza capitalista, esse “custo externo”
se converte em um colapso social e ecológico.
A aceleração da produtividade gera uma sucessão de crises que só ser-
vem para adiar o limite da valorização do valor e não para ampliar o capital,
como serviram as crises anteriores ao fordismo. Como assinala Konicz, “o
pressuposto básico do fordismo, segundo o qual os trabalhadores seriam con-
sumidores de seus próprios produtos, há muito que se tornou inválido, face
aos níveis de produtividade globalmente alcançados” (2015, s/p).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 71

O período da produção fordista foi marcado por uma conjunção de fatores


que favoreceram a expansão capitalista. Por um lado, com a inovação de produ-
tos, por outro com a expansão da produção, o que garantia simultaneamente a
criação de um mercado consumidor com indivíduos que podiam ser integrados
no sistema produtor de mercadorias na qualidade de trabalhador assalariado.
Segundo Lohoff (2015) a vitória da sociedade da mercadoria pode ser
descrita como uma constante fuga para frente, interrompida pela crise e
reanimada pelos impulsos das inovações tecnológicas que marcam época.
Mas, esse padrão não pode ser prolongado eternamente, quando se supõe uma
simples equação de inovação igual a boom econômico. Mesmo que as revo-
luções tecnológicas tenham refundado, no processo, o sistema capitalista de
utilização do trabalho, isto não se deve à simples transformações do sistema de
produção, mas sim a terem feito isto de uma maneira muito específica. Desde
os descobrimentos dos grandes artesãos do século XIX, e a criação das estradas
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de ferro que abriram esferas de novos investimentos, ao mesmo tempo elas


criaram mercados que não existiam até então. A passagem para o fordismo,
que significou uma grande transformação nos processos de produção, tornou
possível a criação de automóveis, aparelhos elétricos, ampliando para além
da produção artesanal e integrando-os no ciclo de utilização capitalista.
Após o esgotamento da produção em massa e a introdução da microele-
trônica a partir de meados da década de 1980, esse cenário se modifica, com
a expulsão crescente da força de trabalho dos processos produtivos e a des-
conexão progressiva entre capacidade de produção e capacidade de consumo
(BOTELHO, 2022). A produtividade automatizada elimina uma quantidade de
força de trabalho muito maior do que é capaz de absorver com os pequenos
surtos de crescimento muito breves e localizados em determinados países e
setores. O que consequentemente também reduz o poder de compra da grande
massa da população. O barateamento permanente dos novos suportes tecno-
lógicos não atenua a crise, como em outros períodos históricos quando havia
redução do valor dos elementos do capital constante, pelo contrário, agudiza
a crise ainda mais, pois favorece a onipresença desta tecnologia.
A racionalização constante da produção torna a maior parte do trabalho
vivo supérflua, o que ao mesmo tempo destrói a própria substância do valor.
Assim como o barateamento das mercadorias também implica na redução da
massa de valor total produzido pelo capital, porque o aumento da mais-valia
relativa extraída por trabalhador não é compensado pela redução do número
de trabalhadores produtivos provocada pela racionalização. O investimento
em mais valia-relativa, com a intensificação da exploração de força de trabalho
por um lado, não é capaz de compensar eternamente a constante eliminação
72

do trabalho produtivo por outro. Essa contradição interna não é percebida no


nível dos capitais individuais porque para eles o que importa é o lucro obtido
depois que as mercadorias circulam no mercado, onde cada um se apropria
de parte da mais-valia produzido socialmente. Sendo assim,

O fundamento básico da crise econômica atual é, portanto, a queda da


taxa de lucro que não pode ser demonstrada por este ou aquele capital
em particular, mas somente pela média global do lucro das empresas
produtivas. Com a disponibilidade de recursos monetários sem destinação
lucrativa, aumenta a necessidade de sua mobilização nas estruturas finan-
ceiras do mercado, o que leva à crescente substituição da “valorização de
valor” (geração de lucro) por “capitalização”, isto é, mera multiplicação
monetária (geração de juros). Uma condição histórica em que o excesso
de capital combinada com excesso de força de trabalho torna-se crônico,
deixando de ser meramente cíclico: desemprego e “hipertrofia finan-

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ceira” são marcas inseparáveis na sociedade mundial há quatro décadas
(BOTELHO, 2018).

O capital fictício passa a ser o principal mecanismo de enfrentamento


desse limite de valorização do valor. Portanto, não se trata mais da formação
de um excedente de mais-valia que flui para os mercados financeiros, como
ocorria até meados do século XX. Mas da ficcionalização do próprio capital
produtivo9, das contas públicas e do consumo privado, através da oferta de
crédito em larga escala e do endividamento estatal, criando uma economia
de circuitos deficitários (BOTELHO, 2022).
O avanço das tecnologias a partir da Terceira e mais recentemente com
a Quarta Revolução Industrial no campo da informática, telecomunicações,
eletrônica e inteligência artificial, não foi capaz de compensar a crise que
assolou o mercado mundial a partir da década de 1970. Apesar da inovação de
produtos e intensificação da produtividade, o motor da economia passou a ser
o capital monetário, que com a perda do lastro do ouro, perde sua referência
material e passa a circular sem a necessidade de sua reconversão real. Esse
processo trouxe implicações para a acumulação de capital: a transformação
de dinheiro em mais dinheiro sem a mediação da produção material, ou “acu-
mulação de capital sem acumulação de valor” (LOHOFF, 2014). Com isso,
a quantidade de mais-valia acumulada a partir desse estágio do capitalismo
passa a não ser suficiente para criar uma nova onda de crescimento.

9 Como assinala Trenkle “a antecipação de valor a ser produzido no futuro não financiou (e financia) em
larga escala, pela venda de títulos de propriedade (como obrigações e ações), apenas investimentos na
economia real e medidas de infraestrutura; também uma parte considerável dos investimentos, sobretudo
no setor da construção civil, que emprega uma quantidade enorme de força de trabalho em todo o mundo,
está diretamente relacionada à produção de capital fictício (especulação imobiliária)” (2016, p. s/p).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 73

A drástica redução da necessidade de intervenção da atividade humana


durante o processo de produção, induz também a expansão do setor terciário.
Porém a ampliação do setor de serviços (administração, venda etc.) provoca a
ilusão de crescimento econômico enquanto na verdade o lucro que os capitais
individuais absorvem desse segmento é produzido pelos setores produtivos,
primário e secundário.
O crescimento do comércio e da prestação de serviços não substitui o
papel de destaque que a industrialização desempenhou para a consolidação
da sociedade de mercado. O volume da massa de valor global produzida pelo
trabalho vem caindo mesmo com o projeto neoliberal em andamento, com
as políticas de ajuste econômico a partir dos anos 1990 e a intensificação dos
mecanismos de exploração e precarização do trabalho. Isso acontece porque
a maior parte do setor de serviços representa trabalho improdutivo, ou seja,
não produz diretamente a valorização do valor e não amplia a massa de valor
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global. Dessa forma, apenas o aumento do número absoluto de postos de


trabalho não significa necessariamente o aumento da produção de valor, boa
parte deles estão inseridos apenas no âmbito da circulação de mercadorias10
e muitos são criados pelo capital fictício. Ou seja, financiados a partir da
antecipação de valor a ser produzido no futuro, e não da apropriação de valor
já produzido (mais valia).
Os problemas do colapso financeiro e econômico de 2008 não foram
resolvidos. Nem sequer atenuados. Ao contrário: tornaram-se ainda mais
graves. Desde então os bancos centrais injetaram uma enorme quantidade de
dinheiro na economia. E é lógico que, na falta de investimentos mais rentáveis,
logo correram para as bolsas e especulação com outros ativos financeiros.
Nesse curso, formou-se o que passou a ser conhecido como a “Mãe de Todas
as Bolhas”. A nova bolha já tocou os seus limites e há anos está na iminên-
cia de romper. No momento em que isso acontecer, imensos contingentes
humanos, regiões e países inteiros serão duramente impactados. Trata-se de
uma bolha imediatamente mundial. A própria China “superou” parcialmente
os seus problemas econômicos por meio da criação de colossal injeção de
crédito e de criação de circuitos deficitários de várias ordens. Mas por lá o
castelo de cartas já está ruindo. Uma grave crise envolvendo o setor financeiro
e de construção já se tornou evidente. Não é menos aterradora a situação dos
EUA e da Europa.

10 “Em 2007, a população economicamente ativa mundial estava distribuída já em 36,4 % para o setor primário,
22,2 % no setor secundário e 41,4 % no setor terciário. Em 2012, a União Europeia apresentava 71,8 % de
sua população ativa no setor terciário. Os EUA, 79,1 % e o Brasil, 71 %. Até mesmo a China, considerada
a fábrica mundial, em 2012 já apresentava a maior parte de sua população ativa no setor terciário 35,7 %,
contra 34,8 % no primário e 29,5 % no secundário.” (BOTELHO, 2018, s/p)
74

Limites dos Estados nacionais diante da crise

A “hipertrofia financeira” e o desemprego moldaram a sociedade, não


só economicamente, mas também em termos sociais e políticos. Ela foi
inaugurada pelo desmantelamento da estrutura do Estado social11 e pela
regulação fordista, desde o ajuste neoliberal da sociedade com a sempre
intensa pressão sobre o mundo do trabalho flexibilizado e a mercantilização
de todas as relações sociais. Alguns dissidentes de esquerda, que criticam
essa guinada, tiraram, no entanto, consequências quase tão ruins em ter-
mos ideológicos: estão aumentando a fantasia de que a solução consiste no
retorno à “soberania nacional”.
A pacificação do Estado de bem-estar fordista é substituída por um com-
plexo policial, de segurança e penitenciário12 que acompanha a disciplina
permanente, quase automática do mercado de trabalho desregulamentado.

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Dos sistemas sociais do Estado restou apenas um remanescente que, por um
lado, serve para separar as partes da população trabalhadora “inúteis” para a
concorrência por localização e proteger precariamente as partes “úteis”. Por
outro lado, por razões de legitimação deve ao mesmo tempo simular algo
assim como “justiça social”.
À dupla função assistencial-repressiva do Estado, a partir dos anos 1970,
o desfinanciamento se tornou crônico. Os setores médios da sociedade erguem-
-se sob um discurso raivoso e conservador contra a assistência direta, que
aumenta na medida que o desemprego se torna massivo.
A crise do capital global também tem seu impacto na profunda crise
de financiamento do Estado. Várias localidades no mundo, enfrentando a
concorrência global de custos, oferecem redução de impostos às empresas
assim como também financiamento subsidiado. Porém, na medida que grandes
massas da população ficam às margens da reprodução social, o Estado precisa
destinar cada vez mais recursos à assistência social e ao mesmo tempo uma
famigerada arrecadação fiscal. Em consequência, o que resta para atuar frente
a esta situação de crise é o endividamento público.
Da mesma forma que grande parte das famílias subsistem na base do
crédito, as empresas substituem lucros por juros, o Estado cobre o défi-
cit de arrecadação com empréstimos, emissão de dívida pública. Dessa
maneira que a crise fiscal do Estado se tornou estrutural (assim como
o desemprego)13.

11 Isto não se aplica a países como o Brasil, que nunca tiveram um Estado Social constituído plenamente.
12 O complexo policial é uma constante na formação social de países como o Brasil, onde os traços escravo-
cratas e punitivos nunca deixaram de existir para grandes parcelas da população que viveram e vivem às
margens da forma social orgânica, reproduzindo de maneira permanente a violência e marginalização.
13 “somente a dívida pública em todo mundo alçou a soma de 42,4 trilhões em 2016.” (BOTELHO, 2018, s/p).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 75

Esta constante antecipação da criação de riqueza futura se manifestou


numa crescente dívida estatal – mas este processo de endividamento tem seu
limite atrelado ao processo de valorização que está constantemente sendo
sufocado por esse fardo. Ao mesmo tempo, ele não pode ser interrompido,
pois a crescente debilidade econômica seria imediatamente transformada
numa aguda depressão a ser paga com o retorno dos velhos mecanismos defla-
cionários, em formas mais acentuadas. Ao mesmo tempo, a crise provoca a
desvalorização do capital real e do capital monetário através da desvalorização
da própria mediação monetária: “Se o trabalho de uma economia nacional se
revelar posteriormente inválido em grande escala no mercado mundial, ela
pode mesmo mergulhar num processo hiperinflacionário” (LOHOFF, 2015)14.
A “hipertrofia financeira” se torna o motor de financiamento do Estado,
através da produção de dinheiro sem lastro e ficcionalização extrema. A capa-
cidade do Estado de emitir dívida amparada na futura arrecadação de impostos
Editora CRV - Proibida a comercialização

é uma fonte direta de capital fictício: essa dívida pública em algum momento
deve ser executada.
As possibilidades de gestão da crise pelo Estado são cada vez mais limi-
tadas, porque, como dito anteriormente, seu próprio funcionamento interno se
tornou dependente da injeção de capital fictício devido à redução constante
de arrecadação da mais-valia15. A relativa autonomia dos Estados nacionais
se tornou ainda mais frágil diante dos imperativos do mercado internacional
porque a concorrência se tornou imediatamente global, com pouca margem
para ações limitadas ao mercado interno.
Diante dessa conjuntura, não é mais possível tratar as contradições do
capitalismo nacional separadas do contexto global, porque tanto a produção
industrial, como os déficits estatais não dependem apenas do mercado interno,
mas estão diretamente relacionadas com o capital mundial.
A China, por exemplo, que despontava no início do século como nova
potência econômica, demonstra agora que o crescimento do seu enorme
parque industrial foi baseado em capital fictício, uma vez que, além de um
endividamento estatal sem precedentes16, a compra de títulos do Tesouro

14 “Bancarrotas dos Estados ocorrem regularmente desde os princípios da história do capital. No entanto, é
muito diferente se um Estado declarou falência quando se apresenta somente como consumidor de bens
de luxo (militar, corte), correspondendo a menos de 5% da riqueza existente, ou um Estado moderno,
insubstituível para a reprodução social cotidiana, administrando de 40 a 50% do PIB” (LOHOFF, 2015, s/p).
15 “A crise econômica mundial de 2008 resultou precisamente do fato de que o governo de George W. Bush
não quis “resgatar” e “salvar” os mercados financeiros, deixando que a quebra do Lehman Brothers fosse
usada como exemplo dissuasivo para os demais operadores financeiros. As consequências dessa tentativa
de sair da economia de bolha são bem conhecidas: os mercados financeiros congelaram, os empréstimos
estagnaram e a economia global entrou em recessão.” (KONICZ, 2020, p. 37).
16 “Em menos de duas décadas, a dívida duplicou seu tamanho total em relação ao PIB: em 2008, ela corres-
pondia a 140% do PIB; agora já chega a 265%, com um crescimento de 45% só nos últimos cinco anos. Todo
76

norte-americano subsidia fortemente a compra das mercadorias chinesas


pelos EUA. Esse processo, no entanto, não representa nenhuma base real de
crescimento, indica antes a intensificação de mecanismos de ficcionalização
da economia17. Essa dinâmica, portanto, “torna evidente que a globalização
econômica não é uma simples intensificação das trocas em contextos nacio-
nais relativamente autônomos e sim uma estrutura imediatamente global
que corrói a capacidade de regulação por parte das políticas econômicas
nacionais” (BOTELHO, 2022).
O impulso do futuro econômico como um todo não consegue estar mais
embaixo do guarda-chuva estatal, mas antes na esperança de que a valorização
de muitos capitais individuais se realize e se transforme em matéria-prima da
riqueza atual. Assim; “o cálculo coletivo da riqueza privada se tornou a base
da economia e a real utilização do trabalho existe somente como apêndice da
valorização do capital fictício” (LOHOFF, 2015, s/p).

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A antecipação da criação de valor futuro, cujo veículo é a relação de cré-
dito dos sujeitos capitalistas, adquiriu tal dimensão que faz a antecipação
[de valor], por meio da criação de dinheiro estatal, da era keynesiana
aparecer, a posteriori, como uma ninharia. No entanto, quanto mais ela
conduz para cima, mais profunda será́ a queda. O desacoplamento dos
capitais fictícios da real valorização do valor permanece relativo e não
pode se tornar absoluto, mesmo onde a estrutura financeira se tornou, de
forma absurda, a base da economia real (Idem).

Os Estado Nacionais e a política não têm possibilidade de deter essa


desvalorização, encurtando-se nos últimos anos a margem de manobra que
permitia uma influência em parte, nos processos deflacionários e inflacioná-
rios. As opções, nestes quadros, para os Estados, acabou sendo ou destruir
os capitais fictícios ou tentar socializar as perdas através da desvalorização
acelerada da mediação monetária.

Crise do trabalho no Brasil

Kurz (2004) critica e aponta a complexidade em tentar definir camadas


de classes em um contexto que impõe inúmeras situações de existência social
que não podem ser resumidas como variações particulares da precarização

esse endividamento em um ritmo inédito na história do capitalismo produziu a maior das bolhas imobiliárias,
que agora exige novos recursos para que seu estouro seja adiado.” (BOTELHO, 2022)
17 Após a crise de 2008, com a queda substancial no consumo de mercadorias pelo país norte-americano,
a China para tentar evitar os reflexos da crise começou a inflar uma bolha financeira interna a partir de
investimentos em infraestrutura e especulação imobiliária, porém o seu mercado consumidor interno não é
capaz de absorver as mercadorias em um nível minimamente compatível com o de sua produtividade atual.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 77

do trabalho explorado. Trata-se antes, da eliminação da própria substância


do capital (o trabalho), que empurra cada vez maiores parcelas de traba-
lhadores para estratégias de sobrevivência como sujeitos da mercadoria.
Segundo o autor,

A nova pobreza não surge pela exploração na produção, mas pela


exclusão na produção [...]. A massa problemática e “perigosa” da socie-
dade não é mais definida por sua posição no “processo de produção”, mas
por sua posição nos âmbitos secundários, derivados, da circulação e da
distribuição (idem, s/p).

As alterações muito específicas na relação entre capital e trabalho,


mudanças introduzidas na era fordista e concluídas no pós-fordismo, não
criam uma reclassificação na estratificação social e sim o que Trenkle (2006)
chama de uma desclassificação. Significa que mais e mais pessoas em todo
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o mundo estão caindo fora das categorias funcionais pois não há mais lugar
para elas num sistema produtor de mercadorias que pode explorar produtiva-
mente cada vez menos força de trabalho. Se tornando supérfluas em sentido
capitalista, surge de maneira universal um segmento de camadas inferiores
que nada tem a ver com o velho proletariado, tornando-se desnecessárias na
sociedade produtora de mercadorias.
No Brasil, esse segmento possui uma forte determinação de raça, que é
administrada ou eliminada através da violência direta do Estado ou por outros
aparelhos não oficiais, mas que funcionam por dentro do próprio Estado.
Essa interdição foi marcada historicamente pela nossa particular sociedade
do trabalho, que se ergueu sobre o colonialismo, escravismo e racismo, uma
vez que na formação social brasileira a lógica do trabalho nunca possibilitou
a incorporação massiva dos sujeitos.
Assim, quando o capitalismo entra em seu processo de declínio, as
expressões da questão social brasileira estão assentadas nestas bases, cul-
turalmente e economicamente, atravessadas por uma forma particular de
mercantilização das relações sociais. Mesmo a exploração extrema da força
de trabalho como meio para compensar a baixa produtividade econômica em
relação à média dos países mais desenvolvidos, não resolve as contradições
internas da valorização do valor que são regidas pela concorrência mundial.
Como reflexo, a corrida pela racionalização das forças produtivas condi-
cionada pelo mercado externo e pelo curto prazo que pode ser sustentada por
capital fictício, faz com que nos países periféricos, como o Brasil, a força de
trabalho produtiva comece a ser eliminada antes mesmo de conseguir expandir
o seu mercado consumidor interno.
78

Desse modo, a precarização do trabalho, com suas diversas faces, não


está relacionada apenas à incompletude do processo de industrialização bra-
sileiro. Ela condiz com a própria forma do desenvolvimento capitalista e
seu projeto de modernização, que é determinado pela autocontradição da
mercadoria, que impõe o trabalho como substância da riqueza, ao mesmo
tempo que promove o constante esvaziamento dessa substância. Nas últimas
quatro décadas, o movimento da realidade vem demonstrando a aproxima-
ção do limite dessa contradição, uma vez que a economia a nível global não
indica novas fontes de extração de riqueza capitalista, seja no que se refere à
recursos naturais, que já estão ameaçados de escassez, ou quanto à ampliação
do mercado de trabalho.
Como dissemos anteriormente, a eliminação em massa de trabalho pro-
dutivo vivo como fonte de criação de valor não pode mais ser compensada
por novos produtos barateados pela produção em massa, já que esta produção

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em massa não é mais mediada por uma reabsorção na produção de população
trabalhadora “supérflua” previamente em outro lado. Portanto, a eliminação de
trabalho produtivo vivo pela transformação científica, por um lado, combinado
com a absorção de trabalho vivo por processos de capitalização ou criação de
novos ramos de produção, por outro, inverte-se de um modo historicamente
irreversível: “de agora em diante, será inexoravelmente eliminado mais tra-
balho do que pode ser absorvido” (KURZ, 2018).

A maioria da população mundial já consiste hoje, portanto, em sujeitos-di-


nheiro sem dinheiro, em pessoas que não se encaixam em nenhuma forma
de organização social, nem na pré-capitalista nem na capitalista, e muito
menos na pós-capitalista, sendo forçadas a viver num leprosário social
que já compreende a maior parte do planeta (KURZ, 1992, p. 194,195).

Estatisticamente falando, provavelmente nunca houve tantos sujeitos eco-


nômicos. Assim como a valorização capitalista alcançou seus limites absolutos,
seu processo de afirmação histórico também. Transformou a maioria da popula-
ção mundial em sujeitos monetários sem dinheiro, isto é, todos são obrigados
a ganhar dinheiro de alguma maneira (mesmo que sejam centavos ou nada), já
que as bases de outras formas de reprodução social estão quase completamente
destruídas. Mesmo com alguns elementos de autoajuda comunitária ou de outras
formas, eles não permitem segurar a reprodução integral cotidiana da vida.
O trabalho informal por exemplo, que no Brasil possui grande relevância
por representar um enorme contingente populacional18, do ponto de vista da

18 “Segundo indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do segundo semestre de 2021,
na superacumulação de uma massa de pessoas subempregadas, uberizadas, “se virando” na informalidade,
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 79

valorização do capital se tornou supérfluo. Porque mesmo que as pessoas


vendam balas na rua, ou serviços de limpeza, ou tecnológicos, há de fato um
ciclo mercadoria-dinheiro, mas não valorização do capital e, portanto, não se
dá a acumulação capitalista. Eles são circuitos de segunda e terceira ordem que
dependem do funcionamento da produção globalizada do mercado mundial,
pois estão ligados através de vários estágios de mediação.
Como destaca Botelho (2020),

em 2019, no Brasil, 25 milhões de pessoas no Brasil atuavam como “autô-


nomos”. Realizando atividades diárias por “conta própria”, 11,7 milhões
estavam desempregados, 52,7 milhões de brasileiros viviam de aposen-
tadoria, pensão, aluguel, programas de transferência de renda, seguro-de-
semprego etc., 4,5 milhões e meio de desempregados procuravam trabalho
há mais de um ano e, desses, 2,9 milhões buscavam trabalho há mais de
dois anos, sem conseguir. Mais de um terço da população brasileira, estava
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fora de qualquer relação salarial: metade de toda a população do Brasil


acima de 14 anos (legalmente apta ao trabalho).

Contudo, de acordo com a perspectiva de crise aqui apontada, a supe-


rexploração do trabalho na periferia não pode servir de exemplo para afirmar
a continuidade do processo de expansão do capitalismo. Esse cenário de
precarização do trabalho representa, em sentido inverso, uma maneira de
sobrevivência para esses trabalhadores, uma forma de gestão da crise pelo
Estado em meio à decadência das formas sociais capitalistas.
Na atualidade, nos deparamos a uma realidade diferente, com a existên-
cia massiva no mundo todo de trabalhadores miseráveis, informalizados, que
são o reverso da aplicação extremamente avançada da ciência na produção.
Assim temos a complementariedade de uma alta tecnologia combinada com
trabalho precarizado por um lado, e um padrão de produtividade que implica
na constante redução da quantidade de valor representado em uma hora de
trabalho, o que Trenkle chama de “Miséria high-tech”,

As longas jornadas de trabalho da força de trabalho precarizada não repre-


sentam uma grande massa de valor e, portanto, não podem servir de base
para um novo impulso autônomo da acumulação de capital – mesmo que,
naturalmente, aumentem os lucros das empresas individuais e das cadeias
comerciais envolvidas [...] Embora esse tipo de exploração, no sentido
da teoria neoliberal, substitua o capital dispendioso pelo trabalho barato,

33,8 milhões sobreviviam com um rendimento mensal de até um salário-mínimo. Desse contingente, 21,9
milhões obtêm rendimento entre meio e um salário-mínimo. No intervalo de um ano, houve um aumento de
4,4 milhões de trabalhadores. Tomando como parâmetro o primeiro trimestre de 2022, o número salta para
36,414 milhões de pessoas” (BRITO, 2022).
80

ele não amplia a valorização do capital no nível da sociedade como um


todo, não neutraliza o processo de crise secular baseado na diminuição
da massa de valor em escala global (2020a, p. 44).

Assim temos grandes massas da população que vivem de uma subecono-


mia voltada à sua reprodução, sem vínculos significativos com o grande mer-
cado. Essa realidade, que é dominante no Brasil, vive nas bordas de qualquer
instituição pública ou privada, à margem dos direitos, largados a sua própria
sorte, em uma luta constante pela sobrevivência. Isto, que é uma constante no
nosso processo de formação social, se torna cada vez mais agudo e profundo,
na medida que esses contingentes de sujeitos aumentam exponencialmente
nas últimas décadas.

Considerações Finais

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Este processo de decomposição social, que se aprofundou nos últimos
dois anos, no Brasil e América Latina significou um crescimento exponen-
cial da fome e da miséria19. Este aumento da pobreza se traduziu em uma
sobrevida miserável de grande parte da população, os quais já nem sequer
conseguem ingressar no mercado precarizado do trabalho. A impossibilidade
desse ingresso, ou em alguns casos, o ingresso pelas formas de trabalho fle-
xibilizado, aprofunda ainda mais o processo de degradação social. Se, em
algumas regiões do planeta temos setores que ainda conseguem viver nessa
Miséria high-tech, outra grande maioria morre de fome no meio de uma guerra
civil desesperada pelos recursos naturais e pelo território.
A escolha entre a peste (o desaparecimento gradual do trabalho com
as consequências sociais que isso implica) e a cólera (o colapso ecológico).
Uma produção de mais-valia em queda e uma guerra pelos escassos recursos
naturais, provavelmente não seja uma escolha, porque ambas nos esperam
(ORTLIEB, 2009).
Contudo, apontar sinais de colapso da sociedade de mercado não é o
mesmo que afirmar que o capitalismo tende a se autodestruir e transitar para
a emancipação social. A crítica consiste em trazer para o debate as especi-
ficidades da crise contemporânea, uma vez que desde finais do século XX

19 Segundo o informe da FAO “em 2022 até 828 milhões de pessoas padeceram de fome em 2021, 46 milhões
de pessoas a mais que no ano anterior e 150 milhões a mais que em 2019” https://www.fao.org/newsroom/
detail/un-report-global-hunger-SOFI-2022-FAO/es. No Brasil, “o número de domicílios com moradores
passando fome saltou de 9% em 2019 (19,1 milhões de pessoas) para 15,5% em 2022 (33,1 milhões de
pessoas). São 14 milhões de novos brasileiros/as em situação de fome em pouco mais de um ano”.
Disponível em: https://olheparaafome.com.br/.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 81

estamos vivenciando o estreitamento da base produtiva do capital, no qual as


possibilidades de atingir o pleno emprego e a ampliação de direitos sociais
relacionados ao trabalho estão cada vez mais fora de alcance do que foi pro-
pagandeado como “missão civilizatória do capital”.
O horizonte que temos à nossa frente, com a possibilidade de nos
emanciparmos de uma sociedade que não teria mais sua produção baseada
no trabalho, é ao mesmo tempo, o desenvolvimento expresso na superflui-
dade crescente das pessoas, mesmo que elas continuem estruturalmente
necessárias ao capital.
Editora CRV - Proibida a comercialização
82

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CRISE DO CAPITAL, PRECARIZAÇÃO
DO TRABALHO E TICS: o trabalho de
assistentes sociais no “fio da navalha” 20
Raquel Raichelis
DOI: 10.24824/978652515286.8.85-108

A crise contemporânea do capitalismo, como expressão da crise estrutural


do metabolismo social do sistema do capital (MESZÁROS, 2011), vem se con-
figurando como orgânica nos marcos da falência tanto do sistema de regulação
keynesiano-fordista, quanto do socialismo realmente existente na ex-URSS.
A crise que se desencadeia nos anos de 1960/1970 já indicava os primeiros
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sinais, de esgotamento da fase expansiva do desenvolvimento capitalista durante


os “30 anos dourados” que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial,
com a queda da produtividade e redução das taxas médias de lucro do capital.
Mais recentemente, a crise financeira de 2008/2009 - conhecida como
a crise do subprime – cujo marco foi a falência do banco Lehman Bro-
thers nos Estados Unidos, um dos maiores e mais antigos bancos de
investimentos do mundo, desencadeou um dos piores desastres econômicos
globais dos últimos anos, alastrando-se pelo restante do mundo com efeitos
catastróficos e duradouros.
A eclosão da pandemia do novo coronavírus no início de 2020 agravou
dramaticamente esse panorama crítico em todo o mundo, expressando a con-
fluência de múltiplas crises – econômica, política, social, ambiental, civilizató-
ria – lançando o trabalho “no fio da navalha” (RAICHELIS; ARREGUI, 2021)
em decorrência das transformações do capitalismo em crise em escala global.
Tais processos societários de largo espectro, aqui apenas enunciados, evi-
denciam que as crises no capitalismo não são fenômenos eventuais ou episódi-
cos, mas processos imanentes que se manifestam ciclicamente provocados pela
concorrência intercapitalista, aumento da produtividade do trabalho e supera-
cumulação de capital, em contextos de baixos salários e desemprego crescente.
Para Mészaros (2011) e outros analistas, esta é uma crise estrutural,
expansionista, destrutiva e, no limite, incontrolável. E, quanto mais aumentam

20 As reflexões aqui apresentadas beneficiam-se diretamente dos estudos, pesquisas e debates desenvolvidos
pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Profissão (NETRAB), do PPG em Serviço Social da PUC-SP,
sob minha coordenação, notadamente de suas últimas pesquisas publicadas em e-book de acesso gratuito,
com o título “Nova-velha morfologia do trabalho no Serviço Social – TICs e pandemia”, disponível para
download em https://www.pucsp.br/educ
86

a competitividade e a concorrência intercapitais, mais nefastas são suas con-


sequências – a destruição e/ou precarização da força humana que trabalha e a
degradação crescente do meio ambiente, na relação metabólica entre homem,
tecnologia e natureza, subordinada aos parâmetros do capital e do sistema pro-
dutor de mercadorias.
Portanto, cabe refletir sobre o significado das crises para a reprodução
do sistema capitalista, menos como falência e mais como “contradição em
processo” (MARX, 2011) pois, como observado, as crises no capitalismo
são elementos constitutivos da lógica de sua estruturação, continuidade e
reprodução. São elas (as crises) que possibilitam a retomada ou criação de
estratégias propícias à superacumulação e lucratividade do capital, buscando
nichos de extração de valor e mais valor no processo de reprodução ampliada
do capital. Como analisou Marx:

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O próprio capital é contradição em processo, [pelo fato] de que procura
reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro
lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte de riqueza. Por
essa razão ele diminui o tempo de trabalho na forma de trabalho necessário
para aumentá-lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida crescente
o trabalho supérfluo como condição – questão de ‘vida e de morte’ – do
necessário (2011, p. 588-589).

Por essa razão, para Konicz (2020), com quem concordamos, não com-
preenderemos adequadamente a crise atual se não entendermos o próprio capi-
talismo, mais precisamente o movimento do capital em sua busca incessante
de valorização do valor por meio da transformação de tudo em mercadoria e
dinheiro (D-M-D’), buscando acumular cada vez mais trabalho assalariado
abstrato e trabalho morto (2020, p. 35).
Como uma totalidade histórica concreta e contraditória, a “instabilidade
e a propensão às crises – mas também a dinâmica destrutiva – do sistema
capitalista resultam da tendência do capital, mediado pelo mercado, de reduzir
o uso do trabalho assalariado no processo produtivo” (KONICZ, 2020, p. 35).
Em tal contexto, o capital precisa se expandir incessantemente ou decreta
sua destruição; e, contraditoriamente, ao fazê-lo, tenta se livrar da sua própria
substância – o trabalho assalariado –, processo impulsionado pelo progresso
técnico que aprofunda a contradição entre as relações sociais de produção e
as forças produtivas do trabalho (MARX, 2013).
Portanto essa contradição em processo no movimento histórico de
expansão do sistema capitalista mundial vai desencadeando crises sucessivas
– bolhas, estagnação econômica, crises monetárias, dívida dos países depen-
dentes em permanente crescimento, desemprego, precarização do trabalho,
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 87

da vida humana e natural etc. – impulsionadas pelas suas próprias contradi-


ções internas.
Para fazer frente às crises estruturais, o capital conta com a intervenção
ativa dos Estados nacionais e do fundo público como financiador da acumu-
lação e das altas taxas de lucratividade do capital em detrimento do trabalho.
No capitalismo tardio, o fundo público se torna condição de vida ou morte
para a valorização do valor, como afirma Behring (2022). E prossegue pon-
derando que:

Na verdade, o que se observa é que o fundo público assume tarefas e


proporções cada vez maiores no capitalismo contemporâneo, diga-se em
sua fase madura e decadente – fortemente destrutiva na atualidade -com
o predomínio do neoliberalismo e da financeirização, não obstante todas
as odes puramente ideológicas em prol do Estado mínimo, amplamente
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difundidas desde a década de 1980 (BEHRING, 2022, p. 32).

As políticas (ultra) neoliberais, expressando um projeto de dominação


de classe, são acionadas para o enfrentamento da crise, contexto em que o
Estado burguês assume papel central para recuperar e fortalecer o poder
do capital, privatizando lucros e socializando custos. Como bem analisou
Netto (2009, p. 26), o Estado no capitalismo monopolista atua como um
instrumento de organização da economia, operando como um administrador
dos ciclos de crise, o que não ocorre sem contradições entre os diferentes
interesses em luta.
Nesses termos, é preciso romper com qualquer linearidade na análise
das crises capitalistas, pois nas estratégias de seu enfrentamento pelo bloco
no poder aprofundam e agravam a questão social a níveis intoleráveis; mas
também, e no mesmo processo, desencadeiam respostas de parcelas da socie-
dade organizada e da classe trabalhadora em seu movimento de resistência e
defesa de direitos conquistados historicamente.
Diante desse cenário, o trabalho de assistentes sociais e de outros profissio-
nais sofre profundas inflexões decorrentes das novas configurações do mercado
de trabalho que incidem também nos espaços em que os assistentes sociais se
inserem como trabalhadoras/es assalariadas/os, majoritariamente em instituições
públicas e privadas responsáveis pela implementação de políticas e serviços
sociais, que não escapam às determinações estruturais que movem os processos
de exploração e precarização do trabalho, no contexto da crise mundial.
Esse texto pretende analisar as metamorfoses do trabalho em sua (nova/
velha) morfologia no capitalismo mundializado e financeirizado em crise,
problematizando as (re) configurações do trabalho de assistentes sociais nesse
88

contexto, bem como as (novas/antigas) requisições e respostas profissionais a


partir da maciça incorporação das tecnologias de informação e comunicação
(TICs), potencializadas no contexto da pandemia da covid-19.
Por isso, como observou Iamamoto (2011), na análise da crise estrutural
contemporânea, não é possível segmentar processos societários que na reali-
dade compõem uma totalidade orgânica, que precisa ser considerada em suas
conexões e determinações. Nas palavras da autora:

a mundialização financeira sob suas distintas vias de efetivação unifica,


dentro de um mesmo movimento, processos que vêm sendo tratados pelos
intelectuais [e acrescento, também por assistentes sociais] como se fossem
isolados ou autônomos: a “reforma” do Estado, tida como específica da
arena política: a reestruturação produtiva, referente às atividades econômicas
empresariais e à esfera do trabalho: a questão social, reduzida aos chama-
dos processos de exclusão e integração social, geralmente circunscrita a

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dilemas da eficácia da gestão social; à ideologia neoliberal e concepções
pós-modernas, atinentes à esfera da cultura (IAMAMOTO, 2011, p. 114,
grifos da autora).

Crise estrutural e precariedade histórica do trabalho no


capitalismo dependente
Nessa ambiência societária de crise estrutural permanente, o capital finan-
ceiro passa a comandar a totalidade do processo de acumulação por meio da
integração das grandes empresas industriais transnacionais com as instituições
financeiras, como bancos, fundos de investimento, fundos de pensão, segu-
radoras, etc., num movimento permanente de valorização e busca de lucros,
encobrindo a ampliação das relações de exploração do capital sobre o trabalho,
criando a mística do “dinheiro que gera dinheiro” (D-D’), impondo novas for-
mas de dominação à classe trabalhadora, em estreita associação com o mundo
das finanças e com os interesses do capital rentista (IAMAMOTO, 2011).
A crise sanitária provocada pelo novo coronavírus apresentou-se como
catalizadora dessa processualidade contraditória, apoiada na estratégia do
capital para reverter a queda tendencial das taxas médias de lucro em decor-
rência do movimento estrutural de superprodução de mercadorias e subcon-
sumo, centralização e superacumulação de capitais, aumento do poder dos
monopólios e financeirização da economia.
Nesse âmbito, o capital incorpora as inovações e os avanços tecnológicos
e científicos, especialmente as tecnologias microeletrônicas de base digital,
que aceleram a produtividade do trabalho, provocam redução de trabalho vivo
e ampliação do trabalho morto, exponenciando a população sobrante para as
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 89

necessidades médias de valorização do capital, alargando e diversificando a


superpopulação relativa (MARX, 2013).
Frente a esse quadro, é preciso reconhecer que a precarização do trabalho
não é uma fatalidade – visão ideologizada amplamente veiculada, ainda mais
na situação de capitalismo pandêmico (ANTUNES, 2022). Ao contrário, nossa
hipótese é que a precariedade estrutural do trabalho representa (mais) uma
estratégia decorrente do padrão de acumulação capitalista ultra neoliberal
disseminado na periferia capitalista. Ela constitui um poderoso mecanismo
de reorganização das relações de trabalho no contexto do capitalismo rentista
hegemonizado pelas finanças, que combina flexibilização, terceirização e
informalidade do trabalho – tripé que sintetiza a nova/velha morfologia do
trabalho (ANTUNES, 2020; RAICHELIS, 2022).
No Brasil, como de resto nos países da periferia capitalista dependente
dos grandes centros hegemônicos, antes mesmo da onda (neo) liberalizante
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dos ajustes fiscais permanentes, e muito antes da crise pandêmica da covid-19,


os altos índices de subemprego e informalidade da força de trabalho urbana e
rural, bem como a ausência e fragilidade do sistema de proteção social já se
apresentavam como traços marcantes do capitalismo dependente brasileiro,
desde a transição do trabalho escravo para o trabalho livre.
Em tal contexto situa-se a questão social e a questão racial, em suas
conexões estruturantes da formação social brasileira, em um país de base
escravocrata e colonial, sustentada pelo racismo estrutural permanentemente
atualizado até o tempo presente. Trazendo as reflexões de Assis21, com base em
Clóvis Moura, sobre a imbricação entre questão social e racismo na formação
sócio-histórica brasileira, a autora afirma que a escravidão no país

não deve ser tomada como um mero episódio na história do desenvolvimento


brasileiro, mas como um completo conformar da sociedade apoiado em um
monumental investimento político, social, jurídico e cultural. A escravidão
ocorreu em muitos lugares do mundo, mas somente no Brasil submeteu por
tanto tempo toda a sociedade a depender exclusivamente do que era produ-
zido pelos escravizados. Para tanto, foi necessário todo um aparato jurídico
e ideológico de sustentação desse modo de produção e, consequentemente,
de uma sociabilidade que lhe é inerente (ASSIS, 2022, p. 227).

A partir dessas bases históricas fundacionais, e dando um salto na análise


das configurações assumidas pelo capitalismo monopolista no país, salienta-
mos que o chamado fordismo a brasileira guarda importantes singularidades

21 Para aprofundamento da análise sobre a “necessária radicalização e racialização da questão social” no


Brasil e no Serviço Social, consultar a tese de doutorado de Assis (2022), recentemente defendida no PPG
em Serviço Social da PUC-SP.
90

em relação ao fordismo “clássico”, caracterizando-se por um regime de tra-


balho com fraca proteção social e elevados índices de rotatividade da força de
trabalho, derivados da informalidade e precariedade estruturais do mercado de
trabalho no Brasil (RAICHELIS, 2013). E, como observado, da não integração
de amplas parcelas da classe trabalhadora, especialmente de trabalhadores/
as de pele preta, ao trabalho regular e protegido, ainda que no contexto do
“Estado de mal-estar social” brasileiro, lembrando a conhecida formulação
do saudoso professor Francisco de Oliveira.
Mais precisamente, em nosso país constituiu-se o que Braga (2012, p.
21) identificou como fordismo periférico, um sistema social estruturado pela
combinação de economias e nações capitalistas desenvolvidas e subdesenvol-
vidas, dominado pela mundialização das trocas mercantis, constituindo-se em
uma das principais mediações históricas entre os países capitalistas avançados
e os países capitalistas subdesenvolvidos ou dependentes.

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Ao contrário do que aconteceu historicamente com o capitalismo nos
países centrais, o Estado brasileiro não criou condições para a reprodução
social da força de trabalho, nem estendeu direitos de cidadania ao conjunto da
classe trabalhadora, excluindo imensas parcelas de trabalhadores/as do acesso
ao trabalho formal e a condições dignas de vida, especialmente trabalhadores/
as rurais e negros e negras deixados à sua própria sorte após a abolição oficial
da escravidão no Brasil (RAICHELIS, 2013). Assim, a superexploração da
força de trabalho, nos termos da teoria marxista da dependência, atuou histo-
ricamente como um rebaixador estrutural dos níveis de reprodução social da
classe trabalhadora, na medida em que os salários pagos aos/às trabalhadores/
as são invariavelmente inferiores ao valor da força de trabalho, impedindo que
essa classe se reproduza em condições “normais”, de acordo com as conquis-
tas civilizatórias de cada sociedade em distintas particularidades históricas.
Considerando esse contexto histórico a partir da periferia capitalista, as
transformações que o mundo do trabalho vem experimentando nas últimas
décadas caracterizam uma nova era de precarização estrutural do trabalho
(ANTUNES, 2018). A etapa atual de financeirização capitalista faz com que
o trabalho, mediação fundamental das relações sociais e elemento estrutu-
rante da sociabilidade humana, seja destituído de sua função protetora para
segmentos majoritários da classe trabalhadora, cujos salários têm perdido
potência integradora face à corrosão de direitos e benefícios dele derivados.
Nessa ambiência societária, a denominada nova morfologia do trabalho
(ANTUNES, 2018) desencadeia mudanças profundas nas formas de orga-
nização, relações e gestão do trabalho, gerando processos continuados de
informalidade, insegurança e desproteção, e novas modalidades de contra-
tação da força de trabalho assalariada através de empregos terceirizados,
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 91

subcontratados, temporários, em tempo parcial ou por projeto, além das formas


regressivas que se supunha eliminadas como o trabalho escravo, o trabalho
infantil, para citar apenas algumas das expressões da precariedade a que estão
submetidos/as os/as trabalhadores/as no mundo do trabalho.
Contudo, embora a precarização do trabalho não seja um fenômeno novo,
inegavelmente assume dimensões e manifestações singulares no tempo presente
de crise orgânica do capital agravada pela pandemia da covid-19, atingindo o
conjunto da classe trabalhadora, ainda que com diferentes intensidades, consi-
derando-se a divisão sociotécnica, sexual e étnico-racial do trabalho, na qual
negros e negras, mulheres, jovens, povos indígenas, população LGBTQI+ são
invariavelmente as/os mais afetadas/os. Certamente o salto científico-tecno-
lógico e a expansão das tecnologias de informação e comunicação colaboram
intensamente para agravar o cenário de degradação e destrutividade do trabalho
pelo capital, questão que será aprofundada no próximo item.
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Trabalho uberizado e tecnologia digital no capitalismo em crise

Para analisar a centralidade crescente das TICs na configuração da nova


morfologia do trabalho no capitalismo em crise, partimos do pressuposto que
sua disseminação é constitutiva do processo permanente de reestruturação
produtiva do capital, no qual as tecnologias digitais assumem um papel deci-
sivo na instrumentalização de novos produtos e negócios, e na estruturação
de relações e dinâmicas de trabalho que promovem inusitadas formas de
intensificação e exploração do trabalho (TONELO, 2020, p. 139).
Nesse contexto, cresce o trabalho uberizado como una (nova/velha) forma
de organização e controle do trabalho, que se dissemina globalmente no centro e
na periferia capitalista, apoiado em plataformas digitais - empresas que se apre-
sentam como aplicativos, mas são de fato grandes conglomerados transnacionais.
Para Abilio, Amorim e Grohmann (2021, p. 48), o que vem sendo cha-
mado de uberização do trabalho é um processo anterior às plataformas digi-
tais, caracterizado por novos arranjos produtivos, eliminação de direitos,
transferência de riscos e custos do trabalho para o/a próprio/a trabalhador/a,
traços característicos do trabalho em países capitalistas periféricos e depen-
dentes como o Brasil, onde a informalidade não é exceção ou um ponto fora
da curva, mas é a regra que caracteriza o modo de vida das populações peri-
féricas, como analisado anteriormente22.

22 Abílio (2021) denomina esse processo de “autogerenciamento subordinado”, noção que propõe adotar critica-
mente no lugar de empreendedorismo, para não alimentar a subjetivação neoliberal que dissemina a ideologia do
trabalhador proprietário “patrão de si mesmo”. A autora chama atenção para o trabalho de viração, que vai além
do “viver de bicos” (gig economy no jargão atual) ou de um trabalhador informal, que sempre existiu nas periferias
92

No contexto do aprofundamento da pandemia da covid-19, Antunes


(2022, p. 35) referiu-se à pandemia da uberização para dar conta dessa pro-
cessualidade que caracteriza o trabalho flexível, intermitente e desprotegido
para uma massa crescente da força de trabalho sobrante que não encontra
alternativas a não ser permanecer disponível para aceitar qualquer trabalho,
ainda que precário e de baixa remuneração.
Para o autor, trata-se de um tipo de trabalho que, subordinado a gigantes-
cas corporações globais hegemonizadas pelo capital financeiro, articula pelo
menos três traços definidores: o uso intensivo das tecnologias de informação
e comunicação; a disponibilidade de uma grande massa de trabalhadores/as
dispostos/as a trabalhar de qualquer jeito por alguma remuneração; a trans-
figuração de trabalhadores/as assalariados/as em prestadores/as de serviços
(empreendedores/as) para que não sejam alcançados/as pela legislação pro-
tetora dos direitos do trabalho (ANTUNES, 2022, p. 35).
Essas tendências contribuem para aprofundar a superexploração, intensi-

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ficação e precarização do trabalho, encobrindo vínculos de assalariamento de
fato existentes por relações crescentemente individualizadas e (supostamente)
não protegidas pela legislação trabalhista, o que tem motivado denúncias e
processos contra essas empresas-plataformas em todo o mundo. Situação que
não elimina, contudo, a urgência de (novas) formas de regulação para uma
multiplicidade de vínculos e modos de realização do trabalho (presencial
e virtual), mediados pelas plataformas e dispositivos digitais não cobertos
pela legislação trabalhista em vigor, ainda mais após a sua desidratação pela
contrarreforma trabalhista de 201723.
Com a crise pandêmica e (supostamente) “pós-pandêmica”, tais con-
figurações do mundo do trabalho aceleraram a “pandemia da uberização”,
intensificando as formas de controle do trabalho por meio do gerenciamento
algorítmico, não apenas no chão da fábrica e na produção de mercadorias
materiais tangíveis, mas também no amplo e heterogêneo campo do trabalho
em serviços, incluindo os serviços públicos e as instituições governamentais.
Essa processualidade própria da produção capitalista na “era digital”
foi exponenciada com a disseminação da pandemia da covid-19, e funcionou
como um grande laboratório para o capital e seus representantes no aparelho
de Estado, cenário em que o maquinário digital-informacional (algoritmos,
indústria 4.0, inteligência artificial, internet das coisas, robótica etc.) assume

das cidades brasileiras, estruturando modos de vida e relações de trabalho sem direitos e proteções sociais,
transformando trabalhadores/as em sujeitos solitários/as na busca cotidiana e desesperada pela sobrevivência.
23 Para o que nos interessa nesse texto, não é excessivo lembrar que o trabalho uberizado não se limita às
empresas UBER, sendo que na atualidade esse tipo de trabalho se expande para todos os segmentos
do mercado de trabalho, nas empresas e organizações privadas, no Estado e nas instituições públicas,
principalmente no trabalho em serviços, incidindo portanto no exercício profissional de assistentes sociais
e demais trabalhadores/as que participam da formulação, gestão e implementação de políticas sociais e
de serviços sociais públicos e privados.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 93

o comando do processo produtivo, aprofundando e ampliando as formas de


subsunção do trabalho ao capital (MARX, 1975; MARX, 2013).
As mudanças na base técnica – da eletromecânica para a microeletrônica
na passagem do século XX para o século XXI permanecem revolucionando
as forças produtivas em busca de novas formas de extração do excedente por
meio do aumento da produtividade do trabalho.
Como Marx analisou nos Grundrisse, a ciência é um produto do trabalho
social coletivo, resultado do desenvolvimento das forças produtivas sociais
do trabalho pois, nas palavras do autor:

A natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafos


elétricos, máquinas de fiar automáticas etc. Elas são produto da indústria
humana; material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre
a natureza ou de sua atividade na natureza. Elas são órgãos do cérebro
humano criado pela mão humana; força do saber objetivada (MARX,
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2011, p. 589).

Contudo no capitalismo a ciência é transformada em força produtiva para


o capital e a atividade do trabalhador determinada e regulada pelo movimento
da maquinaria e não o inverso.

A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem


adequadamente como autômatos por sua construção, não existe na cons-
ciência do trabalhador, mas atua sobre ele por meio da máquina como
poder estranho, como poder da própria máquina (MARX, 2011, p. 581).

Assim o trabalho objetivado na maquinaria se contrapõe ao trabalho


vivo como um poder que o governa, subsumindo o trabalhador a esse
mecanismo que o aliena como algo externo e poderoso, transformando-o
em mero apêndice da máquina. Nesse processo de busca incessante de
valorização, da contradição em processo, a incorporação das tecnologias
leva à redução do trabalho vivo ampliando a população sobrante para as
necessidades do processo produtivo, o que está na raiz das crises sistêmi-
cas do capital e da (re) produção incessante das desigualdades que lhes
são inerentes.
Nesse universo do valor, altera-se a composição orgânica do capital, por
meio do aumento do capital constante e a consequente redução do capital variá-
vel (Marx, idem), o que é obtido com a introdução do sistema de máquinas (na
atualidade com o sistema maquínico-digital-informacional) e diminuição da
demanda por mais trabalhadores/as, ampliando a população supérflua e descar-
tável para o capital e, consequentemente, o poder do capital sobre o trabalho.
94

Nesse contexto as novas formas de (re) produção e repartição do exce-


dente competem pela hegemonia para se tornarem o padrão socialmente neces-
sário, que garante lucro extraordinário da renda tecnológica do monopólio24, de
um lado; e de outro, impõe perdas da desvalorização do trabalho, provocando
(mais) uma crise do trabalho (TAUILE, 2001, p. 121).
É de conhecimento geral que o Brasil, e os países periféricos da América
Latina e Caribe, em sua inserção subordinada na divisão internacional do
trabalho, participam mais como consumidores do que produtores de artefatos
e dispositivos tecnológicos, dependentes que são dos grandes conglomerados
que hegemonizam as tecnologias de informação e comunicação, a indústria
4.0, a robótica, a IA e as gigantescas plataformas digitais25.
Como analisa Tauile (2001, p. 120), a aplicação dessa base técnica
microeletrônica encontra terreno fértil justamente no trabalho em serviços,
principalmente naquelas atividades que lidam com manipulação de informa-

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ções padronizadas, que ganharam impulso com a automação bancária a partir
da década de 1970, exatamente na transição da eletrônica para a microeletrô-
nica. E nesse âmbito, o que se observa, de modo geral, é que

à medida que as informações e os conhecimentos do saber trabalhador


são crescentemente codificados nos dispositivos eletrônicos de proces-
samento de dados, para uma grande maioria de atividades de operação
de equipamentos e de utilização de bens de consumo durável, ou ainda,
de terminais de serviços com base nas novas tecnologias, há nitidamente
um processo de simplificação dessas atividades (TAUILE, 2001, p. 123).

24 Para Dantas (2022b), em suas instigantes e polêmicas análises sobre o valor da informação-trabalho à luz da
teoria marxiana do valor-trabalho, a questão fundamental do capitalismo contemporâneo é que “o acesso ao
conhecimento cientifico-técnico, aos produtos artísticos, ao entretenimento cultural e aos próprios ‘estilos’ dos
valores de uso necessários ao dia a dia nas sociedades contemporâneas passa a depender das condições
impostas ao mercado por algum detentor monopolista da propriedade sobre esse conhecimento” (p. 72 ,
grifo do autor). Tal dinâmica dá origem à renda informacional, sustentada por uma draconiana legislação
internacional que transfere ao investidor privado capitalista os direitos de propriedade intelectual (DPI) sobre
os produtos do trabalho semiótico de cientistas, engenheiros, artistas, professores e outros trabalhadores
informacionais. Processo este que ocorre por meio do registro das patentes, marcas, desenhos industriais,
direitos autorais sobre softwares, obras cientificas, artísticas e literárias, endereços de sitos de internet,
entre outros, configurando um movimento de “cercamento” similar ao que deu origem ao cerceamento de
terras por ocasião da acumulação primitiva de capital descrita por Marx. Para aprofundamento dessa reflexão
sobre direitos de propriedade intelectual (DPIs) e rendas informacionais, Dantas remete ao texto de Larissa
Ormay (2022, p. 97-144), na mesma obra organizada por Dantas, Moura, Raulino e Ormay (2022).
25 Dantas (2022a, p. 4) observa que durante o governo Collor de Mello (1990-1992), período em que se
popularizou a internet no Brasil voltada sobretudo para o comércio e o lucro, “travou-se uma luta aberta
contra políticas industriais protecionistas que poderiam favorecer o aparecimento e avanço de uma indústria
brasileira de TICs”, sob o discurso do ingresso do Brasil no “primeiro mundo”, em defesa de ampla abertura
comercial e facilitação do acesso de todos (diga-se da classe média) aos prazeres do consumo.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 95

Nesse contexto, o processo de subsunção real do trabalho ao capital


(MARX, 1975; MARX, 2013), como expropriação de conhecimentos e de ener-
gias vitais das/os trabalhadoras/es, sofre uma inflexão no trabalho em serviços,
considerando que a informação e o conhecimento são a base das atividades de
coleta massiva, registro, codificação, armazenamento, processamento, trans-
missão e uso de dados próprios do trabalho intelectual no âmbito dos serviços.
A reflexão coletiva de Santos, Freitas, Vieira e Dias Junior (2022, p.
59-83) sobre o trabalho no Serviço Social e suas relações com as TICs proble-
matiza o significado da tecnologia por meio da qual as forças sociais dominan-
tes se apropriam privadamente da produção intelectual coletiva - do intelecto
geral do fundo humano de conhecimento – para a valorização do capital, nos
termos desenvolvidos por Marx nos Grundrisse (2011).
Ao problematizar as interfaces entre informação, conhecimento e poder,
as/os autoras/res chamam atenção para essa contradição entre a incidência
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generalizada das novas tecnologias de informação e comunicação na vida


cotidiana de grande contingente de pessoas, conectadas ou não à rede, no
intenso processo de estabelecimento de novas interações sociais e novos for-
matos de produção e compartilhamento de informação e conhecimento; e,
ao mesmo tempo, sua apropriação privada pelo capital e classes dominantes.
Nessa reflexão afirmam que:

O impacto do uso da internet e das correlatas TICs no nosso cotidiano é


de várias ordens. Coloca em questão a implicação da conectividade 24/7;
as modificações nas interações interpessoais, na estruturação do pensar de
indivíduos, grupos e classes sociais; seus efeitos na organização e desen-
volvimento das cidades, atendendo à pressão constante de modelização das
“cidades globais”; questões relacionadas à privacidade, à transparência, ao
controle, à segurança de dados e ao controle social do uso comercial e político
de informações pessoais; o impacto em processos eleitorais e nos mecanismos
e estruturas democráticas; e as implicações do seu uso intensivo nas relações
produtivas e na reestruturação do mundo do trabalho (idem, op. cit. p. 60-61).

Na análise de Valente (2021, p. 180), o uso digital, como suporte da infor-


mação, teve nas TICs a base para o desenvolvimento de um “novo paradigma
calcado na coleta massiva de dados (dataficação), ao processamento inteligente
por meio de algoritmos e sistemas de inteligência artificial e a oferta de serviços
personalizados e moduladores de comportamentos, sobretudo por meio de apli-
cativos (apps) para cada vez mais atividades [...]” (VALENTE, 2021, p. 180).
Mesmo considerando a dinâmica contraditória que envolve o uso
das tecnologias na vida cotidiana e nos processos de trabalho, é o capital,
96

hegemonizado pela fração financeira, que se beneficia do valor da informação


como valor trabalho, “trabalho em ação, interação, atividade”, nos termos
de Dantas:

O capital financeiro que, por meio dos juros de seus empréstimos, abo-
canha parte do mais-valor extraído pelo capital produtivo, encontrou nas
PSD [Plataformas Sociodigitais] outro poderoso meio de se apoderar do
mais-valor do trabalho social – aqui sem intermediários. E manda a conta
para quem realmente produz”. (2022b, p. 89)

A abundante literatura sobre os usos das TICs na organização e efetivação do


trabalho em seus múltiplos espaços de materialização, apesar das polêmicas que
envolvem, é inequívoca quanto aos impactos na destruição/redução de empregos
e criação de novas ocupações (que não conseguem repor o número de empregos
perdidos), nas alterações qualitativas das profissões e nas novas formas de orga-

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nização e controle do processo de trabalho, como observa Valente (2021, p. 162).
A expansão da digitalização do trabalho e do trabalho online, como o tra-
balho no domicílio (home office), o teletrabalho e as distintas modalidades de
trabalho remoto e teleatendimento, existentes até então de modo periférico, com
a pandemia do novo coronavírus passaram a ser adotados com centralidade em
larga escala, em todas as áreas e setores do mercado de trabalho público e privado.
Tal situação não apenas incorpora novas estratégias de organização e processa-
mento do trabalho, orientadas por uma racionalidade gerencialista e produtivista,
como (re)configura a natureza do trabalho e sua forma social nos diferentes
espaços ocupacionais, como ocorre com o trabalho de assistentes sociais.
A apropriação crítica desse complexo e multifacetado processo de ube-
rização do trabalho (Abílio, 2020; Antunes, 2020; Antunes 2022) ou de pla-
taformização do trabalho, Grohmann (2021) exige compreender que tanto
as novas formas de controle e gerenciamento por parte do capital, quanto as
possibilidades de construção de alternativas autônomas por parte da classe
trabalhadora são objeto de acirradas disputas (contra e) hegemônicas. Se,
de um lado, dissemina-se amplamente a gestão algorítmica e as formas de
vigilância apropriadas pelo capital para intensificar o trabalho e aprofundar
os controles sobre sua produtividade; por outro lado, encontramos experimen-
tações conduzidas por coletivos de trabalhadores que buscam novos meios de
apropriação das tecnologias digitais em seu próprio benefício, construção de
plataformas alternativas e lutas coletivas por melhores condições de trabalho
(GROHMANN, 2021, p. 13).
Estabelecendo uma analogia com o fetichismo da mercadoria descrito
por Marx (2013), quando desvela o caráter social do trabalho e não como uma
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 97

suposta propriedade natural das coisas, da mesma forma é necessário fazer a


crítica da tecnologia, considerando que

artefatos tecnológicos que nos parecem no dia a dia neutros, intrinsecamente


bons, produzidos tão somente para resolver problemas práticos, contêm
relações sociais historicamente determinadas e obscurecem o conteúdo de
classe das escolhas tecnológicas (NOVAES; DAGNINO, 2004, p. 189).

Como observa Mészáros (2011, p. 53, grifos do autor), a questão central


não se limita a debater se empregamos ou não a ciência e a tecnologia para
resolver nossos problemas, o que seria óbvio, “mas se seremos capazes ou não
de redirecioná-las radicalmente, uma vez que hoje ambas estão estreitamente
determinadas e circunscritas pela necessidade da perpetuação do processo
de maximização dos lucros”, ou seja, pela apropriação capitalista do uso da
tecnologia voltada à valorização do capital.
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As plataformas-redes, assim como quaisquer tecnologias, são orientadas


por valores e normas inscritos em seus desenhos, algoritmos e interfaces que
podem, e quase sempre apresentam, mecanismos discriminatórios de classe,
raça, gênero, etnia, entre outros26, pois são produtos do trabalho humano, cuja
materialidade envolve processos e meios de trabalho (físicos e naturais), que
participam das cadeias de produção e extração de valor. Por isso, para com-
preender o trabalho plataformizado é preciso ir além da análise das plataformas
em si mesmas e “olhar também para as interrelações entre financeirização,
neoliberalismo e dataficação” (GROHMANN, 2021, p. 14), pois as platafor-
mas são ao mesmo tempo meios de produção e meios de comunicação, com
implicações e dimensões políticas que precisam ser desvendadas criticamente.

O trabalho profissional mediado pelas TICs – teletrabalho, gestão


por metas e controle digital
Como já referido, o trabalho remoto desencadeou um conjunto de novas
situações em relação às quais tínhamos pouco conhecimento acumulado, con-
siderando ainda que, de modo geral, foi imposto de cima para baixo na maioria
das instituições, sem participação e tempo de preparação das/os profissionais
e docentes nas universidades públicas e privadas.
26 Exemplo emblemático são os aplicativos de reconhecimento facial criados com vieses racistas e machis-
tas. Para uma interessantíssima e instigante abordagem dessa questão, ver o documentáario Coded Bias
(2020), dirigido por Shalini Kantayya, que mostra como uma pesquisadora negra da MIT Media Lab de
Massachussets percebeu o problema do reconhecimento facial quando posiciona o seu rosto em frente a
uma tela com dispositivo de inteligência artificial e não é reconhecida. Mas quando ela coloca uma máscara
branca, o sistema consegue detectar. Assim, a pesquisadora começou a constatar que os programas de
IA são treinados para identificar padrões baseados em um conjunto de dados (de homens brancos) e, por
isso, parecem não reconhecer com precisão faces femininas ou negras.
98

A intensidade e velocidade da disseminação do teletrabalho mediado


por plataformas digitais e pela gestão com base em metas de produtividade
desencadeiam complexas situações que redimensionam as fronteiras temporais
e espaciais do trabalho: favorecem novas modalidades de controle e vigilân-
cia dos processos e resultados do trabalho; transferem o gerenciamento do
trabalho para os/as próprios/as trabalhadores/as, com a imposição de metas
de produtividade frequentemente inaceitáveis; instalam um tipo de gestão por
pressão que reforça a individualização do trabalho e estimula a competição
entre pares. Trata-se de um quadro propício ao crescimento do assédio moral
e institucional, desgaste mental, múltiplas formas de sofrimento e adoeci-
mentos, provocados pelos processos de reestruturação produtiva em curso27.
Para Alves (2022, p. 190),

ao lado do home-office, a implantação efetiva da Gestão de Metas é uma


mudança violenta na vida organizacional do trabalho público, contribuindo

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para disseminar como estratégia de gestão organizacional, o Assédio
Moral. A Gestão de Metas é efetivamente um elemento estressor que
provoca - a médio e longo prazo - sérios impactos na saúde e qualidade
de vida das(os) profissionais do serviço público.

Na conjuntura pandêmica, essas situações se agravaram com a ampliação


das jornadas de trabalho para 10/12h; isolamento social; fadiga pelo tempo
excessivo de permanência em frente à tela do computador, sem direito à desco-
nexão; multiplicação do número de reuniões até a exaustão, provocando ruptura
das fronteiras entre tempo de trabalho e de não trabalho, vida privada e vida
pública. O impacto do home office ou teleatendimento no trabalho de assistentes
sociais, seja nas instituições de prestação de serviços sociais ou na formação
acadêmica graduada e pós-graduada foi intenso, exigindo respostas imediatas
para as quais ainda não havia acúmulo de debate e conhecimento suficiente, o
que se configurou em fonte de profundas tensões, sofrimento e adoecimentos.
Também no trabalho de assistentes sociais já era possível observar o uso
crescente de dispositivos digitais e informacionais, que durante a pandemia do
novo coronavírus se generalizaram. O retorno ao trabalho presencial, a convi-
vência do trabalho remoto com ampliação das jornadas de trabalho e a captura do
tempo de trabalho a serviço das metas de produtividade estão se consolidando e
naturalizando, processos nem sempre acompanhados da necessária reflexão crítica
– individual e coletiva – sobre suas implicações e impactos no trabalho e na vida.
A dimensão contraditória das tecnologias digitais e da internet se mani-
festou com grande visibilidade durante a pandemia. No caso do exercício

27 Para aprofundar a análise dos sofrimentos e desgastes provocados pelo trabalho de assistentes sociais
mediado pelas TICs e seus impactos na saúde e nos conteúdos teórico-metodológicos e ético-políticos do
exercício profissional, consultar Vicente e Monteiro (2022, p. 117-137).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 99

profissional, o teletrabalho ou trabalho no domicílio se, por um lado, viabili-


zaram o atendimento social à parcela da população usuária em um contexto
de isolamento e aumento da violência contra mulheres, idosos, crianças e
adolescentes; por outro, ampliaram jornadas de trabalho sem remuneração,
intensificaram e invadiram as fronteiras dos espaços de vida e de trabalho
de assistentes sociais, transferiram custos às/aos próprias/os trabalhadoras/
es, além de trazerem maior impacto sobre a vida das mulheres, pois na tradi-
cional e patriarcal divisão sociossexual do trabalho, são elas que continuam
assumindo a responsabilidade pelas atividades de cuidado e de reprodução
social nos espaços da vida privada.
Também observou-se no trabalho presencial durante a pandemia, o
recrudescimento de antigas e indevidas requisições profissionais, movidas
pela urgência social (o histórico “pronto-socorro social “) e alimentadas pelo
clientelismo e fisiologismo político. Dentre suas expressões destacam-se o
processamento do auxílio emergencial criado no desgoverno de Bolsonaro, a
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distribuição de cestas básicas, de vouchers, entre outras, que exigiram respos-


tas profissionais que passaram ao largo das políticas e dos sistemas públicos
de proteção social (caso da Política de Assistência Social e do SUAS), apoia-
das em equipes desfalcadas, precárias condições materiais e tecnológicas,
sucateamento de computadores, fragilidade das redes de internet, ausência de
equipamentos de proteção individual e coletiva, inexistência de protocolos e
planos de contingência, entre outros.
Por essas razões, na dinâmica institucional que envolve o trabalho profis-
sional, é importante refletir sobre o trabalho remoto e presencial como faces
contraditórias e complementares da nova morfologia do trabalho profissional
no capitalismo contemporâneo (RAICHELIS, 2020; 2022). E buscar proble-
matizar o significado da tecnologia em sua historicidade, como produto do
trabalho social cristalizado no sistema maquínico-digital-informacional, que
potencializa a subsunção real do trabalho intelectual aos circuitos de valori-
zação do capital. Mas que, ao mesmo tempo e contraditoriamente, abre pos-
sibilidades inéditas de apropriação crítica das TICs em uma dimensão contra
hegemônica, apropriados pelos trabalhadores em função de seus interesses
e formas de lutas, desde que sejam superados tanto determinismos quanto
fetichismos e reificações que cercam o uso das tecnologias. Torna-se urgente
pois a criação de estratégias de enfrentamento das múltiplas situações que
podem colocar em xeque os valores éticos e os compromissos históricos da
profissão de Serviço Social com a classe trabalhadora, reconhecendo possi-
bilidades, limites e contradições.
O quadro de pandemia incidiu diretamente no “núcleo duro” das atri-
buições e competências profissionais, agregando novos elementos à reflexão
que vínhamos desenvolvendo sobre a nova morfologia do trabalho no Serviço
Social (RAICHELIS, 2018; 2020; 2021; 2022).
100

O trabalho remoto, o home office e os vários tipos de teletrabalho, adotados


de forma esporádica, embora crescente, nos diferentes espaços sócio-ocupacio-
nais, se generalizaram com as medidas sanitárias, como amplamente divulgado.
No caso do trabalho profissional, em algumas instituições, como o INSS,
o processo de digitalização e automação do trabalho por meio de plataformas
digitais para acesso pelos beneficiários (como o Meu INSS) estava em curso e
foi intensificado durante a pandemia, inclusive com fechamento de agências
para atendimento presencial dos demandantes e implantação da robotização do
atendimento. Também no Ministério Público e Tribunais de Justiça, o processo
judicial eletrônico e o trabalho à distância já estavam em experimentação, na
modalidade de trabalho no domicílio, cercados de polêmicas e de certa natu-
ralização por parte dos profissionais, com o objetivo institucional expresso de
ampliar a eficiência, os controles e os níveis de produtividade do trabalho28.
Em relação ao teletrabalho, a (contra) reforma da CLT em 2017 insti-
tuiu um capítulo específico sobre o trabalho remoto, a ser realizado por meio

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de contrato por tempo determinado ou indeterminado, mas não definiu novas
regras que garantam os direitos de trabalhadores/as nessa nova modalidade de
trabalho, o que certamente será remetido para negociação entre empregadores/
as e trabalhadores/as, prevalecendo “o negociado sobre o legislado”, em uma
conjuntura de descenso do movimento sindical e da organização coletiva das/
os trabalhadoras/os29.
No caso dos trabalhadores do setor público está em tramitação no
Congresso Nacional, a proposta de EC n. 32/2020, que representa, se for
aprovada, o desmonte final do serviço público e do estatuto do servidor
público, com a extinção dos concursos públicos para ingresso e progressão
na carreira, fim do regime jurídico próprio, flexibilização de contratos,
demissão em massa, entre outras, que esperamos seja rapidamente retirada
pelo governo Lula, junto com os incontáveis desmontes do desgoverno
anterior, o desmanche das políticas públicas e dos direitos de servidores/
as públicos responsáveis pela sua execução, sob os influxos do processo
crescente de privatização e mercadorização dos serviço sociais públicos
(HUWS, 2017; ARAÚJO, 2022).
28 Sobre essa matéria, cf. a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de maio de 2020, que dispõe
sobre a realização de perícias em meios eletrônicos ou virtuais em ações em que se discutem benefícios
previdenciários por incapacidade ou assistenciais, enquanto durarem os efeitos da crise ocasionada pela
pandemia do novo Coronavírus. Mais recentemente, a Resolução Nº 1.466/2022 - CPJ, de 20 de abril de
2022, do MP- SP regulamentou o teletrabalho, com o objetivo declarado de aumentar o controle sobre a
produtividade do trabalho e transferir custos aos próprios trabalhadores/as, com base na suposição que o
trabalho remoto apresenta resultados similares ou até melhores do que o trabalho presencial.
29 Como observam Praun e Antunes (2020, p. 183 e segs.), há no texto da CLT algumas especificações
sobre o teletrabalho, que deve ser exercido fundamentalmente fora das dependências da empresa e com
apoio tecnológico. Mas não há nenhum detalhamento sobre duração da jornada de trabalho, nem quanto à
responsabilidade pela aquisição e manutenção dos equipamentos tecnológicos e infraestrutura necessária
para o exercício das atividades remotas, além de atribuir à/ao própria/o trabalhadora/or a prevenção contra
doenças e acidentes de trabalho.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 101

É preciso considerar ainda as condições sociais e materiais da popu-


lação atendida pelas políticas públicas, que em sua maioria não dispõe
de smartphone e/ou computador com acesso à internet, portanto como
excluídos digitais acabam sendo excluídos também do acesso a programas e
benefícios socioassistenciais, a exemplo do que ocorreu com o auxílio emer-
gencial e o renomeado Auxílio Brasil implantado no desgoverno Bolsonaro.

Nota final: o trabalho no fio da navalha e os novos desafios para


o trabalho de assistentes sociais
Como desenvolvemos ao longo desse texto, a restruturação produtiva
neoliberal transformou-se num processo permanente para reverter a queda das
taxas médias de lucro do capital, em seu afã incontrolável de busca e criação
de novos nichos de acumulação. Nesse contexto, as TICs assumem um papel
decisivo no aprofundamento de estratégias de exploração e de subsunção do
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trabalho ao capital, com destaque para os mecanismos de controle e instru-


mentalização do trabalho intelectual, com vistas à valorização do capital e
dos seus representantes nas instituições estatais e privadas.
Nesse contexto, o trabalho assalariado e a classe que vive da venda de
sua força de trabalho são profundamente atacados, assim como seus direitos
conquistados ao longo de lutas históricas, sendo as tecnologias digitais um
vetor dinâmico e altamente potencializador da sociabilidade do capital no
capitalismo contemporâneo em crise.
Esse quadro, que se reproduz no processamento do trabalho de assis-
tentes sociais, aponta para a tendência à simplificação, à fragmentação e à
padronização das tarefas, gerando desprofissionalização, rebaixamento do
trabalho intelectual, perda de conteúdos criativos e críticos do trabalho, com
incidências na autonomia relativa, na qualidade dos serviços prestados e na
direção estratégica do projeto ético-político profissional.
Nesse momento de retomada do trabalho presencial, cabe indagar: por
que a exigência de teletrabalho permanece e se consolida cada vez mais nas
diferentes instituições públicas e privadas? O que explica o açodamento que
estamos presenciando, inclusive nas instituições de ensino superior no âmbito
da formação acadêmico-profissional graduada e pós-graduada, para implanta-
ção do assim chamado modelo híbrido, como possível combinação de traba-
lho presencial e remoto, apoiado nos sistemas informacionais e plataformas
digitais que, no entanto, carece de fundamentos teórico-metodológicos e de
normas que regulamentem seu uso? Esse “hibridismo” no trabalho profissio-
nal tem sido imposto de forme autoritária e, não raro, como “benesse” a que
trabalhadores/as devem fazer jus, a depender da avaliação de desempenho e
do alcance de metas, sem diálogo com os coletivos de trabalhadores e suas
entidades de representação profissional e/ou sindical.
102

Minha hipótese para buscar desentranhar o significado mais profundo da


disseminação do teletrabalho e de formas alternadas/hibridas de trabalho pelas
equipes profissionais é que o teletrabalho e outras modalidades de trabalho media-
das por dispositivos digitais, para além de meios técnicos, configuram uma nova
forma social de organização, gestão e de controle do trabalho, apoiada na gene-
ralização da automação e na uberização do trabalho, em tempos de capitalismo
decadente em crise. Nem sempre perceptível para o conjunto dos/as trabalha-
dores/as, o teletrabalho promove mudanças profundas, não apenas no trabalho
remoto, mas também no trabalho presencial, atingindo a totalidade do processo
de trabalho e sua forma social, portanto, as relações sociais nas quais se insere,
provocando nova divisão social, técnica, sexual e racial do trabalho, por meio da:

• Implosão da jornada de trabalho, nos termos conquistados pela luta


histórica da classe trabalhadora, com extensão ilimitada do tempo
de trabalho, tornando o/a trabalhadora inteiramente disponível para

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as demandas de trabalho;
• Maior centralização e controle sobre o trabalho coletivo e individual,
potencializados pela maciça presença das TICs;
• Precarização, humilhação e intensificação do trabalho, provocando
sofrimento e adoecimentos decorrentes da dinâmica das relações
de trabalho restruturadas;
• Implantação de um sistema de vigilância e avaliação de desempenho
com base em metas de produtividade e remuneração diferenciada,
estimulando a competição entre trabalhadores/as e enfraquecendo
a organização de pautas e lutas coletivas.

A obrigatoriedade do trabalho remoto durante a pandemia, medida ade-


quada nesse contexto, foi assumida de forma pragmática e imediatista por
muitos/as assistentes sociais e outros/as profissionais, no mais das vezes sem
avaliação crítica dos seus possíveis efeitos. Além disso, o trabalho no domi-
cílio exerce grande poder de sedução, principalmente entre as mulheres – o
que é relevante no caso da categoria de assistentes sociais majoritariamente
composta por mulheres – pela crença de maior liberdade para dispor do seu
próprio tempo, definir a jornada de trabalho, conciliar tarefas domésticas e
de cuidado com filhos, compatibilizar trabalho produtivo e reprodutivo etc.
Contudo se, por um lado, o teletrabalho no ambiente doméstico traz
aspectos positivos para quem mora distante do local de trabalho e enfrenta
grandes congestionamentos em conduções lotadas e precárias; por outro lado,
como inúmeras pesquisas demonstram, além de realizar-se em espaços ina-
dequados (a casa não foi feita para o trabalho), transfere custos às/aos pró-
prias/os trabalhadoras/es (internet, pacote de dados, celular, manutenção do
computador, energia elétrica, mobiliário etc.); cria novas formas de vigilância
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 103

e controle do trabalho; provoca isolamento social; exaustão física e mental,


adoecimento e sofrimento, como já pontuado ao longo da análise. E, num
aparente paradoxo com a narrativa dominante, cria maior impacto exatamente
sobre as mulheres, pois na divisão sociossexual/patriarcal do trabalho são elas
(somos nós) que assumem a responsabilidade pelas atividades reprodutivas
no espaço doméstico, a exemplo do cuidados com crianças, idosos e pessoas
doentes; e também como acompanhantes dessas pessoas nos serviços de saúde
e nos hospitais, assumindo também a titularidade de benefícios e serviços, por
recomendação das políticas sociais e também de assistentes sociais, como res-
ponsáveis pelas orientações sociais. São as mulheres, mais ainda as mulheres
negras, que sofrem maior compressão do tempo de trabalho e tempo da vida
privada, como bem analisou Ferreira (2020), em sua importante pesquisa sobre
a apropriação do tempo de trabalho das mulheres nas políticas de saúde e as
implicações para o processo de reprodução social da classe trabalhadora30.
Além disso, é preciso aprofundar o debate sobre o teletrabalho do ponto
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de vista do significado do trabalho como criação coletiva, elemento vital


e fonte de enriquecimento da sociabilidade humana. Nesse sentido há um
retrocesso na disseminação do trabalho em domicílio ou teletrabalho, pois
essas formas de trabalho rompem com a divisão entre trabalho público e vida
privada, histórica conquista da luta da classe trabalhadora desde o século XIX,
como magistralmente descreveu Marx em O Capital.
Essas modalidades remotas de trabalho, e também o hibridismo em curso,
promovem a disciplinarização da vida das/os trabalhadoras/es, colocando-as/
os inteiramente disponíveis ao trabalho, sem direito “à desconexão. Além
disso, rompem com a sociabilidade coletiva no trabalho, criam uma cisão
entre trabalhadores/as com diferentes condições de trabalho e vínculos con-
tratuais (terceirizados, pejotizados, intermitentes, flexíveis, intermediados
por microempresas, entre outros), impondo-se a lógica da concorrência e do
individualismo, tão cara à ideologia do empreendedorismo em curso.
E por último, mas não menos relevante, o teletrabalho e o trabalho
no local de moradia respondem à imediaticidade da vida, enfraquecendo
projetos de longo prazo e alimentando a constituição do sujeito neoliberal,
nos termos de Dardot e Laval (2016), quando se referem ao neoliberalismo
como a nova razão do mundo.
Nesse contexto, assistentes sociais e demais trabalhadores/as no seu
trabalho de implementação de políticas sociais e entrega de serviços e bene-
fícios sociais a segmentos diversificados da classe trabalhadora, majorita-
riamente mulheres e negras, para além de uma avaliação pessoal de custo/
benefício do teletrabalho, precisam analisar criticamente o impacto coletivo
e institucional do trabalho mediado por dispositivos digitais no isolamento

30 Para aprofundar a análise sobre os efeitos na captura do tempo de trabalho e erosão de direitos no quadro
mais geral da flexibilização capitalista, consultar Barbosa (2020, p. 69-104).
104

da casa, também em termos do impacto na qualidade dos serviços prestados


e na natureza de um trabalho dialógico assentado na interação entre sujeitos,
como é o trabalho profissional de assistentes sociais.
Vive-se no Brasil o calor dos resultados da eleição mais decisiva para
nosso país desde o final da ditadura e dos desafios do início do governo Lula,
sob impacto da tentativa do golpe de 8 de janeiro/2023, pelas forças da extrema
direita fascista no Brasil. Diante dos monumentais desafios para construir um
governo democrático, que consiga não apenas desfazer a terra arrasada herdada
do desgoverno anterior, mas avançar nos compromissos históricos com as neces-
sidades e direitos da maioria da população, a categoria de assistentes sociais tem
muito a contribuir nessa caminhada, a partir de uma multiplicidade de espaços
e alianças com organizações e movimentos coletivos da classe trabalhadora.
Por isso, a luta pela qualificação e capacitação continuadas, por espaços insti-
tucionais coletivos de estudo e de reflexão, aprofundamento do debate sobre as
concepções que orientam as práticas e os efeitos por elas produzidos nas condi-

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ções de vida dos usuários, é parte da luta pela melhoria das relações de trabalho
e do direito da população ao acesso a serviços sociais públicos de qualidade.
Quanto mais qualificados/as as/os trabalhadoras/es sociais, menos sujei-
tos/as a manipulações e mais preparadas/os para enfrentar o assédio institu-
cional como estratégia de gestão do trabalho, bem como os jogos de pressão
política e de cooptação nos espaços institucionais.
Para além do conhecimento e domínio das ferramentas informacionais
e digitais, é fundamental enfrentar o produtivismo e o tecnicismo, e voltar a
investir no trabalho socioeducativo e de mobilização popular, retomando a
ação coletiva com os sujeitos nos seus territórios de vida e de trabalho. Assim,
é preciso aprofundar a reflexão e o debate sobre as estratégias para tensionar
a apropriação das tecnologias digitais na perspectiva de fortalecimento dos
valores ético-políticos que orientam o projeto profissional.
Para isso, é decisivo que as/os profissionais não se deixem submeter acri-
ticamente às imposições do poder institucional, mas saibam negociar os termos
dos acordos estabelecidos, seus limites e possibilidades técnicas e éticas no
uso dos diferentes dispositivos e ferramentas do trabalho. O que é possível ou
impossível realizar na modalidade de teletrabalho ou home office; a possível
combinação de formas presenciais e remotas (hibridismo?); a incorporação
de novos processos de trabalho mediados por plataformas e sistemas de auto-
mação e digitalização; e a definição de quais são as condições exigidas para
cada uma dessas situações de trabalho, são prerrogativas profissionais a serem
negociadas com empregadores no espaço institucional e com as entidades de
fiscalização e representação de trabalhadores/as, no sentido de ter garantidas
as condições éticas e técnicas, qualidade no atendimento, sigilo profissional,
respeito aos direitos de usuárias/os e de trabalhadoras/os.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 105

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AS FORMAS DE SER DO
TRABALHO NO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO: do Taylorismo-
Fordismo à acumulação flexível e digital31
Ricardo Antunes
Luci Praun
DOI: 10.24824/978652515286.8.109-122

Desde que a vida humana começou a se desenvolver, o trabalho confor-


mou-se como atividade imprescindível e efetivada pela criação cotidiana de bens
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de uso socialmente necessários para a própria sobrevivência da sociedade. O


mundo em que vivemos, podemos afirmar, é um mundo transformado pelo tra-
balho, atividade vital capaz de criar e recriar cotidianamente a vida em comum.
Foi recuperando esse ponto central para o ser humano que o filósofo
György Lukács (2013) fez a seguinte assertiva: o trabalho tem sempre, em
alguma medida, uma dimensão consciente e se insere na gênese do processo de
humanização do ser. Para tanto, trabalhar pressupõe um conhecimento concreto,
ainda que jamais perfeito, de determinados fins e meios para sua realização.
O ponto de partida de Lukács é a concepção aristotélica, que distingui
dois componentes centrais no trabalho: o pensar e o produzir. O primeiro
concebe a finalidade e os meios para realizá-lo. O segundo realiza a concreção
do fim pretendido. Há, por isso, um ineliminável vínculo entre ação e cons-
ciência, trabalho e teleologia, que interagem de modo recíproco no processo
de produção e reprodução social (ANTUNES, 2010).
Dessa forma, em um processo recíproco e interrelacional, ao mesmo tempo
em que os indivíduos transformam a natureza exterior, alteram também a sua
própria natureza, convertendo o trabalho social em elemento central do desen-
volvimento da sociabilidade humana e de sua emancipação (MARX, 2013).
Essa dinâmica assumida pelo trabalho, capaz de entrelaçar o fazer de
uns e outros, pode ser percebida, entre outros aspectos, nas descobertas que
alinhavam a trajetória humana ao longo de milhões de anos: do uso e controle
do fogo, da ponta de lança feita da madeira das árvores ou de pedra pelos

31 Este texto é uma versão ampliada de artigo publicado sob o título “Transformações do trabalho no mundo
contemporâneo” no livro Engenharia do trabalho: saúde, segurança, ergonomia e projeto, organizado por
D. Braatz, R. Rocha e S. Gemma (Ed. Ex Libris Comunicação, 2021, p. 41-53).
110

nossos antepassados, às possibilidades abertas pelo desenvolvimento da


linguagem, dos artefatos mais sofisticados, do mapeamento genético, das tec-
nologias digitais. Quanto mais complexa a práxis social, maior sua simbiose
com uma organização do trabalho fundada na cooperação. Mais profundas e
complexas também as necessidades humanas que dela se desdobram.
Tratar a questão sob esta perspectiva, entretanto, não deve nos levar a
concluir que seja essa uma articulação, por si só, geradora de condições e
situações progressivamente humanizadoras, provedoras da vida tanto no que
se refere ao que lhe é exigido materialmente como subjetivamente.
Trabalhar, então, é uma atividade vital que se realiza no mundo. Em seu
processo de transformação, esse mundo, criado e recriado pelos seres huma-
nos, foi assumindo ao longo da história diferentes e mais complexas formas
de produção e reprodução em sociedade.
O capitalismo é uma dessas formas. E sob este modo de produção, o

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trabalho assume finalidades, configurações e sentidos particulares. É a partir
da constituição desse modo de produção que o trabalho adquire uma “segunda
natureza”, ao converter-se em uma mercadoria especial, a força de trabalho,
que generalizou o assalariamento (ANTUNES, 2010).
Embora o trabalho assalariado nascente assumisse a aparência de liberdade
(acentuada especialmente quando comparado aos trabalhos escravo e servil ante-
riores), ele se tornou, em verdade, no único meio de sobrevivência existente para
mulheres e homens despossuídos do campo e das cidades, desprovidos dos meios
de produção e de riqueza. Compreender criticamente suas principais configura-
ções, consiste em parte dos desafios cruciais da humanidade neste século XXI.
Os objetivos deste texto caminham nesse sentido. Buscamos, ao resgatar
elementos fundamentais das formas de organização do trabalho predominantes
entre o século XX e XXI, contribuir para uma perspectiva crítica sobre os
processos de trabalho, suas finalidades e sentidos. Por isso, em um primeiro
momento apresentamos as características fundamentais do taylorismo-for-
dismo, padrão de acumulação predominante na maior parte do século XX,
para em seguida, analisar o advento do toyotismo, da acumulação flexível e
da explosão do trabalho digital no mundo do trabalho contemporâneo.
No conjunto, mais que descrever as características dessas formas de orga-
nização do trabalho, pretende-se problematizá-las, questionando a perspectiva
que as apresenta como meros instrumentos de gestão, dissociados da dinâmica
geral da sociedade capitalista. As formas de organização e de gestão do trabalho
devem ser compreendidas, neste contexto, sempre como parte da gestão do
processo de trabalho. Assim sendo, envolvem, do ponto do gestor, conhecer o
trabalho executado com vistas a controlá-lo e mensurá-lo na busca incessante
por cortar custos e ampliar sua produtividade. Uma questão chave dos modelos
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 111

de gestão é, portanto, desvendar quantos trabalhadores e trabalhadoras, sob quais


condições, incluindo o maior ou menor uso de tecnologias, são necessários
para que uma dada atividade ou tarefa seja executada em menor tempo e custo
possível. Não à toa a precariedade atravessa e marca o mundo do trabalho desde
sempre, ainda que se apresente com contornos particulares nas últimas décadas.
Identificar a importância e repercussões da precarização do trabalho
na vida de mulheres e homens, dentro e fora dos locais de trabalho, deve nos
exigir uma capacidade crítica que não se desvincule do desejo de mudar a
realidade. Esse também se constitui como um dos objetivos desse texto.

Tempo cronometrado, produção cadenciada

A expansão da atividade fabril, ao longo do século XIX, foi responsável


pela absorção de um amplo contingente de trabalhadores e trabalhadoras.
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Expulsos das áreas agrícolas, homens e mulheres deslocaram-se massivamente


para os centros urbanos. Parte desse contingente foi absorvida pela indústria,
em plena expansão no continente europeu. Adultos e crianças, submetidos
a jornadas que extrapolavam facilmente as doze horas diárias, passaram a
trabalhar em espaços comuns. A atividade artesanal, já alterada nos séculos
anteriores sob a manufatura, aos poucos foi se reconfigurando frente à inserção
das máquinas no processo produtivo. Os ofícios, caracterizados pelo domínio
e habilidade de produzir objetos do início ao fim, aos poucos foram cedendo
espaço para um tipo de atividade parcial, parcelar (PRAUN, 2018a).
A partir das últimas décadas do século XIX, mudanças expressivas nas
formas de organização do trabalho e da produção foram incorporadas. O
acirramento da concorrência entre empresas, com atuação cada vez mais
internacionalizada, em parte já convertidas em sociedades anônimas, associado
ao desenvolvimento tecnológico e da malha ferroviária, impulsionou o que
ficou conhecido no início do século XX como “administração científica” do
trabalho ou, simplesmente, taylorismo.
A expressão taylorismo é uma referência direta ao sistema de gerencia-
mento do trabalho e da produção proposto por Frederick Winslow Taylor (1856-
1915). Parte importante de suas ideias foi publicada sob o título Princípios da
Administração Científica, em 1911. Este trabalho, assim como outros manus-
critos produzidos pelo autor, resultou da sistematização de experiências desen-
volvidas pelo próprio Taylor ao longo de mais de 20 anos (PRAUN, 2018a).
Neste período, Taylor trabalhou em fábricas, inicialmente em atividades
operacionais, mas na maior parte do tempo, como chefe. Em seu convívio
com os trabalhadores, concluiu que enquanto os velhos operários das oficinas
possuíam conhecimento e destreza sobre seus ofícios, assumindo, ainda que
112

parcialmente, o controle sobre o processo e tempo de execução do trabalho,


faltava à gerência o conhecimento sobre como controlar e potencializar a pro-
dutividade do trabalho ao máximo. Suas proposições visavam, portanto, inverter
essa lógica, de forma que “cada homem e cada máquina” pudessem “oferecer o
melhor rendimento possível” à empresa (TAYLOR, 1990, p. 26). Imbuído deste
propósito, Taylor concentrou esforços no sentido de construir o que ele próprio
denominou de gerência científica (PRAUN, 2018a; ANTUNES; PINTO, 2017).
Ancorada na premissa da racionalização dos processos produtivos, a
gerência científica passou a operar tendo como eixo ordenador o desenvolvi-
mento de formas de organização da produção que possibilitassem alto grau de
controle do trabalho. Taylor, ao ter como alvo inicial o sistema de tarefas, her-
dado do trabalho artesanal ainda vigente em muitas oficinas daquele período,
esbarrou inicialmente em uma questão essencial das relações capitalistas
de produção: o trabalho como um tipo particular de mercadoria, que não se

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constitui em um produto específico, mas decorre de uma relação na qual o/a
trabalhador/a, livre, coloca à venda sua única posse, sua força de trabalho.
Não por acaso, uma das premissas que sustenta o sistema proposto por
Taylor é a da transferência de todo o processo de elaboração, assim como
o planejamento da execução das atividades, passo a passo, para a gerência.
Interessa à gerência científica apoderar-se da engenhosidade do trabalho, de
um tipo de conhecimento que não consta nos manuais, sendo originado e
alimentado pelos desafios impostos pelas situações de trabalho. Um conhe-
cimento, portanto, que é talhado pelo fazer cotidiano, síntese da experiência
acumulada e construída pelo aprendizado compartilhado entre a classe-que-
-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2015).
O controle do conhecimento do trabalho, ponto nevrálgico do taylorismo,
passa a viabilizar, portanto, o prévio planejamento do conjunto de ações a
serem desenvolvidas pelos/as operários/as. Frente ao que resta de autonomia
do trabalho, impõe-se os gestos calibrados com seus movimentos aprisionados,
monótonos, submetidos a um conjunto de “regras, números, leis e fórmulas”
(BRAVERMAN, 1977, p. 103). A norma geral é a da conversão das atividades
antes desempenhadas pelos trabalhadores em tarefas simplificadas ao extremo
e esvaziadas ao máximo, portanto, de seu sentido minimamente criativo.
Relatando sobre uma de suas experiências, na Bethlehem Steel Company,
Taylor salienta que

um dos requisitos para um indivíduo que queira carregar lingotes de ferro


como ocupação regular, é ser tão estúpido e fleumático que mais se asse-
melhe, em sua constituição mental a um boi [...]. Um homem de reações
vivas e inteligentes é, por isso mesmo, inteiramente impróprio para tarefa
tão monótona (1995, p. 53).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 113

No início do século XX, as ideias de Taylor contaram com grande receptivi-


dade não somente nos Estados Unidos, onde se desenvolveram incialmente, mas
nos demais países industrializados ou em processo de industrialização. Tal situa-
ção, conforme já assinalamos anteriormente, deve ser compreendida no contexto
da expansão da indústria e ampliação de sua capacidade produtiva em meio ao
desenvolvimento tecnológico e ao acirramento concorrencial (PRAUN, 2018a).
Em 1910, o taylorismo se adaptaria com perfeição às linhas de montagem
da Ford. Associados às esteiras de produção, capazes de fixar o trabalhador,
ao longo da jornada, em seu posto de trabalho, os princípios da gerência
científica, articulados ao fordismo, assumiram sua expressão mais profunda.
O trabalho simplificado, repetitivo, monótono é redimensionado na cadên-
cia, no fluxo contínuo e cronometrado das linhas de produção mecanizadas.
Entrelaça-se a esse processo o desenvolvimento das pesquisas e inovações
no campo da siderurgia, assim como daquelas relacionadas à evolução dos
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motores à combustão interna, às quais Henry Ford (1862-1947) dedicou-se


com interesse particular (PRAUN, 2018b).
Decorrem desse ambiente histórico, portanto, as alterações na organiza-
ção do trabalho e produção, adotadas no início do século XX, na Ford Motors
Company. Em sua fábrica localizada em Detroit, Estados Unidos e fundada
em 1903, Ford desenvolveu um sistema organizado com base na fixação dos
operários em seus postos de trabalho. Conforme assinalou em suas memórias,
“nenhum operário deve ter mais que um passo a dar”, devendo sempre fazer
“uma só coisa com um só movimento” (FORD, 1954, p. 68). Inspirado pelo
“sistema de carretilhas aéreas” utilizado nos matadouros de Chicago, Ford
passa a adotar, a partir de 1913, esteiras ou trilhos capazes de mover as peças
diante de operários dispostos ao longo das diferentes etapas do processo
produtivo (idem, p. 71). Ao alcance das mãos deveriam estar também os ins-
trumentos e a matéria-prima necessários para a execução da tarefa.
A adoção deste conjunto de procedimentos, conforme relatou Ford
(1954), fez com que, em 1914, a montagem de um motor de carro, por exem-
plo, antes realizada por um único operário, passasse a ser executada por 84
trabalhadores, evidenciando assim o alto grau de divisão do trabalho propor-
cionado pelo sistema. O fluxo contínuo e cronometrado das linhas móveis de
produção, alimentadas por peças padronizadas, passa assim a estabelecer uma
cadência na qual os corpos, impelidos a desencadearem movimentos simples
e repetitivos, entram em sintonia com o ritmo e a intensidade imposta pela
maquinaria. A produtividade e intensidade do trabalho atingem patamares
nunca experimentados antes (PRAUN, 2018b).
Não à toa, os primeiros a resistirem à adoção do sistema de produção
taylorista-fordista foram os antigos operários especializados. Estes, entretanto,
114

aos poucos, foram sendo substituídos por outros que, incorporavam-se às


linhas de montagem atraídos por uma diária de trabalho média de valor supe-
rior àquela praticada pelas demais empresas. Tal situação, temporária, era
viabilizada pela alta produtividade atingida pela fábrica.
Em 1921, “pouco mais de metade dos automóveis do mundo (53%)”
vinham “das fábricas Ford. O capital da empresa, que era de 2 milhões de
dólares em 1907, passa a 250 milhões em 1919, graças aos lucros incessan-
tes” (GOUNET, 1999, p. 20). Ganhava forma, então, a ideia perseguida por
Ford desde antes de fundar sua própria empresa: produzir em larga escala,
produtos padronizados, de forma a impactar nos custos finais da mercadoria,
impulsionando o consumo massificado.
O fordismo, associado aos princípios da gerência científica, havia
rompido os muros da fábrica Ford, convertendo-se em padrão de acumu-
lação de capital e de sociabilidade prevalente até os anos 1970. Esteve,

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nesse sentido, na base, a partir dos anos 1930, de um novo ciclo mundial
de expansão da industrialização. Esta, por sua vez, dirigida sobretudo às
regiões da periferia do capitalismo, a exemplo da América Latina, onde a
presença acentuada das poucas e poderosas corporações do ramo automo-
tivo tornou ainda mais evidente o caráter dependente e subordinado das
economias locais.
A profunda harmonia alcançada entre taylorismo e fordismo, observada
inicialmente nas linhas de montagem das fábricas de Detroit, fez-se presente
no cotidiano de gerações de trabalhadores. A ordem de sua expansão, no
entanto, passou a corresponder à grandeza da acentuada insatisfação, fadiga,
sofrimento e adoecimento entre aqueles que vivem de seu trabalho, tal como
descreveu Simone Weil:

O primeiro detalhe que, cada dia, torna a servidão sensível, é o relógio


de ponto. O caminho da casa à fábrica está dominado pelo fato de que é
preciso chegar antes de um segundo mecanicamente determinado. Pode-se
chegar cinco ou dez minutos adiantado; o escoamento do tempo, aparece,
neste caso, como algo sem piedade que não deixa nenhum lance ao acaso.
Num dia de operário, é o primeiro golpe de uma regra cuja brutalidade
domina toda a parte da vida passada entre as máquinas; o acaso não tem
direitos à cidadania na fábrica (1996 [1936], p. 157).

Mas, situações como essas, por outro lado, auxiliadas pela alta concen-
tração de operários, típica das fábricas organizadas aos moldes do tayloris-
mo-fordismo, também se converteram no pós-Guerra em combustível para o
fortalecimento das lutas e das entidades representativas da classe trabalhadora
em diferentes países. Dessas lutas, assim como daquelas travadas desde o
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 115

século XIX, resultou um conjunto de direitos sociais e do trabalho que, na


virada para o século XXI, foram sendo progressivamente desmontados.
O esgotamento do padrão taylorista-fordista, que não pode ser com-
preendido sem considerá-lo articulado às mudanças desencadeadas no interior
do capitalismo, à exemplo da acentuada financeirização da economia, da
progressiva concentração de riquezas, do acirramento da concorrência entre
as corporações, dos novos patamares de desenvolvimento tecnológico, abriu
o caminho para um profundo processo de reestruturação produtiva, cujos
entraves impostos pela “rigidez” taylorista-fordista deveriam ser, conforme
seus defensores, suplantados pela máxima “flexibilidade”.
Essas alterações, com forte repercussão no mundo do trabalho, fizeram-se
também acompanhadas da ascensão do neoliberalismo e de sua incorporação
e tradução nas políticas de Estado, cada vez mais subordinadas aos interesses
do “mercado”. Sob o neoliberalismo, é instituída uma inversão: a “segurança
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jurídica” para o “mercado”, essa entidade que invisibiliza as corporações e


seus interesses, só se realiza no avanço do desmonte dos direitos sociais e do
trabalho outrora conquistados e, em parte, expressos em legislação protetora.
Em nome da segurança das corporações é a medida da insegurança generali-
zada para trabalhadores e trabalhadoras, tal como exemplificam as “reformas”
previdenciárias e trabalhistas (PRAUN, ANTUNES, 2020).

Flexibilidade como regra e expansão do trabalho digital

Os sinais do esgotamento do padrão taylorista-fordista começaram a soar


ao final da década de 1960. Anunciavam o fim de um longo ciclo de cresci-
mento da economia mundial, balizado por políticas locais de perfil keynesiano,
e estruturado em base à produção seriada e em larga escala. Indicadores de
queda das taxas de lucro das grandes corporações, do refreamento do con-
sumo, da restrição dos investimentos em produção, juntamente à explosão
do desemprego, evidenciaram a chegada da crise que avançou sobre a década
seguinte. O padrão taylorista-fordista de acumulação de capital, vigente na
maior parte do século XX, já não respondia às necessidades de reprodução do
capital (HARVEY, 1992; ANTUNES, 2010, 2015; PRAUN, 2018a).
Uma parcela de intelectuais, sobretudo aquela que observou o curso
dos acontecimentos a partir exclusivamente dos países centrais, enxergou
equivocadamente, tanto na crise como no desenvolvimento tecnológico então
alcançado, o advento de novas experiências alternativas, projetando novos
e melhores tempos para a classe trabalhadora. Afinal, diziam, se o trabalho
fora caracterizado, ao longo do século XX, como monótono, intensivo e alie-
nante, a crise abriria o caminho para uma sociedade onde o labor poderia ser
116

enfim valorizado, dadas as novas tecnologias digitais e as possibilidades de


ampliação do tempo livre (ANTUNES, 2010, 2015).
Foi da experiência da Toyota japonesa que vieram as principais alterações
nas formas de organização do trabalho e da produção, implantadas especial-
mente a partir da década de 1980 e adaptadas às diferentes corporações e loca-
lidades do globo. Longe das previsões otimistas, as mudanças que impactaram
o mundo do trabalho e a sociabilidade construída neste contexto inauguraram
um período de acentuada precarização do trabalho. Em oposição aos tantos
aspectos negativos do taylorismo-fordismo, o toyotismo, a acumulação flexível
e a expansão do capitalismo informacional-digital desenvolveram-se no uni-
verso onde se consolidou nova trípode destrutiva, dada pelo neoliberalismo,
reestruturação produtiva permanente e pela hegemonia do capital financeiro.
O trabalho relativamente contratado e regulamentado, resultante de uma
secular luta operária por direitos sociais, foi sendo substituído pelas diversas

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formas de “empreendedorismo”, “cooperativismo”, “trabalho voluntário”,
“trabalho atípico”, “intermitente”, acentuando a superexploração e configu-
rando uma tendência crescente à precarização estrutural da força de trabalho
em escala global (ANTUNES, 2018, p. 169).
Esse processo, que ganha projeção, sobretudo nos países europeus,
a partir das décadas de 1970-80, espalha-se no Brasil na década seguinte.
Nos anos 1990, as medidas de flexibilização do trabalho avançam no chão
de fábrica por meio da adoção dos “times” de trabalho, da polivalência
e multifuncionalidade, assim como das metas progressivas e avaliações
por desempenho (ANTUNES, 2019; BIHR, 1998; PINTO, 2011; PRAUN,
2016a). São também introduzidas, entre outras medidas, as práticas de fle-
xibilização da jornada de trabalho, a exemplo do banco de horas e de dias.
A ampliação do contingente de trabalhadores e trabalhadoras terceirizados,
expressão fundamental dos processos de reestruturação produtiva que avança
desde a década de 1990 tanto no setor privado como no público (DRUCK
et al., 2018).
Vivenciamos, desde então, uma ampliação exponencial de novas (e
velhas) modalidades de (super)exploração do trabalho, desigualmente impos-
tas e globalmente combinadas por uma nova divisão internacional do traba-
lho. Esses novos arranjos, tecidos pelos processos de reestruturação produtiva
e pelo espraiamento do neoliberalismo, em interface com a financeirização
crescente da economia, encontram convergência no progressivo desmante-
lamento dos sistemas de proteção social, repercutindo, ainda que de forma
diferenciada, em todos os países do mundo. Da China ao México. Dos EUA
à Índia. Do Brasil à Coreia. O avanço de condições e situações de trabalho
ultrajantes compõe a trama da globalização neoliberal.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 117

Nesse universo da nova “empresa flexível”, “liofilizada”32, alteraram-se,


em muitos pontos, os mecanismos do padrão de acumulação do capital. E isso
teve consequências, também, na própria subjetividade do/a trabalhador/a e
nas distintas manifestações do fenômeno da alienação.
Quem conhece uma fábrica da era taylorista-fordista e observa as atuais
percebe que a diferença é visível no seu desenho espacial, de trabalho, de
organização técnica e de controle do trabalho. Não há mais as divisórias. Não
há o restaurante do “peão” e o da gerência. É uma fábrica que seduz com
o “encantamento” de um espaço de trabalho supostamente mais “participa-
tivo”, “envolvente” e menos despótico, ainda que apenas na aparência. Em
verdade, o toyotismo converte trabalhadores e trabalhadoras em déspotas de
si mesmos (ANTUNES, 2015).
A empresa flexível só pode existir, então, com base no envolvimento, na
expropriação do intelecto do trabalho. Por isso passou a ser comum exigir-se
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não apenas a execução de variadas tarefas (operação e manutenção dos equi-


pamentos, limpeza e organização do local de trabalho, controle de qualidade
etc.), mas também a responsabilidade quanto às sugestões de melhorias nos
processos de maneira a cortar estoques e elevar a produtividade.
Danièle Linhart (2000), ao tratar das mudanças no mundo do traba-
lho, destacou o que denominou como individualização, mecanismo capaz
de impulsionar a competição e favorecer à constituição de um ambiente de
trabalho que pressiona, de forma difusa, para a adesão às regras do jogo.
Pesquisadoras como Venco e Barreto (2010, p.5) observam como esse
“contexto de instabilidade configura-se como campo fértil para a instalação
de patologias do medo, cujas características de angústia frente às incertezas
são equivalentes às vivenciadas pela situação de desemprego” (2010, p.5).
Concordando com elas, destacamos o quanto, este ambiente hostil tem sido
particularmente perverso com a juventude trabalhadora, desafiada a encarar
um mundo onde a precariedade dos vínculos, a frágil e instável inserção
no mercado de trabalho, além da expansão dos adoecimentos, soma-se às
exigências constantes e progressivas, típicas da era neoliberal (ANTUNES;
PRAUN, 2015, PRAUN, 2016a).
Expressões frenquentes, tais como “sociedade do conhecimento”, “capital
humano”, “trabalho em equipe”, “times ou células de produção”, “salários fle-
xíveis, “envolvimento participativo”, “trabalho polivalente e multifuncional”,
“colaboradores”, “pj” (pessoa jurídica, denominação falsamente apresentada

32 Como a liofilização, expressão utilizada por Juan J. Castillo, não é um termo das Ciências Sociais, cabe
aqui uma explicação rápida: na Química, liofilizar significa, em um processo de temperatura baixa, secar
as substâncias vivas. O leite em pó é um leite liofilizado. Nos referimos, portanto, aqui, à secagem da
substância viva que, na empresa, é o trabalho vivo, que produz coisas úteis, riqueza material e valor, e que
contraditoriamente se reduz no capitalismo.
118

como “trabalho autônomo”), “empreendedorismo”, “trabalho intermitente”,


“trabalho uberizado” ou em “plataformas”, “economia digital”, “trabalho
digital”, “trabalho on line”, passaram a fazer parte do novo léxico do mundo
do capital corporativo, impondo a todos e todas o novo cronômetro da era
digital: as constantes e crescentes “metas”. A técnica, o tempo e o espaço se
metamorfosearam: sob a lógica da financeirização, a demolição dos direitos
do trabalho tornou-se exigência inegociável (ANTUNES, 2018; 2020).
Do mesmo modo, a terceirização, informalidade, flexibilidade, desem-
prego, desemprego por desalento e pauperização amplificada assumem
forma dramática no cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras. Do Japão
dos operários encapsulados aos ciberrefugiados que dormem nos cibercafés
para procurar um trabalho contingente no dia seguinte. Da Inglaterra para
o mundo se esparrama o “contrato de zero hora”, massificando o trabalho
intermitente e sem direitos. Na Itália assistimos à explosão do trabalho oca-

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sional, pago por voucher.
No Brasil, amplia-se o contingente de trabalhadores e trabalhadoras que,
à margem do mercado formal, veem-se obrigados a ganhar a vida com os
chamados “bicos”. A separação entre tempo de vida no trabalho e fora do tra-
balho, no contexto das formas “modernas” de escravidão digital (ANTUNES,
2018), tornou-se privilégio de poucos. A uberização do trabalho, presente nas
plataformas digitais e nos aplicativos, tem se convertido na marca das relações
de trabalho na contemporaneidade (ANTUNES, 2020).
Não por acaso, nas últimas décadas observamos a explosão dos casos de
adoecimentos relacionados ao trabalho. Chama especial atenção a incidência
das lesões por esforços repetitivos, os assédios, a fadiga extrema, a exaustão,
e sua correlação com o desgaste e adoecimento psíquico (MAENO, 2011;
SELIGMANN-SILVA, 2011; FRANCO, DRUCK E SELIGMANN-SILVA,
2010; PRAUN, 2016b: HELOANI, R., BARRETO, M. (2018). As altera-
ções vivenciadas no mundo do trabalho, que invadem a vida como um todo,
incidem negativamente, objetiva e subjetivamente, sobre a saúde daqueles e
daquelas que vivem do seu trabalho.

Considerações finais

As marcas do trabalho, impressas nesse mundo que construímos cotidia-


namente, evidenciam os descaminhos de nossa humanidade. Expressam-se,
conforme destacamos anteriormente, para a classe-que-vive-do-trabalho, em
uma vida submetida e marcada pelo sacrifício, pela exploração e privação,
pelas incertezas impostas tanto pelo desemprego, sempre à espreita, como
pelos frágeis laços do trabalho flexibilizado.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 119

Se a fábrica automotiva taylorista-fordista sofreu grandes transforma-


ções em sua forma espacial, organizacional e sociotécnica, alterando seus
instrumentos de controle do trabalho, com o advento do toyotismo e da acu-
mulação flexível e, mais recentemente, com o mundo informacional-digital,
pudemos presenciar, conforme salientamos anteriormente, a eliminação das
divisórias, a organização do trabalho em células/equipes/times de trabalho
(que propiciaram a introdução da multifuncionalidade e de polivalência), a
substituição do cronometro taylorista pelo sistema de metas (que intensificou
ainda mais a concorrência no interior do espaço produtivo). Essas alterações
são apresentadas, comparadas às da fábrica taylorista, com propiciadoras
de “mais participação” (ANTUNES, 2010). Mas, essa “maior participação”
visava a criar condições mais favoráveis para a desregulamentação e conse-
quente perda de direitos do trabalho, o que acentuou a precarização estrutural
do trabalho em escala global.
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Em sua dimensão subjetiva, no universo taylorista-fordista o exercício


do despotismo fabril era mais explícito e mais visível. Com o advento do
Toyotismo, da acumulação flexível e do trabalho digital, desenvolveram-se as
novas formas de organização e controle do trabalho, sob denominações como
“gestão de pessoas”, “colaboradores e colaboradoras”, “empreendedorismo”,
voltadas a intensificar as formas de alienação e coisificação, que foram mais
interiorizadas, com vistas a torná-las mais “voluntárias”, de modo a converter
os trabalhadores e as trabalhadoras em déspotas de si mesmos. Desse modo,
as novas engenharias da sujeição tornaram-se ainda mais complexificadas,
agudizando as formas de alienação e de estranhamento, através das flexibili-
zações, dos ganhos por produtividade etc. (ANTUNES, 2015).
Essas transformações, concomitantes ao avanço da privatização dos
serviços públicos e do desmonte dos direitos sociais, que extrapolam o
espaço e tempo de trabalho, estão na base da ampliação das desigualdades
sociais e da degradação da vida como um todo. Dar visibilidade a essas
contradições, desvelando a profunda mercantilização e descartabilidade
da vida humana sob o capitalismo, é sem dúvida um importante ponto de
partida para o desenvolvimento de práticas profissionais que sejam também
polos de resistência e mudança, capazes de participar da construção de uma
sociedade na qual as finalidades e sentidos do trabalho estejam voltadas
a redesenhar o mundo em direção a uma efetiva vida dotada de sentido. É
neste contexto que se insere nossa contribuição.
120

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GEOGRAFIAS DA REPRODUÇÃO
SOCIAL CRÍTICA: fraturas e fronteiras
em territórios periféricos durante a crise33
Thiago Canettieri
DOI: 10.24824/978652515286.8.123-148

A reprodução da vida nas periferias brasileiras é atravessada por adver-


sidades. Investigar a complexa trama da reprodução social nesses territórios é
fundamental para se compreender a dinâmica contemporânea da reprodução do
capital em crise e as dinâmicas sociais que se desenvolvem. O entendimento
do lugar que a periferia ocupa na reprodução das relações sociais capitalis-
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tas passa por ressaltar um caráter peculiar: uma “integração negativa”, isto
é, sua inserção na totalidade concreta do sistema do capital acontece pela
exclusão das formas básicas de sociabilidade do valor. Sua característica de
incompletude estrutural não é sinal de atraso ou de formas atávicas, mas é
parte necessária do moderno sistema produtor de mercadorias: precariedade,
informalidade, irregularidade e ilegalidade são condições necessárias para a
realização da forma-valor na periferia do capitalismo.
As periferias, enquanto espacialização das desigualdades sociais que se
manifestam nas contradições da urbanização, não são índices do atraso ou
do arcaísmo das economias subalternas, mas estão intrinsecamente conecta-
das com o desenvolvimento capitalista em sua escala planetária. A condição
de superexploração estrutural implicou a organização de certas estratégias
de reprodução social da população periférica que passava pela mencionada
complexa trama de ilegalidade, informalidade e precariedade. Esse cenário
tende a se agravar no atual contexto: o desenvolvimento da crise do capi-
tal significou o aprofundamento e a generalização da condição periférica
(CANETTIERI, 2020).
Este texto parte da realização de uma pesquisa de inspiração etnográfica34
e de anos de ativismo em periferias para analisar a vida cotidiana em territórios

33 Agradeço à Marina Paolinelli, Felipe Magalhães, Lourenço Morais e Taís Clark pela leitura e comentários
das ideias esboçadas neste texto. Naturalmente, equívocos, deficiências e exageros são de minha inteira
responsabilidade.
34 Estou convencido de que descrevo, ainda que em linhas gerais, processos sociais abrangentes, que
não se limitam apenas ao campo de minha pesquisa, realizado em Belo Horizonte, no âmbito do projeto
Disjunções e fraturas na periferia: sobre as fronteiras periféricas das metrópoles. Dessa forma, para a
segurança dos(das) meus(minhas) interlocutores(ras) e por julgar que não é o foco deste texto, eu optei
por omitir a localização da área do campo.
124

periféricos e as condições da reprodução social. A noção que orienta o texto,


“geografias da reprodução social” (GRAY, 2022), visa ampliar a discussão
presente na teoria da reprodução social desenvolvida pelo feminismo marxista
(BHATTACHARYA, 2017; FERGUSON, 2020). Com isso, ressalta-se não
apenas “qual” é a natureza do trabalho de reprodução, mas também “onde”
esse trabalho acontece, enfatizando a (re)produção do espaço nesse processo.
Em adição, darei ênfase à processualidade histórica do capital. O capitalismo
não pode ser compreendido como um processo sempre idêntico a si mesmo
em todos os lugares e ao longo do tempo, mas carrega em seu próprio desen-
volvimento elementos que são históricos. A fim de captar com maior precisão
a processualidade histórica do capital em seu momento contemporâneo de
crise, apresento a noção de reprodução social crítica35 como um aparato
categorial que dê conta dessa complexidade, isto é, que descreva a forma da
reprodução social no momento de crise.

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Desse modo, olhar para a periferia interessa sobremaneira. A periferia
foi o lugar em que a relação salarial não se consolidou completamente. No
atual contexto de crise, como escreve Gago (2018, p. 10), “o salário deixa de
ser garantia privilegiada da reprodução”. Analisar a dinâmica de reprodução
social na periferia, portanto, pode ser um meio para compreender os caminhos
do capitalismo como um todo36.
Se a noção de periferia ocupa um lugar de relativo destaque no campo
dos estudos urbanos (na geografia, no urbanismo, na sociologia, na economia,
entre outros), em muitos dos casos as publicações contemporâneas tratam
dessa noção de uma forma homogênea. Ainda que certos processos sociais
sejam, de fato, homogeneizantes, impondo uma forma única ao espaço, como
a disseminação da precariedade e a imposição da mercantilização, é importante
reconhecer a heterogeneidade que existe dentro das periferias (FELTRAN,
2011; 2014). Nas minhas inserções em territórios de periferia, chamou-me
atenção a diversidade de estratégias de reprodução que existem nesses ter-
ritórios, que produzem uma variedade de formas espaciais, ou, se preferir,
de geografias da reprodução social. No interior dos territórios periféricos,
existem diferenças, fronteiras, fraturas e disjunções que, quando consideradas
na análise, revelam muito sobre a vida cotidiana nesses espaços e, por con-
sequência, podem oferecer pistas para compreender a dinâmica social nesses
territórios. É interessante observar que, no nível da vida cotidiana, existe um
gradiente da condição periférica, que indica situações mais ou menos precárias

35 Aqui, como espero esclarecer ao longo do texto, refiro-me a forma histórica e espacialmente específica da
reprodução social sob um contexto de crise.
36 Segundo Roberto Schwarz (1999), a periferia se tornou um posto de observação privilegiado para com-
preender a dinâmica de desagregação do capitalismo global, como veremos adiante.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 125

(situação de fome, ausência de moradia, ou moradia com risco de alagamento,


ou remoção, por exemplo). Essa gradação da pobreza faz parte da gestão dos
conflitos e do funcionamento cotidiano das periferias37. Estar atento a essa
diversidade é fundamental para conseguir construir um quadro matizado da
realidade periférica. Essa constatação revela um cenário caleidoscópico que
deve ser levado em conta para o estudo da complexidade interna das periferias.
Como afirma Gray (2022, p.815), uma perspectiva baseada na composição
espacial tem como foco a diferenciação espacial que emerge do processo de
produção do espaço e os seus diferentes usos que se inter-relacionam. Por
fim, vale dizer que este texto propõe uma reflexão acerca das novas e velhas
estratégias de sobrevivência das classes populares em territórios periféricos.
Trata-se de centrar nosso olhar nas variações de distintas formas de sobreviver
na adversidade que estão se desenvolvendo nas periferias. A população perifé-
rica enfrenta essas condições de vida que produzem o caráter nebuloso como
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ainda são descritas as dinâmicas e estratégias da população que sobrevive na


adversidade produzida e reproduzida pelo capitalismo periférico-dependente
– em especial num contexto de colapso da modernização.

Formação e desconstrução do espaço periférico brasileiro

A formação do mundo do trabalho no Brasil aconteceu a partir de seu


engate subalterno e dependente na dinâmica do mercado mundial. O territó-
rio brasileiro se constituiu historicamente como um espaço para a expansão
capitalista explorar recursos naturais e força de trabalho a baixíssimos custos.
As formas “atrasadas” de reprodução garantiam a reprodução do contingente
para o exército industrial de reserva, e o baixo custo de reprodução da força
de trabalho, para o moderno sistema produtor de mercadorias. Segundo o
argumento de Oliveira (2003), existe uma “simbiose de contrários” entre rela-
ções “não capitalistas” e o próprio desenvolvimento capitalista. Essa dialética
garantiu a funcionalização das formas arcaicas de reprodução das pessoas para
manter os custos da reprodução do trabalho em um patamar muito rebaixado,
permitindo que a economia brasileira continuasse em crescimento.
O processo de modernização brasileiro assentou-se na reprodução das desi-
gualdades históricas. Isso porque inexiste nas periferias a condição de se integrar
à totalidade concreta do capital que não seja de forma negativa. Por isso, o próprio
desenvolvimento nacional teve que se apoiar na superexploração violenta, na
inclusão negativa e na disseminação da precariedade para boa parte da popula-
ção, mesmo que, cinicamente, o discurso de modernização tentasse apontar para

37 Ou seja, ainda podemos adotar o termo “periferia”, pois existem elementos homogêneos que conecta estes
lugares a um conceito. Todavia, periferia é um gênero para designar uma pluralidade de realidades e contextos.
126

o lado contrário. A miragem de inclusão na formação categorial propriamente


moderna do capital exigia uma anteposição legal prefigurativa que desse o molde
industrial. Segundo Anselmo Alfredo (2013, p. 100), a formalização das legisla-
ções de trabalho não pôde produzir a efetiva formação categorial da sociedade.
O processo de territorialização e aclimatação do capital cá nos trópicos
dependeu, portanto, de certas práticas para a gestão de uma parcela significa-
tiva da população que, supostamente, havia se tornado sujeitos monetários,
mas com as condições de sua existência monetarizada completamente barradas
pela própria constituição do mercado.
Nesse contexto, a noção de periferia, construída pela sociologia urbana
brasileira, cumpre um papel elucidativo importante, afinal, “as periferias
urbanas se desenvolveram no Brasil como o lugar dos trabalhadores pobres
e o lugar para os trabalhadores pobres” (HOLSTON, 2013, p. 197). Diante
de uma economia de espoliação (KOWARICK, 1979) e de um mercado de

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terras altamente restrito (MARICATO, 1979), as periferias afastadas se torna-
ram as áreas em que trabalhadores pobres e migrantes em busca de emprego
conseguiam se estabelecer. E só o conseguiam na base da autoconstrução
de barracos em terrenos que quase sempre eram ilegais e não dispunham da
maioria dos serviços e das infraestruturas urbanas. Oliveira (2003) carac-
teriza essa relação como um dos regimes de trabalho de exploração intensa
que permitiram o crescimento econômico brasileiro, o que o autor chamou
de “industrialização dos baixos salários”. Considerando que a indústria não
absorveu esses trabalhadores de imediato, a solução foi “transferir o custo
da moradia, conjuntamente aos gastos com transporte, para o próprio tra-
balhador” (KOWARICK, 1979, p. 35). Desta maneira, importa lembrar o
argumento de Alfredo (2013, p. 31), para quem a urbanização brasileira que
se constituiu pela expansão das periferias como locus de uma população
excluída, superexplorada e precarizada que “foi posta na socialização nega-
tiva do trabalho”.
O final do século XX foi marcado pelo fim de um ciclo desenvolvimen-
tista (SCHWARZ, 1999). Desde então, essa crise não deixou de se aprofundar,
acompanhando o desenvolvimento negativo da planetarização do capital.
Devido ao arranjo da produtividade em escala planetária, a periferia foi coa-
gida a se integrar aos índices da socialização burguesa pelo valor, a maioria
de sua população foi mantida de fora desses critérios. Com o aprofundamento
da crise, que tendeu a se tornar hegemônica, boa parte dos esforços da socie-
dade, escreve Menegat (2019), foram direcionados à construção de diques
de contenção da barbárie que fermentava nas periferias dos países periféricos
onde essa realidade sempre foi a regra.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 127

A crise, portanto, rompeu a associação – quase automática – que existia


entre “trabalho” e “progresso”38. Como argumenta Feltran (2011, p. 32-33), o
contexto dos anos 1990 e o começo dos anos 2000 indicou uma crise genera-
lizada: “crise do emprego formal, do trabalho, do projeto de ascensão social,
dos movimentos sociais, da família”. Roberto Schwarz (1999), ao olhar para
o “fim do século” brasileiro, percebeu que o país passava pelo que chamou de
“desagregação do desenvolvimento”. A sociedade não é mais regulada pelo
horizonte de expectativas de inclusão no mundo do trabalho. Agora se trata,
como nomeou Oliveira (2003, p. 164-166), de um “trabalho sem forma”. Essa
nova característica reconfigurou o mundo do trabalho. De um lado, a “revolução
molecular-digital” produziu um conjunto de trabalhadores “transformado em
uma soma indeterminada de exército da ativa e da reserva, que se intercambiam
não nos ciclos de negócios, mas diariamente” (OLIVEIRA, 2003, p. 136).
Hoje, no século XXI, a economia não promete mais nenhum emprego. Os
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sobrantes devem se virar de toda forma possível e imaginável para sobrevive-


rem. Boa parte da degradação social em curso no mundo hoje não é decorrente
da provada exploração capitalista, salienta Schwarz (1999, p. 194), “mas sim, ao
contrário, da ausência dessa exploração”. Como cunhou o nosso presidente-so-
ciólogo, trata-se de “inempregáveis”39 que estão concentrados nas áreas perifé-
ricas das metrópoles brasileiras. Assim, a população periférica vive de todos os
tipos de trabalho marginal, informal, frequentemente à margem da legalidade
e, não raro, exposta a toda sorte de periculosidade. Para a reprodução desses
grupos, diferentes estratégias de sobrevivência e reprodução são mobilizadas.
O atual estágio do “desenvolvimento” capitalista é marcado pela sua
crise imanente. A dinâmica tautológica do capital produz um enorme exce-
dente populacional que não é mais mobilizável para a valorização do valor40.
Essa é a razão para a generalização da precarização do trabalho, formais ou
informais (na verdade, parece haver um deslocamento do primeiro em direção
ao segundo41). É exatamente o esgotamento da sociedade salarial que produz
a miragem do otimismo da empregabilidade: contrata-se de forma cada vez
mais precarizada. Ou seja, a nova morfologia do trabalho é resultado da des-
substancialização do capital e de sua crise absoluta.

38 A bem da verdade, tanto a forma moderna do trabalho como o progresso propriamente dito nunca tenham
se estabelecido por aqui.
39 A expressão foi cunhada por Fernando Henrique Cardoso em 7 de abril de 1997: “O processo global de
desenvolvimento econômico cria pessoas dispensáveis no processo produtivo, que são crescentemente
‘inempregáveis’, por falta de qualificação e pelo desinteresse em empregá-las”.
40 Aqui sigo o argumento de Robert Kurz (2018; 2014; 1993) que demonstra como o movimento contraditório
do capital cria as barreiras e limites que bloqueia a valorização.
41 Esse movimento, por sua vez, foi assim sintetizado pelo então presidente-capitão: “a legislação trabalhista
vai ter que se aproximar da informalidade”. A frase teria sido dita em uma reunião com deputados no dia
12 de dezembro de 2018.
128

Se a reprodução social periférica se baseou historicamente em uma


“inclusão negativa”, que mantinha a noção de trabalho como um polo atrator
das expectativas e que dava régua e compasso para as relações sociais, a
virada do século XX para o século XXI fez a geração nascida nesse período
conviver com a realidade da crise. Seus modos de vida já foram conformados
pela presença dela (FELTRAN, 2011), o que obrigou a reconfiguração das
alternativas de reprodução social nas periferias, levando a uma atualização
das formas de se “sobreviver na adversidade” (HIRATA, 2017).
Vale ser ressaltado que, no contexto da reprodução social na periferia,
os limiares que separam “trabalho” e “reprodução” são borrados e confusos.
Diante da ausência de meios para garantir o próprio sustento para a família por
meio de empregos regulares, a casa da periferia, espaço da reprodução familiar,
é convertida em um espaço produtivo para complementação da renda e para
o autoprovimento de meios de reprodução da força de trabalho (MACHADO

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DA SILVA, 2018; RIZEK, 2010). Deve ser salientado que, nessa situação,
a esfera doméstica da reprodução do trabalhador só é aparentemente mais
afastada do domínio do capital. De tal forma, as periferias não são apenas
“dormitórios” para os trabalhadores que se deslocam até o centro, mas também
se apresentam como um território produtivo, só que incluído negativamente
na totalidade concreta do capital.

Crise, dissolução e precarização na periferia: um olhar para a


reprodução social

Bhattacharya (2018) define a reprodução social como o conjunto de ativida-


des e instituições necessárias para gerar vida, sustentá-la e garantir a sucessão de
gerações. A organização da sociedade para cumprir esse conjunto de atividades
é necessariamente histórica que se desenvolvem no interior das relações sociais
de produção. Trata-se de abordar diretamente formas sociais que não são for-
mas remuneradas de trabalho, mas que desempenham papel fundamental para
a reprodução de toda a sociedade. Por exemplo, mesmo o trabalho doméstico
feminino sendo condição para a existência do capitalismo (FEDERICI, 2018),
ele não é incorporado enquanto uma forma social propriamente capitalista, isto
é, não está no interior da forma social do trabalho. Para evitar mal-entendidos, a
noção de reprodução social possui um perímetro de abrangência superior à noção
de “reprodução de força de trabalho”, como aparece na teoria de Marx (2013).
Olhando para esse contexto, Roswitha Scholz (1996, p.18) argumenta que
as atividades de reprodução, mesmo estando fora das relações assalariadas,
não são estranhas à forma do valor. Se, por um lado, o conjunto das atividades
imputado às mulheres (administração do lar, educação dos filhos, alimentação,
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 129

“convívio social”, entre outras) é exterior à socialização do valor, por outro,


é um elemento intrínseco e determinado pela forma-valor. Dessa maneira,
Scholz explica que a constituição do valor tem uma origem dissociada, isto
é, uma natureza sexualmente específica.
Partindo da formulação de Scholz e assumindo-a como um esquema analí-
tico pertinente para a crítica do capital, sugeri, em outros escritos (CANETTIERI,
2020), que a forma do valor não é decorrente apenas da dissociação sexual, mas
também de uma dissociação espacial. Com isso, meu interesse está em apontar
que a reprodução social tal qual ocorre nas periferias é, simultaneamente, uma
condição necessária para a reprodução ampliada do valor e uma forma que
ocorre fora dos marcos da socialização do valor. Dessa maneira, as atividades
de reprodução social indicam que a penetração da dominação pela forma do
valor42 “deixa de ser um momento exclusivo da relação capital-trabalho para
se confundir com a própria reprodução da vida” (CANETTIERI, 2020, p. 78).
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Essa forma determinada de produção do espaço e reprodução da vida está


submetida à socialização pelo valor. Como assevera Henri Lefebvre (2014),
é no âmbito da vida cotidiana que se reproduzem as relações sociais de pro-
dução, isto é, a própria reprodução do capitalismo – entretanto, a reprodução
do capitalismo não é a sua constante reposição. Como vimos, sua dinâmica
desmedida é propensa ao aprofundamento de sua crise imanente.
Isso significa pensar a processualidade histórica da forma do valor. Em
seu momento contemporâneo, marcada pela crise absoluta (KURZ, 2014),
como a dissociação espacial do valor se manifesta? Vimos, na seção anterior,
que a penetração da forma social do capital no Brasil produziu o efeito de
organizar toda a sociedade de acordo com suas premissas, ainda que a maior
parte da população não conseguisse passar pelo buraco de agulha dessa forma
social. Ainda, o contexto de crise contemporânea erode ainda mais essa forma
social, ao mesmo tempo em que a perpetua, de forma fetichista, como critério
de socialização, representando um novo conteúdo para a dissociação espacial
do valor (CANETTIERI, 2020).
A reprodução social em territórios periféricos, nesse contexto, já não
ocorre como pressupôs a teoria mais tradicional, criando uma espécie de espan-
talho sempre idêntico do capital: “vender seu tempo de trabalho por um preço;
incorporar seu tempo de trabalho nas mercadorias; consumir mercadorias”
(PERMAN, 1970, p. 347 – tradução minha). Como argumentei anteriormente,
o contexto contemporâneo é marcado por uma crise do capital que produz
uma dissolução das formas sociais historicamente constituídas. A dinâmica
da reprodução social contemporânea das periferias ocorre majoritariamente

42 Tenho em conta a teoria de Postone (2014), para quem o conceito de valor em Marx cumpre a função de desig-
nar uma forma especificamente moderna de dominação social abstrata que se exerce por meio do tempo.
130

por intermédio de uma série de “gambiarras”, “virações” e de uma complexa


malha de práticas sociais que ultrapassam a socialização do valor, mas ainda
estão submetidas ao seu imperativo decadente, isto é, completamente mone-
tarizadas. Diante da inexistência de garantias da reprodução social baseada
na socialização do valor, a classe trabalhadora encontra formas de garantir
essa reprodução, ainda que de maneira precária: a reprodução social crítica.
Numa dinâmica social desse tipo, trata-se de reconhecer a forma de desig-
nação da expressão negativa da totalidade concreta do capitalismo sob a qual
ocorre a inserção de uma determinada população na periferia do capitalismo. A
precariedade, não só a laboral43, comporta hoje um amplo espectro de situações
nas quais os sujeitos se encontram nesse momento do colapso da modernização.
Nessas condições, a destruição e decomposição das formas sociais historicamente
constituídas faz aparecer formas regressivas e precárias de reprodução da vida.
A vida cotidiana assume a forma que o movimento estrutural, em sua

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contradição própria, produz (LEFEBVRE, 2014). Sendo assim, se a crise
do capital se aprofunda, é coerente conceber que as dinâmicas de repro-
dução social se alteram.
A reprodução social periférica no contexto de crise não se restringe
apenas à reprodução da força de trabalho, mas é uma forma de reprodução
social crítica que já não é mais absorvida pelos circuitos produtivos como
força de trabalho. Entretanto, ao mesmo tempo, por um lado, o imperativo da
reprodução fictícia do capital se impõe a essas pessoas; por outro, o critério
da socialização do valor, mesmo erodido, ainda se perpetua como índice de
sociabilidade. É até esse entremeio conflituoso, complexo, que a análise crítica
deve descer: o terreno oculto da reprodução social periférica.

Geografias da reprodução social crítica nas periferias

Na “viração”, na “correria”, entre uma “fita” e outra, pulando de “bico”


em “bico”, de “frila” em “frila”, “batalhando” e “lutando” para sobreviver:

43 Faço essa ressalva porque boa parte da produção intelectual que se vale dessa categoria a utiliza para
analisar o mundo do trabalho. Embora tenha contribuições relevantes para conhecer essa realidade, não a
utilizo aqui no mesmo sentido. Meu interesse é enfocar um amplo processo social de decaimento das condi-
ções de vida que são impedidas de serem acessadas e desenvolvidas pela maioria dos indivíduos expulsos
das formas básicas de sociabilidade capitalista. Assim, não é do meu interesse tratar a precariedade como
faz Ruy Braga (2017), ao entendê-la como uma “dimensão intrínseca ao processo de mercantilização do
trabalho” a partir da definição de um patamar de renda, tampouco uso o termo restrito à perda de direitos e
inovações jurídico-legais que intensificam a exploração do trabalho, como faz Antunes (2018). Da mesma
maneira, não é meu interesse seguir o trabalho de Guy Standing (2013), que entende a precarização como
a condição de um emprego incerto, de baixa renda e com baixos níveis de segurança e como uma falta de
identidade segura baseada no trabalho. Meu interesse no uso da expressão precariedade é designar uma
condição específica, embora presente desde muito tempo na periferia, que marca a reprodução material
da vida em diferentes graus de intensidade e de diferentes maneiras.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 131

assim é a reprodução social crítica nas periferias. Trata-se, na expressão de


Denning (2010), de uma “vida sem salário”44. Essa prática de reprodução
na periferia do capitalismo envolve a mobilização de diferentes estratégias
que transitam nas tênues fronteiras entre o legal e o ilegal, entre o formal e o
informal (TELLES, 2011).
Essa realidade descrita possui no Brasil um profundo recorte de raça.
Como é ressaltado nos importantes escritos de Clóvis Moura (2019, p.30), o
desenvolvimento nacional se baseou na constituição de vários “[...] mecanismos
de barragem étnica que foram estabelecidos historicamente contra ele [o negro
urbano brasileiro] na sociedade branca”. Trata-se de um bloqueio que impede
a inclusão social e o reconhecimento do negro como um sujeito portador de
direitos através de “inúmeros mecanismos e subterfúgios estratégicos” que
coloca “essa grande massa negra [...] como o rescaldo de uma sociedade que
já tem grandes franjas marginalizadas em consequência da sua estrutura de
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capitalismo dependente, é rejeitada e estigmatizada” (MOURA, 2019, p. 31).


Práticas de reprodução social para além do momento exclusivo do traba-
lho assalariado se desenrolam historicamente nas periferias. Kowarick (1979)
ressalta as várias práticas de solidariedade e reciprocidade em atividades
reprodutivas na periferia, a maioria desempenhadas por mulheres. Iniciativas
como apoio familiar, participação em mutirão de autoconstrução, produção
de hortas coletivas são algumas dessas iniciativas. De maneira sintética, essas
formas de reprodução correspondem, segundo Machado da Silva (1982, p.
95), “a um momento de intensificação da exploração, uma de cujas caracte-
rísticas é justamente a ausência da atividade mediadora do Estado”. Ou, mais
precisamente, não raro a ação do Estado produz efeitos de agudizar ainda mais
a condição de precariedade que as camadas periféricas estavam submetidas.
Ainda que esse cenário sofresse uma relativa transformação no contexto
da redemocratização brasileira, com uma significativa – porém insuficiente
– expansão do Estado como provedor de políticas públicas em direção às
periferias, boa parte dessa intervenção não implicou em uma redução signi-
ficativa nos abusos e restrições que a população periférica sofre. Marca disso
é exatamente a presença violenta do Estado nesses territórios por meio do seu
braço armado (RICHMOND et al. ,2020).
Essa forma histórica e espacialmente específica de reprodução social se
desenvolve exatamente no momento de impossibilidade da sociedade salarial
que, decorrente das contradições do capital, se torna bloqueada e não conse-
gue se efetivar. Gago (2018) apresenta a noção de “pragmática vitalista” para

44 Sobre isso, deve–se ter em conta o que escreve Denning (2010, p.79 - tradução minha): “No capitalismo,
a única coisa pior do que ser explorado é não ser explorado. Desde os primórdios da economia salarial, a
vida sem salário tem sido uma calamidade para aqueles despossuídos dos meios de subsistência”.
132

designar a forma de reprodução da vida social que ocorre sem a mediação das
instituições modernas tradicionais, isto é, uma forma de vida que se desenvolve
às margens do Estado, do trabalho, do sindicato, da igreja, do partido, da assis-
tência social. A autora insiste, apesar de existir sem a mediação das tradicionais
instituições, que a pragmática vitalista das populações periféricas negocia os
limites de sua atuação, validade e legitimidade com essas instituições, relacio-
nando-se com elas. Desse modo, criam-se dinâmicas de reprodução social que
são próprias da atual fase do capitalismo. Também inspirada por Gago (2018),
Isadora Guerreiro (2020, s.p.) nota que essas são “dinâmicas de sobrevivência
que atravessam (ou não) o mundo do trabalho, mas não se detêm nele, não se
conformam (pois, afinal, ficam “sem forma”) por suas determinações internas”.
Contudo, nota-se que a erosão do regime de normatividade das institui-
ções tradicionais não leva à superação de uma vida baseada no dinheiro, afinal,
o capitalismo logrou transformar a todos em sujeitos monetários – mesmo que

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sem dinheiro (KURZ, 1993). Isso significa que a capacidade de reprodução
continua dependente da circulação monetária. Todo o rearranjo na constelação
da reprodução social continua sendo determinado pela monetarização, isto é,
com o dinheiro desempenhando papel fundamental na dinâmica da media-
ção e dos conflitos sociais. Cada vez mais ocorre monetização das relações
cotidianas e vicinais nas periferias. Gabriel Feltran identifica que nas perife-
rias coexistem diferentes normativos e o que garante a coexistência coesa é
exatamente a circulação de dinheiro: “o dinheiro aparece como único modo
objetivo de mediar suas relações” (FELTRAN, 2014, p. 508).
Na ausência de uma fonte segura de dinheiro, como a do trabalho estável
prometido pela sociedade salarial, as pessoas nas periferias se envolvem com
qualquer atividade que possa gerar acesso ao dinheiro necessário para a sua
própria reprodução. Essas atividades contingentes e dispersas, atravessam
expedientes legais e ilegais, percursos descontínuos no mercado de trabalho,
com uma tentativa de empreendimento aqui, uma associação político-par-
tidária ou religiosa ali, a mobilização da propriedade da terra para extrair
renda, o endividamento familiar, entre outros. Boa parte dessas “saídas de
emergência” para a reprodução social são entendidas pelos sujeitos periféricos
como uma válvula de escape tanto do desemprego como do próprio trabalho
ultraprecarizado repleto de situações de assédio.
Sem pretender uma descrição exaustiva dessas práticas, apresento algu-
mas que, de minha perspectiva, podem ser organizadas como parte desse pro-
cesso e que ocupam papel destacado na dinâmica da reprodução dos territórios
periféricos no contexto da crise. São práticas conhecidas da periferia, mas que
ganham novos conteúdos: i.) o trabalho de viração; ii.) o assistencialismo de
crise; iii.) o microempreendedorismo; iv.) o endividamento de baixa renda;
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 133

v.) o rentismo periférico; vi.) os ilegalismos populares; vii.) o associativismo


popular. Todos esses elementos formam uma constelação de práticas para
sobreviver na adversidade que podem ser combinadas de complexas maneiras.
Contudo, importa ressaltar que essa divisão é utilizada aqui por um motivo
analítico. Na realidade observada em campo, as relações são muito mais
imbricadas, formando uma constelação de estratégias de reprodução para
enfrentar o mosaico de adversidades.

Trabalho de viração

A condição precária do trabalho apresenta uma certa permanência histó-


rica na dinâmica da sobrevivência periférica. Ludmila Abílio (2021) percebeu
que essa é uma prática social recorrente na periferia. A formalização do tra-
balho nunca ocorreu com ampla abrangência nos territórios periféricos. Os
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processos recentes de ampliação e generalização da precarização do trabalho


atingem com maior força a periferia – isto é, aqueles que ainda possuem algum
trabalho. Na verdade, a realidade mais comum é exatamente o desemprego
(RIZEK, 2006).
Nessa condição de uma vida sem salário fixo e estável, a saída encon-
trada por muitos é se virar entre um bico e outro. Abílio (2018) chamou
esse processo de subsunção real da viração. No sentido dado pela autora,
a viração é a ausência de uma identidade profissional estável, definida e
reconhecida. A reprodução material da vida está determinada por instáveis
oportunidades de trabalho que garantem a sobrevivência. Trata-se de um
constante trânsito entre atividades formais temporárias e informais intermi-
tentes, atravessando diferentes atividades ocupacionais que se combinam
dentro do tempo de cada família ou indivíduo, funcionando como uma forma
de acessar os recursos para garantir sua própria reprodução (MACHADO
DA SILVA, 2018).

Assistencialismo de crise

Destaca-se, na dinâmica de reprodução social periférica, a integração


de programas de assistência social dos governos e ações de solidariedade
de diferentes entidades – como igrejas, ONGs e movimentos sociais. Ainda
que reflitam práticas com interesses bem diversos, faz sentido aproximá-las
em uma confluência importante: uma forma de suporte assistencial para a
reprodução social num contexto de crise.
Há, de um lado, as políticas assistenciais do Estado – cada vez mais
focalizadas e, não raro, cada vez mais dilapidadas pelo neoliberalismo. De
134

outro, há o processo de “onguização dos atores locais” (RIZEK, 2006), tanto


da igreja como do movimento social, que se reduz ao provimento de itens
mais básicos, condição da assistência em uma era de emergência. Ambas
as dinâmicas fazem parte de estratégias de sobrevivência para conseguir
acessar recursos necessários para a reprodução: uma forma de desvio para
a constituição do chamado “salário indireto”, afinal, esses percursos “pouco
ou nada têm a ver com o trabalho assalariado e seus conflitos” (RIZEK,
2006, p.51).
Há as igrejas (sobretudo neopentecostais) que desempenham um funda-
mental papel na “seleção da miséria”, entendida como uma estratégia local
mobilizada por lideranças informais que estabelecem critérios pouco claros
e arbitrários para definir prioridade no recebimento das doações (VERDI,
2022). Na periferia, são muitos aqueles que não possuem nada e vivem em
situação de penúria. Dessa maneira, a ação de “fazer solidariedade” aparece

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como uma importante função na comunidade. Muitas pessoas dependem de
iniciativas como essa para sobreviverem. Como Ribeiro (2017) esclarece, as
igrejas (neo)pentecostais organizam formas de satisfazer necessidades obje-
tivas entre os seus membros, como grupos com informações e indicações de
emprego, doação de alimentos e remédios, ou ajuda financeira direta para
pagar certas contas, como uma “circulação de benefícios” que só é constituída
pelos vínculos estabelecidos internamente com a Igreja.
Também há os movimentos sociais, associações e cooperativas que desem-
penham papel no provimento do assistencialismo de crise. Essa presença na
reprodução material das pessoas é acompanhada da contrapartida de uma maior
adesão. Isadora Guerreiro (2022) chama esse processo de extrativismo político.
Em todos os casos, seja pela assistência social, seja pela exploração
comunitária, ou ainda pelo extrativismo político, o assistencialismo de crise
desempenha papel preponderante na organização da reprodução das classes
populares contemporâneas.

Microempreendedorismo

Outra forma de atuação parece figurar nas periferias contemporâneas:


o microempreendedorismo. Daniel Giavarotti (2018), estudando a região do
Jardim Ibirapuera e suas imediações, observou entre seus interlocutores de
segunda ou terceira geração (nascidos no bairro) a lógica empreendedora.
Há uma espécie de “apropriação” da infraestrutura produzida pela primeira
geração que ocupou o bairro. Em geral, trabalhadores (mesmo que precários)
conseguiram autoproduzir a própria moradia e melhorá-la com o tempo, e
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 135

esses moradores pioneiros, por meio da auto-organização, conquistaram a


permanência no local.
Costa (2022) ressalta que o microempreendimento popular é uma recor-
rente resposta para “ganhar a vida”. Ao mesmo tempo, reforça e é reforçado
pela subjetividade concorrencial individualista. Torna-se, assim, uma aspi-
ração das classes populares para se engajarem na batalha de empreender. Na
definição do autor, entende-se o microempreendimento como constituído
por continuidades e mudanças de práticas residuais da economia popular
penetradas por tendências e discursos que conformam a lógica cultural do
capitalismo contemporâneo. Ele se posiciona “na interseção entre a ética indi-
vidualista do trabalho por conta própria e do pequeno comércio tradicional,
de um lado, e a utopia libertadora prometida pelo discurso empreendedor
mais moderno entre outros” (COSTA, 2022, p. 42), sem deixar de produzir
tentativas de acomodação, contradições, tensões e conflitos na relação entre
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as duas dimensões.

Endividamento de baixa renda

Na década de 1990 e na primeira década do século XXI, observou-se a


expansão do sistema de crédito na direção das periferias. Os bancos organi-
zaram novas estratégias para aumentar seus resultados financeiros e optaram
pela construção do mercado de crédito aos mais pobres, gerando novas for-
mas de concessão de empréstimos e ampliando o acesso ao cartão de crédito
(SCIRÈ, 2011). Deve-se ressaltar que a política pública de assistência social
também promoveu a “bancarização” do pobre. Os benefícios, movimentados
apenas por meio dessas instituições, obrigaram uma massa de periféricos a
utilizar esse serviço – e mais alguns, anexados aos benefícios por iniciativa dos
próprios bancos. Ana Sylvia Maris Ribeiro (2015) explica que essa facilidade
de acesso ao crédito permitiu a ascensão de diversos Microempreendeores
Individuais (MEI). A autora revela que muitos desses negócios só podem ser
abertos com a obtenção de créditos, empréstimos e outras “financeirizações”.
Isso contribui para a criação de um “capital fictício” que financia um mercado
futuro e incerto de relações trabalhistas comerciais. Dessa forma, cada vez
mais pessoas se tornam “empreendedoras da própria força de trabalho”, cons-
tituindo uma relação que reforça a produção do chamado “capital fictício”.
A lógica dessa “reprodução social fictícia” (GIAVAROTTI, 2018), isto
é, baseada no endividamento, implica uma mudança radical na forma pela
qual as pessoas, sobretudo as populações periféricas, lidam com o dinheiro:
a gestão da renda baseada no esquema poupança-consumo foi substituída por
136

outro esquema: “crédito-consumo-dívidas”, com a poupança substituída pelo


consumo imediato garantido pelos cartões de crédito.
O endividamento de baixa renda, em curso nas periferias, atende a diver-
sas demandas do setor popular diante da incapacidade de essa população ser
explorada em troca de um salário devido ao enorme desenvolvimento das for-
ças produtivas. Em primeiro lugar, o próprio consumo das famílias. O acesso
aos bens de consumo necessários para a reprodução social aparece mediado
pelo endividamento como uma condição necessária, afinal, o crédito é, nesse
caso, promessa de consumo. Em segundo lugar, esse é o meio de alavancagem
para lançar um microempreendimento. A compra de equipamento ou estoque
e as reformas necessárias só são possíveis por meio da assunção de dívidas.

Rentismo periférico

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Terra e imóvel são frequentemente mobilizados para a reprodução
social em situação crítica nas periferias. Marina Paolinelli (2022; 2023)
analisa essa forma de reprodução social em sua pesquisa45. A pesquisadora
desenvolve o argumento que a propriedade periférica é mobilizada pelas
classes populares como uma estratégia de reprodução a partir, sobretudo,
do mercado informal e popular de aluguéis, que constitui parte considerável
das pessoas que vivem em situação de déficit habitacional (PAOLINELLI,
2023). Esse processo, destaca Paolinelli (2023), tem raízes antigas: Nabil
Bonduki e Raquel Rolnik (1979, p. 67) demonstram que “grande parte
dos trabalhadores não possui condições para a compra de um lote e para
a edificação”. Assim, instaura-se nas periferias um mercado de aluguéis
com uma destacada importância na dinâmica da reprodução social dessas
pessoas. Do ponto de vista do proprietário periférico, que constrói casas
para alugar, significa “uma das únicas e a mais frequente forma de inves-
timento possível, dentro de suas possibilidades, que acrescenta uma renda
suplementar ao seu salário e que não está sujeita a oscilações existentes
devido à instabilidade no emprego” (BONDUKI; ROLNIK, 1979, p. 68). Os
autores percebem que frequentemente a construção das moradias em áreas
periféricas, a esmagadora maioria das vezes por regimes de autoconstrução,
envolve a construção também de casas para aluguel46.

45 Apesar de Paolinelli (2023; 2022) utilizar a expressão rentismo de baixo, apoiando-se, sobretudo, na ideia
de uma “neoliberalismo de baixo” apresentada por Gago (2018), aqui utilizo a expressão rentismo periférico
para dar ênfase ao rentismo que se desenvolve no interior da periferia.
46 Bonduki e Rolnik (1979) descrevem alguns casos que antes mesmo da casa do proprietário apresentar
qualidade de habitabilidade, algumas famílias empreendem na produção de imóveis para alugar, pois é
uma fonte primordial de acesso a recursos.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 137

A propriedade de um imóvel, descreve Paolinelli (2023), mesmo infor-


mal e sem validade jurídica, parece ser uma pertinente forma que os grupos
periféricos encontraram para garantir uma renda [income] a partir da apro-
priação de uma renda fundiária [land rent] advinda da propriedade privada
(informal) de um imóvel periférico. Há uma miríade de processos para fazer
com que isso se viabilize: um primeiro tem a ver com o uso intensivo do
lote, com a construção de barracões de fundo ou com a edificação de outros
andares; há também a forma de manifestação do rentismo periférico pelo
acesso a novos terrenos, com essas pessoas indo ocupar novas fronteiras de
expansão urbana; ainda pode ocorrer a formação de um “rentista” de pequeno
porte por intermédio da compra e da retenção de imóveis visando alugá-los.
Apesar dessa forma permanente, observa-se que algumas mudanças têm
ocorrido no padrão do rentismo periférico. O padrão de relacionamento de
alguns proprietários periféricos que alugam moradia (nas suas mais variadas
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formas) se alterou, fortalecendo essa tendência do rentismo periférico. A mora-


dia alugada, portanto, parece ser uma condição necessária para a reprodução
da vida de parcela considerável nas periferias: do ponto de vista do inquilino,
que se encontra saltando de viração em viração, já não se vislumbram as con-
dições de adquirir uma casa própria pela compra; mesmo o ato de ocupar é
limitado pelos altos custos para arcar com a construção. Do ponto de vista do
locatário, o aluguel que recebe é uma importante complementação de renda
para a família (PAOLINELLI, 2022).
Atualmente, o que se identifica é a produção da escassez de novas terras
periféricas, alterando a dinâmica de disputa pelo acesso a elas (GUERREIRO,
2020, s.p.). Segundo Isadora Guerreiro (2020), resultados de pesquisas recen-
tes indicam que a população nas periferias brasileiras está mudando, indicando
uma tendência de “inquilinização” das periferias. Isso é resultado de um
processo de crise social generalizada que restringe os recursos das famílias
periféricas e limita o acesso à moradia.

Ilegalismos populares

Nas periferias, existe um complexo arranjo de ilegalismos populares que


garantem a reprodução de parte da população periférica e é gerido por meio de
negociações tácitas com os diferentes grupos que intervêm e atuam nas perife-
rias. Gabriel Feltran (2011) em suas inserções etnográficas, percebe a expansão
do mundo do crime como uma referência social nas periferias decorrente de
uma profunda transformação: o que funcionava como pilar fundante da dinâ-
mica social das periferias em seu período de formação, nas décadas de 1970
138

e 1980, ruiu. As periferias eram um espaço de relações sociais estruturadas


pela categoria trabalho, pelas ações coletivas populares, pela dominância da
moral católica, pela centralidade da família e por sua perspectiva de ascensão
social. Todas essas esferas mantinham a coesão interna desses ambientes e se
confrontavam com o mundo do crime. Entretanto, atravessa-se um momento
de crise – crise do emprego formal, do trabalho, do catolicismo, do projeto de
ascensão social, bem como dos movimentos sociais – dentro da qual o modo de
vida dos jovens foi conformado: o trabalho é incerto e, quando há, é precário.
Portanto, as saídas criminosas parecem mais plausíveis e o regime normativo
do mundo do crime mais aceito, pois é uma alternativa de reprodução social
para os sujeitos periféricos. Feltran (2011) argumenta que, apesar dos matizes
(que vão de um pai de família que abomina o tráfico ao próprio tráfico enquanto
tal), a figura do bandido cumpre, atualmente, a função de garantir a coesão
social num tecido esgarçado. Existe, agora, uma maior amplitude da circulação,

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interna às periferias, de um marco discursivo próprio do mundo crime que
disputa os espaços de legitimação nas formas de sociabilidade.
Vera Telles (2011) chama atenção que essa “nova economia política
dos ilegalismos” está relacionada com a integração econômica globalizada
que reconfigura as relações entre legalidade e ilegalidade para além de uma
dicotomia. É nessa “transitividade entre o universo da lei e o mundo do crime
que se compõem as microrregulações da vida cotidiana” (TELLES, 2011, p.
367). Apesar dessa conectividade, ela não ocorre sem conflitos. Com base
na análise de um arranjo familiar que combina entre seus membros “traba-
lhadores” e “bandidos”, Feltran (2011) demonstra as tensões que emergem
dessa organização – ambos os lados trocam ofensas e desconfianças uns em
relação aos outros. A unidade se dá por um balanço: de um lado, os filhos
trabalhadores sustentam a estrutura do grupo simbolicamente, enquanto os
filhos “bandidos” garantem o sustento material.
Por fim, há algo a ser dito das organizações criminosas. Elas fun-
cionam como verdadeiros hubs do agenciamento criminal, promovendo a
unidade nas periferias por meio das formas de solidariedade e cooptação
produzidas no seu interior (FELTRAN, 2011). O crime organizado possui a
legitimidade de se constituir como gestor da vida periférica, apresentando
regras de conduta claras, redes de acesso a mercadorias, serviços e favores
e o estabelecimento de uma rede de confiança e segurança. No final das
contas, as organizações criminosas operam como organizadoras de parte
da vida social periférica.
A economia dos ilegalismos populares se conecta com a “economia em
geral”. Feltran (2014) mostra muito bem como o dinheiro não tem problema
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 139

algum em circular por diferentes regimes normativos, dando coesão onde


existe conflito. Os pobres são mobilizados por essa economia, seja como
clientes, consumidores, operadores, produtores ou intermediários, garantindo
o ciclo das mercadorias ilegais.

Associativismo popular

A ação coletiva dos movimentos populares é uma estratégia conhecida


no Brasil e muito importante no processo de urbanização brasileira (CAL-
DEIRA, 2017; HOLSTON, 2013). Trata-se de uma forma de produção do
espaço urbano realizada pela iniciativa popular, que se baseia em iniciati-
vas coletivas, auto-organização e nas atividades cotidianas dos moradores
(MARICATO, 1979). O associativismo popular em territórios periféricos
pode assumir diferentes formas: movimentos sociais, associações de mora-
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dores ou de bairro, cooperativas, coletivos e grupos. Ou seja, designa uma


coletividade organizada e autorregulada com objetivos compartilhados que
agem coletivamente.
Por meio de diferentes formas de mobilização populares e de ações polí-
ticas, os pobres urbanos conquistam direitos e melhoram suas condições de
vida. Ônibus, água e esgoto encanado; energia elétrica; asfaltamento; além dos
equipamentos públicos, como escola, posto de saúde, centro de referência da
assistência social, entre outros, são importantes elementos para garantir a repro-
dução (CALDEIRA, 2017). Por exemplo, o associativismo popular desem-
penha papel fundamental no provimento das redes materiais que facilitam a
circulação de pessoas, bens, energia, água, resíduos e informações, garantindo,
dessa forma, efetivamente, o melhoramento das condições de reprodução social.
As estratégias são variadas: pressão na prefeitura; marchas até a região
central; abaixo-assinados; reuniões com representantes do poder público,
entre tantas outras. Com essa pressão, é possível conquistar as melhorias do
local, frequentemente repleta de conflitos.
A presença dos movimentos sociais tem, contudo, maior abrangência
do que o provimento de infraestrutura. Eles envolvem uma série de ações
comunitárias como cursos (de formação política, cursinhos pré-vestibular,
de profissionalização), rodas de debate e discussão, formas de recreação,
grupos de mulheres e antirracistas, hortas comunitárias, entre tantas outras.
Essas iniciativas servem para fortalecer a consciência de classe em territórios
populares e ampliar a solidariedade em momentos de crise47.

47 Importante destacar as diversas ações de solidariedade ocorridas em territórios periféricos durante o período
mais intenso da pandemia de covid-19. Conferir, sobre isso, Canettieri (2021).
140

A presença das formas de associativismo popular, portanto, pode ser


compreendida como uma forma, que possui uma enorme importância, de
garantir a reprodução social em áreas periféricas. Essas ações incidem na pres-
são às instâncias institucionais, em formas de ação direta de autoprovimento
de serviços e infraestruturas e em ações de práticas cotidianas de reprodução
(PAOLINELLI; CANETTIERI, 2019). As várias formas do associativismo
popular garantem às famílias periféricas uma forma de acessarem condições
de vida por meio de diferentes estratégias, mobilizando diferentes recursos,
mas, em geral, dependendo da organização coletiva.

Fraturas e fronteiras periféricas na reprodução social crítica

O conjunto de práticas de reprodução social crítica nas periferias forma


uma constelação de estratégias para o enfrentamento do mosaico de adver-

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sidades que marca o cotidiano dessas populações. Designo essa complexa
realidade como “fraturas periféricas” que, mesmo disjuntas, formam as bases
da reprodução de centenas de milhares de pessoas em todo o Brasil. Embora
a exposição aqui realizada tenha delimitações estanques, como dito, isso
não ocorre na realidade. Existem “fronteiras” que separam esses regimes
normativos e de legitimidade, no entanto, como é da natureza das fron-
teiras, as pessoas atravessam-nas com frequência. Uma pessoa tem tão ou
mais condições de se reproduzir materialmente quanto sua capacidade de
navegar por esses regimes normativos e de legitimidade, compreendendo
seus códigos e suas práticas, mobilizando-os de acordo com cada situação
(BERALDO, 2022). Vera Telles (2011) nomeou esse procedimento de “arte
do contornamento”, que envolve uma inteligência prática, desenvolvida nas
experiências cotidianas, e um senso de oportunidade como condição de garan-
tir a reprodução dia após dia.
As formas de reprodução social crítica descritas aqui se misturam com
frequência. Trata-se de estratégias que as pessoas mobilizam e desmobilizam
constantemente a depender do contexto. Por exemplo, a forma do rentismo
periférico é utilizada recorrentemente por redes criminosas objetivando a
capitalização e alavancagem de suas atividades ilegais (SIMONI, 2020).
Ou então, vale lembrar que, para iniciar um microempreendimento, muitas
famílias se veem obrigadas a contrair dívidas para poderem ter alguma
expectativa de começarem a ganhar dinheiro (GIAVAROTTI, 2018). Impor-
tante destacar ainda que é relativamente comum que os “bicos” aos quais
as pessoas em condição de viração se envolvem estão, em alguma medida,
conectados às dinâmicas do assistencialismo de crise de ONGs, dependendo
de editais e recursos estatais (COSTA, 2022). Não carece de destrinchar
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 141

cada uma das combinações possíveis: as variações são praticamente infi-


nitas. O que interessa é ressaltar o aspecto complexo das disjunções peri-
féricas, constantemente (re)combinadas para garantir a reprodução social
crítica. Ou seja, a reprodução social crítica opera nas fronteiras, muitas
vezes indiscerníveis, entre vários regimes normativos e de legitimidade,
envolvendo um complexo arranjo de aparatos e instituições, formais e infor-
mais. A constelação de estratégias mobilizadas para a reprodução social
das populações periféricas está intrinsecamente conectada ao momento
contemporâneo da reprodução do capital que atinge seu limite interno e
absoluto, agravando a crise.
Com o aprofundamento da crise, as dimensões da reprodução material
da vida passam por uma reconfiguração. As formas contemporâneas de
reprodução ativam circuitos econômicos que transitam nas incertas fronteiras
do informal e do formal, do ilegal e do legal, do ilícito e do lícito. Importa
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destacar que todas essas linhas se entrecruzam nas práticas sociais da peri-
feria, penetram a economia doméstica e a circulação das mercadorias e o
jogo social se faz a partir da conexão – não sem tensões e choques – com
outros circuitos e regimes normativos que se embaralham. Interessante frisar
que as estratégias para sobreviver na adversidade envolvem composições
complexas, legitimadas pelas práticas de vida cotidiana dos grupos perifé-
ricos. Para sobreviver na adversidade da periferia, é preciso desenvolver
uma combinação de estratégias e articulá-las de modo a aumentar sua efi-
ciência de sobrevivência. Ao mesmo tempo, todavia, essa situação acaba
reproduzindo e atualizando desigualdades históricas que são incorporadas
ao atual momento do capital: basta pensar como as formas de exclusão
racial de uma sociedade racista e a permanência da violência de gênero de
uma sociedade patriarcal são constantemente incorporadas e amplificadas
no contexto de crise48.
Não é possível ignorar o fato de que essa reprodução está, muitas vezes,
restrita a fazer uma gestão da miséria. Por meio dessas estratégias de repro-
dução social crítica, a vida cotidiana em um contexto de formas sociais
decadentes continua se reproduzindo. Dessa maneira, ocorre a mercantili-
zação de todas as relações sociais e momentos da vida cotidiana, mas num
sentido diferente do ressaltado por Henri Lefebvre (2014). Já não ocorre
uma dominação pela inclusão nas formas sociais do capital, mas pelo seu
contrário: a exclusão completa e absoluta das formas sociais de reprodu-
ção social próprias do capital. Essa dinâmica contraditória não extingue a
48 Aqui, tenho em conta exatamente a formulação de Roswitha Scholz (2008, s.p. - tradução minha): “Ora,
deduz-se precisamente da estrutura da dissociação-valor, como forma fundamental, que no capitalismo a
estratificação social, a desclassificação e a exclusão são definidas como necessárias”.
142

monetarização da vida e a mercantilização do cotidiano. Cibele Rizek (2022,


p. 57) identifica que as formas de governo diferenciado que foram instauradas
nas periferias, que estimulam o desenvolvimento das formas de reprodução
crítica descritas aqui, “criavam e recriavam (em vez de se contrapor e neutra-
lizar sua ação) mercados” das mais variadas naturezas: políticos, religiosos,
de práticas ilegais, culturais, entre tantos. Ao mesmo tempo, essas mesmas
práticas de gestão diferencial do território produziram formas de violência
(MACHADO DA SILVA, 2004) que já não apontam para a transformação
social49, mas para uma espécie de reprodução da crise, cada vez mais geren-
ciada de forma securitária.

Considerações finais

O enquadramento que sugiro pode contribuir para refletir sobre a “con-

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fluência entre urbanização, reprodução social e as transformações na compo-
sição de classe” (GRAY, 2022, p.811) a partir da análise da vida cotidiana nas
periferias. A forma de reprodução social na periferia ocorre de maneira crítica,
isto é, imersa no contexto de crise do capital. Embora as formas de garantir a
reprodução dos indivíduos, famílias e grupos se deem fora da relação propria-
mente imediata entre capital e trabalho, elas estão submetidas ao imperativo
da mercantilização e da monetarização da vida. No entanto, destaca-se que,
ainda que tenha ganhado novos conteúdos com o aprofundamento da crise,
a condição periférica, desde sempre, já era o anúncio da crise. Com o desen-
volvimento desta, veremos um movimento de generalização da reprodução
social crítica e da forma-periferia.
A condição de precariedade que marca a forma-periferia possui também
uma historicidade. A expressão espacial de formas precárias, informais, irre-
gulares e ilegais nada tem a ver com situações atávicas ou arcaicas. Como
vimos, essa expressão espacial foi condição para a realização da forma-valor
na periferia do capitalismo, agora essa expressão é o resultado do desenvol-
vimento e aprofundamento da crise do capital.
Espero ter sido possível demonstrar que periferias são espaços de grande
complexidade, marcados por fraturas e fronteiras que delimitam, em seu
próprio interior, diferenças de regimes de normatividade e de legitimidade.
Reconhecer essa complexidade, constituída como um mosaico de práticas
sociais, significa também reconhecer que os indivíduos estão sempre tran-
sitando entre diferentes regimes normativos para garantir sua reprodução.

49 Por exemplo, Roberto Schwarz (1999) rastreia elementos dessa sociedade violenta nos livros Cidade de
Deus, de Paulo Lins, e Estorvo, de Chico Buarque.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 143

Diferentes composições entre o formal e o informal, o legal e o ilegal se


manifestam nas periferias, mesmo diante de processos gerais que precari-
zam as relações cotidianas e ampliam as vulnerabilidades à que a população
periférica está sujeita. Novas configurações e mediações surgem nos espaços
periféricos, e devem ser descritas e analisadas para melhor se compreender
as liminaridades, porosidades, diferenças e indiferenças que ocorrem nes-
ses territórios.
À guisa de conclusão, gostaria de sugerir que, apesar da diversidade
de maneiras de manifestação dessa reprodução social crítica, existe uma
unidade sintética ao processo dada pelo que se pode chamar de forma-pe-
riferia, que parece esclarecer o processo de colapso e permite colocar em
destaque o derretimento das formas sociais anteriormente erigidas no sistema
produtor de mercadorias.
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A CRÍTICA À PRECARIEDADE
Rosangela Nair de Carvalho Barbosa
DOI: 10.24824/978652515286.8.149-176

O tema da precariedade tem tomado a agenda de debates acadêmicos e


profissionais, figurando como uma expressão recorrente, em todo lugar, desde
o final do século passado. A incidência dessa contenda, todavia, nem sempre
é acompanhada de precisão teórica e analítica a respeito de que fatores da
realidade são reconhecidos no termo guarda-chuva precariedade e que fun-
damentos os explicam.
O vocábulo tem sua raiz na língua latina como precarius, designando
a qualidade de algo incerto, de pertencimento alheio, revogável, passageiro
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ou de baixa estabilidade. Precariedade diz respeito a um estado ou situação


instável, adversa, insegura e suscetível à invalidação, ainda que o envolvido
dependa dos bens ou serviços que temporariamente lhe eram disponibilizados.
Nas Ciências Sociais, particularmente, a precariedade costuma ser referida à
insegurança e instabilidade das condições de vida e trabalho no capitalismo, a
partir dos anos de 1970. Nesse enquadramento, na literatura, o termo coirmão
precarização diz respeito ao fazer-se precário, ou seja, envolve o paulatino
processo e conflito social de rebaixamento das condições e relações de trabalho
que ainda não estão vilipendiadas (DRUCK; THÉBAUD-MONY, 2007)50.
O problema é que essa instabilidade e incerteza social não é uma questão
nova no capitalismo, mas constitutiva da natureza social do modo de produção
capitalista, ainda que desde 1970 apresente mudanças qualitativas em razão do
acirramento das contradições internas provocadoras de limites à valorização
do valor, impelindo a barbarização da vida51.
Este capítulo aborda a precarização das condições de vida e trabalho como
assentamento da lógica da sociedade capitalista, determinada pela natureza

50 A partir de diferentes ângulos teóricos Guy Standing (2013), Ruy Braga (2012, 2017) e Alves (2013) debatem
acerca da constituição social do precariado, referindo-se aos indivíduos atingidos pelas formas precárias
de vida e trabalho.
51 Evidente, que compreendemos que há uma alteração qualitativa nos últimos quarenta anos, na medida em que
o ápice dos limites e contradições internas da sociabilidade capitalista carrega o novo tempo para uma acirrada
reestruturação capitalista mundial com picos de agravamento em 2000 e, sobretudo, em 2008. O esgotamento
do modo técnico-operacional de aumento da produtividade dos “trinta anos gloriosos” impactou o consenso social
que sustentava esse ciclo virtuoso do capitalismo, provocando a colisão da associação distribuição de renda aos
assalariados e acumulação de capital. Para variados estudiosos é um rompimento com o pacto social existente
desde o pós-Segunda Guerra e que provoca o esgarçamento do tecido social (CASTEL, 1998; BOURDIEU, 1998,
2008; POLANYI, 2000), colocando em ruínas o consenso social em torno do trabalho assalariado fordista. Para
outros, expressa a crise estrutural do capital, em sua reprodução ampliada, conforme mencionaremos adiante.
150

intrínseca da mercadoria e de suas contradições. Inicialmente, aborda a ênfase


do tema nas Ciências Sociais, que o associa, principalmente, à decadência
do pacto social fordista. Em seguida, o texto interpreta alguns fundamentos
centrais da lógica do capital, destacando a indissociabilidade da insegurança
social, do modo de ser da riqueza capitalista, efetivamente provocadora de
verdadeiros dramas humanos resultantes das vidas vividas à deriva. Por fim, o
texto conclui sobre a importância do avanço da crítica do fetiche da segurança
dos contratos fordistas para que se possa avançar na compreensão do core das
determinações da precariedade, da vida subsumida às condições capitalistas.

Alguns parâmetros do debate

A precariedade emergiu como tema relevante nos estudos sociológicos


franceses, nos anos de 1980 (BARBIER, 2005), abarcando distintas expres-

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sões sociais, decorrentes da nova onda de desemprego de longa duração, de
trabalhos não cobertos por contratos legais e por proteção social (CASTEL,
1998), assim como da emersão de novas atividades de prestação de serviços,
na flexibilidade laboral pós-fordista (GORZ, 2004). Outros estudos franceses
enfatizaram, desse quadro, a descoletivização laboral da indústria com a rees-
truturação produtiva, a segregação das periferias urbanas e a heterogeneidade
das formas de trabalho, configurando verdadeiros entraves ao entrosamento
social, além de situarem o desalento da vida vivida no capitalismo, em razão
da remuneração baixa e incerta (BOURDIEU, 1998).
O ponto de partida da abordagem da precariedade envolve, nesse diapa-
são, uma crítica à neoliberalização do capitalismo e às consequências dele-
térias sobre as condições de vida e trabalho, incluindo a atomização dos
indivíduos sociais. E, com efeito, para a Sociologia francesa essa precariedade
atinge, de algum modo, a todos os assalariados, sendo que as situações mais
drásticas envolvem pungente desestruturação da existência humana, com o
futuro incerto para os cuidados materiais, para as relações afetivas e para as
insurgências coletivas contra esse abismo social. Por outro lado, para os que
conseguem manter os empregos com relativa segurança social resta a angústia
avassaladora com o espectro da (sempre) possível substituição eminente, tendo
em vista o denso exército de trabalhadores desempregados52.

52 É válido acrescentar que esse universo de ponderações sobre as condições de vida e de trabalho no
capitalismo influenciou também a OIT (Organização Internacional do Trabalho) que passou a caracterizar
o trabalho precário como aquele regido por contratos de duração restrita (temporário, intermitente, casual),
crescentemente menos normatizado por regulações públicas e com proteção frágil contra demissão; baseado
em relações de trabalho camufladas e trianguladas como subcontratação, estágios, cooperativas ou empre-
sas-plataformas, além de gestão individualizada do trabalho, tendência a impedir a organização sindical e
condições laborais inseguras com restrição do salário, das condições de saúde e segurança ocupacional,
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 151

Efetivamente, o debate francês sobre a precariedade – que influenciou a


Europa como um todo, assim como o sul global –, referencia-se na observação
sobre um tipo novo de insegurança social, resultante do reordenamento da
produção do valor e da flexibilização do Estado social nos países centrais, que
outrora mantiveram uma cesta abrangente de segurança social pública e de
empregos. Portanto, a precariedade escoa do novo ciclo do capitalismo, com
a queda estrutural do emprego, a desregulação do trabalho, o rebaixamento
da renda e a diminuição da ação do Estado social, como expressão de uma
época histórica específica do capitalismo, a partir dos anos de 1970. Então, a
precariedade é problematizada, principalmente, à luz da segurança social e da
renda do trabalho, sendo ela tanto maior quanto mais rebaixado forem esses
fatores. Mas, a precariedade também pode decorrer, de acordo com os estudos,
do trabalho intenso que provoca adoecimentos, letalidade e sobre-exploração,
sendo capaz de atingir, inclusive, o núcleo mais estável da força de trabalho53.
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Por outro lado, a própria ruína da forma-emprego cria outros destroços,


pois o alto desemprego igualmente provoca a reprodução de ocupações regu-
lares de não-emprego, ampliando, nessas condições, a escala de trabalhadores
que vive em condições de vida instáveis, de modo transitório, por longo tempo
ou para sempre, empurrados para a sarjeta comum dos supranumerários54.

acrescido de ausência de promoção da qualificação e do crescimento em carreira. Para essa agência mul-
tilateral, o quadro de flexibilização, além de baixa proteção jurídica e atuação sindical, provoca expansivo
deslocamento de riscos dos empregadores para os trabalhadores (OIT, 2011).
53 Essa é uma ponderação recorrente nos estudos do trabalho, como o faz Linhart quando enfatiza o sentimento
de precariedade como uma variável pertinente às condições de saúde do trabalhador, em razão das exigências
de intensidade do trabalho que leva a que os trabalhadores estejam permanentemente preocupados com a
possibilidade de não terem condições de cumprirem as metas, o que os levariam a não se sentirem seguros ou
protegidos em seus postos de trabalho, tornando o futuro aleatório. A autora chama isso de precariedade subje-
tiva, inerente ao assalariado estável que mesmo não compondo o exército de desempregados, vive a tormenta
da incerteza no trabalho, por não poder se fiar na experiência, competência, habilidade e rede de sociabilidade
laboral, necessitando se esforçar continuamente para atingir os objetivos fixados pela empresa. Sem contar
com amparo coletivo, dada a individualização das relações de trabalho, dissemina-se o empreendedorismo
na gestão da carreira e, portanto, a viva competição entre os trabalhadores. “O resultado é, frequentemente, o
medo, a ansiedade, a sensação de insegurança (...) o sentimento difuso de (...) ser obrigado a cometer erros
para atingir objetivos (...) erros que (também) poderiam justificar um afastamento.” (LINHART, 2014, p. 46).
54 O problema da população em excesso no capitalismo não é um desafio dos dias de hoje, nem mesmo a
polarização em torno da heterogeneidade do trabalho. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos
anos de 1960, classificou o trabalho na forma emprego (com contrato de trabalho, regido por legislação
trabalhista, realizado em empresas formalizadas do mercado tipicamente capitalista) como trabalho for-
mal e chamou de trabalho informal aquele realizado sem contrato de trabalho e em formas econômicas
pré-capitalistas, observável nos países periféricos do capitalismo. Já nos anos de 1980, a OIT, tratou as
mudanças no trabalho capitalista mundial por meio das noções de emprego padronizado versus empregos
não-padronizados. O emprego padronizado era o emprego em tempo integral, contínuo e estável, represando
os trabalhadores em trajetória ocupacional com um único (ou poucos) empregador(es). Essa modalidade
envolvia também salário para sustento da família, acesso às políticas públicas (apoio à reprodução social),
legislação protetiva do trabalho e representação sindical. O emprego não-padronizado era a negativa ou a
insegurança em todos esses quesitos. A base da sociedade salarial europeia envolvia esse emprego-padrão,
152

Os impasses dessa reflexão merecem nosso destaque, pois a morfologia da


precariedade descritiva apela para os traços fenomênicos das relações sociais
de produção capitalistas contemporâneas em torno do neoliberalismo e, ainda
que esses diagnósticos tenham papel no debate teórico e político, não expõem
per se as determinações fundamentais desse quadro societário. A despeito das
diferenças entre essas interpretações é possível identificar que a maioria delas
se apoia na economia política do reformismo, requerendo a constituição de
uma nova regulação no capitalismo da era globalizada. O problema exposto
por elas é a integração ou a coesão social na institucionalidade da democracia
burguesa, quando trabalhadores são empurrados para maior insegurança, para
a assimilação de uma identidade social negativa e para a apatia provocadora
do suposto radicalismo despolitizado (BRAGA, 2012, 2017).
Se o estatuto do trabalho assalariado fordista canalizava o conflito capital/
trabalho – com a institucionalização de Estado social, interface com sindicatos,

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negociação coletiva, consumo de massas -, quando o trabalho atípico vira qua-
se-norma da economia capitalista – com o trabalho sem forma (OLIVEIRA,
2013) – parte dos críticos da precariedade chamam a atenção para a corrosão das
instituições. Por isso, o que propõem é recompor o Estado, no sentido de renovar
as bases do compromisso capital/trabalho na era da acumulação flexível, para
restaurar os mecanismos de regulação social. Isso significa o debate em torno
do Estado neoliberal, por não ser ele uma alternativa viável para a integração
na sociedade, portanto, questionam o modelo de regulação e não o capital55.

ao menos no centro e no norte do continente. Todavia, o oposto, o emprego não-padrão, era invisibilizado
nessas regiões ainda que envolvesse segmentos de trabalhadores expressivos como mulheres e migrantes
(ou seus descendentes) que dificilmente participavam da experiência laboral padrão. Esse modo dominante
de pensar o trabalho (emprego-padrão) tinha o efeito ideológico de positivar o enquadramento fordista e
deixar na penumbra o trabalho e as condições de vida que atravessavam a maior parte do planeta. No
capitalismo dependente, por exemplo, fortaleceu-se o enquadramento dos bons trabalhos como aqueles
com contrato ou “carteira assinada” (formais) e os demais como informais, repletos de precariedade. Nesse
caso, a saída era ter como horizonte o crescimento dos trabalhos formais, o que invisibilizava o trabalho
informal – que abarcava a maioria da população ativa -, e de certo modo alimentava o argumento místico
de que mais modernização capitalista levaria à ampliação de empregos-padrão. Hoje, com as mutações em
voga, não é possível ver a generalização da forma emprego-padrão e, ao contrário, a precariedade ganha
expressão e a sua caracterização descritiva tende a relacionar o trabalho temporário – com ou sem contrato
-, à renda baixa e/ou irregular e à falta de benefícios sociais trabalhistas. O mais arrebatador é que essa
forma de trabalho historicamente precária da periferia capitalista se generalizou, demonstrando que o que
se vivia antes no sul global era mesmo capitalismo barbarizante, como futuro antecipado, que, agora, se
espalhou no novo tempo do mundo, conforme refletiu Oliveira (2013) e Arantes (2023).
55 Esses estudiosos tendem a se apoiar em Polanyi (2000), para quem, a mercantilização da terra e do trabalho,
assim como a dinâmica desmesurada desse processo aniquila o que ele chama de a própria substância da
sociedade, o sentido coletivo das relações entre os homens e deles com a natureza, portanto dos próprios
valores de uso. Essa degradação tenderia a ruir também com o próprio mercado e essa contradição seria
o substrato da história moderna. A solidariedade fordista, com as formas sociais de regulação do mercado,
serviu como boia de salvação para as contradições perenes da mercantilização. O Estado e o sindicato
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 153

De acordo com BRAGA (2012) trata-se da nostalgia do fordismo no


debate europeu, visando a institucionalização de novas relações que possam
domar o capital e integrar os trabalhadores. Ao fundo, não deixa de ser uma
via ideológica de passivização dos conflitos e apatias em favor da moderni-
zação da gestão das ruínas do capitalismo. Sem alcançar as determinações
sociais, concentram-se nas flexiseguridades (FLEYSSINET, 2009), ou seja,
nas possibilidades de viabilizar alguma ocupação aos trabalhadores nas suas
trajetórias flexíveis no mercado ou assistência social aos empurrados para os
porões da usina de imprestáveis para o capital.
O movimento crítico contrário, que queremos enveredar, é o de buscar
os fundamentos da mencionada crise, evidenciando seu caráter estrutural e
sistêmico, pois atinge o coração do capitalismo, o cerne da acumulação de
capital, tornando a sua reprodução mais barbarizante (MENEGAT, 2019). A
precarização das condições de trabalho e de vida caracteriza-se como resposta
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do capital ao seu caos para valorização do valor – em contexto não expansivo


do valor -, desencadeando um amplo processo de transformação da morfo-
logia do trabalho e da proteção social, que significa desvalorização da força
de trabalho, ampliação do capital constante na economia, encurtamento do
trabalho vivo, diminuição da distribuição do mais-valor para o Estado Social
e abertura de novas esferas de negócios em áreas ainda não capitalizadas
(serviços e novos extrativismos da natureza).
A priorização da análise dos fundamentos e das contradições internas da
dinâmica capitalista não desconsidera as manifestações históricas da realidade
concreta. Por isso, detectamos que a partir de 2008, o mundo capitalista vive,
de fato, um novo fluxo de precariedade, como resultado dos ajustes austericidas
do capital para fazer frente ao curto-circuito financeiro iniciado no mercado das
hipotecas norte-americanas e reverberado globalmente. Esse marco é antecedido
pelo conhecido quadro neoliberal do regime pós-fordista encetado a partir dos
anos de 1980 e que, na primeira fase, foi responsável pelo deslocamento espacial
da produção, pela desregulamentação dos mercados, pela hiperficcionalização da
economia (dispositivos financeirizados), pelo crescente desmanche dos direitos
trabalhistas e pelo enxugamento dos serviços públicos. No contexto pós-2008,
aprofundam-se esses fundamentos neoliberais com a generalização da preca-
riedade, espalhando com mais ardor a insegurança social56.

eram a estrutura de emergência que canalizava o antagonismo para o curso da cidadania salarial (proteção
social e carreira ocupacional), a nosso ver, num período peculiar do capitalismo, quando o expansionismo
do valor estava em alta, sendo outra a situação na crise aberta a partir dos anos de 1970.
56 A resistência a essa reacomodação neoliberal do capitalismo não deixou de vir à tona e a juventude mundial
reagiu em diversos pontos geopolíticos. Esses escombros mobilizaram insurgências contra a desenfreada
expropriação social, contra as privatizações, o reordenamento do trabalho, o alto custo de vida e a violên-
cia sobre a população acantonada nas periferias urbanas. Contramovimentos de novo tipo, de natureza
154

No entanto, superar a restrição do debate da morfologia neoliberal do traba-


lho têm possibilitado a abertura de novas veredas investigativas. Dörre (2022),
por exemplo, afirma que uma nova etapa dos estudos se inicia na Europa, com o
necessário reencontro da Sociologia com os estudos marxistas para aprofundar
a compreensão sobre a sociedade precária, com a generalização de ocupações
com baixa remuneração, com ampliação das ocupações relacionadas aos servi-
ços pessoais e com o crescimento do emprego de curta duração por toda parte.
Ainda que a abordagem morfológica descritiva tenha bastante espaço em seus
estudos, o autor considera o contexto atual como uma nova fase do capitalismo
que engendra uma mobilidade social circular ao assalariado, com o trabalhador
dependendo de seguro-desemprego, mesmo estando ocupado, devido à baixa
remuneração, transitando entre “desemprego, trabalho substituto socialmente
fomentado e empregos precários” (DÖRRE, 2022, p. 111) com, na melhor das
hipóteses, uma movimentação horizontal na pirâmide social, quando não a

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derrocada para patamares mais baixos em termos de condições de vida.
Para o sociólogo, esse drama merece ser criticamente compreendido,
superando-se também o conhecimento patriarcal que desde sempre, na Europa,
tomou como referência as condições estáveis de trabalho, de homens brancos.
As formas de trabalhos flexíveis (atípicos, informais, temporários) mesmo nos
países centrais, sempre abarcaram mulheres e migrantes, sendo que agora estão
ingressando no radar da crítica e, por isso, a importância de ampliar a pesquisa
sobre a multidimensionalidade das expressões da precariedade, abrangendo as
dimensões de classe, de gênero, de etnia/raça e de nacionalidade/regionalidade.
Em adição, o autor acentua que as condições de vida instáveis atingem também
indivíduos não integrados no trabalho remunerado por serem inativos – crianças,
jovens e aposentados - , o que significa que de algum modo, a instabilidade social
que marca a precariedade não envolve somente o indivíduo (trabalhador ocu-
pado), mas repercute sobre o entorno, nas relações sensíveis em que está inserido
e isso não é adequadamente problematizado e dimensionado nas pesquisas57.

espontânea, contra esse novo estágio do capitalismo, que amplia a mercantilização e cria mais empecilhos
para o acesso ao trabalho e a renda. O cerne da mobilização seriam os destroços da financeirização. ata-
das à denúncia das relações de opressão, exploração e espoliação por forças financeirizadas mundiais. A
precariedade da condição proletária começou a aparecer, então, como o novo meio de possível unificação
dos subalternos (BRAGA, 2012, 2017).
57 Para Dörre (2022), ainda que a precariedade, hoje, atinja a todos que dependem do assalariamento, a
compreensão mais próxima da complexidade da realidade social exige que se pense esses marcadores
sociais mencionados e a conexão entre classe e riscos de precariedade; frações de classe e de segmento
social e a maior permeabilidade à insegurança e à instabilidade social. Mesmo que não forme uma classe
à parte como precariado, tudo indica que os efeitos materiais e subjetivos na vida do assalariado merecem
ser apreciados, inclusive, para entender essa universalização do trabalho abstrato e a menor expressão dos
conteúdos particulares do trabalho concreto, que aprofundam os efeitos humanos negativos, ao passo que
possibilitam entender e atuar sobre o nexo comum dos trabalhos, desviando de dispositivos corporativos
hierarquizantes que tradicionalmente marcaram as identidades laborais fordistas.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 155

Essa reviravolta nos estudos do trabalho exige, segundo Döre, considerar


as conexões nas cadeias globais de valor, que como totalidade mostram indí-
cios importantes de que estamos diante de uma sociedade precária mundiali-
zada, não podendo essa dinâmica ser restringida a uma parte do mundo, a um
ramo econômico ou a um capitalista particular, como comumente foi tratado
- casos à parte ou como fruto do subdesenvolvimento do hemisfério sul58.
Esse universo de novas vias de estudos do trabalho já era abordado,
em parte, na crítica de Alves (2013) e Antunes (2020). De Alves (2013), por
exemplo, podemos ressaltar, em especial, a abordagem histórica da precari-
zação das últimas quatro décadas, como parte das novas determinações estru-
turais do capital em crise de valorização do valor, motivo da proeminência
da financeirização da riqueza e da hegemonia do capital financeiro. Antecipa
que a precariedade do trabalho é um traço estrutural do capitalismo e que esse
tempo histórico da crise estrutural altera a sua forma de ser, mas não é uma
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realidade inesperada ou restrita ao pós-fordismo.


Para ele, há uma primeira geração de precarização manifesta no século XIX,
como amadurecimento do modo de produção concomitante a precariedade sala-
rial extrema, que inclusive alimentou as lutas sociais por regulação do trabalho e
as necessidades de ampliação de mercado (matérias-primas, trabalho e consumo).
O capital monopolista, entre as duas grandes Guerras Mundiais associou o sis-
tema de produção (e sua expansão geopolítica) com a redistribuição de riqueza
nos países cêntricos, envolvendo direitos trabalhistas, salários relativamente
crescentes, carreira estável, organização sindical e serviços sociais públicos.
A segunda geração de precarização provocou a corrosão desse estatuto
salarial, a partir dos anos de 1970, abrindo um novo tempo histórico de degra-
dação e incertezas nas condições de vida e trabalho. Entretanto, o novo (e
precário) mundo do trabalho abriria, segundo o autor, uma terceira geração
de precariedade que diz respeito à precariedade existencial provocada pelo
emprego generalizado de tecnologia informacional e do Toyotismo (método
just in time) na produção e na totalidade da vida social, engendrando maior
“disposição anímica do trabalho vivo em colaborar” (2013, p. 240), com “[...]
O tempo de vida reduzido às atividades necessárias à carreira profissional [...]”
(ALVES, 2013, p. 241). Se nas primeiras gerações o trabalho não qualificado
era o mais propenso às condições precárias, isso se amplia no século XXI, por
força inclusive da maior racionalização e degradação do trabalho qualificado
com a disseminação das tecnologias digitais e da inteligência artificial.

58 Inclusive, para Dörre(2022) o aprofundamento da precarização aumenta a polarização social – desigualdade


social e concentração de renda/propriedade - o que tende a se apoiar em “legítima” suspensão da lei/orde-
namento e aplicação da violência sobre as frações da classe trabalhadora mais absorvidas na precariedade
visando fazer a gestão sociopolítica e policial/militar dos sobrantes. Isso significa que coloca em questão a
sociabilidade capitalista como um todo e não apenas a qualidade do trabalho ou a administração do Estado.
156

O alcance dessas novas tecnologias na diminuição do trabalho vivo e


aprofundamento da maior subsunção ao capital é tematizado também, nos
últimos anos, por Antunes (2020), quando sublinha, nos estudos recentes, o
papel estratégico da terceirização do trabalho e da plataformização (uberização)
para o alargamento da precarização das condições de trabalho. Para o autor,
a subcontratação de empresas e trabalhadores (terceirização) são dispositivos
chaves de flexibilização produtiva e laboral, de origem toyotista, que adensaram
a exploração da força de trabalho, tendo como referência o encurtamento do
emprego desencadeando a era do desemprego estrutural. As novas tecnologias
que tornaram possível ter na palma da mão mecanismos informatizados de
compressão espaço-tempo, automação e programas sofisticados de interface
digital globalizada estão provocando uma reviravolta no trabalho. Isso porque
reduziram o emprego de trabalho vivo e invisibilizaram as relações de trabalho
(relação patrão-empregado), mas ainda porque aceleraram o tempo útil-real de

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trabalho/remuneração, ou mesmo porque instrumentalizaram o maior individua-
lismo do trabalhador para cumprir metas, aumentar produtividade e remunera-
ção. Os casos dos serviços de mobilidade urbana nos transportes por demanda
e de entrega de mercadorias são emblemáticos e contam com a mediação das
Big Tech. Por todo lugar, disseminam-se exaustivas jornadas, multiempregos,
baixa remuneração e nula ou parca proteção social (BARBOSA, 2020, 2021).
Essa percepção dos autores sublinha que a forma mais visível da pre-
carização pode ser o desemprego e o subemprego, mas não para por aí, pois
a complexidade do processo de precarização e sua capilaridade impregna a
vida social, em diversas dimensões.
A precarização se expande para o modo de vida e além da degradação
das relações de trabalho, observa-se a depreciação da reprodução social com
a corrosão dos direitos sociais, com a concomitante regressão das políticas
sociais, envolvendo subfinanciamento das mesmas, somado à retenção de
ações públicas, fragilização do acesso e rebaixamento da qualidade dos servi-
ços, o que aumenta a brutalidade e os riscos à existência humana. Com efeito,
são dinâmicas que dificultam ou impedem a projeção de futuro, aprofundando
a frustração dos indivíduos, que estão com o tempo de vida entregue ao tra-
balho e às diferentes formas de adoecimento (DRUCK, 2016).
De modo a avançar com o conhecimento crítico a esse respeito, superando
a chave argumentativa da regulação59, pretendemos compreender a precarização
59 O debate sobre a regulação no capitalismo tem por base a experiência fordista/keynesiana e diz respeito
ao complexo de instituições dirigidas à reprodução coesa dos conflitos sociais da sociedade capitalista, que
lida com a normalização das relações capital-trabalho, por meio de legislação trabalhista, previdência social,
controle dos sindicatos e mercado de trabalho relativamente abrangente. Os estudos desse campo, hoje,
limitam a análise a possível reprodução – diria, mítica - da experiência do ciclo expansionista do Pós-Guerra
ou a introduzir regulações adequadas ao novo tempo, que nomeiam restritamente como neoliberal.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 157

como fundamento do capital e, no seu interior, como parte do trabalho capita-


lista, que em suas várias modalidades compõem o trabalho social total. Aliado
a isso, abordaremos os limites históricos impostos pela universalização da
riqueza abstrata e a dispensa de trabalho vivo diretamente da produção de
valor, por meio de algumas linhas elucidativas dos pressupostos marxianos.

As reais determinações sociais

Marx não faz uso do termo precariedade, mas toda sua obra convida a
tomá-lo como efeito do processo de constituição da sociedade capitalista.
Afinal, a mercantilização é a base da especulação volátil da reprodução social
e o objetivo da dinamização das forças produtivas. Portanto, esses são fun-
damentos da incerteza das condições de vida e, por isso, vale a pena colocar
em relevo algumas chaves teóricas, de modo a situar a precariedade como
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imanente às determinações do capitalismo.


Fundamentalmente, Marx nos mostra o capitalismo como um modo de
produção erguido sobre categorias que o estruturam e que ao mesmo tempo
são sua negação, à semelhança do movimento de placas tectônicas que se
conectam e em algum ponto se chocam, podendo redundar em limites subs-
tanciais à reprodução sistêmica, motivo de instabilidade social.
De partida, relembramos que para Marx o capital não é mero fator de
produção, ao contrário, ele o apreende como relações sociais peculiares a dado
contexto histórico. O processo de produção se baseia em relações sociais que
tomam os meios de trabalho para produzir excedente econômico per se e não
para viabilizar o trabalho próprio de subsistência dos indivíduos sociais. A
estrutura da sociedade está assentada na relação entre empregador (proprietá-
rios dos meios produtivos) e trabalhador livre que sem condições de produzir
não resta escolha que não seja se submeter a essa produção organizada para
gerar lucro – preservando e multiplicando compulsoriamente o capital acu-
mulado (valorização). A reprodução ampliada do capital, exige, portanto, a
reprodução expansiva da referida estrutura de relações sociais, com os meios
de produção e o produto pertencendo ao capital. O valor do produto envolve a
adição nele do capital adiantado e um plus a mais extraído dos trabalhadores,
mas que pertence ao capitalista. A liberdade da força de trabalho se resume
a poder ser vendida novamente para um comprador e desse modo viver na
corda bamba, para viabilizar sua subsistência60.

60 De imediato, lembramos que a cisão produção e vida social, em favor da centralidade da primeira é uma
especificidade do capitalismo, que transforma o complexo da economia em produção de riqueza abstrata,
secundarizando os bens não-mercadoria, as coisas úteis à subsistência.
158

Com essa perspectiva, parece-nos necessário acentuar que o modo de produ-


ção capitalista se volta para a produção de riqueza visando o mercado, de modo
que o ímpeto da troca marca essa economia e não crucialmente as necessidades
humanas de subsistência. Essa substancialidade dá sentido, como se sabe, a uma
estrutura de classes sociais específicas, formada por proprietários e não-proprie-
tários de meios de trabalho, em dependência mútua, como pele e alma.
Por sua vez, diferentes produtos para intercâmbio exigem diferentes
quantidades de trabalho da sociedade e são esses trabalhos que consubstan-
ciam o valor da troca dessas mercadorias. Esse processo, Marx interpretou
como uma das dimensões da lei do valor-trabalho, que induz à interação
social dos indivíduos, em torno do capital. Para intercambiar mercadorias,
inclusive a força de trabalho, nesse quadro dinâmico do mercado, os indiví-
duos isolados entram em interface por conta das coisas que eles trocam como
produtores privados. Esse movimento é tão arrojado que parece que as coisas

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têm vida própria como uma sociedade que aparenta ser “uma imensa coleção
de mercadorias” (MARX, 2008, p. 57). Sabendo que, para Marx, o que é
visto é projetado velando a realidade, somos convencidos, por ele, de que os
indivíduos portadores de mercadorias entram em relações sociais para a troca
de trabalhos privados, mesmo que não saibam61. Uma dinâmica externa aos
próprios indivíduos, que irrefletidamente movem as teias da produção, o que
nos leva a entendê-la como a base da precariedade desta forma de sociedade
e isso não é passível de ser compreendido somente com a descrição da mor-
fologia do trabalho nas diferentes conjunturas e ciclos do capital.
Nesse sentido, o que torna social a relação dos donos das mercadorias
é a troca de trabalhos privados, que constitui o valor de cada mercadoria e o
valor é o tempo de trabalho gasto na produção dela. Não qualquer tempo de
trabalho, mas o tempo socialmente necessário, que é o tempo médio típico para
produzir determinado produto em dada época histórica de desenvolvimento
das forças produtivas e das relações de trabalho. Portanto, o valor é uma
propriedade essencialmente social porque existe na relação social de troca e
porque o tempo de trabalho é quantificado tendo como referência o grau médio
de tecnologia, habilidade e produtividade de dada época e contexto social.
Contudo, não se trata do trabalho individualmente realizado e sim do
trabalho abstrato porque a magnitude do tempo de trabalho expresso nas
mercadorias não é estabelecida na dimensão individual de um trabalho, mas
especificamente encontra-se no tempo de trabalho socialmente necessário,

61 Essa contradição é bem delineada quando Marx diz: “os homens não estabelecem relações entre os produtos
do seu trabalho como valores por considerá-los simples aparência material de trabalho humano de igual natu-
reza (...) Ao igualar, na permuta, como valores, seus diferentes produtos, igualam seus trabalhos diferentes,
de acordo com sua qualidade comum de trabalho humano. Fazem isto sem o saber” (MARX, 2008, p. 95).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 159

na troca, quando esses trabalhos são validados socialmente, independente


do dispêndio efetivo de tempo de trabalho individual. Se a coisa útil só tem
sentido como motivadora da troca, provocando o interesse da compra, ao
isolar essa materialidade isola-se também o trabalho útil, restando apenas o
dispêndio de força de trabalho, o trabalho humano igual, o trabalho abstrato,
como argamassa da valorização do capital62.
Desse modo, Marx evidencia que o valor é abstração do valor de uso e
o trabalho abstrato é abstração do trabalho concreto, como duas dimensões
contraditórias do trabalho capitalista. Todavia, o trabalho abstratamente con-
siderado é historicamente condicionado, não existe em qualquer modo de
produção, mas, somente naquele em que o trabalho se destinou à produção
de valor, subsumido realmente ao capital63.
Para isso, inclusive, uma mercadoria específica assume a função media-
dora para o intercâmbio, que é a mercadoria-dinheiro – o equivalente universal
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das trocas –, ainda que de modo invertido ou fetichizado porque aparenta ser
ele, o dinheiro, o todo poderoso do valor e não o trabalho. Todos os valores
de uso projetam no dinheiro seu valor de troca, proporcionando que as mer-
cadorias se relacionem como valores, possibilitando a troca de mercadorias
com a mesma quantidade de trabalho ou a mesma escala de trabalho social.
A forma-dinheiro torna tangível o valor das mercadorias e isso não decorre
das mercadorias em si e dos trabalhos concretos, mas dessa condição social
das relações entre elas, as mercadorias.
No entanto, o dinheiro não é só meio de compra e venda, ele também se
torna capital quando é usado para os adiantamentos em fatores de produção
(máquinas, insumos e força de trabalho) na expectativa de retorno, acrescido

62 Uma sociedade regida pela lógica do trabalho abstrato enreda a compulsão social pela dinâmica das trocas
entre os indivíduos para viverem, por meio de uma dominação historicamente específica, uma dominação
abstrata sustentada numa estrutura social que impõe à assimilação ao sistema de trocas mercantis e ao
poder do capital nesse contexto. Mas, produzir valor compulsória e crescentemente implica em estabelecer
coerção, disciplinamento e concorrência entre os produtores para que se produza mais em menos tempo,
tendo como referência de valor o tempo socialmente necessário para produção das coisas, o que normaliza
compulsoriamente as relações, ainda que seja uma referência móvel dado o impulso imanente por aumento
de produtividade do trabalho. Por conseguinte, a dominação capitalista é uma dominação do tempo de vida
para o trabalho, objetivando relações sociais alienadas que constituem o capital e o reproduzem. O trabalho
abstrato é uma peculiaridade e condição para isso (MARX, 2011).
63 Para Marx, seria fundamental entender essa especificidade do capitalismo, refutando, portanto, a transhisto-
ricidade do trabalho e da produção social. “A forma de valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata,
mas também mais geral do modo burguês de produção, que assim se caracteriza como um tipo particular
de produção social e, ao mesmo tempo, um tipo histórico. Se tal forma é tomada pela forma natural eterna
da produção social, também se perde de vista necessariamente a especificidade da forma de valor, e assim
também da forma-mercadoria e, num estágio mais desenvolvido, da forma-dinheiro, da forma-capital etc.”
(2008, p. 102). É como forma histórica peculiar que a sociedade capitalista pode ser compreendida (e
superada), criticando-se o fundamento das trocas generalizadas (valor) e do estranhamento da condição
humana e ecológica do planeta nesse contexto.
160

de um extra a mais, como D’– expressão da própria acumulação de capitais


e o seu segredo é o tempo excedente da força de trabalho. Somente uma
sociedade que transforma os meios de vida em capital, em processo com-
pulsivo de valorização, o dinheiro ganha essa importância, como medida
em que se expressa toda riqueza social64.
Ao trocar potência de trabalho por salário visando ter dinheiro para viabi-
lizar sua subsistência no contexto das trocas mercantis, o trabalhador entrega
tempo de vida para o trabalho, para ser regido pelo capitalista e suas máquinas65.
Essa mercadoria especial, força de trabalho – única que produz valor - entrega
não só trabalho, mas sobretrabalho, quer dizer trabalho a mais do que aquele
que equivale ao montante de seu salário (mais-valor). Nesse caso, a chamada
equivalência da troca de mercadorias é suspensa, pois não há simetria entre o
salário e o trabalho entregue ao capitalista, de modo que a força de trabalho
cede mais produtos do que recebe como salário, portanto parte da jornada não

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é paga66. E, esse fundamento da exploração capitalista que é desconhecida do
trabalhador constitui a dinâmica compulsória pelo incessante aumento de pro-
dutividade, para ampliar a massa de valor produzida, com trabalho não-pago.
A partir do salário, o trabalhador tem acesso a um fundo de consumo,
para atender às necessidades biológicas, culturais e sociais de reprodução,
podendo aquele ser menor do que as requisições histórico-culturais de repro-
dução da família proletária e corresponder a parte crescentemente menor da
jornada de trabalho pelo efeito de novas máquinas e tecnologias que ampliam
a produtividade do trabalho e barateiam a cesta de consumo, oportunizando
a apreensão de mais tempo de trabalho para o capital (mais-valor relativo).
Todavia, para o vasto contingente populacional expropriado dos meios de
trabalho e jogado no mercado não é garantido o acesso a emprego, nem a

64 Vale sublinhar que o reinado do dinheiro decorre das necessidades dessa forma histórica peculiar orientada
pelo valor autoexpansivo e sustentada num modo específico de exploração com o produtor de riqueza (traba-
lhador) reduzido à mercadoria força de trabalho. Mas, a crítica a essa dominação do valor, representada no
dinheiro, não se reduz à distribuição de riqueza (repartir melhor o dinheiro), na medida em que é específico
a esta sociedade a dissociação do trabalhador da criação produtiva, sendo a produção uma esfera estranha
a ele, sem sentido, fixada fora dele, que contínua, descontrolada e coercitivamente dinamiza a saga da
crescente produtividade, acionando mecanismos de depreciação humana e ecológica.
65 Ainda que não seja tratado aqui, sabemos que a reprodução social não se resume a comprar coisas para
subsistência por meio do salário, também envolve atividade não paga das famílias – necessária à reprodução
da força de trabalho - que, socialmente, é absorvida pelas mulheres. Além disso, formas não tipicamente
capitalistas também concorrem para a reprodução social viabilizando a reprodução contínua de capital, como
atividades domésticas e economias camponesas. Além disso, como sabido, na fase do capital monopolista
diversas ações de reprodução social foram incorporadas como políticas sociais no Estado. A problematização
dessas dimensões foge às possibilidades desse texto, no momento, mas vale aqui a sinalização, sugerindo
a reflexão do impacto do acirramento da precarização nessas outras dimensões da reprodução social.
66 A troca de equivalentes na relação capital-força de trabalho é uma cilada que tem manifestação na realidade
concreta, dando sentido às classes sociais, possibilitando a extração e apropriação de mais-valor.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 161

estabilidade contratual, o que provoca a constituição de uma superpopulação


relativa, flutuante entre emprego e desemprego, realizando trabalhos não
contratuais (informalidade) ou vivendo estagnada em trabalhos sazonais mais
depreciados ou no pauperismo extremo. Ao relembrar essa passagem dos
estudos de Marx (2008) é impossível apagar as luzes de seus ensinamentos
sobre a imanência da precariedade na lógica do modo de produção67.
Em adição, Marx esmiuça que para o capital ser reproduzido de modo
expandido, incrementa-se a produtividade, elevando a incorporação de maqui-
nário e tecnologia para produzir mais mercadorias em menos tempo e com
menos trabalho vivo, sendo o resultado disso a diminuição dos postos de
trabalho e, consequentemente, o alargamento da precariedade social. Não há
garantia de acesso a trabalho e a salário, o que deixa instável a possibilidade
de aquisição da cesta de consumo pelo trabalhador e sua família. Além disso,
a população excedentária à economia real funciona como dispositivo de con-
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corrência entre os próprios trabalhadores e de aviltamento dos seus salários,


dado o contingente de trabalhadores disponíveis (LAVAL, 2017).
As consequências são também de outra estirpe, pois são dois movimentos
que aumentam de modo complementar – a taxa de mais valor relativo e o
aumento da composição orgânica de capital -que induzem à queda da taxa de
lucro. De modo que o capital tende em seu movimento histórico – expansio-
nista e centralizador – a, contraditoriamente, se valorizar a taxas menores e a
aumentar os gastos com tecnologia e maquinário, o que implica maior dispensa
de capital constante. Como um paradoxo, pois, a própria desmedida do valor
por maior valorização provoca esse entrave, na medida em que expressa a
dificuldade crescente do capital com a autovalorização.
Ao mesmo tempo, trata-se de um tipo de produção material que leva ao
uso expansivo dos recursos naturais (terra, água, minerais) com a consequente
degradação ambiental e de formas de apropriação dos territórios que sobre-
põem o valor ao uso da natureza pelas populações locais. A crise climática da

67 Marx (2008) apresenta uma vasta caracterização das jornadas de trabalho exaustivas, dos salários restritos
e das condições de saúde insalubres das fábricas, por meio dos relatórios dos inspetores fabris, sublinhando
um denso quadro de precariedade laboral. Também, diz ele, os salários sendo abaixo das necessidades de
reprodução, ao trabalhador não resta alternativa que não seja residir em moradias improvisadas e aglome-
rações em espaços abaixo do regramento sanitário plausível. As tratar da acumulação primitiva recupera a
violência dos processos de usurpação de terras, das Works Houses, do sistema colonial e da escravidão de
indígenas e negros. As condições insalubres das moradias, o esgotamento físico pelas horas trabalhadas
e pelas péssimas condições de trabalho, se somam à requisição para incorporar toda a família proletária
no trabalho, incluindo as crianças, para fazer frente ao baixo poder aquisitivo dos salários. Ao sintetizar a
apuração da sorte da classe trabalhadora com a crescente acumulação de capital, Marx mostra o destino da
superpopulação relativa, entre empregos inseguros, desemprego e trabalhos desprotegidos de contrato. Daí
emerge o exército industrial de reserva formado por aqueles trabalhadores que podem retornar ao mercado
de trabalho e a população sobrante, que excede às necessidades estruturais do capital.
162

atualidade, por exemplo, que redunda em aquecimento global, deriva do uso do


planeta por esse modo de produção, portanto é consequência das próprias cate-
gorias fundamentais que o formam e de suas contradições (MONERAT, 2020).
Essa instabilidade é constitutiva do metabolismo do capital que, sendo
compulsoriamente expansivo, transforma a capacidade humana de trabalho
em mercadoria trocável por dinheiro. E, isso requer contingente de indivíduos
expropriados dos meios de vida – incapazes de produzir para seu próprio
consumo, portanto sem a terra – e participante das trocas generalizadas de
mercadorias, portanto, o trabalho e o consumo dos produtos mercantilizados
se apresentando como pressupostos da economia capitalista, que exige cres-
cente ampliação. Dito de outro modo, essas trocas generalizadas são histori-
camente possíveis no capitalismo porque estabelece-se, antecipadamente, que
os produtos do trabalho são mercadorias (valor), para o que foi fundamental a
derrocada das relações de dependência pessoal dos indivíduos na produção –

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a superação histórica da produção como atendimento direto de necessidades
úteis; e, ao mesmo tempo, exigiu forte dependência recíproca, por meio de
uma divisão sociotécnica do trabalho crescentemente aprofundada. No entanto,
trata-se de uma interdependência sim, mas ela é impessoal, ocorre por serem
produtores de mercadorias; trabalhadores assalariados que visam a troca de
mercadorias (força de trabalho por salário, para consumo)68.
Para Marx, essa inversão integra a lógica da organização capitalista que
tem a mercadoria como seu átomo, mas não sendo ela simplesmente objeto
da economia e sim uma forma específica de relação social. Tanto a relação de
compra e venda de mercadorias quanto a relação capital-trabalho perfilam a
especificidade historicamente constituída de dadas condições sociais e uma
parte da relação não existe sem a outra, pois a exploração da força de trabalho
(mais-valor) depende da generalização da forma-mercadoria na totalidade social.
Por outro lado, ainda que a mercadoria seja uma coisa útil – fruto de um
trabalho concreto, útil, especializado como de um carpinteiro ou de uma ope-
radora têxtil – ela existe para ser trocada e não é a identidade qualitativa que
motiva o intercâmbio porque coisas iguais não reservam motivos para troca
e coisas diferentes restam ser equivalentes por serem resultados do trabalho,
portanto, se trocam por expressarem quantidade de trabalho e assim declara-
rem o seu valor. Essa condição é consequência, insistimos, das relações sociais
específicas do capitalismo, de intercâmbio generalizado de mercadorias e da
universalização do trabalho capitalista que aparece realizado na mercadoria.

68 No capitalismo, o trabalho não é imediatamente (e conscientemente) social no próprio processo produtivo,


mas depende para isso da mediação da troca dos produtos, como um pressuposto. Daí ser uma sociabi-
lidade marcada pelo estranhamento à condição humana e à natureza, o que fornece todo o sentido aos
escombros desse tempo sombrio do capitalismo em crise, expresso exatamente no aprofundamento da
precariedade social.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 163

A equiparação dos produtos do trabalho, dos trabalhos mesmos e o reconhe-


cimento do valor de seus produtos ocorre pelas costas dos indivíduos que não
sabem disso, pois desconhecem as bases do processo social de trocas generali-
zadas, de que participam. Marx mostrou a antinomia dessa relação social que é
ilusória e real, pois tem efeitos na realidade concreta e ao mesmo tempo é uma
abstração que se manifesta na realidade, por meio da representação – ou seja, do
valor de troca representado na forma-dinheiro – e independente da consciência
dos indivíduos, daí o fetiche da mercadoria: magia decorrente das relações sociais
objetivas entre as mercadorias e do modo como se atribui concretamente valor
às coisas, por meio da ação das trocas e não da consciência sobre o que se faz.
Isso significa que a abstração – imanente às relações de troca - é desco-
nhecida do pensamento prévio dos indivíduos que agem como sociedade no
intercâmbio mercantil, sendo a efetivação prática das relações de troca um
mecanismo automático reiterado, externalizando magicamente a forma-di-
Editora CRV - Proibida a comercialização

nheiro, como se ela em si fosse o valor, quando ela é, de fato, decorrente da


relação entre os trabalhos69.
Uma sociabilidade fetichista, insistimos, que é baseada nessa ilusão efe-
tiva, em que a sociedade parece dinamizada pela troca de coisas quando são os
trabalhos dos indivíduos que estão sendo trocados pelo mecanismo de equiva-
lência do trabalho abstrato. Parece que as coisas em si, por suas propriedades
úteis, são dotadas de valor e irrefletidamente os indivíduos devem a elas se
submeterem para terem suas necessidades atendidas. E, fundamentalmente,
diz Marx, há uma estrutura social real que leva a que fantasmagoricamente
as coisas se relacionem e os indivíduos ajam inconscientemente como repro-
dutores dessa lógica coisal (MARX, 2011).
O desafio no estudo da obra de Marx é o de tomar a lógica do valor
como objeto de crítica e podemos dizer, hoje, que isso é diferente de criticar
essas ruínas humanas a partir da ótica da própria lógica do valor para atuar
sobre seus exageros, aprimorando a regulação de sua engrenagem como na
nostalgia fordista do debate da precariedade, mencionada antes.
Em suma, a universalidade abstrata do trabalho capitalista, que domina
os indivíduos particulares, como se fosse uma necessidade natural – porque
atua como uma suposta lei da natureza – impõe-se por cima de suas cons-
ciências como uma legalidade objetiva, contraditoriamente esfumaçando sua

69 Esse fetiche do dinheiro provoca, igualmente, instabilidade sistêmica, quanto mais esse equivalente universal
se distancia da relação intrínseca com a produção de riqueza (valor) e, também, quanto mais ele é ampliado
como instrumento especulativo do capital dada a demora de retorno lucrativo da circulação ou dos limites à
produção do valor nas últimas décadas. Essa é a artimanha da financeirização que emergiu na agenda do
capital após 1970 para fazer frente a sua crise e que tem aprofundado a dinâmica negativa das contradições
sistêmicas, enveredando pela ampliação dos recursos monetários mesmo com a queda da produção de
valor, o que alimenta bolhas potencialmente explosivas de consumo e enriquecimento.
164

origem social. Trabalhar e ter dinheiro para cobrir necessidades vitais apare-
cem como formas naturais de viver em todos os tempos, embora sejam mani-
festações de dominação historicamente específicas da sociedade capitalista.
A forma social da mercadoria torna todos entorpecidos porque os elemen-
tos-objetos da realidade se apresentam para a consciência de modo invertido
e isso resultadas relações sociais que acontecem de modo não consciente.
Em consequência, não é a realidade que é percebida distorcidamente, mas a
realidade mesma de que fazemos parte é assim, pois o fetichismo constrange
os atos da vida cotidiana e o todo social. Portanto, é uma sociabilidade não
conscientemente reflexiva, mas que desmedidamente reproduz o capital, em
seu impulso cego e automático por valor.
Consequentemente, Marx enfatiza a centralidade da dimensão do
trabalho abstrato – condição da generalização das trocas mercantis – que
transforma o trabalho num mecanismo da lógica coisal, de modo que para

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os produtores “as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem
de acordo com o que realmente são, como relações materiais entre pessoas
e relações sociais entre coisas” (MARX, 2008, p. 95). Longe, portanto, de
se revelarem como relações sociais entre indivíduos nos seus trabalhos,
expressam-se como relações reificadas entre pessoas, animadas pelas rela-
ções sociais entre as coisas.
Essa dinâmica, além de reduzir a vida humana à trabalho – forjando a
humanidade parcial, restrita ao trabalho – expressa, paradoxalmente, a carac-
terística antissocial do capitalismo, ao dar vida às coisas. Essa retração das
potencialidades e necessidades humanas manifestam os limites essenciais
desse modo de produção, que fundamentam a precariedade social.
Essa dissonância atravessa o complexo de categorias que estruturam o
capital, pois, de um lado, as categorias respondem ao aspecto progressivo da
acumulação de capital, de outro, elas acionam crises que entravam, paralisam
ou afundam a valorização do valor. Com isso, a par das categorias fundantes
da lógica do capital, evidenciamos para o debate da precariedade esse segundo
movimento da reflexão marxiana, o precipício do curto-circuito sistêmico.
Nesse sentido, sublinhamos que as determinações do capital são também as
determinações da sua manifestação negativa, como crise.
Como o capital é valor que se valoriza, a sua estrutura categorial se volta
para isso, sendo que a efetivação dessas determinações envolve também a
autonegação do capital, o que se manifesta como potencialidade ou como
efetiva realidade em dados contextos em que aquelas categorias fundamentais
se desenrolam. Tendências opostas em movimento matizam o caráter contra-
ditório do capital e, nesse sentido, entraves para produzir ou realizar o valor
- engrenando a acumulação - estão presentes nos próprios movimentos de sua
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 165

afirmação positiva. A autovalorização do capital exige a presença do seu par


antagônico, a força de trabalho, para produção de valor, mas ao mesmo tempo
o nega para expandir a produtividade, substituindo capital variável por capital
constante, motivo da diminuição do valor por mercadoria, dependendo de
ampla circulação de massa de valor para poder viabilizar a acumulação, o que
não tem se desdobrado como realidade quando tomamos o capital como um
todo, desde os anos de 1970. E o fio da meada desse imbróglio está nessa con-
tradição, pois o capital em seu movimento de ampliação desmedida de valor
nega a substância do valor, o trabalho vivo, ainda que seja dependente dela.
Recordemos, a reprodução ampliada de capital envolve dois movimentos
que aumentam de modo complementar – taxa de mais valor relativo e aumento
da composição orgânica – induzindo a queda da taxa de lucro, que é uma
tendência lógico-histórica, vislumbrada por Marx. De modo que o capital se
valoriza a taxas menores porque aumenta os gastos com tecnologia e maqui-
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nário, que exige maior investimento em capital constante. Isso significa que a
própria desmedida do valor que se valoriza provoca esse entrave, pois revela
a dificuldade crescente do capital com a autovalorização que o compõe.
Marx explicou isso observando que o modo de produção, em seu desen-
volvimento, desemboca em ciclos de ascensão da acumulação seguidos de
ciclos descendentes que acionam a agenda de recomposição dos processos
produtivos, do trabalho e do mercado. Sendo as barreiras à acumulação parte
da própria acumulação, o capital em sua pulsão pelo crescimento desmedido
de valor supera essas barreiras criando novas e maiores barreiras.
Essa dinâmica contraditória e paradoxal leva Marx a ver a propensão
do sistema para crises como resultado das próprias contradições fundamen-
tais do capitalismo. A crise econômica pode decorrer do curto-circuito, por
exemplo, entre produção e consumo que entrava a realização do mais-valor
por não vender as mercadorias competitivamente, o que, portanto, provoca
perdas vitais, irradiando-se pelo sistema e levando à destruição de capitais
(falências), com recessão econômica e desemprego. O que está em questão
aí, primordialmente, não é a retração do consumo que dificulte vender uma
mercadoria para comprar outra, mas fundamentalmente, a produção e a apro-
priação de mais-valor para viabilizar o reinvestimento produtivo em oportuni-
dade lucrativa. A carência dessa oportunidade oblitera a acumulação renovada
de valor. Essa disparidade que redunda em superprodução não é um quadro
excepcional e sim uma possibilidade lógica da concorrência de capitais, que
move o expansionismo de mercado, o movimento constante de corte de custos
e o impulso pelo aumento de produtividade, configurando mesmo um padrão
cíclico de seu desenvolvimento, abrangendo ascenso e descenso econômico. O
referido descompasso é motivado pelas próprias contradições que constituem
166

as categorias fundamentais mencionadas antes, como as contradições entre


valor de uso e valor de troca, trabalho concreto e trabalho abstrato, dinheiro
e valor, produção, circulação e consumo de mercadorias.
A lógica dos circuitos do capital entre produção/circulação inclui a reci-
procidade entre os agentes econômicos, mas também pode provocar colapso,
por exemplo, caso vendedores retirem o dinheiro da circulação, não com-
prando mercadorias e assim entravando as vendas e os investimentos em nova
produção. A comercialização das mercadorias possibilita a conversão do capi-
tal (mercadorias) em dinheiro, para de modo genérico recomeçar e reproduzir
ampliadamente o capital com novos investimentos. Qualquer estancamento
dessa dinâmica levanta barreiras à realização do valor.
Isso mostra que a superprodução é uma consequência direta dos fun-
damentos do capital e um estopim para crises, forçando a maior extensão
dos mercados e o aprofundamento do rebaixamento dos custos70. Os capitais

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avançados investem na superação dos métodos de produção e na criação de
novos produtos, no entanto, o objetivo não é atender necessidades humanas e
reduzir o esforço laboral dos trabalhadores e sim expandir valor. E, ao fazer
isso, provocam dialeticamente novas barreiras porque diminuem o valor das
mercadorias com o aumento da produtividade, de modo que essa entropia não
é um movimento superável sem a superação do próprio modo de produção.
A superprodução é uma tendência inelutável da lógica do capital e se desen-
rola como regularidade na realidade capitalista. A crise daí advinda é entendida
por Marx como falha sistêmica, desdobrada da dificuldade de realização do
valor, provocando perdas de capital espalhadas em falências e estagnação da
produção, em espiral descendente. As crises envolvem processos violentos de
desvalorização de capital, com desdobramentos nefastos sobre as condições de
vida. Essas crises são mecanismos também de recomposição purgatória, com
destruição de capitais e medidas de recomposição do modo como se emprega
a força de trabalho, incluindo, o próprio desemprego. Paralelamente, a crise
provoca a maior concentração e centralização de capitais e a dinamização do
sistema de crédito que, ao mesmo tempo, acentuam as crises, dado o alto volume
de capitais envolvidos, o aprofundamento das medidas de produtividade e a
especulação inerente a massa de recursos monetários introduzidos no mercado.
Marx (2011) entendia que o contramovimento à crise era tênue, com con-
dições apenas temporárias de deslocar as contradições fundantes geradoras do

70 Um dos meios de ampliação dos lucros é a introdução de novos métodos de produção para reduzir custos
e ampliar a produtividade. A concorrência de produtores individuais motiva, por exemplo, esse movimento
de crescente inserção da ciência na produção, pois capitalista que consiga produzir abaixo do tempo médio,
apropria maior proporção de mais-valor e pode expulsar concorrentes do mercado, lançando trabalhadores
no desemprego. Nessa dinâmica concorrencial, a disputa pode depender também de reduções salariais,
intensificação do trabalho e ampliação da jornada.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 167

crash, portanto, para ele, a sociedade estaria estruturada num terreno movediço,
o que significa que a volatilidade das condições sociais e ambientais abarcadas
no vocábulo precariedade não é decorrência do acaso de um evento externo. A
tendência às crises expõe a irracionalidade inerente ao próprio modo de produção,
sendo assim, o capitalismo é uma experiência histórica limitada para fornecer
sustentabilidade à existência humana e à natureza, de modo que a precarização
do modo de vida resulta dessas exigências internas da lógica do capital71.
As duas últimas grandes crises (1929 e 2008) carregam essas determi-
nações tematizadas por Marx, pois resultaram das contradições sistêmicas e
serviram como freio de arrumação das condições de reprodução do capital.
A crise de 1929 foi agravada pela própria agenda anticíclica do Estado nor-
te-americano que elevou os juros e recomendou que o mercado ajustasse as
condições econômicas pela ação competitiva, com drástica eliminação dos
capitais mais fracos. Essa purificação provocou uma profunda e longa depres-
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são com destruição de capitais e empregos, dilacerando as condições de vida


da própria existência humana. A crise de 2008 despontou como resultado da
ampliação do crédito (endividamento) e da formação de negócios especula-
tivos, com o volume de dinheiro sem referência equivalente com a produção
de valor, contando com a forte atuação dos Bancos Centrais dos Estados
(EUA e demais países cêntricos) para ampliar a liquidez no socorro a bancos
e, consequentemente, com a ampliação da dívida pública, além de falências
e queda dos investimentos na economia real. O resultado foi uma recessão
econômica estrondosa com forte desemprego, ampliação da externalização de
serviços sociais para o mercado, desfinanciamento de políticas sociais e refor-
mas trabalhistas mais densas, ampliando a flexibilização, a terceirização e o
empreendedorismo laboral, nos termos de Antunes (2018) e Barbosa (2020)72.
Para Marx, a esfera financeira da economia exerce atração sobre os
capitais nas conjunturas de expectativa de lucros baixos e horizontes reces-
sivos, de maneira que a hibernação de recursos na dinâmica financeira visa
aguardar melhores oportunidades de mercado. Esse seria um movimento
típico e reiterado do capital ao encontrar barreiras a sua reprodução ampliada.
71 A tendência à crise está enlaçada na própria mercadoria, nas duas formas de riqueza – bens concretos e
riqueza abstrata, representada no valor, reificado na forma-dinheiro. Sendo que a segunda dimensão tem
preponderância sobre a riqueza material, que só é produzida se valorizar o capital, portanto responde à
finalidade que lhe é externa e que redunda na metamorfose do dinheiro em mais dinheiro (D’). Isso significa
que se o bem não pode ser vendido, ele pode ser destruído independentemente dos flagelos humanos - os
alimentos podem apodrecer nas gôndolas e os imóveis vazios persistirem fechados sem uso social.
72 Os Estados têm respondido aos episódios críticos, desde os anos 1980, com os bancos centrais aumentando
a liquidez e esse modus operandi de acumular capital por meio da transfusão de dinheiro tende a ser um barril
de pólvora, na medida em que se sustenta no endividamento público e das famílias, mas também porque não
é afiançável que o Estado suporte frequentes socorros desse porte se as finanças forem preponderantemente
especulativas tipo esquema de pirâmide com promessa de pagamento de rendimentos altos aos investidores
à custa do dinheiro dos novos que chegarem posteriormente, sem ser, portanto, gerado pela economia real.
168

Esse abrigo na esfera financeira pode não se distanciar, de todo, da econo-


mia real, mas a potencializa, negativamente, aprofundando as contradições entre
valor de uso e valor (IAMAMOTO, 2007). Um exemplo disso é a exigência
dos investidores financeiros (acionistas, portadores de títulos financeiros, cre-
dores) sobre o enxugamento da organização produtiva e do trabalho ou mesmo
sobre a austeridade fiscal da agenda do Estado. Outro exemplo, é a entrada do
capital rentista na especulação de commodities, ocupando espaços territoriais
de produção de bens primários, mas também especulando com os preços no
mercado nas bolsas de mercadorias, tamanha a massa de dinheiro atraída para
esse nicho. Esse é um movimento que atinge o sul global que, carente de econo-
mia industrial, fez o giro, nas últimas décadas, para um novo ciclo de economia
extrativista, com forte apelo das rendas extraordinárias por parte das grandes
corporações extrativistas e financeiras. Nesse caso, as consequências concretas
apareceram no avanço sobre territórios de populações originárias, provocando a

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barbarização das condições de vida, o desmatamento, o extrativismo predatório
e a monocultura de commodities nociva à biodiversidade73.
No entanto, a crise de 2008 não é um curto-circuito isolado, mas
parte da crise aberta nos anos de 1970, derivada dos limites à lucratividade
do capital e do fracasso das medidas tomadas que não mais recuperaram
um ciclo de prosperidade semelhante ao expansionismo do Pós-Segunda
Guerra, de maneira que a crise se arrasta pelos últimos quarenta anos,
demonstrando que estamos, efetivamente, na vigência de uma crise estru-
tural, exatamente porque envolve a desubstancialização do capital com a
queda da produção do valor. A riqueza monetária é transferida entre pro-
prietários, mas de acordo com os gráficos de Roberts (2023), o capital social
total não encontra expansão semelhante a expressa nos índices daquele
ciclo expansivo precedente. Isso quer dizer que o capital está emparedado
para ser quem é, sobrevivendo de negócios especulativos que promovem
profunda precarização do trabalho e das condições de vida, sem ampliar
significativamente o valor social total.
Outro resultado emblemático dessa fase da economia capitalista é sua ação
sobre o meio ambiente, aprofundando o desastre climático, o desmatamento
e a expropriação de recursos. Um verdadeiro xeque-mate à sobrevivência do
planeta. A questão humanitária daí consequente é alarmante, com implicações
sobre o aumento da população sobrante às necessidades do capital e da mer-
cantilização da vida urbana, sacrificando ainda mais as condições de vida74.

73 Não é demais lembrar que a pandemia da covid-19 é uma expressão desse achaque da expansão de fron-
teiras ao capital, avançando sobre as regiões e maculando a biodiversidade. Ver a respeito: Monerat, 2020.
74 Em todo o mundo, verifica-se o agravamento das determinações do capital sobre as cidades, colocando a
moradia como uma das graves consequências da sociabilidade do valor, na medida em que a especulação
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 169

Trata-se de parte de um processo maior sistêmico depressivo, com uma


qualidade nova de impasses, diferenciada das crises cíclicas expansionistas
precedentes e com a falência dos controles metabólicos anteriores do Estado
que favoreciam o deslocamento das contradições imanentes. Estaríamos diante
de uma crise abrangente por conta da conexão internacionalizada do capital,
sobreposta porque apresenta impasses ampliados e articulados (econômicos,
políticos, sociais e ambientais),visceral e contínua porque aprofunda as con-
tradições internas sem induzir expansão significativa de lucros75.
Sem limites a sua expansão, o sistema capitalista se torna incontrolável
e destrutivo, ao sabor da lei do valor per se (radicalização do distanciamento
entre necessidades sociais e autorreprodução do capital), o que provoca cres-
cente precarização do trabalho, desemprego estrutural, mercantilização urbana
e depreciação da natureza. A gestão dos picos de crises tende a apresentar
muitos dispositivos de administração, embora sejam eles insuficientes para
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lidar com as contradições e as precipitações imanentes de uma nova época,


sem intervalos expansionistas expressivos, representando ser uma crise no
próprio valor, seja na produção com baixo incremento de trabalho vivo (criador
de valor) seja na realização do valor, levando, inclusive, à redução da taxa
de uso das mercadorias e ampliação da volatilidade das necessidades sociais
mercantilizadas. Os próprios corretivos transformam-se em mecanismos de
destruição, configurando uma totalidade social insanável.
Isso é uma mudança qualitativa das crises, com a crescente feição des-
trutiva do valor, expressa na precarização social e da natureza, de modo que a
reprodução do capital se realiza como crescentemente tóxica para humanidade e
natureza. De modo que a sobrevida do capital depende, hoje, da gestão de seus
destroços, com a barbarização social (MENEGAT, 2019; ARANTES, 2023).

Considerações finais

O capítulo abordou a precariedade como característica da sociedade capi-


talista, em razão da lógica da mercantilização impregnar a vida social situando
o valor como traço específico da riqueza produzida e o trabalho como categoria

imobiliária torna uma necessidade humana básica de abrigo estopim da disputa de capitais, constituindo
uma crise imobiliária global sem precedentes. A população que vive nas ruas, a favelização das moradias e o
banditismo avançam e se entrecruzam conforme crescem os artefatos de maior gentrificação dos lugares, de
acomodação turística plataformizada (Airbnb), de destruição de economias fabris, de investimentos especula-
tivos com títulos imobiliários/fiscais e de encurtamento de políticas públicas consequentes como valor de uso.
75 Vale dizer que a precariedade das condições de vida e o empobrecimento até o século XIX decorriam da
emersão e consolidação da sociedade capitalista como modo de vida e, agora, no capitalismo mundializado
e em crise essas expressões derivam do impasse interno da lógica do valor, quando ganha nova força as
ruínas sociais e ambientais.
170

mediadora da sociabilidade. Esse delineamento social apequena a experiência


humana, reduzindo-a à unidimensão do trabalho que em sendo central na vida
captura o tempo de existência dos trabalhadores, subsumidos à dinâmica da
produção da mercadoria ou retidos em virações e bicos porque dependem de
dinheiro. Por outro lado, é uma sociedade que cria população em excesso e,
por isso, a gestão da relação vida-morte não lhe é inusitado, pois produz con-
tingente que não será integrado produtivamente, que não servirá diretamente à
exploração capitalista (sobretrabalho). Essa tendência institui a descartabilidade
de vidas excedentes que assim penam para sobreviver, constituindo âmbitos
de abandono, de encarceramento e de gestão assistencial dos sobrantes. Com
isso, estamos matizando que a precariedade não irrompe a partir dos anos de
1970 (com a crise do fordismo), mas resulta de suas contradições internas, da
sua natureza mesma e não se restringe a uma realidade pré-capitalista, como
por vezes abordou-se o “subdesenvolvimento” do sul global.

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O expansionismo do valor e as condições históricas específicas do pós-
-Segunda Guerra (Guerra Fria, por exemplo) estão por trás dos laços entre
capitalismo e regulação social. Outra situação é a época do pós-1970, com a
universalização do capitalismo, os desdobramentos das inovações tecnológicas
(microeletrônica, automação e inteligência artificial) e a queda alarmante do
crescimento da economia mundial. A renovação dos meios de trabalho visa
aumentar a produtividade e diminui o emprego da parcela variável do capital,
mas, contraditoriamente, provoca a diminuição do valor precipitando conjun-
turas críticas. Essa dinâmica de produção/realização do valor não se altera
nos últimos quarenta anos e se o capital é valor que se valoriza, portanto, a
crise alastrada é de natureza estrutural e não pode ser revertida pela nostalgia
regulatória do passado, quando o expansionismo do valor podia deslocar
efeitos negativos das contradições internas.
O desafio sobre como lidar politicamente com essa realidade visando
a emancipação humana passa por entendermos melhor a precariedade como
generalização de uma forma de vida, material e subjetivamente. A própria
generalização do trabalho abstrato por meio da flexibilização laboral torna
líquida as fronteiras entre as tarefas profissionais corroendo as identidades
corporativas, o que pode ser uma chance para diminuir o distanciamento polí-
tico e abrir caminho para enveredarmos em busca da superação do trabalho
capitalista, com a maior aproximação política dos trabalhadores e a crítica ao
contexto social subsumido ao valor.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 171

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PARTE II
A VIOLÊNCIA DA DINÂMICA
CAPITALISTA PRECARIZANTE E A
GESTÃO DOS SEUS ESCOMBROS
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EXPROPRIAÇÃO E VIOLÊNCIA:
reflexões a partir dos impactos dos
grandes projetos de desenvolvimento
no espaço agrário do Rio de Janeiro
Ana Costa
Paulo Alentejano
Pedro Catanzaro da Rocha Leão
DOI: 10.24824/978652515286.8.177-198

O estado do Rio de Janeiro é um dos mais urbanizados do país, com mais


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de 97% da população habitando as áreas urbanas e 75% concentrada na Região


Metropolitana (RMRJ), segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2010.
Com vastas áreas rurais improdutivas, tomados por latifúndios destinados à
especulação, o campo fluminense é no imaginário coletivo um grande vazio
e as populações que aí vivem desconhecidas da maioria dos/das fluminenses
e de outros/as brasileiros/as.
Diante desse cenário, a implantação de Grandes Projetos de Desenvol-
vimento (GPDs) é vista como uma grande contribuição para impulsionar a
economia do estado, sem que se vislumbre qualquer impacto negativo destes.
Entretanto, não foi o que observamos ao longo de quase 15 anos de pesquisas e
acompanhamento da implantação de GPDs no estado do Rio.76 Pelo contrário,
observamos intensas resistências contra processos de expropriação e muita
violência por parte do Estado e de agentes privados para sufocar essas lutas
e fazer valer os interesses do capital.
Este artigo é composto por três partes, além desta Introdução e da Con-
clusão. Na primeira parte apresentamos nossa definição de GPDs e como estes
se consolidaram como principal vetor de desenvolvimento no estado do Rio
de Janeiro nas últimas duas décadas. Na segunda parte discutimos conceitual-
mente os nexos entre expropriação e violência. E na terceira parte analisamos
os processos de expropriação e violência associados e promovidos no espaço
agrário do estado do Rio de Janeiro por três diferentes GPDs.

76 O Grupo de Trabalho de Assuntos Agrários da Associação dos Geógrafos Brasileiros - Seções Locais Rio de
Janeiro e Niterói (GTAgrária) foi criado em 2002 e desde o final dos anos 2000 dedica-se a apoiar diferentes
movimentos sociais rurais no processo de identificação dos impactos dos GPDs e na construção da resistência
contra esses. O livro Geografia dos grandes projetos de desenvolvimento: reflexões a partir dos conflitos no
estado do Rio de Janeiro materializa essa contribuição teórico-política do GT Agrária (GTAGRÁRIA, 2021)
178

Os GPDs e o espaço agrário do Rio de Janeiro

Os GPDs são investimentos de grande porte realizados em áreas ainda


pouco exploradas pelo capital, concebidos a partir da ideia de que a sua
implantação impulsionaria o desenvolvimento através da atração de outros
investimentos. Trata-se de uma concepção derivada da noção de polo de
crescimento, formulada pelo economista francês François Perroux após a II
Guerra Mundial no contexto da recuperação econômica da Europa. Assim,
grandes obras de infraestrutura ou grandes indústrias atrairiam outros inves-
timentos e alavancariam o desenvolvimento das regiões onde se instalassem,
gerando um ciclo virtuoso de geração de emprego e renda que beneficiaria o
conjunto da sociedade.

Os GPDs podem ser entendidos como atividades e empreendimentos de

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grandes dimensões, que demandam significativo volume de recursos/inves-
timentos e que são extensivamente e intensivamente impactantes a uma
dinâmica regional. Entre esse conjunto de atividades e empreendimentos
podemos destacar: mineração, exploração de petróleo e gás, monoculturas,
obras de infraestrutura e geração de energia (hidrelétricas, termoelétricas,
portos, barragens etc.), indústrias pesadas (siderúrgicas, refinarias, com-
plexos industriais etc.) (ALENTEJANO; TAVARES, 2021, p. 52)

Durante a ditadura empresarial-militar instaurada com o golpe de 1964


vários GPDs foram implantados no Brasil, como as hidrelétricas de Itaipu
(PR), Tucuruí (PA), Sobradinho (BA), as usinas nucleares de Angra dos Reis
(RJ), o polo petroquímico de Camaçari (BA) e o Programa Grande Carajás
(PA), espalhados pelas diversas regiões do país.

As principais críticas feitas ao conceito de polo de crescimento de Per-


roux apontam para a não concretização dos efeitos de indução do cresci-
mento regional. Segundo essas críticas, nem sempre as grandes empresas/
polos que se instalavam nessas regiões geravam esse efeito positivo de
indução do crescimento e promoção do desenvolvimento regional. Ao
contrário, muitas vezes essas empresas/polos configuravam verdadeiros
enclaves territoriais, uma ilha de modernidade cercada por populações
que continuavam sem se beneficiar dos aportes de infraestrutura e mui-
tas vezes apenas tornavam-se vítimas das transformações promovidas
localmente, como expropriações, expulsões e poluição. Acrescente-se
também a esta crítica o fato de que estes polos reforçam desigualdades
locais e regionais, pois alguns segmentos da sociedade se apropriam da
renda gerada a partir destes empreendimentos (ALENTEJANO; TAVA-
RES, 2021, p. 55)
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 179

As fortes reações que os impactos socioambientais resultantes des-


tes GPDs geraram, somadas à crise econômica que o país vivenciou nos
anos 1980 e 1990 levaram a um arrefecimento do ritmo de implantação
de GPDs nas duas últimas décadas do século XX. Entretanto, nos anos
2000 houve uma expressiva retomada dos GPDs no Brasil, envolvendo,
sobretudo, obras de infraestrutura destinadas a impulsionar a exportação
de produtos primários.

Os grandes projetos voltam à pauta nos últimos anos, de que são exem-
plares megaempreendimentos hídricos – transposição das águas da bacia
do São Francisco, hidrelétricas de Belo Monte e Madeira. Há, porém, uma
decisiva mudança do que se passa hoje em relação ao que aconteceu nos
anos 70: agora, grande parte das empresas e de seus empreendimentos
territoriais não estão mais sob controle do Estado brasileiro (VAINER,
2007, p. 11).
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No estado do Rio de Janeiro, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro


(Firjan) formulou uma agenda de desenvolvimento pautada na instalação de
GPDs e esta foi plenamente incorporada pelos sucessivos governos desde
meados dos anos 2000, conforme se observa nas duas versões do Plano Estra-
tégico do Estado do Rio de Janeiro, 2007-2010 e 2012-2031.

Até 2020, a área de desenvolvimento econômico do Governo Estadual


estima que serão investidos mais de R$ 210 bilhões em seu território. A
previsão é que sejam aplicados R$ 83 bilhões na exploração e produção
de petróleo, R$ 41 bilhões em logística, R$ 20,9 bilhões em infraestru-
tura urbana, R$ 20,1 bilhões em siderurgia, R$ 14,8 bilhões em energia,
R$ 14,6 bilhões em petroquímica, R$ 9,5 bilhões na indústria naval e
náutica e R$ 7,9 bilhões na indústria de transformação. Estima-se que os
projetos gerem ao menos 104 mil novos postos de trabalho nas diferentes
regiões fluminenses. Entre os projetos acompanhados pela área de desen-
volvimento econômico do Governo, destacam-se os valores estimados
para a construção do Comperj (R$ 14,6 bilhões), do Complexo do Porto
do Açu (R$ 8,3 bi), da Usina de Angra 3 (R$ 4 bi), a reurbanização da
área portuária da capital fluminense (R$ 3,5 bi), a implantação do Arco
Metropolitano (R$ 1,2 bi) e a reforma do Maracanã (R$ 700 milhões
(SEDEIS, 2011). ” (SECRETARIA DE ESTADO DE PLANEJAMENTO
E GESTÃO, 2012, p. 24/26)

Temos, portanto, uma articulação entre grandes corporações e Estado


em novas bases, apoiada no planejamento estratégico e na difusão da ideia
de que é preciso aproveitar as oportunidades abertas pela globalização. Para
180

isso forja-se uma aliança entre Estado, elites locais e grandes corporações
transnacionais para reordenar o território.

Pela própria massa de capital, território e recursos ambientais mobilizados, os


interesses que se movem através dos GPIs se situam nas grandes corporações
nacionais e multinacionais. Como visto, no passado, e ainda no presente para
certos setores, o Estado desempenha papel central na viabilização financeira,
industrial e política dos empreendimentos... (VAINER, 2007, p. 19)

Dentre os principais investimentos previstos destacam-se como os dois


maiores o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e o Com-
plexo Industrial e Portuário do Açu (Cipa) que geraram profundos impactos
no espaço agrário fluminense conforme analisaremos em uma outra seção
deste texto.
O mapa abaixo apresenta uma síntese dos GPDs implantados ou pro-

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jetados no estado do Rio de Janeiro ao longo das primeiras décadas do
século XXI.

Mapa dos Grandes Projetos de Desenvolvimento no estado do Rio de Janeiro

No caso do Comperj, instalado no município de Itaboraí, foi concebida


como compensação socioambiental a implantação de uma barragem no rio
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 181

Guapiaçu, no município vizinho de Cachoeiras de Macacu, para aumentar


a oferta de água para o Leste Metropolitano, dado o aumento da demanda
por água que seria gerado com o crescimento populacional alavancado pelo
Comperj. A área prevista para a instalação da barragem seria um suposto
vazio demográfico, no qual constatamos a existência de centenas de famílias
de agricultores, em sua maioria assentados por diferentes mecanismos de
política agrária e que tinham em comum a precariedade da titulação da terra,
o que os tornava vulneráveis a processos desapropriatórios (D’ANDREA;
WANDERLEY; ALENTEJANO, 2021).
No caso do Cipa, instalado no município de São João da Barra, no Norte
Fluminense, tratava-se de um projeto que combinava a instalação de um
porto voltado para escoamento de minério com uma grande área destinada à
instalação de diversas indústrias (COSTA; BARCELOS, 2021).
Outro GPD que analisamos foi o megaempreendimento imobiliário Aretê,
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no município de Armação dos Búzios, que prevê a instalação de campo de


golfe e a ampliação do aeroporto e das marinas existentes na região, em uma
área reivindicada pela comunidade quilombola da Baía Formosa, que teve
muitos de seus integrantes expulsos da terra pelos fazendeiros interessados
em repassar as áreas para o Aretê.
A instalação desses GPDs impacta profundamente as áreas onde se loca-
lizam, aprofundando processos históricos de desigualdade social, aos quais
se somam agora as desigualdades ambientais.

O conceito de desigualdade ambiental permite apontar o fato de que, com


a sua racionalidade específica, o capitalismo liberalizado faz com que os
danos decorrentes de práticas poluentes recaiam predominantemente sobre
grupos sociais vulneráveis, configurando uma distribuição desigual dos
benefícios e malefícios do desenvolvimento econômico. Basicamente, os
benefícios destinam-se aos grandes interesses econômicos e os danos a
grupos sociais despossuídos (COLETIVO BRASILEIRO DE PESQUI-
SADORES DA DESIGUALDADE AMBIENTAL, 2012, p. 165).

Os GPDs pressupõem a reorganização do espaço para adequá-lo à lógica


das grandes corporações, o que inclui a alteração de leis e normas, como as
realizadas em São João da Barra para transformar a área do 5º Distrito que
seria destinada ao Cipa de área agrícola em área industrial no zoneamento
municipal. (COSTA; BARCELOS; WANDERLEY, 2021)
Assim, a implementação dos GPDs no espaço agrário do estado do Rio
de Janeiro aprofunda o processo de retração das áreas rurais e aprofunda
ainda mais a crise da agricultura. Entre 1975 – ano da fusão dos estados da
182

Guanabara e Rio de Janeiro que resultou na atual configuração espacial do


estado do Rio de Janeiro – e 2017 – quando foi realizado o último Censo
Agropecuário – a área ocupada por estabelecimentos agropecuários caiu de
3.446.176 ha para 2.375.373 ha, uma redução de mais de 1 milhão de ha,
correspondente a mais de 30%. Já a área plantada com lavouras regrediu de
617.545 ha para 190.522 ha, uma queda de 427.023 ha, o que equivale a quase
70%. Também houve forte redução da população empregada na agricultura
que caiu de 278.564 para 160.571, uma redução de 117.993 equivalente a
42%, grande parte desta população sendo empurrada para as periferias das
cidades e engrossando o processo de favelização.
Nas próximas seções deste texto analisaremos como expropriação e vio-
lência se combinam na implantação dos GPDs, revelando o caráter destrutivo
da acumulação capitalista, a brutalidade e irracionalidade de um modelo de
desenvolvimento pautado na superexploração do trabalho e na espoliação da

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natureza e das populações despossuídas.

Expropriações e violência

Como traço permanente no contexto da questão agrária no Brasil, em


particular, na região Norte Fluminense, destacam-se dois elementos funda-
mentais na análise e compreensão deste tema: a expropriação dos recursos
naturais e dos direitos da classe trabalhadora e a violência perpetrada aos
segmentos despossuídos, como denomina Fernandes (1973).
As estratégias utilizadas secularmente nos processos de expropriação dos
recursos naturais e, particularmente, da terra, são marcadas pela violência, como
é característica do processo de acumulação primitiva (MARX, 2013) sendo
reinventadas, atualizadas e adequadas aos diferentes contextos históricos, econô-
micos e sociais. Para Fontes, “Esse solo social – a expropriação – pode parecer a
muitos como excessivamente simples, até mesmo simplório, para compreender o
capitalismo. De fato, mesmo insuficiente para explicar a totalidade das relações
capitalistas, é, entretanto, sua condição necessária” (2010, p. 44).
Portanto, vislumbramos a possibilidade de um diálogo permanente entre
o passado e o presente, com foco na terra e todo o processo de expropriação
pelas elites – ou classe possuidoras, para Fernandes (1973) – em constante luta
e disputa com os despossuídos, como os povos originários, escravos, imigran-
tes, quilombolas, ou seja, com todos os sem terras, como são chamados hoje
pelo MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (COSTA, 2018).
Neste texto analisamos em particular as contradições de megaempreen-
dimentos ou GPDs, favorecidos pelo Estado na modalidade de parcerias
público-privadas, que vêm por meio do método da expropriação das terras
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 183

e dos demais recursos naturais, a garantia do crédito via fundo público,


viabilizando as condições gerais de produção nesse processo de superacu-
mulação do capital.
Como afirma Harvey, o “Estado capitalista não pode ser outra coisa que
instrumento de dominação de classe, pois se organiza para sustentar a relação
básica entre capital e trabalho” (2005, p. 82). Ele chama a atenção para uma
questão fundamental no debate e evidenciada no percurso de nossas pesquisas,
que são os conflitos resultantes destes processos comprovados nas mudanças
das legislações e sua consequente flexibilização para viabilizar os GPDs.
Os estudos realizados têm contribuído para decifrar alguns “enigmas do
capital” nesse processo. Para Marx, “a história da expropriação que sofreram
[e sofrem os camponeses e os demais trabalhadores] foi inscrita a sangue e
fogo nos anais da humanidade” (2013, p. 837). Harvey, em seu livro O novo
imperialismo, afirma que a acumulação “primitiva” já ocorreu, e seu processo
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agora tem a forma de reprodução expandida (2012, p. 120).


Um dos desafios apresentados, principalmente, aos pesquisadores é
esclarecer a sociedade de que os problemas vivenciados atualmente, pelos
moradores dos territórios atingidos pelos GPDs não são ações isoladas, pois
esse processo faz parte de um novo ciclo de mundialização do capital, que
tem na exploração e expropriação, na concentração e acumulação do capital,
suas dimensões principais. Para Chesnais,

A mundialização é o resultado de dois movimentos conjuntos, estreita-


mente interligados, mas distintos. O primeiro pode ser caracterizado como
a mais longa fase de acumulação ininterrupta do capital que o capitalismo
conheceu desde 1914. O segundo diz respeito às políticas de liberalização,
de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de conquis-
tas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o início da década
de 1980, sob o impulso dos governos Thatcher e Reagan (1996, p. 34).

Os fatos relatados e vivenciados no estado do Rio de Janeiro vêm ocor-


rendo nas diversas regiões brasileiras e em vários países no marco da chamada
“mundialização do capital”. Ele possibilita ao grande capital restabelecer a
rentabilidade dos seus investimentos, num quadro, em que a concorrência entre
as regiões, bem como as vantagens oferecidas pelo Estado, como isenções
fiscais, subsídios, rebaixamento de salários, dentre outros, contribuem para a
escolha e permanência desses grupos empresariais, independente de quaisquer
limites, sejam eles geográficos, culturais ou econômicos, determinados pelos
países em seus diferentes e complexos territórios.
É importante observar ainda como o Estado burguês contemporâneo tem
se caracterizado como o grande agente financiador dos megaempreendimentos
184

e “se apresenta como de fundamental importância no processo de ampliação


da acumulação do capital” (COSTA; BARCELOS; WANDERLEY, 2021, p.
91), assim o Estado é condição sine qua non para o capital em tempos de mun-
dialização financeira, privatizando o fundo público a favor dos interesses do
grande capital, nacional e internacional, altamente concentrado e centralizado.
Harvey apresenta algumas questões fundamentais para pensar as mudan-
ças políticas nos discursos quando a “globalização” se torna uma palavra-
-chave para a organização dos nossos pensamentos (2015, p. 79-80). Por
que a palavra “globalização” entrou recentemente em nossos discursos da
maneira como o fez? [...] E que importância tem o fato de, mesmo entre mui-
tos “progressistas” e “esquerdistas” do mundo capitalista avançado, palavras
bem mais carregadas politicamente, como “imperialismo”, “colonialismo” e
“neocolonialismo”, terem passado crescentemente a ter um papel secundário
diante de “globalização” como forma de organizar pensamentos e de explorar

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possibilidades políticas?
Como o conceito de globalização tem sido usado politicamente? Terá
a adoção do termo indicado uma confissão de impotência da parte de movi-
mentos nacionais, regionais e locais da classe trabalhadora ou de outros movi-
mentos anticapitalistas?
Essa mudança generalizada do discurso da política, tanto em segmentos
de “direita” como da “esquerda” como vem ocorrendo, para Harvey estaria
voltada a criar, nos sujeitos coletivos que resistem à lógica capitalista, uma
atitude ou comportamento imobilizante diante das complexidades com que se
defrontam. Neste sentido, articular as questões afetas ao processo de expro-
priação do chão onde eles se fincaram, sejam (a) as expropriações de terras nos
processos de trabalho, (b) sejam os bens naturais como a água, os minerais,
(c) sejam os serviços públicos (como a saúde, a educação, dentre outros),
com os processos mais gerais e complexos, nesta etapa da financeirização
do capital, tornam-se estratégias fundamentais para as populações atingidas
nessas dinâmicas de enfrentamentos.
Ao analisar a lei geral da acumulação capitalista, Marx (2013, p. 738)
afirma que à medida que se desenvolve a produção e acumulação capitalista,
na mesma medida desenvolvem-se concorrência e crédito, as duas mais pode-
rosas alavancas da centralização de capitais. “O crédito, apesar de ser dívida e
penhora sobre o futuro, uma vez despendido na produção, permite a obtenção
de mais valia maior, reproduzindo o capital de forma ampliada, o que viabiliza
seu pagamento” (MOLLO apud COSTA, 2018, p. 133).
Uma de suas particularidades está relacionada à autonomização do valor,
no que diz respeito ao seu conteúdo material – o valor de uso. Essa é uma
contradição que se acirra e, ao mesmo tempo, torna-se cada vez mais complexa
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 185

com o desenvolvimento desse sistema. Para Marx, “As crises do mercado


mundial têm de ser concebidas como a convergência real e o ajuste à força
de todas as contradições da economia burguesa” (1980, p. 945).
Destarte, a dívida pública, que representa o direito de apropriação de
receitas tributárias futuras, exerce um papel fundamental nos processos de
acumulação máxima de capital, ao mesmo tempo em que a ausência de rela-
ção material com a produção de valor é incrementada e as condições para os
efeitos da crise são criadas.
Portanto, os processos de acumulação capitalista caracterizados por
Marx, desde a acumulação primitiva ou originária convivem com as formas
sofisticadas e mais avançadas da atualidade. Estas não são excludentes, uma
vez que dialogam entre si e com os demais sujeitos envolvidos no processo.

Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona


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permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo


até os nossos dias. A expulsão das populações camponesas e a formação
de um proletariado sem-terra tem se acelerado em países como o México
e a Índia nas três últimas décadas; muitos recursos antes partilhados,
como a água, têm sido privatizados (com frequência por insistência do
Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista da acumulação; formas
alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercado-
rias de fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas.
Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substituiu
a agropecuária familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente
no comércio sexual) (HARVEY, 2012, p. 121).

Com o “monopólio da violência e suas definições de legalidade, [o


Estado] tem papel crucial no apoio e na promoção” (HARVEY, 2012, p. 123)
dos processos de privatização das terras; na expulsão violenta de camponeses;
na supressão de formas alternativas de produção e consumo, dentre tantas
outras espoliações vivenciadas pelas populações atingidas nos territórios em
que estes megaempreendimentos são instalados.
Uma das premissas que sustenta essa função do Estado é de que quanto
maior for a exploração da força de trabalho, maior será o valor, a acumulação e,
consequentemente, a geração e apropriação da riqueza. Faz-se necessário refletir
sobre este cenário atual em que a expropriação da terra e sua reconcentração,
operada em alguns países, como o Brasil, não só desapropria, mas fomenta a
implementação desses megaempreendimentos através de financiamentos de fun-
dos públicos e dos bancos oficiais como o BNDES, a Caixa Econômica e outros.
Assim, o Estado burguês, representado nas suas diferentes escalas, cum-
pre com eficácia a função de criar as condições necessárias para o processo de
186

superacumulação capitalista e para que o capital financeirizado possa, através


das grandes empresas, se instalar em determinado território.
Todo esse processo ocorre, sem que os atingidos, enquanto cidadãos,
possam garantir que seus direitos constitucionais – direito à terra, à moradia
e a um meio ambiente adequado, dentre tantos outros –, sejam preservados.
As lutas travadas desde o início dos empreendimentos em diversas escalas
e os processos de resistências vivenciados por esses sujeitos ilustram bem
estes conflitos.
Estes empreendimentos foram concebidos sem a participação das comu-
nidades locais em todos os procedimentos para as desapropriações e remoções
realizadas, e estão sendo implementados, respaldados nos diversos Decretos
de governos no Estado do Rio de Janeiro, violando um conjunto de direitos
humanos fundamentais às comunidades quilombolas, aos pequenos agricul-
tores, pescadores e suas famílias, que vivem hoje uma espécie de Estado de

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Exceção. E são estes “réus” que, em função dos decretos de desapropriação,
não têm sequer a possibilidade de contestação das violações contra eles pra-
ticadas. São medidas de exceção, ou seja, a suspensão do Estado de Direito,
pelo direito, ou ainda, como afirma Agamben (2004, p. 61), é um espaço
anômico onde o que está em jogo é uma força-de-lei sem lei.
Na conjuntura atual, o modus operandi do Capital e do Estado vem se
mantendo no Brasil com as invasões em terras das populações originárias,
remoções forçadas, assassinatos de lideranças que resistem aos processos de
expropriação dos recursos naturais, dentre tantas outras violências que vem
ocorrendo em todo o âmbito dos megaempreendimentos no estado do Rio
de Janeiro e nas demais regiões brasileiras. “O Estado, com seu monopólio
da violência e suas definições da legalidade, tem papel crucial no apoio e na
promoção desses processos [mercadificação, expropriação, taxação etc.]”
(HARVEY, 2012, p. 121).
Nesse sentido,

A legitimidade invocada para que o Estado detenha o monopólio da vio-


lência não se dá por decreto, mas, sim, precisa ser construída no dia a dia
[...]. A hegemonia, sabemo-lo desde Gramsci, afirma-se com um pé na
coerção e outro na persuasão (Gramsci, 1987). A coerção é, em si mesma,
violência e, como tal, não basta para que afirme hegemonia. Assim, abre-se
espaço para o imponderável, para a dialética aberta da história por onde
medra o processo instituinte onde, inclusive, a violência se faz presente
de todos os lados. Afinal, como afirmara P. Bourdieu, é da natureza da
realidade social a luta permanente para dizer o que é a realidade social,
inclusive, que violência é legítima ou não (PORTO-GONÇALVES; LEÃO,
2020, p. 715).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 187

Assim, a violência é constitutiva de nossa sociedade e ao longo do tempo


e ao largo de nossas geografias “adquiriu formas históricas se instaurando
inclusive como no Estado. ” (PORTO-GONÇALVES; LEÃO, 2020, p. 716).
Nesse sentido, segundo Costa et al. (2021), através desse monopólio legí-
timo da violência e suas próprias definições do que é e não é legal, o Estado
desempenha papel ímpar no apoio e na promoção dessa violência que se faz
nos “processos de privatização de terras, na expulsão violenta de camponeses;
na supressão de formas alternativas de produção e consumo, dentre tantas
outras espoliações vivenciadas pelas populações atingidas nos territórios dos
megaempreendimentos”(COSTA et al., 2021, p. 91).
E são tantas as formas dessa violência que se faz presente no chão con-
creto das lutas por terra/ território no Rio de Janeiro, associadas as estratégias
de coerção pelo Estado e pelos agentes privados envolvidos nos GPDs. A vio-
lência, nesses casos, não aparece somente enquanto manifestação da coerção
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através do ataque (físico) aos corpos dos homens e mulheres da terra, mas
também como estratégia perpetrada pelo Estado e pelo capital para viabili-
zação desses projetos e seus interesses.
Para Fontes, “a expropriação não pode ser considerada como um fenô-
meno apenas econômico, uma vez que é propriamente social [...]” (2010, p.
88). Esta autora afirma que “trata-se da imposição – mais ou menos violenta
– de uma lógica da vida social pautada pela supressão de meios de existên-
cia ao lado da mercantilização crescente dos elementos necessários à vida”
(2010, p. 88). Tais fatos não são exclusivos do Estado brasileiro, mas após a
chamada mundialização do capital, possibilita ao grande capital restabelecer
a rentabilidade dos seus investimentos. Para Santos,

Os atores hegemônicos, armados com uma informação adequada, servem-


-se de todas as redes e se utilizam de todos os territórios. Eles preferem
o espaço reticular, mas sua influência alcança também os espaços banais
mais escondidos. Eis por que os territórios nacionais se transformam num
espaço nacional da economia internacional e os sistemas de engenharia
mais modernos, criados em cada país, são mais bem utilizados por firmas
transnacionais que pela própria sociedade nacional (2006, p. 163).

No processo de acumulação primitiva que dá origem ao capitalismo, na


Inglaterra nos séculos XIV, XV e XVI, a expropriação dos camponeses de suas
terras criava a um só tempo, capital, capitalistas e trabalhadores assalariados,
transformando a terra em propriedade privada para a produção de ovelhas e
lã às manufaturas nascentes. Diferentemente do processo descrito por Marx,
no século XXI, a expropriação dos camponeses e pescadores ocorreu para
188

a construção dos GPDs. Deste modo, é uma ação expropriatória promovida


pelo capital já concentrado.
Esses processos estudados são muito diferentes da expropriação da terra
na Inglaterra, onde ela foi utilizada como meio de produção para a atividade
pastoril. No caso dos GPDs pesquisados, a terra é expropriada, não para a
produção agrícola em bases capitalistas, mas como base (substrato) de um
empreendimento comercial/industrial e como reserva de valor para a estabili-
dade do capital nacional e internacional, que no capitalismo contemporâneo,
na sua etapa de financeirização exacerbada, continua necessitando de base
física (terra e meios de produção) e uma base variável, força de trabalho livre,
para se valorizar. Para Bartra, “si la acumulación primitiva analizada por Marx
es premisa histórica de la acumulación ampliada propiamente capitalista, el
saqueo permanente es premisa estructural de la acumulación ampliada rentista”
(2015, p. 120).

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Expropriação e violência nos GPDS: os casos do complexo
portuário do Açu, do projeto de barragem no Rio Guapiaçu e o
condomínio de luxo Aretê no quilombo da baia formosa

Conforme analisado no item anterior, não raro vemos associações entre


processos de expropriação de terras e/ou recursos naturais e diferentes formas
de violência. Quando se trata de impactos decorrentes da implementação
dos GPDs no estado do Rio de Janeiro, nos deparamos com um cenário de
megaempreendimentos que se realizam fundamentados em discursos que
versam sobre ideais de modernização, progresso e geração de empregos com-
binados com uma série de problemas fundiários, ambientais e sociais. Dentre
esses problemas, dinâmicas expropriatórias muitas vezes se combinam com
distintos modos de violência que são utilizadas para garantir a dinâmica de
acumulação de capital via espoliação (HARVEY, 2005).
Especificamente, esses megaempreendimentos que configuram os GPDs
exigem a apropriação de grandes porções de terra para serem realizados e/
ou para servirem de políticas compensatórias aos danos ambientais con-
sequentes de sua implementação. E “na maior parte das vezes, é o Estado
quem oferece as condições ao capital para aquisição e preservação das terras,
por meio de expropriações, grilagens ou compras a preços subestimados. ”
(COSTA et al., 2021, p. 91).
Apresentaremos aqui três casos de territorialização de grandes projetos
de desenvolvimento nos quais o GT Agrária AGB Rio-Niterói atuou junto às
comunidades atingidas.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 189

Complexo Portuário do Açu e os Conflitos em São João da


Barra-RJ

A concorrência entre os países, estados e regiões, bem como as vantagens


oferecidas, como isenções fiscais, subsídios, rebaixamento de salários – ou
como no caso em tela, a transformação do 5º Distrito no Açu, de área rural para
área industrial, realizada pelo poder executivo e aprovada pelo poder legislativo
de São João da Barra, criaram as condições necessárias para que o governo
estadual desapropriasse 7.036 hectares, por meio de vários Decretos estaduais
– que colaboraram para a escolha e permanência desses grupos empresariais.
As violências perpetradas contra camponeses, trabalhadores rurais e
populações tradicionais de São João da Barra/RJ estão associadas a um
projeto maior que envolve também o Estado de Minas Gerais. Maior
empreendimento minero-portuário do mundo, o Projeto Minas-Rio envolve
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a construção da maior obra portuária das Américas, incluindo a construção


do maior mineroduto já visto em toda a história do setor mineral, com 525
km de extensão, integrando a mina e as unidades de beneficiamento de
minério, em MG, ao condomínio industrial misto do Superporto do Açu,
no RJ (COSTA et al., 2014)
Esse megaempreendimento encontra um território constituído por múl-
tiplas identidades coletivas e de imensa riqueza cultural que vivem da eco-
nomia familiar, realização de feiras e abastecimento de mercados em vários
municípios da região de São João da Barra/RJ através da agricultura familiar.
Em seu trecho fluminense, o mineroduto, impacta sete municípios do estado
do RJ, e se consolida no Complexo Industrial Portuário do Açu, no 5º Distrito
de São João da Barra, que alia um distrito industrial misto a um porto. Ao
encontrarem comunidades de parentesco que trabalham em terras repartidas,
o capital e o Estado encamparam estratégias violentas para garantir a expro-
priação das terras e permitir a implementação do GPD.
Os governos dos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais apoiaram
o projeto através de diversas concessões e garantias fiscais. Com isso,
extensas faixas de terra foram desapropriadas, unidades de conservação
para compensação ambiental foram criadas e estradas foram abertas alcan-
çando uma área total de 30.000 hectares associada ao projeto. No Rio de
Janeiro, a implantação do projeto se deu sobre a área de maior faixa con-
tínua de restinga de todo o litoral brasileiro cujo acervo de biodiversidade
é imensurável – contando, inclusive, com áreas endêmicas e com espécies
e ambientes ameaçados.
O descaso do poder público e da iniciativa privada com os povos e
comunidades da terra e com o meio ambiente através de estratégias violentas e
190

expropriatórias pode ser exemplificado: (1) pelo licenciamento ambiental feito


de forma fragmentada, ora pelo órgão ambiental de Minas Gerais (SISEMA),
ora pelo do estado do Rio de Janeiro (INEA), ora pelo IBAMA, na esfera
Federal; (2) pelas violações nas recomendações do Zoneamento Econômico
Ecológico (ZEE) de ambos os estados e as diretrizes de conservação esta-
belecidas pelo Ministério do Meio Ambiente; (3) pela salinização das terras
e águas em São João da Barra por conta das obras do canal de acesso ao
estaleiro e ao porto; (4) pelos vários casos de adoecimento por depressão que
surgiram entre os mais velhos; (5) através de distintas formas de intimidação
de agentes públicos e privados, do 8° Batalhão da Polícia Militar de Campos
dos Goytacazes e da segurança da empresa LLX que retiraram famílias intei-
ras de suas terras tradicionalmente ocupadas; (6) pela publicação de decretos
que viabilizavam desapropriações e remoções compulsórias de mais de 1500
famílias; (7) pela destruição de grandes áreas de restinga protegidas por lei;

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(8) pela violação dos direitos constitucionais (art. 265 da Constituição Esta-
dual) da população residente; (9) pelos impactos sobre os assentamentos de
Reforma Agrária existentes na região.
Nesse sentido, segundo Costa et al.,

O Projeto Minas Rio foi assim se configurando pelas desapropriações


compulsórias, removendo famílias e histórias, impossibilitando o direito
pleno a moradia, ao ambiente, a água e a terra, ao alimento, enfim veio
minando aos poucos os contextos de vida e aprofundando os processos
de adoecimento nestes lugares. Trouxe também a imobilidade, o cerca-
mento de terras, a restrição ao direito a passagem (de ir e vir), ao direito
de pescar, como na lagoa de Iquipari. Trouxe a vigilância, a ronda de
policiais e empresas de segurança, a incerteza quanto ao futuro (COSTA
et al., 2014, p. 5).

O Condomínio de Luxo Aretê e o Quilombo da Baia Formosa


em Armação dos Búzios-RJ

O Quilombo da Baia Formosa (QBF) é reconhecido pelo INCRA desde


2012 e localiza-se no município de Armação dos Búzios-RJ. Após muitas ten-
sões territoriais ao longo da história, atualmente seu território está disposto em
uma morfologia territorial descontínua, que abrange quatro núcleos distintos,
fragmentados por estradas, lotes e condomínios privados. Enquanto três dos
núcleos se mantém em suas áreas tradicionalmente ocupadas, um dos quatro,
conhecido como Núcleo Expulsos, é composto por famílias expulsas da terra
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 191

nos anos 1970, que migraram para o município vizinho de Cabo Frio por efeito
do processo expropriatório orquestrado pelo grileiro Henrique Cunha Bueno.
Essa área que foi expropriada é reivindicada pelo QBF no processo de
regularização fundiária e titulação do território quilombola. Parte dessa área,
no entanto, é pretendida pelo projeto de expansão do condomínio de luxo
Aretê que busca ampliar sua territorialização na região. Nesse sentido, os
herdeiros de Henrique Cunha Bueno – hoje em posse da Fazenda Porto Velho
– não conseguiram emplacar a venda da terra, uma vez que a luta quilombola
inviabiliza a comercialização da área.
Diante deste entrave, os fazendeiros e o Aretê pressionaram a comuni-
dade de todas as formas para desistir do processo de titulação do território
quilombola, oferecendo uma área ínfima da fazenda em troca da retirada do
processo de titulação no Incra.
O projeto Aretê77 é considerado um dos maiores empreendimentos imo-
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biliários do país e abrange, atualmente, uma área total de 3,16km2 e envolve


o investimento de cerca de 2 bilhões de reais (CARVALHO; SOUZA, 2018).
Associado ao grande capital imobiliário e localizado na Praia da Rasa, em
Armação dos Búzios-RJ, o projeto que afeta a comunidade quilombola da
Baia Formosa consiste na expansão do complexo turístico-imobiliário que
conta com marina, aeroporto e campo de golfe.
O Aretê caracteriza-se por funcionar como um “dispositivo territorial
capaz de suspender, em termos políticos, jurídicos e normativos, toda a
complexidade e diversidade territorial dos espaços nos quais se instalam”
(MALHEIRO; CRUZ, 2019, p. 1). Assim, ainda que, o projeto não esteja
inserido no rol daqueles que são caracterizados como GPDs (projetos petro-
químicos, hidrelétricas, estradas, portos, ferrovias etc.) podemos interpretá-lo
como um grande projeto de desenvolvimento na medida em que, através das
obras de expansão do condomínio de luxo, os sujeitos e grupos sociais atin-
gidos – os quilombolas de baia formosa – são destituídos de suas condições
materiais de produção e reprodução da vida, reunidas na terra.
No QBF, a violência sobre os quilombolas é anterior ao próprio projeto
do megaempreendimento turístico-imobiliário Aretê. Isso porque apesar do
conflito propriamente dito ter se iniciado em 2018, a comunidade quilombola
de Baia Formosa historicamente é alvo da violência, mesmo antes de se reco-
nhecer enquanto tal. Para que não realizemos uma digressão tão grande (e

77 Aretê, do tupi-guarani, quer dizer algo como “lugar de festa, festividade”. Trata-se de um ato de cinismo
nomear a partir do tupi-guarani um condomínio de luxo localizado em território originário indígena, ignorando
e, de certa forma, celebrando a violência colonial. Escolhemos aqui referir-nos ao complexo turístico exa-
tamente dessa forma para que não nos esqueçamos de suas raízes. Sublinhe-se que o nome Aretê surgiu
em 2017 com a intenção de comercializar o projeto.
192

tratar da violência colonial que assolou a região com um dos maiores portos de
tráfico negreiro do estado e como as raízes da comunidade de QBF datam dos
tempos da colônia e do império), pois não é objetivo deste artigo, retomemos
ao menos aos anos 1950, quando se iniciaram novas obras de infraestrutura
que promoveram uma valorização dos terrenos das Baixadas Litorâneas.
De lá pra cá, foram muitos os casos de violências e violações dos direitos
de comunidades negras rurais (dentre as quais algumas, ao longo do tempo,
se autorreconheceram enquanto comunidades quilombolas) estimulados pela
especulação imobiliária e realizados por grileiros, fazendeiros e empresários.
E há uma continuidade nessa dinâmica, na medida em que os interesses do
projeto Aretê atualizam formas de violência contra o QBF.
O avanço do Aretê pode ser considerado um processo de expropriação e
de territorialização de exceção pois, de acordo com a comunidade, a territo-
rialização do projeto acarreta a expropriação de recursos territoriais, naturais

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e das próprias condições de produção e reprodução da vida da comunidade,
tendo em vista as dificuldades para se estabelecer agricultura em áreas ala-
gadas e/ ou salinizadas. Na esteira dessa dinâmica, são vários os relatos dos
quilombolas acerca de ações de má fé por parte dos fazendeiros e dos respon-
sáveis pelo Aretê nos processos jurídicos para definição das áreas. A ganância
do capital imobiliário por mais terras lança mão de estratégias que visam a
expropriação da comunidade para viabilizar a territorialização do projeto.

O Projeto de Construção de Barragem no rio Guapiaçu em


Cachoeiras de Macacu-RJ

No conflito que envolve o projeto de construção de barragem no rio


Guapiaçu e as comunidades de trabalhadores rurais atingidas a água ganha
papel de destaque e exemplifica como as disputas pelo controle e apropria-
ção desta estão diretamente relacionadas a questão da terra. Originalmente,
a obra foi pensada como compensação ambiental do Comperj78 que, uma
vez desenvolvido, acarretaria um grande aumento populacional e, para que
não houvesse escassez, a barragem seria fundamental para a ampliação do
volume de água disponível para o abastecimento da região do Leste Metro-
politano do Rio de Janeiro.
Na medida em que as obras do Comperj esfriaram e o projeto não
gerou o impacto esperado, o discurso para construção da barragem mudou
de sentido e ancorou-se na ideia da crise hídrica. Este discurso não se sus-
tenta, todavia, porque “encobre profundas desigualdades na apropriação e

78 Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro


LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 193

uso da água” (D`ANDREA, et al., 2021, p. 232). Segundo D`ANDREA et


al. (2021), o discurso da escassez foi construído historicamente como argu-
mento para privatização da água e, com isso, uma dinâmica de “aterroriza-
ção” da população, que seria a responsável pelo desperdício, desenvolveu-se
na região. Assim, são ocultados os grandes beneficiários das obras hídricas
e os reais destinos da água.
No vale do rio Guapiaçu, há um grande contingente populacional que
em sua maioria trabalha com agricultura e desempenha importante papel no
abastecimento alimentar da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ).
Todavia, a insegurança jurídica sobre a posse de suas terras é marcante, na
medida em que boa parte dos integrantes das comunidades da região não
recebeu a titulação definitiva das terras que vivem. Isso foi ardilosamente
utilizado como argumento para não reconhecer sua presença na região, o que
é uma prática comum na implantação de GPDs – a invisibilização e a negação
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de direitos das populações atingidas.


Na esteira dessa dinâmica, a combinação entre o discurso da escassez e
as estratégias expropriatórias dos GPDs evidencia um processo de espolia-
ção que intensifica a apropriação do capital sobre a natureza. Nas tentativas
expropriatórias, houve uma verdadeira “guerra de laudos, estudos, mapas e
informações” (D`ANDREA et al., 2021, p. 278) na qual consultores e pes-
quisadores contratados pelo governo do Estado e pela Petrobrás agiram de
acordo com seus interesses: a construção da barragem no vale do Guapiaçu.
Ainda que o projeto tenha saído da pauta política prioritária do governo
estadual, evidencia como a articulação entre capital privado e Estado na pro-
moção dos GPDs se desenvolve através de vias espoliativas em que as comu-
nidades atingidas precisam articular lutas de resistência frente às violências
e as tentativas de expropriação.
Para pensarmos na articulação entre esses três casos, há exemplos de
formas de violência/violações de direitos comuns aos diferentes GPDs aqui
apresentados. Em primeiro lugar, é importante pontuar que em todos os
casos há situações de indenizações irrisórias e/ou não pagas em decorrência
da implantação dos GPDs. Em segundo, a elaboração de EIA/RIMAs que
apoiaram ou subestimaram impactos associados as obras. Em terceiro, casos
de atuação de ONGs e projetos dos próprios empreendimentos, como no
caso do Aretê, que trabalhavam visando a desarticulação social em relação
às lutas pelos direitos comunitários e pela posse e/ou permanência na terra
– como no caso do Projeto Viva Rio no Guapiaçu e do próprio Aretê no
QBF com propagandas e programas de visitações e compra de feijoadas
produzidas pelos quilombolas.
194

Conclusão

Ao longo deste capítulo, mostramos alguns dos impactos negativos decor-


rentes da implantação de Grandes Projetos de Desenvolvimento (GPDs) no
estado do Rio de Janeiro. Observamos como o Estado e os agentes privados
agem lançando mão de estratégias expropriatórias e violentas para fazer valer
os interesses do capital.
Percebeu-se como os GPDs são uma forma de gestão territorial organi-
zada a partir de uma articulação entre grandes corporações transnacionais,
elites locais e Estado apoiada no planejamento estratégico e na ideia de que
é preciso aproveitar as oportunidades da globalização. No Rio de Janeiro,
vimos como, por exemplo, o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Com-
perj) e o Complexo Industrial e Portuário do Açu (Cipa) geraram profundos
impactos no espaço agrário fluminense, aprofundando processos históricos de

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desigualdade social, aos quais se somam agora as desigualdades ambientais.
Viu-se também que os GPDs pressupõem a reorganização do espaço
para adequá-lo à lógica das grandes corporações. Nesse sentido, há uma dinâ-
mica de alteração de leis e normas das instituições do Estado para permitir a
territorialização dos GPDs. Ainda, pode-se avaliar que a implementação dos
GPDs no espaço agrário do estado do Rio de Janeiro aprofunda o processo
de retração das áreas rurais e aprofunda ainda mais a crise da agricultura.
Esse processo é acompanhado de uma dinâmica que combina expropria-
ção e violência na implantação dos GPDs, o que revela o caráter destrutivo
da acumulação capitalista, a brutalidade e irracionalidade de um modelo de
desenvolvimento pautado na superexploração do trabalho e na espoliação da
natureza e das populações despossuídas.
O que se viu foram diferentes formas de violência empregadas pelas
corporações, pelo Estado ou pelas elites locais nos processos de expropriação
e instalação dos GPDs.
Na dimensão física, como as ameaças de morte e distintas formas de inti-
midação de agentes públicos e privados em São João da Barra que ocasionou
em famílias inteiras sendo retiradas de suas terras tradicionalmente ocupadas.
Também houve violência na dimensão simbólica, com a tentativa de apaga-
mento da memória social quilombola em Baía Formosa através da investida do
capital financeiro-imobiliário contra as terras tradicionalmente ocupadas pela
comunidade do QBF. Por fim, também vimos como a violência se apresenta
por vias jurídicas/institucionais, como no caso da barragem no vale do rio
Guapiaçu e a elaboração de EIA/RIMAs que mais de uma vez subestimaram
ou negligenciaram impactos para o meio ambiente e a população local.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 195

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A indústria da mineração é pautada em processos espoliativos e vio-


lentos, marcando estruturalmente os espaços onde se territorializa, como no
caso da formação social do estado de Minas Gerais, desde o extrativismo
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colonial. Mesmo diante dessa questão histórica, somos mobilizados por uma
interrogação política e científica sobre o alcance do dano socioambiental
provocado pela Mineradora Samarco com o desabamento da barragem,
ocorrido no dia 5 de novembro de 2015, quando foram derramados sobre
um povoado da cidade de Mariana, e, regiões limítrofes, os rejeitos repre-
sados da indústria.
O rompimento da barragem, recordamos, resultou em um rastro de
destruição ainda não completamente calculado e que afetou as condições de
vida material como o modo de vida das comunidades ao longo da bacia do
Rio Doce, abalando a biodiversidade ao longo de 600 km de cursos d’água
e da vida marinha no oceano atlântico, na medida em que esse rio chega até
o estado do Espírito Santo. A avalanche de rejeitos da mineração destruiu
diretamente uma área de cerca de 1.500 hectares, deixando 19 mortos, sendo
14 trabalhadores da mineração e 5 moradores do povoado de Bento Rodri-
gues. Foram soterrados bairros e localidades, atingindo cidades e povoados,
desabrigando centenas de moradores, a ponto de, em conjunto, impactar
diretamente a vida de cerca de 1 milhão de pessoas ao longo da calha do Rio
Doce (SANTOS, 2022).
O processo sociopolítico que atravessa o contexto de ruptura dessa bar-
ragem da mineração e o andamento político-jurídico de responsabilização
das empresas exigem interpretação teórica porque revelam uma nova fase
do capitalismo dependente, sob a mundialização de capitais. E, para isso, de
imediato revelamos que a Samarco não está sozinha, em especial porque ela
é uma empresa joint venture da Companhia Vale e da Anglo Australiana BHP
Billiton, cuja composição acionaria é dividida igualitariamente, evidenciando
200

uma relação de controle das empresas transnacionais sobre a mineradora


subcontratada em questão79.
Os impactos do rompimento no Rio Doce sinalizam o ciclo de destruição
ambiental e de vidas humanas, como expressões dantescas da precariedade
social, imanentes às estratégias especulativas de mercado da cadeia produtiva
da mineração, em situação mais extrema pela dimensão do desastre, repetido,
posteriormente, em outra cidade mineira, Brumadinho. Esta outra barragem
da mineração, pertencente a Vale, também, foi rompida no dia 25 janeiro
de 2019, destruindo recursos naturais, humanos e modos de vida. O evento
ocorreu pouco mais de três anos depois do acontecido em Mariana-MG, sem
manejo à altura dos estragos e, podemos afirmar, que estão conectados como
desdobramentos do modus operandi da indústria da mineração no mercado
internacional. Portanto, não é fruto do acaso, mas da estratégia corporativa
de exploração predatória da natureza e da sua cega intensificação em razão

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do aquecimento da demanda por minério de ferro no mercado.
Estes complexos de mineração territorializados no estado de Minas Gerais
se utilizam da estrada de Ferro Vitória-Minas até os portos do Sudeste, num
fluxo continuum que conecta as barragens, as minas, os minerodutos, as ferro-
vias, os portos e o mercado internacional. Portanto, eventos como o que ocorreu
em Mariana e o lastro de danos ao longo de toda a região do Vale do Rio Doce,
demonstra como os impactos reverberam em cadeia, com consequências e
sequelas múltiplas para a natureza, a população e as dinâmicas sociais.
O ponto de partida da compreensão dessas ruínas envolve inseri-las no
âmbito das relações sociais capitalistas e das determinações da formação social
brasileira. Em vista disso, é fundamental compreender as mudanças recentes no
capitalismo contemporâneo e o processo de reorganização do sistema produtivo
nas economias dependentes, especialmente do Brasil e da América Latina, uma
vez que essas transformações, supostamente, reposicionam o país na divisão
internacional do trabalho e afetam de modo particular as regiões com econo-
mias voltadas para a extração e exportação de commodities (HARVEY, 2005).
No presente texto é apresentada uma parte da pesquisa de doutorado sobre
os efeitos dessa economia violenta sobre a cidade de Governador Valadares – “Às
margens do Rio Doce e no meio da lama: os danos do desastre da mineradora
Samarco sobre o município de Governador Valadares/MG” – apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ em 202180 e publicada

79 Por força de Termo de Transação de Ajustamento de Conduta, celebrado com o Ministério Público, a empresa
subcontratada Samarco criou, em 2016, a Fundação Renova – organização civil – para lidar, em nome da
empresa, com os danos do rompimento da barragem. À semelhança da relação de subcontratação dessas
grandes corporações com a Samarco, a criação da referida fundação mais escamoteia as reais consequên-
cias do rompimento sobre a região do que os fatos e depoimentos dos atingidos sinalizam (SANTOS, 2022).
80 Sob orientação da Professora Doutora Rosangela Nair de Carvalho Barbosa.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 201

no ano seguinte (SANTOS, 2022). Além da introdução e conclusão, a estrutura do


texto envolve um item sobre categorias lógicas do modo de produção capitalista
– chamado aqui de apontamentos metodológicos – que auxiliam a compreender
o extrativismo predatório da natureza e a relação instrumental da cadeia extra-
tivista com o espaço ambiental e humano em que territorializa seus tentáculos.
Em outro item, o texto aborda alguns aspectos da dinâmica da companhia Vale
sobre a cidade, conectando o local ao processo internacionalizado da economia
do minério de ferro, subordinando as práticas sociais e política.

Apontamentos metodológicos

O esforço de Marx em demonstrar a natureza da forma social capi-


talista envolveu tratar não só da lógica da produção de capital, mas a sua
reprodução reiterada, dia após dia, ano após ano, década após década. Esse
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movimento contínuo, Marx chamou de reprodução ampliada, que por meio


de compulsão por valor, submete a força de trabalho a processos alienantes
retendo trabalho não-pago (mais-valor); explorando processos de diminuição
dos custos dos fatores produtivos e de adensamento dos meios de comer-
cialização das mercadorias; viabilizando a autovalorização do capital em
esquema elíptico, “processo pelo qual o capital aumenta o seu próprio valor
mediante produção de mais-valor” (MANDEL, 1982, p. 416), num sistema
que se repete sempre alongado, aumentando o capital. Para isso é necessário
que parte do capital sempre retorne como investimento produtivo, buscando
valorizar-se novamente.
A propagação desse modo de vida implica a reprodução ampliada do
capital o que inclui a aceleração e variação da produção de mercadorias rei-
teradamente, exigindo a potencialização das forças produtivas e a compulsão
pela diversificação constante das mercadorias, inclusive, reduzindo a utilidade
e o tempo de uso delas, o que provoca aumento do desperdício com o descarte
de objetos de modo danoso ao meio ambiente. Para Marx, é importante não só
a ampliação de produtos, mas a mudança do processo produtivo, de modo a
diminuir custos, e, o resultado comum é o aumento do capital constante sobre
o capital variável, modificando de maneira expressiva a composição orgânica
do capital.
Para entender a lei dessa acumulação reiterada, Marx descreve ser impor-
tante considerar a composição do capital em dois sentidos específicos, a saber:
do valor e da matéria. Com relação ao primeiro aspecto, a composição do capi-
tal se define pela dimensão em que o capital se distribui (capital constante ou
valor dos meios de produção e capital variável ou valor da força de trabalho)
e é denominada de composição de valor do capital. O segundo aspecto está
202

atrelado como a composição do capital opera no processo de produção, já que


esta é determinada pela proporção entre a massa dos meios de produção utiliza-
das e o volume de trabalho exigido para seu emprego (MARX, 2017a, p. 689).
A acumulação de capital reside na utilização do mais-valor81 acumulado
anteriormente e aplicado na expansão do processo produtivo presente, atra-
vés da aquisição de novos meios de produção e da potencialização da força
de trabalho. Como a força de trabalho tem uma importância elementar e está
diretamente relacionada com a disponibilidade do exército industrial de reserva,
este último vai oscilar com relação ao aumento da população trabalhadora, tanto
com relação ao crescimento populacional como da constante troca de traba-
lhadores por máquinas. Portanto, é por este motivo que os elementos ligados
ao salário devem ser colocados como essenciais na perspectiva marxista, uma
vez que dependem das transformações na composição orgânica do capital.
Contudo, a demanda por força de trabalho crescente dentro do processo

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de acumulação, poderia acarretar a “multiplicação do proletariado” e, desse
modo, o resultado seria uma progressiva melhoria das condições salariais da
classe trabalhadora.

A produção de mais-valor, ou criação de excedente, é a lei absoluta desse


modo de produção. A força de trabalho só é vendável na medida em
que conserva os meios de produção como capital, reproduz seu próprio
valor como capital e fornece uma fonte de capital adicional em trabalho
não pago. Portanto, as condições de sua venda, sejam elas favoráveis ao
trabalhador em maior ou menor medida, incluem a necessidade de sua
contínua revenda e a constante reprodução ampliada da riqueza como
capital (MARX, 2017a, p. 695).

Por essa razão, o aumento da demanda por força de trabalho é compen-


sado pelo fato de que a acumulação capitalista resulta em concentração e
centralização de capitais, como causa e consequência do processo de trans-
formação da composição orgânica do capital. A ampliação da produtividade
do trabalho é o modo de superar os gastos com a força de trabalho, de que é
dependente o capital. E, para isso a massa dos meios de produção com que
o trabalhador opera deve ser modernizada por meio da crescente inserção de
tecnologia no processo de produção, de modo que “o volume crescente dos
meios de produção em comparação com a força de trabalho neles incorporada
expressa a produtividade crescente do trabalho [...]” (MARX, 2017a, p. 699)

81 Adotamos, ao longo do texto, o termo “mais-valor”, uma vez que, segundo a orientação de Mário Duayer
na tradução dos Grundrisse (MARX, 2011), o termo “Mehrwert” significa “mais-valor”, mais adequado do
que mais-valia.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 203

e portanto, o aumento dessa produtividade impacta diretamente a redução da


massa de trabalho “proporcionalmente à massa de meios de produção que ela
movimenta ou na diminuição do fator subjetivo do processo de trabalho em
comparação com seus fatores objetivos” (MARX, 2017a, p. 699). O resultado
desse processo é o aumento da parcela de capital constante em proporção ao
capital variável no que se refere à composição geral do capital.
A acumulação de capital, que inicialmente parecia ser apenas uma amplia-
ção quantitativa, realiza-se de fato em contínua transformação qualitativa de
sua composição, “num acréscimo constante de seu componente constante à
custa de seu componente variável” (MARX, 2017a, p. 704) e desse modo o
resultado é a redução da demanda por trabalho, dirimindo a suposição inicial
de ampliação do trabalho vivo conforme crescem os negócios do capital.
Nesse sentido, para Marx, a formação de um exército de trabalhadores
reservas é consequência do fundamento do capital e cria, ao mesmo tempo,
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uma dinâmica em que o próprio trabalhador passa a ser o seu inimigo mor,
tanto na disputa de vagas como na aceitação de formas e condições de traba-
lho aviltantes, já que o mercado de trabalho se torna um ambiente altamente
disputado, constituído por amplo contingente de indivíduos expropriados de
seus meios de vida82. A formação de força de trabalho excedente e com ampla
disponibilidade para o mercado de trabalho é intrínseco à dinâmica de produ-
ção do capital, na medida em que o investimento em capital constante amplia
a produtividade, diminuindo o valor das mercadorias em razão da contenção
do tempo social de trabalho incorporado em cada uma.
Marx destaca que além do capital tirar vantagens da existência do excedente
de trabalhadores, ele busca ultrapassar os limites da extração de mais trabalho
da parte do capital empregado, o que significa que a redução ou preservação do
capital variável não implica em diminuição do trabalho ou a promoção de mais
tempo livre para o trabalhador, mas, ao contrário, ampliação da produtividade.
Assim sendo, o máximo de produtividade extraída da força de trabalho, resul-
tará na potencialização da acumulação de capital, para o que é fundamental o
aprimoramento reiterado das técnicas de ampliação do rendimento do trabalho.
Mesmo com o surgimento de novos setores de expansão do capital, estes
buscarão produzir mais valor, na medida em que haja possibilidade de manter
a massa salarial em níveis satisfatoriamente baixos para que em períodos
de oscilação da taxa de lucro não resultem em limitações na dinâmica de
acumulação do capital, daí ser da natureza da economia da riqueza abstrata
82 De acordo com Marx (2017a), as definições socialmente necessárias para a reprodução da vida são obvia-
mente circunscritas também às relações entre as classes sociais, conforme mostra no debate sobre os
conflitos em torno do tempo da jornada de trabalho. A luta de classes responde aos condicionantes das
épocas históricas, confrontando-se com as determinações do metabolismo do capital e níveis culturais
socialmente alcançados (MARX, 2017a).
204

a reprodução de uma superpopulação relativa já que “toda a forma de movi-


mento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante
de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou
semiempregada” (MARX, 2017a, p.708), parte dela excedente às necessida-
des do capital.
Marx ao analisar essas contradições entre as relações sociais de produ-
ção e o desenvolvimento tecnológico indicou que a utilização da maquinaria
na produção de mais-valor seria um fator intrínseco ao modus operandi do
capitalismo. Ou seja, as máquinas não produzem de modo direto o mais-valor,
mas tornam-se um meio potente de viabilizar mais-valor, tanto na redução do
tempo de trabalho socialmente necessário para produzir mercadorias, como
na redução dos postos de trabalho com vistas a eliminar os custos com a
produção, ainda que, contraditoriamente, reduza valor.
A busca contínua por superlucros e a disputa da concorrência dos capi-

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tais tornam a inovação tecnológica uma exigência inseparável dessa estru-
tura compulsiva por autovalorização. Esse processo que busca ampliar e
renovar os meios de produção através da aquisição de tecnologias que reduz
o tempo de produção, faz com que o capitalista consiga atingir taxas de
lucros normalmente acima da média. Ao mesmo tempo, contraditoriamente,
diante do processo de avanço das forças produtivas e do desenvolvimento
tecnológico, o resultado é diminuição do valor com a redução do trabalho
vivo e a produção de restrições das massas às formas de consumo, criando
cenários de crises que permanecem latentes em razão da estrutura imanente
dessa vida material.
As crises tornam-se reais por conta da natureza do próprio capital e são
estimuladas pelas próprias contradições contidas nos aspectos universais e
úteis das mercadorias e, consequentemente do trabalho humano.

[...] o mercado precisa ser constantemente expandido, de modo que seus


nexos e as condições que os regulam assumam cada vez mais a forma
de uma lei natural independente dos produtores, tornem -se cada vez
mais incontroláveis. A contradição interna procura ser compensada pela
expansão do campo externo da produção. Quanto mais se desenvolve a
força produtiva, mais ela entra em conflito com a base estreita sobre a
qual repousam as relações de consumo. Sobre essa base plena de con-
tradições não é em absoluto uma contradição que o excesso de capital
esteja ligado a um excesso crescente de população, pois, se os fatores
combinados fazem aumentar a massa do mais-valor produzido, justa-
mente com isso se acentua a contradição entre as condições nas quais
esse mais-valor é produzido e as condições nas quais ele é realizado
(MARX, 2017c, p. 284).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 205

Por outro lado, evidencia-se também a contradição interna que resulta do


aumento da composição orgânica de capital, que pelo acréscimo em capital
fixo pode provocar a queda tendencial da taxa de lucro, levando à incessantes
formas de compensação, através da expansão da produção e comercialização.
E, ao sistema capitalista promover medidas para se readaptar aos infortúnios
dessas tendências e conter a lei tendencial da queda da taxa de lucro, ele não
contradiz a lei, mas a reforça.
Marx ainda destaca que não necessariamente, a queda da taxa de lucro
resulta na diminuição da acumulação de capital, uma vez que é condicionada
pela massa de mais-valor e, com a ampliação do capital global, ela pode
se expandir mesmo que a taxa de lucro possa ser reduzida. As formas para
conter a lei tendencial da queda da taxa de lucro visam inibir o processo das
crises, apresentando-se como sintoma da sua forma degenerativa, ainda que
se movimente como um processo de contratendência para restabelecer as
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condições de valorização do capital.


A cada crise que surge, o nível das contradições torna-se mais intenso
e, também, mais explícito para a sociedade - “a produção capitalista tende
constantemente a superar esses limites que lhes são imanentes, porém con-
segue isso apenas em virtude de meios que voltam a elevar diante dela esses
mesmos limites, em escala ainda mais formidável” (MARX, 2017c, p. 289).
As contradições imanentes estruturam a forma social capitalista de
modo que a dinâmica da acumulação “acelera a queda da taxa de lucro [...]
a concentração dos trabalhos em grande escala e, com isso, uma composição
mais alta do capital. [...] a queda da taxa de lucro acelera a concentração
do capital e sua centralização” (MARX, 2017c, p. 281). Desse modo, o
sistema capitalista atua de maneira em que seu próprio movimento interno
o guia para situações em que determinados momentos torna-se limitada a
reprodução ampliada.
Mas, as crises não se originam de apenas um único elemento determinante,
mas é antes de mais nada, resultado de complexos conjuntos de elementos que
historicamente se convergem. Conforme Mandel (1982) as crises têm uma
origem pluricausal, devido à queda da taxa de lucro e à superprodução, como
pelo movimento das lutas de classe. As crises expressam tanto a superprodução
de mercadorias como a propensão à queda da taxa de lucro, que é marcada
pela variação do lucro médio ao longo de um ciclo, sendo que ao longo destes
ciclos são evidenciados os mecanismos através dos quais ocorrem na realidade
concreta a queda tendencial da taxa de lucro e o acionamento de possibilidades
de superação temporária dessa queda. Contudo, a contradição entre a ampliação
das forças produtivas e a sobrevivência das relações de produção capitalista
incorrem cada vez mais em crises acentuadas, destaca Mandel (1982, p. 393).
206

Harvey (2005, 2011 e 2013) não discorda da análise e demonstra que os


colapsos são inerentes ao modo de produção capitalista e que eles contêm os
elementos para a sobrevivência sistêmica, sempre de forma adaptada, já que
quanto mais a economia capitalista se convergir para sua forma pura, maior
será a possibilidade de um agravamento do processo de crise. Harvey (2005)
ao analisar as condições objetivas da produção capitalista, procura demons-
trar que a estrutura do capital requer diretrizes constantes que possibilitem a
criação de infraestruturas e superestruturas que possam garantir a circulação
do capital e a acumulação de mais valor.
O período de crises e guerras que se estabeleceu no início do século
XX exigiu mudanças no formato do gerenciamento das crises. Para permitir
o restabelecimento do capital e restabelecer o ciclo das “construções”, foi
necessária uma “absorção maciça” por parte do Estado dos excedentes do
capital, através do investimento em infraestrutura – rodovias, ferrovias, por-

Editora CRV - Proibida a comercialização


tos – e políticas de educação e saúde públicas. O Estado garantiu um boom
econômico prolongado, que foi em parte “alimentado por meio da formação
acelerada de capital fictício e dívidas crescentes suportadas pelo poder estatal”
(HARVEY, 2005, p.141).
Esse contexto, analisado por Harvey, mostra o capitalismo como poten-
cialmente dinâmico na procura por expandir-se ou reestruturar-se geografi-
camente. Para isso busca promover a exportação de excedentes de força de
trabalho e de capital como forma de evitar a sua desvalorização ou acender
conflitos sociais. Ou seja, por meio de mudanças nas diretrizes administrativas
do capital e das restruturações geográficas, por exemplo, o capitalismo busca
formas para protelar suas crises, garantir a acumulação e inibir ou modificar
a luta de classes.
A construção de uma usina siderúrgica, uma ferrovia ou o lançamento
de uma companhia aérea exigem um imenso quantitativo inicial de capital-di-
nheiro, antes mesmo de a produção começar e os intervalos de tempo entre o
início e a conclusão podem ser substanciais. As crises, apesar de serem ine-
vitáveis, também são mecanismos necessários para a promoção do equilíbrio,
mesmo que temporário, das contradições internas da acumulação do capital,
ou seja, a crise é o elemento organizador da irracionalidade e instabilidade
imanentes do capitalismo (HARVEY, 2005).
A busca incessante por novos mercados segue a genética expansionista
do capital e sua exigência de acumular sempre mais capital, o que faz rear-
ranjando os espaços e as formas de relação com a natureza, de modo a criar
e recriar maneiras de melhorar e tornar mais eficiente o controle sobre a pro-
dução do valor. Uma das consequências é a conformação de “um mundo no
qual o capital se move cada vez mais rápido e onde as distâncias de interação
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 207

são compactadas” (HARVEY, 2011, p. 131), estabelecendo um encolhimento


da relação entre o espaço e o tempo, assim como uma maior ascendência do
capital sobre as diferentes dimensões da vida social e dos espaços geográficos.
Para isso, inclusive, diz Harvey (2013), as conexões do capital finan-
ceiro83 se intensificam, especialmente a mercadorização da natureza, através
de apropriação do solo e do subsolo (como no caso da mineração), ocorrendo
novas modelagens da organização social, não apenas com relação aos inves-
timentos privados, mas também na própria maneira de estruturação geográ-
fica da produção, assim como de novas formas das divisões de trabalho e da
dinâmica dos espaços de produção reprodução da cotidiana. Essas remode-
lagens para fazer frente à reprodução ampliada do capital em sua crise são
fundamentais para entender o desastre provocado pela estratégia da Vale e
suas parceiras, assim como o lugar de Governador Valadares nesse contexto
socioprodutivo, como veremos mais à frente.
Editora CRV - Proibida a comercialização

A mineração e o boom das commodities: os efeitos sociais da


dinâmica acumulativa de capital

De frente a uma grave crise do capital, a partir dos anos de 1970, o amplo
desenvolvimento industrial e econômico da China emergiu como uma possível
correção do capitalismo recessivo, e, no início deste século, ele foi capaz de
provocar o ciclo virtuoso da economia primária, com grande demanda por
commodities, entre elas os minérios, o que fomentou investimentos em infraes-
trutura industrial e em urbanização, em ritmo acelerado no Brasil (MEDEIROS,
2010). Durante o período de 2003 a 2008, a procura chinesa por minério de
ferro cresceu em cerca de 225%, seguido por alumínio (124%) e cobre (78%).
Essa demanda contribuiu para o aumento do volume extraído e para a alavan-
cagem dos preços das commodities minerais no mercado (JENKINS, 2011).
Um fator importante para esse ciclo, conhecido como boom das commodi-
ties, além do efeito China, foi o processo da financeirização das commodities, o
qual foi constituído por meio de componentes especulativos do mercado finan-
ceiro e que resultaram na aplicação de preços bem superiores ao crescimento
da relação oferta e demanda (WANDERLEY, 2017). Esse processo conhecido
como de “financeirização” sobre os recursos minerais pelo mercado de capitais

83 Vale lembrar que a categoria “capital financeiro” assume uma centralidade nas análises dentro do pensamento
marxista, essencialmente para no que tange a compreensão da dinâmica do modo de produção capitalista
e seus desdobramentos na atualidade. Em termos de Lênin, a concentração da produção capitalista e seus
monopólios, fusão do capital industrial com o bancário, a busca pela ampliação de novos mercados de
investimentos, resultou no surgimento dessa modalidade de capital (SANTOS, 2022). Os desdobramentos
foram a concentração monopolista que assinalou a etapa imperialista do modo de produção capitalista.
Essa dinâmica ganhará novo estágio a partir do fim dos anos de 1970.
208

foi pautado pela busca de diversificação da carteira de investidores após o


cenário conturbado do final do século XX, em que os investidores financeiros
passaram a buscar a diversificação de seu risco, “buscando a redução de custos
operacionais e o aumento da produtividade; e concentrando as atividades em
negócios estratégicos e regiões prioritárias” (WANDERLEY, 2017, p.3). Essa
busca por novos investimentos ocorreu após os abalos provocados pela queda
de rendimento atribuído à crise asiática de 1997 (CANUTO, 2000) e com o fim
da bolha de investimentos da Internet (empresas ponto com) que resultou em
um contexto de especulação entre os anos de 1995 e 2001, e que foi marcado
por uma excessiva alta das ações das empresas de tecnologia da informação e
comunicação baseadas na Internet (SAES, 2017).
Conforme Saes (2017), havia várias diretrizes voltadas aos investidores
do mercado financeiro demonstrando que as ações das empresas vincula-
das às commodities eram tidas como estratégicas, no sentido de redução da

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volatilidade do retorno das carteiras de aplicações financeiras. Isso resultou
na inserção de grandes instituições financeiras e bancos internacionais, que
passaram a atuar com mais veemência no mercado de commodities. Esse fator
passou a incidir nos índices dos preços das commodities e as corporações vin-
culadas, especialmente do setor da mineração, passaram a adotar estratégias
de governança para atrair ainda mais grandes titulares de investimento de
longo prazo, “que compravam e seguravam suas posições ao invés de ganhar
margem na compra e venda de contratos no curto prazo” (SAES, 2017, p. 79).
Economias como a brasileira passaram nesse período, por um cresci-
mento de suas reservas internacionais e esse acúmulo de reservas foi visto
como uma resposta às crises do balanço de pagamentos que ocorreram no
final do século XX. Por outro lado, essa financeirização do mercado de com-
modities, que está associada à ascensão chinesa e a mudança de interesses na
diversificação do portifólio de investimentos, elevou os preços em dólar da
maioria das commodities, promovendo, portanto, uma ampliação no comércio
internacional de matérias-primas, em particular de petróleo, soja, minério de
ferro e metais (MEDEIROS, 2015, p.151).
Especialmente a partir de 2009 houve uma avalanche de novos projetos de
mineração, com ênfase na exploração do minério de ferro, durante o boom vir-
tuoso, que foi determinante para a expansão da fronteira minerária para o capital.
Arranjos político-institucionais idealizados e dirigidos por atores nacionais e
internacionais objetivaram a liberalização do mercado de metais, facilitando e
incentivando a intervenção estrangeira no setor (BEBBINGTON, 2012, p. 314).
Diante deste cenário, o Estado refez sua atuação no empreendimento
privado de captura de valor. O dinamismo da economia vinculado aos preços
do setor da mineração e o aumento no volume das exportações de commodities
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 209

brasileiras colocaram em pauta a necessidade de discussão de um novo código


para a mineração. Assim como, a criação do Plano Nacional da Mineração
2030 – PNM 2030 (BRASIL, 2010), com ênfase nos estímulos à produção
minerária e a potencialização de valor aos recursos minerais extraídos no Bra-
sil (MILANEZ, 2012). As diretrizes inseridas nesse novo plano da mineração
abriram as possibilidades de ampliação do uso dos recursos minerais através
da promoção da autonomia das mineradoras, desde a pesquisa até a comer-
cialização, demonstrando, por parte do Estado, um estímulo importante para
a expansão na produção mineral, cuja dinâmica esteve voltada essencialmente
para o mercado externo e sem levar em consideração os impactos e conflitos
da mineração sobre o território (SAES, 2017).
Os desdobramentos das mudanças políticas e da legislação do setor
mineral no Brasil, como foi apresentado, promoveram, de um modo geral, a
autonomia das mineradoras e maior omissão em relação aos impactos ambien-
Editora CRV - Proibida a comercialização

tais e sociais da mineração. Isso é comprovado pela expansão da atividade


de exploração em áreas de preservação ambiental e em terras indígenas, com
a prerrogativa de atender ao aumento exponencial da demanda internacional
por recursos minerais (SANTOS, 2022).
Cabe destacar que o cenário posterior ao boom da mineração, ocor-
reu a manutenção das estratégias de governança corporativa, fortalecendo
ainda mais os interesses dos acionistas e do mercado financeiro, buscando
a ampliação da produção, o que intensificou a exploração das plantas de
mineração já estabelecidas, promovendo também a manutenção e expansão
de infraestruturas (ferrovias, estruturas portuárias) para obter ainda mais
ganho de produtividade (WANDERLEY, 2017). Contudo, isso passou a ser
realizado com base em uma redução ainda maior dos custos operacionais e
com um aumento da exploração da força de trabalho, através da redução da
média salarial e do aumento do volume de trabalho realizado por empresas
subcontratadas (terceirização), ampliando a precarização das condições de
trabalho (SANTOS, 2016), reforçando aquela análise sobre o processo de
contratendência (MARX, 2017c; MANDEL, 1982) em que o sistema produ-
tivo, diante de contextos de crise, cria formas para restabelecer as condições
de valorização do capital.
Consequentemente, esse cenário, contribuiu para o aumento dos riscos
que resultaram no rompimento da barragem de Fundão em Mariana, já que a
estratégia corporativa das mineradoras (MILANEZ et al., 2019) e a atuação
do Estado (WANDERLEY, 2017), foram fatores que potencializaram desastres
ambientais, além de acidentes de trabalho e de conflitos em torno dos impactos
socioambientais atrelados ao setor da mineração84.
84 Para uma exposição mais detalhada sobre a cadeia de valor da mineração veja: Santos (2022).
210

A Vale e sua relação com Governador Valadares

Enfatizando o município de Governador Valadares (Minas Gerais), cabe


destacar que a cidade não abriga plantas de mineração, mas faz parte da cadeia
produtiva da indústria mineradora como elo estratégico na rede de produção,
motivo de ser alvo de investimento corporativo, especialmente no âmbito logís-
tico para a cadeia de valor da produção mineral, como tratado em Santos (2022).
Nessa direção podemos entender a construção da EFVM (Estrada de
Ferro Vitória Minas), que passou a ter uma estreita relação com a criação
da CVRD (Companhia Vale do Rio Doce) em 1942 e obviamente que esta
relação sempre foi pautada em bases econômicas e estratégicas do ponto de
vista logístico, uma vez que a EFVM, que atravessa a cidade, é utilizada pela
empresa para escoar toda sua produção de minério e outros produtos até o
porto de Tubarão/ES.

Editora CRV - Proibida a comercialização


A EFVM como uma concessão pública para a Vale, tem 895 Km de extensão
e está entre as principais ferrovias do mundo no que se refere a índices de produti-
vidade. Entre os anos de 2008 e 2018, foram transportados em média 139 milhões
de toneladas de carga, representando 40% de toda carga ferroviária brasileira,
com um tráfego diário equivalente a aproximadamente 70 navios cargueiros. Os
produtos transportados em sua maioria estão ligados à mineração, especialmente
o minério de ferro da Vale e ainda carga geral para terceiros (carvão e produtos
agrícolas). A empresa opera também o serviço de trem de passageiros utilizado
anualmente por cerca de 1 milhão de pessoas (ANTT, 2019).
No cenário de redução de custos e ampliação do volume de produção que a
Vale vem priorizando recentemente, tem relevo a logística no papel de garantidor
do escoamento da produção mineral. Assim a EFVM e a cidade de Governador
Valadares, como um dos principais eixos da ferrovia, ganham papel notável no
território da mineração mineira de ferro. Apesar de não possuir nenhuma ativi-
dade de mineração no seu espaço, a região é estratégica para a empresa, já que
parte de suas atividades de logística são realizadas em seus parques ferroviários
que estão localizadas na cidade, revelando-se como um importante entreposto
do canal de escoamento da produção da companhia para a exportação.
Como nos diz Marx, os custos de transportes desempenham um papel
fundamental sobre preço final dos produtos uma vez que são custos efetivos
em toda a cadeia de produtiva. Para a realização do valor, uma etapa impres-
cindível para a sua efetivação, depende da circulação, a qual deve estar em
constante expansão, não só na busca de novos mercados, mas na redução dos
custos de realização do ciclo capitalista e essa redução envolve o transporte.
Marx (2011) já havia observado a importância do desenvolvimento técnico
aplicado aos transportes, ao qual podemos incluir a logística, que promove a
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 211

expansão do comércio internacional, como na transformação da maioria dos


produtos efetivamente em mercadorias e, também, substituindo mercados
restritos e locais por mercados distantes e duradouros.

[...] o desenvolvimento dos meios de comunicação e de transporte, no


duplo sentido de que determina tanto o círculo daqueles que trocam entre
si, dos que entram em contato, como a velocidade com que a matéria-
-prima chega aos produtores e o produto, aos consumidores; finalmente, o
desenvolvimento da indústria que concentra diferentes ramos de produção
(MARX, 2011, p. 198).

Nesse sentindo, Harvey (2005) aponta que a circulação possui dois aspec-
tos fundamentais, um é “o movimento físico real de mercadorias do lugar
de produção ao lugar de consumo, e [outro é] o custo real ligado ao tempo
consumido e às mediações sociais (a cadeia de atacadistas, varejistas, ope-
Editora CRV - Proibida a comercialização

rações bancárias etc.) necessárias para que a mercadoria produzida encontre


seu usuário final” (HARVEY, 2005, p. 49). Com relação ao primeiro aspecto,
Marx (2011, p.713) aponta que “considerada do ponto de vista econômico, a
condição espacial, o levar e trazer do produto ao mercado, faz parte do próprio
processo de produção”. Esse aspecto espacial é importante “na medida em que
a extensão do mercado, a possibilidade de troca do produto, está relacionada
com ele” (MARX, 2011, p. 713), mas além disso “a redução dos custos dessa
circulação real (no espaço) faz parte do desenvolvimento das forças produti-
vas pelo capital, diminuição dos custos de sua valorização” (MARX, 2011,
p. 713). Com relação ao outro aspecto, o custo real, o tempo de circulação e
as mediações sociais não pertencem ao processo de produção, consequente-
mente, produzem custos e não mais-valor. Marx considera que “o produto
imediato só pode ser valorizado em massa, em mercados distantes, quando os
custos de transporte diminuem, e dado que, por outro lado, os próprios meios
de transporte e comunicação só podem representar esferas de valorização do
trabalho acionado pelo capital, e [...] a produção de meios de transporte e
comunicação baratos é condição para a produção fundada no capital [...]”
(MARX, 2011, p. 699).
Segundo Marx a circulação do produto, que acontece no espaço e no
tempo, compõe o próprio processo de produção e, portanto, tal movimento
faz parte dos custos de sua cadeia produtiva e a “redução dos custos dessa
circulação real (no espaço) faz parte do desenvolvimento das forças produ-
tivas pelo capital, diminuição dos custos de sua valorização” (MARX, 2011,
p. 713). Nesse sentido, Marx (2017b) aponta que é decisivo no processo de
expansão da acumulação e da valorização do capital, que a circulação ocorra
212

sem entraves, já que quanto menor o tempo de giro do capital, mais rápido é
o retorno do rendimento para a estrutura capitalista, já que na lógica da acu-
mulação incide na minimização de barreiras espaciais, o que exige constante
desenvolvimento das forças produtivas vinculadas aos sistemas de transporte
e comunicação. No entanto, a “indústria do transporte constitui, por um lado,
um ramo independente de produção e, por conseguinte, uma esfera especial
de investimento do capital produtivo (MARX, 2017b, p. 231)
A busca pelo desenvolvimento técnico, aperfeiçoamento de equipamen-
tos, melhorias na logística, aumento do volume transportado, da velocidade
dos meios para a contração do espaço pelo tempo contribuem como formas de
redução do tempo de giro do capital e exigem a produção de infraestruturas
onde há centros de produção e contingente populacional para que ocorra escoa-
mento da produção. Nesse sentido, o parque logístico da Vale em Governador
Valadares se apresenta como elemento primordial na cadeia produtiva ligada

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ao minério de ferro, uma vez que as estruturas da empresa localmente são tidas
como “ambientes construídos à serviço do capitalismo”, o que significa que a
parcela da riqueza social produzida é investida no “capital fixo e circulante”
das operações realizadas (HARVEY, 2005, p. 54)
Em consonância com as reflexões de Marx e Harvey, evidenciamos que a
utilização da EFVM pela Vale na cidade de Governador Valadares demonstra a
necessidade da produção de espaço através de infraestruturas físicas necessá-
rias para potencializar a cadeia produtiva da mineração. Ademais, após o ano
de 2011, ocorreram vários investimentos da Vale no município a partir do que
denominaram como agenda positiva firmada entre a prefeitura e a empresa
no ano de 2009 para promover ações em infraestrutura para a população da
cidade (VALADARES, 2014). De acordo com a empresa, esses investimentos
fazem parte de um conjunto de ações realizadas através da “Fundação Vale”
para apoiar municípios que necessitam de apoio em temas ligados ao “planeja-
mento e controle urbano, de regularização fundiária, na gestão administrativa
e financeira, em infraestrutura física e social, na ordenação e limpeza urbana,
além de segurança pública, saúde e educação” (VALE, 2010, p. 77).
A Fundação Vale foi criada em 1968 (Fundação Vale do Rio Doce de
Habitação e Desenvolvimento Social), e tinha como diretriz possibilitar con-
dições para que os empregados da então, empresa pública, Companhia Vale
do Rio Doce (CVRD) adquirisse a casa própria. Após a privatização, no ano
de 1998, ocorreram mudanças relevantes, entre elas o redirecionamento do
foco de atuação da Fundação Vale que abandonou os objetivos ligados às
moradias dos funcionários e passou a promover ações ligadas ao preceito da
Responsabilidade Social Corporativa (RSC) voltadas às comunidades situadas
no entorno das operações da Vale.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 213

A partir de 2017, a Companhia estabeleceu orientações para a adoção da


abordagem de “engajamento estratégico com as comunidades locais, alinhada e
integrada aos valores da empresa” e “procedimentos normativos com diretrizes
técnicas para a gestão de demandas e dos planos de relacionamento e investi-
mento social e, ainda, para a avaliação da criticidade de comunidades” (VALE,
2018, p. 145 e 148). Milanez (2018) destacou que a Fundação Vale tornou-se
estratégica para a Vale dentro das táticas de RSC, com tendência à ampliação
e profissionalização deste setor que está “associada à busca pela legitimidade
da ação econômica da empresa através de mecanismos de convencimento das
comunidades afetadas”, o que segundo o autor, “sugere que esta tática exige um
conhecimento prévio do poder dos atores sociais nas localidades em que opera e
não apenas a oferta compulsória de bens e serviços” (MILANEZ, 2018, p. 27).
Entre os anos de 2012 e 2015, a Vale realizou investimentos na cidade
na ordem de 95 milhões de reais, que contemplou especificamente obras de
Editora CRV - Proibida a comercialização

infraestrutura, tais como a revitalização da Praça da Estação, viaduto e passagem


inferior sobre a via férrea e um parque municipal natural (SANTOS, 2022).
De acordo com as análises de Wanderley (2012), a Vale utiliza como
estratégia de controle o acesso às suas estruturas de escoamento da produção,
como as ferrovias e portos, com construção de infraestrutura como passa-
gens de nível, viadutos, muros de proteção, câmeras de vigilância, placas
proibitivas que inibem, constrangem e isolam determinados espaços para
que ocorram os fluxos de produção sem empecilhos ou prejuízos logísticos.
Demonstrando uma atuação ativa e dominante sobre a paisagem urbana da
cidade, com equipamentos urbanos destinados ao uso particular da empresa.
Nesse sentido, o investimento em infraestrutura nas localidades se apresenta
como formas de controle e ordenamento que garantem os fluxos da cadeia
produtiva da empresa, ou seja, são estratégias para estabelecer o controle do
espaço a partir de obras de infraestrutura e programas de “responsabilidade
social” nos territórios em que a Vale atua que possam deslegitimar qualquer
forma de interrupção da estrutura produtiva da empresa nos diversos territórios
em que ela opera (WANDERLEY, 2012; MILANEZ, 2018).
Essas iniciativas compõem a agenda de ações de responsabilidade social
utilizadas pela Vale (MILANEZ, 2018; AGUIAR, 2019). Como se sabe, a
responsabilidade social compõe o rol dos artefatos de gestão neoliberal, pós
anos de 1980, conforme trata o Observatório de Multinacionais da América
Latina – OMAL (SANTOS, 2022), ao destacar que as empresas com lastro
internacional (multinacionais e transnacionais) se valem de estratégias de
responsabilidade social corporativa que são apoiadas pelos Estados de origem
das empresas (no caso de multinacionais) para estabelecer “alianças com os
estados de destino” e assim promover investimentos que possam resultar em
214

ganhos econômicos. De acordo com Santos (2022), a Vale busca formas para
a legitimação das ações que garantam sua cadeia de valor através de meca-
nismos de convencimento das comunidades vinculadas às suas operações,
assim como a realização de projetos sociais e ambientais nos territórios, nas
áreas e estados nos quais a empresa atua.
Ao cotejar esses projetos e suas intenções, evidenciamos dispositivos
de consentimento que contraditoriamente lidam com demandas formativas
locais em áreas temáticas importantes, provocando a disseminação de um
“modo de ser” de crianças e jovens da cidade, por meio da educação e da
cultura. De acordo com Acselrad (2018, p.48) essas ações empresariais
“destinam-se a prevenir o risco de instabilidade institucional”, ou seja,
evitar qualquer ação que possa afetar a cadeia de valor e as oportunidades
de negócio. Portanto, utilizam-se de estratégias políticas e sociais através
da responsabilidade social empresarial e da gestão de suas interfaces institu-

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cionais de âmbito político e social, para aumentar a capacidade empresarial
de captura de valor.
Os vínculos da Vale com o município, são considerados necessários para
a cadeia produtiva e portanto, o convencimento da população local sobre a
importância da companhia é primordial como estratégia de legitimação do
papel da Vale localmente, fazendo uso de um modus operandi que efetiva-
mente lida com a dependência econômica local, principalmente daquelas ações
que resultam em impactos ambientais e sociais em regiões atravessadas por
grandes projetos; aquilo que Acselrad (2013) chamou de chantagem locacio-
nal, ou seja, essas empresas, diante da promessa de benefícios econômicos
locais e principalmente de novos postos de trabalho, exercem pressão sobre a
opinião pública e sobre o poder político local. Dito de outro modo: a suprema-
cia do valor sobre as localidades dependentes do capital, da mediação social
da mercadoria, impulsiona a subsunção das práticas sociais e consciências a
esse processo de ruinas consentidas.
Estudos sobre grandes obras de infraestrutura e economia extrativista
mostram que as arenas políticas legais são transmutadas em espaço de instru-
mentalização corporativa. Assim, pode ser elucidativo contar com a colabora-
ção dessas reflexões e ver que as regulamentações institucionais, movidas pela
manipulação do sistema político e pela flexibilização das normas, asseguram
a manutenção da cadeia de valor (da mineração) garantido a rentabilidade dos
investimentos através de uma prática social que desmobiliza a sociedade e
neutraliza a crítica, procurando esterilizar na sua origem qualquer discussão
mais efetiva sobre qualquer implicação social e ambiental de seus projetos.
Essa passividade do poder público na aceitação do projeto da cadeia
mineral legitima o caráter mais geral da expropriação local, já que o poder
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 215

público se torna atuante na manutenção da propriedade privada, garantindo


a contínua extração de mais-valor e a subordinação cada vez maior das esfe-
ras da vida humana à dependência do mercado (WOOD, 2014). E, isso nos
mostra a dinâmica do valor, tratada no item anterior, quando territorializada
sobre uma cidade, com a intermediação da superestrutura política e jurídica
da sociedade capitalista, representada nessas manifestações locais.
Como parte das análises da pesquisa envolveu a compreensão das
estratégias da Vale e da cadeia de valor a qual ela está inserida, buscamos
apontar as formas de atuação da empresa que busca sustentar sua rentabili-
dade com intensas práticas de captura de valor nas operações extrativistas.
Fundamentalmente, chama a atenção as estratégias de redução dos custos
operacionais e promoção de lógicas que garantam a segurança da rentabi-
lidade de sua cadeia de valor. Esses fatos demonstram como o modelo de
gestão da empresa tem se vinculado cada vez mais às atividades de cres-
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cente financeirização e que promovem maior pressão para a promoção de


resultados para os acionistas, no curto prazo.
No caso específico da Vale tornaram-se emblemáticas as estratégias
adotadas para manter a imagem de empresa sólida e “responsável” no que se
refere à promoção das garantias da sua cadeia produtiva. Mesmo após o boom
das commodities da mineração (após 2012), a Vale e das crises referentes aos
rompimentos das barragens em Mariana e Brumadinho, a empresa manteve
suas estratégias orientadas para o mercado e voltadas para os interesses dos
acionistas, buscando redução dos custos e ampliando a escala produtiva.
Com a adoção de estratégias para ampliação de ativos da corporação em
2017, a Vale passou a dar foco na logística, promovendo reestruturações
dos investimentos em infraestruturas de integração de projetos de grande
porte, em transporte marítimo e em ferrovias para garantir a redução de
custos e assegurar os investimentos, como foi o exemplo da conquista junto
ao poder público local do adiantamento do contrato de concessão da EFVM.
Nem mesmo o contexto do violento desastre e da investigação dos danos do
rompimento das barragens retardou essa iniciativa e conquista da Vale, no
tocante a renovação da concessão da ferrovia.

Considerações finais

O município de Governador Valadares, como parte integrante da cadeia


de valor da indústria mineradora e território estratégico para a sua rede de
produção, tornou-se alvo do setor logístico-minerário e espaço de ações de
“responsabilidade social empresarial”, com ações nas instituições políticas
216

para canalizar e esvaziar as críticas em favor da manutenção dos interesses


corporativos, no quadro da volatilidade da economia global.
Essa estratégia empresarial se coaduna com os fundamentos da lógica
do capital que buscamos brevemente apresentar, na primeira seção, com as
valiosas contribuições de Marx e Harvey, de modo a também ressalvar que
a gestão de crises no capitalismo, essencialmente, envolve levantar o sarrafo
da dinâmica violenta do extrativismo predatório para a vida humana e a natu-
reza. Consoante a isso, apresenta o modelamento de um novo fetichismo em
torno da empresa responsável com os territórios, paradoxalmente, em meio
aos próprios violentos desastres.
A Vale realiza muitos investimentos para a manutenção da sua cadeia
de valor e diante da complexidade e dimensão de suas atividades, a empresa
promove várias estratégias visando a redução e inibição de conflitos com
as localidades através da antecipação dos investimentos em infraestrutura

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e programas socioculturais. Grandes corporações, como a Vale, utilizam
mecanismos de afrouxamento das pressões localizadas, uma vez que o corpo
político dos aparelhos de Estado se beneficia dessas estratégias, surfando nos
investimentos promovidos pela empresa, e apresentando-os como se fossem
conquistas daqueles agentes. Essa prática da empresa também é apresentada
aos acionistas e investidores como atos de reponsabilidade social empre-
sarial e como ferramenta para a garantia de continuidade das complexas
operações da indústria mineradora. Ainda assim, apesar do elevado poder
econômico de uma grande corporação, a Vale não independe do local, mas
aplica práticas de enraizamento social junto às instituições públicas, tanto
nos contextos de “normalidade” que possam antecipar possíveis interrupções
de sua cadeia, como em situações de crises ambientais e humanas, através
dos termos de ajustamento de conduta ou da judicialização, no sentido de
protelar e monetizar a questão.
Como a indústria mineradora e suas cadeias globais de valor estão vin-
culadas por contratos que visam manter e ampliar suas operações, precisam
garantir o funcionamento dos elos capilarizados nos territórios, o que exige
que estabeleça relações locais, especialmente com os governos municipais
para garantir a chancela de suas atividades. Mesmo com lastro internacional,
a Vale adota estratégias de responsabilidade social corporativa, com apoio
das instituições governamentais para promover investimentos que abonam,
no final dos processos, resultados econômicos favoráveis às empresas. Ou
seja, mesmo em casos específicos, como da cidade de Governador Valadares,
verificamos o exercício de estratégias de integração (subordinada) da cidade
na cadeia de valor mundializada, e, que a indústria, ao fazer essa conexão com
as localidades, obtém o fortalecimento dos interesses das frações globalizadas
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 217

de capital. Isso é particularmente importante porque o processo produtivo


do minério de ferro é dinamizado pela ampliação constante e volumosa de
produtividade, o que acaba exigindo diretrizes administrativas e ações eco-
nômicas voltadas ao controle de todas as etapas dessa cadeia produtiva para
que, efetivamente, alcancem a ampliação de valor, a despeito da precariedade
social que decorre desse processo.
O esforço da crítica foi o de refletir sobre dinâmica do valor territo-
rializada em Governador Valadares, sob o pressuposto de que a economia
mineral capitalista não se volta para as necessidades úteis dos habitantes da
cidade, mas toma a ampliação de capital como norte da instrumentalização
do território para este fim, contando com o empenho da superestrutura jurí-
dica e política, na expropriação de patrimônio, reservas ambientais e direitos
fundamentais da população local.
Editora CRV - Proibida a comercialização
218

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“ACIDENTE INDUSTRIAL AMPLIADO”
COMO CONSEQUÊNCIA DO
PROCESSO DE VALORIZAÇÃO: o caso
da minério-dependência de Mariana/MG
Roberto Coelho do Carmo
DOI: 10.24824/978652515286.8.223-244

É notável que grandes empreendimentos provoquem impacto socioam-


biental negativo, seja para sua instalação, operação ou mesmo fechamento.
Por este motivo é que tais empreendimentos devem comprometerem-se com
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estudos avaliativos de sua interferência negativa ambiental, social e econô-


mica, apresentando propostas para mitigá-las. Entretanto, quando o assunto é
um “acidente”85 de grande proporção de devastação, o impacto que advém de
racionalizar empreendimentos de larga monta pela lógica inerente ao lucro,
escapa aos mais atentos analistas defensores dos projetos empresariais de
exploração e comercialização dos recursos produtivos do planeta.
O trabalho que aqui se apresenta, vislumbra expor, a partir do exemplo
do crime ocorrido em Mariana, no estado brasileiro de Minas Gerais, com o
rompimento da barragem de Fundão, do complexo industrial de Germano86,
que as consequências sofridas vão muito além dos danos ao ambiente e às
propriedades no caminho da lama. Tais danos se estenderiam pelo tempo, na
economia, na saúde física e mental do marianense, transformando o modo
de vida e trabalho de uma cidade que metaboliza visceralmente o processo
produtivo da mineração. Uma região que sofre com a presença da mineração
por conta, por exemplo, das agruras do trabalho, da inflação imobiliária, do
alto custo de vida, dos poucos recursos de estrutura urbana que se traduz
no aviltamento de riquezas sem uma contrapartida sustentável. Mas que
também sofre com a ausência desta atividade, já que fora da mineração,
não há oportunidades de trabalho e renda adequadas para sustentar os altos

85 O “acidente” é assim referido, entre aspas, pois, entende-se que um acidente é algo inesperado, imprevisível
ou de difícil previsão. Quando privatizada, a Vale do Rio Doce, hoje Vale S.A. assume as determinações do
processo de valorização. A escolha da finalidade do processo produtivo no lucro ao invés da vida, caracte-
rizariam o “acidente” como crime sócio-ambiental.
86 Crime semelhante em forma, mas com consequências ainda mais devastadoras em termos de número de
trabalhadores e trabalhadoras mortos, ocorreria anos depois na cidade de Brumadinho, também no estado
de Minas Gerais.
224

custos de vida. Assume-se como elementos fundamentais para nossa análise


o estudo da minério-dependência de Coelho (2018) e de Bruno Milanez
(2012), assim como o conceito de “acidente industrial ampliado” adotado
por Freitas et al. (1995; 2000) para definir fenômenos característicos de
indústrias de processo.
Algumas das formulações aqui apresentadas são resultado de pesquisa
doutoral87, cuja tese resultante foi defendida e aprovada junto ao Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PPGSS/UERJ)88 em 2019 (CARMO, 2019). Para a pesquisa se recor-
reu a revisão teórico-bibliográfica, pesquisa documental e, também, trabalho
de campo, a partir da realização de entrevistas e de participação em atividades
comunitárias, sindicais e da cidade, em geral, voltadas ao debate do trabalho
da e na mineração.
A argumentação parte da compreensão de que a racionalidade que explica

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o lucro na sociabilidade capitalista, e, por certo, na atividade privada da mine-
ração, não se compatibiliza com a manutenção da vida. Quer dizer, se, por
um lado, o trabalho é o meio de atender às necessidades humanas, no tempo
histórico capitalista, a finalidade do trabalho é a produção de excedente, de
lucro. Com isso se busca apresentar a atividade da mineração sob a lógica
da produção capitalista e como as flutuações do mercado de minério de ferro
podem estar relacionadas aos “acidentes”.
Na sequência, retrata-se alguns impactos econômicos e sociais no plano
do território, da dependência de uma atividade produtiva única. Também se
argumenta como esta dependência amplifica os efeitos desses “acidentes”, que
por sua natureza, como “acidente industrial ampliado”, já seria de larga escala.
O que buscamos defender é que, sob os auspícios da minério-dependência, o
debate acerca das consequências do rompimento das barragens também deve
ser ressignificado e ampliado, redimensionando a responsabilidade pelos cri-
mes cometidos e pelos impactos gerados no modo de vida do marianense que
é essencialmente o modo de vida do mineiro, do trabalhador da mineração.
Uma cidade minério-dependente, encontra-se neste labirinto da precarização
do trabalho, tendo deteriorada suas condições de vida. Vejamos.

A mineração como processo socioambiental destrutivo

Como já se referenciou de partida, a mineração afeta enormemente o


país, seja na sua balança comercial, seja no ambiente ou no modo de vida

87 Sob orientação da Professora Doutora Ana Inês Simões Cardoso de Melo.


88 A pesquisa foi submetida à Comissão de Ética em Pesquisa (COEP/UERJ), registrada sob no.
CAAE:78246217.0.0000.528, tendo recebido parecer favorável para sua realização.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 225

daqueles que vivem nas chamadas regiões mineradoras, como as cidades de


Mariana, Ouro Preto e Itabirito em Minas Gerais, a, assim chamada, região
dos inconfidentes. Para se ter uma ideia deste impacto, a Samarco, empresa de
propriedade compartilhada entre a Broken Hill Proprietary Company Limited
(BHP Billiton) e a Vale S.A., teve sua receita com exportação, em 2015, na
ordem de R$ 191 milhões, o que representa mais de 5% do PIB do estado do
Espírito Santo e 1% de todas as exportações do país. Isso considerando que,
nesse mesmo ano, a empresa protagonizou o maior desastre socioambiental
mundial desde os anos de 1960. Desastre este que buscaremos caracterizar
como uma consequência criminosa da determinação capitalista dos processos
de trabalho, com efeito, um “acidente industrial ampliado”.
A despeito do primeiro “acidente” com a barragem de Fundão em 2015
(Mariana/MG), no ano de 2019, um novo caso ocorreu na cidade de Bruma-
dinho/MG em barragem da Vale S.A. Para além das coincidências entre estes
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dois casos, o que se busca apresentar neste trabalho é o caráter estrutural des-
ses “acidentes”, referido ao modo de produção capitalista, e, justificam-se as
formulações aqui propostas porque hoje, passados sete anos do primeiro “aci-
dente”, as mineradoras retomam a plenitude de suas atividades em Mariana,
sem que os prejuízos causados a todas aquelas famílias consideradas pela
empresa como atendidas, de fato, tenham sido sanados. Prenúncio de violên-
cias individuais e coletivas, de ofensa à vida das trabalhadoras e trabalhadores
da região dos Inconfidentes.
De acordo com as informações prestadas pelos trabalhadores durante as
entrevistas e as informações obtidas na investigação e revisão bibliográfica, a
privatização da Vale do Rio Doce, é um importante marco para nossa reflexão.
Isso porque, para a estatal, que se preparava para privatização e entrada no
mercado mundial como empresa privada, também incorpora sensíveis mudan-
ças, em termos globais, da organização do trabalho. A Vale S.A. em Mariana,
cidade com população estimada no ano de 2018 em pouco mais de sessenta
mil pessoas, sentiu estas mudanças e ajustou-se aos novos modelos para reco-
nhecer-se competitiva no mercado internacional. Os impactos transcendem o
universo da produção e atingem de forma direta a vida da trabalhadora e do
trabalhador da empresa.

E é importante também que depois desse processo, logo a seguir veio


uma mudança muito grande na organização do trabalho, foi por volta dos
anos noventa. Até a Vale sentiu a necessidade que ela tinha que mudar,
ela começou a buscar em modelos japoneses, qualidade total, just in time,
e isso aí impactou muito os trabalhadores, porque até então a relação de
trabalho que se exigia era praticamente o trabalhador ir pra mineração e
226

doar suas horas de trabalho e trocar suas horas de trabalho e vender suas
horas de trabalho, sem muita preocupação. Terminava a jornada, ele ia
pra casa, ia cuidar da sua vida. A partir da implantação desses métodos
japoneses da introdução desses métodos, as empresas passaram também
a exigir também que o trabalhador se preocupasse com a produção e isso
extrapolava, os trabalhadores começaram a levar isso pra casa, tá enten-
dendo? Envolvia tanto a cabeça do trabalhador que, podemos dizer assim,
aumentou o processo de alienação do trabalho a partir da implantação
desses modelos japoneses aí. [...] Isso foi no processo de preparação pra
empresa ser privatizada (Eletricista aposentado).

O modelo de produção e de contrapartida das empresas, também se


destaca no depoimento deste trabalhador, que viveu as diferentes fases do
processo produtivo da, hoje, Vale S.A, antes e depois da privatização.

Editora CRV - Proibida a comercialização


Olha, o mais triste, primeiro que as grandes empresas, a única preocupa-
ção que eles têm é a exploração. Não há um investimento de retorno para
os trabalhadores. Quando a empresa era estatal, 8% do lucro líquido da
empresa tinha que ser aplicado na região onde faz a exploração. Hoje isso
acabou, a empresa faz uns programas lá, dá umas bolsas para uns meninos,
dá uns cursos pro pessoal na região, mas é coisa que se você for olhar não
dá 0,0001% do lucro líquido. O outro lado é poder público também, que
aproveitou uma onda que criou muito dinheiro na mineração, mas não
se preocupou com o futuro, achou que aquela fonte não ia secar. Então,
não desenvolveu nenhuma outra atividade, outras alternativas na cidade,
nem fortaleceu as que já tinha, como o turismo. [...] E hoje se acabar a
mineração na cidade [...] vai perder muito, já tá numa situação complicada
e vai piorar muito (Eletricista aposentado).

Isso em si explicaria a defesa de organizações sindicais pela atividade


minerária voltar a ser estatal e ocorrer sob o controle dos trabalhadores. As
trabalhadoras e trabalhadores que viveram à época da Cia Vale do Rio Doce,
puderam vislumbrar algum lado positivo desta atividade quando a Vale estatal
construiu toda a estrutura urbana de um bairro da cidade de Mariana, finan-
ciando casa a preço de custo para o trabalhador. Essa trajetória construiu
na cidade um sonho coletivo, “o sonho de ser Vale”, como se pode ouvir
nas entrevistas.
O processo produtivo de minério em geral é caracterizado pelo fluxo-
grama que se descreve. Primeiro há a lavra, caracterizada por atividades de
extração e primeira cominuição (redução do tamanho das rochas). O minério
é transportado, britado, peneirado, moído e classificado. Separa-se o material
concentrado com o mineral de interesse e o rejeito. O material concentrado
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 227

será beneficiado até o produto final e o rejeito pode voltar para o processo
produtivo ou ser depositado a céu aberto ou em galerias subterrâneas89.
Para ficar mais claro o impacto causado por uma atividade mineradora,
sugere-se uma conta simples. A Vale, em seu relatório para o terceiro trimes-
tre de 2022, informou ganhos de 4,002 bilhões de dólares com mineração de
ferro e níquel. Neste mesmo período o preço por tonelada do minério de ferro
(iron ore) variou entre US$ 119,00 e US$ 98,00. Apenas com isso, podemos
já imaginar o enorme impacto em termos ambientais que é causado pela
mineração para o alcance de tais cifras.
Isto posto, para ser economicamente viável para a empresa privada,
precisa-se beneficiar uma enorme quantidade de minério, sofrendo, por isso,
influência do mercado, da variação de preço do minério de ferro, que, em
alta, estimularia a produção e em baixa poderia chegar a ter a produção inter-
rompida, o que é um medo recorrente entre os trabalhadores manifestado nas
Editora CRV - Proibida a comercialização

entrevistas. Desta feita, entender os ciclos econômicos da mineração, como


os chamados boom e pós-boom (WANDERLEY, 2017) das commodities é
pré-requisito na problematização deste processo produtivo do minério de ferro
e de seus impactos na vida da classe trabalhadora.
De acordo com Mansur et al. (2016), este boom das commodities dos anos
2000 dura cerca de dez anos, a contar de 2003, quando as importações glo-
bais de minério aumentaram 630%. Os autores sistematizam dados do Banco
Mundial e apresentam que a tonelada do minério de ferro, que custava, em
2003, US$ 32,00, chegou a custar US$ 196,00 em abril de 2008. Entre 2002 e
2011, o minério de ferro sofreu valorização de cerca de 15 vezes, alcançando
o valor de US$ 187,10 a tonelada. Neste mesmo período, a importação do
minério de ferro saltou de 500 milhões de toneladas para 1.394 milhões de
toneladas. Para Wanderley (2017), o que explicaria isso seria o aumento de
demanda de economias emergentes, com destaque para a China, que, para este
mesmo período, passou de consumidora de 18% do minério mundial para um
consumo de 67%. O autor adiciona à análise dos preços das commodities uma
forte especulação de mercado, identificando que a produção cresceu mais que
a demanda, o que também afastaria a explicação clássica de precificação pela
relação oferta-demanda. Este dado também afasta das análises uma relação
racional entre a produção e a demanda.
Nesse período de boom as empresas e os estados mineradores favorece-
ram a intensificação da atividade. Para os estados da federação e para a União,
estava posta a rápida possibilidade de um desequilíbrio favorável da balança

89 Para mais detalhes do processo produtivo da mineração, e em particular, do processo produtivo da mineração
do ferro na cidade de Mariana/MG na mina Alegria e usina Germano, Cf. Carmo (2018).
228

comercial. E, é aproveitando essa “oportunidade” que observamos, junto com


Milanez e Santos (2013), os países periféricos em posição subalterna, com
uma economia primário-exportadora, dentro das Redes Globais de Produção
(RGP) – de commodities de minério.
Áreas mineradas já consolidadas se expandiram desde 2001, com a aber-
tura de novos projetos e retomada de jazidas consideradas inviáveis, já que
a possível inviabilidade de uma jazida se dá pelo baixo preço do minério em
relação aos custos de produção e ao volume necessário para se produzir. É
o caso de jazidas na região de Mariana, com sua exploração viável quando
dos altos preços, ou ainda quando intensificado o processo produtivo. Nas
palavras de um dos trabalhadores aposentados entrevistados:

Principalmente pelos impactos na nossa região, o nosso setor vai sofrer


muito. Vai sofrer muito porque devido à concorrência interna da mine-

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ração... Lá no Pará, eles conseguem tirar a tonelada do minério lá a 12,
13 dólar, aqui sai a 37, 38 o custo dessa mesma produção de minério,
cê entendeu? E lá só tá aumentando. [...] mas na mineração de minério
de ferro, principalmente que atinge a nossa região aqui, a tendência,
eu acho, que é piorar muito, porque os processos aqui são muito caros.
E principalmente depois desse acidente da Samarco, acho que vai ter
uma cobrança maior da produção e, talvez, venha a tornar mais caro o
processo (Eletricista aposentado).

O estado do Pará que, em 2000, produzia quase 4 bilhões de reais em


minérios, chegou a produzir 25 bilhões em 2011. Considerando que boa parte
dessa produção se encontra em região amazônica, inexplorada, compreen-
demos que há uma riqueza incomensurável em disputa (MALERBA, 2012).
Esta variação do mercado promove, para Wanderley (2017), uma inten-
sificação do trabalho. Com o preço mais alto e o interesse comercial para a
compra do minério a produção se intensifica. Mais trabalho de mais traba-
lhadores no menor tempo possível, maior estrutura produtiva – como mine-
rodutos, ferrovias, usinas e barragens – para dar vazão às necessidades do
mercado aquecido pelo preço elevado. Estrutura que, de acordo com Man-
sur et al. (2016), era financiada como se o período de abundância durasse
para sempre, gerando ou aumentando o endividamento das empresas. Desta
maneira, indicam os autores, começa a se evidenciar uma relação estrutural
da atividade mineradora referenciada estritamente pelo mercado com o rom-
pimento da barragem de Fundão e do Córrego do Feijão. Isso porque, insta-
la-se e amplia-se, sob os auspícios do boom, as estruturas produtivas, cuja
manutenção necessitaria de um contingente de capital, possível apenas nestes
períodos atípicos de grande fluxo comercial e alta dos preços das commodities
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 229

de minério de ferro. Não bastasse a míngua comercial do minério de ferro e a


queda do preço por tonelada que ocorreu pós-boom, as empresas precisaram
arcar com as dívidas contraídas para ampliar sua estrutura produtiva. O valor
necessário para a manutenção da estrutura instalada, não se realiza no volume
esperado e, neste caso, a empresa acabaria optando pela via mais lucrativa,
deixando aquém os esforços de manutenção destas estruturas. A afirmativa
se sustenta em análise de atividade semelhante. No caso da mineração do
cobre, os autores analisaram a relação entre a série histórica dos preços do
minério e o índice de rompimentos de barragens em nível global, constatando
relação de ampliação nos números de rompimentos de barragens de rejeito
com o período de pós-boom. No fim, a escolha90 pelo lucro leva à negligência
de parte do processo que submete o ambiente (fauna e flora), assim como as
trabalhadoras e trabalhadores que vivem destes empreendimentos e ao redor
deles a risco de morte previsível.
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Mas, o processo produtivo do minério de ferro tem potencial destrutivo


para além das barragens de rejeito. Sua necessidade de produzir, removendo
áreas inteiras de cadeia de montanhas, realocando os rejeitos desse material,
com uma nova composição, altera ecossistemas inteiros, gerando a neces-
sidade de adaptação ou o perecimento de espécies da fauna e flora. O que
queremos demonstrar aqui não é novidade para os estudiosos desse sistema
sociometabólico do capitalismo. Quer dizer, sempre que a finalidade for o
lucro, a preservação da vida estará em segundo plano, pois, é preciso que
seja viável a produção para o mercado. Uma alternativa saudável, social
e ambientalmente, partiria de processos produtivos com finalidade voltada
às necessidades humanas. Em outros termos, modo de economia em que a
finalidade da produção não fosse a possibilidade de se incorporar valor às
mercadorias, mas sua utilidade em atender às necessidades humanas.
Para viabilidade do negócio de mineração, na cidade de Mariana, a ten-
dência é a intensificação da produção, com mais trabalho sendo gerado, com
redução de custos que reverberam em precarização do trabalho. Quer dizer,
para os períodos que seguem tendemos a uma intensificação dos processos
de terceirização, com fragilização do trabalhador individual, no contexto de
incertezas do mercado local e mundial de minério de ferro e de trabalho na
área da mineração, conforme foi possível apurar na pesquisa.
Como observou-se, o impacto causado por empreendimentos de larga
monta, como a mineração do ferro, pode ser mortal, pois sob a lógica do lucro,

90 Na sociabilidade capitalista, sabemos, com Marx (1996), que o lucro não é apenas uma escolha individual.
Ou se abraça as estratégias de contratendência à queda da taxa de lucro, ou corre-se o risco de sujei-
tar-se às agruras da alienação do trabalho. Subverter a lógica societária é uma questão revolucionária,
não custa lembrar aqui.
230

negligencia-se a vida. O mercado controla o fluxo da produção que se inten-


sifica nos períodos de economia aquecida, mas não se sustenta nos períodos
de menor fervor. Adiante, acrescenta-se a isso que a mineração apareceria
nestas regiões dependentes como um poder acima do poder. Quer dizer, seu
inegável poder econômico se desdobra em força ideológica e política, pois
dita os modos de vida, as decisões políticas e, mesmo o plano cultural, de
modo que sua presença seria inalienável. Vejamos mais.

Minério-dependência

O Estado abarca importante papel no processo de organização e realiza-


ção da atividade minerária. Seja do ponto de vista do trabalho, dando sustenta-
bilidade legal para diferentes modalidades de terceirização (subcontratação),
seja no plano econômico, com uma política de inserção no mercado inter-

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nacional, que Gonçalves (2001) supõe, historicamente, como uma “inserção
regressiva”, dada a reprimarização da economia e, consequentemente, a perda
de competitividade internacional da indústria brasileira. Quer dizer, uma atua-
ção regressiva que possivelmente não foi capaz de aproveitar aquele boom das
commodities que poderia ter representado, o impulso de um círculo virtuoso
onde “o aumento de produtividade causa o incremento das exportações que,
por seu turno, provoca expansão da produção e aumento de ganhos de escala,
o que gera mais aumento de produtividade” (GONÇALVES, 2001, p. 12).
Isso não ocorreu no Brasil.
Para Milanez (2012), essa inserção regressiva aponta para outro pro-
blema no espectro econômico-social de longo prazo, a minério-dependência
(MILANEZ, 2012; COELHO, 2018). Que é quando uma determinada cidade
ou região fica “refém” de uma atividade econômica apenas – no caso, a mine-
ração –, estando completamente suscetível às intempéries do mercado daquele
setor produtivo. Deste fenômeno, Milanez (2012) aponta alguns problemas,
que são importantes destacar aqui.
O primeiro deles é quanto a volatilidade dos preços do minério de
ferro. É comum a variação de até 30%, ou até mais, durante o ano, o que
dificulta a estabilização econômica das empresas, e consequentemente de
regiões e países dependentes da exportação destes bens primários. Sendo
Mariana uma cidade vítima desta dependência mencionada, a relação entre
estabilidade econômica e a previsibilidade das condições de vida e de tra-
balho para o trabalhador, acaba por comprometer a serenidade individual,
sendo efetiva fonte de sofrimento.
Um dos trabalhadores entrevistados, comenta a questão da “minério-
-dependência”, apontando a estratégia criada de buscar nova qualificação,
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 231

a fim de criar alternativas de ingresso no mercado de trabalho. O que


se destaca, no depoimento, é o reconhecimento dos limites do trabalho
na mineração. Sobre cursar ensino superior e buscar alternativas fora da
mineração o trabalhador comenta

Com certeza, né. Já tô fazendo esse curso pra ter já alguma carta na manga.
A gente não sabe o dia de amanhã. Né, se eu for desligado ou não aí o
que que eu vou fazer da minha vida. O que eu sei fazer é operar os equi-
pamentos, mas aqui no comércio não tem esses equipamentos [...] então
eu tenho que buscar outras alternativas (Trabalhador e estudante, chefe
de uma família com esposa e filhos).

A “minério-dependência” é algo tão presente e impactante, que, mesmo


que se busque formação em outras áreas, como no Direito, por exemplo,
as trabalhadoras e trabalhadores, que optam por permanecer na região,
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acabam associando seu novo fazer à atividade minerária. No nosso exem-


plo, tomando rumos no Direito Trabalhista, defendendo os trabalhadores
da mineração.
O segundo problema, apontado por Milanez (2012), é aquele relacio-
nado aos períodos em que há necessidade de expansão do setor, nos quais
são oferecidos salários mais atrativos, havendo fluxo de trabalhadores para
um setor produtivo apenas. No caso de Mariana isso se arrasta desde sua
fundação, tendo a cidade vivido durante o fim do “ciclo do ouro” uma deser-
tificação. A consequência é a redução da diversidade produtiva da região,
que não pode mais (sobre)viver sem esta atividade. Com a paralisação da
principal atividade econômica da cidade, outros setores são impactados, como
o comércio e os serviços. Assim, muitas são as pessoas que sofreram enorme
impacto econômico em suas famílias e tiveram comprometido, até mesmo,
seu sustento. Como vemos no depoimento de um dos informantes da pesquisa,
com relações estabelecidas com muitos trabalhadores da Vila Samarco, em
Antônio Pereira91.

na comunidade de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, estão recolhendo


alimento pra fazer cesta básica, não é porque o cara é vagabundo, não é
porque o cara não quer trabalhar, mas é porque não tem onde trabalhar.
Essa perspectiva fica assim, eu vou fazer o que? Aonde? Fora de Mariana
tem emprego? A gente tá vendo que não é tão fácil assim. A esperança num

91 Vila mais próxima à entrada das minas e usinas, Antônio Pereira é distrito de Ouro Preto/MG. As vias de
acesso e linhas de ônibus à vila, entretanto, passam pela cidade de Mariana/MG, o que pode gerar confusão
ao visitante, que pode supor ser região marianense.
232

futuro, pra ele, que tá desempregado, diminui bem (Operador de usina,


liberado para atividade sindical).

Esta relação dependente da atividade mineradora, tratada por Milanez


(2012), também é apontada por outro informante da pesquisa. Os movimentos
de expansão e crescimento da cidade, como também a constatação do declí-
nio provocado pelo “acidente” e a estimativa de projeção sobre o processo
de mineração em Mariana aparecem no depoimento:

Essa região nossa, principalmente Mariana aqui, é uma região que precisa
da mineração mesmo porque não tem outro tipo de serviço entendeu?
Depois desse rompimento da barragem da Samarco, parou a minera-
dora, hoje, Mariana praticamente tá parada. Mariana hoje diminuiu
muito. Igual eu sou morador daqui, então eu vejo assim: Mariana em

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2012, 2013 movimentava muito mais gente, então impactou demais.
Né? Então, hoje, por exemplo é... muitos colegas meus teve que sair
pra fora, coisa que nunca tinha acontecido, durante toda a minha vida,
sempre teve serviço aqui. [...] É um setor que emprega muita gente.
Às vezes, chega uma empresa por aqui que emprega 200 pessoas, 300
pessoas. Enquanto a mineração, por exemplo, em época de expansão
chega a 6, 7 mil pessoas.
[Sobre a permanência da mineração] Eu sinto que está chegando no
limite, sinto que não vai ser aquilo que era antes mais. Até porque as
empresas hoje tá focando mais fora, tão achando minério de melhor
qualidade, eu não consigo achar que melhora não, sabe? A Samarco
parada aí, já tem mais de 2 anos, num volta. A gente tá torcendo pra
voltar né, pra dar tudo certinho, mas não sei (Soldador na manutenção
de equipamento de mina).

Em terceiro lugar, Milanez (2012) comenta os resultados do desequilí-


brio na distribuição dos benefícios e prejuízos que a atividade da mineração
traz. Fenômeno também visível ao longo da história da cidade, onde vemos
que os custos dos impactos negativos da mineração ficam com as comu-
nidades por ela atingidas; e os benefícios da geração de enorme riqueza,
concentrados nas mãos de grandes empresas ou de alguns agentes do Estado.
O que sabemos, é característico do modo de produção capitalista, isto é,
seu caráter predatório e destrutivo e estruturalmente demarcado pelo anta-
gonismo entre as classes.
Com o que vimos até aqui, podemos afirmar que as consequências da
mineração em Mariana e, também, do “acidente” atravessam os limites da
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 233

fábrica e atingem toda a condição e modo de vida dos trabalhadores da cidade,


dependentes desta atividade produtiva.
Também como consequência dessa dependência, vemos na cidade,
uma culpabilização intraclasse – quer dizer, não bastasse os altos índices
de desemprego, os próprios trabalhadores culpam uns aos outros por isso.
O que pode ser verificado, por exemplo, no posicionamento de moradores
da cidade, culpando as vítimas do desastre de Fundão pelo desemprego nos
anos de redução das atividades mineradoras pós-“acidente” (BASSO, 2016).
Ou, ainda, protagonizando uma irrestrita defesa da empresa Samarco, como
também revolta para com a população que perdeu suas casas e estão hoje
assentadas em casas pela cidade, custeadas pela empresa. Fatos que reve-
lariam, dentre outras coisas, uma enorme carência econômica relacionada
à minério-dependência da cidade. Esta carência econômica, em uma região
de tão elevado PIB, denuncia, mais uma vez, a histórica relação predatória
Editora CRV - Proibida a comercialização

da mineração com o gaveteiro92.


É na mineração, contudo, que se tem os melhores salários para o trabalha-
dor médio marianense – os dados salariais encontrados entre os trabalhadores
entrevistados em nossa pesquisa (ainda que se considere a variação interna
do grupo pesquisado, bem como que se trata de um número reduzido de
trabalhadores entrevistados para que se faça uma comparação efetivamente
quantitativa) coincidem, proximamente, com aqueles do IBGE-Cidades; isto é,
uma média mensal de 2,5 salários mínimos, considerando-se o valor do salário
mínimo de R$ 954,00, em 2018. Entretanto, o Instituto apresenta, ainda, um
percentual de 36% da população da cidade com rendimento nominal mensal
per capita de até ½ salário-mínimo93 (IBGE, 2012).
Para Lima e Teixeira (2006), Minas Gerais é um dos Estados com maior
representatividade de municípios com IDH médio – entre 0,500 e 0,799.
Entretanto, a presença de grandes empresas mineradoras e o recebimento de
Compensação Financeira pela atividade de Extração Mineral (CFEM) não
significa maior qualidade de vida para a população. Isto é, os municípios
mineradores com grande arrecadação de CFEM, acima de R$ 500.000,00,
não se destacam por um IDH acima da média do estado. É o caso de Mariana,
com CFEM muito acima da média, no valor de 139.924.393,81 (SILVA, 2017)
para o ano de 2013, e IDH de ‎0,742 segundo a PNUD de 2010 e IDH Renda,
ainda menor, 0,705. Todos esses valores foram aferidos antes do rompimento
da barragem em Fundão.

92 Vale informar que gaveteiro é o gentilício informal do marianense.


93 Destaca-se que o dado é do período de boom das commodities.
234

O que vimos até aqui, nesta exposição, expressa a nociva determina-


ção do mercado sobre a atividade produtiva de tão alto impacto, e, que as
consequências negativas são reiteradas quando em contexto de “minério-
-dependência”, como vimos em Mariana. É neste quadro, que se defende
que os “acidentes” ocorridos em Fundão e Córrego do Feijão são “acidentes
industriais ampliados” (FREITAS et al., 1995; 2000), com consequências
socioambientais acentuadas ainda mais com a minério-dependência, visto
que a atividade produtiva da qual se depende afeta todo o modo de vida da
população. Para o marianense, as raízes na atividade mineradora definem
sua identidade, e, neste caso, o que seria o marianense sem a mineração?
Com isso, damos os primeiros passos para realizarmos uma análise mais
profunda do “acidente” como um crime praticado pela Samarco/Vale S.A./
BHP Billiton, como um “acidente industrial ampliado” que atravessado pela
determinação da minério-dependência tem os impactos políticos, econômicos

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e sociais ainda mais ampliados.

“Acidente de industrial ampliado” como fenômeno estrutural


da mineração de ferro

Até aqui apresentamos a relação entre o mercado e a produção de alto


impacto da mineração, como também tratamos desta questão em contexto de
minério-dependência. É exatamente essa relação que permite que se afirme
como mais agudas as consequências dos “acidentes” ocorridos em Minas
Gerais nas cidades de Mariana e Brumadinho. São “acidentes industriais
ampliados” com consequências na vida do trabalhador dessas cidades depen-
dentes que vão muito além do trabalho. Vejamos.
O acidente industrial nasce e cresce em escala com a própria industriali-
zação e com o avanço das forças produtivas. Se, com o advento da máquina
a vapor que operava em alta pressão – símbolo da Revolução Industrial – um
país como os EUA chegou à marca de 496 óbitos em consequência de explo-
sões no ano de 1836 (FREITAS et al., 2000); em 2015, o Brasil registrou
cerca de 613 mil acidentes de trabalho, com 2.502 mortes94.
De acordo com Freitas et al. (2000) tivemos uma ampliação significa-
tiva da produção industrial, mas também do transporte e armazenamento,
desde os anos 1960 se comparado com o período da terceira Reestruturação
Produtiva Capitalista dos anos 1980. Havemos de considerar que se trata

94 Disponível em: h t t p s : / / w w w. r e d e b r a s i l a t u a l . c o m . b r / t r a b a l h o /
em-2015-pais-teve-613-mil-acidentes-de-trabalho-com-2-502-mortes-2092/
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 235

de período de ampliação da robótica, que ressignificou o ritmo de trabalho.


Por fim, em caráter de reflexão continuada sobre o tema destes “acidentes
ampliados”, consideraríamos também o contexto informacional nos processos
de produção e circulação de mercadorias. Com a possibilidade de tornar cada
movimento humano e da máquina objeto de conhecimento a favor da produ-
ção e realização do valor, como também o comportamento humano social,
o comportamento dos mercados, teríamos tempos de produção e circulação
cada vez mais acelerados, ampliando as escalas de produção não só o volume
de produção, mas também a redução dos tempos de produção e circulação.
Estes “acidentes industriais ampliados”95 dialogam com a Diretiva de
Sevesso96 de 1982 das Comunidades Europeias para melhor definir os aci-
dentes. Nesta diretiva se consideram os impactos causados à propriedade, à
saúde física, ao meio ambiente e às finanças, contudo, desconsideram que
acidentes de tal monta provocam também sérios impactos psicológicos sobre
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as populações expostas e, também, não pormenorizam características que


qualificariam, por exemplo, o acidente de trabalho no bojo destes “acidentes
maiores”. Para essa pesquisa merecem ser enquadrados como:

eventos agudos, como explosões, incêndios e emissões nas atividades de


produção, isolados ou combinados, envolvendo uma ou mais substâncias
perigosas com potencial para causar simultaneamente múltiplos danos,
sociais, ambientais e à saúde física e mental dos seres expostos. Assim, o
que passa basicamente a caracterizar esse tipo de acidente não é apenas sua
capacidade de causar grande número de óbitos – embora com frequência
ele seja conhecido exatamente por isso –, mas também seu potencial de
permitir que a gravidade e a extensão dos efeitos ultrapassem seus limites
‘espaciais’ – de bairros, cidades e países – e ‘temporais’ – como terato-
gênese, carcinogênese, mutagênese, danos a órgãos-alvo específicos nos
seres humanos e às vegetações e aos seres vivos no meio ambiente futuro
–, além dos impactos psicológicos e sociais sobre as populações expostas
(FREITAS et al., 2000, p. 28)

No caso do acidente ocorrido em Mariana, as semelhanças com este tipo


de fenômeno estão na incapacidade de conter os resíduos e/ou rejeitos da
produção da indústria minerária, provocando impacto enorme nas famílias do

95 Freitas et al (2000) consideram os termos “acidente ampliado” e “acidente químico ampliado” contudo,
sugerem ser mais preciso o termo “acidente industrial ampliado” como um avanço nos debates sobre os
“acidentes maiores” promovidos pelas Comunidades Europeias, ou ainda de “acidente industrial grave”
usada em Portugal e por alguns técnicos no Brasil.
96 Essa diretiva impunha aos Estados membros da União Europeia que identificassem as zonas industriais
que apresentam riscos de acidentes graves. A diretiva, construída em 1982 já sofreu atualizações, sendo
a última do dia 16 de dezembro de 2003.
236

entorno do empreendimento, com vidas e histórias de vida soterradas; como


também um impacto social e ambiental de grande monta, transcendendo os
limites de municípios, regiões e de algumas unidades da federação.
Foi por ocasião deste “acidente industrial ampliado”, noticiado por
muitos como o maior desastre ambiental do Brasil, que se realizou em
Mariana, no dia 28 de abril de 2016 – dia instituído para memória das
vítimas de acidente e doenças do trabalho – a conclusão do “Seminário
Nacional de Saúde e Segurança do Trabalhador e Trabalhadora: desafios e
perspectivas” em conjunto com Audiência Pública da Assembleia Legis-
lativa de Minas Gerais. No dia do evento, até pela presença plural das
centrais sindicais, inúmeros foram os posicionamentos, uns mais duros,
outros mais cautelosos, todos contra as mineradoras. Entretanto, chamou a
atenção, dos presentes, a defesa intransigente e fervorosa da Samarco reali-
zada por alguns representantes sindicais e populares da cidade. No evento

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foi possível observar falas em defesa da Samarco, que acabara de cometer
um crime ambiental de proporção continental com mais de uma dezena de
vítimas fatais. Os mesmos que se mobilizaram em defesa da empresa no
evento, estenderam sua militância em defesa da retomada das atividades
da empresa, mesmo que a demérito da proteção ambiental. Como podemos
ver também em Bertollo (2017, p.209), os argumentos são contrastantes,
como a fala de representante do movimento “Justiça Sim, Desemprego
Não. Fica Samarco!”, em audiência pública que aconteceu na cidade no dia
15 de dezembro de 2016: “Temos que recomeçar sim, nós estamos vivos.
Infelizmente quem não pode recomeçar são os que se foram, não vamos nos
enterrar junto”. Associa-se a este depoimento o subsequente depoimento
do gerente de meio ambiente da Samarco, Márcio Perdigão “O emprego
é um direito, e a Samarco quer garantir este direito para os trabalhadores
da região”. Uma importante observação que se pode destacar aqui é que,
quando a defesa intransigente se torna difícil pela flagrante falta de com-
promisso humanitário, arvora-se em flexionar pela defesa da Samarco e
da atividade minerária, em crise naquele momento. Isso foi presenciado
pela pesquisa reuniões dos trabalhadores com a sociedade, especialmente,
em um discurso proferido por um dos muitos97 ex-prefeitos da cidade.
Ademais, em momento algum levou-se o debate para além da mineração
- de criação de uma outra cultura de trabalho, por exemplo - o que nos
revela o reflexo subjetivo do “acidente industrial ampliado” em contexto

97 Desde 2002 a liderança do executivo municipal é marcada por instabilidade. Para se ter uma ideia, o prefeito
eleito no pleito de 2020 não chegou a assumir o mandato por estar inelegível. De lá para cá, a cidade já
teve dois prefeitos e pode ainda sofrer mais duas trocas até o final desse mandato (2024).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 237

de minério-dependência. Quer dizer, o “acidente” ocorre e tem uma cena


política favorável à anistia de quaisquer crimes que possam ter ocorrido.
Mesmo com a morte de 19 pessoas (uma delas gestante), ainda assim defen-
de-se a retomada da atividade da empresa, embora com o risco iminente de
novo episódio desastroso (e que de fato ocorreu em Brumadinho/MG); de
fato, clama-se pelo “privilégio da servidão” (ANTUNES, 2018).
A defesa da possibilidade de trabalhar e existir como trabalhador, como
meio para a valorização de capital está acima mesmo da existência como
indivíduo. A contradição presente aqui pode ser obnubilada também pela
identidade do marianense que se confunde com a identidade do trabalhador
da mineração, demonstrativo do forte símbolo subjetivo da minério-depen-
dência. Nenhum dos elementos expostos justifica a barbárie promovida pela
mineração, entretanto ela explica a racionalidade expressa pelos defensores
das empresas, ou defensores da atividade minerária realizada pelas empresas.
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Entretanto, quando mergulhados no individualismo próprio do pensamento


burguês, acentuado em tempo de capitalismo flexível, este tipo de resposta é
comum. O lamento, pelos que foram, esconde o sofrimento dos que ficam e
não têm alternativas de trabalho. Os efeitos objetivos e subjetivos desta sim-
biose entre a dependência da mineração e o “acidente industrial ampliado”
podem atravessar gerações.
O inequívoco acidente de trabalho ocorrido a reboque do “acidente indus-
trial ampliado” em Mariana – como também, e de forma mais acentuada, o
de Brumadinho/MG – levou trabalhadores, no exercício de suas atividades
produtivas, à morte. Entretanto, se pensarmos em termos da colossal cadeia
produtiva do minério de ferro, as vítimas deste “acidente” transcendem aqueles
enlutados pela perda dos seus entes queridos, ou ainda aqueles que perderam
algum bem imóvel ou o patrimônio material e imaterial de suas famílias, além
de seus registros de história e modo de vida.
Este “acidente industrial ampliado”, em contexto de minério-dependência,
extrapolou as fronteiras da produção industrial e atingiu de forma violenta não
só aqueles trabalhadores nos parques produtivos das empresas, mas impactou a
todos aqueles trabalhadores que, de alguma maneira, sofreram com a mudan-
ças na produção do minério de ferro. Isto é, este acidente “ampliado” não se
encerra com a estagnação da lama, mas se expressa ao longo dos anos seja com
a perda do emprego, a derrubada dos salários e outros fenômenos identificados
como relacionados à precarização do trabalho. Ele atinge o meio ambiente e a
saúde de territórios e populações, para além daqueles expostos diretamente na
produção, como os trabalhadores e moradores ao longo do Rio Doce.
Para Rodrigues et al. (2016), o acidente reverberou nas condições mate-
riais de sobrevivência, gerando danos sociais e psicológicos que não podem ser
238

calculados. Dentre os problemas de saúde, o relatório produzido pelo Centro


de Direitos Humanos e Empresas destaca: “depressão, síndrome do pânico,
alcoolismo, outras doenças como casos de pioras em doenças respiratórias, con-
juntivite, coceira, alergias, queimaduras em contato com o rejeito” (HOMA,
2015, p. 9).
Por este motivo, se é evidente a necessidade de análise dos impactos
diretos deste “acidente”, parece-nos também fundamental recuperar como
necessárias a análise e pesquisa continuada das consequências sobre o modo
de vida, a saúde física e mental dos trabalhadores e trabalhadoras direta e
indiretamente ligados à cadeia produtiva do minério de ferro, ao longo desses
anos - desde o “acidente” - e, também, os que virão. Quer dizer, se analisa-
mos o “acidente” como acidente ampliado, também o conceito de atingido
dever-se-ia analisar sob este contexto “ampliado”. O atingido não seria apenas
àquele/a que perdeu sua casa, mas, em contexto amplo, àquele/a que sofreu o

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impacto em seu modo de vida. Assim, a argumentação que aqui se apresenta,
indica à uma necessária responsabilização pelos danos continuados causados,
seja aos indivíduos, seja à comunidade.
É o pescador que não pode mais viver da pesca, o comerciante que não
tem para quem vender, o motorista que não tem carro para dirigir, o ambulante
que não encontra público consumidor, o instrutor que não tem motivo para
formar – já que a grande maioria dos cursos se volta para a atividade minerária.
Se consideramos a saúde como socialmente determinada, a produção/re-
produção social reverbera na saúde dos trabalhadores, moradores e consu-
midores. Quando os processos de trabalho da mineração de ferro provocam
impactos dessa monta, como um “acidente industrial ampliado”, então, esses
chamados publicamente de acidentes figuram, sobretudo, como crimes contra
a humanidade, tendo em vista as características de desastres socioambientais,
com repercussões não apenas para os trabalhadores, mas também para con-
sumidores, moradores e a população em geral. Nos casos destes “acidentes
industriais ampliados” ocorrerem em território de dependência econômica,
política e cultural, também a mitigação dos impactos nestas áreas deve ser
de responsabilidade daquele/a que impacta. O rejeito98 de minério é, sabida-
mente, propriedade privada -não deixa de ser propriedade privada por fugir
ao espaço produtivo -, e, assim sendo, os danos causados também são de
responsabilidade privada.
Rodrigues et al. (2016) acreditam que os impactos sociais e a saúde
física e psicológica de fenômenos “ampliados”, como este, não podem ser

98 São propriedade privada e, como vimos de forma mais aprofundada em Carmo, 2018, preservam
interesse econômico.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 239

imediatamente calculados, pois muitos dos problemas se desenvolvem no


tempo, apresentando expressão sensível anos depois, principalmente no que
diz respeito à saúde mental. Segundo os autores, devemos considerar que,
após os rompimentos da barragem de Fundão, pode haver mudança na “repre-
sentação de mundo” dos atingidos, já que “A realidade mostrou-lhes uma
natureza implacável, uma humanidade suspeita, uma sociedade impiedosa e
instituições, no mínimo, deterioradas” (RODRIGUES et al., 2016, p. 167).
Por fim, sumariando, a proposta de análise da questão aqui apresentada
reúne características de “acidente industrial ampliado”, em contexto de miné-
rio-dependência porque:

1. Sua atividade produtiva atravessa os limites da fábrica, moldando


a condição de vida de trabalhadores, mesmo não vinculados dire-
tamente à atividade;
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2. As características do próprio processo produtivo e de seus pro-


cessos de trabalho - mesmo antes do acidente de fato ocorrer-
contam com atividades que podem gerar riscos, já possuindo um
caráter “ampliado” de exposição para os trabalhadores. No caso de
Mariana, por exemplo, este impacto podia ser percebido na quali-
dade do ar, da água, no medo do avanço destes empreendimentos,
como também no impacto econômico nesta região dependente da
produção do minério;
3. O “acidente industrial ampliado” não é caracterizado apenas pelo
momento e dimensão do “acidente”, mas por seu processo, que pode
ser percebido mesmo antes do momento do acidente, pela natureza
dos empreendimentos, mas também, depois, ao longo dos anos, nas
condições de vida e de trabalho, bem como de saúde, meio ambiente
e do próprio modo de vida. Este impacto “ampliado” não se esgota
com o momento do acidente – no caso de Mariana, com a estagnação
da lama –, mas se expressa ao longo dos anos seja com a perda do
emprego, a derrubada dos salários e outros fenômenos identificados
como relacionados à precarização do trabalho;
4. Além da força de trabalho caracterizar-se como força motriz dessas
atividades de impacto “ampliado”, por sua própria natureza atrai
trabalhadores para o seu entorno, prestadores de serviço que se bene-
ficiam da circulação de dinheiro proporcionada pelo salário pago por
estas empresas. Com isso, estes “acidentes industriais ampliados”
assim se caracterizam por impactar, também, objetiva e subjeti-
vamente a vida das trabalhadoras e trabalhadores em seu entorno.
240

Estes impactos sociais e sanitários (saúde física e mental) podem não


ser imediatamente calculáveis, já que muitas das consequências se desen-
volvem no tempo. No que diz respeito à saúde mental, por exemplo, a
mudança nas condições (e no próprio modo) de vida pode ter expressão
sensível muitos anos depois.
O que procuramos destacar aqui é que os crimes praticados pela Samarco/
Vale/BHP Billiton impactam toda a comunidade atingida pela lama, mas tam-
bém impacta, de forma mais direta, trabalhadores que vivem da atividade
mineradora e no seu entorno. Desta forma, este fenômeno deve ser entendido
como uma expressão clara dos processos estruturais vividos na produção do
minério de ferro. O sofrimento é consequência do desgaste mental vivido
nos processos de trabalho dentro do processo produtivo do minério de ferro,
mas também está presente entre trabalhadores que vivem na cidade sob os
auspícios desse impacto “ampliado”, se consideramos o processo de produção/

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reprodução das relações sociais.

Considerações finais

À semelhança destes “acidentes industriais ampliados” queremos destacar


a necessidade de analisar de forma ampliada, para além do espaço produtivo,
os crimes socioambientais cometidos. Contudo, espera-se que também sejam
observados os crimes cometidos contra os trabalhadores dentro do espaço
produtivo. Soma-se a isso que tal “acidente industrial ampliado” tenha ocor-
rido em uma cidade dependente economicamente e marcada culturalmente
pela monoeconomia do minério, sobretudo. Dizendo isso de outra maneira: os
anos vividos na cidade de Mariana me permitiram entender que ser gaveteiro,
é ser mineiro (trabalhador da mineração). Mesmo que um trabalhador não
exerça sua atividade diretamente na mineração, certamente alguém próximo
a ele exerce ou exercerá. Ou ainda, mesmo se a economia da família deste
trabalhador não esteja diretamente ligada à mineração, a circulação de dinheiro
na cidade está. E mais, se falamos que ser gaveteiro é ser mineiro, estamos
afirmando que há uma relação identitária do marianense com a mineração.
Tudo isso ocasionou que os crimes cometidos com o rompimento da barragem,
atravessando os limites do espaço produtivo, levassem mais que a lama de
rejeitos, destruição material e morte. Levou também o sofrimento continuado
àqueles que perderam os registros de sua história, que foram atingidos no
seu modo de vida seja na sua atividade econômica seja no plano cultural.
Mariana, como cidade minério-dependente e vítima deste crime, expôs como
uma fratura a contradição fundamental capitalista. A relação social de negação
e interdependência entre capital e trabalho surge com a dor da perda, com
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 241

o reconhecimento do risco de morte no exercício do trabalho na mineração,


mas também com a luta pela possibilidade de ser trabalhador da mineração
ou mesmo que a mineração esteja operante e ativa.
O que se destaca ainda com esta proposta de leitura do ocorrido é que
não apenas o trabalhador produtivo é uma vítima deste crime, mas a classe
trabalhadora, àquele que depende da venda de sua força de trabalho para existir
e esteve impossibilitado de fazê-lo. Assim como, o comerciante e o pequeno
empreendedor que viu a circulação de dinheiro minguar ao passo que o alto
custo de vida na cidade se mantinha pelo cenário de crise econômica que o
país e o mundo atravessavam já em 2015 e que se acentuaria anos depois.
Às pesquisas futuras cabem analisar esta relação entre impactos da eco-
nomia da mineração e a sociedade, tensionando o limitado entendimento de
atingido, referido apenas ao que sofreu perdas materiais imediatas. Construir
as mediações que exponham as consequências subjetivas sobre os indiví-
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duos e a sociedade é tarefa de uma consciência que possa analisar a fratura


exposta por estes crimes como um fenômeno estrutural de uma sociedade
que precisa ser superada.
242

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REGIÃO PORTUÁRIA DO RIO DE
JANEIRO E HABITAÇÃO SOCIAL: da
invisibilidade à reivindicação do habitar
Maria Gorete da Gama
DOI: 10.24824/978652515286.8.245-264

Falar da invisibilidade da luta e resistência popular em torno do direito


à moradia e ao território da região portuária do Rio de Janeiro é falar a partir
do olhar de quem também vive concreta e subjetivamente o cotidiano dessa
região, como moradora, como ativista, pesquisadora e profissional. É falar de
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um lugar de vidas, de sonhos, de desejos, do cotidiano de indivíduas e indiví-


duos, sujeitas e sujeitos que, individual ou coletivamente, usam, transformam,
constroem e reconstroem, de forma concreta e simbólica – a partir da práxis
criativa da vida cotidiana – esse território.
Porém, as últimas intervenções urbanísticas implementadas na área por-
tuária da cidade do Rio de Janeiro, somadas à crise sanitária provocada pela
pandemia da covid-19, na qual o globo terrestre encontra-se desde o final de
2019 evidenciaram uma realidade extremamente cruel na qual vive a maioria
da população que mora, trabalha e vive na região portuária. Mas, também
foram determinantes para a eclosão de lutas e organizações populares, com
ênfase na organização das pessoas que moram nas ocupações localizadas
no centro da cidade, as quais aumentaram consideravelmente com as crises
pandêmica, econômica e política nas quais o país está inserido desde 2016.
A pandemia agravou o quadro de precarização das condições de vida da
população brasileira, sabemos disso, porém, a elevação do nível de pauperiza-
ção no campo e nas cidades, cujo número de brasileiros em situação de inse-
gurança alimentar chega a mais de 33 milhões de pessoas, conforme afirmam
todas as pesquisas sobre a desigualdade no país, é resultado de uma governança
completamente hostil à classe trabalhadora e insensível aos problemas sociais.
Essas pessoas que têm cor, classe social e endereço, são aquelas que
historicamente vivem com a ausência do poder público, sem políticas públicas
de qualidade e em quantidade para atender as suas demandas e necessidades.
Essas pessoas moram nas favelas e nas áreas periféricas das cidades brasi-
leiras, nos assentamentos e comunidades rurais, nas florestas, nas regiões
dos povos originários e dos quilombolas. Diversos contingentes de famílias,
nem o Código de Endereçamento Postal (CEP) registra, como são os casos
246

dos trabalhadores/as sem teto, os/as ocupantes de imóveis antes vazios, os/
as pessoas que se encontram na situação limite de estarem na rua, as famílias
que moram, de forma precária, em ocupações.
Assim sendo, este artigo, que pretende refletir sobre os processos que
atuam para invisibilizar o cotidiano da região portuária do Rio de Janeiro, mas
sobretudo as formas de uso do espaço urbano portuário pela população que
mora, vive e trabalha na região, além de resistir e lutar pelo direito à moradia
digna e ao espaço como reafirmação do habitar, constitui-se uma breve análise
da pesquisa de Tese de Doutorado “O uso da terra para fins de moradia de
interesse social na região portuária do Rio de Janeiro: da Operação Urbana
Consorciada do Porto às necessidades habitacionais”, defendida em setembro
de 2020 por esta autora99. A atualização de alguns dados da referida pesquisa
também foi contemplada aqui, a partir da participação nos espaços de debate,
reflexão e de trocas sobre a questão da moradia, do direito à cidade, na luta

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pelos direitos humanos, na prática profissional de Serviço Social e como ainda
sujeita que mora no Coletivo de Moradia Popular Quilombo da Gamboa e
que vive concretamente o cotidiano dessa realidade, seus desafios, suas lutas
e suas conquistas.

A Região Portuária da Cidade do Rio de Janeiro e a Operação


Urbana Consorciada do Porto: pontos para reflexão

A região portuária do Rio de Janeiro, vive, desde 2009, o seu mais novo
paradoxo estrutural. Ora, se por um lado, com a nova reurbanização a área
recebeu sistemas de informação e transporte considerados tecnologicamente
de ponta, por outro, nesse mesmo movimento, a maioria da população que
vive, trabalha e usa esse espaço, sente o aviltamento no nível da sua qualidade
de vida. As violações de direitos, que historicamente atinge a população de
baixa renda da região, vêm se acirrando, seja porque não consegue mais pagar
o seu aluguel, garantir a sua alimentação e as demais despesas básicas, seja
porque, em último caso, são obrigadas a deixar a área.
Porém, é com a Operação Urbana Consorciada da Região Portuária (OUC
do Porto)100 que a população que mora, trabalha e vive na região central da
cidade, teve o aguçamento da precarização da sua condição de vida. A OUC
do Porto, desenvolvida pelo governo municipal de Eduardo Paes nas gestões
de 2009-2013/2013-2016, com prazo de 15 anos, podendo ser prorrogada
por igual período, teve um custo inicial de oito bilhões de reais. A extensão

99 Sob orientação da Professora Doutora Isabel Cristina da Costa Cardoso.


100 Operação Urbana Consorciada do Porto (OUC do Porto) foi criada pela Lei Complementar Municipal nº 101,
de 23 de novembro de 2009 (LC 101/2009). (RIO DE JANEIRO, 2009).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 247

territorial da OUC do Porto denominada de Área de Especial Interesse Urba-


nístico da Região Portuária do Rio de Janeiro (AEIU do Porto), está localizada
na Área de Planejamento 1 (AP1), na área central da cidade do Rio de Janeiro,
a, engloba, além dos limites da 1º Região Administrativa – Portuária (RA-P),
uma pequena parte da 2° RA – Centro (RA-C), da 3° RA – Rio Comprido
(RA-RC) e da 7° RA - São Cristóvão (RA-SC) (RIO DE JANEIRO, 2015).
A AEIU do Porto compreende uma extensão territorial de 5 milhões de
metros quadrados e possui como limites as avenidas Presidente Vargas, Rodrigues
Alves, Rio Branco, Francisco Bicalho, além das ruas São Cristóvão e Melo e
Souza. É nesta área que está sendo executada a Operação Urbana Consorciada do
Porto (OUC do Porto), como mostra a figura seguinte (RIO DE JANEIRO, 2015).

Figura 1 – Delimitação da Área de Especial


Interesse Urbanístico (AEIU) do Porto
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Fonte: Rio de Janeiro/Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro/CDURP, 2009.

Para garantir a exequibilidade da OUC do Porto, coube ao poder


público municipal criar uma estrutura de modelagem. Nesse sentido, foi
criada pela Prefeitura, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região
Portuária do Rio de Janeiro (CDURP) pela Lei nº 102, de 23 de novem-
bro de 2009.
A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária do Rio
de Janeiro, criada exclusivamente para promover na íntegra a OUC do Porto,
é responsável por sua gestão, coordenação e monitoramento, incluindo os
procedimentos jurídicos e orçamentário-financeiros. Esta Companhia é res-
ponsável por toda a mediação entre as instituições públicas e o Consórcio
Porto Novo. É de responsabilidade da CDURP o gerenciamento dos recursos
248

oriundos da venda dos CEPACs pela Caixa Econômica Federal (CEF) e o


repasse ao Consórcio Porto Novo101.
Para garantir o bom funcionamento do fluxo dos recursos, foram criados
dois fundos de investimentos. O primeiro denominado de Fundo Investimento
Imobiliário do Porto Maravilha (FII PM) que tem como cotista o Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), e o segundo, denominado Fundo
de Investimento Imobiliário da Região Portuária (FII RP), cujos cotistas são
a CDURP e o Fundo Caixa FII Porto Maravilha. Este último (FII RP) deve
garantir o aporte, em troca de cotas, dos CEPACs e dos imóveis adquiridos
pelo município e integralizá-los como capital social da CDURP (RIO DE
JANEIRO, 2010).
A utilização do FGTS para financiar a operação significa, sobretudo,
o repasse de recurso público proveniente do trabalho para a valorização da
terra urbana mediante obras de investimento urbano. O solo urbano, então

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valorizado, é apropriado pelos capitais interessados em lucrar com a sua nova
condição (CARDOSO, 2013).
Nesse caso, se questiona: como a Operação Urbana Consorciada do
Porto influenciou a vida da população moradora da região, principalmente
aquela de baixa renda? Para as pesquisas desenvolvidas sobre a OUC do
Porto, e para muitos moradores e muitas moradoras, esta Operação - a qual
muitos chamam de “Porco Maravilha- seguiu a mesma lógica dos projetos
urbanísticos que lhes antecederam. É quase unânime a posição de que a
Operação não atendeu as reais necessidades populares e, até mesmo, a par-
ticipação popular foi limitada. A Operação, provocou um estranhamento
dessa população em relação ao espaço. Um “novo” para o qual ela parece
não pertencer. Esse processo de normatização da produção do espaço vem
negando o espaço vivido, o direito das pessoas ao protagonismo como sujeitos
e sujeitas da sua história.
Em 2020, com o novo plano chamado “Reviver Centro” a região central
volta a ser o foco da gestão Eduardo Paes. Como continuidade da OUC do
Porto e seguindo a mesma lógica de transformação da paisagem da região para
atrair consumidores de classe média e alta, o novo plano urbanístico também
não prevê produção de habitação de interesse social para famílias de baixa
renda, seguindo com as violações de direitos implementadas historicamente
pelo Estado capitalista.

101 Os CEPACs são Certificados de Potencial Adicional de Construção, que dizem respeito a valores mobi-
liários emitidos por municípios brasileiros, negociados por meio da bolsa de valores brasileira, como
investimento especulativo.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 249

Das necessidades habitacionais à reivindicação do habitar

Os processos de verticalização, implementados pela racionalidade do


habitat recusa o conteúdo da prática socioespacial do habitar e nega o verda-
deiro lugar, a verdadeira história, a ancestralidade do território como território
vivido e “particular pela diversidade que abriga” (PINTO, 2012, p. 52).
A região portuária é esse lugar. Como entende Pinto (2012, p. 52), seus
bairros “têm vida própria e são marcados pela dinâmica social, econômica e
política do Rio e do Brasil”. Um lugar que marca a “história do nosso povo
desde o início da colonização até os dias de hoje” e é “berço de elementos
símbolos de nossa cultura e palco de importantes lutas por direitos sociais
e liberdade” (PINTO, 2012, p. 52).
Ora, quando falamos do habitat como imposição, buscamos fundamentação
no pensamento Lefebvriano, que o entende como o conflito instalado entre a
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antiga monumentalidade e as novas monumentalidades (edifício). Pois, segundo


Lefebvre (2006, p. 77) é o habitat que “assegura a reprodutividade nas extensões
e proliferações da cidade”. Ou seja, a sociedade capitalista ao não conseguir
instalar-se integralmente nas velhas monumentalidades, incorporar-se na nova
monumentalidade “sob o controle do Estado” (LEFEBVRE, 2006, p. 77).
Nesse sentido, o habitat esforça-se para impor-se no cotidiano como uma
forma lógica, negando o conteúdo da prática socioespacial do habitar, que por
sua vez, deve ser entendido como processo de reprodução da vida cotidiana
que está para além da arquitetura, da casa. Desta forma, Carlos (2007) com-
preende que entender o espaço geográfico enquanto produto histórico e social
significa tomá-lo como possibilidade de análises das relações sociais enquanto
concretude espacial e condição para a realização da prática social. Dito isso,
entendemos que a região portuária é esse espaço da concretude da prática social
onde o habitar e o habitat constituem-se mediante conflitos. Porém, essas forças
também convergem quando os interesses se tornam paritários. Logo, o consenso
também se torna necessário nesse jogo onde os interesses são antagônicos.
É neste cenário globalizado do desenvolvimento das relações sociais capi-
talistas que a cidade do Rio de Janeiro se insere no chamado “empresariamento
urbano”, conceituado por Harvey (1996), como parte integrante dos processos
de reprodução ampliada do capital, a partir da produção social do espaço. Como
lógica, o “empresariamento urbano” organiza e direciona a atuação do Estado
por meio das intervenções urbanas organizadas por parcerias público-privadas,
financiadas com recursos públicos ou de fundo semipúblicos, sustentadoras,
por exemplo, de operações urbanas consorciadas (HARVEY, 1996).
Sabemos, porém, que essa realidade está de acordo com o movimento e
propósito do atual padrão de acumulação capitalista: a acumulação flexível,
250

cuja reprodução ocorre sobre bases crescentes de espoliação/expropriação.


No espaço urbano, a acumulação flexível, por meio de ações estatais fun-
damentadas pelos princípios do modelo neoliberal de gestão urbana deno-
minada de “empresariamento urbano” e difundida pelo globo terrestre aos
gestores locais, transforma o espaço urbano das cidades de forma que esse
se torne atrativo aos grandes capitais e para aqueles/as que podem pagar pelo
espaço transformado. Segundo Harvey (2005) esse conceito busca expressar
a seguinte compreensão.

O novo empresariamento se caracteriza, então, principalmente pela par-


ceria público-privada tendo como objetivo político e econômico imediato
(se bem que, de forma nenhuma exclusivo) muito mais o investimento
e desenvolvimento econômico através de empreendimentos imobiliários
pontuais e especulativos do que a melhoria das condições em um âmbito
específico (HARVEY, 1996, p. 53).

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Essa forma de gestão da coisa pública, de administração das cidades e das
políticas urbanas, provoca um duplo e contraditório efeito sobre os processos
de urbanização: por um lado, aprofunda o clássico padrão da urbanização
desigual e rarefeita das sociedades capitalistas periféricas, com graus variados
de desigualdade urbana, onde ainda persistem territórios extremamente pre-
carizados e desprovidas de serviços essenciais à manutenção da vida humana,
nas quais vivem a massa da população pauperizada.
Carvalho (2017) ao analisar dados censitários da região portuária de
1991, 2000 e 2010, observou, dentre outras mudanças, que houve um aumento
do número de domicílios sem banheiro na região portuária do Rio de Janeiro,
o que para nós, pode estar relacionado ao aumento das habitações precárias,
como as ocupações e outas frágeis instalações.
Ao avançarmos na análise de Carvalho (2017), observamos que no bairro
da Saúde, o número de domicílio com abastecimento de água caiu de 794
domicílios em 1991 para 683 em 2000, a coleta de lixo manteve-se nos dois
períodos em 684 domicílios. Já em relação a 2010, esses números cresceram
para 945 domicílios (fornecimento de água) e 946 domicílios (coleta de lixo).
O número de domicílios também alterou nos três períodos: 1991 = 805; 2000
= 684; 2010 = 946102.
Diante dos fatores apresentados até aqui questionamos por que a prefei-
tura não implementou e/ou não concluiu projetos habitacionais para responder
a demanda histórica da população da área portuária. E, o que justificaria a

102 Os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, que constituem a I Região Administrativa e que integra a
área de Planejamento I (AP1), são os três bairros que compõem o núcleo da Área Especial de Interesse
Urbanístico onde se desenvolve a Operação Urbana Consorciada da Região Portuária do Rio de Janeiro.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 251

baixa atenção da Prefeitura a esse respeito. Transformar os prédios e imó-


veis vazios e subutilizados em Habitação de Interesse Social para atender à
necessidade habitacional, não seria uma resposta a essa demanda histórica?
Não há justificativa, a não ser aquela já apontada por Villaça (1986) de que a
habitação é uma mercadoria e, em uma economia de mercado,

Do ponto de vista da economia política vigente, diz Bofaffi, o Bra-


sil possui exatamente o número de habitações para o qual existe uma
demanda monetária. A classe dominante é então obrigada a inventar
um problema que na sua lógica não existe, para depois dizer que vai
resolvê-lo ou atacá-lo (VILLAÇA, 1986, p. 5).

É importante destacar que esse quadro de extrema violação de direitos


humanos, no qual a maioria da população brasileira está submetida, e que se
expressa na realidade de mais de 50% da população que mora na região por-
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tuária, principalmente nos cortiços e em ocupações, é reflexo da desigualdade


resultante da má distribuição de riqueza produzida no mundo.
Segundo o Relatório da Oxfam Brasil, lançado em 16 de janeiro de 2023,
por ocasião do Fórum Econômico Mundial em Davos, intitulado “A ‘sobre-
vivência’ dos mais ricos: por que é preciso tributar os super-ricos agora para
combater a desigualdade”, o grupo que representa o 1% mais rico do mundo
ficou com quase 2/3 de toda riqueza gerada em 2020, um montante de US$
42 trilhões, representando seis vezes mais do que 90% da população mundial
adquiriu no período em questão. Segundo o relatório, em cada 100 dólares de
riqueza gerada nesse período, 54,40 dólares destinaram-se aos mais ricos e
somente 0,70 para os 50% mais pobres (OXFAM BRASIL, 2023)103.
Ainda sobre o quadro de desigualdade mundial a Fundação Oxfam Brasil
já indicava em 2017, que oito bilionários detinham o mesmo que a metade
mais pobre da população do planeta – 700 milhões de pessoas era o número
que representava os mais pobres. Ou seja, vive-se no mundo a reprodução
contínua e expansiva da desigualdade extrema.
No Brasil, as pesquisas apontam uma realidade violadora de direitos
humanos e sociais na qual de 33,1 milhões de pessoas vivem a insegurança
alimentar104, isso significa 125,2 milhões de pessoas vivendo com algum grau

103 Disponível em: file:///C:/Users/Jubileu%20Sul%20Sinergia/Downloads/Davos_full_2023_pt-BR_sem-em-


bargo_vs02.pdf. Acesso em: 20 jan. 2023.
104 Insegurança alimentar caracteriza-se quando uma pessoa ou mais não te, acesso à alimentação, ou seja, o
direito humano à alimentação adequado é negado/violado. Assim, a insegurança alimentar pode ser classificada
de três formas: 1) Leve: incerteza sobre o acesso a alimentação em um futuro próximo; 2) moderada: quando
o alimento é insuficiente para uma boa alimentação; 3) Grave: quando não tem acesso ao alimento, ou seja,
a falta completa de alimento. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/. Acesso em: 19 jan. 2022.
252

de insegurança alimentar (OXFAM, BRASIL, 2022)105 ou seja, sem comida


ou com somente uma refeição por dia. A pobreza extrema pela qual milhares
de brasileiros e brasileiras estão submetidos e submetidas levou em tempos
recentes a cenas estarrecedoras, onde pessoas se amontoavam para conseguir
pegar ossos nos caminhões de coleta de lixo.
Conviver com a falta de alimento e de moradia adequada e outros bens
básicos é a realidade de muitas famílias que vivem nos cortiços e nas ocu-
pações da área central da cidade do Rio de Janeiro, principalmente aquelas
chamadas de ocupações espontâneas, organizadas pelas famílias sem a par-
ticipação dos movimentos sociais.
Nesses espaços, a moradia convive com a ausência e/ou precarização
de serviços básicos como saneamento, luz elétrica. Barracos sem qualquer
estrutura e completamente insalubres, provocam o adoecimento das pessoas
que ali moram, inclusive dos mais vulneráveis como crianças e pessoas ido-

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sas. Muitas famílias dependem das refeições doadas por organizações não
governamentais para garantir a alimentação.
Quando analisamos o Índice de Progresso Social106 da região portuária
do município do Rio de Janeiro de 2022, correspondente ao patamar de 57,4,
observamos que este indicador está abaixo do indicador da cidade do Rio de
Janeiro que é de 61,3 e equipara-se aos IPS das regiões de Anchieta (57,1);
Pavuna (51,5); Guaratuba (51,6); Jacarezinho (50,4); Complexo do Alemão
(54,1); Cidade de Deus (54,4) (RIO DE JANEIRO, 2022)107. Chama a nossa
atenção a variável Fundamentos do Bem-Estar, cujo percentual é 46,7, bem
abaixo da média do município que é de 51,63 o que confirma o alto grau de vul-
nerabilidade da maioria da população da região (RIO DE JANEIRO, 2022)108.
O paradoxo nessa constatação está no fato da região portuária ter passado
por uma grande intervenção urbanística, com a Operação Urbana Consorciada
do Porto, e viver, no tempo presente, a execução do projeto Reviver Centro e

105 Olhe para a fome-Oxfam Brasil, 2022. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/. Acesso em: 19 jan. 2022.
106 O Índice de Progresso Social (IPS) consiste na aferição do desenvolvimento humano a partir de indica-
dores vindo três dimensões e doze componentes. “O IPS é composto por indicadores socioambientais de
resultado, de modo que não utiliza variáveis econômicas ou intermediárias. Isto se dá porque o desenvol-
vimento humano ou progresso social se diferencia de crescimento econômico, e, portanto, é mensurado
multidimensionalmente através de variáveis sociais — indicadores de saúde, nível de acesso e qualidade
dos serviços básicos e da educação básica e superior — e também por variáveis ambientais, de acesso à
comunicação, direitos humanos, liberdade de escolha, tolerância e inclusão. Este marco teórico fundamenta
a estrutura das dimensões e componentes do IPS”. Índice de Progresso Social do Rio de Janeiro Rio
de Janeiro/Instituto Pereira Passos. Disponível em: https://ips-rio-pcrj.hub.arcgis.com/documents/918d-
d39478594792a9cfa7080b84c0b5/about. Acesso em: 19 jan. 2023.
107 Disponível em: https://ips-rio-pcrj.hub.arcgis.com/documents/918dd39478594792a9cfa7080b84c0b5/about.
Acesso em: 19 jan. 2023.
108 Disponível em: https://ips-rio-pcrj.hub.arcgis.com/pages/comparaes. Acesso em: 19 jan. 2022
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 253

ainda possuir índices tão baixos no que tange a qualidade de vida da população
(RIO DE JANEIRO, 2022).
Desta forma, entende-se que só é possível dar visibilidade à situação
da moradia na área central da cidade, especialmente na região portuária, ao
reconhecer que, como espaço vivido, é espaço de conflitos e de disputas por
seu valor de uso. Quando tratamos da região portuária observamos que se,
por um lado, não houve no âmbito da OUC do Porto investimento em políti-
cas públicas na região, por outro essa mesma Operação causou impactos que
agudizaram ainda mais os problemas sociais e as desigualdades socioespaciais
(WERNECK, 2017), levando centenas de famílias a buscar, por conta própria,
soluções para problemas históricos, como por exemplo, a garantia de um teto.
Esse quadro de precarização da vida, pode ser observado pela pesquisa
sobre cortiços da área central da cidade sob o título Prata Preta vinculada
ao projeto de extensão Viver, Morar e Trabalhar no Centro realizada pelo
Observatório das Metrópoles e Central de Movimentos Populares (CMP/
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RJ) 2016/2019, quando identificou, na sua primeira etapa, 54 (cinquenta e


quatro) cortiços distribuídos nos bairros Santo Cristo, Gamboa e Saúde e
em ruas do Centro da cidade, envolvendo 712 (setecentos e doze) quartos,
onde habitam cerca de 1.120 (mil cento e vinte) pessoas. Porém, com o
prolongamento da pesquisa para outros bairros da área central da cidade,
como Centro, Cinelândia, Lapa, Estácio e Rio Cumprido, o resultado final
foi a identificação de 155 cortiços perfazendo um total de 2.450 quartos
nos quais moram 2.638 pessoas (OBSERVATÓRIO DAS METROPOLES/
CMP/RJ, 2019, p. 32).
A pesquisa também identificou a partir de um levantamento cartorial,
em uma amostra de 23 imóveis, que todos os imóveis eram privados, dentre
os quais, dois de propriedade de pessoa jurídica e os demais de pessoa física.
Esse dado indica que os moradores e moradoras dos cortiços têm sua qualidade
de vida ainda mais rebaixada, considerando que são pessoas de baixa renda e,
além das despesas básicas ainda têm o custo do aluguel, cujos valores variam
entre R$ 150 a R$800 reais a depender do número de cômodos (OBSERVA-
TÓRIO DAS METROPOLES/CMP/RJ, 2019, p. 32).
Desde 2022, a pesquisa “Prata Preta: Projeto Morar, Trabalhar e Viver no
Centro”, em continuidade, vem desenvolvendo a cartografia social sobre as
ocupações da área central, o que será mais um instrumento que dará visibili-
dade a realidade de moradia de grande parte das famílias que mora na região,
como também poderá subsidiar políticas públicas, sobretudo a política de
habitação de interesse social que sequer saiu das páginas do Plano de Habi-
tação de Interesse Social da Região Portuária109, mesmo sendo reconhecido

109 Este Plano foi construído em 2015 por exigência do Ministério das Cidades. O PHIS do Porto apresenta,
“dentre outras medidas, a produção de pelo menos 10.000 Unidades de habitação de interesse social na
região portuária; um inventário fundiário dos imóveis públicos de todos os entes da Federação na área
254

nesse a existência de um déficit habitacional de 17,889, o que corresponde


a mais da metade da população, no número de habitantes da região que é de
29,953, segundo o Censo de 2010 (RIO DE JANEIRO, 2015).
Assim, como esses extratos da população não encontram ressonância no
Estado para resolver a suas necessidades habitacionais, a saída é buscar solu-
ções e alternativas por conta própria. Como? Em imóveis cedidos por terceiros,
em imóveis alugados, em cortiços precarizados, em vagas em estalagens e,
em muitos casos, por processo de ocupações de imóveis vazios.
Neste caso, a ocupação de imóveis vazios por famílias extremamente
precarizadas e sem outra alternativa para resolver seu problema de falta de
moradia, não se finda aí, mas para nós, significa a essência da luta pela garantia
do direito à cidade, ao centro, ao habitar. Essa forma de moradia improvisada,
insegura juridicamente, também é sustentada pela possibilidade, pela espe-
rança e, sobretudo, pela resistência frente ao poder da propriedade privada,
da lógica impositiva do habitat (LEFEBVRE, 2006).

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Figura 2 – Ocupação/Coletivo Quilombo da Gamboa/
Terreno do coletivo – Ato pelo Direito à moradia

Fonte: imagem feita pela autora (Silva, 2018).

portuária e na região central da cidade para se produzir habitação; oferta de pelo menos 1.500 imóveis
residenciais e 250 imóveis comerciais para aluguel, no âmbito do programa de Locação Social; reforma,
ampliação e recuperação de aproximadamente 2.500 residências de famílias de baixa renda; criação de
AEIS de vazios, gravando a destinação de terrenos públicos vazios para o uso residencial de interesse
social” (FORUM NACIONAL PELA REFORMA URBANA, 2022, p. 11).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 255

Nesse sentido, as ocupações dos prédios e imóveis vazios e abandona-


dos na área central da cidade, colocam-se como uma alternativa para muitas
famílias que sofrem com a falta ou a precarização de moradia. O movimento
de ocupar e resistir na área central da cidade está no campo das correlações
de forças, no qual os/as moradores/as ao colocarem-se como obstáculos à ten-
tativa do capital em mercantilizar o espaço e esvaziá-lo das relações sociais,
tornam-se potência e o irredutível à cotidianidade.
Essa forma de moradia improvisada, insegura juridicamente, também é
sustentada pela possibilidade, pela esperança e, sobretudo, pela resistência
frente o poder da propriedade privada, da lógica impositiva do habitat. Por-
tanto, as formas de uso do espaço mediante a ocupação de imóveis e terrenos
vazios e subutilizados pela população pauperizada, está no campo da disputa,
da resistência e da luta pelo território, cidade e pelo direito à moradia digna.
Dentre as ocupações para fins de moradia existentes na região portuária e na
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área central da cidade, estão aquelas organizadas por movimentos sociais, como
Central de Movimentos Populares (CMP), a União Nacional por Moradia Popular
(UNIÃO), o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) e Movimento
de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). São projetos de Habitação de Inte-
resse Social inscritos no “Programa Minha Casa, Minha Vida” ainda na gestão
dos governos federais do Partido das Trabalhadores nas décadas passadas, como
por exemplo, as ocupações Vito Giannotti e Quilombo da Gamboa localizadas
no bairro Santo Cristo, Mariana Crioula no bairro da Gamboa e Manoel Congo
na área central, Cinelândia. Essas moradias são em imóveis públicos, que esta-
vam vazios a mais de dez anos, logo, não estavam cumprindo a função social
da propriedade como rege a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Com o golpe parlamentar e político ocorrido em 2016, todos esses pro-
jetos-Vito Giannotti e Manoel Congo projeto de requalificação, Quilombo da
Gamboa e Mariana Crioula construção- foram paralisados nas instituições
federais. Assim, são seis anos de luta e resistência das famílias que moram
nesses imóveis para garantir a permanência como também a posse definitiva.
Movimentos e mobilizações nacionais foram de fundamental importân-
cia para a visibilidade e fortalecimento da luta popular contra os despejos,
principalmente durante a pandemia do Covid/19, exigindo a permanência
das famílias nessas ocupações e nas chamadas de espontâneas. Dentre tais
lutas e movimentos destacam-se a Campanha Nacional Despejo Zero, cons-
tituída por mais de 175 entidades de todo o Brasil, a aprovação da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental 828 (ADPF), em 2021110 e a

110 Esta Lei que ficou conhecida como PL dos Despejos (PL 827/2020), “foi promulgada após a derrubada, pelo
Congresso Federal, do veto integral do Presidente Jair Bolsonaro ao texto da lei. De autoria do deputado federal
André Janones (AVANTE), em coautoria com as deputadas federais Natália Bonavides (PT) e Professora Rosa
256

Lei nº 14.216/2021, de 8 de outubro de 2021. Assim, em outubro de 2022, a


Campanha denunciou que havia mais de 1 milhão de pessoas impactas por
despejos no campo e nas cidades e mais de 35.285 famílias foram despejas.
Um cenário que demonstra a violação de direitos humanos implementada
pelo Estado capitalista que tinha na sua gestão federal um governo de extrema
direita com claras opções pela garantia dos privilégios fundiários e rentistas
da elite capitalista do país.
As ações de denúncias das violações de direitos humanos, como a
Missão Denúncia em Defesa do Direito à Moradia, ao Território e Contra
dos Despejos, na área central da Cidade do Rio de Janeiro e Petrópolis,
ocorrida em setembro de 2022111, também fortalecem o processo de luta e
resistência por moradia digna. No Rio de Janeiro a Missão Denúncia ocor-
reu nas seguintes ocupações: Vito Giannotti; Morar Feliz; Quilombo da
Gamboa; Ocupação Habib’s; Ocupação Zumbi; Ocupação Almirante João

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Cândido; Ocupação Carlos Lamarca; Ocupação Antônio Loro; e Ocupação
Marielle Franco.
Como ação de incidência, a Missão solicitou reuniões com autoridades
públicas diretamente envolvidas na questão habitacional e do campo judiciá-
rio. Atenderam a solicitação encaminhada pela Missão os seguintes órgãos:
Tribunal de Justiça; a SPU - Secretaria de Patrimônio da União; o Iterj –
Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro; e TRF - Tribunal Regional
Federal da 2ª Região. Porém, os órgãos públicos que não responderam à
solicitação de reunião foram: Secretaria Municipal de Habitação da cidade
do Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Assistência Social da cidade do
Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Ordem Pública da cidade do Rio de
Janeiro; Secretaria de Habitação do estado do Rio de Janeiro; Secretaria de
Obras do estado do Rio de Janeiro; Companhia de Desenvolvimento Urbano
da Região do Porto do Rio de Janeiro – CDURP; SPU - Secretaria de Patri-
mônio da União112. Cabe registrar que a falta de resposta desses órgãos com

Neide (PT)”. A aprovação da Lei garante que milhares de famílias permaneçam em suas casas, como ainda
minimização dos impactos das crises social, econômica e sanitária, cuja mais atingida é a população mais
vulneral. Disponível em: https://www.campanhadespejozero.org/aprovada-a-lei-federal. Acesso em: 21 jan. 2023.
111 A missão Denúncia em Defesa do Direito à Moradia, ao Território e Contra dos Despejos na Cidade do
Rio de Janeiro e Petrópolis foi realizada pelo Fórum Nacional pela Reforma Urbana, Campanha Nacional
Despejo Zero em Defesa da Vida na Cidade e no Campo, Conselho Nacional de Direitos Humanos, Plata-
forma DHESCA- Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais
(FORUM NACIONAL PELA REFORMA URBANA, 2022).
112 Relatório Rio de Janeiro e Petrópolis/RJ Missão Denúncia em Defesa do Direito à Moradia Adequada, ao
Território e contra os desejos nas cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis/RJ (2022). Disponível em: https://
www.campanhadespejozero.org/aprovada-a-lei-federal. Acesso em: 21 jan. 2023.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 257

a Missão só confirma o completo descompromisso de suas gestões com as


demandas e necessidades populares.
Cabe destacar que a referida Missão culminou com uma audiência
pública convocada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
(PFDC) - Ministério Público Federal - MPF, da qual participaram as famí-
lias e representantes das Ocupações e comunidades visitadas em Petrópolis
e no Rio de Janeiro (Relatório Missão Denúncia-Rio de Janeiro e Petrópolis,
2022). Portanto, se por um lado, as ocupações são a alternativa encontra-
das por milhares de famílias para garantir um teto também são espaços de
resistência e luta popular frente ao modelo de cidade-mercadoria e ao uso
do espaço como valor de troca.
No nosso entendimento, as ocupações possuem uma dinâmica própria de
organização e mobilização. São coletivos formados por famílias/sujeitos que
ao reivindicarem o acesso ao direito à moradia o fazem no campo dos direitos
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humanos. Junto a esses sujeitos e sujeitas, unem-se técnicos de diversas áreas,


instituições públicas, pesquisadores/pesquisadoras de Instituições de Ensino
Superior, mídias alternativas e comunicadores populares, advogados (as) e
outros coletivos sociais.
Nesse sentido entendemos que as ocupações se constituem em sujeito
social que tensiona a prática do urbanismo racional/institucional “onde o
estado se encarrega de enfrentar e resolver os problemas urbanos reorga-
nizando a prática socioespacial, a vida cotidiana através das mudanças nas
formas de apropriação da metrópole, sem críticas” (CARLOS, 2017, p. 115).
Assim como Villaça (1986) entendemos que o movimento de ocupar, repre-
senta a incapacidade do Estado em resolver o problema habitacional. Para
esse autor, o Estado “contraditoriamente, ao mesmo tempo que reconhece essa
obrigação como sua, dá provas concretas que é incapaz de desincumbisse-se
dela” (VILLAÇA, 1986, p. 4).
Portanto, à pergunta consiste em: as formas de uso e apropriação do
solo pela OUC do Porto e/ou a prefeitura estão respondendo a necessidade
habitacional da região? A resposta? Não! Entretanto, entendemos que os
movimentos de resistência e de luta pela garantia da moradia digna na região
são forças contra-hegemônicas às formas institucionalizadas do Estado e às
forças do mercado.
É nesse contexto, que a população da região portuária, articula e organiza
formas para reivindicar o seu direito ao solo renovado e usufrui-lo como valor
de uso, ao mesmo tempo, que provoca mudanças nos antigos modos de vida,
redefinindo a consciência social e o cotidiano da região (CARLOS, 2017).
O Movimento de ocupar e resistir na área central da cidade está no
campo das correlações de forças, no qual os/as moradores/as ao colocarem-se
258

como obstáculos à tentativa do capital em mercantilizar o espaço e esvaziá-


-lo das relações sociais, tornam-se potência e o irredutível à cotidianidade.
Logo, são movimentos de resistência à voracidade do capital por lucros
cada vez mais elevados.
Forjada no cotidiano, a resistência popular, supera e não aceita de forma
passiva tais imposições. Se rebela e, assim, provoca cisões na cotidianidade.
Tece formas e conteúdo na prática socioespacial. Se movimenta, se ergue, se
manifesta contrária ao habitat e constrói o habitar.
Como bem enfatiza Lefebvre (1991), o espaço não é um simples reflexo
da dinâmica econômica, mas o lugar da luta política. É, nesse sentido, que
entendemos haver a tentativa das forças políticas e econômicas, a partir da
OUC do Porto, de invisibilizar as formas reivindicativas do habitar.
Partindo dessa reflexão, entendemos ser importante, traçar em poucas
linhas, a experiência da Ocupação/coletivo Quilombo da Gamboa, cujas

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informações são resultado da nossa participação como ativista e moradora
desse espaço autogestionário. A Ocupação/coletivo Quilombo da Gamboa,
localizada no bairro da Gamboa, Região Portuária, é um projeto de Habita-
ção de Interesse Social em andamento desde 2010 a ser executado em seis
terrenos de dominialidade pública e que estão em processo de cessão aos
movimentos populares.
É importante, falarmos que, no início do processo, de 2010 até 2020, três
movimentos sociais dividiam a responsabilidade pelo projeto, a saber: Central
de Movimento Popular, União Nacional por Moradia Populares e Fundação
Bento Rubião (FBR), esta última com a Entidade Organização (EO) junto aos
órgãos públicos envolvidos. Com as saídas da Bento Rubião, em 2016, e da
União Nacional por Moradia Popular, em 2020, a gestão do projeto ficou sob
a responsabilidade da Central de Movimentos Populares. Porém, desde 2016,
com o golpe parlamentar e político, que levou ao impeachment da Presidenta
Dilma Rousseff, o projeto está paralisado a nível governamental, porém em
movimento no sentido da resistência popular.
Durante os governos federais de Michael Temer - 2016/2018 - e Jair
Bolsonaro - 2019/2022 -, a Política de habitação de Interesse Social foi
completamente esvaziada institucional e financeiramente. Na gestão desse
último governo, o “Programa Minha Casa, Minha Vida” foi extinto e,
em seu lugar, colocado o Programa Casa Verde Amarela que não aten-
deu as famílias de baixa renda tampouco deu continuidade aos projetos
então paralisados.
Desde então, as famílias que compõem o projeto de HIS Quilombo da
Gamboa, das quais uma parte é oriunda da antiga ocupação Quilombo das
Guerreiras despejada em 2010, outras organizadas/indicadas pelos movimentos
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 259

sociais já mencionados, perfazendo o total de 116 famílias, lutam pela sua


retomada. O Quilombo da Gamboa - como a denominamos - se tornou um
espaço coletivo aberto ao território e à cidade, tornando-se referência como
um espaço que dialoga com a rede sócio-territorial nele existente e com as
demais ocupações. Nessa perspectiva, a luta pelo direito à moradia digna
também é a luta por um território ancestral onde a história, dos nossos ante-
passados e das nossas antepassadas, reivindica a sua visibilidade a partir da
construção do bem-viver.
É nesse sentido, que entendemos a importância das ocupações de imóveis
e prédios vazios e/ou subutilizados na região portuária da cidade que não estão
cumprindo a sua função social. No nosso entender, são movimentos popula-
res, e como tal, a sua existência reafirma que: primeiro o espaço central da
cidade é reivindicado pela classe trabalhadora; segundo existe vida no centro
da cidade; terceiro, há luta e resistência, logo há disputa pelo uso do espaço
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pelas frações da classe trabalhadora espoliada pelo capital.

Considerações Finais

A região portuária do Rio de Janeiro, como já indicamos anteriormente,


sempre foi uma região estratégica para a reprodução capitalista, seja porque
através dela ocorrem por muito tempo a entrada e saída de todo tipo de
mercadoria e produção. Mas, também, porque ali houve o desembarque
e comercialização pelo Cais do Valongo113, entre o final do século XVIII
e início do século XIX, de aproximadamente 1 milhão de pessoas escra-
vizadas vindas dos países da África. Em tempos recentes, com a OUC do
Porto, para além dos fluxos de mercadoria, a região também se volta para
o mercado do turismo, potencializado sobremaneira pelos transatlânticos
ancorados em seu Píer.
Na região também estão localizados o Aquário AquaRio, além dos museus
de Arte do Rio e do Amanhã. Este último, também construído com recursos
da OUC do Porto que estavam destinados para a construção de infraestrutura
do bairro do Caju, para onde também foram transferidas todas as atividades
portuárias antes desenvolvidas na tradicional retro-área do porto. Em outros
termos, o bairro do Caju foi excluído do território de abrangência da Área
de Especial Interesse Urbanístico (AEIU), favorecendo a construção daquele
equipamento urbano, para fins turísticos. Assim sendo, ao ser retirado da OUC
do Porto, o Estado não só contribuiu para a invisibilidade dessa região Caju

113 O Cais do Valongo foi construído em 1811 para o desembarque e comércio de pessoas escravizadas vindo
do continente africano. Localiza-se nas ruas Coelho e Castro e Sacadura Cabral na região portuária. Em
2017, recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO.
260

do restante da cidade como aprofundou o seu histórico de abandono social e


ambiental (CARDOSO, 2015).
Inserir a cidade no mercado mundial de cidades sempre foi alvo dos
projetos de reurbanização. A OUC do Porto tinha o objetivo de atrair para a
região empreendimentos imobiliários para transações financeiras e habitacio-
nais, no caso dos últimos, destinados principalmente a “novos moradores”
pertencentes às classes média e alta. Sem dúvidas essa era a perspectiva,
pois não foi implementada nenhuma ação prevista no Plano de Habitação de
Interesse Social do Porto, deixando os moradores e as moradoras da região
entregues à própria sorte e tendo que lidar com questões como insegurança
alimentar e ameaças de despejos.
Assim, entendemos que na atualidade, não é possível outra forma de
reivindicação do uso do espaço como espaço vivido, que não seja pela orga-
nização/mobilização popular consciente e orientada pela apropriação e pela

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noção de liberdade emancipadora. Pois, desta forma, é possível desconstruir
a homogeneidade do espaço abstrato, do espaço do urbanista, do planifica-
dor que aparecem como onipotentes, mas que a consciência emancipada,
em superação, consegue enxergá-lo e concebê-lo como espaço do usuário.
O espaço onde o “conflito entre a inevitável maturação, longa e difícil, e a
imaturação que deixa intactas as fontes e reservas iniciais, marca o espaço
vivido” (LEFEBVRE, 2006, p. 6).
É nesse sentido, que concebemos as ocupações para fins de moradia,
como espaços de luta e resistência popular, pois neles, ocorrem as lutas para
alcançar o bem-estar, a apropriação e o acesso à coisa pública e ao comum.
São nesses espaços que a cotidianidade programada e “normalizada” da vida
social e que através da qual se explora todas as possibilidades de consumo
(LEFEBVRE, 1999, p. 84), tenta esconder o cotidiano, tornando-o quase
inconcebível, quase invisível.
Ao nosso ver, o cotidiano só pode ser percebido pela sensibilidade
humana, em outros termos, quando se coloca todos os sentidos humanos
como receptores sensoriais da realidade vivida pela população desses espaços
de moradia, pois somente assim, percebemos as graves violações de direitos
humanos provocadas pela ausência do Estado. Violações essas, materiali-
zada pela moradia inadequada, pela ausência de políticas públicas básicas,
pela insegurança alimentar, pelas violências institucionais provocadas pelo
aparato policial, cujas maiores vítimas são os corpos pretos e pardos, a popu-
lação LGBTQIAP+, as mulheres e outras populações vulnerabilizadas. Esse
contexto de precariedade é reforçado pela insegurança da posse e a ameaça
reiterada de despejos, em outras palavras, nesses espaços, a ausência de polí-
ticas públicas se materializa como dívidas sociais.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 261

Mas, também são espaços de reivindicação de um território saudável e


digno e de resgate e fortalecimento da ancestralidade vivenciada através dos
saberes dos nossos antepassados e das nossas antepassadas. A construção do
bem viver torna-se possível quando práticas como o cultivo de hortas comu-
nitárias/coletivas e a cozinha coletiva desenvolvidas nas ocupações Quilombo
da Gamboa e Vito Giannotti, passam a contribuir com a produção de uma
alimentação saudável para as famílias dessas ocupações e para pessoas em
situação de rua, bem como tornam-se instrumentos de formação política no
campo da soberania alimentar e do Bem-estar.
Atuando através de parcerias, a cozinha coletiva do Quilombo da Gam-
boa já distribuiu, desde o início da pandemia de covid/19, mais de 25 mil
quentinhas às famílias das ocupações da redondeza como para a população
em situação de rua. São realizadas rodas de conversas, oficinas, cirandas
com as mulheres e juventude das ocupações do entorno. Nesses espaços
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tratamos de temas valiosos para as mulheres e para a juventude, como


racismo, misoginia (que provoca a violência contra a mulher), homofobia,
etnofobia, o direito à moradia digna, à cidade e ao território saudável, no
qual seus filhos e filhas possam transitar sem medo de serem interpelados/
as pela violência policial e por ações provocadas pelo ódio por causa de sua
cor e de sua classe social.
Portanto, concluímos reafirmando que é na vida cotidiana, nos espaços
coletivos de moradia, nos espaços culturais, artísticos, enfim em todo espaço
de resistência e de denúncia das violações de direitos humanos provocadas,
principalmente pela ausência do Estado e por sua aliança com o capital e sua
reprodução, que a possibilidade de uma outra forma de sociabilidade se coloca
como irredutível, como revolucionária, como práxis criativa.
262

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Sendo ao mesmo tempo os mesmos, porém outros, desvelam o espaço


geográfico desigual e combinado em que se inserem. Olhando as imagens
(de pescadores artesanais) é possível pensar que se referem ao passado,
porém vivem no presente e seu papel no futuro tem sido aventado como
fundamental, ao possibilitar a reprodução social em consonância com o uso
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da natureza. Olhando o passado da pesca extrativa brasileira, permaneceu


aquilo que era considerado primitivo, mostrando-se menos predatório do
que era considerado o futuro – a indústria pesqueira (CARDOSO, 2016)

No Brasil, apesar da importância dos pequenos produtores114, diversos


autores fazem referência ao abandono histórico da pequena produção, tanto
agrícola quanto pesqueira, por parte dos governos. Esse abandono é acentuado
no contexto de um modelo econômico concentrador de renda, voltado para
incentivos governamentais e exportação das grandes empresas, ao mesmo
tempo em que sistematicamente exclui amplas camadas da classe trabalhadora,
desconsidera a cultura e formas de organização de vastos setores da população.
O estudo histórico realizado por Silva (1988) sobre os pescadores arte-
sanais enquanto categoria socioprofissional, tendo como marco temporal o
Brasil-Colônia e Império, mostra que a ausência de pesquisas sobre o tema é
uma marca característica. Nesta perspectiva, o autor assinala o interesse que

114 É importante destacar que os alimentos disponibilizados e consumidos pela população brasileira são produzidos
principalmente pela agricultura familiar, constituída por pequenos produtores rurais, povos e comunidades
tradicionais, assentados da reforma agrária, silvicultores, aquicultores, extrativistas e pescadores. A Lei 11.326,
de 24 de julho de 2006, define as diretrizes para formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e os
critérios para identificação desse público. Conforme a lei, as principais características da Agricultura Familiar
são: gestão da propriedade compartilhada pela família; força de trabalho familiar; a atividade produtiva agro-
pecuária é a principal fonte geradora de renda; relação particular com a terra, local de trabalho e moradia;
muitas vezes a produção de subsistência está aliada à produção destinada ao mercado. Dados importantes
são fornecidos pelo Censo Agropecuário de 2017 do IBGE, levantamento feito em mais de 5 milhões de
propriedades rurais de todo o Brasil, que revela que 77% dos estabelecimentos agrícolas foram classificados
como da agricultura familiar, responsável por 23% do valor total da produção, ocupando, nesse período, 23%
da área total desses estabelecimentos. Ademais, esse setor empregava mais de 10 milhões de pessoas em
setembro de 2017, o que representava 67% das pessoas ocupadas na agropecuária. Disponível em: https://
www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/agricultura-familiar/agricultura-familiar-1. Acesso: 10 jan. 2023.
266

entre os cientistas sociais sempre tem despertado a possessão, o uso da terra


e os estudos da agricultura de exportação, em detrimento da chamada agri-
cultura de subsistência. Apesar de que nunca foi menos conflituosa, a quase
nenhuma atenção que recebeu a posse e o uso de águas fluviais e marinhas.
No contexto dessas limitações, é importante registrar que até recen-
temente, o estudo do “mundo rural” incluía comunidades de pescadores
presentes ao longo do litoral brasileiro (DIEGUES, 1993; 1999)115. Por sua
vez, o desenvolvimento de pesquisas sobre movimentos sociais no campo
é concomitante a poucas pesquisas em relação aos problemas presentes na
organização política de pescadoras e pescadores.
A pesca artesanal, não obstante ser responsável por grande parcela da
captura de pescado destinada tanto à exportação quanto ao consumo interno,
historicamente sofre com um processo de marginalização social e econômica.
Inclusive, independentemente de que as grandes empresas e a indústria da

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pesca existentes no país exploram em proporção significativa a pesca artesanal
e seu baixo nível técnico de produção, muitos consideram a pesca artesanal
uma “espécie em extinção”.
Em contraposição a essa consideração, a importância da pesca artesanal
é mundialmente reconhecida levando em conta percentuais de ocupação, tra-
balhadores nas cadeias de valor da pesca de captura, fornecimento de pescado
consumido, entre outros. Publicado em 2020, estudo de caso sobre a pesca
artesanal costeira brasileira apresenta dados de 2012 que revelam que o país
ocupa o 18º lugar na produção de pescado no mundo.116 Mostra também que
em 2013, conforme último número oficial informado pelo então Ministério
da Pesca e Aquicultura, existem 1.041.967 pescadores registrados, sendo
58,1% homens e 41,9% mulheres; desse total 1.033.124 (99,2%) atua na
pesca artesanal e de subsistência e 8.843 (0,8%) na pesca industrial; mais
de 3.000.000 de trabalhadores estão indiretamente envolvidos na pesca em
todo o país. Em consonância com a observação de vários autores, o estudo
também faz referência às incertezas e dificuldades para levantar dados da pro-
dução pesqueira em milhares de pontos. De qualquer forma, apesar da elevada
taxa de subnotificação da força de trabalho ocupada na pesca artesanal e das

115 “O litoral, a costa o mar e o oceano eram simplesmente extensões do continente e as populações que viviam
desses ecossistemas eram considerados ‘camponeses’ e assalariados marítimos (no caso da navegação
costeira ou oceânica) para os quais as cidades litorâneas e as zonas costeiras representam espaço de
moradia”. (DIEGUES, 1993, p. 8). Portanto, considerando os mares e oceanos enquanto objeto de conhe-
cimento conclui-se que até há pouco tempo “estavam ausentes totalmente as ciências humanas, como se
o mar e os oceanos fossem grandes vazios, povoados somente por espécies de peixes e aves marinhas”
(DIEGUES, 1993, p. 7). Isso apesar de que desde a Antiguidade os mares tenham sido habitados de forma
temporária por navegadores, pescadores e piratas e de forma permanente ou quase, no caso dos pescadores
asiáticos, que moram com suas famílias nos seus barcos.
116 Cf.: Mattos et al. (2020).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 267

pescarias de pequena escala, o estudo registra que 60% da captura nacional


estimada provém da pesca em pequena escala. A produção de pescado pelo
extrativismo pesqueiro nesse ano superou 803.000t e em média 55% dos dias
do ano são estimados como dias de pesca.
A área da pesca brasileira tem como potenciais os aproximadamente 8,5 mil
km de extensão de costa marítima, a Zona Econômica Exclusiva de cerca de 3,5
milhões de km2, o fato de possuir praticamente 12% do total da reserva de água
doce disponível do planeta e mais de 2 milhões de hectares de terras alagadas,
reservatórios e estuários, assim como o clima favorável117. Além desses poten-
ciais, a partir da III Conferência do Mar das Nações Unidas, com a declaração
da Zona Econômica Exclusiva, aumenta a importância da pesca artesanal, visto
que alarga até os limites da plataforma continental a faixa marítima sob jurisdição
nacional, área onde se encontra a quase totalidade do potencial pesqueiro brasi-
leiro, sendo em geral explorada pelos pescadores artesanais (DIEGUES, 2004d).
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O conjunto desses dados mostra que a pesca artesanal, prática mais antiga
que a própria história oficial do Brasil118, sobrevive a um modelo de desenvol-
vimento econômico e político que – resultado do modo de produção capitalista
– ameaça mangues, lagoas, rios, mar e a própria existência das diversas formas
de vida. Desse modo, é possível afirmar que “a dinâmica do capital leva não
somente à exploração dos trabalhadores do mar, mas também ao desrespeito
das leis que regulam o metabolismo da natureza” (DIEGUES,1983, p. 102).
Na área da pesca brasileira, de maneira geral, existe, por um lado, a
pequena produção mercantil litorânea que abrange tanto a pequena produção
de pescadores-lavradores quanto a de pescadores artesanais. Do outro lado, a
produção capitalista que abarca a produção dos armadores de pesca (proprietá-
rios de mais de uma embarcação) e as empresas de pesca. No litoral brasileiro,
em determinados momentos históricos uma das formas de organização social
da pesca é dominante e mais dinâmica, mas ela coexiste e se articula com as

117 Dados extraídos da Justificativa da 1ª Conferência Nacional de Aquicultura e Pesca – Caderno de Resoluções,
Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca, novembro de 2003.
118 O estudo histórico de Silva (1988) corrobora a necessidade de compreender a existência dos pescadores
artesanais não separada da relação política e econômica global do país, mostrando sua participação ativa
como sujeitos sociais em diversos momentos históricos importantes do território nacional, como a abolição
da escravatura, a independência, as revoltas de Cabanagem e Sabinada (Cf. p. 73-93). O autor revela que no
Brasil-Colônia a pesca artesanal estava intimamente relacionada com a história dos grupos oprimidos dessa
sociedade: os indígenas e, posteriormente, os negros africanos. Desse modo, ele afirma que “as origens mais
profundas desta situação atual se confunde com a história de todos os grupos oprimidos (camponeses, escravos,
etc.) deste país.” (p. 23). Já no período do Estado Imperial foi evidente um intenso processo de dominação,
controle político e opressão fiscal da atividade pesqueira, assim como em 1846 a elaboração da primeira
listagem oficial de todos os pescadores brasileiros, através da criação das Capitanias dos Portos e Costas e
dos Distritos de Pesca (Cf. p. 116-149). Portanto, é possível afirmar que colocar em evidência a “face oculta do
Brasil significa considerar grupos sociais inteiros que, tradicionalmente, sempre estiveram presentes mesmo
que, por trás da casa grande ou da senzala, como o são os pescadores artesanais” (SILVA, 1988, p. 13).
268

outras. Portanto, heterogeneidade é uma característica da pesca, visto que


integra realidades e interesses diversos, desde o pescador artesanal até a pesca
capitalista, com os chamados “trabalhadores do mar”, passando pelos traba-
lhadores “invisíveis”, na sua maioria mulheres, responsáveis pela produção de
apetrechos de pesca, redes, cestos, limpeza e filetagem. No caso das mulheres
que pescam a construção dessa identidade possui particularidades condiciona-
das pelas relações de gênero, aspecto que faz com que muitas se identifiquem
como ajudantes e não como pescadoras e mostra que a pesca artesanal inclui
a interseccionalidade de lutas que incorporam questões de gênero e raça.
Nesse cenário, assiste-se ao crescente empobrecimento de comunidades de
pescadoras e pescadores artesanais resultado de múltiplos fenômenos decorrentes
do desenvolvimento das forças produtivas, da lógica do mercado, da especulação
e da acumulação como, por exemplo: crescimento urbano-industrial; poluição
e degradação ambiental; existência de brechas para grilagem de terras públicas;
privatização das praias, especulação imobiliária e desenvolvimento de grandes

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empreendimentos que expulsam os pequenos pescadores das praias com o seu
consequente aniquilamento, desorganização social e cultural; crescente destruição
da vegetação do mangue; degradação da riqueza biológica, dos ecossistemas cos-
teiros, principalmente estuários e lagunas; conflitos com a pesca capitalista; pesca
predatória realizada pela indústria pesqueira que muitas vezes opera em áreas
costeiras onde trabalham pescadores artesanais; ausência de políticas governa-
mentais e de incentivo; dificuldades enfrentadas no processo de comercialização
e baixos preços pagos pelos intermediários; entre tantos outros.
Tendo o conjunto dessas considerações como pano de fundo, o presente
texto tem o propósito de trazer elementos da realidade de vida e de trabalho
de povos e comunidades tradicionais, neste caso a partir da particularidade da
pesca artesanal, mostrando o papel fundamental que desempenha na produção
pesqueira brasileira, assim como a sua estreita relação e dependência com o
mercado e a pesca empresarial capitalista. De fato, o desenvolvimento capita-
lista, longe de excluir o pescador artesanal, combina a exploração da força de
trabalho de pescadores industriais e a subordinação do trabalho autônomo e
das técnicas que caracterizam a pesca artesanal ao longo da história do Brasil.
Para alcançar tal propósito, em um primeiro momento são apresentados alguns
aspectos sobre pesca e trabalho em geral, como produtor de valores de uso; na
sequência questões sobre pesca artesanal, população tradicional e território; em
seguida algumas reflexões sobre a pesca artesanal como produção mercantil
simples e sua subordinação ao capital; e, por último, considerações finais.

Pesca e trabalho como produtor de valores de uso

Já na pré-história, indicações arqueológicas e etnológicas mostram que


a pesca representou uma das atividades mais antigas desenvolvidas pelo ser
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 269

humano e fonte valiosa de alimento em períodos que antecederam a agricul-


tura. No fim desse período foram criados os primeiros anzóis para captura
de peixes, assim como as primeiras redes de pesca com o desenvolvimento
da tecelagem primitiva (DIEGUES, 1983)119. Restos de cerâmica, cascas de
ostras e mexilhões encontrados na Escandinávia comprovam a importância
dos moluscos na alimentação humana anterior ao Neolítico.
Da mesma maneira, no Brasil a pesca constituía a atividade essencial no
modo de vida de grupos pré-históricos. Inúmeros sambaquis, depósitos de con-
chas encontrados em sítios arqueológicos ao longo do seu litoral, comprovam
a importância da atividade da pesca e da coleta (DIEGUES, 1999). A pesca,
antes da chegada dos navegadores portugueses – favorecida pelas caracterís-
ticas geográficas, a existência de grandes rios e afluentes – era praticada pelos
indígenas com o uso de processos rudimentares e maneiras próprias para a
construção de canoas, jangadas e utensílios para a captura de peixes, tendo
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crustáceos, moluscos e pescados como parte importante de sua alimentação.


A partir do reconhecimento de que o trabalho constitui a condição eterna da
vida humana e de que seu início é determinado pela elaboração de instrumentos,
Engels (s/d) observa que os instrumentos mais antigos dos povos e selvagens
mais primitivos registrados pela história são de caça e de pesca. Conforme,
acima assinalado, a pesca é reconhecida por constituir a fonte de alimentos de
grupos humanos ancestrais, aspecto que articula, antes do desenvolvimento
do cultivo da terra e da criação de animais, a temporalidade de sociedades
primitivas com uma forma de organização socioeconômica e cultural peculiar.
Nesta perspectiva, a partir do reconhecimento de que é através do trabalho
que o ser social cria o seu mundo, parte-se da concepção de Marx (1994) que
considera o aspecto originário do trabalho no sentido estrito do termo, como cria-
dor de valores de uso, necessidade natural e eterna do intercâmbio material que
se estabelece com a natureza (tanto inorgânica, quanto orgânica) para garantir a
existência dos seres humanos, independente das formas de organização social.
A criação por parte do ser social do seu mundo e de suas formas de objetividade
resultam do trabalho e se desenvolvem à medida que a práxis social emerge
e se torna cada vez mais explícita e de forma evidente cada vez mais social.
Desse modo, o trabalho representa o primeiro ato histórico dos seres
humanos que, por meio de uma atividade consciente de utilização de proprie-
dades da natureza, produzem os elementos imprescindíveis para satisfazer suas
necessidades materiais de reprodução social. Nesse ato em que o ser humano
119 Desde os primórdios da humanidade, mar e oceanos foram objeto de simbologias, de antigas práticas culturais
ligadas à pesca, conhecimento e curiosidades. Desse modo, Diegues (2004a) mostra o desenvolvimento
de sociedades que como resultado de práticas culturais acumuladas durante vários milênios alcançaram
crescente conhecimento do mar e de seus fenômenos e construíram a importância do conceito de “mariti-
midade”, não ligado diretamente ao mundo oceânico, mas enquanto produção social e simbólica.
270

se confronta com a natureza e a transforma se transforma a si próprio e adquire


novas habilidades. Portanto, o caráter ontológico do trabalho funda o ser social
e retira o indivíduo de sua condição meramente biológica120. Por conseguinte,
no interior de toda e qualquer forma de organização social existe o trabalho
como uma forma específica, organizada e historicamente determinada.
Na análise do processo de trabalho em geral, trabalho como produtor
de valores de uso, Marx (1994) destaca que do ponto de vista econômico, a
terra, que também compreende a água, constitui o objeto universal do trabalho
humano e existe de forma independente da sua ação. Por sua vez, todas as
coisas fornecidas espontaneamente pela natureza, como grande fornecedor
de meios de subsistência em estado virgem, que o trabalho só separa de sua
conexão imediata como seu meio natural são objetos de trabalho humano
(exemplos, os peixes que se pescam, madeira derrubada de terras virgens)121.
Já após ter experimentado modificação efetuada pelo trabalho, o objeto de

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trabalho é matéria prima, enquanto o meio de trabalho serve para desenvolver
a atividade sobre esse objeto e constitui uma coisa ou conjunto de coisas (ins-
trumentos) que o ser humano incorpora entre si mesmo e o objeto de trabalho
para realizar a atividade sobre tal objeto. Assim, Marx (1994, p. 204) mostra
que “o que distingue as diferentes épocas econômicas não é o que se faz, mas
como, com que meios de trabalho se faz. Os meios de trabalho servem para
medir o desenvolvimento da força humana de trabalho além disso, indicam
as condições sociais em que se realiza o trabalho.”
Diegues (1983) lembra que, sob o ponto de vista econômico, as condi-
ções naturais externas de produção se dividem em duas grandes categorias.
A primeira é a riqueza natural como meios de subsistência (solo fértil, águas
piscosas), em que os recursos naturais são simplesmente objetos de trabalho,
de onde o ser humano retira os frutos, através da coleta, da caça ou da pesca.
A segunda categoria é a riqueza natural como meios de trabalho (rios nave-
gáveis, madeiras, metais, etc.). De qualquer forma, a produção de objetos de
trabalho que o ser humano retira da natureza exige a incorporação do trabalho
humano, dado que este é o único criador de riqueza.

120 Neste sentido, a partir do trabalho é possível investigar o complexo concreto de sociabilidade do ser humano
como forma de ser (LUKÁCS, 2013). Isto significa dizer que o trabalho é a categoria fundante do ser social e
que em germe contém todas as outras determinações, aspecto que determina sua prioridade ontológica na
análise de sua gênese e desenvolvimento. Nos termos do autor: “no trabalho estão contidas in nuce todas as
determinações que constituem a essência do novo no ser social” (p. 44). Por conseguinte, como já assinalado,
o trabalho é a categoria fundante, mediadora, essencialmente intermediária, vínculo material e objetivo entre
ser humano e natureza que por excelência assinala a passagem do ser meramente biológico ao ser social. A
linguagem, a sociabilidade e a divisão do trabalho são outras categorias decisivas para esclarecer o caráter
fundante do trabalho, cuja existência e operação requerem que o ser social já esteja plenamente constituído.
121 “Parece um paradoxo, por exemplo, considerar o peixe que ainda não foi pescado meio de produção da pesca.
Mas, até hoje não se inventou a arte de pescar em águas onde não haja peixes” (MARX, 1994, p. 205).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 271

Diferente do ponto de vista do processo capitalista de produção, que é


produtivo o trabalho que valoriza diretamente o capital, que cria mais-valor,
se considerado o processo de trabalho em geral, produtor de valores de uso,
é produtivo o trabalho que se realiza em um produto (MARX, 1985, p. 109).
Conclui-se que o processo de trabalho em seus elementos simples e abstratos:

é atividade dirigida com o fim de criar valores de uso, de apropriar os


elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do
intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna
da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida,
sendo antes comum a todas as suas formas socais (MARX, 1994, p. 208).

Pesca artesanal e território: reconhecimento como povo e


comunidade tradicional
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Como resultado do trabalho da Comissão Nacional de Desenvolvimento


Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, presidida pelo então Minis-
tério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, através do Decreto 6040 de
07 de fevereiro de 2007, foi instituída a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Esse Decreto, no
contexto da busca de reconhecimento e preservação por parte do Estado de outras
formas de organização social, define povos e comunidades tradicionais como:

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que


possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam ter-
ritórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,
social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inova-
ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).122

Para um grupo ser considerado tradicional inicialmente é preciso que


ele se declare como tal, a autoidentificação, e isso geralmente acontece como
resultado de ameaças vivenciadas. No Brasil são diferenciadas duas categorias
dessas comunidades: os povos indígenas (povos originários) e as popula-
ções tradicionais não indígenas. Grupos humanos atualmente considerados

122 A PNPCT defende a necessidade de ações intersetoriais, integradas, coordenadas, sistemáticas, na base
do reconhecimento da diversidade socioambiental e cultural das comunidades tradicionais, levando em
conta etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual, bem como a necessidade
de não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças entre as comunidades ou, ainda, instaurar ou
reforçar qualquer relação de desigualdade. No mesmo Decreto, no artigo 3º I, determina como objetivo
específico “garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios, e o acesso aos recursos naturais
que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica”.
272

populações tradicionais se identificam pela localidade que habitam, assim


como pelo trabalho ou hábito cultural. O extrativismo vegetal, a pesca, a
agricultura itinerante e a pecuária extensiva são as atividades econômicas
mais importantes desses grupos.
Oficialmente, um total de 27 comunidades tradicionais não indígenas
são reconhecidas e integram essa categoria, por exemplo, andirobeiras, baba-
çueiros, castanheiras, catingueiros, ciganos, cipozeiros, varjeiros, pantaneiros,
pescadores artesanais, piaçaveiros, pomeranos, povos de terreiro, quebra-
deiras de coco babaçu, quilombolas. Desse modo, diferentes termos fazem
referência a um tipo humano que habita determinada porção de território e que
se reconhece com os ofícios da agricultura, pesca e extrativismo de pequena
escala (CARDOSO, 2016). A produção e reprodução de seu modo de vida em
estreita relação com a natureza, seus recursos, conhecimento de seus ciclos
e produtos, a unidade familiar e/ou vizinhança, assim como a oralidade para

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a definição de sua cultura são as principais características desses povos123.
A partir desse reconhecimento e características, nos termos determina-
dos pela Convenção 129 da Organização Internacional do Trabalho – OIT
e dos Decretos no 6.040/2007 e 8.750/2016, pescadores e pescadoras arte-
sanais são reconhecidos como povos e comunidades tradicionais. A pesca
artesanal, que preserva a característica básica de ser a última atividade
de caça desenvolvida em escala ampliada, compreende sujeitos que nas
suas diferentes autoidentificações têm a pesca como prática econômica que
emprega diretamente os recursos da natureza como base de organização do
seu modo de produção e reprodução social.
O tipo de manancial onde o trabalho é realizado determina a área de
atuação do pescador artesanal, como por exemplo, proximidades da costa, rios,
lagos, baías e mangues. Diegues (1983) distingue três espaços pesqueiros no
Litoral Sudeste e Sul do país. O espaço litorâneo, protegido contra as intem-
péries do mar de fora, é explorado pelo pequeno pescador e está constituído
por lagunas, estuários, foz de rios, baías fechadas, enseadas e recifes. O espaço
pesqueiro costeiro, faixa entre a costa e o talude continental, se caracteriza
pelo contato entre o mar e a terra e exige um conhecimento considerável de
navegação. O terceiro é o espaço oceânico, que se inicia nas extremidades da
plataforma continental, onde a atividade pesqueira só é possível com grandes
embarcações que podem ficar até várias semanas no mar.

123 “As comunidades tradicionais ainda sobrevivem em função da formação de suas bases na organização
sociocultural. Elas se mantêm pela formação de una identidade pautada nos laços de solidariedade, alianças
e também de conflitos. Todo este complexo envolvendo as relações sociais, políticas, econômicas, religiosas
e culturais nos permite uma diversidade para se trabalhar o conceito, não de forma fragmentada, mas sim,
integrada, produzindo ‘lógicas diferenciadas’ envolvidas por um saber característico de cada local estudado.”
(SOUZA; BRANDÃO, 2012, p. 118).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 273

Os pescadores artesanais se autoidentificam de diversas maneiras,


fato que expressa nomeações e culturas litorâneas distintas: jangadeiro que
depende quase de forma inteira da pesca costeira, presente em todo o litoral
nordestino, do Ceará até o sul da Bahia; caiçara no litoral entre o Rio de
Janeiro e São Paulo, procedente da miscigenação entre o colonizador portu-
guês, indígena e negro; açoriano, no litoral de Santa Catarina e Rio Grande
do Sul. No caso dos dois últimos tipos de pescadores também desenvolvem
trabalhos agrícolas (DIEGUES, 1999)124. As regiões e espaços em que se
desenvolvem essas culturas influi nos equipamentos utilizados para pescar
que são diferentes segundo as espécies a serem capturadas interferindo, tam-
bém, no próprio processo e duração da jornada de trabalho (anzol, espinhel,
tarrafa, armadilha, rede etc.).
Inclusive, é importante ressaltar que no caso da pesca artesanal a medida
do tempo está relacionada a processos de trabalho condicionados pelos ciclos
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da natureza, determinando períodos com diferentes intensidades de trabalho.


Essa situação pode ser denominada “orientação do fazer”, em oposição ao
trabalho regulado pelo relógio, dado que não existe uma clara divisão entre
trabalho e vida, como no caso das sociedades industriais maduras, que passam
a administrar e disciplinar o tempo (THOMPSON, 1979).
Segundo Cardoso (2001), estudos da chamada Geografia Crítica, com
fundamento na perspectiva marxista, retrabalharam o conceito de terri-
tório que passou a ser definido com base no “uso que a sociedade faz de
uma determinada porção do globo, a partir de uma relação de apropriação,
qualificada pelo trabalho social” (p. 79). Desse modo, no caso da pesca
artesanal, a territorialidade não se limita a uma localidade física, mas tam-
bém é invisível, fluida como as águas. Nessa perspectiva, o autor assinala
que muitas vezes o pescador artesanal é representado com uma identidade
dupla: como trabalhador da pesca e identidade locacional. Esse fato faz
com que, no Brasil, no processo de privatização e invasão das águas e dos
territórios pesqueiros, a “luta pela garantia de território para a pesca arte-
sanal”, em outros termos, a “luta por território para além da terra firme”,
seja a principal bandeira de luta do Movimento de Pescadores e Pescadoras
Artesanais (MPP), criado em 2005, com apoio do Conselho da Pastoral da
Pesca e outras instituições125.

124 Entretanto, é importante ressaltar que no contexto de crescente empobrecimento das comunidades dos
pequenos produtores litorâneos artesanais, como resultado dos múltiplos fenômenos relacionados na
introdução deste texto, assiste-se a uma ameaça de completa desorganização dessas culturas.
125 Entre 1985 e 1988, pescadores e pescadoras artesanais, com o objetivo de lutar pelo atendimento de
seus interesses, realizaram a “Constituinte da Pesca”. Só a partir da constituição de 1988 as Colônias de
Pescadores (órgãos de classe) ganharam status de organização sindical independente, passando a sofrer
menos interferências do Estado.
274

O MPP, tendo como principal proposta a demarcação dos territórios de


pesca artesanal126, faz referência a um conjunto de fatores que constituem
um território tradicional de pesca, distinguindo tanto o ambiente de trabalho,
que pode ser o mar, o rio, o mangue, como também a terra enquanto espaço
de trabalho que integra a dinâmica de manifestações materiais e imateriais.
Assim, o território tradicional pesqueiro

é o território de uso coletivo, onde há um conjunto de regras e de condutas


vivenciadas com a coletividade para o uso dos recursos naturais e abrangem
os espaços terrestres, dos rios, lagos, lagoas e mar. O pescador e a pescadora
não vivem apenas na água, precisam da terra e da água, tendo nessa inter-
face o mangue e as matas ciliares, a floresta, importantes para a garantia do
trabalho tradicional, construção de instrumentos de trabalho, artesanato,
espiritualidade, mística e mitos (histórias, crenças, lendas) (MPP, 2012, p. 06).

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Desse modo, a complexidade da territorialidade dos povos pesqueiros
é determinada pelo fato de integrar diferentes ambientes: água, transição e
terra. O ambiente de pesca representa o lugar de trabalho para embarque,
desembarque, conserto de redes, comercialização do pescado, assim como
possível território de moradia. Porém, em muitos casos a pesca acontece
em locais distantes da cidade, enquanto outros elementos constitutivos do
trabalho (comércio) e da vida ocorram nela, incorporando, assim, valores
urbanos, mudanças na forma de agir e pensar e um certo alinhamento com
o imaginário urbano, o que favorece a descaracterização da comunidade e
facilita o processo de usurpação do território tradicional pelo capital (DIE-
GUES, 2004b)127. Consequentemente, é necessário desvendar o surgimento
de pescadores artesanais enquanto camada social

ligada em princípio ao meio rural, mas se urbanizando progressivamente.


Essa urbanização significou a separação das condições primitivas da pro-
dução – a terra, a agricultura – e o surgimento de um estrato social, o dos
pescadores artesanais portadores de uma profissão, de uma certa visão de
mundo ligada às coisas do mar (DIEGUES, 1983, p. 270).

126 Neste sentido, como resultado da luta das comunidades tradicionais pesqueiras pela efetivação de seus
direitos fundamentais, foi apresentado o Projeto de Lei n. 131/2020 que propõe a regulamentação dos
territórios dessas comunidades no Brasil, assegurando-lhes o direito de exercer a sua atividade de acordo
com os seus modos tradicionais de ser, criar e viver.
127 Sempre é oportuno lembrar que “Este modo da produção não deve ser considerado só segundo o aspecto
de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele já é antes uma maneira determinada de atividade
desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar a sua vida, um modo de vida determinado. Os
indivíduos são assim como manifestam a sua vida. O que eles são coincide, portanto com a sua produção,
tanto com o que produzem quanto também com o como produzem. Portanto, o que os indivíduos são
depende das condições materiais da sua produção.” (MARX; ENGELS, 1983, p. 187).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 275

O conhecimento tradicional “empírico e prático” produzido e transmitido


oralmente por pescadores tradicionais é a base de suas decisões e estratégias
de pesca, orientam e asseguram o sistema e a informação fundamental para
o manejo comunitário dos recursos pesqueiros locais, principalmente onde
raramente existem dados biológicos disponíveis (DIEGUES, 2004a). Desse
modo, tal conhecimento é entendido

como um conjunto de práticas cognitivas e culturais, habilidades práti-


cas e saber-fazer transmitidas oralmente nas comunidades de pescadores
artesanais com a função de assegurar a reprodução de seu modo de vida.
No caso das comunidades costeiras, ele é constituído por um conjunto de
conceitos e imagens produzidos e usados pelos pescadores artesanais em
sua relação com o meio ambiente aquático (marinho, lacustre, fluvial) e
com a própria sociedade (DIEGUES, 2004a, p. 32)128.
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O domínio do “saber-fazer” (manuseio de apetrecho de pesca), da “sabe-


doria” (quando e onde utilizá-lo) e do “conhecer” (sobre a natureza, marés,
correntes, luas, ventos, posição das estrelas, estações, peixes, crustáceos,
moluscos, artes, técnicas e instrumentos) representam a essência da pesca
artesanal relacionada à questão da tradição e constitui o cerne da própria pro-
fissão. Por conseguinte, tal domínio possibilita a subsistência e reprodução do
pescador e contribui com a identificação de pescadoras e pescadores artesanais
como grupo possuidor de uma profissão, cujo sentido de pertencimento se
concretiza com o fato de possuir a carteira profissional129. A apropriação do
conjunto desses domínios é adquirida com o tempo que possibilita aprender
e saber um pouco de tudo sobre o ofício: confecção de artefatos, forma de
pescar, beneficiamento e comercialização.
Outro aspecto que merece destaque é a observação realizada por Ramalho
(2008) de que de norte a sul pescadores de comunidades costeiras brasileiras
expressam sentimentos de “arte e liberdade”, enquanto elementos presentes
no seu trabalho. Tais elementos demarcam, engendram e alimentam especifi-
cidades socioculturais dos sujeitos que voltaram sua atividade produtiva para
a pesca. A ideia de trabalho, entendido como arte e liberdade, e a continuidade

128 Diegues (2004a) observa que as ciências sociais reconhecem que pescadores integram culturas e sociedades
diferenciadas como portadores de práticas de pesca distintas, em contraposição à tendência das ciências naturais
que enfatiza a diversidade biológica e padroniza as práticas e organizações sociais dos pescadores. O autor,
partindo desse reconhecimento, defende a necessidade de uma visão interdisciplinar, enquanto articulação de
várias formas de saberes que incorporam a ciência e o conhecimento de comunidades de pescadores artesanais.
129 É importante registrar que a pesca artesanal, como qualquer atividade extrativa, está submetida a restrições
ambientais na época do defeso. A Lei 19779, de 25 de novembro de 2003, dispõe sobre a concessão do
benefício de seguro de desemprego, durante o período de defeso, aos pescadores profissionais que exercem
a atividade pesqueira de forma artesanal.
276

de componentes oriundos do passado organizativo e de suas heranças históri-


cas, compõem o “saber-fazer” de alguns pescadores130. O trabalho associado
à liberdade se articula com a “arte da pesca” e a representação simbólica do
mundo natural que se aprende com os “mais velhos”, com o conhecimento e
a experiência adquiridos ao longo de anos e de saberes passados através de
gerações (DIEGUES, 1983; 2004b).
Entretanto, o aproveitamento ao máximo do conhecimento e da expe-
riência local acumulados pela tradição por parte de pescadores artesanais “não
devem ser considerados como um simples retorno a técnicas ancestrais” (DIE-
GUES, 2004d, p. 193-94). Neste sentido, os estudos destacam a necessidade
de desenvolver programas que incorporem a reorientação das infraestruturas
de pesca, como entrepostos de desembarque, sistemas integrados de produção
tendo como elementos centrais o artesanato, a maricultura e o beneficiamento
de produtos da pesca.

Editora CRV - Proibida a comercialização


Além disso, as comunidades tradicionais, apesar de sua importância, não
são as únicas responsáveis na tarefa da conservação e o fato de que podem ser
consideradas aliadas natas nessa tarefa não elimina a necessidade de afastar uma
“visão romântica”. Nas últimas décadas, ademais da existência de interesses
heterogêneos no interior da própria comunidade, processos de desorganização
social e cultural que resultam de inserção crescente destes trabalhadores nas
sociedades urbano-industriais afetam essas comunidades e gradativamente
deixam como consequências a perda de acesso aos recursos naturais, assim
como às suas tecnologias patrimoniais (DIEGUES, 2004a). Por conseguinte,

a produção dos pescadores no Brasil, a relação entre essas populações


humanas e seu meio-ambiente marinho e de águas interiores exigem um
conhecimento mais sistemático e aprofundado. Esse conhecimento é ainda
mais necessário no momento atual em que as comunidades de pescadores
artesanais estão sob severa ameaça por causa da especulação imobiliária e
da degradação ambiental, provocada por um modelo econômico que exclui
amplas camadas da população, sua cultura e suas formas de organização
(DIEGUES, 2004c, p. 128).

Nesta direção, outra questão importante a ser registrada é que, conforme


mostra Diegues (2004c), desde a Colônia até o Brasil contemporâneo, o estudo

130 O autor também assinala que cidades como Pernambuco e Rio de Janeiro contavam com um número
significativo de corporações, mas pelo fato de que a maioria da população urbana constituída por mestiços
e brancos pobres, entre os que se encontravam os pescadores, utilizava as mãos em suas profissões não
eram considerados “gente limpa ou honrada”. Diante disso, “operou-se construção ideológica, por parte
das elites frente aos trabalhadores artesãos, cujo uso das mãos (efetivada por profissões populares) e sua
condição de cor inferiorizava os homens das corporações diante dos aristocratas, dos cidadãos mãos limpas
e, por isso, refinados de espírito” (RAMALHO, 2008, p. 265).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 277

sobre os pescadores artesanais e a sua produção foi caracterizada por uma


visão algumas vezes “folclórica e idílica” que fazia referência à vida pacata,
indolente; outras à coragem e aos perigos da profissão no mar; e outras vezes
descreviam suas comunidades como organizações separadas dos grandes pro-
cessos políticos e econômicos, sem relação com os diversos ciclos econômicos
que marcaram a sociedade como um todo. Ainda em relação a essa questão,
em outro texto, o autor aborda em detalhe realidades e falácias que existem
sobre a pesca artesanal com o objetivo de esclarecer equívocos e mistificações
presentes na imagem corrente, tanto nos meios urbanos quanto nos órgãos
de administração pesqueira, que a consideram como um “setor marginal” ou
“peça de folclore” (DIEGUES, 2004d).131
Além dos aspectos relacionados, a questão da tradição ganha sua verda-
deira dimensão no contexto das diferentes formas de produção da pesca que
se encontram articuladas. Consequentemente, essa questão deve ser analisada
Editora CRV - Proibida a comercialização

dentro do cenário da pequena produção mercantil, da sua subordinação e


transformação como resultado do modo de produção capitalista, da entrada
de capital, da introdução de relações de trabalho capitalistas e da consequente
separação do produtor direto de seu objeto e meios de produção (DIEGUES,
2004b). Diante disto, é preciso avançar na análise de formas não capitalistas
– enquanto produção capitalista de formas não capitalistas de produção – e res-
gatar o princípio da contradição para compreender “as formas não-capitalistas
de exploração do trabalho enquanto mediações determinadas pelo processo
de reprodução ampliada do capital, processo de acumulação” (MARTINS,
1993, p. 109, grifos do autor)132.

Pesca artesanal sob o capital

No conjunto da produção pesqueira do país, como ilustram diferentes


aspectos anteriormente assinalados, o papel relevante que a pesca artesanal
desempenhou e desempenha demonstra a enorme persistência dessa forma
de produção. Outros aspectos serão aqui apresentados com o objetivo de
mostrar sua vinculação ao mercado e à pesca capitalista. Diante disso, é pos-
sível afirmar que a pequena produção mercantil da pesca artesanal, longe de
estar em processo de “extinção”, ser “marginal” ou “folclórica”, é uma forma

131 Ver: Diegues (2004d, p. 181-194).


132 Martins observa a existência de análises sobre as contradições do desenvolvimento capitalista reduzidas à
contradição entre capital e trabalho assalariado, agrupando em outro modo de produção classificado como
pré-capitalista ou, até mesmo feudal, as formas sociais que não se ajustam a esse modelo. “Desse modo,
a forma passa a ser o seu próprio conteúdo, que aparece nas ilusões mecanicistas e evolucionistas, como
‘restos’ de modos de produção pré-capitalistas que serão varridos pelo desenvolvimento do capital que os
subordina” (1993, p. 109).
278

articulada e subordinada à pesca capitalista. Parafraseando Marx, “a produção


capitalista […] só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de
produção, exaurindo as fontes originais de toda riqueza: a terra (as águas) e
o trabalhador” (1994, p. 579).
Inclusive, a pesca artesanal não pode, evidentemente, ser considerada
a-histórica ou insuscetível a modificações. Ao contrário, a realidade com-
prova que a incorporação de mudanças tecnológicas por parte de comunidades
de pescadores artesanais (redes de náilon, motores etc.) não implicam uma
transformação significativa das relações de produção. Nessa direção, Cardoso
(2016) analisa transformações, permanência, força e resistência da pequena
produção mercantil no cenário de processos de expansão da exploração e
expropriação que resulta da pesca industrial. Entre os tipos de pescarias com
registros ao longo do século XX, que permanecem ainda hoje, o autor faz
referência ao pescador de fisga, de armadilha, de tarrafa, ao espia.133

Editora CRV - Proibida a comercialização


A atividade pesqueira no Brasil134, segundo ressalta Diegues (1983)135,
até a década de 1930, era representada por pescadores espalhados pelas
inúmeras comunidades ao longo do litoral que combinavam agricultura e
pesca. Trata-se da “pequena produção mercantil simples dos pescadores-
-lavradores”, mas atualmente está praticamente extinta. Neste caso, a terra
representa o meio de produção mais importante do pescador-lavrador, assim,
o trabalho agrícola constitui a sua base de subsistência e organização social
e a pesca – realizada, sobretudo em rios, lagunas, baías fechadas ou recifes
– é uma atividade ocasional do pequeno agricultor, restrita a períodos de

133 O espia, presente no sudeste e sul, é o pescador que observa a movimentação dos cardumes e anuncia
sua aproximação, desencadeando o cerco a partir da praia e do lançamento da rede. O que domina a arte
do arremesso da tarrafa, instrumento para ser operado de maneira solitária, é encontrado tanto na pesca
costeira quanto na pesca continental em várias localidades do país. O pescador de pirarucu a partir da fisga,
manejada da pequena embarcação que circula nos lagos e canais amazônicos, continua a capturar o imenso
peixe. Os jangadeiros de pesca de linha ou de rede, possuidores de embarcação característica formada por
uma balsa e a vela, estão presentes ainda hoje nas zonas litorâneas rurais e urbanas no nordeste do país. As
armadilhas, onde galhadas são dispostas, criando um ambiente semelhante a um recife artificial que atrai o
pescado, ainda são empregadas no nordeste nas lagunas costeiras e nas águas rasas marinhas e estuarinas.
134 O estudo do Diegues (1983) mostra que no litoral do país tribos indígenas ou pequenos agrupamentos
ribeirinhos em locais distantes do Amazonas, se bem atualmente não é expressiva e quase acabou, praticam
a pesca de autossubsistência, articulada à caça e à pequena lavoura também de subsistência. Trata-se
da produção de valores de uso que tem como unidade de trabalho a própria tribo ou a unidade familiar. A
propriedade dos apetrechos de pesca é comunitária, o espaço de captura são rios e enseadas, raramente
utilizam embarcações, o pescado é consumido de imediato, têm a tradição como fonte de conhecimento e
a capacidade de predação e escala de produção é mínima. O eventual excedente produzido é reduzido e
trocado dentro de padrões redistributivos sem mediação de moeda.
135 As sínteses das características das formas de produção da pesca apresentadas neste item (pequena
produção mercantil dos pescadores-lavradores, pequena produção mercantil dos pescadores artesanais,
produção dos armadores da pesca, produção da pesca empresarial-capitalista) têm como base Diegues
(1983, p. 148-172; 2004c, p. 128-139).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 279

safra. Nesta forma existe uma reduzida divisão de trabalho estabelecida por
critérios de sexo e idade. Os homens, de forma eventual, integram as com-
panhas de pesca, grupos pequenos de pescadores que compartilham entre si
o pescado capturado. A produção pesqueira tem como principal objetivo o
consumo familiar, os instrumentos de produção são de propriedade familiar,
os instrumentos de pesca, incluindo a rede, são feitos com base no trabalho
familiar. As embarcações também utilizadas como meio de transporte são de
remo ou vela. Outras características são: a limitada capacidade de predação;
a salga/secagem como forma de conservação do pescado; a tradição constitui
a fonte de conhecimentos na pesca; o mar é percebido como parte da terra;
a produção de excedente é casual; e o pequeno comerciante agrícola é o
intermediário na comercialização.
No caso da “pequena produção mercantil dos pescadores artesanais”
aparecem elementos que possibilitam falar em “pequena produção mercantil
Editora CRV - Proibida a comercialização

ampliada”, visto que a pesca deixa de ser uma atividade complementar para
se tornar a principal fonte de produção de bens destinados à venda e de renda,
desse modo, o mercado, se bem periférico, é importante. Com isso, neste está-
gio, surge o pescador artesanal como estrato social que passa a viver exclusiva
ou quase exclusivamente de sua profissão.136 Os instrumentos de produção
são de propriedade individual/familiar,137 a unidade de trabalho é constituída
por grupos de pescadores independentes que participam com sistema de par-
tes sobre o valor da captura. Dentre as principais características podem ser
destacadas: a exploração de ambientes mais amplos; a média capacidade
de predação e de escala de produção; a exigência de conhecimentos mais
específicos, mas que mantêm a tradição como elemento central; o mar passa
a ser percebido como entidade própria; e, neste caso, a organização social
é caracterizada pelo compadrio e pelas Colônias de Pescadores. A atividade
é realizada com embarcações de pequeno porte, porém incorpora importan-
tes avanços tecnológicos como motor, redes de náilon, novos processos de
conservação e transporte do pescado. No caso da captura de moluscos, ramo
específico da pesca artesanal denominado catação, a atividade é realizada sem
embarcação. No processo de comercialização do pescado ganham lugar as

136 Trata-se de deslindar “as condições históricas para o surgimento de uma categoria social: a dos pescadores
artesanais, ligada em princípio ao meio rural, mas se urbanizando progressivamente. Essa urbanização
significou a separação das condições primitivas da produção – a terra, a agricultura – e o surgimento de
um estrato social, o dos pescadores artesanais portadores de uma profissão, de uma certa visão de mundo
ligada às coisas do mar.” (DIEGUES, 1983, p. 270).
137 É importante registrar a diferenciação de dois tipos de propriedade privada na análise desenvolvida por Martins
(1991): “terra de negócio” e “terra de trabalho”. Nessa análise, o autor especifica que, ainda que propriedade
privada, não se pode confundir a propriedade capitalista com a propriedade familiar. A propriedade familiar
é propriedade direta de instrumentos de trabalho por parte de quem trabalha, seus resultados sociais são
completamente distintos, é propriedade do trabalhador, não é propriedade capitalista.
280

firmas de compra especializadas e o financiamento da produção, em detrimento


de atravessadores individuais.

O pescador artesanal passa a viver e a reproduzir suas condições de exis-


tência na pesca, voltada fundamentalmente para o comércio. O mercado
é o objetivo de sua atividade, ainda que o balaio ou cesto de peixe, reli-
giosamente separado antes da partilha, constitua uma das bases de sua
sobrevivência e de sua família.
No entanto, o excedente reduzido e irregular, a baixa capacidade de acu-
mulação, a dependência total vis-à-vis ao intermediário, a propriedade dos
meios de produção, o domínio de um saber pescar baseado na experiência
(e que constitui sua profissão), são elementos que caracterizam ainda a
pequena produção mercantil (DIEGUES, 1983, p. 155).

Por sua vez, a produção pesqueira capitalista, a partir da década de

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1960, como resultado do grande desenvolvimento das forças produtivas,
cresceu de forma significativa138. Entre final dessa década e meados de
1970, a pesca e as comunidades de pescadores começaram a ser enxerga-
das no contexto mais abrangente da sociedade nacional, da penetração de
relações capitalistas no setor, das disputas entre a pesca desenvolvida nos
moldes da pequena produção mercantil e a capitalista (DIEGUES, 1999;
BORGES, 2009).
A concentração dos meios de produção se processou de forma mais
intensa quando 94% das empresas beneficiadas por incentivos fiscais se esta-
beleceram na Região Sudeste e Sul do país. Neste contexto, a intervenção do
Estado, através do Decreto-lei no 221/1967, da Superintendência do Desenvol-
vimento da Pesca (SUDEPE)139, foi de fundamental importância no processo
de acumulação empresarial-capitalista, enquanto os investimentos recebidos
pelo setor artesanal foram mínimos140, largando a pequena pesca à própria
sorte. O objetivo desse decreto era claro:

138 “A introdução de relações sociais de produção capitalista na pesca se dá com a separação efetiva do pes-
cador e os meios de produção e pela introdução da máquina a bordo. Efetivamente, nos grandes arrastões
modernos, a rede é lançada e recolhida mecanicamente, sendo a operação comandada a partir de um
painel de controle no convés. Da mesma forma, a posição da rede durante o arrasto pode ser corrigida a
partir do painel de controle, sem necessitar da intervenção dos homens do convés. [...] Dessa maneira, a
estrutura altamente complexa de um barco pesqueiro moderno faz com que ele se aproxime de qualquer
unidade industrial em outros setores, onde as tarefas se tornam cada vez mais especializadas e impostas
pelo ritmo das máquinas.” (DIEGUES, 1983, p 73).
139 No período de 1962 a 1989, a pesca foi administrada pela Superintendência do Desenvolvimento da Pesca
(SUDEPE), vinculada ao Ministério de Agricultura.
140 Em 1973, a SUDEPE criou o Plano Pescart – Plano de Desenvolvimento da Pesca Artesanal – baseado na
“modernização” tecnológica, estratégia que, na realidade, beneficiava principalmente os grandes interesses
empresariais. Ver: Diegues (2004b, p. 98-99).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 281

atribuir à pequena pesca a função de um bolsão de força de trabalho barata


para a frota empresarial-capitalista que ao mesmo tempo se apropriara do
pescado do setor mais dinâmico da pequena pesca (a produção dos pes-
cadores artesanais motorizados), através do domínio da comercialização
(DIEGUES, 1983, p. 147)141.

A pesca capitalista abarca a “produção dos armadores de pesca” e alcança


seu grau mais avançado através da “produção empresarial-capitalista”142. O
armador autônomo é proprietário de mais de uma embarcação e não participa
das atividades de captura, à frente das quais coloca um mestre com poder de
decisão limitado, dado que passa a ter importância o setor de captura em terra
pelo sistema de rádio. Neste caso, há considerável divisão de trabalho, com o
aparecimento de funções distintas: mestres, motoristas, cozinheiros e homens
do convés. Os instrumentos de produção são aparelhos de pesca mecanizados
e móveis. Para a maioria das funções, a remuneração da força de trabalho se
Editora CRV - Proibida a comercialização

faz pelo sistema de partes, porém com assalariamento em algumas funções.


As principais características desse subtipo são: a produção total é convertida
em mercadoria; o distanciamento crescente entre a vida do mar e a vida da
terra passa a ser a percepção do espaço marítimo; o conhecimento em relação
à pesca é adquirido através de treinamento formal para desenvolver deter-
minadas funções; e a conservação do pescado é realizada a bordo. Ademais,
existe uma grande capacidade de predação e escala de produção; a plataforma
continental é o espaço de captura; a comercialização é realizada por empresas
especializadas no comércio de pescado; e as formas de organização social são
as Colônias de Pescadores e o Sindicato.
A produção empresarial-capitalista tem a pesca como atividade exclu-
siva, desse modo, está totalmente voltada para a produção de mercadorias e
baseada na extração de mais-valor dos trabalhadores do mar, “que não mais
possuem o conhecer e savoir-faire que caracterizava o pescador artesanal,

141 Conforme assinalado em vários momentos através de diferentes observações, as diretrizes políticas e econô-
micas para o setor pesqueiro brasileiro, historicamente, têm fomentado e privilegiado o agronegócio da pesca
oceânica e da aquicultura, provocando sobre-exploração dos estoques e danos ambientais. Ademais, essas
políticas desconsideram as reais necessidades dos pescadores artesanais e não reconhecem as atividades
da cadeia produtiva da pesca, realizadas principalmente por mulheres que trabalham a terra no beneficiamento
do pescado e na confecção de apetrechos de pesca, na maioria das vezes, no regime da economia familiar.
142 O desenvolvimento das forças produtivas, conforme já assinalado pelo próprio Marx no século XIX, possui
um potencial destrutivo que é inerente ao desenvolvimento do modo de produção capitalista. Neste particular,
Mészáros (2002, p. 988) assinala que Marx abordou o problema da ecologia dentro das dimensões de seu
real significado socioeconômico, compreendendo a necessidade de que para o controle efetivo das forças
da natureza seria preciso uma reestruturação radical do modo dominante de intercâmbio e controle humano
da natureza. Modo este caracterizado pelo movimento cego e autodestrutivo que deriva de sua condição
alienada e reificada. Tais potenciais destrutivos da acumulação do capital estão vinculados, evidentemente,
a interesses econômicos e políticos que provocam dramáticas consequências humanas e sociais.
282

possuidor de um métier” (DIEGUES, 1983, p. 156). A empresa é proprie-


tária de várias embarcações organizadas em diferentes áreas integradas
verticalmente com setores próprios de captura, industrialização e comer-
cialização. Outras características são: os espaços de captura são os limites
da plataforma continental e o oceano; o resfriamento ou congelamento para
conservação do pescado abordo; a organização de um treinamento formal
generalizado; a ruptura entre o espaço terrestre e o espaço marítimo; a
considerável capacidade de predação e escala de produção; e o sindicato
como a forma de organização social.
Voltando ao caso do pescador artesanal, enquanto trabalhador autô-
nomo, possui o processo de trabalho sob seu comando e controle, direta-
mente condicionado pelos ciclos da natureza, mas aparentemente à margem
do domínio do capital. Trata-se de uma subordinação indireta do pescador
artesanal ao capital, visto que o trabalho se materializa na produção de pes-

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cados, havendo transferência de excedentes através da mediação do capital
comercial. Em relação à comercialização da produção, Diegues (1983) faz
referência ao estabelecimento de postos de compra de empresas capitalistas
em áreas de produção artesanal, dando lugar a uma complementariedade
entre as duas formas de produção caracterizada pela subordinação da pesca
artesanal à capitalista, com a vantagem que esta última não precisa se
responsabilizar pela reprodução dos pequenos produtores e suas famílias.
De qualquer forma, este fato não significa necessariamente desorganizar
essa forma de produção, dado que, conforme anteriormente assinalado,
a desorganização da pesca artesanal é provocada pelo próprio avanço do
capital em outros setores da produção capitalista (indústrias poluentes,
imobiliárias, expansão turística).
De fato, fica evidente, que um dos maiores entraves e que influencia
nos ganhos reduzidos da maioria dos pescadores artesanais é a rede de inter-
mediação no processo de comercialização e distribuição, que inclui desde o
atravessador individual (geralmente alguém da comunidade que compra e
vende pescado), até os representantes de empresas que compram e financiam a
produção. A dependência em relação aos atravessadores é reforçada diante da
falta de equipamentos de refrigeração para conservação do pescado, com isso,
por se tratar de um produto altamente perecível, são obrigados a comercializar
a produção de forma imediata, mesmo que a um preço extremamente baixo.
Nesse contexto, conforme acima assinalado, é através do capital comercial
que se extrai o excedente do produtor direto. A “exploração se torna evidente
na consumação da venda dos produtos do trabalho e na contrapartida daquilo
cuja compra essa venda possibilita” (MARTINS, 2002, p. 82). Portanto, sob
o capital, interessa o trabalho excedente, independentemente de ser ou não
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 283

extraído sob a forma de mais-valor. Trata-se de formas de expropriação e


exploração do trabalhador diferente das que se efetivam através da proleta-
rização da força de trabalho.
Nesta perspectiva, são interessantes as formas que Marx (1985) denomina
de “transição” ou “secundárias”143, formas de trabalho que se reproduzem
dentro do modo de produção capitalista, como é o caso do capital usurário
e do capital comercial que “sugam parasitariamente” os produtores diretos,
sem subsunção formal do trabalho ao capital. Nestes casos, é característico
que o capital não interfere no processo de produção que se desenvolve à
margem dele, nem extrai mais-valor do produtor pela coação direta. O capi-
tal comercial, por exemplo, reúne produtos para a venda através de enco-
mendas a produtores diretos, podendo o capitalista adiantar matéria prima e
até dinheiro, apesar do produtor imediato continuar a ter domínio sobre seu
próprio trabalho e permanecer como vendedor de mercadorias, tal como é o
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caso do pescador artesanal.


Neste sentido, é oportuno lembrar que Oliveira (1988), analisando o
desenvolvimento da economia brasileira pós-1930, faz referência à “combi-
nação constante de desigualdades” e afirma que:

a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no


arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compati-
bilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no
arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana
e em que a reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de
acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio
novo (OLIVEIRA, 1988, p. 36, grifos nossos).

Considerações finais

A partir dos aspectos gerais sobre a pesca artesanal apresentados neste


texto, concorda-se com Diegues (2004c) quando afirma que “pesca artesa-
nal” e “pesca empresarial-capitalista” não se explicam apenas pelos aspec-
tos tecnológicos e de mercado, mas principalmente por formas diversas de
organização da produção: “‘pesca em sociedade’ ou ‘companha’, própria

143 A partir da análise minuciosa dos métodos desenvolvidos para a criação do mais-valor relativo, Marx ilustra
como o capital progressivamente coloniza a esfera da produção e cria para si um modo de produção que
lhe é específico – o modo de produção capitalista –, capaz de produzir sempre mais, imperativo desta forma
de sociedade onde vigora o valor. Neste particular, Marx (1985) distingue subsunção formal e subsunção
real do trabalho no capital, posto que esta última é resultado do modo de produção específico criado pelo
capital. Ver: Marx (1985, p. 87-108).
284

das relações de produção existentes entre os pequenos pescadores (‘cama-


radas’ ou ‘companheiros’); e o dos ‘embarcados’, tripulantes de barcos per-
tencentes a ‘armadores’ ou ‘empresas de pesca’” (p. 141). Entretanto, essas
formas deixam evidentes as articulações entre a produção mercantil e a capi-
talista, respectivamente.
Mostrou-se que, na maioria dos casos, apesar de que a produção é desen-
volvida por unidades familiares em regime de produção mercantil simples, a
apropriação do produto final e a comercialização são realizadas por empresas
capitalistas. Além disso, é necessário levar em conta processos de “desposses-
são” dos meios de produção do pequeno pescador (instrumentos de trabalho,
conhecimento e saber-fazer), as modalidades de excedente e sua apropriação
pelos não trabalhadores.
Afirma-se que a noção de povos e comunidades tradicionais exige uma
compreensão do passado e da possibilidade ainda hoje de reprodução social

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em aliança com o uso da natureza, mas também, e fundamentalmente, da
existência simultânea dos sujeitos que integram esses grupos com os tempos
presentes. Além disso, parafraseando a epígrafe que abre o presente texto:
“Olhando o passado da pesca extrativa brasileira, permaneceu aquilo que era
considerado primitivo, mostrando-se menos predatório do que era considerado
o futuro – a indústria pesqueira” (CARDOSO, 2016, p. 43).
De qualquer forma, diante o risco de percepções românticas e heroicas
em relação a estas populações e considerando suas particularidades sob o capi-
tal, cabe lembrar que como resultado do desenvolvimento contínuo das forças
produtivas e do papel do capital os obstáculos que impedem seu desenvolvi-
mento são revolucionados e demolidos constantemente. Consequentemente,

da mesma maneira que a produção baseada no capital cria, por um lado, a


indústria universal […], cria também, por outro lado, um sistema da explo-
ração universal das qualidades naturais e humana […] do qual a própria
ciência aparece como portadora tão perfeita quanto todas as qualidades
físicas e espirituais […] Dessa forma, é só o capital que cria a sociedade
burguesa e a apropriação universal da natureza, bem como da própria
conexão social pelos membros da sociedade. […] Só então a natureza
torna-se puro objeto para o ser humano, pura coisa da utilidade; deixa de
ser reconhecida como poder em si; e o próprio conhecimento teórico de
suas leis autônomas aparece unicamente como ardil para submetê-la às
necessidades humanas, seja como objeto de consumo, seja como meio de
produção. […]. O capital é destrutivo disso tudo e revoluciona constan-
temente, derruba todas as barreiras que impedem o desenvolvimento das
forças produtivas (MARX, 2011, p. 333-334).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 285

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O primeiro Censo e Pesquisa Nacional sobre População em Situação de


Rua publicada em 2009 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Com-
bate à Fome (MDS)144, identificou 31.922 pessoas nas ruas, calçadas, praças,
cemitérios, rodovias, parques, viadutos, terrenos baldios, postos de gasolina,
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carros abandonados, praias, barcos, túneis, depósitos e prédios abandonados,


alambrados de comércio, becos, lixões, ferros-velhos, como também pessoas
pernoitando em instituições – albergues, abrigos, casas de passagem e de
apoio, igrejas, dentre outros lugares.
Em 2016, o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) apon-
tou a estimativa de 221.869 pessoas em situação de rua, a partir de dados de
1.924 municípios disponibilizados no Censo do Sistema Único de Assistência
Social (Censo Suas), sendo 83% dos municípios de grande porte com mais de
100 mil habitantes145. Já o Relatório de Informações Sociais da Secretaria de
Avaliação e Gestão da Informação do Ministério da Cidadania (Sagi/MC)146
registra 175.599 pessoas em situação de rua constantes do Cadastro Único

144 O Censo e Pesquisa Nacional para a População em Situação de Rua foi realizado pelo MDS entre outubro
de 2007 e janeiro de 2008 em 71 municípios brasileiros, com o objetivo de identificar a estimativa de pes-
soas adultas em situação de rua no Brasil, bem como realizar a caracterização social, a fim de subsidiar
a implementação e/ou o redimensionamento de políticas públicas voltadas para esse grupo populacional.
Entre as capitais, não foram pesquisadas São Paulo, Belo Horizonte e Recife, pois esses municípios já
tinham realizado pesquisas semelhantes em anos anteriores, nem Porto Alegre, porque realizou um estudo
simultaneamente ao contratado pelo MDS. O estudo contemplou as pessoas com ou acima de 18 anos
completos e que aderiram à pesquisa de forma voluntária.
145 O Censo Suas é um questionário eletrônico preenchido pelo órgão gestor dos estados e municípios
anualmente sob a supervisão da Secretaria Especial de Desenvolvimento Social do Ministério da Cida-
dania, com a finalidade de coletar informações sobre os serviços, programas e projetos no âmbito da
assistência social prestados à população usuária, bem como acerca dos conselhos de participação e
controle social. Veja mais sobre essa temática em: http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/censosuas. Acesso
em: 10 out. 2020.
146 A Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (Sagi) tem como missão identificar as melhores estra-
tégias para aperfeiçoar as políticas públicas sob responsabilidade do Ministério da Cidadania. Para tanto,
realiza estudos e pesquisas, desenvolve conceitos e ferramentas que auxiliam na gestão da informação
e coordena o processo de formação dos agentes públicos e sociais que atuam na operação dos diversos
programas do referido Ministério.
290

(Cadúnico), sendo que 148.800 são beneficiárias dos Programas de Trans-


ferência de Renda (PBF), segundo dados de 9 de dezembro de 2022. Outro
estudo, do IPEA147, revelou uma estimativa de 281.472 pessoas em situação
de rua em face dos impactos sanitários, econômicos e sociais gerados pela
pandemia da covid-19, entre 2019 e 2022 no Brasil.
Estudos realizados em diversas cidades brasileiras mostram também o
aumento da população em situação de rua nos últimos anos. Na maior cidade
da América Latina, São Paulo, pesquisadores/as da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) realizaram um estudo com dados do Observatório
Brasileiro de Políticas Públicas para População em Situação de Rua mostrando
que são 42.240 pessoas que têm as ruas como espaço de moradia e sustento. A
Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal, em parcerias com
outros órgãos, realizou uma pesquisa em fevereiro de 2022, que identificou
2.938 pessoas em situação de rua das 33 regiões administrativas. Na cidade

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de Belém, estima-se a presença de cerca de 2,4 mil pessoas em situação de
rua, dados da Fundação Papa João XXIII (Funpapa).
No Ceará, nunca ocorreu uma pesquisa oficial que identificasse o
número e o perfil da população adulta em situação de rua, até o momento.
No entanto, o instrumento Censo e Mapa de Risco Pessoal e Social148 (Cema-
ris), que tem o objetivo de notificar situações de risco pessoal e social como
abuso sexual, violência doméstica, agressões e, entre outros, também coletar
dados sobre a população em situação de rua no estado. Em 2017, o Cemaris
identificou 2.535 pessoas em situação de rua, em 66 municípios cearenses,
de um total de 184, sendo 1.055 em Fortaleza, 326 em Maracanaú e 168
em Caucaia.
No Cemaris, publicado em 2019, 59 municípios registraram 1.738 pes-
soas em situação de rua em 2018, sendo os maiores índices em Fortaleza,
Maracanaú e Caucaia. Na versão do relatório de 2020, o Ceará teve 2.298
notificações de pessoas em situação de rua em 68 municípios, destacando
também as cidades de Fortaleza, Maracanaú e Caucaia. No ano de 2021,
o Cemaris identificou 65 municípios com incidência de 1.627 pessoas em
situação de rua, principalmente Fortaleza, Maracanaú e Caucaia.
O Relatório de Informações Sociais (Sagi/MC) aponta 6.598 pessoas
em situação de rua, inscritas no Cadúnico, no Ceará, sendo que 5.924 são
beneficiárias do Programa Auxílio Brasil, segundo dados de 09 de dezembro

147 O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada é uma fundação pública federal vinculada ao Ministério da
Economia criada em 1964, com o nome de Epea. Desde 1967, passou a ser denominado de IPEA.
148 O Censo e o Mapa de Riscos Sociais do estado do Ceará realizado pela Secretaria de Proteção Social,
Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos tem como objetivo coletar informação sobre os riscos
sociais ocorridos e notificados pelos municípios para apoiar técnicos e gestores estadual e municipais na
gestão e qualificação dos serviços voltados à garantia de proteção social.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 291

de 2022. Fortaleza possui o maior número de indivíduos em situação de rua


na base cadastral, com 4.737 pessoas. Em seguida, Caucaia e Maracanaú com
353 e 323 pessoas, respectivamente.
As três cidades – campo da pesquisa empírica da tese de doutorado – pos-
suem relações fronteiriças, ligadas por transportes rodoviários e ferroviários,
além de outras alternativas de locomoção e uma rede de serviços públicos em
diversas áreas, inclusive o Serviço Especializado para População em Situação
de Rua ofertado pelo Centro Pop. Por conta disso, identificamos que há uma
grande mobilidade da população em situação de rua no território mencionado.
Nesse sentido, a definição das cidades elencadas como campo de refle-
xão sobre o tema se dá também pela importância de cada uma, do ponto
de vista econômico, político, social e histórico. São cidades extremamente
urbanizadas, com grande adensamento populacional e alarmantes contradições
sociais inerentes ao modelo capitalista de sociedade. Nesse registro, destaca-
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-se a urbanização absolutamente submetida à expansão capitalista, sendo o


desemprego e o trabalho informal marcas estruturantes. Assim, partimos do
pressuposto de que o fenômeno população em situação de rua é resultante das
desigualdades sociais gestadas pelo modelo de crescimento urbano voltado
para a expansão do capital, que tem como marcas fundamentais: o desemprego
e o trabalho informal.
O capítulo mergulha nas manifestações e nas condições de trabalho da
população em situação de rua a partir de um percurso teórico-metodológico
à luz de uma análise bibliográfica, documental e uma pesquisa empírica com
os/as usuários/as que utilizam o Serviço Especializado para a População em
Situação de Rua nas três cidades citadas149.
Para tanto, o capítulo está dividido em três seções, além desta introdução
e das considerações finais. A primeira seção traz uma discussão da inserção
do Ceará no cenário do capitalismo brasileiro para atender as necessidades do
mercado internacional. A segunda seção trata do ápice da industrialização e
da implantação da agenda neoliberal no Ceará. Na terceira seção, analisamos
o campo e o percurso da pesquisa em questão, com as condições de trabalho
da população em situação de rua nos espaços urbanos de Fortaleza, Maraca-
naú e Caucaia. As considerações finais elencam as principais sínteses sobre
as tendências concernentes às manifestações e às condições de trabalho da
população em situação de rua no Ceará.

149 Essa pesquisa foi realizada para o doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
UERJ, sob orientação da Professora Doutora Valéria Forti (PRADO, 2020).
292

A inserção do Ceará no capitalismo dependente brasileiro: a seca,


a pobreza e o fenômeno população em situação de rua

No Ceará, o processo de industrialização se deu tardiamente, comparado


aos outros estados brasileiros, sendo o prelúdio de sua expressão econômica
os anos da Guerra de Secessão norte-americana (1861-1865)150, como um dos
principais produtores e exportadores de algodão, matéria-prima necessária às
indústrias têxteis dos países da Europa e dos Estados Unidos (EUA).
Em pleno século XIX, surgiram as primeiras indústrias têxteis no interior
do estado do Ceará, e, em seguida, na capital, Fortaleza. A cultura do algodão
dinamizou a economia cearense, beneficiando enormemente o comércio, a
agricultura e o crescimento urbano em diversas cidades do estado. A instala-
ção do Porto do Mucuripe em Fortaleza em 1940 foi imprescindível para o
escoamento do algodão para o mercado internacional, fato este, que tornou a

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cidade o centro político, econômico e cultural do Ceará.
O dinamismo da capital fez emergir novos atores sociais, com poder eco-
nômico e político, ligados ao setor comercial, e aos profissionais liberais, nas
áreas de Medicina, Direito, Engenharia, Jornalismo e outras, que estudaram
em diversas partes do Brasil e do exterior (FARIAS, 2015). A rápida expansão
populacional se deu também pela presença de estrangeiros/as, em especial
espanhóis, italianos, ingleses, franceses e portugueses na capital cearense.
Vale ressaltar a presença de militares americanos durante a Segunda Guerra
Mundial, entre os anos de 1939 e 1945.
Mas, lá no século XIX, o fim da Guerra de Secessão - a redução da
demanda de importações de algodão pelos EUA - afetou enormemente a
economia cearense. Somam-se a isso os longos períodos de seca que afeta-
ram a economia no Ceará. Aliás, a seca e a escassez de água historicamente
trazem impactos econômicos, sociais, ambientais, políticos e culturais para
todo o Nordeste. Além da ausência de políticas públicas que possibilitem a
convivência das famílias sertanejas com o clima do semiárido.
Desde o ano de 1877, as famílias sertanejas já fugiam do cenário aviltante
da seca a pé, de trem ou nos caminhões denominados de “pau de arara” de diver-
sas cidades do interior para Fortaleza. Era uma viagem de muitos dias enfren-
tando o sol, a sede, a fome, o calor, o medo, as doenças e a morte de pessoas e
de animais. Essas famílias famintas e doentes ocupavam as praças, os prédios
abandonados, praças ao arredores das residências e dos comércios, praticando

150 A Guerra de Secessão ou Guerra Civil Americana foi uma disputa entre o Norte e o Sul dos EUA. Essa
guerra se deu pela divergência entre a contratação de trabalhadores/as livres ou a continuidade do uso
da força de trabalho escrava. O sul-americano era totalmente dependente do trabalho escravo, já o Norte
recorria predominantemente ao trabalho livre assalariado nas propriedades.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 293

a mendicância e pequenos delitos, aflorando, assim, as primeiras expressões


da questão social151 em Fortaleza. As famílias sertanejas também construíram
moradias improvisadas, surgindo, assim, as primeiras favelas em Fortaleza nos
anos de 1930 e 1950. Nesse contexto, acreditamos que também surge o fenô-
meno população em situação de rua como uma das expressões da migração de
indivíduos e famílias advindas de diversas cidades do interior do estado para
Fortaleza em busca de trabalho e de sustento, conforme Rios descreve:

Chegando a Fortaleza, os flagelados se arranchavam nas sombras das


árvores e nas calçadas de algumas casas. […]. Os que não tinham parentes
em Fortaleza chegavam sem rumo, saíam pedindo esmolas no comércio ou
nas casas mais ricas. Muitos procuravam as redações jornalísticas. Tudo
indica que os retirantes entendiam a imprensa como um poder público mais
acessível ao pobre, pois, ao chegarem à capital, era aí que costumavam
registrar seus pedidos (2006, p. 15-16).
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À época, o presidente Getúlio Vargas adotou medidas para minimizar os


impactos sociais e os desgastes políticos pela sua inércia frente aos impactos
gerados pelas secas prolongadas no Nordeste. Diante disso, realizou repasses
de recursos públicos e de alimentos para os estados atingidos pela seca, bem
como adotou uma política de controle dos preços dos alimentos, evitando
assim, o aumento abusivo e a sua escassez no mercado.
No Ceará, outras ações foram implantadas com o objetivo de escamotear a
pobreza, dentre elas: o incentivo à migração de cearenses para outras regiões do
país; a criação dos campos de concentração em 1932; e as frentes de trabalho.
O incentivo à migração de cearenses para outros estados constituía uma
estratégia de reduzir o número de pessoas nas ruas, a prática da mendicância
e ainda garantir um contingente de força de trabalho barata para as obras
existentes em todo o Brasil.
Os campos de concentração eram grandes galpões construídos pelo
governo do estado nas cidades mais desenvolvidas do Ceará, principalmente
em Fortaleza. Os campos de concentração eram alojamentos para migran-
tes, evitando que chegassem às cidades, principalmente na capital, driblando
assim, as aglomerações, a presença de mendicantes nas ruas e os saques nos

151 Para nossa pesquisa, Marilda Iamamoto realiza uma profícua discussão sobre questão social, que tem sido
de grande relevância no seio da categoria dos/as assistentes sociais e com quem temos inteira concordância.
A autora compreende a questão social como indissociável do conjunto das expressões das desigualdades
sociais da sociedade capitalista madura e tem raízes profundas nas contradições entre o trabalho coletivo
e a apropriação privada das condições e fruto do trabalho. A questão social eclodiu na segunda metade
do século XIX como um fator perturbador à ordem burguesa, e exigindo uma intervenção do Estado e da
burguesia. Sendo assim, a questão social reflete as expressões do processo de formação e desenvolvimento
da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como
classe por parte do empresariado e do Estado (PINTO, 2020).
294

comércios. Ao todo, foram instalados sete campos de concentração no Ceará,


nas proximidades das estações de trem para facilitar a abordagem dos/as
migrantes e levando-os/as para esses espaços, em que:

Os homens tinham os cabelos raspados a zero. Os campos ainda tinham


banheiros, capela e casebres divididos em pavilhões para homens solteiros,
viúvas e famílias. Havia uma espécie de cadeia para os retirantes desor-
deiros e oficinas (de olaria, carpintaria, alfaiataria etc.), para não deixar os
concentrados inativos, o que era, aliás, uma preocupação das autoridades
(FARIAS apud NÓBREGA, 2017, s.p.).

Os/as migrantes eram confinados/as em galpões em péssimas condições


de higiene e alimentação, com autorização apenas para sair para trabalhar nas
obras públicas em troca de hospedagem, material de higiene e alimentação.
Para Neves (2001), em apenas um campo de concentração, na cidade de Ipu,

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no Ceará, ocorreram mais de mil mortes por conta das epidemias e das pés-
simas condições de higiene. São inexistentes os registros oficiais acerca do
número de pessoas alojadas nos campos de concentração, contudo há uma
estimativa de que somente em janeiro de 1933, cerca 90 mil pessoas passaram
por quatros deles (NEVES, 2001). Os campos de concentração eram chamados
também de Currais do Governo pelos/as imigrantes e pela sociedade, pois
eram cercados por arames ou cercas. Há registros de revoltas e tentativas de
fugas por parte dos/as imigrantes.
Em 1933, sob muita pressão de parte de intelectuais e dos meios de
comunicação, que denunciavam o tratamento desumano e o genocídio de
migrantes pelos governos nas três instâncias de poder, os campos de concen-
tração acabaram sendo extintos, no contexto da Segunda Guerra Mundial,
para evitar comparações com os campos nazistas e amenizar os desgastes da
classe política cearense no cenário nacional.
Já nas frentes de trabalho, os governos utilizaram a força de trabalho
dos/as sertanejos/as nas obras públicas, como açudes, estradas e ferrovias em
troca de alimentação ou salários baixos, além de mantê-los/as ocupados/as.
As frentes de trabalho garantiam a acumulação dos lucros pelas empreiteiras
às custas da superexploração da força de trabalho de sertanejos/as.
O ápice da inserção do Ceará no cenário capitalista nacional e interna-
cional deu-se tardiamente, apenas a partir da implantação do I Polo Industrial
em Maracanaú, no governo do coronel Virgílio de Moraes Fernandes Távora
(1963-1966), do partido União Democrática Nacional (UDN), no contexto
da ditadura civil-militar. Este governador investiu na modernização do Porto
do Mucuripe, em Fortaleza, para receber navios de grande porte e criou a
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 295

Companhia Docas do Ceará, responsável pela sua administração. Instalou


a primeira Siderúrgica, o Banco do Estado do Ceará (BEC)152 e a linha de
transmissão de energia fornecida pela hidrelétrica de Paulo Afonso.
Nos anos de 1970 a 1987, ainda sob a ditadura civil-militar no Brasil,
criou-se um ambiente favorável aos políticos locais e ligados às oligarquias
cearenses lideradas por grupos de militares, denominado Ciclo dos Coronéis,
que já se arrastava desde os anos de 1960. Esse período foi marcado pelo
mandonismo, a troca de favores, o centralismo político e a apropriação do
Estado para os interesses de famílias com grande poder econômico e político.
Sobre o coronelismo, Leal afirma que:

Sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público,


progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes
locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, com-
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preender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece


a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis
no interior do Brasil (LEAL, 1978, p. 23).

A elite empresarial cearense não tinha uma organização e uma hegemonia


política que pudessem se contrapor ao domínio dos coronéis, portanto, eram
coniventes com as práticas extremamente conservadoras. Os governos dos
coronéis assumiram o projeto de modernizar e acelerar a industrialização no
Ceará com forte apoio da ditadura civil-militar de 1964, mantendo as práticas
do clientelismo, do paternalismo, do fisiologismo, do autoritarismo, da corrup-
ção e da repressão dos movimentos sociais que questionavam suas práticas.
No retorno ao governo, Virgílio Távora (1979 e 1982) ampliou o Distrito
Industrial de Maracanaú em áreas estratégicas e de interesse do grande capital,
em especial nos segmentos têxtil, metalúrgico e mecânica. Investiu no sistema
de abastecimento de água e criou a Companhia Cearense de Mineração. Esse
período vivenciou a decadência consumada da produção algodoeira, com
fortes impactos para o aumento do desemprego e da pobreza no Ceará. Em
face disso, este governador desenvolveu ações de incentivo ao turismo, apro-
veitando o extenso litoral e destinou recursos para a construção de rodovias
em diversas cidades do Ceará.
O último governador do Ciclo dos Coronéis, Luiz de Gonzaga Fon-
seca Mota (1983-1987), foi fruto de um acordo entre a ala dos coronéis, que
queriam permanecer no poder, e os empresários, que já pressionavam por

152 Banco vendido ao grupo Bradesco no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005. A venda
já estava prevista desde o governo de Fernando Henrique, como parte do acordo de renegociação das
dívidas do Ceará.
296

mudanças na política cearense. Enfrentou no seu governo quatro anos de seca


e colocou em prática um programa de redução da pobreza, investindo nos
serviços de saúde, educação, cultura, nutrição e habitação.
O jovem empresário Tasso Ribeiro Jereissati, do Partido Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB) venceu as eleições de 1986, expondo a
derrota dos coronéis a uma nova fase da política no Ceará, como trataremos
na seção seguinte.

O ápice da industrialização nos “Governos das Mudanças”:


agenda neoliberal no Ceará

A industrialização no Ceará atingiu o seu ápice nos governos do empresá-


rio Tasso Jereissati (1987-1991, 1995-1999 e 1999-2002) e do advogado Ciro
Gomes (1991-1994), os chamados “Governos das Mudanças”, com o apoio

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de empresários locais organizados no Centro Industrial do Ceará (CIC)153.
Os “Governos das Mudanças” se articularam em plena redemocratiza-
ção do país, sob o discurso de um novo Ceará, do fim do atraso e da pobreza
herdados do Ciclo dos Coronéis. Os principais representantes da hegemonia
burguesa no Ceará, os governadores Tasso Jereissati e Ciro Gomes, ambos - na
época, integrantes do Partido Social da Democracia Brasileira/PSDB – assu-
miram a condução do Estado sob as diretrizes da eficiência, da austeridade
fiscal, da ética, da transparência na gestão pública, no combate ao clientelismo
e ao apadrinhamento político, que marcavam o coronelismo.

O advento ao poder, em meados dos anos oitenta, do século passado,


de um grupo de jovens empresários. Uma série de reformas institucio-
nais foi realizada, principalmente administrativa, patrimonial, fiscal
e financeira, com repercussões na economia cearense e nas finanças
públicas do Estado. Desta forma, o presente estudo analisa as mudanças
verificadas na condução do poder público no Ceará, nas décadas de
1980/90, com especial atenção à evolução das finanças públicas. Conclui
que houve endividamento, mas também compensação de desequilíbrios
no orçamento do Estado, amortização de dívidas e realização de gran-
des projetos de infraestrutura, porém com reduzido impacto social. O
Ceará reduziu os gastos com ações públicas sob a responsabilidade do

153 O CIC era uma instância de organização política de uma elite empresarial formado por empresários jovens,
na faixa de 30 a 40 anos, com formação superior e cursos de pós-graduação advindos dos centros nacio-
nais e internacionais, quase todos estando à frente dos negócios das famílias, que se expandiram com os
incentivos do planejamento estatal, mantendo boas articulações políticas com empresários do eixo Rio-São
Paulo. O empresário Tasso Jereissati foi um dos primeiros presidentes do CIC, justamente nessa fase de
organização político-ideológica do grupo (QUEIROZ, 2008).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 297

Estado e permanece como um dos piores bolsões de pobreza do Nordeste


(SOUSA, 2007, p. 602).

O governador Tasso Jereissati modernizou também o Parque Industrial de


Maracanaú e implantou uma série de indústrias em outras cidades do Ceará,
principalmente nas áreas têxtil e de calçados. Deu apoio ao agronegócio e
alocou investimentos na área de turismo, do comércio e da área de serviços.
Por isso, evidenciamos que era

[...] necessário que o governo dote o Estado de infraestrutura para permitir


a ‘livre’ circulação e a expansão continuada do capital. Neste sentido,
implantam-se três eixos principais para as ações: a interiorização da indús-
tria, pela implantação de novas indústrias e modernização do atual parque
industrial; modernização da agricultura, pelo agronegócio e turismo, com
a instalação de equipamentos necessários para a inserção das áreas litorâ-
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neas na rota nacional e consequente expansão do comércio e dos serviços


(ARAÚJO, 2007, p. 103).

O empresário Tasso Jereissati assumiu a agenda neoliberal por meio da


austeridade fiscal e redução dos gastos públicos, implantando um programa
de privatizações, eliminação de cargos públicos, adoção de cortes de gratifi-
cações e congelamento dos salários de servidores/as públicos/as, além de um
plano de aumento da arrecadação de impostos.
O projeto de mudanças viabilizou a concessão de terrenos, a implan-
tação de política de isenção de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias
e Serviços (ICMS), repasse de recursos públicos e realizações de obras de
infraestrutura necessárias às indústrias e ao comércio. A mão de obra abun-
dante e barata no Ceará contribuiu significativamente para o deslocamento
de empresas das regiões Sul e Sudeste. Para Queiroz,

Essas modificações de caráter político-burocrático, realizadas no âmbito


local, e com ressonâncias na experiência política mais geral, que cor-
responde às administrações do período neoliberal no Brasil, foram
construídas como um projeto coletivo de toda a sociedade cearense.
Isto ocorre, sobretudo, ao se afirmar a modernização econômica, nos
termos de uma inserção no mercado mundial, como a única forma de
se superar a pobreza desta região, e também de que essa modernização
implicava erradicar os tradicionais padrões de intervenção política que
aí predominavam. Tudo isto significa que as necessidades do capital são
apresentadas e legitimadas por esses governos neoliberais como uma
demanda e uma conquista de toda a sociedade, sobretudo a modernização
298

da política, que foi requerida para impulsionar o desenvolvimento capi-


talista local […] (2008, p. 59).

A localização geográfica do Ceará em relação aos Estados Unidos e aos


países da Europa pela via marítima e a existência de dois portos de grande
porte, contribuiu para esta unidade federativa se sobressair na concorrência
por mercados internacionais. Entretanto, o Ceará não despontou como uma
grande referência industrial para o Brasil e no mundo nos anos de 1980/1990.
Tornando-se um grande mercado terciário na área do comércio, mercado
imobiliário e de serviços, principalmente em torno do turismo.
O paulista Ciro Gomes assumiu o governo do estado do Ceará entre 1991
e 1994, quando realizou obras de infraestrutura, notadamente: a construção
do Canal do Trabalhador, que ampliou o fornecimento de água; recuperação
e ampliação de estradas; e, investimento em saneamento básico. Deu conti-

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nuidade ao projeto de modernização administrativa do Estado por meio da
privatização de empresas públicas, favorecendo a lucratividade das grandes
empresas locais, nacionais e multinacionais.
A crise econômica influenciou o processo eleitoral de 2002, além do
desgaste político do PSDB à frente do governo por diversas gestões do Ceará.
Mesmo assim, o PSDB conseguiu eleger o seu candidato, o médico Lúcio
Gonçalo de Alcântara (2003-2007), que iniciou o seu mandato com a ascensão
de Luís Inácio Lula da Silva à presidência do país. Todavia, o seu governo
não se constituiu como uma oposição ao Governo Federal.
O governador Lúcio Alcântara deu continuidade à política de ajuste fis-
cal dos seus antecessores, alocou recursos públicos em infraestrutura para
beneficiar a instalação de empresas, a exemplo da Companhia Siderúrgica do
Pecém, uma sociedade sul-coreana e da Vale. Investiu massivamente na área
de turismo, fazendo com que o Ceará se tornasse um dos principais destinos
turísticos do Brasil.
A vitória de Cid Ferreira Gomes (2007-2015), do Partido Socialista Bra-
sileiro (PSB) representou também investimento em obras de infraestrutura,
incentivos à industrialização e ao turismo e uma política de isenção fiscal. Foi
responsável pela construção do Cinturão das Águas que ampliou a capaci-
dade do Canal do Trabalhador, favorecendo o abastecimento de água e ainda
inaugurou um novo porto, na cidade do Pecém, em 2002.
Em 2014, o governador Camilo Santana (PT) realizou também investi-
mentos em infraestrutura, como recuperação de estradas, obras de transporte
de veículos sobre Trilhos e o implantou o Projeto de Escola em Tempo Inte-
gral. Aproveitou a posição geográfica do Ceará em relação aos continentes
da Europa, África e América do Norte, investindo em empreendimentos nos
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 299

setores aéreos e marítimos, facilitando exportações comerciais e atividades


ligadas ao turismo. No seu governo, Camilo Santana sancionou o decreto Nº
31.571, de 04 de setembro de 2014, que instituiu a Política Estadual para a
População em Situação de Rua e criou o Comitê Estadual de Políticas para
a População em Situação de Rua, pautado do no Decreto Federal nº 7.053,
de 23 de dezembro de 2009, que estabeleceu que a Política Nacional para a
População em Situação de Rua em âmbito nacional.
No estado do Ceará existem 9 Centros Pop nas cidades de Fortaleza (2),
Caucaia, Crato, Juazeiro do Norte, Maracanaú, Pacajus, Pacatuba e Sobral.
Destes, a pesquisa de campo elegeu, como dito antes, três cidades – Fortaleza,
Caucaia e Maracanaú –, como apresentaremos abaixo.

O campo e o percurso da pesquisa


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A pesquisa de campo foi realizada com 28 usuários/as acima de 18 anos


que utilizam o Serviço Especializado para População em Situação de Rua,
ofertado nos Centros Pops de Fortaleza, Caucaia e Maracanaú. Trouxemos
para este texto apenas os relatos que tratam das manifestações e das condições
de trabalho. Os/as participantes aderiram à pesquisa de forma voluntária, após
a leitura e o preenchimento do Termo de Livre Consentimento (TCL). As
entrevistas foram aplicadas a partir de um roteiro semiestruturado comum a
todos os/as participantes, em uma sala garantindo-se o sigilo profissional e a
anuência dos/as responsáveis institucionais.

a) Fortaleza

A capital do Ceará, Fortaleza, é conhecida pelas belas praias, locali-


zada no litoral atlântico, com 34 quilômetros de extensão litorânea, numa
totalidade de 313.140 km² de área, com população estimada de 2.627.482
indivíduos em 2019 (IBGE). É a cidade mais populosa do Ceará e a quinta
do Brasil. Entretanto, Fortaleza é marcada pelas contradições sociais que
estão estampadas entre os belíssimos cenários de suas praias e arranha-céus,
hotéis e moradias de luxo. Por outro lado, abriga bairros com serviços extre-
mamente precarizados.
O processo de urbanização e o crescimento econômico não garantiram
condições de vida adequadas à maioria da população que migrou do campo
para a cidade. Vive-se uma política de urbanização que empurra a classe tra-
balhadora para áreas distantes do centro urbano, em moradias com baixo ou
sem acesso aos serviços básicos, como educação, saúde, saneamento básico,
assistência social, esporte, lazer e segurança pública.
300

A ocupação da faixa litorânea de forma irregular conta com liberações,


por parte do poder público, para a construção de prédios em áreas de dunas,
de mangues e de proteção ambiental. Além da demolição de construções
antigas e casarões para a construção de prédios a fim de atender a especulação
imobiliária, destruindo a memória coletiva sobre nossa História. A aliança
do poder público e do capital não vislumbra a possibilidade de uma agenda
programática para pensar a cidade voltada à satisfação das necessidades
humanas em detrimento dos interesses do grande capital. Para Carlos, Hoko
e Alvarez:

Do ponto de vista do capital, o capitalismo organiza o espaço no qual são


regulados, através do controle do Estado, os fluxos e todos os tipos de
matéria-prima e de mão de obra, a divisão social e espacial do trabalho, a
estrutura da rede de trocas, a densidade da circulação de mercadorias e da
concentração de pessoas. A metrópole, desse ponto de vista, é, portanto,

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o espaço de acumulação, produto e condição geral da produção, além de
instrumento político ligado ao Estado, o que transforma as condições gerais
necessárias ao desenvolvimento do capital a fim de superar as contradições
emergentes ao seio do processo de reprodução ampliada e controlar sua
expansão, já que domina a reprodução social. Nesse sentido, considera-se
que a produção do espaço é também a reprodução das relações de produção
(2018, p. 49).

Fortaleza, Cidade do Sol, com suas belezas cantadas em verso e prosa, é


uma cidade repleta de contradições sociais, com uma urbanização pensada para
atender prioritariamente os interesses econômicos, negando condições de vida
justa e igualitária para a maioria da população. Nesse cenário, é cada vez mais
presente a existência de homens e mulheres que têm as ruas como espaços de
moradia e sustento, como os dados do II Censo Municipal da População de
Rua que identificou 2.653 pessoas em situação de rua na cidade, vivenciando
violações de direitos, como desemprego, fome, calor, frio, chuva, violência
física, psicológica e moral, preconceito, bem como inúmeras barreiras no
acesso às políticas públicas.

b) Maracanaú

A origem da palavra “Maracanaú” vem da língua tupi, devido à grande


quantidade de aves maracanã154 que tomava água nas lagoas do município.
Maracanaú faz parte da RMF, distante somente 20 quilômetros de Fortaleza,

154 Maracanã é uma pequena arara nas cores azul e verde, a qual se tornou símbolo da cidade, mesmo com a
sua redução gradativa na atualidade, que enche de beleza mesmo diante da poluição gerada pelas indústrias.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 301

com a terceira maior população do Ceará, com 209.057 habitantes em 2010


e uma estimativa populacional de 224.804 até 2017, dados do IBGE (2017),
numa área de 111,33 km².
A partir da implantação do Distrito Industrial, Maracanaú tornou-se uma
cidade eminentemente urbana (99,3%), sendo que apenas 1.422 habitantes
(0,7%) vivem no meio rural, segundo o relatório Perfil Básico do Município
de Maracanaú (IPECE, 2010). O mesmo documento aponta ainda que 25.558
pessoas estão empregadas no setor de indústria e de transformação, enquanto
15.945 pessoas estão no setor de comércio e serviços, com as demais áreas
somando 8.833 empregados formais.
A grande transformação de Maracanaú ocorreu nos anos de 1970, com
a implantação do Distrito Industrial, fato que contribuiu decisivamente
para o seu processo de urbanização de forma acelerada e desordenada.
A industrialização acelerada influenciou enormemente a urbanização de
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Maracanaú, subordinada à acumulação de capital por parte de grandes


empresas instaladas no município atraídas por doação de terrenos pelos
diversos governos, financiamento de recursos públicos e exploração da
força de trabalho abundante e barata.
Por conta da carência de infraestrutura, precária oferta de água, débil
energia elétrica para o uso industrial, reduzida pavimentação e limitado mer-
cado consumidor, a consolidação do Distrito Industrial aconteceu de modo
retardado. O Distrito Industrial se consolidou nos anos de 1980, com uma
política mais atrativa de isenção fiscal e doação de terrenos públicos, além
da oferta de mão de obra abundante e barata. Uma política mais ostensiva de
industrialização acarretou a transferência ou instalação de filiais concentradas
na região Sudeste, sobretudo do estado de São Paulo.
Maracanaú possui o segundo maior PIB do Ceará, atingindo R$
8.084.736.000,00, sendo 50% advindos das indústrias (IPECE/2019),155 ficando
apenas atrás de Fortaleza. A arrecadação é proveniente também do setor de
serviços e da administração pública. Com a implantação do Distrito Indus-
trial, Maracanaú tornou-se uma cidade eminentemente urbana (99,3%), sendo
que apenas 1.422 habitantes (0,7%) vivem no meio rural, segundo o relatório
Perfil Básico do Município de Maracanaú (IPECE, 2010).156 Este documento
aponta ainda que 25.558 pessoas estão empregadas no setor de indústria e de
transformação, enquanto 15.945 pessoas estão na área de comércio e serviços.

155 Neste estudo, o Ipece considerou a análise do PIB dos municípios cearenses nos anos de 2002, 2010, 2016
e 2017. Ainda considerou que o ano de 2017 foi também de retração para a indústria geral cearense, com
queda de 2,84% no valor adicionado total na comparação com o ano anterior.
156 Segundo o Ipece, a fonte dos dados é a Secretaria da Fazenda.
302

O governo de César Cals inaugurou a Central de Abastecimento do


Ceará S/A (Ceasa) em Maracanaú, em 1972, com o objetivo de centralizar
a distribuição e venda de hortifrutigranjeiros no Ceará por meio do Sistema
Nacional de Centrais de Abastecimento, órgão do Governo Federal. A insta-
lação desse equipamento contribuiu significativamente para a circulação de
pessoas advindas de diversas cidades e outros estados do Ceará e para uma
movimentação de grandes negócios.
A localização do Ceasa, próxima às rodovias que ligam o Ceará às diver-
sas regiões do país, é um fato que favorece enormemente para a circulação
de transportes e pessoas em Maracanaú, bem como a realização de grandes
negócios com hortigranjeiros de 21 estados brasileiros, 595 municípios e
cinco países (Espanha, Holanda, Argentina, Chile e China). A unidade ainda
é responsável pelo abastecimento dos 184 municípios cearenses, além de
estados como Rio Grande do Norte, Piauí e Paraíba.

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Maracanaú não participou da Pesquisa Nacional para a População em
Situação de Rua, portanto não temos dados oficiais acerca do quantitativo e
da caracterização da população em situação de rua dessa cidade. Tal situação
é produto de uma suposta (in)visibilidade construída pela sociedade em rela-
ção a essa população. O campo da nossa pesquisa mostrou os lugares com a
maior presença de pessoas em situação de rua, sendo eles: Ceasa, praças da
cidades, casas e prédios abandonados na cidade.

c) Caucaia

A cidade entre mar, sertão e serra, Caucaia, faz parte da RMF, distando
apenas 16 quilômetros da capital, com cerca de 1.227,9 km2 e com uma popu-
lação estimada em 325.441 habitantes (IBGE, 2010), com uma estimativa de
361.400 pessoas até 2019. É a segunda maior cidade em termos de contingente
populacional, ficando atrás apenas da capital cearense. Vale ressaltar que é
uma das cidades mais importantes do Ceará, com o terceiro maior PIB, com
R$ 5.435.899,00; atrás de Fortaleza e Maracanaú. A arrecadação é procedente,
principalmente, dos empreendimentos e investimentos turísticos em toda a
sua orla litorânea.
Os primeiros habitantes são originários das tribos indígenas Tapeba,
Potiguar, Tremembé, Cariri e Anacés. Dados do IBGE apontam que Caucaia
é a segunda cidade com a maior presença de população indígena do Ceará,
com destaque para a etnia Tapeba, que existe somente nessa cidade, em torno
de 10.000 indivíduos, totalizando quase 400 mil povos originários, travando
disputas contra o mercado imobiliário e empresarial do setor hoteleiro.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 303

Caucaia é conhecida por suas belas praias e pela oferta de uma enorme
gama de hotéis, pousadas, resorts, spas e uma rede de empreendimentos
na cidade. Limita-se ao norte com o Oceano Atlântico. O turismo é um
dos principais responsáveis pela expansão urbana a partir da instalação
de empreendimentos para atender turistas nacionais e estrangeiros, o que
acirrou a disputa pelo direito à terra pela população indígena contra a
especulação imobiliária.
Caucaia é a expressão da exploração das praias e do mar para fins exclu-
sivamente de acumulação de capital, mostrando visivelmente diversas contra-
dições sociais forjadas na relação destrutiva com a natureza e desrespeitosa
com o povo originário da cidade, visto que “O capitalismo e a racionalidade
do planejamento social abrangente são radicalmente incompatíveis” (MÉSZÁ-
ROS, 2011, p. 58). O processo de crescimento e urbanização se deu pautado
na exploração desmedida de seus recursos naturais, principalmente em torno
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das ocupações próximas às praias, dunas e lagoas.


Na lógica do capital, o turismo é transformado em uma mercadoria des-
tinada para uma minoria da sociedade, sob a lógica da geração de lucros. É
impossível vislumbrar, por parte do capital, uma relação com o meio ambiente
comprometida com a qualidade de vida dos/as moradores/as e a preservação
do meio ambiente. Ao contrário, o mercado e o Estado violam leis ambientais
e desapropriam populações locais, levando-as para áreas distantes, dizimando
seus costumes e culturas.
A degradação do meio ambiente não tem limites para o capital. O
impacto ambiental é resultante das construções de hotéis, restaurantes,
moradias irregulares e especulação imobiliária nas proximidades das praias,
com destruição dos mangues e das dunas para construção de estradas. Todo
esse processo mira a ampliação da acumulação de capital e, em contraste,
“[...] as cidades litorâneas [...] exigem uma atenção devido às consequências
socioambientais decorrentes da velocidade do processo de urbanização”
(MARICATO, 2013a, p. 25).
Caucaia também amarga números recordes de violência, sendo a terceira
cidade mais violenta do estado, ficando atrás apenas de Fortaleza e Maracanaú.
Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea)157,
Caucaia aparece com 96,6 homicídios a cada 100 mil habitantes, atingindo a
27ª posição na lista das cidades mais violentas do Brasil. Somente no mês de
abril de 2020, 49 pessoas foram vítimas de crimes letais por arma de fogo,
conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do Ceará.

157 Esse estudo é um desdobramento do Atlas da Violência, tendo considerado municípios com taxa de homi-
cídios por 100 mil habitantes no ano de 2017. Em todo o Brasil, existiam 310 municípios brasileiros com
mais de 100 mil habitantes em 2017.
304

Caucaia também não participou da Pesquisa Nacional sobre a População


em Situação de Rua, portanto inexiste um quantitativo oficial sobre esse con-
tingente populacional. É visível a presença de homens e mulheres que têm as
ruas como espaço de moradia e sustento, apesar da suposta (in)visibilidade
por parte da sociedade e do poder público.

Manifestações e condições de trabalho da população em situação


de rua

Diante do cenário exposto, resta traçar algumas linhas sobre as mani-


festações e as formas de trabalho da população em situação de rua nos
espaços urbanos dessas três cidades cearenses. No processo da pesquisa,
mergulhamos nos relatos durante as entrevistas realizadas, que desvelam
formas, características, manifestações, sociabilidades, percursos e estra-

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tégias construídos pelos/as participantes da pesquisa nas e pelas ruas em
busca de acesso ao trabalho e à renda nos espaços urbanos. Nessa direção,
optamos pela exposição das análises dos dados coletados por meio de
tópicos, por razões metodológicas.

A) A população em situação de rua trabalha? “Nós trabalhamos!”

Flanelinhas e vigias de carros


Ao circularmos pelas ruas, identificamos a presença de flanelinhas ou
guardadores/as de carros vigiando os veículos ou limpando os para-brisas dos
automóveis nos semáforos nas cidades de Fortaleza, Maracanaú e Caucaia. A
profissão de flanelinha foi criada pela Lei Federal nº 6.242/1975 e regulamen-
tada pelo Decreto nº 79.797/1977 no Brasil, todavia são quase inexistentes
legislações municipais que regulamentem essa atividade.
Esses/as trabalhadores/as fazem parte do cenário urbano como uma das
estratégias de acesso à renda nas três cidades do campo da pesquisa. Dos/
as 28 entrevistados/as na pesquisa de campo158, sete responderam que são
flanelinhas há muito tempo, sendo a principal ocupação para acesso à renda.

Fico em frente ao Banco do Brasil e ao Banco Santander. É o Centro de


Caucaia; é bom para você trabalhar. Fico limpando os para-brisas de
carros e vendendo água aqui na Caucaia. Eu acordo de manhã, vou no
mercado, escovo meus dentes e lavo o rosto. Venho às 8 horas tomar café
aqui [Centro Pop] e saio para trabalhar (ENTREVISTADO 1, 2019).

158 Por questões ético-metodológicas, nos trechos dos depoimentos, apresentados seguidamente, os entrevis-
tados não serão identificados por seus nomes, mas somente pela numeração da entrevista.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 305

Fico na Praça do Mercado ou na Praça da Matriz. Fico durante o dia e


a noite com o meu marido. Ficamos somente aqui em Caucaia. Vigiamos
as motos. Ficamos de flanelinha olhando as motos. Eu e meu marido
ficamos à tarde porque pela manhã já tem outra pessoa. Eu e meu marido
trabalhamos juntos. O dia que mais ganhamos foi quando uma vez eu e
ele ficamos de 10 horas até as 18 horas: ganhamos R$ 80,00 (ENTRE-
VISTADA 2, 2020).

Os/as entrevistados/as relataram que acabam construindo uma identi-


dade com o local, constroem redes de solidariedade e de confiança entre os/
as moradores/as, os/as comerciantes e os/as transeuntes nas áreas, conforme
a entrevista 3 (2019):

E só fico na Gentilândia [praça]; há 28 anos só nessa praça. Sou flanelinha


desde criança. Todo mundo me conhece aqui. As amizades das pessoas.
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Aqui ninguém rouba […]. Me sinto bem aqui. Para mim, aqui é igual a
uma família. Eu também lavo carro. Eu sou muito respeitador.

Esses/as trabalhadores/as não possuem renda e jornada de trabalho


fixas. Vejamos:

Eu trabalho como vigia de carro no Centro Fashion a partir das 5 horas


da tarde. Trabalho todos os dias: terça, quarta, quinta e sexta; sábado
é o dia que eu ganho mais; é o dia de maior movimento. A partir das 17
horas até as 21 horas e 30 minutos. Por dia, eu ganho até no máximo R$
80,00 (ENTREVISTA 4, 2019).

A renda é destinada basicamente para a alimentação, principalmente nos


fins de semana. Consoante à entrevista 5 (2019): “Eu só ganho R$ 50,00 por
semana; é para comer no fim de semana”. Essa estratégia, possivelmente,
decorre do fato das instituições que prestam serviços ou ações para a popu-
lação em situação de rua estarem fechadas nos fins de semana.
Os/as flanelinhas citam que a rotina de trabalho se dá em torno da movi-
mentação nas vias públicas. Em Maracanaú e Caucaia, os/as flanelinhas ficam
nas proximidades de bancos, restaurantes, mercados, shoppings, hospitais
e centros comerciais devido ao maior número de aglomeração de carros e
pessoas. Além desses locais, em Fortaleza, os/as flanelinhas ficam nas pro-
ximidades de casas de espetáculos, museus, cinemas, teatros e restaurantes.
A narrativa adiante trata das dificuldades de exercer a atividade em razão
do fato de a Prefeitura de Caucaia ter implantado a forma de cobrança deno-
minada Zona Azul, em agosto de 2019, para estacionar em áreas públicas:
306

Agora ficou mais difícil trabalhar como flanelinha. E a gente não pode
vender Zona Azul porque não temos comprovante de endereço. A pre-
feitura colocou Zona Azul, ficou mais difícil para a gente. Todo lugar é
Zona Azul. Só o que tinha para a gente fazer aqui era vigiar os carros. A
gente poderia trabalhar na Zona Azul também, fazer o cadastro da gente,
e a gente não pode vender Zona Azul porque não temos comprovante de
endereço (ENTREVISTADA 2, 2020).

Em Fortaleza, a prefeitura também tem a modalidade de cobrança por


estacionamento em via pública, mas não trouxe tantos impactos para a popu-
lação em situação de rua que trabalha como flanelinha, dada a dimensão
territorial da capital, além do fluxo de veículos. Em Maracanaú não existe a
cobrança de estacionamento em via pública pela Prefeitura.
Identificamos que o cotidiano desses/as trabalhadores/as é repleto de
criminalização e de desqualificação dessa atividade nos espaços públicos

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por parte da sociedade e do poder público, pois são associados/as aos furtos
de veículos. A entrevistada 6 (2019) tenta vislumbrar um outro cenário e diz
que: “Deveria ter um cadastro. Se a gente tivesse um cadastro, seria muito
melhor. Uma proteção, uma farda que nos identificasse, porque a gente está
ali porque precisa”.
Durante as entrevistas, identificamos nos depoimentos que o trabalho
envolve a demarcação de territórios pelos/as flanelinhas nos espaços urbanos,
conforme relatam:

Eu tenho gente que trabalha comigo. Eu pego muito carro para lavar,
aí passo para uma pessoa; é R$ 10,00, então R$ 5,00 é meu e R$ 5,00 é
dele. Isso não dá confusão (ENTREVISTADA 3, 2019).
Lavo carro e fico vigiando carro. Passo água e sabão. Fico na Praça do
Liceu. Ganho R$ 20,00 e dou a comissão do dono do espaço da praça;
dou R$ 5,00, porque a vaga é dele. Trabalho na vaga. Fico vigiando
carros no estacionamento perto da igreja (ENTREVISTADO 7, 2019).

As demarcações dos espaços e semáforos estão intimamente relaciona-


das à concorrência entre esses/as trabalhadores/as. O respeito à demarcação
dos territórios é resultado de imposição, medo ou outras formas de violência
entre os/as flanelinhas.
O campo de pesquisa mostrou que a população em situação de rua tem
a atividade de flanelinha ou vigia de carros como uma das possibilidades de
acesso à renda, sem acesso ao sistema de proteção da previdência social e
da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), expostos/as ao sol, chuva e
violência nas cidades.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 307

B) Catadores/as nas ruas

Em idas e vindas às três cidades em que realizamos a pesquisa, eviden-


ciamos grande número de catadores/as de materiais recicláveis nas ruas, o
que nos aproximou, com os relatos, da realidade do circuito da reciclagem.
Na realidade, homens, mulheres, crianças e adolescentes manuseiam
sem nenhuma proteção os sacos acondicionados pelos/as moradores/as e
proprietários/as de comércios nas calçadas das grandes cidades. Podemos
identificá-los/as coletando diretamente nos arredores dos aterros sanitá-
rios. Em todas as situações, esses/as trabalhadores/as têm nos materiais
recicláveis um trabalho precarizado e insalubre, sendo essa a sua única
fonte de renda.
Os/as catadores/as de materiais recicláveis, por meio da catação e da
separação dos resíduos sólidos, estão inseridos/as no circuito da reprodução
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de capital à medida que coletam a matéria-prima para novas mercadorias.


Nesse circuito, as indústrias acumulam capital por meio da exploração dessa
força de trabalho e sem custos com o manejo dos materiais coletados dos
sacos e latas de lixo nas ruas. Os/as catadores/as são invisibilizados/as na
cadeia produtiva de transformação dos materiais recicláveis em novas mer-
cadorias pelas indústrias, que lucram às custas da exploração dessa força de
trabalho. Vejamos:

Acordo cedo e cato latinha até as 10 da manhã. Dou uma parada. Des-
canso depois do almoço, aí volto a catar latinha. Coleto aqui mesmo na
Caucaia. Não cato na praia. Lá já tem muita gente, tem muita latinha na
praia. Já me cortei, sim. Faz um tempo. Cortei meu dedo. (ENTREVIS-
TADA 8, 2019).
Um quilo de latinhas é R$ 1,50. Para fazer um quilo, é preciso 70 latas.
Para ganhar R$ 10,00, temos que catar 700 latas. Papelão é mais barato
ainda. O que é mais valorizado é latinha por causa do alumínio. É muita
exploração. O capital especula, e assim a pobreza existe. Eu leio Marx e
Lenin (ENTREVISTADO 9, 2019).

Os/as entrevistados/as narram a exaustiva jornada de trabalho realizada


a pé, carregando um peso enorme de materiais colhidos nas costas em sacos
ou carros durante o dia todo, sob o sol escaldante ou no período noturno,
estendendo-se por toda a madrugada, de onde retiram uma baixa renda. No
período do inverno, os desafios são enormes por conta do lixo molhado. A
extensa jornada de trabalho é uma forma de coletar mais material e obter uma
renda melhor. É um cotidiano repleto de medo e insegurança, principalmente à
308

noite, como expõe a Entrevistada 5 (2019): “Eu trabalho com reciclagem. Eu


tinha um carro, mas roubaram. Agora coloco no saco e vendo por cinco reais”.
Cabe mencionar que cinco entrevistados/as socializaram que traba-
lham há mais de dez anos como catadores/as, tendo quatro que relataram
que já trabalharam com carteira profissional assinada. O trabalho dos/as
catadores/as é absorvido pelo capital sem nenhum vínculo empregatício
com os/as proprietários/as de depósitos e galpões responsáveis pela guarda
e separação do material, bem como as fábricas que utilizam os materiais
recicláveis para a produção de novas mercadorias. Sobre os/as deposeiros/
as, como mostra o trecho

O dono do depósito cede o carro, tipo uma geladeira, para a gente res-
gatar as mercadorias. Passa o dia trabalhando e à noite ele pesa e paga.
Cada produto tem uma classificação: cobre, plástico, papel. Depende do
produto e da variedade. A gente recebe por quilo. O quilo é R$ 0,05. O

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quilo do plástico é R$ 0,40. Esse depósito é particular; é de uma mulher.
Paga muito péssimo (ENTREVISTADO 10, 2019).

A renda auferida com a catação é usada basicamente no acesso à ali-


mentação pelos/as entrevistados/as, principalmente para os finais de semana,
quando instituições que prestam atendimentos estão fechadas. O relato mostra
a evidência da baixa remuneração, “A gente amassa a latinha. Trabalhamos
em todo canto. Um saco dá R$ 5,00 ou R$ 8,00, e aí vendo no depósito. Às
vezes, só consigo R$ 2,00. É pouco.” (ENTREVISTADA 8, 2019).
Os/as proprietários/as de depósitos também alugam carroças para cata-
dores/as que não as possuem. A propriedade da carroça está associada à possi-
bilidade de obter uma renda maior: “Quem tem carroça ganha mais dinheiro.
Tem gente que tem sua própria carroça, e tem outros que alugam carroça.
Essas carroças são feitas de geladeira velha. Estou tentando arranjar uma
carroça” (ENTREVISTADA 5, 2019).
No Ceará, o governador Camilo Santana sancionou o Decreto nº 33.361,
de 14 de novembro de 2019, criando a Bolsa Catador, que destina recurso
financeiro de um valor mensal de 25% do salário-mínimo aos/às catadores/
as, por meio de suas cooperativas ou associações, incentivando, desse modo,
a coleta seletiva. Esse decreto não contempla a realidade da população em
situação de rua que trabalha com a catação devido às exigências:

I - fatura de energia elétrica que demonstre o consumo de até 80 kwh men-


sais; II - fatura de água que demonstre o consumo de até 10 (dez) metros
cúbicos mensais; III - comprovante de inscrição em benefícios assisten-
ciais do Governo Federal; IV - comprovante de obtenção de rendimento
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 309

mensal inferior a meio salário-mínimo por membro do núcleo familiar


(CEARÁ, 2019).

O decreto ignora a realidade dos/as catadores/as sem moradia convencio-


nal, sem documentos e sem acesso à energia elétrica e à água encanada. Para
o Entrevistado 14 (2019): “Muitos de nós não temos documentos, imagine
um CNPJ [Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica]. O jeito é vender para os/
as deposeiros/as”.
Os/as entrevistados/as expõem a ausência de equipamentos de proteção
individual (luvas, máscaras, botas e outros) ao revirar os sacos de lixos nas ruas,
ficando expostos/as a diversos vetores de contaminação pelo contato ou pela ina-
lação de produtos tóxicos, bem como pela ingestão de alimentos contaminados.

Eu trabalho com reciclagem de latinha. Eu já me cortei várias vezes com


vidro, quando a gente coloca a mão no saco. Lavo as minhas mãos e
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continuo catando as latinhas. Eu tenho tuberculose. Bebia muito e fumava


demais: três meses; o tratamento seis meses. Eu não bebo nem fumo.
(ENTREVISTADO 11, 2019).
Eu catava tudo: plástico, papelão, ferro-velho. Eu comia comida do lixo,
comia tudo, baião de dois, comia o que tivesse dentro das quentinhas
[choro]. Perdi a força do meu braço e dói quando eu movimento, quando
forço (ENTREVISTADO 12, 2019).

São comuns marcas de cortes nas mãos dos/as entrevistados/as devido


ao contato com materiais cortantes e perfurantes ao manusearem os materiais
coletados. O peso das carroças e sacos contribui para o surgimento de dores
na coluna e nos braços. Vejamos:

É uma situação difícil quando a gente fica doente. No momento, estou


doente, sem condições de trabalhar esses dias. Eu vendo para um dono
de depósito. A carroça não era minha; era do dono do depósito. E agora?
Minha clavícula inchada. Eu quase quebro o pescoço. Fiquei na casa
do meu amigo um período sem andar. Ainda tentei voltar a carregar o
carrinho, mas dói. (ENTREVISTADO 12, 2019).

Os/as entrevistados/as relatam outros problemas de saúde, como:


tuberculose, hérnia e dores nas costas, além de dificuldades de acesso ao
Sistema Único de Saúde (SUS) e da total ausência de acesso aos direitos
previdenciários e trabalhistas. Os depoimentos revelam cenas de degradação
física e psicológica, uma vez que, para Marx (2013, p. 342): “O capital
não tem, por isso, a mínima consideração pela saúde e duração da vida do
trabalhador […]”.
310

Identificamos o preconceito relacionado ao padrão estético dos/as cata-


dores/as, logicamente pelo contato com os materiais descartados pela mesma
população que os/as estigmatiza. Na obra Quarto de despejo: diário de uma
favelada, Carolina de Jesus (2014, p.136) revela que: “Disse-lhe que eu tra-
balhava muito, que havia carregado mais de 100 quilos de papel. E estava
fazendo calor. E o corpo humano não presta!”.

C) O artesanato e as ruas

O artesanato é extremamente importante para a movimentação econômica


em diversas cidades cearenses, principalmente aquelas com grande potencial
turístico. Entrevistamos cinco pessoas que afirmam que o artesanato é a prin-
cipal forma de acesso à renda. Os/as entrevistados/as produzem suas próprias
mercadorias inteiras e vendem em praças, restaurantes, praias, calçadas ou

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semáforos durante o dia ou à noite, conforme expõe:

Durante o dia, faço as peças no Centro Pop ou na Pousada Social (das


10 horas às 17 horas) e saio para vender. Trabalho todos os dias. Se eu
trabalhasse de carteira assinada, era melhor: direitos aos benefícios; teria
condições de ter uma moradia. Eu vendo por R$ 20,00 ou R$ 30,00. Eu
guardo as peças em uma lanchonete de um rapaz que conheço perto da
Praça do Ferreira. Passei três meses dormindo na Pousada Social; perdi
o horário e perdi a vaga. Fui vender os carrinhos na Beira Mar; cheguei
tarde, perdi a vaga (ENTREVISTADO 13, 2019).

O entrevistado 9 (2019), além de trabalhar com catação de latinhas de


refrigerantes, confecciona instrumentos musicais com esse material. Segundo
ele: “O catador carrega uma quantidade excessiva de peso para ganhar pouco,
por isso que eu procurei o artesanato e a reciclagem. Assim, eu agrego valor ao
material reciclado. Com dez latinhas que eu coleto, eu faço uma bateria. Ganho
R$ 10,00 fazendo artesanato” (ENTREVISTADO 9, 2019). A renda adquirida
com a venda das peças é usada praticamente no acesso à alimentação, vejamos:

As pessoas nem querem comprar; querem fazer caridade. As pessoas,


muitas vezes, nem querem o produto, querem ajudar. Mostrou a peça, às
vezes, nem compram, mas me dão R$ 3,00, R$ 5,00, R$ 10,00; nem levam
a bateria. Eu acho é bom. Não vejo que desvalorizam o meu trabalho. O
nosso conceito de moral na rua muda. Eu acho normal. Toda vida que o
sinal abrir, eu só não posso caminhar de grátis. Tenho que ganhar alguma
coisa. Para mim, isso é normal. Alguma coisa eu tenho que conseguir
(ENTREVISTADO 9, 2019).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 311

A grande dificuldade, entretanto, está na aquisição de material para a


confecção das peças. O entrevistado 9 (2019) relatou que: “Eu aprendi a
fazer artesanato para dentro do presídio. Aprendi a fazer móveis com cabo
de vassoura também e trabalhei também para reduzir a pena”. O mesmo
entrevistado chama a atenção para o fato de que o trabalho com o artesanato
está associado às tradições e às diversas expressões culturais de um povo.
Historicamente os/as artesãos/ãs trabalham no mercado informal, sem renda
e sem garantia dos direitos trabalhistas e previdenciários.

“Nós trabalhamos”: trabalho precarizado e informal

A pesquisa aponta que a população em situação de rua acaba tendo o tra-


balho informal como a única forma de acesso à renda. Os/as entrevistados/as
revelam a importância do trabalho no mercado formal como forma de acesso aos
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direitos trabalhistas e previdenciários, além da possibilidade de saída das ruas:

A principal dificuldade é um trabalho com renda fixa. Fundamental garantir


o dinheiro de um apartamento, de uma alimentação e de um transporte. É
preciso colocar os nossos talentos para fora (ENTREVISTADO 14, 2019).

A baixa autoestima é identificada nas narrativas durante as entrevistas.


A autoestima é calcada na forma com a qual parte da sociedade e do poder
público trata a população em situação de rua ou como a percebe. “Os gover-
nantes não acreditam em nós. E muitos de nós também não acreditamos em
nós mesmos” (ENTREVISTADO 9, 2019).
O trabalho formal e a moradia são fundamentais para os/as participantes
da nossa pesquisa ao pensar em processos de saída:

O trabalho é tudo na vida de uma pessoa. Eu acho que a gente não vive
sem o trabalho. Eu não vivo sem trabalho. Trabalhei muito. Tenho é uma
vergonha dessa situação em que estou. Tenho uma filha que não conheci
ainda. Eu sei onde ela está. Ela sabe que estou no Ceará, mas não em
situação de rua. A mãe dela é casada (ENTREVISTADO 1, 2019).

Um entrevistado nos chama a atenção para o fato de que a baixa escola-


ridade é uma das principais dificuldades de acesso ao trabalho formal: “Sem
estudo, fica difícil até realizar um curso profissionalizante” (ENTREVIS-
TADO 16, 2019). A baixa qualificação profissional e escolaridade entre os/as
participantes da nossa pesquisa é um dos entraves no acesso ao mercado de tra-
balho formal, principalmente diante das transformações no mundo do trabalho.
312

Os projetos de capacitação profissional e de inserção ao mercado de


trabalho tem encontrado enormes dificuldades com a implantação de cortes
orçamentários, como exposto:

Aqui em Maracanaú, prometeram um curso profissionalizante na área de


refrigeração. É uma área muito boa, mas falaram que não vai mais ter
esse ano. Era um curso de refrigeração, mas foi cancelado por conta dos
cortes no orçamento, aí vão ofertar cursos que gastam menos dinheiro.
(ENTREVISTADO 17, 2019).

É necessário que as políticas sociais sejam possibilidades de acesso aos


direitos e melhores condições de vida: “O acesso a todas as políticas, e não
apenas a meia política. Fazem meias políticas para a população em situação
de rua” (ENTREVISTADO 9, 2019).
Para os/as entrevistados/as, as políticas sociais são importantes, mas é

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preciso uma maior articulação entre elas, especialmente tomadas de decisão
para a garantia de acesso ao trabalho e renda. No acesso às políticas sociais, é
imprescindível a superação das violações dos direitos nas instituições, como a
discriminação, o preconceito e o estigma por parte da sociedade, do governo
e dos profissionais.

Considerações finais

As três cidades do campo empírico, Fortaleza, Maracanaú e Caucaia,


têm as marcas do desenvolvimento econômico e da urbanização voltados à
acumulação do capital, em detrimento das condições dos interesses da maioria
da população. As desigualdades sociais estão estampadas nas praças, viadutos,
prédios abandonados e ruas das referidas cidades.
Caucaia, Fortaleza e Maracanaú possuem os maiores índices de pessoas
em situação de rua do Ceará. O desemprego e o trabalho informal surgem
como dois dos principais fatores que levam indivíduos à situação de rua, bem
como à sua permanência. Os/as entrevistados/as estão desempregados/as ou
trabalham no mercado informal em condições extremamente precarizadas
há muitos anos, como os/as flanelinhas ou vigias de carros, catadores/as de
materiais recicláveis e artesãos/ãs.
As ocupações, como os flanelinhas nos semáforos limpando os para-bri-
sas dos carros ou realizando a vigilância de transportes particulares nas vias
públicas nos grandes centros urbanos, os/as catadores/as de materiais reciclá-
veis e os artesãos e as artesãs, são realizadas no contexto das ruas, sem renda
fixa, sem cobertura previdenciária e sem direitos trabalhistas, em condições
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 313

bastante insalubres e degradantes, sob uma extensa carga horária de trabalho


e desvalorizadas pela sociedade e pelo poder público. A renda adquirida com
as ocupações é usada praticamente no acesso à alimentação, sendo, portanto,
insuficiente para prover o acesso à moradia e às demais necessidades humanas.
A população em situação de rua é parte constituinte de um contingente
de trabalhadores/as desempregados/as por tempo indeterminado ou perma-
nente, sem condições de disputar as vagas no mercado de trabalho formal
em razão da ausência de documentação, endereço fixo, baixa escolaridade e
qualificação profissional, com diversos problemas de saúde e o uso prejudicial
de álcool e outras drogas.
Em face dessa realidade, os/as entrevistados/as indicaram ser dever do
poder público e das empresas a construção de estratégias de acesso ao tra-
balho formal, considerando a realidade da população em situação de rua
como uma forma de construção de novas possibilidades e projetos de vida.
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O desafio de garantir direitos pressupõe um amplo debate e ações construídas


coletivamente, visando à organização política da população em situação de
rua no acesso ao trabalho, à moradia, à convivência familiar e comunitária,
ao respeito ao modo de vida e ao acesso às políticas sociais que permitam
superar as violações de direitos.
314

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TRABALHO E REPRODUÇÃO SOCIAL
NO CONTEXTO (ULTRA)NEOLIBERAL:
reflexões sobre condições de vida e ilicitude
do comércio das drogas em terras brasileiras
Valeria Forti
Juliana Menezes
André Menezes
DOI: 10.24824/978652515286.8.317-342

O capitalismo é um modo de produção que comporta uma relação


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social que impõe ao trabalho determinada condição – a sua subsunção.


Nessa relação, o capital e o trabalho assalariado são indissociáveis, cons-
tituem uma unidade de diversos, uma unidade de classes sociais distintas,
que se expressa na contradição do mundo das mercadorias, mostrando-se
como uma relação entre coisas, obscurecendo a realidade do processo de
produção/reprodução da riqueza social. Pode ser dito, ainda, que se trata
de uma relação constituída por duas classes fundamentais e inseparáveis na
qual a apropriação e o usufruto da riqueza socialmente produzida por uma
delas ocorre em detrimento da outra. É aí, nesse processo, que se engendra
a desigualdade social. Sabe-se que a divisão do trabalho está presente de
diversas formas nas sociedades, mas, diferentemente do que é alegado, por
vezes, não significa o fulcro da desigualdade social.
Ao referirmo-nos ao modo de produção capitalista, nossa menção é a
um tipo de organização/gestão do trabalho em que, mesmo que o sujeito-
-produtor — o trabalhador159 —não seja constrangido legalmente a servir a
um determinado empregador, haja vista a regência do “livre contrato” entre
as partes, a não propriedade dos meios de produção pelo trabalhador retira
dele a possibilidade de opção, levando-o, indubitavelmente, à necessidade
da venda da sua força de trabalho para que possa obter meios indispensáveis
à sua sobrevivência. Nesse tipo de sociedade, de organização social da pro-
dução/reprodução da vida social, a apropriação das condições objetivas de
vida por poucos suscita a possibilidade de exploração dos demais, ou seja,

159 Ao longo de todo o texto, a referência é ao gênero humano. Nessa perspectiva, cabe esclarecer que, para
evitar uma leitura impertinente e/ou cansativa ao/à leitor/a, não utilizaremos alternância simultânea de gênero.
A nossa referência é ao gênero humano sempre, respeitando e valorizando toda diversidade que comporta.
318

suscita a apropriação do valor excedente produzido pelos trabalhadores,


visando à acumulação capitalista.
É importante ressaltarmos que, em nossa sociedade, caracterizada pelo
capitalismo periférico e dependente, atravessamos um período deveras com-
plexo, uma vez que o (ultra)neoliberalismo potencializou a exploração do
trabalho e, portanto, a violação de parâmetros caros ao mundo humano em prol
da valorização do capital. Dessa maneira, é irrefutável a dramaticidade decor-
rente das precárias condições de trabalho e do desemprego estrutural, como
as patologias físicas ou mentais e a fome de segmento significativo da classe
trabalhadora, por exemplo. Tudo isso foi agravado, mas, predominantemente,
desvelado pelo período pandêmico. Ou seja, a menção é ao recrudescimento
de um processo em que a precariedade das condições de vida de parcela
importante dos trabalhadores de um país como o nosso, que historicamente já
se caracterizava pela informalidade do trabalho e pela incipiência da proteção

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social, aprofunda-se, sobrelevando o patamar de miséria e desigualdade social,
razões que fundamentam as reflexões contidas no presente texto.
Prosseguindo na linha de raciocínio, destacamos que o trabalho – ativi-
dade produtora da riqueza social – é o elemento fundante do ser social. Ou
seja, o meio pelo qual se tornou possível a própria constituição do mundo
humano. Portanto, a atividade que nos permitiu o salto para além do circuito
natural – do domínio da necessidade independente da vontade e ação humanas.
Diferentemente dos demais animais que se restringem ao que a natureza
lhes provê, o ser social não erradicou, mas ultrapassou o domínio da natureza.
Por meio do trabalho, tornou-se um ser histórico, criativo, capaz de transcender
o limite imposto pelas necessidades meramente naturais e imprimir significado
às coisas. Dessa maneira, pôde confrontar-se com o mundo, manifestando-se,
tornando-se sujeito, um ser criativo que imputa significado às coisas e constrói
valores, incorporando novas qualidades, necessidades e objetivos, aos quais busca
responder por meio do trabalho e, assim, vai erigindo a sua existência, a história.
O trabalho é uma atividade desenvolvida apenas pelo ser humano, uma
vez que pressupõe a prévia ideação. Aliás, uma capacidade originada por tal
atividade e simultaneamente sua guia. Ou seja, a realização de tal atividade
pressupõe consciência, projeção — uma finalidade (ideada) em função da
ação para a concretização do produto, o que evidencia a distinção entre o ser
humano e os demais animais. Em busca da satisfação das suas necessidades,
o ser social, desde as mais primitivas sociedades, cria meios para a produção
material (e espiritual) da sua existência e, assim, faz história, sem eliminar,
mas recuando óbices naturais.
Nesse processo de produção da vida social, verifica-se que o homem cria
os instrumentos de trabalho, que, apesar de serem elementos não incorporados
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 319

ao produto do trabalho, são indispensáveis à sua realização. Desde a forma


mais rudimentar, os instrumentos de trabalho são criados pelo ser social e
significam a possibilidade de produção do sujeito (trabalhador), visando às
respostas aos seus carecimentos. O sujeito transforma os objetos de trabalho,
por meio dos instrumentos de trabalho, utilizando-se da sua força de trabalho,
pois ela é a energia física e mental despendida no processo de trabalho para a
produção do objeto humanizado. Pode ser dito, portanto, que há, no processo
de trabalho, o emprego de elementos objetivos e subjetivos.
Esses são aspectos que caracterizam uma atividade cuja importância é ines-
timável, haja vista ser intrínseca ao próprio processo de constituição da vida
humano-social, Não obstante caracterizar-se como vital, em razão de ser eterna
e intrínseca à existência humana, é uma atividade que incorpora condições dife-
rentes ao longo da história. Se nos voltarmos ao período escravista, além de nos
depararmos com uma das maiores aberrações pela via da exploração do trabalho,
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verificaremos que o escravizado, violado e submetido a condições sub-humanas


para que o produto do seu trabalho fosse apropriado pelo senhor, sequer poderia
vislumbrar e/ou manifestar o direito de ser proprietário dos meios de produção.
Na sociedade feudal, o que era produzido pelos servos, trabalhadores
sem-terra e sem qualquer outro meio de produção, era submetido às ingerên-
cias dos proprietários. Assim, os trabalhadores produziam recursos básicos
para a sua subsistência, desde que ocupassem a quase totalidade do tempo
destinado ao trabalho à produção de bens designados ao consumo privilegiado
dos senhores, proprietários dos feudos.
Diferentemente das condições anteriores (escravista e feudal), em que a
exploração do trabalho é flagrante, no capitalismo isso tende tornar-se emba-
çado, visto que a subsunção do trabalho ao capital pode parecer uma relação
voluntária. Pode parecer que o trabalhador esteja no mercado voluntariamente
para a troca da sua mercadoria (a força de trabalho), estando comprador e
trabalhador em condição equânime: os proprietários livremente se encontram
para vender ou comprar mercadorias. Essa é uma relação em que não há evi-
dências da presença de classes distintas de proprietários. Não revela que há os
proprietários dos meios de produção e os proprietários da força de trabalho,
o que, sem a necessidade de considerarmos interferência extraeconômica
explícita, constitui uma relação indissociável que origina a mercadoria e a
extração da mais-valia no próprio processo da produção.

Só no capitalismo a apropriação do mais-trabalho se converte em um


fim em si, e o constante incremento deste se transforma em condição
indispensável do processo de produção. E o capital dispõe de meios e
de incentivos que superam largamente ‘em energia e eficácia’ o uso do
320

trabalho forçado direto, típico das sociedades anteriores (MARX, 1982,


apud ROSDOLSKY, 2001, p. 193).

Mesmo que não seja incomum nos deparamos com a ideia de que a com-
preensão do mundo capitalista é possível na esfera da circulação, é no processo
de produção que isso é realmente revelado. Aí encontra-se o engendramento
do lucro capitalista e da desigualdade social. Distintamente do processo de
trabalho cuja finalidade se encontra em razão restrita da utilidade peculiar do
produto destinada ao próprio consumo, ou seja, em razão do valor de uso efe-
tivado pelo trabalho concreto – atividade indispensável à existência humana –,
o processo de trabalho na produção capitalista incorpora a condição essencial
de produtora de mercadorias. Portanto, ao valor de uso incorpora-se o valor de
troca. A utilidade peculiar do produto volta-se à troca no mercado, não mais
se dirigindo ao saciamento da necessidade do produtor da mercadoria, pois

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destina-se à produção de valor, não tem mais como seu fundamento o auto-
consumo meramente. O produto, assim, incorpora um valor que, não obstante
criado na produção, só se realiza na venda. Além disso, um valor que se mostra
no confronto com as demais mercadorias que se encontrarão no momento da
circulação, à venda. Nesse processo, como já abordado, a utilidade da merca-
doria não é encontrada no carecimento direto do produtor, mas em razão da
necessidade de outro(em), que a consumirá, e vincula-se ao trabalho abstrato,
ao trabalho em geral destinado à produção de mercadorias. No processo de
produção capitalista, o valor das mercadorias decorre da quantidade de tra-
balho abstrato que elas contêm, da média do trabalho socialmente necessário
à produção das mercadorias. Nisso, cabe-nos considerar a média do trabalho
abstrato, incluindo os insumos. Portanto, considera-se o esforço coletivo e
o potencial produtivo de dada sociedade, que é delimitado historicamente.
O capitalista é o proprietário dos meios de produção e objetiva consumir
a força de trabalho visando à produção de valores em quantidade maior do que
aquela investida para produção de algo, pois só assim poderá realizar a venda
do produto — mercadoria — e concretizar a reconversão do capital. Nisso, é
considerado o capital investido nos meios de produção e na mercadoria força
de trabalho, visando à apropriação do valor excedente – a mais-valia – e à
realização do ciclo que viabilizará a sua acumulação. Nesse processo, obser-
va-se que, por não deter os meios de produção, ao trabalhador assalariado
resta vender a mercadoria de que dispõe, isto é, trocar a sua força de trabalho
por salário, pois, distinta da voluntariedade, essa torna-se a sua possibilidade
em busca da aquisição do que é necessário à sua reprodução, a optação em
busca de assegurar sua sobrevivência. No entanto, mesmo que isso signifique
uma condição indispensável à sua sobrevivência, o trabalhador nem sempre
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 321

contará com o consumo da sua mercadoria — a força de trabalho — em troca


de salário, tampouco terá a garantia de que, ao vender a sua mercadoria, o
salário será suficiente para lhe conceder nível pertinente de sobrevivência.
Além disso, cabe-nos considerar que a rotação do capital necessita de
consumo e, à medida que o consumo da mercadoria força de trabalho se mostrar
diminuto, se comparado ao investimento em capital constante pelo capitalista,
o consumo das mercadorias em geral pode ser abalado de maneira importante,
uma vez que a maior parcela da sociedade não poderá adquiri-las, redundando
no fenômeno comumente denominado de superprodução: razão e fundamento
recorrentes das crises de implementação do capital. Uma questão fundamental
à classe trabalhadora e que, na lógica liberal, mostra-se desvirtuada, haja vista
não evidenciar a impertinência das alegações que responsabilizam essa classe
por tais crises, atribuindo-lhe a responsabilidade pelo não consumo da sua força
de trabalho160 e pelas consequências nefastas daí advindas. Na concepção libe-
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ral, vincula-se a apropriação e o usufruto da riqueza socialmente produzida ao


mérito pessoal, fundamentalmente, o que traz à baila o debate da meritocracia.
Isso significa endosso da ideia de que a aquisição e o consequente usufruto de
tal riqueza são proporcionais ao esforço individual, o que perfaz a ideia de que
as possibilidades e limites dos sujeitos independem das condições e oportuni-
dades que constituem a trajetória de cada um em dada sociedade. Logicamente,
essa é uma concepção que obscurece as determinações da pobreza, podendo
até torná-la tolerável e/ou inevitável, mesmo que se encontre ao lado de uma
preponderante capacidade de produção de fartura a todos em dada sociedade.
Diferentemente de análise alinhada à apreensão histórico-crítica das for-
mações sociais, na referida lógica liberal, o capitalismo é uma forma de produ-
ção praticamente incontestável, já que expressa a propensão natural dos seres
humanos às trocas no mercado. Quanto a isso, Adam Smith, um dos maiores
expoentes da economia clássica, autor de origem escocesa do século XVIII e
consagrado pai da economia, na obra A riqueza das nações (1776), relacionada
diretamente à sua obra anterior, intitulada Teoria dos sentimentos morais (1759),
deixa sobressair a mencionada concepção do capitalismo como expressão de
propensão natural humana.161 Segundo esse autor, características inerentes aos
seres humanos, como o egoísmo e a simpatia, seriam “ingredientes” de relevante
função econômica em prol da riqueza das nações. Smith considera que tais
sentimentos suscitam prosperidade às nações, pois são sentimentos que impul-
sionam a vida social, já que a tendência é a busca incessante de bens materiais.

160 Por diferentes alegações, mas, comumente, pela inércia e/ou pela desqualificação para o trabalho, são
recorrentes os argumentos que atribuem a responsabilidade do não consumo da força de trabalho aos
próprios trabalhadores.
161 A esse respeito, é importante consultar: Carcanholo (2015) e Forti (2020).
322

Contrapondo-se ao pensamento hobbesiano, que explicita o egoísmo


como elemento humano desagregador socialmente (1988), Smith o avalia
como via de prosperidade para as nações. Em seu pensamento, situa a troca
como tendência inata do ser humano, a qual inicialmente significava algo
espiritual e posteriormente desdobra-se e se volta às trocas materiais. Daí
afirmar que o ser humano nasceu para viver em uma sociedade mercantil.
Fato que alicerça a competição e a concorrência como características naturais,
justificando a concorrência inerente ao mundo capitalista.
Quanto à simpatia, o outro sentimento destacado por Smith, o autor
argumenta em seu favor, considerando-a imprescindível ao convencimento
de outras pessoas para que nos viabilize algo de que necessitamos por meio
da conquista da autoestima delas. Através da simpatia, segundo ele, cabe-nos
mostrar aos outros que é vantajoso para eles que façam e/ou nos permitam
ofertar-lhes algo. Esse é o modo que nos possibilita negociar e alcançar o

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pretendido, conseguir algo de que necessitamos, uma vez que ninguém pode,
por si próprio, prover-se de tudo de que necessita para sobreviver e, em função
disso, carece dos demais membros da sociedade.
Com esses argumentos, o referido autor defende sua concepção de liber-
dade aos membros da sociedade, pois compreende que essa liberdade de troca
viabilizará condições promissoras à vida social, construindo uma sociedade
rica, próspera e feliz. Aos indivíduos membros da sociedade, caberia a liber-
dade para aumentarem os seus recursos próprios, o seu capital. A respeito
desse pensamento, em Forti (2020, p. 83) é possível apreciarmos:

Deixados em função de sua livre iniciativa, cada um e todos os indivíduos


serão levados por uma espécie de ‘mão invisível’ a promover o interesse
geral da sociedade. Dessa maneira, a busca de seus próprios interesses é
legítima e ninguém poderia impedir isso ao outro. Isso porque a ideia da
prosperidade da sociedade alinha-se à defesa do livre desenvolvimento
das forças individuais no plano econômico.
Esse processo é algo que exige que os membros da sociedade sejam livres
para agirem em prol de seus próprios interesses, o que redundará em
melhora das suas condições de vida, e, dessa maneira, todos ganham,
prosperam e a sociedade se tornará mais rica e feliz. Ou seja, a melhor
sociedade é aquela que possibilita aos indivíduos liberdade para realizarem
atividades que aumentem os seus recursos próprios, o seu capital [...]. Daí
a sua defesa do liberalismo econômico.

A concepção liberal, sucintamente abordada, toma vulto ao longo da


trajetória capitalista e atualmente mostra tons muito fortes em face da lógica
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 323

neoliberal.162 Isso escancara-se, especialmente em países como o nosso, cuja


economia, periférica e dependente, já amalgamava importante exploração
do trabalho e exíguo padrão de proteção social. A racionalidade neoliberal
intensificou a concorrência, espraiando tal lógica do capital às dimensões
da vida social. O mercado tornou-se, assim, o sujeito natural da sociedade,
propiciando que a intensificação desmedida da exploração do trabalho se
dirigisse à captura da subjetividade dos trabalhadores.

O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capita-


lismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido
como construção histórica e norma geral da vida. O neoliberalismo pode
ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que
determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio
universal da concorrência (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17).
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Em linhas gerais, considerado o exposto, pode ser dito que se verifica


uma dinâmica de trabalho em que os meios tecnológicos, a desregulamentação
das leis trabalhistas, o declínio da proteção social e do poder das associações
sindicais sobreleva o individualismo, a concorrência e o egoísmo social, em
detrimento de relações alinhadas à solidariedade, aos padrões que ampliam a
humanidade e a civilidade, o que é suporte para movimentos antiéticos como
os neofascistas, por exemplo.
Quanto a isso, cabe considerarmos que:

As novas relações flexíveis de trabalho promovem mudanças significativas


no metabolismo social do trabalho tendo em vista que alteram a relação
‘tempo de vida/tempo de trabalho’ e alteram os espectros da sociabilidade e
auto-referência pessoal, elementos compositivos essenciais do processo de
formação do sujeito humano-genérico. São as relações flexíveis do trabalho
que instauram a nova condição salarial que põem novas determinações no
processo de precarização do homem que trabalha (ALVES, 2011, p. 8).

Em países como o nosso, as consequências do referido cenário social


manifestam-se em ataques aos direitos trabalhistas e sociais sem precedentes
na história brasileira,163 tornando escancaradas inúmeras misérias consequen-
tes, tais como os elevados índices de desemprego, a fome e as discriminações
sociais – ingredientes que podem contribuir à explicação de parte das ilicitudes
que vêm sendo efetivadas.

162 Atualmente recrudescida e apreciada como (ultra)neoliberal.


163 A esse respeito, é importante consultar Antunes (2018).
324

Prosseguindo na lógica de raciocínio e à guisa de aprofundamento, cum-


pre recuperarmos certas respostas do capital, no último terço do século XX, à
crise econômica. É sabido que, a partir da década de 1970, internacionalmente
o sistema capitalista engendra um contexto particular que demonstra o esgo-
tamento do padrão de produção e reprodução social fordista-keynesiano,164
estruturado no segundo pós-guerra. Em face do contexto de exaurimento
e em razão da tendência estruturante e ineliminável de crise,165 há exigên-
cia capitalista de dinamização, notadamente do ponto de vista tecnológico e
organizacional, suscitando distintas respostas. Ou seja, estratégias que visam
conter os efeitos da crise do modelo de acumulação estruturado, bem como
compensar as contradições estruturadoras do sistema. Nesse ínterim, certas
estratégias sobressaem, ao analisarmos a partir do ângulo dos efeitos deleté-
rios sobre o mundo do trabalho, em harmonia ao já adiantado, quais sejam: a
reestruturação produtiva/acumulação flexível e o neoliberalismo.

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De maneira sumária, cumpre aclararmos que a reestruturação produtiva
se inscreve no contexto de oposição ao padrão fordista-taylorista, promovendo
a reorganização das relações e dos processos produtivos, adotando, por con-
seguinte, um padrão de acumulação aquilatado como flexível. Trata-se, como
sinalizado, da assunção e do espraiamento da flexibilidade dos “processos
de trabalho, dos mercados, dos produtos e padrões de consumo”, como bem
assevera Harvey (2014, p. 140).
Distanciando-se das bases fordistas, a acumulação flexível se ancora
na ampla flexibilização. Desse modo, evidencia-se a emergência de novos
setores de produção; novos mercados; rápidas alterações nos padrões de
desenvolvimento desigual, tanto no que diz respeito a setores específicos166
quanto a regiões geográficas; e maiores pressões de controle sobre o traba-
lho, haja vista o enfraquecimento político dos trabalhadores em decorrência
da dilatação das fileiras do exército industrial de reserva e da retração de
frentes de organização coletiva, como os sindicatos. Como constata Harvey
(2014, p. 141), a acumulação flexível “parece implicar níveis relativamente

164 Sucintamente podemos sinalizar que o fordismo-taylorismo é o padrão produtivo predominante na indústria
capitalista internacional, no pós-guerra, marcado pela produção em massa, estruturada de maneira con-
centrada e verticalizada, pautada na racionalização e no controle do tempo. Todavia, é preciso declarar que
foi a associação entre o referido padrão produtivo com o keynesianismo, no plano da reprodução social,
balizado em arranjos e estratégias políticas e sociais, a responsável pelo importante e longo patamar de
expansão capitalista operado. A combinação aludida entre o fordismo-taylorismo e o keynesianismo forjou
um crescimento fenomenal ancorado, como reconhece Harvey (2014), em uma diversidade de compromissos
e reposicionamentos por parte dos principais sujeitos do processo capitalista de desenvolvimento.
165 O legado de Marx permite-nos apreender que a dinâmica do modo de produção capitalista é propensa à
crise. Nesse sentido, conforme aludimos, entrecruzam as crises econômicas apreciadas como a queda das
taxas de lucro, a superacumulação e o subconsumo.
166 A exemplo do denominado setor de serviços que se viu ampliado.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 325

altos de desemprego ‘estrutural’ [...], rápida destruição e reconstrução de


habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do
poder sindical”. Ocorre, ainda, uma profunda reestruturação do mercado de
trabalho, decorrente de alterações como a volatilidade do mercado, ampliação
das competições intercapitalistas e redução das margens de lucro. Diante de
tais alterações, frente ao enfraquecimento sindical e ao incremento da massa
sobrante de trabalhadores, tornam-se cada vez mais frequentes os regimes e
contratos flexíveis de trabalho, com crescente consumo da força de trabalho
de modo parcial, temporário e por meio de subcontratação.
O processo de reestruturação produtiva, com consequente adoção de um
novo protótipo de acumulação – flexível –, tem o neoliberalismo como seu sus-
tentáculo, uma dentre as estratégias do capital para a crise encetada na década
de 1970. Em linhas gerais, pode ser mencionado como um projeto político-i-
deológico que constitui uma verdadeira racionalidade que reivindica, aprofunda
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e atualiza a narrativa liberal. As raízes históricas do projeto neoliberal podem


ser identificadas décadas antes da crise de 1970 e possuem como marcos o pen-
samento e a obra de Friedrich Hayek, filósofo e economista austríaco, que, no
auge de sua crítica ao intervencionismo estatal e ao Welfare State,167 publica o
livro O caminho da servidão,168 em 1944. Embora o livro não gere um impacto
profundo imediato, devido ao sucesso das medidas keynesianas no pós-guerra,
irá exercer forte influência nos pares da Escola Austríaca,169 que se encarregarão
de propalar o pensamento e as convicções de Hayek para as próximas gerações.
Posteriormente, em torno dos anos de 1960, o constructo político-ideoló-
gico começa a se desenvolver no meio acadêmico a partir de expoentes como
o economista e professor universitário Milton Friedman. A seguir, se espraia
também na seara política, expressando a transição do neoliberalismo do plano
teórico ao plano político. Temos na Inglaterra, em 1979, com a gestão da Mar-
gareth Thatcher, um expoente simbólico da absorção, no campo político, da
narrativa neoliberal. Ademais, Ronald Reagan nos Estados Unidos; Helmut Kohl
na Alemanha; e uma propagação expressiva, poucos anos depois, de experiências
políticas semelhantes no território latino-americano. Exige-nos esclarecer que,
embora o neoliberalismo vá se desenvolver, em geral, nos países da América

167 Vale caracterizarmos brevemente o que vem a ser Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social. Nessa
perspectiva, faz-se necessário resgatarmos que a grave crise econômica de 1929, seguida dos efeitos da
Segunda Guerra Mundial, suscita reflexões e proposições no que tange à necessidade de intervenção estatal
e consequentemente enfrentamento dos efeitos da crise. Constitui-se, portanto, um verdadeiro consenso,
balizado nas reflexões do economista John Keynes, capaz de promover determinadas pactuações que se
expressam na aprovação de legislações sociais e pela assunção de experiências em determinados países
da Europa que serão caracterizadas como Welfare State. Cabe aqui registrar que a terminologia guarda
inúmeras polêmicas no que diz respeito à sua aplicação para distintas realidades históricas.
168 The Road to Serfdom.
169 Escola de pensamento econômico liberal, também conhecida como Escola de Viena.
326

Latina de maneira tardia, se comparados aos países centrais do capitalismo,


a primeira experiência neoliberal no mundo foi implementada no Chile, por
Augusto Pinochet, após o golpe de Estado desferido contra Salvador Allende.
No Brasil, os primeiros sinais da direção neoliberal podem ser identifi-
cados já no final da década de 1980, com José Sarney, muito embora esse seja
também o contexto do final da ditadura civil-militar e da promulgação da Cons-
tituição Federal de 1988 (CF/88), reconhecendo e positivando alguns direitos
civis, políticos e sociais dos cidadãos brasileiros. É nesse cenário marcado pela
mobilização popular em prol do declínio da referida ditadura que, nos domí-
nios da CF/88, se observa a estruturação da seguridade social brasileira, com
importante inflexão na proteção social nacional, contando, indubitavelmente,
com a mobilização e a reinvindicação populares. Todavia, a cartilha neoliberal
progride e se aprofunda no país. Sucessivos governos carregam o selo neoli-
beral, apesar das diferentes nuances, operando gestões político-econômicas

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assentadas nas abreviações das funções do Estado no campo social, assim como
nos incentivos às privatizações, terceirizações e parcerias público-privadas. O
mote é extirpar quaisquer limitações e/ou entraves ao livre funcionamento e à
autorregulação do “mercado capitalista”. De Sarney, passando pelas gestões
de Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio
Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer, chegando aos dias atuais, nos
instantes finais do governo de Jair Bolsonaro, temos, salvaguardando distinções,
a reprodução e atualização, em solo nacional, de medidas de cunho neoliberal.
Algumas delas esgarçando ao máximo o orçamento público em benefício do
capital, independentemente da significativa degradação dos meios de repro-
dução social de uma parcela expressiva da classe trabalhadora.
Cumpre esclarecermos que as gestões empreendidas pelo Partido dos
Trabalhadores (PT), com os dois mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula
da Silva e os quase dois mandatos de Dilma Rousseff,170 lastimavelmente,
frustrando vultuosas expectativas, não foram capazes de romper com a lógica
neoliberal no país. Muito embora seja inegável que houve, sobretudo nas
gestões Lula, importante “melhoria nas condições materiais de vida dos indi-
víduos mais pobres, a partir do aumento real do salário mínimo, da expansão
do crédito e da ampliação das transferências de renda” (MAURICIO, 2021,
p. 117). É possível constatarmos, sem demérito dos avanços alcançados, que
as gestões do PT se assentaram em reformismo e na conciliação de classes e
não viabilizaram um programa de reformas estruturais.
Nessa esteira, ante a tendência neoliberal, concebe-se um cenário mar-
cado pelo pífio crescimento econômico, desindustrialização, falência de

170 Em agosto de 2016 o segundo mandato de Dilma Rousseff foi interrompido pelo golpe parlamentar jurídi-
co-midiático que conduziu ao poder o vice-presidente Michel Temer.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 327

pequenas empresas, concentração de rendas e riquezas, aumento do desem-


prego, ampliação do déficit público, expropriação de direitos, deterioração dos
serviços públicos, aprofundamento da pobreza, exacerbação da precariedade
e da informalidade do trabalho.
Cabe lembrarmos que no Brasil, país de origem colonial e que se integra
ao capitalismo internacional de maneira periférica, dependente, o processo
de formação e reprodução da classe trabalhadora e do mercado de trabalho
tem ocorrido, genuinamente, de modo truncado. Há, constitutivamente, uma
instabilidade ocupacional e salarial, decorrente de uma informalidade e de
uma desproteção social que atravessam a realidade sócio-histórica brasileira,
como já mencionamos neste texto. Desse modo, a assunção da acumulação
flexível e do neoliberalismo por essa realidade histórica e social representa,
indubitavelmente, um agravamento de fissuras internas e a franca condução
de largas parcelas da população a uma condição de pauperismo e miserabili-
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dade desmedidos.
Em harmonia ao exposto e sucintamente, após breve digressão pela tra-
jetória após a adoção de medidas de flexibilização e de neoliberalização, insta
nos atermos a eventos recentes na cena nacional, notadamente após a efeti-
vação do golpe parlamentar jurídico-midiático citado, haja vista o potencial
danoso à classe trabalhadora de tais eventos.
Sob essa ótica temos, no ano de 2016, o golpe empreendido contra a
presidente Dilma Rousseff, culminando com a sua deposição e a nomea-
ção do vice, Michel Temer, como presidente. Entre as distintas motivações
aventadas como explicação para o referido golpe, temos a sanha de uma
elite capitalista que, em um cenário de grave crise política e econômica, não
se contentava mais com as concessões, almejando, em vista disso, ampliar
ganhos – uma guinada ao atraso. Dessa maneira, principia-se com Temer
um processo de radicalização e aprofundamento neoliberal que perdura até
o tempo presente.171 No curso do governo ilegítimo Temer, implementa-se
uma plataforma política e econômica com intento de: a) extremar o Estado
mínimo para o social e máximo para o capital; b) acentuar a participação
da iniciativa privada; c) flexibilizar ainda mais o mercado de trabalho; e d)
liquidar e entregar o que restou do patrimônio público nacional para a con-
corrência internacional.
Nesse lamentável fio condutor histórico, contabilizamos algumas derrotas
para a classe trabalhadora que merecem relevo. Nesse sentido, tivemos, por
exemplo, em dezembro de 2016, a aprovação da Emenda Constitucional nº
95, estabelecendo um teto para os gastos públicos. A referida EC 95/2016

171 Não obstante as inestimáveis dificuldades, parece-nos que o governo recém-empossado, que tem como
presidente o Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, tem a pretensão de buscar alteração nesse processo.
328

intencionava estagnar os gastos do Estado por um período de vinte anos, de


maneira que, a cada ano, os gastos não ultrapassassem os do ano anterior,
corrigidos somente pela inflação.
Era ainda o ano 2016 quando foi aduzida a proposta de contrarreforma
trabalhista. Essa contrarreforma assenta-se na flexibilização do patamar nor-
mativo mínimo estabelecido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Por isso, essa reforma indica ao patronato a liberação e o rebaixamento das
regras de uso e remuneração da força de trabalho. Impera sinalizarmos que
as contrarreformas trabalhistas, longe de serem exclusividades brasileiras,
marcam presença na América Latina, operando como uma importante ferra-
menta para o capital e expressando a incapacidade do capitalismo de garantir
permanentemente as conquistas dos trabalhadores. Isso porque os direitos
trabalhistas conquistados representam indiretamente maiores custos no que
tange à aplicação da força de trabalho, exigindo que o capitalismo de feição

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neoliberal atue na flexibilização desses custos do trabalho, a fim de se reesta-
belecerem as taxas de lucro.
Também no final dos anos 2016, entrou na ordem do dia a contrarre-
forma da previdência. Devido à instabilidade do cenário político brasileiro,
a proposta ficou paralisada e o governo Temer não conseguiu aprová-la.
Todavia, posteriormente, na gestão Bolsonaro, de cunho (ultra)neoliberal,
essa pauta foi retomada e, lastimavelmente, aprovada. Inquestionavelmente
a contrarreforma da previdência promoveu uma significativa modificação
na seguridade social brasileira, permitindo a erosão dos parâmetros prote-
tivos conformados a partir da CF/88. A contrarreforma da previdência, em
conjunto com as demais medidas implantadas, sucintamente mencionadas,
tem impactado direta e incisivamente na vida dos trabalhadores, penalizando
ainda mais a população mais empobrecida. Nesse contexto, é válido ainda
citar, no campo da seguridade, a intensificação dos processos de privatização
e corrosão dos importantes sistemas de proteção social da saúde (SUS) e da
assistência social (SUAS).
Afora os elementos expostos, cabe destacar que o segundo ano do
governo Bolsonaro é marcado de maneira dramática pela crise sanitária e
humanitária decorrente da pandemia da covid-19. O cenário, que já era deveras
adverso para os trabalhadores – herdeiro das contrarreformas implementadas
–, agrava-se, evidenciando as comoventes condições de trabalho e de vida de
parcela importante da população brasileira, condições essas marcadas pela
pauperização, vulnerabilidade e desassistência.
Em consonância ao que vimos tecendo, constitui-se paulatinamente uma
conjuntura verdadeiramente contrária aos trabalhadores – aos seus interesses e à
sobrevivência propriamente dita. Como buscamos demonstrar, no capitalismo,
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 329

o trabalhador necessita, inevitavelmente, entregar a sua força de trabalho para


outrem por períodos acordados, de modo a obter uma remuneração e, como
resultado, custear os meios de sua sobrevivência. Entretanto, diante das medidas
contratendenciais172 avocadas pelo capital, a mencionada entrega da força de
trabalho tem ocorrido cada vez mais mediatizada pela instabilidade, informa-
lidade e precarização. Isso sem falar nas dimensões sem precedentes atingidas
pelo exército industrial de reserva, em que pese o seu caráter intrínseco à ordem.
Temos constituído nos últimos anos uma massa sobrante de trabalhado-
res devido à acumulação do capital sem precedentes históricos. Atingimos,
no transcurso do ano 2022, a marca de 9,5 milhões de indivíduos em condi-
ção de desemprego, isto é, descartados do processo produtivo.173 Destes, 4,3
milhões têm sido considerados desalentados, melhor dizendo, já não nutrem
expectativas de inserção no mercado de trabalho.174 No âmago do desemprego
sinalizado, a juventude ocupa lugar de destaque, atingindo os maiores índices,
Editora CRV - Proibida a comercialização

tanto no que diz respeito à faixa de 14 a 17 anos quanto à de 18 a 24 anos.175


Afora o exposto, atingimos a expressiva e inquietante marca de 33,1 milhões
de pessoas percorrendo as trilhas da fome, como detectou, também no ano de
2022, o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da
Pandemia de covid-19 no Brasil. Ainda em harmonia com o citado estudo,
mais da metade da população brasileira (58,7%) convive cotidianamente com
a insegurança alimentar em algum grau, seja leve, moderado ou grave.176
Nessa perspectiva evidencia-se um cenário no qual aqueles que não são sor-
vidos pelo trabalho precarizado, intermitente, informalizado e plataformizado, se
deparam com o descarte, delineando-se, de forma cada vez mais clara, o efetivo
privilégio da servidão – como bem denomina Antunes (2018) – e a “massa dos
descartados”. Consequentemente, significativa parcela sobrante, depauperada,
cujos meios de sobrevivência mediados pelo trabalho são subtraídos, é compe-
lida a buscar alguns caminhos, quais sejam: ações assistenciais em instituições
religiosas e/ou filantrópicas, haja vista o processo crescente de desmonte das
políticas públicas, como mencionamos; apelo à solidariedade social por meio das
ações de mendicância, as quais têm se utilizado cada vez mais das tecnologias
172 Medidas contratendenciais visam impedir a efetivação das prospecções contidas nas leis tendenciais do
desenvolvimento do capital.
173 Referimo-nos ao descarte direto, sem desconsiderar que, indiretamente, a massa sobrante desempenha impor-
tante funcionalidade para a manutenção e reprodução da ordem. Muito embora o seu aumento exponencial possa,
em certa medida e em dadas condições, representar óbices à conservação do modo de produção capitalista.
174 Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php. Acesso em: 18 dez. 2022.
175 Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por amostra-
-de-domicilios-continua-trimestral.html?=&t=series historicas&utm_source=landing&utm_medium=expli-
ca&utm_campaign=desemprego. Acesso em: 18 dez. 2022.
176 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/10/retorno-do-brasil-ao-mapa-da-
-fome-da-onu-preocupa-senadores-e-estudiosos. Acesso em: 18 dez. 2022.
330

de informação e das redes sociais; e inserção nas fileiras de diversas atividades


ilícitas. Por vezes, cabe esclarecer, os caminhos de sobrevivência mencionados
são buscados de modo simultâneo. Em face desta conjuntura gravosa, a ilicitude
parece-nos mostrar-se potencializada. Desponta, de modo progressivo, como
alternativa cabível para milhares de indivíduos, notadamente para a juventude
preta, pobre e periférica, que vem sendo crescentemente recrutada como força
de trabalho, como é o caso do comércio de substâncias ilícitas. Infelizmente,
um itinerário que, não obstante poder representar possibilidades de ocupação
e renda, tende a reservar reiteradamente com parâmetros de classe e raça o
encarceramento e até a morte a estratos da classe trabalhadora.
Tais questões atravessam nossa sociedade, uma vez que o (ultra)neolibera-
lismo amplificou a exploração do trabalho e, portanto, a violação de parâmetros
caros ao mundo humano em prol da valorização do capital. Afirmação que é
irrefutável, pois evidenciada, contundentemente, a partir de 2020, no contexto da

Editora CRV - Proibida a comercialização


pandemia mundial do novo coronavírus. Se o mundo tem enfrentado variantes e
ondas de contaminação múltiplas, e consequentes adoecimentos e mortes, isso
acontece com formas diferentes e desiguais, expressando as condições sociais,
econômicas e políticas de cada país/área/local. Não obstante, populações de
diversas nações foram, igualmente, obrigadas a adquirir inéditos hábitos e, mini-
mamente, estabelecer algumas outras relações coletivas impostas pelo emergente
“novo normal”. É válido lembrar que as nações mais empobrecidas sofreram (e
ainda arcam) com as consequências mais agravantes da crise sociossanitária.
Portanto, um cenário de ampliação das desigualdades, em que os países com
maiores índices de pobreza e de miséria foram os mais atingidos, colocando em
xeque o papel dos Estados nacionais, seus sistemas de saúde, universidades e
centros de pesquisa, dos mercados da indústria farmacêutica etc.177
Como dito, a pandemia ampliou, reproduziu e fortaleceu as mais severas
expressões das desigualdades sociais no planeta, de forma particular em paí-
ses do continente africano, parte da Ásia e, ainda, da América Latina, como
o Brasil. Por aqui, em sintonia com a agenda econômica (ultra)neoliberal da
gestão de Jair Bolsonaro, o país voltou ao mapa da fome e da insegurança
alimentar grave, expandiu a pobreza extremada, aumentou a concentração de
renda e ampliou as diversas formas de violência. Cenário esse que revelou,
ainda mais, o peso do braço penal do Estado junto à população pobre, negra
e periférica no contexto de destruição de importantes, mas ainda tímidas,
políticas sociais ofertadas e implementadas no pós-1988.

177 No final do mês de novembro de 2022, o painel mundial apresentou um pouco mais de 638 milhões de
pessoas infectadas e 6,6 milhões de vidas perdidas. No caso brasileiro, mais de 35 milhões de casos e
quase 690 mil óbitos revelaram o rumo final do governo de Bolsonaro. Estes dados referem-se a 30/11/2022.
Disponível em: https://covid19.who.int/. Acesso em: 30 nov. 2022.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 331

Se nos detivermos a alguns aspectos entre tantos que revelam um cenário


extremamente desfavorável à classe trabalhadora, temos como um quadro nada
animador o que foi apresentado, em outubro de 2022, pela Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). Ela denotou que o país
apresentava um índice de desemprego de 8,7% (9,5 milhões de pessoas desocu-
padas). A informalidade chegou a um patamar de 39% de toda a população ocu-
pada. Empregados sem carteira assinada e, consequentemente, com tendências à
desproteção social e previdenciária, bateram recordes, atingindo 13,4 milhões de
brasileiros.178 A constatação disso no segmento de jovens também trouxe sérias
preocupações: no segundo trimestre de 2022 cerca 23% da população entre 15
a 24 anos não trabalhavam e tampouco estudavam. Os dados expressavam que,
no período, o desemprego atingiu 14,9% dos jovens (CHADE, 2022).
Considerando a realidade de encarceramento de adultos ou aplicação
de medidas ditas “protetivas” direcionadas a adolescentes, numa perspectiva
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crítica e antiproibicionista, um primeiro consenso é de que a atual legislação


de drogas brasileira tem tido peso rotundo nos diversos processos de perda
de liberdade de significativa parcela da classe trabalhadora. A proibição às
drogas, às atividades comerciais dessas mercadorias consideradas ilícitas e
as diversas formas de punição aos próprios usuários e pequenos comerciantes
de substâncias revelam uma guerra contra determinado segmento de pessoas,
pois é atravessada pelos determinantes de classe (trabalhadora e pauperizada),
cor/raça/etnia (negras e pardas), geração (considerável parcela da juventude) e
de território (periféricas, às margens, particularmente nas favelas). Em termos
de encarceramento, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (BRASIL,
2022) afirmava que a população reclusa era um pouco mais de 837 mil pes-
soas (Junho de 2022), distribuídas em diversas prisões, sendo as celas físicas
responsáveis por 79,1% das pessoas enclausuradas.179 Do cômputo geral, os
homens representavam massivos 95,6%. Segundo o órgão gestor, excluindo-se
os dados das celas das polícias judiciárias, batalhões de polícias ou bombeiros
militares, assim como aqueles referentes aos regimes aberto, semiaberto e
de tratamento ambulatorial, aproximadamente 62% das pessoas estavam em

178 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desemprego. 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
explica/desemprego.php. Acesso em: 30 nov. 2022.
179 As celas físicas compõem as estruturas das prisões estaduais, federais ou outras, a exemplo de batalhões
de polícias ou do corpo de bombeiros militares. No Brasil, as penas podem ser cumpridas em três regimes
prisionais: fechado (com confinamento em tempo integral de pessoas sentenciadas ou provisórias); semiaberto
(em que a pena deve ser cumprida em estabelecimentos penais classificados como agrícolas, industriais ou
similares e os reclusos têm o direito de realizar atividades laborativas ou de formação educacional / profissional
externas ao estabelecimento prisional, autorizadas pela autoridade judicial); e aberto (refere-se à condição
do preso em trabalhar ou realizar outra atividade, assim como frequentar cursos de formação durante o dia,
recolhendo-se à noite ao albergue prisional (alojamento coletivo) ou à própria casa. O direito aos regimes
varia conforme o tipo de crime e o tempo de condenação, reincidência, condições de saúde etc.
332

situação de total privação de liberdade (regime fechado, provisório ou medida


de segurança) (BRASIL, 2022). Em celas físicas estaduais, por exemplo, os
jovens entre 18 e 29 anos correspondiam a 42,4% das pessoas presas.
Os crimes de valor patrimonial (furto simples ou qualificado, estelionato
ou receptação) representavam a maior incidência entre os delitos em função
de atividades ilícitas, segundo informações do Departamento Penitenciário
Nacional (id.). Esses crimes expressavam mais de 303 mil infrações. Na
questão das drogas, as ocorrências alcançaram o segundo lugar no período,
com 28,7% das ocorrências (197.649 entre homens e 17.817 em mulheres). É
válido destacar que entre o grupo feminino a questão das drogas é sobrelevada;
ocorre inversão entre as situações de crimes patrimoniais e os relacionados às
drogas: 23,9% e 54,85%, respectivamente. O documento ministerial apontava
também um detalhamento dos crimes hediondos ou equiparados (conforme
a Lei nº 8.072/1990): dos onze quesitos, os delitos relacionados às drogas

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(tráfico, associação para o tráfico e tráfico internacional, respectivos artigos
33, 35 e 40 da Lei de Drogas) representam 58,6%, percentual que aumentam
ao considerarmos o recorte de gênero entre mulheres, chegando a 77,9%,
com significativo crescimento proporcional da população carcerária feminina.
Também, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP,
2022), em 2021, o país apresentava um total de 13 mil adolescentes cum-
prindo medidas socioeducativas restritivas de liberdade. Em 2017, o maior
número dessas medidas relacionava-se a: roubo (38,1%), tráfico e associação
ao tráfico de drogas (26,5%) e homicídio (8,4%).
As práticas consideradas de tráfico relacionam-se, geralmente, à condição
de ilegalidade e vinculam-se às operações mercadejantes consideradas espúrias,
que são punidas em crimes previstos em instrumentos jurídicos nacionais e inter-
nacionais. Negociação, comercialização e lucratividade compõem as estruturas
dos diversos tipos de tráficos ilegais no mundo, seja de pessoas ou de órgãos
ou substâncias humanas, de biodiversidade, assim como armas, veículos, obras
de artes, petróleo etc. O comércio de drogas ilícitas recebe a classificação de
narcotráfico, palavra que deriva de narkoticos (de origem grega) e se assemelha
à condição de dormência e insensibilidade. Podemos discernir narcóticos como
matérias cuja produção, comercialização e usos são proibidos ou, às vezes, per-
mitidos de forma regulada e restrita por meio de prescrição médica e que têm
características psicoativas, podendo agir sobre o sistema nervoso central com
capacidade de alterar as condições da consciência humana por meio de estado de
narcose (analgesia), como os opiáceos morfina e codeína, por exemplo. Porém,
nem todas as substâncias podem ser classificadas como narcóticas, já que outras
recebem conceituações diferenciadas de psicotrópicas ou entorpecentes.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 333

As atividades de traficância apresentam íntima conexão entre proibição,


necessidade de usos e ofertas para consumo. Na condição de mercadorias
lucrativas, essas substâncias atendem a desejos múltiplos, por meio de seu
valor de uso (ao responder a necessidades e satisfações) e de troca (ao garantir
dividendos, partilhas monetárias e outras vantagens financeiras), o que gera, na
afirmativa de Albuquerque (2018), uma verdadeira economia (ilegal) das dro-
gas. Esse circuito mercantilizador se funda na e pela exploração, expropriação
e forte punição da força de trabalho e aos próprios trabalhadores. Não falamos
apenas em formas de inserção em “postos de emprego” desregulamentados,
desprotegidos e ilegais, mas, muitas vezes, em circuitos extremamente violentos
de produção, circulação e consumo, onde a vida, a um preço ínfimo, inúmeras
vezes é o valor a ser pago pelos “funcionários” das narco-organizações.

Assim, para analisar a totalidade do circuito da economia política das


Editora CRV - Proibida a comercialização

drogas, em princípio, se faz necessário compreender o processo produtivo


destas mercadorias na sociedade do capital, atualmente transnacionalizada
e que informa uma complexa divisão social do trabalho, formada por
vários setores interdependentes, todavia portadores de certa autonomia
(ALBUQUERQUE, 2018, p. 53).

Tráfico tem por natureza a atividade econômica, comercial. É negócio:


o grande e lucrativo narcotráfico, na modalidade atacadista, envolve, além de
forte organização empresarial, uma vultosa estrutura e logística de produção
e distribuição das substâncias. Em suas contradições, impõe-se como possi-
bilidade de ocupação e renda, principalmente para uma juventude com traje-
tórias de negação de direitos e que vivencia cotidianamente as mais diversas
expressões de pobreza, miséria e violência. Além disso, explora quantidade
significativa de força de trabalho em atividades diversas, preponderantemente
precárias e violentas.
Um segundo consenso da crítica antiproibicionista é o de que “da proi-
bição nasce o tráfico”.180 Sem qualquer intenção apologética, não se pode
deixar de observar que as substâncias psicoativas compõem a realidade, as
existências e trajetórias humanas, e a proibição fracassou por não conseguir
impedir o circuito da produção, oferta e consumo de drogas. Ao contrário,
promoveu sua extensão: houve e haverá necessidades de usos, sejam eles
considerados lícitos ou não. “Havendo quem queira comprar, sempre haverá
pessoas querendo correr o risco de produzir e vender” (KARAM, 2015, p.
3). Ao mesmo tempo, alcançou determinado “sucesso”, porque movimenta
volumosas e ilegais somas financeiras, alimenta o mercado da indústria bélica
180 Slogan de campanha criada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESEC no ano de 2015.
334

e serve de forte instrumento de controle social da classe trabalhadora. A guerra


às drogas – e não às substâncias em si – é patrocinadora de violências, mortes,
racismo, corrupção e punição aos pobres.
O narcotráfico envolve um grande quadro de pessoas que se relacionam
mais diretamente com as atividades de traficância e apresentam forte inte-
ração de diversos recursos humanos (crianças, jovens e adultos, homens ou
mulheres) que assumem as funções administrativas, comerciais e de apoio. As
narco-organizações contêm cargos, funções, normas, códigos, remunerações e
até, digamos, planos de carreiras e salários, prevendo, inclusive, ascensão.181
Apresentam processos seletivos de pessoal pela via dos “currículos” de tra-
jetórias de vida e contam com o amparo e suporte de alguns agentes estatais
corruptos cooperadores, representantes financeiros responsáveis pela lavagem
de dinheiro e, ainda, consumidores, usuários ou os chamados clientes.182
Apesar de a atual Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006, atualizada em 2019

Editora CRV - Proibida a comercialização


pela Lei nº 13.840 no governo Bolsonaro) não imputar a condição de hediondez
ao crime de tráfico, tem sido uma prática jurídica recorrente no direito penal tal
equiparação, aumentando, consideravelmente, as massas privadas de liberdade.

Uma das questões mais polêmicas da sociedade atual, o tráfico de drogas,


não é um fenômeno recente. O consumo de drogas sempre existiu, desde
os primeiros tempos da humanidade, para fins religiosos, terapêuticos ou
mesmo alimentícios. O problema é a dimensão que o comércio de drogas
atingiu nas últimas décadas e sua importância política e estratégica. Hoje,
no entanto, ‘metáfora da destruição’, ‘um dos ícones do mal’, é a condi-
ção que o tráfico de drogas ocupa na cultura contemporânea. Agrega-se,
dessa forma, a percepção da droga como elemento de ‘destruição’, e de
‘desagregação’; desta maneira, há a necessidade geopolítica de se com-
batê-la militarmente e manter sob controle os países da América Latina e
da África (FEFFERMANN, 2013, p. 55).

Houve abreviado avanço em não punir os usuários com o cerceamento


da liberdade. A normativa jurídica apresenta um grave hiato em termos de

181 Cabe-nos apreciar a repercussão disso em face do ampliado nível de desemprego e das precárias condições
de trabalho e vida em países como o nosso.
182 A lógica empresarial e hierárquica que dá sustentação às organizações do tráfico apresenta, geralmente, os
seguintes recursos humanos: o dono, chefe ou patrão, responsável por todas as operações, incluindo o recebi-
mento dos lucros e suas devidas divisões; e o gerente geral, pessoa de fidúcia responsável por receber e fazer
cumprir as ordens no território. Os “trabalhadores de ponta” assumem funções menos hierárquicas: vapores
(vendedores) e aviões (que buscam e entregam as matérias); mulas (transportadores e abastecedores da “boca
de fumo”); endoladores (encarregados pelo embalamento das substâncias); e o esticas, que realizam os serviços
delivery. Ainda, nas atividades de suporte, há os vigias, campanas, olheiros, radinhos ou sentinelas, responsáveis
pelo monitoramento e alerta nas áreas quando das ações de rivais e/ou policiais; e os soldados, cujas funções
exigem mais coragem e maior exposição, pois assumem características bélicas, de guerra e confronto.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 335

determinar, objetivamente, a diferenciação entre o consumo próprio ou a


condição de comércio ilegal. De preponderância subjetiva, grande parte dos
operadores da segurança pública oferece os elementos que contribuem para
tipificação da realidade flagrada, auxiliando, de um modo geral, na determi-
nação das condenações auferidas pelas autoridades da Justiça. “Ao tentar
diferenciar consumidores de traficantes sem estabelecer critérios objetivos,
a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) aprofundou estereótipos e agravou a cri-
minalização seletiva da juventude negra e periférica” (CESEC, 2021, p. 4).
A onda punitiva que atinge usuários e estreitos comerciantes se
expressa, dentre outros elementos, por meio de violências diversas e reclu-
sões em massa, nutrindo-se, necessariamente, de determinantes de classe e
raça/etnia, como dito. Isso gera e promove, nas palavras de Karam (2013),
uma guerra contra as pessoas consideradas inimigas, notadamente aquelas
pobres e negras – considerável estrato da classe trabalhadora. O racismo,
Editora CRV - Proibida a comercialização

enquanto componente fulcral e estruturante da formação socio-histórica bra-


sileira, organicamente articulado com o patriarcado e o sexismo, é elemento
fundante e reprodutor das desigualdades nas relações étnico-raciais. Ele e
as diversas formas punitivas andam, historicamente, de mãos dadas. Sob a
perspectiva de que “branco é usuário, negro é traficante” (ABRAMOVAY,
2017), o tipificador de identificação e de diferenciação dessas duas condições
baseia-se em fundamentos sociorraciais.
As atividades organizadas de traficância (determinadas como ilícitas)
expressam a violência produzida e imposta, assim como a implantação de
ações assistenciais em determinados territórios, principalmente em fun-
ção da ausência do Estado social nessas localidades. Isso, de certa forma,
promove legitimidade, reconhecimento e fortalecimento das narco-orga-
nizações. A chamada lei do tráfico se nutre do uso forte e frequente de
diversas formas de violência, colaborando ou disputando com o monopólio
punitivo do Estado.
Coerção, violências, mortes e encarceramentos, como expressões da
guerra às drogas, têm sido as ações penais e punitivas com maior ênfase
nos tempos presentes. A proibição e a ilegalidade têm causado numerosos
óbitos e prisões, custeados pelo grande tráfico ou pelas estruturas punitivas e
coercitivas estatais. Massas de mortos ou encarcerados pela guerra às drogas
são fácil e rapidamente repostas aos “necessitados” de trabalho, nas pala-
vras de Karam (2015). Sem que sejam analisados os motivos fundamentais,
os determinantes da questão, seja por grande parte da sociedade, da justiça
criminal ou da segurança pública, aqueles que vendem sua desvalorizada e
expropriada força de trabalho às atividades de traficância são estigmatizados
336

como perigosos inimigos e, por essa característica, devem ser perseguidos,


punidos, segregados e até mesmo, muitas vezes, eliminados.

Os jovens trabalhadores do tráfico de drogas são considerados, com o


empenho da indústria cultural, os responsáveis pela violência, e a um só
tempo, as principais vítimas das mortes violentas nas estatísticas policiais.
Estes jovens são um apêndice, ora indispensáveis, ora descartáveis, nas
conexões internacionais da ‘indústria’ do tráfico de drogas e ocultam os
reais beneficiados com esse que é um dos setores mais lucrativos da eco-
nomia mundial (FEFFERMANN, 2013, p. 59).

As lutas pela legalização, descriminalização ou despenalização das


drogas não podem ser restritas apenas ao consumo próprio, à condição de
usuário, o que já seria grande avanço. A atual Lei de Drogas tem servido de
brecha para um grave punitivismo das massas de trabalhadores quando tipi-

Editora CRV - Proibida a comercialização


ficados em agentes de traficância, sendo vítimas de reclusão ou submetidos
a volumosos pagamentos de coimas.
É preciso entender as contradições expressas nas atividades que envol-
vem as substâncias consideradas ilícitas numa perspectiva crítica e antiproi-
bicionista. A legalização e a regulação das atividades de traficância seriam
o segundo grande passo, pois contribuiriam para minar a chamada guerra às
drogas, apesar de grandes e complexos outros desafios para além das ativida-
des mercadejantes, como o classismo e o racismo. Redefiniriam, em termos
de saúde, pela via da fiscalização, a qualidade da oferta e atenção a eventuais
experiências abusivas, principalmente pelas estratégias de redução de danos.
Outros empregos formais e menos desprotegidos seriam custeados. Mais
volumes de recursos estariam sendo criados, geridos e destinados aos fundos
públicos, reservados às políticas de proteção que se conectam com a questão
das drogas, tais como saúde mental e assistência social. Em relação ao mer-
cado, assim como ele lucra com as atividades ilegais, transferiria grande parte
de ganhos ilícitos e ampliaria sua rentabilidade com as mercadorias reguladas.
Esse é o movimento contraditório da realidade sobre as drogas.
Por fim, aludimos que os argumentos desenvolvidos ao longo deste texto,
distantes de qualquer apologia às ilicitudes, objetivou permitir captarmos a
necessidade de identificar-se o possível vínculo entre elas e as condições de
trabalho e vida em dada sociedade. Isso porque, entendendo o trabalho como
atividade vital à existência humana, não podemos deixar de apreciá-lo na
atualidade capitalista, em que o tráfico ilegal (particularmente o de substâncias
psicoativas), caracterizado pela natureza de atividade econômica, comercial,
é um negócio lucrativo, que, na modalidade atacadista, envolve, além de
forte organização empresarial, uma vultosa estrutura e logística de produção
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 337

e distribuição das substâncias. E, em suas contradições, tal atividade impõe-


-se como possibilidade de ocupação e renda na tentativa de sobrevivência de
significativo contingente da força de trabalho não sorvida – descartada – pelo
mercado. Isso é considerável em países sob precárias condições de trabalho
e alarmante índice de desemprego como o nosso. Especialmente, se focali-
zarmos uma faixa da nossa juventude que em grande parte experimenta um
frágil sentimento de pertencimento social, haja vista a significativa trajetória
de negação de seus direitos. Uma juventude que, simultânea e paradoxalmente,
é alvo, ainda, do estímulo ao consumo ampliado e vítima da ideologia que
identifica a riqueza humana como acúmulo de bens materiais. Portanto, referi-
mo-nos a um segmento populacional que vivencia cotidianamente as agruras
da desigualdade social e que, se partirmos da violação do direito básico de
trabalho apenas, poderemos verificar que vivencia agruras que se mostram
em diversas expressões de opressões e humilhações.
Editora CRV - Proibida a comercialização
338

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PARTE 3
A PRECARIZAÇÃO DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS E SUA INCIDÊNCIA SOBRE
O TRABALHO, OS DIREITOS SOCIAIS
E A REPRODUÇÃO DAS FRAÇÕES
DA CLASSE TRABALHADORA
Editora CRV - Proibida a comercialização
TRABALHO E CRISE NO CONTEXTO
DAS CONTRARREFORMAS
BRASILEIRAS NO SÉCULO XXI183
Inez Stampa
Tatiane Valéria Cardoso dos Santos
DOI: 10.24824/978652515286.8.343-364

Em jantar com lideranças da extrema-direita nos Estados Unidos da


América (EUA), em 17 de março de 2019, o então presidente Bolsonaro
(2019-2022) anunciava:
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Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta da esquerda


[...]. O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir
coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.
Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva
para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito
feliz (FORUM, 2019).

A narrativa demonstra a clara direção política, econômica e social que


se efetivou em seu mandato. O projeto desenhado pelo seu ministro da Eco-
nomia184, Paulo Guedes, tinha por fundamento o ultraneoliberalismo, encam-
pando uma ampla agenda de desmonte do país, ceifando qualquer horizonte
de um Estado social e retalhando a Constituição Federal.
Dando celeridade às implantações dessa ofensiva da matriz Guedes-Bol-
sonaro, o prelúdio daquele encontro foi materializado pelo governo federal,
que encaminhou ao Congresso Nacional, na primeira semana de novembro
de 2019, seis conjuntos de medidas que davam continuidade ao leque das

183 O presente texto traz resultados preliminares de pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da PUC-Rio no âmbito do Grupo de Pesquisa Trabalho, Políticas Públicas e Serviço
Social (TRAPPUS).
184 O Ministério da Economia, criado no governo Bolsonaro, reunia funções dos extintos ministérios da Fazenda, do
Planejamento, da Indústria, Comércio Exterior e Serviços e do Trabalho, que foram por ele absorvidas. Paulo
Guedes, nos anos 1980, depois de seu doutoramento em Economia pela Universidade de Chicago (EUA),
foi recrutado por Selume, ex-diretor de Orçamento da ditadura de Pinochet (1973-1990), que então dirigia a
Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile. Guedes afirmava pretender realizar no Brasil as
reformas que foram feitas no Chile de Pinochet: autonomia do Banco Central, câmbio flutuante, equilíbrio fiscal
(equilíbrio entre receitas e despesas públicas) e previdência social no regime de capitalização (MONTES, 2018).
344

contrarreformas trabalhistas no país185. Nesse horizonte, se, em 2017, sob


a gestão Temer (2016-2018), dissolvera-se a legislação trabalhista e a vida
social, com claro favorecimento ao capital produtivo e financeiro, liberalizando
de modo irrestrito a terceirização, não resta dúvida que as mais atuais medidas
de contrarreformas adotadas, incluindo aí a da previdência social186, consoli-
dam a intensificação da precarização social no país, compreendida através dos
processos de vulnerabilidade das formas de inserção e desigualdades sociais;
intensificação do trabalho e terceirização; insegurança e saúde no trabalho;
perdas das identidades individual e coletiva; fragilização da organização dos
trabalhadores e descarte dos direitos do trabalho (DRUCK, 2011).
Some-se a este quadro terrível a Emenda Constitucional nº 95, de 15 de
dezembro de 2016, aprovada a toque de caixa no governo de Michel Temer.
Mais conhecida como a antiga PEC da Morte, pois estabeleceu uma legislação
que altera o regime fiscal e tem como principal foco o congelamento, por 20

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anos, dos gastos na área da educação e da saúde, causando vários impactos,
principalmente no que concerne à insuficiência de recursos para o funciona-
mento e qualidade da educação pública. Essa medida impôs limites, indepen-
dente do aumento do Produto Interno Bruto (PIB). A partir disso, o orçamento
da União, desde 2017 até 2036, não pode superar o valor do ano antecedente.
Contudo, apesar dessa profusão de ataques contra o direito do e ao traba-
lho ter sido consolidada nos dias atuais, se lançarmos um olhar retrospectivo
no tempo histórico, identificaremos que o uso/intermediação do trabalho, pela
via da escravidão-mercadoria, está nos anais dos acontecimentos e sempre
resultou em sequelas humanas e sociais (SCHIAVONE, 2005).
Seja anterior, no pós 1888 ou na conjuntura recente brasileira, o que a rea-
lidade nos impõe é a compreensão do processo histórico de desenvolvimento

185 As medidas adotadas incluem três Propostas de Emenda à Constituição (PEC). A primeira, PEC n° 188/2019,
nomeada de PEC do Pacto Federativo, se centrava em um novo regime fiscal que tinha como destaque a
soma das verbas destinadas para a saúde e a educação. A segunda, a PEC da Emergência Fiscal (PEC nº
186/2019, que visava produzir gatilhos de contenção de gastos públicos para a União, estados e municípios
e, também, considerava a redistribuição dos recursos do pré-sal. A terceira, a PEC dos Fundos Públicos
(PEC 187/2019), que propunha a reavaliação de mais de 280 fundos públicos. Nesse bojo, adicionava-se a
reforma tributária, a reforma administrativa e as privatizações. As três PEC, juntas, formavam o Plano Mais
Brasil (elaborado pela equipe econômica do governo, as propostas pretendiam reduzir gastos obrigatórios,
revisar fundos públicos e alterar as regras do Pacto Federativo). Dessa maneira, o Plano Mais Brasil dialo-
gava com as reformas feitas anteriormente, como as reformas trabalhista e da Previdência. Fonte: Agência
Senado. Fonte: Revista Carta Capital, matéria de 03/11/2019. Disponível em: https://www.cartacapital.
com.br/economia/guedes-defende-fim-da-estabilidade-dos-servidores-em-reforma-profunda/. Acesso em:
3 dez. 2022.
186 Emenda Constitucional 103/2019, de 12 de novembro de 2019 - Altera o sistema de previdência social e
estabelece regras de transição e disposições transitórias. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/emendas/emc/emc103.htm. Acesso em: 11 dez. 2022.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 345

nacional, cujas marcas se assentam na escravidão, em práticas autoritárias,


no patrimonialismo e em diferentes formas que se refuncionalizam com a
promessa de modernidade urbano-industrial, pois esses elementos mesclam-
-se e permanecem nas sociedades capitalistas, sobretudo nas periféricas,
em que se incluem novos mecanismos de espoliação que dão sustentação à
acumulação capitalista.
Do regime escravista ao modo de produção capitalista (em todas as suas
fases históricas), a espoliação sempre foi elemento central, resguardadas suas
particularidades. Na atualidade, sob a égide do capital financeiro, a severidade
e a violência sobre a humanidade são legitimadas, no suposto regime político
democrático, por intermédio de regulamentações que autorizam as inúmeras
formas de violações de direitos.
Partindo da hipótese de que, em consequência das contrarreformas, os
trabalhadores estarão submetidos a mais inseguranças do mercado e à pre-
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carização do trabalho, e que as reformas inibem as perspectivas de futuro


da classe trabalhadora, este capítulo examina as transformações recentes na
legislação trabalhista brasileira, tendo como recorte temporal os governos
Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019-2022) e as duras medidas adotadas
contra os trabalhadores, bem como a celeridade da agenda de suas contrarre-
formas e degradação do trabalho.
Além de revisão bibliográfica sobre o assunto, a elaboração do traba-
lho fundamentou-se em pesquisa e análise de dados secundários oriundos
do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(Dieese), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Centro
de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual
de Campinas (Cesit) e do Ministério Público do Trabalho (MPT), bem como
de pesquisa documental sobre a legislação atual atinente ao tema.

Trabalho e correspondência da relação econômica e jurídica

Nos últimos anos do século XX presenciou-se a substituição e/ou modifi-


cação do padrão produtivo taylorista e fordista por formas produtivas flexibiliza-
das, sobretudo a chamada acumulação flexível e o modelo japonês (toyotismo),
rompendo-se com o modelo até então vigente de regulação social que sustentou
o chamado bem-estar social, sob a premissa do neoliberalismo (HARVEY, 2011;
ANTUNES, 2013). Institui-se a cultura do Estado de exceção, que se afirma de
modo a atender os interesses do mercado financeiro, frustrando direitos e trans-
formando qualquer projeção futura em proveito dos trabalhadores numa utopia.
Os documentos públicos mostram que as iniciativas nacionais para fle-
xibilização das normativas e decomposição dos direitos sociais são datados
346

do final da década de 1990, período no qual se consolida o projeto neoliberal


no país, e culmina na origem do Projeto de Lei (PL) nº 4.302/1998187, cujo
objetivo era o de modificar a Lei nº 6.019/1974, que dispõe sobre o traba-
lho temporário nas empresas urbanas. Precisamente, em 26 de novembro
de 2016, examina-se a celeridade da retomada do referido projeto de lei188
que havia sido retirado de pauta, em que os poderes Executivo e Legislativo
encaminharam várias propostas para modificação das relações de trabalho no
país. Nessa direção, com discurso enganoso proferido pelos representantes do
governo Temer, novas regras foram implementadas, acarretando mudanças
contundentes na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), tendo como pano
de fundo a voracidade capitalista para flexibilizar os regimes laborais.
A aprovação do PL nº 4.302/1998, em 22 de março de 2017, materiali-
zou-se na Lei nº 13.429/2017, que, seguramente, ocorreu “sem o necessário
debate no Congresso Nacional, [em que] a reforma trabalhista criou modelos

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anômalos de contratação que, na verdade, legalizam fraudes praticadas há
décadas no país” (FLEURY, 2017, p. 7), com a adoção de ampla terceirização
e trabalho temporário.
Enquanto no trabalho temporário pactua-se o fornecimento de trabalha-
dores que ficarão por curtos períodos subordinados ao tomador de serviços,
na terceirização contratam-se serviços especializados, executados autonoma-
mente por empresa prestadora. A terceirização vinha sendo regrada, de forma
geral, pela Súmula nº 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST)189; e a
contratação temporária apenas pela Lei nº 6.019/1974.
Recorde-se que o padrão do “mundo do trabalho” (IANNI, 1994;
STAMPA, 2012), nos últimos dois séculos, era o de correspondência da relação
econômica com a jurídica. A relação econômica formada no trabalho por conta
alheia tem como elemento mais importante o fato de que o valor econômico
do serviço realizado por aquele que vende sua força de trabalho é aproveitado
por quem recebe a atividade. A garantia de que haverá retribuição ocorre pelo
potencial econômico do serviço realizado. O tomador do trabalho aproveita o

187 Dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de trabalho temporário e na empresa de prestação de
serviços a terceiros, e dá outras providências. Nova ementa do substitutivo: Altera dispositivos da Lei nº
6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras
providências e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros.
Transformado na Lei Ordinária 13.429/2017. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=20794. Acesso em: 17 dez. 2022.
188 O Projeto de Lei nº 4.302/1998 foi encaminhado ao Congresso pelo então presidente Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002), e, após tramitação, foi retirado da pauta em 19 de agosto de 2008 pelo ex-presidente
Lula da Silva (2003-2010), e atual presidente da República em seu terceiro mandato.
189 Contrato de prestação de serviços. Legalidade (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à
redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011. Disponível em: http://www3.tst.jus.br/
jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_301_350.html#SUM-331. Acesso em: 10 jan. 2023.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 347

serviço e parte do resultado econômico é repassada ao trabalhador na forma


de salário. A essa relação econômica corresponde uma relação jurídica: a do
emprego, instrumentalizada pelo contrato de trabalho.
Terceirização e trabalho temporário rompem com essa imbricação e dis-
sociam a relação econômica de trabalho da relação jurídica que lhe seria cor-
respondente. Esta última não é mais estabelecida com o tomador de trabalho,
mas se utiliza de uma empresa atravessadora e o contrato com o tomador de
serviços passa, então, de processo trabalhista a processo civil.
Essa desassociação diminui as garantias de que o trabalho oferecido será
contraprestado com o salário prometido. Por consequência, dois princípios
basilares foram fixados pela jurisprudência nacional: o tomador de serviços é
responsabilizado por descumprimentos do empregador (empresa de trabalho
temporário ou terceirizado) e, como forma de manter a regra de correspon-
dência entre relação econômica e jurídica e, assim, resguardar garantias de
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pagamento pelo serviço prestado, limita-se a terceirização a atividades meio


e fixam-se condições restritivas de trabalho temporário. Contudo, a Lei nº
13.429/2017 não assegura nenhum dos dois pontos destacados, ou seja, nem
a regra de responsabilidade do tomador nem a limitação de autorização.
Diversos estudos demonstram que os trabalhadores terceirizados e tem-
porários recebem salários menores (CESIT, 2017; DIEESE, 2017a; 2017b;
2017c), ficam mais tempo desempregados e têm maiores índices de acidentes
laborais. A Lei nº 13.429/2017 tende a ampliar esse quadro e não oferece melho-
res condições de trabalho, nem de garantias à satisfação dos históricos des-
cumprimentos causados pelas empresas de trabalho temporário e terceirizado.
Também não há perspectivas de oferecimento de maior segurança
jurídica em curto ou médio prazo. A lei inaugura novos conceitos inde-
terminados e não esclarece a exata extensão de direitos assegurados aos
já precarizados trabalhadores terceirizados e temporários em relação aos
empregados diretos do tomador de serviços. Muito menos apresenta solução
prática para os milhares de contratos em curso. O ambiente de insegurança
é, portanto, reforçado.
Ao se reconhecer que a aprovação da Lei nº 13.429/2017 não se mostrava
clara quanto à terceirização das atividades principais, em tempo recorde,
próximo a atingir quatro meses de sua vigência, consolidou-se a desregu-
lamentação do trabalho, com a aprovação da Lei nº 13.467, de 13 de julho
de 2017, a qual alterou vários dispositivos da CLT, da Lei nº 6.019/1974
(trabalho temporário); da Lei nº 8.036/1990 (Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço) e da Lei nº 8.212/1991 (Seguridade Social e Plano de Custeio).
Na hipótese de que a Lei nº 13.429/2017 poderia ser compreendida como de
alcance restrito, não se pode duvidar que a aprovação da Lei nº 13.467/2017
348

chancela a disseminação da terceirização no Brasil e traz a intensificação da


precarização social do trabalho (SANTOS; STAMPA, 2019).
Antes da atual contrarreforma, a terceirização restringia-se no país aos
serviços de vigilância e limpeza e às funções não alusivas às atividades fim
das empresas. Daí se deduz os motivos do capital em transformá-la em lei,
uma vez que bastaria a maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Fede-
ral (STF) mudar de ideia para que a referida Súmula n° 331, com restrições
quanto à terceirização, fosse revogada.
Na prática, propõe-se a regulamentação na contratação dos serviços
terceirizados no Brasil, liberando a terceirização de forma ilimitada, com
a instituição do contrato de trabalho intermitente, parcial, teletrabalho e a
prevalência do negociado sobre o legislado, com ampla diluição dos direitos
reconhecidos e restrição do acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho,
entre outros aspectos (BRAGA; VILAÇA; BRANDÃO, 2017).

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O legislado é composto primordialmente pelos direitos trabalhistas pre-
vistos nos artigos 7º ao 11º da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) e na
CLT, que é a principal legislação que regula o trabalho subordinado, isto é,
aquele em que o trabalhador executa o serviço sob as ordens do patrão e é
por ele remunerado.
O negociado se constitui nos Acordos Coletivos de Trabalho (ACT) ou
Convenções Coletivas de Trabalho (CCT), que podem ser firmados pelos sin-
dicatos das categorias dos trabalhadores com uma ou mais empresas (ACT) ou
entre os sindicatos das categorias de trabalhadores e os sindicatos das categorias
econômicas das empresas (CCT). Os primeiros aplicam-se apenas aos contratos
de trabalho firmados entre os empregados e as empresas signatárias. Já as CCTs
aplicam-se a todos os contratos de trabalho firmados entre os trabalhadores e
as empresas no âmbito de representação das entidades sindicais signatárias.
Analisamos que o patamar alcançado no ordenamento jurídico brasi-
leiro imprimiu, até então, o legislado a partir dos direitos trabalhistas inscri-
tos na CF/1988 e na CLT, enquanto o negociado se assentaria nos ACTs ou
CCTs. Vejamos:

Os primeiros [ACTs] aplicam-se apenas aos contratos de trabalho firmados


entre os empregados e as empresas signatárias. Já as CCTs aplicam-se a
todos os contratos de trabalho firmados entre os trabalhadores e as empre-
sas, que estejam no âmbito de representação das entidades sindicais signa-
tárias. Os ACTs e CCTs são normas coletivas de trabalho, juridicamente
reconhecidas no texto constitucional. Estas normas podem estipular outras
condições de trabalho, que também regerão os contratos de trabalho por
elas abrangidos (TEIXEIRA; KALIL, 2016, p. 1).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 349

É nessa processualidade que se instaura o retrocesso, pois o negociado


sobre o legislado debruça-se em raízes históricas em torno da ideia de um
suposto trabalho livre, tempo no qual não se tinha inventado o direito do
trabalho (período anterior à segunda metade do século XIX). Remonta dessa
época a livre negociação sem intromissão do poder público, mascarando as
relações de trabalho existentes.

Crise contemporânea no primeiro quartel do século XXI no Brasil

Neste ponto da reflexão é importante demarcar que nos parece imperti-


nente tratar o tema sem referi-lo ao conjunto complexo das relações sociais
e às contradições existentes em nossa sociedade.
Não há dúvida de que o período é de crise flagrante, onde velhas relações
não se esgotaram ou não morreram e as novas ainda não puderam nascer.
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Nestas circunstâncias, lembra-nos Gramsci (2001), o risco é o do surgimento


dos mais diversos comportamentos mórbidos. Esta morbidez explicita-se
atualmente tanto no processo material concreto da recomposição capitalista
sob a lógica da mundialização190 excludente, quanto pela superestrutura ideo-
lógica do ultraneoliberalismo e do conservadorismo que lhe dá sustentação.
Aqui cabe situar o aprofundamento da crise de 2008, que levou o capitalismo
neoliberal financeirizado a um novo patamar que permitiu, na década seguinte,
a formação de um novo bloco histórico para sua legitimação e que teve como
consequência a ascensão de governos neofascistas em vários países do mundo.
E o neoliberalismo é um projeto político-econômico que pode se articu-
lar a perspectivas diversas, inclusive progressistas, mantendo intocados seus
pressupostos. A partir da década de 2010, a configuração hegemônica do
neoliberalismo passa a ter uma face reacionária, racista e misógina.
No Brasil, essa virada se inicia com o golpe parlamentar, jurídico e midiá-
tico de 2016 (DEMIER, 2017), que derruba o governo eleito de Dilma Roussef
(2011-2016). Ainda que tenha garantido transferências do fundo público para
o capital financeiro e a continuidade das contrarreformas redutoras de direitos
sociais nas décadas anteriores, as exigências impostas pelo capital, como con-
sequências mundiais da crise de 2008, levaram ao aprofundamento dos pres-
supostos neoliberais, passando ao que denominamos de ultraneoliberalismo.

190 A denominação mundialização do capital está sendo aqui utilizada porque este conceito, cunhado por Ches-
nais (1996), expressa de forma clara a nova etapa de internacionalização do capitalismo, ainda em curso.
Acreditamos que o termo globalização, muito difundido entre nós, é um termo carregado de ideologia, com
certo caráter apologético, com pouco ou nenhum rigor conceitual, o que o torna um mito do nosso tempo.
Por essa razão, ao invés de globalização, adotamos o termo mundialização do capital e nova ordem do
capital, de acordo com Chesnais (1996) e Harvey (1998).
350

Dardot e Laval (2019) não utilizam o termo ultraneoliberalismo, mas


concordam que o neoliberalismo se ressignifica e se aprofunda após a crise
de 2008. Os marcos políticos dessa virada são, para os autores, a eleição de
Trump, nos EUA, em 2016, o Brexit191 e a eleição de Bolsonaro, no Brasil, em
2018. O neoliberalismo não só sobrevive, mas se radicaliza, descartando cada
vez mais os pressupostos da democracia liberal e dos direitos sociais, ainda
que mínimos. Para os referidos autores, isso ocorre porque o neoliberalismo
se tornou um sistema mundial de poder que se alimenta das próprias crises
econômicas e sociais que gera, porque as respostas a essas crises reforçam
e aprofundam indefinidamente sua lógica, bloqueando qualquer alternativa.
Dessa forma, nessa fase, que chamam de “novo neoliberalismo”, o sistema
se aproveita dos questionamentos à democracia liberal, gerados pela própria
razão neoliberal, e se apropria das tendências nacionalistas, autoritárias, xenó-
fobas assumindo um caráter hiperautoritário para impor a lógica do capital

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sobre a sociedade.
Em meio a tudo isso, vive-se também mais uma enorme contradição, uma
vez que apesar da existência de grande capacidade científica e técnica para satis-
fazer as necessidades humanas, dois terços da população mundial encontram-se
sem condições de atender as mínimas necessidades biológicas, sendo prisioneiras
de empregos precários e, em outros casos, sofrendo com o desemprego e com o
subemprego. A medonha realidade estrutural do desemprego, inclusive causado
por avanços tecnológicos direcionados a esse fim, paradoxalmente, grassa a olhos
vistos, além da crise aprofundada pela pandemia da covid-19 desde o início de
2020. Nesse contexto de aprofundamento da crise endêmica do capital e da crise
pandêmica (LOLE; STAMPA; GOMES, 2020), o que se observou, paradoxal-
mente, foi mais perda dos direitos sociais e o avanço da barbárie.
Isso torna imprescindível buscar compreender como o receituário neo-
liberal se expressa nos planos ideológico, econômico e social, cultural e éti-
co-político, dadas as suas consequências para a questão do trabalho e dos
direitos dos trabalhadores no país (SANTANA; ANTUNES; FRAGA, 2020).
No caso do Brasil, onde não houve um Estado de Bem-Estar Social para
ser desmontado, e onde a efetividade dos direitos sociais é residual, a situação
se apresenta de forma mais grave, pois as transformações e medidas em curso
para a flexibilização do capital estão se dando e agravando ainda mais os
problemas crônicos resultantes da modernização conservadora operada pela
ditadura do grande capital (IANNI, 1981; FERNANDES, 2005).

191 A saída do Reino Unido da União Europeia (iniciada em 2016 e efetivada em 2020), foi apelidada de Brexit,
palavra originada na língua inglesa resultante da junção de British (britânico) e exit (saída).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 351

Aqui cabe esclarecer um ponto importante. Ao fazermos referência à


sociedade capitalista, falamos da sociabilidade cujo objetivo fundamental
é produzir para acumular, concentrar e centralizar capital (MARX, 2013).
Contudo, exatamente por ser um modo de produção voltado para o lucro e
este implicar a exclusão de concorrentes e a exploração dos trabalhadores —
no caso do Brasil, da superexploração, pela nossa condição de capitalismo
dependente (MARINI, 2000) —, o capitalismo é um sistema que tende a cri-
ses cada vez mais profundas. E crise, para o capital, resulta da incapacidade
de o sistema fazer circular, isto é, consumir as mercadorias produzidas. Por
essa razão, por mais paradoxal que pareça, crise para o capital resulta não
de escassez de mercadorias, mas sim da superprodução (MANDEL, 1985).
Também, por isso, o capital precisa expandir-se, buscar mercados externos
— parte da explicação da nossa condição de dependência.
Vista desse modo, a crise não é algo passageiro, mas elemento estrutural
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do capitalismo. As crises se manifestam ciclicamente (MANDEL, 1985) e a


manutenção do sistema demanda formas para o seu enfrentamento. Ou seja, há
nos períodos de crise uma recomposição dos interesses capitalistas e da pró-
pria classe trabalhadora na luta por seus direitos. Tomando como referência a
análise feita por Hobsbawm (1995), verifica-se que chegamos ao fim do século
XX enfrentando o velho dilema do seu início: socialismo ou barbárie. E, neste
início de século XXI, a barbárie já mostra, despudoradamente, as suas garras.
Netto já vislumbrava, desde o início da década de 1990, que a crise con-
temporânea seguramente derivaria na barbárie se o movimento do capital fosse
liberado, como pretendia a programática neoliberal de regulações submetidas
ao jogo da democracia política. “É plausível um cenário tal de cronificação da
crise que torne a barbarização da vida social um dado banal da cotidianidade,
com implicações muito pouco imagináveis para o desenvolvimento humano
genérico da sociedade” (HOBSBAWM, 1993, p. 83-84).
Para entender melhor a saída perversa sob a sustentação do ideário neo-
liberal, é preciso compreender que o que se vive é um retrocesso em relação
às saídas que o capitalismo encontrou para a crise de 1929, isto é, a forma
de regulação social baseada no keynesianismo. No caso do Brasil, o Estado
de Bem-Estar Social não se concretizou. Todavia, com os acontecimentos
ocorridos nos anos 1980192, instalou-se uma situação de positivação de mais
direitos sociais, o que durou muito pouco, pois logo em seguida deflagrou-se
o processo de revisão constitucional e teve início a revogação dos direitos
conquistados (ainda que restritos diante do que deveria ter sido contemplado),
em nome da crise fiscal, da globalização e da reestruturação produtiva. A

192 Referimo-nos aos chamados novos movimentos sociais, ao sindicalismo combativo, à presença significativa
de partidos de esquerda e à promulgação da Constituição Federal de 1988.
352

retirada de direitos avançou ao longo dos anos e, hoje, a Constituição Federal


de 1988 se encontra bastante remendada pelos inúmeros Projetos de Emenda
Constitucional (PEC), Projetos de Lei (PL) e Emendas Constitucionais (EC),
que se tornaram muito comuns em tempos de contrarreforma trabalhista e da
previdência, por exemplo.
Os resultados revelam a “destruição das frágeis conquistas democráti-
cas consignadas na Constituição, praticada pelo Estado ou com o seu aval”
(PEREIRA, 2012, p.740), colocando em xeque duas importantes estratégias
progressistas que envolveram a reivindicação de um orçamento próprio para a
educação e para a seguridade social (Como buscamos indicar com a menção
à PEC da Morte), assim como a garantia do controle democrático sobre os
investimentos nas políticas sociais, e que evitariam desvios para a área econô-
mica. Ou seja, as contrarreformas trabalhista193 e da previdência194, associadas
ao ajuste do Brasil ao capitalismo financeirizado195 no contexto da crise, vêm

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acarretando, dentre outros, o desmonte da educação e da seguridade social
(STAMPA; LOLE, 2018).
Embora os governos petistas (2003-2016) tenham dado continuidade
à política macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), as
forças que protagonizaram o ajuste na década de 1990 representam a “minoria
prepotente” (IANNI, 1971, p. 10), cujo fundamento é o liberalismo conser-
vador, que desmonta a face social do Estado e amplia garantias ao grande
capital. Os ajustes efetuados na primeira década dos 2000 se diferenciam dos
da década anterior sob vários aspectos, entre os quais destacamos os programas
sociais, lembrando Brecht: “Para quem tem boa posição, falar de comida é
coisa baixa. É compreensível: já que eles comeram”196.
Os governos petistas não venderam a nação e trouxeram avanços para o
plano social, sobretudo para os miseráveis, mas as estruturas que produzem a
desigualdade não foram rompidas. E a “minoria prepotente” retornou com o seu
furor renovado, sob as bênçãos do governo golpista de Temer (2016-2018) e do
ultraneoliberal Bolsonaro (2019-2022), protegida por um Judiciário com forte sen-
timento de casta. A crise política e econômica e a ofensiva sobre os trabalhadores
se agravam, com cortes cada vez mais profundos nas políticas públicas e sociais.

193 Da qual a Lei 13.467 de 2017 é exemplo claro. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho e as Leis nº
6.019 de 1974, 8.036 de 1990, e 8.212 de 1991, para adequar a legislação às novas relações de trabalho.
194 Emenda Constitucional (EC) nº 103/2019, que altera o sistema de Previdência Social e estabelece regras
de transição e disposições transitórias
195 Aqui se destaca a EC nº 95/2016, que instituiu o novo regime fiscal que congela as despesas do governo
federal, por até 20 anos, impactando diretamente a educação e a seguridade social. Esta medida é exemplo
de como a lógica fiscal adquire preponderância sobre os direitos sociais. A política de austeridade não toca
nos interesses do capital, ao contrário, os preservam e os garantem no âmbito do Estado.
196 Die Hauspostille (BRECHT, 1927).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 353

As contrarreformas e a ressignificação do trabalho

A contrarreforma trabalhista, em grande parte formulada pelos corpos técni-


cos de diferentes entidades patronais e instituições financeiras, teve o fundamento
de que ela favoreceria - para reduzir a alegada excessiva rigidez do mercado
de trabalho nacional - reduzir os custos laborais, aumentar a produtividade das
empresas e, dessa maneira, contribuir para o crescimento do emprego e, tão logo,
para a reversão do quadro de degradação do mercado de trabalho brasileiro.
Segundo seus idealizadores e formuladores, as inovações197 jurídicas
sobre o mundo do trabalho seriam a via que conduziria à competitividade, à
estabilidade e ao desenvolvimento econômico nacional e, portanto, necessá-
rias e salutares para a sobrevivência das grandes empresas e para fortalecer
o empreendedorismo, o setor de serviços e combater o desemprego.
Contraditoriamente, mesmo com o bordão de nova e moderna CLT, em
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que deixaria para trás a falta de conexão com a realidade atual devido sua
obsoletude, ao contar com 74 anos de história, deixando um rastro de antigui-
dade nas marcas de um país agrário, recupera-se o mito do favor na relação
entre empregador e trabalhador, centrado naquele pensamento escravocrata
da “minoria prepotente”.
Assim, também reconhecemos que o processo de desconstrução da tela
de proteção social do trabalho (BIAVASCHI, 2016, p. 75) atende a interesses
distintos centrados nos conceitos e normativas ideológicas, pois “uma das
premissas fundamentais da regulamentação jurídica é, portanto, o antago-
nismo dos interesses privados” (PACHUKANIS, 2017, p. 94), é o que busca
demonstrar o quadro nº 1.

Quadro nº 1 – Comparativo das principais alterações a


partir da contrarreforma trabalhista de 2017
Pontos Como era antes Como ficou
A legislação se sobrepõe aos
As negociações poderão se sobrepor à
acordos coletivos firmados entre
legislação mesmo que reduzam direitos
sindicatos, trabalhadores e
Acordos e Leis previstos na CLT. A lei proíbe redução de
empregadores. As negociações só
direitos por acordo do salário mínimo, férias
valem mais que a lei quando são
proporcionais, 13º salário e FGTS.
mais benéficas aos empregados.

197 O conceito de inovação (stricto sensu) refere-se à ação ou efeito de inovar; aquilo que é novo e foi empregado
pelos governos Temer e Bolsonaro para defender que as flexibilizações das relações de trabalho respondem
à necessidade social decorrente do desenvolvimento econômico. No entanto, compreendemos que essas
inovações legislativas ou normativas devam ocorrer no interesse dos trabalhadores, pois, do contrário, o
que se efetiva são retrocessos sociais no direito humano do trabalho.
354

Pontos Como era antes Como ficou


A lei dificultou muito o acesso gratuito à Justiça
do Trabalho. Só tem direito quem ganha menos
Quem recebe menos de dois salários-
de 40% do teto do INSS (R$ 2,2 mil, atualmente).
mínimos ou declara não ter condições
Mas, mesmo que tenha o benefício da gratuidade,
Acesso à justiça de pagar à custa tem direito à justiça
deverá pagar honorários periciais em caso
gratuita mesmo que a decisão judicial
de derrota e honorários advocatícios, sempre
não seja favorável ao trabalhador.
que tiver obtido na justiça créditos capazes de
suportar a despesa, mesmo que em outra ação.
Passam a ser legais contratos por
Não é previsto na CLT, que estabelece
Contrato zero hora horas de serviço sem obrigatoriedade
apenas o regime parcial.
de jornada mínima de trabalho.
Empregadas gestantes só deverão ser
afastadas de atividades com grau máximo de
A CLT determina o afastamento
insalubridade. Podem apresentar atestado
da empregada gestante ou
Gestante e lactante médico para continuar em locais insalubres
lactante de quaisquer atividades,
de grau médio e mínimo. Lactantes deverão

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operações ou locais insalubres.
apresentar atestado médico que recomende o
afastamento de qualquer atividade insalubre.
O tempo de deslocamento para o
trabalho (horas in itinere) é computado O tempo de deslocamento para ir
Horas in itinere como hora trabalhada quando o local ou voltar do trabalho não será mais
de trabalho é de difícil acesso ou considerado como horas trabalhadas.
não servido por transporte público.
A lei determina a prevalência do contrato
individual de trabalho sobre a lei ou sobre
Não há previsão de negociação
norma coletiva caso o empregado tenha
Trabalhador diretamente com o empregador de
diploma de nível superior e receba salário
hipersuficiente contrato individual de trabalho que
igual ou superior a duas vezes o teto do
vise reduzir direitos previstos na CLT.
Regime Geral de Previdência Social (RGPS),
atualmente fixado em R$5.531,00.
Prêmios e ajuda de custos pagos,
habitualmente, pelo empregador O empregador não precisa mais incorporar
eram contabilizados como parte do o prêmio ao salário e, com isso, o prêmio
Prêmio no salário
salário e incidiam sobre encargos não será considerado tanto para encargos,
previdenciários e também no cálculo de quanto para direitos trabalhistas.
horas extras, férias, FGTS, 13º salário.
Era considerado serviço efetivo Atividades como higiene pessoal,
Tempo na empresa o tempo em que o empregado relacionamentos sociais e troca de uniforme não
estivesse à disposição da empresa. são mais computadas como jornada de trabalho.
Fonte: Ministério Público do Trabalho (MPT, 2017).

Em oposição, o MPT elaborou notas técnicas com denso posiciona-


mento contrário às propostas de reformulação da legislação, já que incorrem
em violações na ordem constitucional, constrangem os acordos firmados em
convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), dos quais o
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 355

Brasil é signatário, e produzem mais encorajamento à corrupção nas relações


coletivas do trabalho.
Acirrando esse cenário de inflexões no campo do direito ao trabalho,
em 20 de setembro de 2019, sob o comando de Bolsonaro, aprovou-se a Lei
nº 13.874, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e
estabelece garantias de livre mercado, até então a primeira medida de esboço
exclusivo daquele governo.
Desse modo, se a Lei nº 13.429/2017 regulamentou múltiplas formas
de trabalho precarizado, sem, contudo, atacar a Justiça do Trabalho, a Lei
nº 13.874/2019 dirige-se para maior flexibilização do trabalho, desregu-
lamentando tanto o direito trabalhista como qualquer possibilidade à
fiscalização do trabalho.
Novamente, a sua promulgação é justificada com os mesmos argumentos
utilizados anteriormente, cuja tese sustenta-se pela necessidade de moderniza-
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ção da legislação para atender a todos os setores da economia, que estão em


frequente transformação e, em consequência, para ampliar o emprego formal.
Dando máxima celeridade para a ressignificação do direito do e ao tra-
balho, o governo Bolsonaro encaminhou ao Congresso Nacional a PEC nº
06/2019 para a contrarreforma da previdência e da assistência social (depois
transformada na Emenda Constitucional nº 103/2019). O documento trazia
mudanças radicais no texto constitucional, desprezando, alterando ou inserido
novos dispositivos, demonstrando o tamanho de sua proposição e alcance.
Também previa a alteração das normas da política pública de assistência social
e dos direitos trabalhistas. Todavia, não propôs modificações para a pensão
de militares da defesa, policiais militares e bombeiros.
O discurso era o de que as medidas tinham objetivo fiscal, de nivelar as
contas públicas, de sustentabilidade do sistema previdenciário e de induzir o
crescimento econômico. Contudo, ao se proceder ao exame detalhado das pro-
postas, revelavam-se na direção de transformar e ressignificar os fundamentos
da seguridade social chancelados na Constituição Federal de 1988. Mudou-se o
objetivo e o foco. Ao invés da solidariedade, da universalidade e da tela de prote-
ção social, os novos princípios seriam pautados no individualismo, na focalização
das políticas públicas e na privatização da previdência social (DIEESE, 2019).
A Emenda Constitucional nº103/2019 foi promulgada pelo Congresso
continua...
Nacional em 12 de novembro de 2019, fazendo com que as regras se tornassem
mais rígidas para o acesso aos benefícios, com inúmeras alterações quanto ao
tempo de contribuição, no período básico de cálculo, na pensão por morte,
nas alíquotas de contribuição e na idade mínima para a aposentadoria.
Importa considerar que a política pública de previdência social se eviden-
cia como de fundamental importância em um país como o Brasil, notadamente
356
continuação
assinalado por radicais desigualdades socioeconômicas, somadas a um mer-
cado de trabalho representado por expressivo contingente de mão de obra
ocupada em atividades desprotegidas ou insuficientemente protegidas. Nesse
cenário, o caráter solidário e a responsabilidade de toda a sociedade e do
Estado na garantia de proteção social previdenciária são indispensáveis.
Considerando o mercado de trabalho heterogêneo, a dilatação de con-
tribuições em ocupações fora do assalariamento formal persiste a cobertura
insuficiente. Parcela significativa dos trabalhadores se encontra sem cobertura
previdenciária, problema estrutural que se agravou pelos impactos da con-
trarreforma trabalhista.
Após a crise de acumulação presenciada em 2008, a argumentação em
favor da flexibilização tornou-se uníssona, indicando que a regulação pública
do trabalho é responsabilizada por produzir um mercado de trabalho inflexível,
incentiva o elevado nível de desemprego, inclusive o desemprego de longo

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prazo, o menor crescimento da produtividade e o aumento na segmentação
do mercado de trabalho.
No entanto, decorridos mais de quatro anos da nova regulação trabalhista
e três anos da previdenciária, que consolidaram um dos mais importantes
retrocessos para o trabalho no país, e anunciadas como necessárias para a
criação de novos postos de trabalho, o que se tem é a reprodução das taxas
elevadíssimas de desigualdade social198 e do desemprego199.
Dados revelados pela Pnad Contínua (IBGE, 2021) demonstram que o
desemprego atingiu a marca histórica de 14,8 milhões de brasileiros desem-
pregados e o substancial aumento da informalidade, perfazendo 34 milhões
de pessoas, acarretando mais desigualdades sociais e, consequentemente,
aumento do pauperismo entre os trabalhadores.
Notadamente, os dados apresentados foram exacerbados no contexto de
crise sanitária causada pela covid-19, associada à crise econômica, política
e social, mas com maior gravidade nos de capitalismo periférico, como o
Brasil, acentuando as antigas marcas nacionais. Para melhor apreensão sobre
esta discussão, recuperamos, no quadro nº 2, a seguir, a evolução do número
de desempregados no país, a partir de novembro de 2019 até março de 2021,
atravessados pelo contexto da pandemia de covid-19.

198 Conforme dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (IBGE, 2021). Disponível em: https://www.
ibge.gov.br/explica/desemprego.php. Acesso em: 10 ago. 2021.
199 Dados oficiais do IBGE indicam, no 3º trimestre de 2022, o seguinte quadro: Desempregados (desocupados):
9,5 milhões; Taxa de desemprego (desocupação): 8,7%; Desalentados: 4,3 milhões; Taxa de subutilização:
20,1%. Acreditamos que a indicação de queda nas taxas se deve ao crescimento de postos de trabalhos
informais e desprotegidos (incluindo o de microempreendedor individual), o que mascara a real taxa de
desemprego no país. Fonte: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php. Acesso em: 11 jan. 2022.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 357

Quadro nº 2 – Evolução do número de desempregados


no Brasil em milhões (2019-2021)
nov-dez 2019-jan de 2020 11, 913

Dez 2019-jan-fev de 2020 12, 343

jan-fev-mar de 2020 12, 850

fev-mar-abr de 2020 12,811

mar-abr-mai de 2020 12,710

abr-mai-jun de 2020 12,191

mai-jun-jul de 2020 13,130

jun-jul-ago de 2020 13,794

jul-ago-set de 2020 14,092


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ago-set-out de 2020 14,061

set-out-nov de 2020 14,023

out-nov-dez de 2020 13,935

nov-dez 2020-jan de 2021 14,272

dez 2020-jan-fev de 2021 14,423

jan-fev-mar de 2021 14,805


Fonte: IBGE (2021). Elaboração das autoras.

Seguramente, as contrarreformas não realizaram o prometido: expansão


do emprego e da formalização. Ao contrário, é possível examinar que as taxas
de desemprego têm sofrido poucas alterações, ocasionadas pelo desemprego
aberto, bem como a subutilização da força de trabalho, que também são acom-
panhados do alargamento da informalidade (KREIN; OLIVEIRA, 2019).
A ocupação cresceu pela informalidade, reforçando a tendência de
aumento da desregulamentação, precarização social do trabalho, ao condu-
zir a formas mais precárias de relações contratuais a partir das práticas da
terceirização, da subocupação, do trabalho por conta própria, incentivado
como trabalho autônomo e pela pejotização200, da ilegalidade/informalidade.
Desse modo, há mais pessoas sem carteira assinada e por conta própria, que
não têm garantias trabalhistas e escoam do acesso ao direito previdenciário
para os benefícios da política socioassistencial.
Assim, de um lado estão os trabalhadores com vínculos formais, com
algum tipo de proteção social, ainda que cada vez mais reduzida e com exi-
gentes critérios para acesso e, do outro lado, os trabalhadores sem contrato

200 Consiste na contratação de trabalhador pessoa física na condição de pessoa jurídica.


358

formal, trabalhadores informais, por conta própria, potenciais usuários da


política de assistência social.

Conclusão

Com o avanço da crise orgânica do capitalismo mundial – uma crise


econômica, política e social que se aprofundou com a crise sanitária –, as
determinações para as economias nacionais, através da internacionalização do
capital, têm preparado o terreno para novas condições de ajustes e contrarre-
formas, feitas no sentido de ampliar as taxas de lucro e valorização do capital
com avanços destrutivos para a própria reprodução do trabalhador, que se vê
impactado nas suas condições de vida e trabalho cada vez mais precarizado
e desprovido de proteção social.
Os efeitos mais imediatos dessa crise se revelam nos ataques à orga-

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nização dos trabalhadores, na flexibilização de direitos trabalhistas e pre-
videnciários e na diminuição dos fundos públicos destinados aos direitos
sociais. O intento é, também, dividir a classe trabalhadora entre empregados
e desempregados, efetivos e terceirizados, nativos e migrantes, além de
fortalecer o patriarcalismo e o racismo para oprimir mais com o objetivo
de explorar melhor.
É fato inconteste que a grave crise econômica que caracteriza o atual
contexto socioeconômico tem sido marcada por sucessivas reformas traba-
lhistas, que vem conformando novas relações de trabalho, acompanhada de
altos índices de desemprego, com significativa degradação das condições de
trabalho e um aumento quantitativo de trabalho precário e irregular.
A agudização da crise financeira, agravada pela pandemia de covid-19,
desencadeou impactos sociais profundos nos países em escala global. Para
países da América Latina e o Caribe, cuja composição da força de trabalho,
historicamente, é marcada pela precarização e informalização do trabalho,
esses impactos foram ainda mais drásticos.
No Brasil, os retrocessos, sobretudo entre 2016 e 2020, revelam uma
agenda de desmonte de direitos e precarização massiva do trabalho, em
consonância com uma pauta governamental que parece ultrapassar até
mesmo os moldes neoliberais já conhecidos pelo país, pois os interesses
privados e aliados ao capitalismo não demonstram ter limites ou possí-
veis impedimentos.
Em meio a esse quadro de desregulamentação das relações trabalhistas,
no qual ocorre uma crescente necessidade de expansão da lógica capitalista, há
também fortes tentativas de cooptação dos trabalhadores, a fim de que incorpo-
rem a racionalidade do capital, e, por isso mesmo, é que a Lei da Terceirização
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 359

foi anunciada como uma lei que regulamenta os trabalhadores terceirizados


para que tenham acesso aos seus direitos como qualquer outro trabalhador.
A terceirização no Brasil não é traço meramente contingencial por conta
da lei ou por falta de escrúpulos de maus capitalistas. Ela é um traço orgâ-
nico do capitalismo brasileiro. É um modo de reafirmar a forma de ser de
identificação do capitalismo nacional baseado na superexploração da força
de trabalho (exploração da força de trabalho que articula intensificação do
trabalho, alongamento da jornada laboral e rebaixamento salarial num país
de capitalismo periférico).
Os retrocessos advindos com as reformas trabalhista e da previdência,
conjugadas com a lei da terceirização, revelam uma agenda de desmonte de
direitos e precarização massiva do trabalho no Brasil, onde também tem lugar
uma crescente insegurança jurídica para os trabalhadores.
Urge a regulamentação correta da gestão do trabalho, que impeça a sua
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utilização predatória e permita isonomia de direitos entre trabalhadores e livre


escolha de participação e representação sindical para sua organização coletiva
e defesa de seus direitos.
Pelos dados aqui apresentados é possível afirmar que, na contramão do
discurso em defesa das contrarreformas, podemos hipotecar que não haverá
maior arrecadação pelas contribuições previdenciárias, que atinge parcela
significativa dos contribuintes e resulta da combinação de diferentes carac-
terísticas do mercado de trabalho brasileiro. Aos trabalhadores empregados
formais, é relevante o papel da alta rotatividade. Ao conjunto dos trabalha-
dores, é representativo o peso dos baixos rendimentos e dos longos períodos
de desemprego e inatividade de determinadas frações, condições que limitam
a capacidade contributiva individual.
Acompanhando as evidências nacionais, bem como as experiências
internacionais postas no Chile, Alemanha, Itália, Reino Unido, Espanha, e
México, que flexibilizaram o arcabouço institucional do trabalho, também
não lograram em sua totalidade resultados positivos. Muito pelo contrário,
nesses países as contrarreformas trabalhistas falharam integralmente, o que
nos leva a concluir que a flexibilização não proporciona o aumento do nível
da ocupação e em menores taxas de desemprego. Em outro ângulo, os indícios
demonstram que a redução da proteção ao emprego resultou no crescimento
dos empregos precários, aumento da desigualdade e agravamento da segmen-
tação no mercado de trabalho.
O que se observa, portanto, é que mesmo presenciando o não cumpri-
mento dos objetivos oficialmente declarados das contarreformas no âmbito do
trabalho, ao invés de se avaliar, através de profundas discussões sobre a regula-
ção do trabalho no Brasil, o subterfúgio preferido da “minoria prepotente” é o
360

de afirmar a necessidade de maior tempo para que as emendas constitucionais


atinjam suas metas, associado à falácia da imprescindibilidade de cortar mais
direitos sociais para alcançar tais promessas.
Com isso, os trabalhadores ficam submetidos às inseguranças do mercado
e à precarização do trabalho. Além disso, as reformas inibem as perspectivas
de futuro de boa parte da classe trabalhadora, que terá poucas chances de
se aposentar e de desenvolver uma trajetória profissional digna, bem como
reduzem as possibilidades de sua organização coletiva para as lutas em defesa
do trabalho e ao trabalho.

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LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 361

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condição precária pós-reabilitação profissional
Monica de Jesus Cesar
Paula Cristina Nunes de Sá
Ana Inês Simões Cardoso de Melo
DOI: 10.24824/978652515286.8.365-390

Este capítulo tem como objetivo expor reflexões sobre a dinâmica entre
trabalho e processo saúde-doença, demarcada por processos de adoecimento
e/ou de acidentes de trabalho que resultaram na inserção de trabalhadores201
em programa de reabilitação profissional. Estas reflexões tomam por base
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os resultados de pesquisa de mestrado (SÁ, 2022), que analisou a trajetória


laboral de trabalhadores vinculados ao mercado de trabalho formal, após sua
passagem pelo Serviço de Reabilitação Profissional (SRP), da Previdência
Social, junto à Agência da Previdência Social (APS/INSS), de Realengo, na
Zona Oeste do Rio de Janeiro/RJ202.
A análise se debruçou sobre os dados de trabalhadores, considerados
reabilitados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no ano de 2018,
e pela verificação de sua reinserção ou não no mercado de trabalho formal no
ano seguinte (2019). O estudo de natureza exploratória, baseado em revisão
teórico-bibliográfica, documental e dados secundários203, foi referenciado na
tradição marxista sobre o significado do valor trabalho e como se dá a venda
da força de trabalho na sociedade capitalista e seus rebatimentos para a saúde
dos trabalhadores. O estudo de base mencionado foi aprofundado, para abor-
dar aqui as relações entre trabalho/saúde-doença, a consequente reabilitação
profissional e o processo de precarização da força de trabalho, tendo por refe-
rência a conformação da superpopulação relativa, isto é, de um vasto exército
de reserva nas características próprias da formação sócio-histórica brasileira.
O SRP constitui uma das respostas do Estado às demandas relacionadas à
saúde dos trabalhadores, tendo por objetivo oferecer aos incapacitados, parcial
ou totalmente, os meios para o reingresso no mercado de trabalho, conside-
rando a atividade que exerciam quando do agravo à saúde e afastamento do

201 Neste texto, a expressão trabalhador(es) é usada para todas as pessoas que, em sua diversidade, são
postas em ação e exploradas pelo capital.
202 Essa pesquisa de mestrado foi realizada sob a orientação da Professora Doutora Ana Inês Simões Cardoso
de Melo, no PPGSS/UERJ.
203 Os dados secundários foram extraídos do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) e do Sistema de
Administração de Benefícios por Incapacidade (SABI), ambos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
366

trabalho204. O Regulamento da Previdência Social (BRASIL, 1999) define o


serviço como assistência (re)educativa e de (re)adaptação profissional, que
busca “proporcionar aos beneficiários, incapacitados parcial ou totalmente
para o trabalho, em caráter obrigatório, independentemente de carência, e às
pessoas portadoras de deficiência, os meios indicados para proporcionar o
reingresso no mercado de trabalho e no contexto em que vive”.
Dessa forma, são trabalhadores que, por motivo de doença ou acidente,
não possuem a capacidade (física ou mental), mesmo momentaneamente, de
manter a venda da sua força de trabalho no mercado, exercendo a sua função
e/ou profissão habitual. O serviço se propõe a oferecer a opção de nova ativi-
dade para estes trabalhadores, visando seu retorno ao trabalho com a devida
cessação do benefício previdenciário por incapacidade temporária (conhecido
por “auxílio-doença”) ou por acidente de trabalho ao término deste processo.
A passagem pela reabilitação profissional é obrigatória e, portanto, não

Editora CRV - Proibida a comercialização


é uma escolha do trabalhador – inclusive, em caso de recusa ou abandono do
processo de reabilitação pelo trabalhador, há previsão de suspensão (e posterior
cessação) do benefício previdenciário. A Previdência Social é responsável por
fornecer ao trabalhador segurado os recursos necessários para o cumprimento
do processo de reabilitação profissional, porém quem financia esse serviço,
seja pela contribuição direta de seus salários, seja por meio do salário indireto
para o fundo público, é a própria classe trabalhadora.
De modo geral, a Previdência Social consulta o empregador sobre a
possibilidade de oferta de nova atividade laboral que esteja de acordo com a
condição de saúde do trabalhador. Por não ser uma obrigatoriedade trabalhista,
não há garantias de que a empresa irá acolher o trabalhador e colocá-lo em
nova função ou, caso seja recolocado, que seu vínculo de trabalho será man-
tido, o que denota restrições da legislação trabalhista e previdenciária no que
se refere às relações entre trabalho e saúde e a respectiva proteção social. Em
casos como de recusa de retorno ao trabalho pela empresa, de falências e de
trabalhadores autônomos, por exemplo, é desencadeado o processo, denomi-
nado pelo INSS, de “qualificação profissional”205.
Observa-se que, a partir da década de 1990, há maiores limitações ainda
no atendimento aos trabalhadores, relacionadas às mudanças ocorridas na

204 Em linhas gerais, para trabalhadores com vínculo à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), quando o
afastamento do trabalho ocorre em prazo superior a 15 dias, é necessária a realização de perícia médica
para o reconhecimento da incapacidade e concessão do benefício previdenciário. Nos casos em que for
considerado que o agravo à saúde o impede (de forma definitiva ou por dado período) de exercer a função
que desempenhava até o afastamento do trabalho e, sendo considerada sua condição clínica estabilizada,
o INSS realiza a sua inclusão no Serviço de Reabilitação Profissional (SRP).
205 Oferta de cursos ou treinamentos em instituições conveniadas para promover capacitações por meio, por
exemplo, do chamado “Sistema S”.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 367

política previdenciária e na intervenção estatal, expressas por estratégias de


gestão na produção e nos processos de trabalho, bem como por contrarreformas
do Estado brasileiro (BEHRING, 2003). Tais processos e mudanças, desde
então, repercutem tanto para os trabalhadores atendidos pela Reabilitação
Profissional, quanto para a própria política previdenciária e, consequentemente,
contribuem para a desconstrução de uma perspectiva crítica de atenção à saúde
dos trabalhadores.
Frente ao objetivo proposto, organizamos a exposição em três tópicos.
O primeiro trata da relação entre os processos de precarização da força de
trabalho e suas relações com a constituição da superpopulação relativa, ou
seja, do exército de reserva no contexto brasileiro e suas repercussões para a
política previdenciária e o segundo aborda dimensões e mediações necessá-
rias à abordagem da precarização da força de trabalho em suas relações com
a saúde dos trabalhadores. Finalmente, no terceiro tópico são apresentadas
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as (im)possibilidades de retorno dos trabalhadores ao mercado de trabalho


formal (SÁ, 2022) após a conclusão da reabilitação profissional, evidenciando
a precarização da força de trabalho e sua descartabilidade.

A condição precária da força de trabalho na formação social


brasileira

Desde finais do século passado, o processo de mundialização do capital,


comandado pelo capital financeirizado e pelo neoliberalismo, vem repercu-
tindo sobre o trabalho, sob o mote da “flexibilização” para a modernização
das relações de trabalho. A noção de “flexibilização” passou a integrar o
discurso que acompanha as estratégias de gestão e organização da produção
e do trabalho, fomentadas pelo capital e pelo Estado, porém ela não deve ser
tomada como sinônimo de precarização do trabalho. Considera-se que a “fle-
xibilização se vincula aos processos e relações de trabalho” e a precarização
“refere-se mais diretamente às condições de trabalho e ao modo de ser e viver
dos trabalhadores” (MOTA, 2013a, p. 47).
O “princípio de flexibilidade” se constitui na “categoria central da acu-
mulação capitalista num cenário de crise estrutural” (ALVES, 2007, p.157)
e, de fato, diferentes tipologias foram formuladas, inclusive, no âmbito da
gestão empresarial, relacionando a flexibilidade interna e externa às empresas
– redes e/ou cascatas de subcontratação, por vezes, à escala internacional –,
e/ou sob formas quantitativa ou qualitativa, numérica e/ou funcional (CAR-
LEIAL, 2001). A flexibilidade se reporta, então, à organização dos processos
de trabalho, ainda que relacionada à sua incidência no mercado de trabalho,
368

uma vez que potencializa as estratégias possíveis de redução dos custos da


força de trabalho e de sua precarização.
As mudanças no mundo do trabalho fizeram surgir várias reflexões sobre
a recomposição da classe trabalhadora, devido ao processo de precarização,
levantando polêmicas no debate acadêmico (ANTUNES, 2018; BRAGA,
2012; 2017; 2020; ALVES, 2014; STANDING, 2013). Sem propor aprofundar
este debate aqui, a precarização do trabalho, vem sendo abordada, recente-
mente, como um processo associado ao subemprego e às diversas formas
de trabalho informal. Ou seja, trabalhadores em tempo parcial, temporários,
sem vínculo empregatício formal e, também, os supostos autônomos, que são
acionados através de plataformas digitais geridas por megaempresas avançadas
tecnologicamente e que fazem a conexão entre usuários e parceiros na pres-
tação de serviços, como no caso dos aplicativos de transporte de passageiros
e entrega de mercadorias – a chamada uberização –, que oblitera “as relações

Editora CRV - Proibida a comercialização


de assalariamento e de exploração do trabalho” (ANTUNES, 2020, p. 11).
A precarização do trabalho é correlacionada não só à fragilização dos vín-
culos laborais, mas, também à degradação das condições de trabalho e, ainda,
à intensificação do trabalho, que leva os trabalhadores a realizarem atividades
extremamente extenuantes, perigosas, deletérias para a saúde e sem nenhuma
ou limitada garantia de proteção quanto aos direitos trabalhistas, o que, tam-
bém, impacta a seguridade social, principalmente, o sistema previdenciário.
Para uma melhor compreensão da relação entre precarização e Previdên-
cia Social, é necessário considerar que, no mercado de trabalho brasileiro, o
desemprego e, também, o subemprego, como expressões da questão social,
são resultantes da trajetória histórica da formação social brasileira. Essa tra-
jetória é marcada pela funcionalidade do padrão produtivo vinculado ao lati-
fúndio e à escravidão, no conjunto das relações capitalistas internacionais,
demarcando um capitalismo retardatário – associado e dependente – e pela
intervenção política das classes dominantes, forjada a partir de arranjos de
cúpula golpistas, configurando uma contrarrevolução burguesa permanente
(IANNI, 1984; FERNANDES, 1987).
O processo de industrialização no Brasil, com sua natureza restringida,
ocorreu de modo diverso das economias centrais, onde o padrão de acumula-
ção fordista-keynesiano, desencadeado no pós-guerra, combinou crescimento
econômico e proteção social com base em grandes pactos corporativos que,
em certa medida, garantiram a demanda efetiva e o pleno emprego. No Brasil,
o chamado fordismo periférico se desenvolveu com base em uma industriali-
zação dependente e “financiada por transferências de créditos e de tecnologia
provenientes do fordismo central” (LIPIETZ, 1989, p. 304). E, apesar de pro-
mover o desenvolvimento da classe operária, de camadas médias urbanas e do
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 369

capital industrial, foi restrito no estabelecimento da norma salarial fordista, bem


como não criou um sistema de proteção social similar ao Estado de Bem-Estar
Social. Deste modo, a constituição do mercado e do regime de trabalho no
país não seguiu o padrão das economias centrais, pois predominaram frágeis
negociações coletivas e um débil sistema de proteção e regulação do trabalho.
Em formações sociais dependentes com capitalismo retardatário, como
o Brasil, o fordismo se baseou em: desemprego; falta de garantias sociais
que permitissem a irradiação dos ganhos de produtividade ao conjunto dos
trabalhadores; insuficiência de negociações coletivas; quebra da estabilidade;
rebaixamento dos salários; baixo poder aquisitivo e consumo limitado. Além
disso, a autocracia burguesa no país inviabilizou a interlocução efetiva com
o movimento sindical, combinando crescimento econômico com repressão e
miséria social.
A ampliação do desemprego ocorreu e, ainda ocorre, sob um regime de
Editora CRV - Proibida a comercialização

trabalho marcado pela instabilidade no emprego, pelo acelerado turn over


da força de trabalho e por baixos níveis salariais. O modo como ocorreu
o desenvolvimento capitalista no Brasil, ou seja, por meio do processo de
modernização conservadora (FERNANDES, 1987), acentuou o grau de flexi-
bilidade estrutural, a alta rotatividade e descartabilidade dos trabalhadores, e a
precarização das ocupações no mercado de trabalho, intensificando o padrão
de exploração do trabalho pelo capital. Sendo assim, a ausência de uma regu-
lação coletiva do uso e remuneração da força de trabalho, o livre-arbítrio dos
empregadores nas relações de trabalho, a flexibilidade, a informalidade e a
precarização não são fenômenos inteiramente novos no Brasil.
Tais processos e características podem ser remetidas à constituição de
uma força de trabalho excedente, ou seja, ao modo como o capitalismo peri-
férico e dependente gera a superpopulação relativa que, em termos gerais,
pode ser definida como sendo a parcela da classe trabalhadora que não se
encontra regularmente empregada e que estaria disponível para ser posta
em ação pelo capital. Nos termos de Marx, a superpopulação relativa é uma
população excedente com relação aos imperativos momentâneos “do capital
de expandir o valor. Essa superpopulação, entretanto, se compõe de gerações
humanas atrofiadas, de vida curta, revezando-se rapidamente, por assim dizer
prematuramente colhidas” (1994, p. 305).
Trata-se de parte da classe trabalhadora que é relativamente supérflua, que
ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital e, por isso, se torna
excedente. Portanto, ela é produto do desenvolvimento do modo de produção
capitalista e, ao mesmo tempo, condição da sua existência: “ela constitui um
exército industrial de reserva disponível, que pertence ao capital de maneira
tão absoluta como se fosse criado e mantido por ele” (1994, p. 733).
370

Deste modo, a existência de uma reserva de força de trabalho desem-


pregada e parcialmente empregada é uma das facetas do sistema capitalista,
criada e reproduzida diretamente pela própria acumulação do capital, já que
gera contínua mudança qualitativa em sua composição, com o acréscimo de
sua parte constante em detrimento de sua parte variável. A lei geral da acu-
mulação capitalista se baseia na tendência de o capital ampliar, em face das
exigências próprias de seu ciclo, a composição orgânica do capital, ou seja,
investindo cada vez mais em meios de produção e diminuindo o gasto com
força de trabalho viva (MARX, 1994).
Com a centralização e concentração dos capitais, a introdução de novos
métodos de produção e tecnologias, para fazer frente à concorrência intercapita-
lista, contribuiu para o aumento da produtividade e, também, para expelir parte
dos trabalhadores da produção. Esse processo reforça a formação da superpopu-
lação relativa, uma vez que gera a redução da procura por trabalho. Esta redução

Editora CRV - Proibida a comercialização


será “tanto maior, quanto mais tenha o movimento de centralização combinado
os capitais que percorrem esse processo de renovação” (MARX, 1994, p. 730).
Se o trabalhador individual fornece sobretrabalho com os novos métodos de
produção, o acréscimo de capital variável se torna a expressão de mais trabalho e
não de mais trabalhadores empregados. Então, o desenvolvimento da acumulação
capitalista “capacita o capitalista a pôr em ação maior quantidade de trabalho
com o mesmo dispêndio de capital variável, explorando mais, extensiva e ou
intensivamente, as formas de trabalho individuais” (MARX, 1994, p. 738). Deste
modo, o trabalho excessivo da parte empregada da classe trabalhadora engrossa
as fileiras de exército industrial de reserva, que podem ser mobilizadas e absorvi-
das em maior ou menor grau, de acordo com as oscilações do desenvolvimento
capitalista, marcado por fases de alta e média atividade, crise e estagnação.
Assim, “a condenação de uma parte da classe trabalhadora à ociosidade
forçada” (MARX, 1994, p. 738) é funcional para o capital, na medida em
que, compondo o exército de reserva, realiza uma forte pressão sobre os
trabalhadores empregados, por meio da intensificação da competição e pela
possibilidade de serem substituídos facilmente, levando-os a se sujeitarem às
exigências do capital e lhes retirando as possibilidades de negociar melhores
condições de venda de sua força de trabalho. Assim, são impelidos a aceitarem
o rebaixamento dos salários e o aumento da exploração, aprofundando o fosso
entre o valor pago pela força de trabalho (face ao seu nível de desgaste) e o
valor excedente apropriado pelo capitalista.
Marx chama a atenção para o despotismo do capital e as suas providências
coercitivas quando os trabalhadores empregados e desempregados procuram
organizar uma ação conjunta, via sindicatos, para se contraporem a subordi-
nação à “lei da oferta e da procura”. Esta lei, na realidade, implica que quanto
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 371

mais trabalham, mais os trabalhadores produzem riquezas para os capitalistas


e “quanto mais cresce a força produtiva de seu trabalho, mais precária se torna
sua função de meio para expandir o capital” (1994, p. 743 – grifo nosso). Isso
significa que o crescimento da produtividade do trabalho social requer uma
crescente mobilização dos meios de produção, porém com um emprego pro-
gressivamente menor de força de trabalho humana, que se torna dispensável.
Nas palavras de Marx, “quanto maior a produtividade do trabalho, tanto maior
a pressão dos trabalhadores sobre os meios de emprego, tanto mais precária,
portanto, sua condição de existência, a saber, a venda da própria força para
aumentar a riqueza alheia ou a expansão do capital” (1994, p. 748 – grifo nosso).
A precariedade das condições de venda da força de trabalho e, consequen-
temente, das condições de vida e existência, se apresenta como resultado de
um movimento contraditório, que se materializa na medida em que a popu-
lação trabalhadora aumenta sempre mais rapidamente do que as condições
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em que o capital a emprega. E, ainda, na proporção em que o consumo da


força de trabalho empregada se intensifica de tal maneira que o trabalhador,
totalmente desgastado e alquebrado, migra para as fileiras da superpopulação
relativa, cai no pauperismo ou vai a óbito, sendo seu lugar preenchido por
outro num revezamento desumano.
Fato é que o sistema capitalista sempre criou e manteve um exército
de reserva, expandindo-se por todo o mundo e, também, fazendo crescer os
excedentes de força de trabalho. A exploração das massas de trabalhadores
desempregados, subempregados e mal remunerados dos países periféricos, a
importação e a subsequente expulsão de trabalhadores imigrantes pelos paí-
ses capitalistas centrais e a mobilidade e fuga de capitais para regiões com
força de trabalho abundante e baixos salários são aspectos que, sumariamente,
expressam a relação entre o avanço da acumulação capitalista e a superpopu-
lação relativa.
Para compreender como a superpopulação relativa se configura no Brasil,
é preciso considerar a sua inserção subordinada no mercado mundial. Assim
como outros países latino-americanos, a economia brasileira se baseou na
exportação de matérias-primas para o exterior e teve como traço histórico a
formação de uma grande massa de trabalhadores excedentes – derivada de
uma economia colonial pautada na escravidão –, e com um nível de desenvol-
vimento das forças produtivas relativamente inferior ao dos países centrais.
Hoje, a forte política agrícola voltada para produção das commodities mais
valorizadas no mercado externo reafirma a posição do Brasil como país agroe-
xportador na divisão internacional do trabalho, enquanto a atividade industrial
brasileira, sobretudo aquela mais intensa em capital e tecnologia, se encontra
restrita a espaços e ramos que atendem às exigências do capital externo.
372

A inserção subordinada do Brasil, em grande medida, correlacionada


à transferência de valor para os países centrais e à dependência de capitais
estrangeiros, faz com que os capitalistas busquem compensá-las, internamente,
ampliando a mais-valia, através da superexploração da força de trabalho, com
o aumento do seu consumo e desgaste. A superexploração da força de trabalho
ocorre pelo lacerante uso da força de trabalho, sem remuneração correspon-
dente, seja pelo prolongamento da jornada de trabalho e/ou pela intensificação
do trabalho, seja pelo arrocho salarial e/ou pela não-recomposição de aumento
no valor da força de trabalho.
No capitalismo, a única alternativa que os trabalhadores têm é vender sua
força de trabalho, para garantir a sua reprodução e, por isso, se sujeitam aos
ditames da classe proprietária dos meios de produção, que lhes suprimem as
condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho em dois
movimentos. Primeiro, lhes obriga a um dispêndio de energia superior ao que

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deveria dispor normalmente, provocando assim seu esgotamento prematuro.
Segundo, porque lhe é retirada a possibilidade de consumo imprescindível
para conservar e manter sua força de trabalho em estado normal. “Em termos
capitalistas, esses mecanismos [...] significam que o trabalho é remunerado
abaixo de seu valor e correspondem, portanto, a uma superexploração da força
de trabalho” (MARINI, 2011, p. 149-150).
Como afirma Marx “depois de ter trabalhado hoje, é mister que o pro-
prietário da força de trabalho possa repetir amanhã a mesma atividade sob
as mesmas condições de força e saúde” (MARX, 1994, p. 191). Os meios
de subsistência disponíveis ao trabalhador – como alimentação, vestuário,
habitação etc. – devem ser suficientes para manter sua condição normal de
vida. Mas, a superexploração da força de trabalho atrofia a reprodução da
classe trabalhadora, reduzindo o seu tempo de vida útil, pelo esgotamento
prematuro da força de trabalho, assim como gera transtornos psicofísicos
provocados pelo excesso de fadiga e associados à privação de bens de con-
sumo básicos à subsistência. Assim, a superexploração da força de trabalho
se vincula diretamente à baixa expectativa de vida, aos elevados índices de
acidentes de trabalho, doenças ocupacionais e/ou relacionadas ao trabalho, às
desigualdades de renda, à pobreza, miséria e fome em contraste com a enorme
concentração de riquezas no Brasil.
A superpopulação relativa fornece o trabalho necessário à expansão do
capital, todavia a superexploração da força de trabalho, nas economias perifé-
ricas, implica em maiores índices de mortalidade e menor tempo de vida útil
dos trabalhadores e, consequentemente, há uma maior necessidade de reposi-
ção da força de trabalho. Sendo assim, a existência de um exército de reserva
ampliado não é apenas favorável a essa reposição, como também propicia a
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 373

redução dos gastos com a reprodução da classe trabalhadora, redirecionando


os investimentos aplicados em bens de consumo coletivo e seguridade social
para as esferas de valorização do capital.
Além disso, a superpopulação relativa legitima politicamente a superex-
ploração, pois quanto maior a sua dimensão, menor será o poder combativo da
classe trabalhadora. E quanto menor esse poder, a burguesia recorre ao Estado
para desregulamentar contratos e regimes de trabalho, desobrigar os requisitos
de segurança e proteção à saúde dos trabalhadores, reprimir a ação sindical,
eliminar direitos trabalhistas, diminuir salários e reduzir encargos sociais.
A recente contrarreforma trabalhista brasileira (BRASIL, 2017) represen-
tou o aprofundamento da superexploração do trabalho, na medida em que: regu-
lamentou formas de contratação mais precárias; possibilitou a flexibilização da
jornada de trabalho (elásticas ou em tempo parcial); permitiu rebaixamento de
remunerações; promoveu alterações nas normas de saúde e segurança do tra-
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balho, com prejuízos aos trabalhadores; investiu na fragilização sindical e difi-


cultou o acesso à Justiça do Trabalho, dentre outros retrocessos (CESIT, 2017).
Há, portanto, um elevado grau de flexibilidade das relações trabalhistas
nas economias periféricas que propicia ao capital se apropriar de mais traba-
lho sem precisar reduzir o exército de reserva. Isso ocorre não só por meio da
intensificação dos ritmos de trabalho dos trabalhadores, mas, também, por meio
das contratações intermitentes e parciais, de outras formas de (sub)contratação,
que ampliam a mais-valia, mas não aumentam o número de assalariados e/
ou não lhes garantem remuneração compatível com a média dos assalariados.
Cabe salientar que os trabalhadores em tempo parcial, temporários ou
com jornadas intermitentes, isto é, os que possuem empregos irregulares ou
subempregos, podem ser considerados trabalhadores assalariados. Todavia,
muito embora eles integrem “parcialmente o exército ativo (podendo, inclu-
sive, ser bastante produtivos enquanto ocupados), eles não deixam de oferecer
uma quantidade adicional de força de trabalho explorável, sendo também, em
certa medida, exército de reserva” (HEIEN, 2021, p. 35). Esta caracterização
dependerá da diferença entre as jornadas trabalhadas e as disponíveis, pois
quanto menos tempo de trabalho em um mês, o salário será menor e, com
isso, esses trabalhadores terão menor acesso aos meios de subsistência e pior
padrão de vida em relação ao padrão médio dos assalariados.
É fato que a condição precária nunca deixou de ser a tônica nos países
da periferia, como o Brasil. Todavia, a complexidade e heterogeneidade da
classe trabalhadora é mais radical nesses países, combinando trabalho rural
e urbano, formas modernas e arcaicas de trabalho, nas quais precarização e
informalidade sempre foram fulcrais e a condição salarial formal não atingiu
a todos os trabalhadores. Por isso, a classe trabalhadora sofreu uma profunda
374

heterogeneização, fomentada por uma intensa concorrência que a fragiliza


econômica e politicamente.
A heterogeneidade na composição da classe trabalhadora, abordada
por Engels para descrevê-la na Inglaterra do século XIX, como “expressão
máxima e a mais visível manifestação de nossa miséria social” (ENGELS,
2010, p. 41) não é difícil de ser visualizada no tempo presente em nosso
país. Porém, atualmente, a heterogeneidade foi reconfigurada, visto que
o avanço político do movimento operário e de suas conquistas – com a
ampliação das formas de organização e representação e redução da divisão
e disputa entre os trabalhadores – foi estancado com a reestruturação produ-
tiva e a ofensiva neoliberal sob a hegemonia do capital fictício, que forçou
o recuo do sindicalismo. Deste modo, “a precarização social do trabalho
desconstrói conquistas importantes dos trabalhadores: dos direitos sociais
e trabalhistas aos direitos políticos alcançados na prática dos movimentos”

Editora CRV - Proibida a comercialização


(DRUCK, 2018, p. 90).
As proteções e os direitos assegurados pelo Estado, por meio da política
previdenciária – que são, indubitavelmente, conquistas da luta dos trabalhado-
res brasileiros –, vêm sendo duramente impactados pelas mudanças no mundo
do trabalho e pelas medidas ultraneoliberais de austeridade, que configuram
a contrarreforma da Previdência Social, efetivada com a promulgação da
Emenda Constitucional nº 103/2019 (BRASIL, 2019).
De um lado, há o aumento dos requisitos para o acesso aos direitos previ-
denciários, como no caso de exigências de idade mínima para os trabalhadores
aposentarem e da redução da aposentadoria integral, complementadas por
uma miscelânia de regras de transição para os que já se encontram inseridos
nos regimes. O atendimento desse conjunto de requisitos é bastante difícil,
considerando a complexidade do mercado de trabalho, em que há desemprego
em larga escala e formas e condições de trabalho precárias. Soma-se a isso,
a diminuição do salário de benefício, penalizando ainda mais o trabalhador
que necessita obter o seu direito.
De outro lado, a crescente vastidão de trabalhadores que, subempregados
e informalizados, não se filiam ao sistema previdenciário, repercute no seu
custeio e no acesso à sua proteção. Os impactos na arrecadação se devem a não
obrigatoriedade do recolhimento das contribuições sociais na fonte dos rendi-
mentos, como ocorre com o trabalhador formalizado e com o seu empregador, o
que deixa de assegurar a cobertura e os direitos aos trabalhadores precários em
caso de necessidade e/ou adversidade, já que a política previdenciária possui
caráter contributivo obrigatório e concessão de benefícios exclusiva aos seus
filiados. No final das contas, trabalhadores com emprego e renda precários não
terão o amparo previdenciário, enquanto trabalhadores com emprego estável
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 375

e maior renda irão custear um sistema que tende a se tornar insustentável e


ineficaz em sua finalidade, quebrando a solidariedade intraclasse.
Como efeito da superexploração, os trabalhadores adoecidos, acidentados,
incapacitados para o trabalho e não filiados ao sistema, são lançados ao paupe-
rismo ou, quando muito, se tornam usuários da Política de Assistência Social.
Já os filiados ao sistema, buscam acessar o direito previdenciário para manter
minimamente sua condição de sobrevivência até o seu retorno ao trabalho. Entre-
tanto, esse retorno não está assegurado pelo processo de reabilitação profissional,
pois com sua capacidade psicofísica, em tese, total ou parcialmente recuperada,
nos trâmites desta política social, esse trabalhador cai no chamado “limbo pre-
videnciário”206, no desemprego ou na informalidade, acentuando a condição
precária e fazendo adensar a superpopulação relativa, como será visto adiante.

A precarização da força de trabalho e a saúde dos trabalhadores


Editora CRV - Proibida a comercialização

Como exposto, a atual dinâmica do capitalismo tem se constituído em


modalidades de gestão, organização e controle do trabalho, que, comandadas
pela lógica da financeirização, exigem total flexibilidade, sob o argumento de
que a necessária modernização dos processos produtivos, para fazer frente à
globalização econômica e aos padrões de competitividade capitalista, criaria
postos de trabalho. Inclusive, esse discurso tem sustentado a implementa-
ção de contrarreformas que desregulamentam direitos trabalhistas e sociais e
fomentam o “empreendedorismo”207. Na prática, isto tem significado inserções
pontuais e intermitentes de trabalho, a fim de auferir algum rendimento, em
modalidades as mais distintas, para boa parcela de trabalhadores, por vezes
mediadas, inclusive, por novas tecnologias que espraiam as relações sociais
de produção sob os algoritmos e ao sabor do denominado mercado mundial.
O que se observa, na atualidade, é uma miríade de novas modalidades
de trabalho, que elevam a extração de mais-valia no menor tempo possível
e se constituem nos “diversificados modos de terceirização, informalidade
e precarização” (ANTUNES; DRUCK, 2014, p. 16), cujo objetivo maior é
superexplorar os trabalhadores sem amarras e reduzir os custos com o tra-
balho. Para isso, é necessário extinguir as legislações sociais protetoras do
trabalho e, subordinar ainda mais o trabalhador numa relação desigual. Diante

206 Expressão utilizada para designar a situação do empregado que, após ter cessado seu benefício previden-
ciário com indicação de retorno ao trabalho, mas é considerado, pelo médico do trabalho como inapto a
retornar às atividades. Trata-se de uma situação de incerteza, em que o trabalhador fica tanto sem o salário
quanto sem o benefício previdenciário.
207 Discurso corrente que transfere responsabilidades ao trabalhador, seja em condições pretéritas do trabalho
por conta própria, por vezes informais, seja pela avalanche da pejotização (empresas que, muitas vezes,
escamoteiam o assalariamento).
376

do vasto exército de reserva e do recuo do movimento sindical, o trabalhador


não vê condições de se contrapor às exigências impostas pelos empregadores,
tendo em vista que pode ser por eles facilmente substituído, evidenciando o
aprofundamento da precariedade estrutural da força de trabalho.
O atual processo de precarização do trabalho é, em realidade, o processo
de eliminação das conquistas e entraves constituídos pela luta de classes para
combater a avidez do capital. Este processo repõe “a explicitação da preca-
riedade como condição ontológica da força de trabalho como mercadoria. A
precarização possui um sentido de perda de direitos acumulados no decorrer
de anos pelas mais diversas categorias de assalariados” (ALVES, 2007, p.
114). As denominadas estratégias de flexibilização e suas atuais expressões
nas relações sociais de produção sintetizam a contraface da precarização da
força de trabalho, intensificada nos momentos de crise estrutural do capita-
lismo, de modo que não há “limites para a precarização, mas apenas formas

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diferenciadas de sua manifestação” (ANTUNES; PRAUN, 2015, p. 413).
A articulação destes processos com a saúde dos trabalhadores é muito
importante para demonstrar os efeitos nefastos subjacentes aos discursos impe-
rativos de “flexibilização”, pois o desgaste208 da força de trabalho, produzido
pelo extenuante consumo e dispêndio de músculos, nervos, cérebro etc., não é
passível de ser atenuado. É possível, inclusive, identificar em Marx, ainda que
não de modo específico, como esta dinâmica desgaste/reprodução se eviden-
cia no processo de trabalho, sob o capitalismo e seu processo de valorização,
identificando a necessária manutenção/reprodução da força de trabalho, frente
ao seu consumo produtivo, e reconhecendo o “elemento histórico e moral” que
coloca limites à determinação do valor da força de trabalho (1994, p. 191). Esta
dinâmica entre desgaste e reprodução foi, contudo, desenvolvida por Laurell
(1982) a fim de constituir uma teorização e metodologia que permitissem a
abordagem do processo saúde-doença determinado social e historicamente.
Ao considerar o processo saúde-doença relacionado ao consumo produ-
tivo da força de trabalho, para além de suas dimensões biológica e individual,
torna-se possível apreender a dinâmica desgaste/reprodução própria à “ques-
tão”209 saúde dos trabalhadores, já que ela se fundamenta numa contradição
inerente à acumulação capitalista, ou seja, o capital espolia e deteriora “aquilo
de que depende sua existência”. Em essência, o capital não pode existir sem
a “exploração sobre o trabalho ([...] sua razão de ser), ao tempo que essa
exploração determina o desgaste, o aviltamento, a degradação, enfim, a ameaça

208 Desgaste concebido como a “perda da capacidade potencial e/ou efetiva, corporal e psíquica” que “pode
ou não expressar-se no que a medicina reconhece como patologia” (LAURELL e NORIEGA, 1989, p. 110;
115-116). Conferir também Laurell,1982.
209 Sobre a distinção entre a “questão” saúde dos trabalhadores e o “campo” da Saúde do Trabalhador, ver
Souza (2019).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 377

permanente às condições de saúde da classe trabalhadora, do trabalho e, assim,


do próprio capital” (SOUZA, 2019, p. 78).
Este reconhecimento é tão ou “especialmente evidente na origem de
cada reordenação da esfera produtiva” (SOUZA, 2019, p. 78), como se pode
verificar na produção de vários estudiosos. Ao lado de acidentes de trabalho e
doenças (tipicamente) ocupacionais, são cada vez mais identificados agravos à
saúde, relacionados ao trabalho – mesmo quando não são reconhecidos pelas
instituições do Trabalho, Saúde e/ou Previdência Social. E, inclusive, são
apontadas suas relações com o processo de precarização da força de trabalho
(ANTUNES; PRAUN, 2015; FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA,
2010; DRUCK, 2013).
A precarização do trabalho e a sua intensificação se apresentam como
um processo multidimensional do atual momento da acumulação capitalista
que, para Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010), compreende as seguintes
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dimensões: vínculos de trabalho e relações contratuais; organização e con-


dições de trabalho; precarização da saúde dos trabalhadores; fragilização do
reconhecimento social e do processo de construção das identidades individual
e coletiva; e representação e organização coletiva (sindical). Essas dimensões
são interdependentes e possuem uma relação de reciprocidade, permitindo
apreender os processos em curso e, inclusive, traçar indicadores de precari-
zação do trabalho (DRUCK, 2011; 2013).
Na perspectiva de apreender como este processo de precarização da força
de trabalho se vincula à superexploração do trabalho, no capitalismo periférico
e dependente, Mota (2013b, p.91) também apresenta mediações relaciona-
das a este processo de “desvalorização da força de trabalho”. Para a autora,
a atual fase de subsunção formal e real do trabalho ao capital, potencializa
a exploração e precarização da força de trabalho, na medida em que há: “a
violação do valor do trabalho socialmente necessário, através da redução dos
salários/remuneração”; “a redução da qualidade e do tempo real de vida do
trabalhador pelo desgaste psicofísico do trabalho”; o impedimento de “qual-
quer projeto de vida do trabalhador e sua família”; e “a fratura da organização
e da solidariedade coletivas das classes trabalhadoras”.
Tais dimensões e mediações sinalizam como a flexibilização das rela-
ções e processos de trabalho e o consumo produtivo da força de trabalho
correspondente convergem e são corolários da precarização da força de tra-
balho em suas relações com o processo saúde-doença dos trabalhadores. Se
o estabelecimento das relações trabalho-saúde já reclamava concepções e
práticas centradas em uma abordagem ampliada de saúde-doença; em um
contexto de precarização da força de trabalho, observa-se maior fragilização
orgânica, existencial e/ou identitária que a gestão do trabalho tem trazido à
378

saúde dos trabalhadores, quando se constata, por exemplo, a “intensificação


da multiexposição” (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010, p.
232) a distintas cargas e riscos em interação no trabalho.
Neste contexto, a precarização do trabalho se acentua e articula suas
dimensões e mediações: os vínculos de trabalho e relações contratuais precá-
rias ganham maior amplitude ante um contexto de contrarreforma trabalhista
e previdenciária, com incidência sobre o valor da força de trabalho e em sua
reprodução. A organização e as condições de trabalho tendem se tornar mais
nefastas; as ocupações precárias agudizam as relações trabalho-saúde, com
a exposição à riscos e cargas nocivas à saúde, sendo que também não pres-
supõem medidas de proteção à saúde juridicamente consistentes. Somam-se
a isso, obstáculos postos ao processo de construção de identidades, projetos
de vida e de representação/organização coletiva que são determinados pelas
contradições da produção capitalista e pelo movimento da luta de classes.

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As novas modalidades de trabalho precário e a ampliação do setor de
serviços, que integram a reorganização da estrutura produtiva, debilitam as
tentativas de articulação das entidades representativas da classe trabalhadora,
como os sindicatos. Nesse sentido, é possível arguir sobre a ausência de um
histórico de combatividade e os limites de construção de uma identidade
coletiva desses trabalhadores, frente a diferentes formas de inserção que são
perpassadas por discursos de autonomia e empreendedorismo, restringindo a
compreensão de uma experiência comum de condições precárias de trabalho
e de superexploração. Inclusive, essa fragilização, insegurança, instabili-
dade e desproteção podem estar na base de transtornos psíquicos (FRANCO;
DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010).
Apesar das dificuldades, a experiência dos trabalhadores em face do
aprofundamento da precarização também tem feito eclodir movimentos de
contestação e reivindicação, abrindo margem para o avanço de algum tipo
de organização coletiva (BRAGA, 2017; 2020; ANTUNES, 2018), que são
fundamentais para enfrentar a superexploração do trabalho, pois, em sua vora-
cidade pelo lucro, o capital não vislumbra qualquer obstáculo para precarizar
o trabalho. A exploração sem travas da força de trabalho expressa as contradi-
ções da sociabilidade capitalista, que não pode abdicar do trabalho vivo para
sua reprodução, mas necessita explorá-lo ao máximo, “impondo-lhe o sentido
mais profundo de sua mercantilização: a abreviação de seu tempo de uso
como resultado do aprofundamento, pelo adoecimento, de sua característica
de mercadoria de alta descartabilidade” (ANTUNES; PRAUN, 2015, p. 423).
Em todas as suas dimensões e/ou em suas mediações, a precarização
repercute no processo saúde-doença dos trabalhadores, aumentando a sua
exposição aos riscos e às cargas do trabalho e, ao mesmo tempo, se associa à
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 379

restrita efetividade das políticas sociais implementadas pelo Estado, como as


do Trabalho, da Saúde e da Previdência Social. Com efeito, todas elas foram
objeto de contrarreformas e/ou de normativas limitadoras de suas ações e, tam-
bém, se tornaram alvo de desfinanciamento e/ou privatização, incidindo como
uma contraofensiva ultraneoliberal sobre a classe trabalhadora já duramente
espoliada pelo capital. Essas mediações permitem destacar a relação desgaste/
reprodução da força de trabalho em seus vínculos com os agravos à saúde –
acidentes de trabalho e o adoecimento reconhecido ou não como relacionado
diretamente ao trabalho –, que acometem os trabalhadores que acessam o
Serviço de Reabilitação Profissional (SRP) do INSS, como se expõe a seguir.

A reabilitação profissional e a descartabilidade da força de


trabalho
Editora CRV - Proibida a comercialização

Como visto, há uma interseção entre a precarização do trabalho e a saúde


dos trabalhadores, à medida em que seus processos de uso, consumo e remunera-
ção da força de trabalho, aumentam o desgaste, fazendo-os adoecer física e men-
talmente e destruindo, de forma contingente ou duradoura, a sua capacidade para
o trabalho. O antagonismo entre capital e trabalho é a origem dessa interseção
que, também, expressa esse paradoxo irremediável, reproduzindo o seu caráter
contraditório no âmbito da própria saúde-doença, já que a sua destruição está
condicionada à potencialização dos modos de exploração da força de trabalho.
As políticas sociais voltadas para a saúde dos trabalhadores integram a
reprodução da força de trabalho, na medida em que são constituídas através
do fundo público, representando a distribuição da riqueza socialmente produ-
zida (PÉREZ, 2017; SÁ, 2022), correspondendo à “socialização de parte do
salário, desresponsabilizando o capital de parte dos gastos com a reprodução
da força de trabalho, aumentando a parte da jornada relacionada à extração de
mais valor (trabalho excedente)” (SÁ, 2022, p. 57). Por isso, é fundamental
reconhecer que o serviço de reabilitação prestado pela Previdência Social aos
trabalhadores, após seu afastamento por agravos à saúde (doença ou acidente),
é financiado pelos trabalhadores, já que contribuem diretamente através do
desconto salarial ou indiretamente pelo pagamento de impostos e taxas.
O que se observa, entretanto, é a permanente subnotificação dos acidentes
de trabalho, doenças profissionais e/ou relacionadas ao trabalho no Brasil. Do
mesmo modo, há limitações dos serviços de saúde das empresas, centradas,
tradicionalmente, no modelo biomédico e na doença, com restrições nas con-
cepções sobre as relações trabalho-saúde, por distintas razões empresariais: pelo
simples escamoteamento dos riscos e cargas de trabalho; pelo ônus e repercus-
sões da legislação trabalhista e previdenciária no reconhecimento de acidentes
380

de trabalho; pelo não estabelecimento do nexo causal entre trabalho e saúde,


entre outros.
No que se refere às diferentes áreas envolvidas com a questão saúde dos
trabalhadores – no mínimo, as do Trabalho, Saúde e Previdência Social –, o que
prepondera é a fragmentação, o corporativismo e os interesses institucionais,
persistindo as limitações que, de modo conservador, atravessam as ações do
Estado brasileiro (VASCONCELLOS, 2013). Esta fragmentação acaba por
alimentar um círculo vicioso e diluidor das relações que, necessariamente,
precisam ser estabelecidas entre o trabalho (suas cargas e riscos) e o processo
saúde-doença. Hegemonicamente, permanece a lógica biomédica centrada em
fatores de risco e/ou, quando muito, nos determinantes sociais da saúde, sendo
que ambos não contemplam a complexidade do objeto trabalho-saúde e são
distantes de uma perspectiva crítica da determinação social do processo saú-
de-doença (BREILH, 2013). Afinal, o trabalho é gerador de desgaste, mesmo

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que possa não produzir diretamente agravos à saúde, ou mesmo que, por vezes,
ocorram dificuldades na identificação e estabelecimento destas relações, o que,
a rigor, requer a integração entre saberes e práticas que superem a fragmen-
tação e a especialização, bem como uma perspectiva intersetorial capaz de,
pelo menos, favorecer melhorias das condições de trabalho, reconhecimento
e consolidação de direitos sociais.
Mesmo no campo Saúde do Trabalhador, orientado por uma perspectiva
crítica e indissociável da participação dos trabalhadores como sujeitos do
controle sobre os processos de trabalho em que se inserem e das tomadas de
decisão e mudanças, há limites para sua efetivação, dadas as ações frágeis
e pontuais (VASCONCELLOS, 2013). Ademais, acabam por se refratar em
lutas sociais, procurando avançar tais concepções e práticas, mas, que a rigor,
supõem uma outra ordem, posto que são, em essência, anticapitalistas.
No caso da política previdenciária, há limitações seja no que se refere à
concessão de benefícios por incapacidade temporária, seja no que toca espe-
cificamente a própria estruturação do SRP. Destaca-se que os dois últimos
governos – de Michel Temer e Jair Bolsonaro – investiram na desconstrução
do SRP, como parte de um projeto de reordenamento do capital diante de suas
crises, em que os direitos dos trabalhadores são alvo constante (SÁ, 2022).
Durante o Governo Temer, o manual técnico de Reabilitação Profissional foi
revogado com a publicação de um novo (INSS, 2018), que excluiu todo o
conteúdo avançado, contendo concepções e práticas acerca: da política de
Saúde do Trabalhador; da centralidade do trabalho no processo saúde-doença;
de esforços pela intersetorialidade ou da integração de ações no atendimento
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 381

aos trabalhadores. E, ainda, foi retirado o modelo de avaliação biopsicossocial


e dado papel central ao perito médico, que se tornou exclusivamente respon-
sável pelo ingresso do trabalhador no serviço, sem contar com a avaliação
de nenhum outro profissional. Com isso, a orientação do SRP se concentrou
na padronização de procedimentos tecno-burocráticos, eliminando quaisquer
possiblidades interdisciplinares.
Na esteira da contrarreforma da Previdência Social do Governo Bol-
sonaro, em 2019, a Diretoria de Saúde do Trabalhador foi extinta, passando
o SRP para a Diretoria de Benefícios (DIRBEN). Posteriormente, houve a
saída da Perícia Médica da estrutura do INSS, sendo os peritos vinculados à
Subsecretaria de Perícia Médica Federal, subordinada à Secretaria de Traba-
lho e Previdência. Com isso, houve alterações no SRP e nas atribuições dos
profissionais, com a retração dos canais de discussão, acompanhamento e
diálogo entre eles. O poder quase soberano dos médicos peritos tem gerado
Editora CRV - Proibida a comercialização

diversas limitações, devido às suas decisões unilaterais, tais como desliga-


mentos de trabalhadores do SRP, com conclusão do benefício previdenciário
e indicação de retorno ao trabalho na função de origem, mesmo se estiver
em curso a sua qualificação profissional, com a justificativa de que houve,
na avaliação médico-pericial, a constatação da sua aptidão para o trabalho,
dentre outros (SÁ, 2022).
Mesmo diante do cenário de precarização do trabalho e das limitações
das políticas sociais, em particular da política previdenciária, seria possível,
aos trabalhadores reabilitados pela Previdência Social a garantia de retorno
ao trabalho formal? Os dados relacionados ao estudo realizado por Sá (2022)
sobre um grupo de 76 trabalhadores210, que constituía o total dos reabilitados,
em 2018, na APS/INSS da Zona Oeste do Rio de Janeiro/RJ, indicam que
não. Isto porque apenas 38% (N=29) se mantiveram empregados durante o
ano subsequente (2019) à cessação do benefício previdenciário. A condição
se agrava ainda mais porque, além de não ocorrer a manutenção dos vínculos
formais de trabalho após a cessação do benefício, a maioria destes trabalhado-
res, o equivalente a 62% (N=47), não conseguiu se reinserir em novos vínculos
formais de trabalho de forma integral em 2019. Isto é, tiveram rebaixada a
sua condição de trabalhador assalariado, vivenciando o desemprego, inserções
temporárias e o limbo previdenciário, como apresentado no gráfico 1 a seguir.

210 Nesta agência do INSS, em 2018 o total de trabalhadores reabilitados foi de 77 (setenta e sete); todavia na
análise um caso atípico foi desconsiderado, pois a trabalhadora solicitou desligamento por ter sido aprovada
em concurso público.
382

Gráfico 1 – Trabalhadores reabilitados sem inserção no mercado de trabalho


formal de forma integral: INSS, APS Realengo, RJ/RJ, 2018/2019
Aposentadoria 1

Vínculo na empresa de origem


Desemprego 15 por período parcial 16

Sem retorno à empresa


de vínculo de origem 11 Novo vínculo temporário
de trabalho 4

Fonte: Elaboração a partir de dados do INSS (CNIS; SABI), 2018-2019 (SÁ, 2022).

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O primeiro subgrupo classificado como “vínculo na empresa de origem
por período parcial” (N=16 / 34,04%), denota uma reinserção de trabalhadores
reabilitados que mantiveram elo formal nas empresas de vínculo de origem211,
mas de forma parcial, sendo demitidos em 2019. Estes trabalhadores, por-
tanto, não permaneceram empregados de forma integral durante todo aquele
ano. Neste subgrupo, nota-se a prevalência majoritária da recusa do empre-
gador à solicitação de reabilitação profissional feita pela Previdência Social
(N=10 / 62,5%). Já os trabalhadores com “inserção em novo vínculo formal
de trabalho de forma parcial” (N=4 / 8,51%), se referem aos trabalhadores
reabilitados que, após demissão pelo empregador de seu vínculo de origem,
estabeleceram vínculo formal de trabalho junto a novos empregadores, mas
por período parcial, temporário, não permanecendo com inserção formal e
integral de trabalho e caindo, posteriormente, no desemprego.
Os trabalhadores “sem retorno à empresa de vínculo de origem” (N=11 /
23,40%) correspondem àqueles que, após conclusão do processo de reabilitação
profissional e cessação do benefício previdenciário, efetivamente não retornaram
ao trabalho, visto que, pelo CNIS, não houve contribuições previdenciárias pos-
teriores, nem informações sobre pagamento de salário a este grupo e tampouco
os vínculos trabalhistas foram encerrados ou novos vínculos assumidos. Tal
situação sugere que estes trabalhadores foram considerados inaptos ao trabalho,
por seus empregadores, e impedidos de retornarem ao trabalho, ou discordaram
da decisão do INSS, buscando possíveis recursos (administrativo ou judicial)
quanto à cessação do benefício previdenciário frente à incapacidade laboral. São

211 Utilizamos a expressão “empresa de vínculo de origem” para denominar os vínculos formais de trabalho nos quais
o trabalhador estava vinculado quando ocorreu seu afastamento do trabalho em razão dos agravos à saúde.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 383

trabalhadores que ficam, assim, no limbo previdenciário, sem acesso tanto ao


benefício quanto à percepção de salários para a sua subsistência e de sua família.
O subgrupo “desemprego” (N=15 / 31,91%), se refere aos trabalhadores
que foram desligados/demitidos do vínculo formal de trabalho ainda no ano de
2018, quando concluíram o processo de reabilitação profissional e tiveram a
indicação pela Previdência Social de retorno ao trabalho e não acessaram, em
nenhum momento, novos vínculos de trabalho formais durante o ano de 2019.
Ou seja, são trabalhadores que retornaram aos locais de trabalho, mas permane-
ceram no vínculo por curto período, sendo demitidos em seguida. Neste grupo,
foi possível identificar casos em que as empresas foram favoráveis ao processo
de reabilitação profissional, inclusive oferecendo novas ocupações profissionais.
Fato que chama a atenção, pois pode indicar um comportamento de burla de
empregadores à legislação, visto que, na prática, os trabalhadores não tiveram
a reabilitação profissional garantida e viabilizada, denotando a descartabilidade
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do trabalhador, sem nenhum constrangimento, pelo empregador. Acrescente-se,


ainda, um único trabalhador (N=1 / 2,14%) que, após a reabilitação profissional,
requereu aposentadoria, já que reunia condições para tal.
Os dados demonstram que a reabilitação profissional da Previdência
Social não tem sido capaz de contribuir para a reinserção dos trabalhadores
no mercado de trabalho formal. Tal evidência confirma o caráter descartável
desta parcela de trabalhadores para o capital, frente ao expressivo e ampliado
exército de reserva da força de trabalho disponível e passível de ser contratada
e consumida nas atuais condições de desvalorização da força de trabalho.
Cabe ressaltar também que a maioria dos agravos à saúde, que gerou
os afastamentos e posterior reabilitação profissional no grupo pesquisado,
não teve reconhecimento de nexo causal pela Previdência Social. Como já
exposto, grandes são as limitações nesta direção por parte de diferentes sujeitos
que atuam junto às relações trabalho-saúde no país, sendo a subnotificação
uma constante no caso brasileiro. Deve ser ressaltado aqui, a despeito deste
não estabelecimento do nexo causal, a centralidade da dinâmica desgaste/
reprodução em sua correspondência com o contexto histórico e o quadro
de morbimortalidade atual entre a classe trabalhadora. Isto porque os dois
principais motivos de agravos à saúde, que levaram ao afastamento do tra-
balho, são as doenças do sistema osteomuscular ou do tecido conjuntivo
seguido pelos agravos acometidos por causas externas/traumas, para ambos
os sexos. Entre os homens, observa-se como terceira causa o adoecimento
mental (estresse pós-traumático, transtorno de ansiedade, depressão e depen-
dência química), seguido das doenças do sistema circulatório (cardiopatias,
tromboflebite). Já entre as mulheres, os demais motivos de agravos à saúde
são dispersos, relacionados a doenças do sangue (leucopenia), do aparelho
384

circulatório (trombose), transtorno mental (depressão) e sintoma da fala e da


voz (disfonia).
Neste cenário, cabe apontar que, nem sempre, o processo de reabilitação
profissional possibilita que o trabalhador recobre plenamente a sua capacidade
psicofísica, mesmo sendo considerado apto para o retorno ao trabalho. Neste
caso, existe uma lógica perversa, em que os processos de retorno do trabalhador
na condição de reabilitado ou com algum tipo de limitação não são isentos de
práticas discriminatórias ou, mesmo, abusivas, através das quais os trabalhado-
res são desqualificados e depreciados, dificultando ainda mais a sua reinserção.
O agravamento da situação desses trabalhadores é evidente, quando se
verifica que o seu perfil sócio-ocupacional, em geral, conta, de forma majori-
tária, com rendimentos entre 1 e 2 salários-mínimos, escolaridade até ensino
médio, ocupando funções do setor de serviços e de baixa complexidade. Seus
rendimentos, em grande medida, não são suficientes para garantir os meios

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de subsistência necessários para recuperar a sua saúde.
Soma-se a isso, o fato de que a maioria dos trabalhadores (N=47) que não
conseguiu se reinserir em novos vínculos formais de trabalho de forma integral
em 2019, também não conseguiu manter a contribuição para a Previdência
Social, com exceção de apenas três trabalhadores que a mantiveram na condição
de contribuintes individuais por um curto período. Então, além de não terem sido
recolocados formalmente no mercado de trabalho, esses trabalhadores também
ficam sujeitos à perda da qualidade de segurados da Previdência Social, pois sem
contribuição, perdem a cobertura e, portanto, os seus direitos previdenciários.
A ineficiência da Previdência Social resulta no rebaixamento da sua condi-
ção de trabalhador assalariado e, por conseguinte, em futura desvinculação desta
política, uma vez que, na ausência do trabalho formal, não há contribuição para
a Previdência Social. Isto é corroborado, também, por não ter sido identificado
no grupo pesquisado qualquer recolhimento por iniciativa própria de forma
permanente a fim de garantir a sua proteção social e a de seus familiares, deno-
tando, este processo, como uma das pontes para o desemprego, a informalidade
e/ou o aprofundamento dos processos de precarização da força de trabalho.
Deste modo, os trabalhadores reabilitados adensam a superpopulação
relativa e se transformam em indivíduos descartáveis, flutuantes que, de acordo
com a necessidade do consumo dessa força de trabalho, ora acessam o mercado
de trabalho formal, ora dele são expulsos. É muito aviltante para um trabalha-
dor ser acometido por um agravo à saúde que impede sua forma de sobreviver
nesta sociabilidade e, ao depender da política social, por ele custeada, não ter
suas necessidades atendidas. Ademais, como exposto, o desgaste desta força
de trabalho tem sua centralidade na própria inserção e consumo produtivo
destes trabalhadores nos processos de trabalho em que se inserem. Assim, a
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 385

reabilitação profissional favorece os interesses do capital e sedimenta pontes


para o caráter supérfluo, contingente ou duradouro, de parcelas crescentes da
classe trabalhadora superexploradas e descartadas.

Considerações finais

A dinâmica da superpopulação relativa no Brasil e no mundo, atualmente,


evidencia a reposição da precariedade estrutural da força de trabalho sob o sis-
tema capitalista, pela ampliação do exército de reserva e pelo processo de pre-
carização das condições de venda da força de trabalho e das condições de vida e
existência, atendendo às necessidades e interesses da acumulação do capital no
processo histórico-social, marcado pela financeirização e (ultra)neoliberalismo.
É fato que no Brasil, as relações de trabalho, estiveram medularmente
marcadas pelo desemprego, pela precarização do emprego e do mercado de
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trabalho, pela informalidade e ausência de direitos trabalhistas, pelo rebaixa-


mento dos salários. Esses aspectos, relacionadas com a constituição de força de
trabalhado excedente, levam à desestabilização dos trabalhadores empregados
que, juntamente, com os trabalhadores subempregados e precários, enfrentam
a competição acirrada, a insegurança e a instabilidade, e se submetem à supe-
rexploração, que faz aumentar o desgaste da sua força de trabalho.
A organização e as condições de trabalho, em várias atividades econômi-
cas, são demarcadas pela subordinação às metas de produtividade e ao ritmo
intenso do trabalho, com o auxílio de novas tecnologias informacionais-digi-
tais, que ampliam a extração da mais-valia ao mesmo tempo em que expurga
a força de trabalho viva. A forte pressão do tempo para execução das tarefas
somada à intensificação do controle sobre o desempenho dos trabalhadores,
sob ameaça de demissão, incide tanto na sociabilidade quanto na sua saúde
física e mental. A aceleração do ritmo de trabalho e a compressão do tempo
com a eliminação de porosidades, de pausas para repouso e recuperação do
cansaço, levam ao esgotamento do trabalhador e resultam na exposição aos
distintos riscos e/ou cargas do trabalho.
Os trabalhadores precarizados e/ou uberizados sofrem as repercussões des-
ses aspectos das condições e da organização dos processos de trabalho em sua
saúde-doença, sobretudo, pela extenuação causada pelas jornadas extensivas,
exponenciadas pela desproteção social e baixa remuneração. Nesse caso, o grande
capital consegue ampliar a taxa de extração de mais-valia, repassando ao traba-
lhador os custos da manutenção de parte dos meios de trabalho e da proteção de
sua saúde, a exemplo da compra de equipamentos de proteção individual – como
se viu, recentemente e ainda mais, no contexto pandêmico de covid-19.
386

Além disso, a ideia de uma suposta autonomia – também apregoada nas


estratégias de gestão orientada pelo discurso da flexibilidade – persuade o
trabalhador a considerar que há vantagens no prolongamento da sua jornada
ou intensificação do ritmo de sua atividade, mesmo que isso prejudique a
sua saúde. O suposto controle pelo trabalhador sobre os meios imediatos de
trabalho, ou sobre o tempo trabalhado, escamoteia aquele exercido, de fato,
pelas empresas, como também são transferidas as responsabilidades para os
trabalhadores, que devem criar suas próprias condições de trabalho e respon-
der, eles mesmos, pelos agravos à sua saúde.
É fato que os trabalhadores – adoecidos e acidentados – recorrem ao
Estado, através das políticas sociais, para obter os recursos mínimos neces-
sários à sua sobrevivência e, caso sejam segurados da Previdência Social, são
inseridos no Serviço de Reabilitação Profissional dessa política que, cada vez
mais, fica restrita à uma fração da classe trabalhadora, que a ela se vincula de

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forma compulsoriamente contributiva. Apesar de o processo de reabilitação
pretender propiciar aos segurados, incapacitados parcial ou totalmente para
o trabalho, os meios para o seu reingresso no mercado de trabalho e na sua
vida normal, na realidade isso não ocorre. Ao contrário, eles são lançados à
condição precária e de descartabilidade, como aqui demonstrado.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 387

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O presente trabalho apresenta um aprofundamento dos estudos212 desen-


volvidos no interior do projeto de extensão “Assessoria, Consultoria e Super-
visão para a Sistematização de Experiência Profissional de Assistentes Sociais
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no INSS” e do projeto de pesquisa “Trabalho, orçamento de pessoal e Serviço


Social”, tendo por objetivo debater as alterações no processo de trabalho cole-
tivo na política previdenciária e seus impactos para o Serviço Social a partir
do predomínio do gerencialismo na esfera pública. Nesse sentido, atribuímos
enfoque à inter-relação entre a crise capitalista, os pilares da nova adminis-
tração pública e a inserção das tecnologias da informação (TI’s) para refletir
sobre seus impactos no trabalho das/os assistentes sociais.
O foco da reflexão está na compreensão da contrarreforma administrativa
de caráter trabalhista do Estado brasileiro como expressão do acirramento da
crise capitalista que vem requerendo maiores parcelas do fundo público. No
âmbito dos gastos com os servidores públicos, identificamos um incessante
esforço para redução do Orçamento Bruto de Pessoal, operacionalizado a partir
de intensas alterações no âmbito do trabalho na esfera pública associadas ao
predomínio do gerencialismo. Nessa direção, investigamos, a partir da sis-
tematização da experiência de supervisão técnica para assistentes sociais da
política previdenciária, um conjunto de alterações na forma de organização
do processo de trabalho coletivo e seus impactos para a atuação profissional
orientada pelo projeto profissional crítico. Para tal, partimos da compreen-
são do Serviço Social na sua dimensão de trabalho assalariado, inserido em
processos de trabalho que não são por ele organizados.
O trabalho está organizado de modo a apreender o debate sobre o pro-
cesso de trabalho em Marx articulado à compreensão do trabalho produtivo e
improdutivo. Apresentamos as mudanças na forma de organização do trabalho

212 A presente produção é um aprofundamento da sistematização apresentada no XVII Congresso Brasileiro


de Assistentes Sociais.
392

coletivo a partir da inserção das práticas e formas de gestão que aproximam


o trabalho na esfera pública dos padrões da empresa privada. Analisamos,
também, como essas tendências se particularizam no trabalho profissional
da política previdenciária, atentando para as principais alterações e seus
impactos para o Projeto Ético-Político do Serviço Social (PEP). Em nossas
considerações finais situamos as presentes transformações como parte da
permanente contrarreforma administrativa e a descaracterização, ou despro-
fissionalização, que ela vem promovendo para nossa categoria profissional
na previdência social.
Acreditamos que o presente estudo traz uma importante contribuição para
o debate sobre o trabalho profissional no contexto do aprofundamento da pre-
carização, realizando um esforço reflexivo no âmbito dos desafios colocados
para o PEP no contexto de inserção massiva da lógica gerencial na política
pública. Trata-se, sobretudo, de um esforço de articulação entre pesquisa e

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extensão, de uma forma de produção de conhecimento que se dá a partir da
sistematização da experiência de dezenas de assistentes sociais da previdência;
profissionais esses que vêm participando de processos de formação continuada
e retroalimentando nossos estudos e indagações.

Processos de trabalho: as particularidades do trabalho produtivo


e improdutivo

Todo trabalho, para Marx, envolve processos de trabalhos e exige, inde-


pendente da época histórica, matéria-prima, meios de trabalho e atividades
adequadas à um fim. A matéria-prima é, para Marx, o objeto de trabalho do
ser humano, isto é, os materiais que serão transformados em algo novo após
serem consumidos pelo trabalho. Os meios de trabalho são coisas ou comple-
xos de coisas entre o homem e a matéria-prima. A atividade adequada a um
fim é, propriamente, o trabalho. Portanto, não há processos de trabalho sem
matéria-prima, meios de produção e atividade adequada a um fim, no entanto,
na sociedade capitalista esse processo de trabalho ganha contornos próprios. O
capitalista é o dono de todos os elementos do processo de trabalho, isto é, dono
da força de trabalho, dos meios de produção e dos instrumentos de trabalho.

O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence


seu trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realize de maneira
apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produção,
não se desperdiçando matéria-prima e poupando-se o instrumental de tra-
balho, de modo que só se gaste deles o que for imprescindível à execução
do trabalho (MARX, 1980, p. 209).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 393

Desse modo, ao fim do processo de trabalho ele tem um valor que supera


a soma das mercadorias compradas para realização do processo de trabalho.
Nesta direção, como atenta Marx, a “transformação de seu dinheiro em capital
sucede na esfera da circulação e não sucede nela”. (MARX, 1980, p.219). Ou
seja, a criação de mais-valor ocorre na produção, momento no qual o capita-
lista se apropria do produto do trabalho excedente do trabalhador. No entanto,
na circulação o capitalista compra a força de trabalho, mercadoria que tem
por característica produzir valor. É, também, nesta esfera que se consolida, se
realiza, o mais-valor extraído na produção. Portanto, na troca se consolida a
fórmula D-M-D’213, isto é, o capitalista começou esse processo com dinheiro,
para comprar força de trabalho, meios de produção e matéria-prima, ele retorna
à esfera da circulação com sua mercadoria que já contém mais-valor extraído
na produção, ao trocá-la o capitalista consolida o processo de transformação
do dinheiro em capital.
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A discussão sobre o processo de trabalho não está restrita à dimensão


material, objetiva e produtiva. Para Marx (1980), o processo de trabalho
também se faz presente no setor de serviços, de forma particular. O serviço
caracteriza-se pelo trabalho que é útil como atividade, isto é, o trabalho na
esfera dos serviços não produz, geralmente, um valor de uso ou mercadoria
objetiva ao final do processo de trabalho. Este, portanto, se produz apenas
como atividade, não impedindo, de forma nenhuma, a teoria valor trabalho
no campo dos serviços, uma vez que, para Marx, as mercadorias servem
para satisfazer necessidade materiais e espirituais. É nesta direção que esta-
mos refletindo sobre a mercadoria não apenas como matéria concreta após
o processo de trabalho, mas, também, como atividade que pode produzir
mais-valor ou não.
Para Marx (1980), o trabalho que produz mais-valor é considerado produ-
tivo, ou seja, trabalho que se troca por capital e produz uma nova mercadoria
cujo valor acopla os meios de produção como capital. No processo capitalista
de produção, o trabalhador produtivo é sempre trabalhador coletivo e produz
mais-valor, uma vez que a produção exige a combinação de diferentes traba-
lhos sob o domínio do capital, processo esse aberto no período da manufatura
oriundo da subsunção real do trabalho. O trabalho produtivo, levando em
conta as contribuições do autor alemão, é restrito à esfera da produção, não

213 No tomo I do Capital, Marx também pontua a existência da forma D-D’, forma do capital usurário ou juros. A forma
aparente desta fórmula leva a falsa compreensão que o dinheiro se torna mais dinheiro sem ter, diretamente,
mediação com a esfera da produção. Marx diz: “no capital usurário, a forma D-M-D’, reduz-se a dois extremos
sem termo médio D-D’, dinheiro que se troca por mais dinheiro e por isso inexplicável do ponto de vista da
troca de mercadoria” (MARX, 1980, p. 184). Essa discussão será aprofundada no terceiro item deste capítulo.
394

podendo ser estendido para a esfera da circulação214 uma vez que pressupõe
a criação de mais-valor.
Esse processo não ocorre nem na circulação, nem no consumo, nem na
financeirização e não pode ser explicado pela condição de assalariamento,
para Marx, “um trabalhador pode ser trabalhador assalariado, jornaleiro etc.
[...] Todo trabalhador produtivo é assalariado, mas nem todo trabalhador assa-
lariado é produtivo” (MARX, 1985, p. 111). O trabalho improdutivo, por sua
vez, é comprado:

[...] para o consumir como valor de uso, como serviço, não para colocar
como fator vivo no lugar do valor do capital variável e o incorporar ao
processo capitalista de produção, o trabalhador não é produtivo e o traba-
lhador assalariado não é produtivo. (MARX, 1985, p. 112)

O trabalho que se desfruta como serviço pode ser produtivo ou improdu-

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tivo. O que define o serviço ser produtivo ou improdutivo determina-se pelo
lugar ocupado na divisão do trabalho e não pelo conteúdo do trabalho. Assim,
é improdutivo quando comprado para satisfazer uma necessidade, comprado
por sua característica útil e não por sua capacidade de produzir mais-valor.
Neste caso é trocado por renda e não por capital e o dinheiro funciona como
meio de circulação.
Sobre o assalariamento no trabalho improdutivo Marx vai tratar dos seguin-
tes eixos: os trocados por renda e os trocados por capital. Esses trabalhadores
participam de forma diferenciada da reprodução do capital e estabelecem, por-
tanto, relações diferenciadas com a esfera da reprodução. No âmbito do trabalho
trocado por renda temos também os trabalhadores que estão na órbita do Estado.
O assalariamento desses trabalhadores é originado de parte do trabalho exce-
dente e do trabalho necessário canalizada na forma do fundo público215, por meio
de impostos e tributos pagos por capitalistas e trabalhadores, portanto, eles não
são remunerados diretamente com os rendimentos do capital operacionalizados
no ciclo de valorização. Neste sentido, os trabalhadores na órbita do Estado não

214 Na apropriação de Marx feita por Cotrim (2009) existem dois tipos de trabalho produtivo na esfera da cir-
culação que agregam valor às mercadorias, são eles: transporte de mercadorias e manutenção de valores
de uso ou estoque.
215 Compreendemos que o fundo público se origina do trabalho excedente e necessário, pagos na forma de
impostos e contribuições tanto por capitalistas quanto por trabalhadores. De acordo com Behring (2018), o
fundo público se conforma, por um lado, por meio da mais-valor social oriundo do capital industrial, portador
de juros, comercial e dos proprietários de terra e, por outro lado, é trabalho necessário, cuja tributação incide
diretamente no salário. Esta última tendência tem se acirrado na emersão das políticas neoliberais no mundo,
ampliando sem medidas a contribuição dos trabalhadores para a conformação do fundo público.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 395

participam diretamente do processo de valorização do capital216 e, também, não


produzem nenhum valor novo. São, portanto, improdutivos.
Nesta direção, partilhamos da compreensão que o que define o traba-
lho como produtivo ou improdutivo não é a produção direta de um produto
material ou imaterial, mas sim a relação social em que se insere o traba-
lhador independentemente de estar nos serviços ou na indústria217. Essa
relação social deve ser analisada tendo em vista o trabalhador coletivo,
ou seja, não é o trabalho individual e nem o lugar ocupado no processo de
produção (operário, gerência, contabilidade) que determina se o trabalhador
é produtivo ou improdutivo.

Gerencialismo e contrarreforma do Estado brasileiro

Em nossa compreensão, o processo de alteração na esfera pública não


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está descolado do recente processo de reestruturação produtiva do capital. A


crise do capital deflagrada na década de 1970 provocará profundas alterações
no trabalho e no Estado. A estratégia para recuperação da taxa de lucro passará
por um profundo ataque ao trabalho, expresso numa intensa expropriação de
direitos, aumento das inovações tecnológicas, crescimento do desemprego e
precarização do trabalho. Temos, nesse processo, um novo regime de acu-
mulação que busca romper com a rigidez do binômio fordista-taylorista. De
acordo com Alves “o núcleo ideológico do novo regime de acumulação fle-
xível é o toyotismo, posto como a ideologia orgânica do novo complexo de
reestruturação produtiva que surge com a mundialização do capital” (ALVES,
2014, p. 55). Temos, nesse contexto, uma

[...] estrutura produtiva mais flexível, através da desconcentração da estru-


tura produtiva, das redes de subcontratação (empresas terceirizadas), do
trabalho em equipe, do salário flexível, das “células de produção”, dos
“time de trabalho” e dos grupos “semiautônomo” [...] o trabalho poli-
valente, multiprofissional, qualificado, combinado com uma estrutura
mais horizontalizada e integrada entre diversas empresas [...] práticas de

216 Nos limites desse trabalho podemos dizer que a esfera pública é organizada majoritariamente pelo trabalho
improdutivo, contudo, sabemos que há segmentos que participam do ciclo de valorização do capital, tais
como aqueles vinculados às empresas públicas.
217 Cabe aqui pontuar que o trabalho produtivo é aquele que produz mais-valor. Por mais-valor, conforme já
abordado, Marx (1980) compreende a parcela do trabalho não paga ao trabalhador. Essa parcela pode ser
alcançada com o prolongamento da jornada de trabalho ou pela intensificação do trabalho por meio da
tecnologia ou da gestão da força de trabalho que permita produzir mais no mesmo tempo. Em ambos os
casos, a ampliação a força de trabalho continua sendo remunerada pelo tempo de trabalho socialmente
necessário e não por sua capacidade de produção. Portanto, essas teorias sobre o mais-valor não se referem
ao trabalho material ou imaterial, mas a produção de um excedente não pago ao trabalhador.
396

metas, das competências dos trabalhadores tornaram-se regras no ideário


empresarial (ANTUNES; DRUCK, 2014, p. 140)

Por sua vez, compreendemos o gerencialismo como um movimento


prático e ideológico que aproxima a esfera pública dos valores e métodos
da empresa privada; expressando uma “formação cultural e um conjunto
distinto de ideologias e práticas que formaram um dos sustentáculos do
novo acordo de gestão pública que emergia com o neoliberalismo [...]”
(MOREIRA; PEREIRA; ALMEIDA, 2021, p. 51). A estrutura produtiva
flexível adentra a esfera improdutiva do Estado, com o objetivo central não
consiste na ampliação da taxa de mais-valor, uma vez que estamos falando
de um trabalho que não produz mais-valor218. Em nossa compreensão, a
adoção desses métodos no Estado refere-se à necessidade crescente de
apropriação do fundo público no contexto de aprofundamento da crise

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capitalista. É no âmbito do orçamento público que essa disputa vem se
acirrando, promovendo uma permanente punção do orçamento das políticas
públicas e de pessoal. O reflexo desse processo está expresso na restrição
e focalização das políticas públicas e, também, num intenso processo de
precarização do trabalho.

[...] O conteúdo dessa (nova) precarização está dado pela condição de


instabilidade, de insegurança, de adaptabilidade e de fragmentação
dos coletivos de trabalhadores e da destituição do conteúdo social do
trabalho. Essa condição se torna central e hegemônica, contrapondo-se
a outras formas de trabalho e de direitos sociais duramente conquistados
em nosso país, que ainda permanecem e resistem. O trabalho precário
em suas diversas dimensões (nas formas de inserção e de contrato, na
informalidade, na terceirização, na desregulação e flexibilização da
legislação trabalhista, no desemprego, no adoecimento, nos acidentes
de trabalho, na perda salarial, na fragilidade dos sindicatos) é um
processo que dá unidade à classe que-vive-do-trabalho e que dá unidade
também aos distintos lugares em que essa precarização se manifesta. Há
um fio condutor, há uma articulação e uma indissociabilidade entre: as
formas precárias de trabalho e de emprego, expressas na (des)estrutura-
ção do mercado de trabalho e no papel do Estado e sua (des) proteção
social, nas práticas de gestão e organização do trabalho e nos sindicatos,
todos contaminados por uma altíssima vulnerabilidade social e política
(DRUCK, 2011, p. 41, grifos nossos).

218 Tendo em vista nossa finalidade de refletir sobre o Serviço Social na política previdenciária estamos deli-
mitando nossa compreensão ao conjunto de trabalhadores que participam do processo de redistribuição
do fundo público.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 397

Osborne e Gaebler (1993) através do livro Reiventando o Governo


lançam as bases do gerencialismo, ou, em outras palavras, a adequação do
Estado aos padrões preponderantes das empresas privadas. Seus padrões
são orientados pelo controle de resultados nos órgãos públicos; competição
entre os prestadores de serviços públicos; preponderância para mecanis-
mos do mercado em contraposição aos padrões burocráticos; ampliação do
investimento em recursos em detrimento dos insumos. Cabe ao governo
organizar e à iniciativa privada - e o chamado “terceiro setor” - executar os
serviços públicos. De acordo com Reis (2016), os pilares do gerencialismo
podem ser sintetizados da seguinte forma:

1) Governo empreendedor; 2) Orientação para o mercado; 3) Ambiente


de competição entre agências públicas e o mercado; 4) Descentralização
do serviço público: descentralização das ações do poder central para os
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núcleos no âmbito federal, estadual e regional. Além disso, verifica-se o


estímulo em firmar parcerias com o setor privado e com as organizações
não governamentais (ONGs); 5) Maior autonomia para as agências públi-
cas; 6) Privatização e terceirização; 7) Lógica empresarial, substituição
de cidadão por cliente; 8) Desregulamentação do mercado de trabalho,
flexibilização das leis trabalhistas, fim da seguridade do emprego público,
negociação coletiva, novas formas de contratos de trabalho; 9) Uso da
linguagem empresarial: busca por eficiência, eficácia, foco em resulta-
dos, gestão horizontalizada, redução de custos, controle dos processos
e do trabalhador, mecanismos de avaliação de desempenho [...]; 10)
Aplicação do contrato de gestão para controle dos gestores públicos.
Refere-se aos contratos entre as instituições estatais e o poder central,
em que são utilizados normas e instrumentos responsáveis por medir e
controlar as metas e os objetivos explicitados nos contratos. Em grande
medida, este procedimento vincula-se a narrativa da gestão por resultados
(REIS, 2016, p. 111/112).

No Brasil, ao longo da década de 1990 as conquistas dos trabalhado-


res encontraram sérias dificuldades de materialização, expressas através do
discurso e de práticas de contrarreforma do Estado que tem como medida
de arranque o Consenso de Washington (1989). Esse processo se expressou
no ajuste estrutural do Estado, como imposição de instituições multilaterais,
atrelando a retomada do crescimento e o controle da inflação à disciplina
orçamentária pela via da reforma fiscal.
As contrarreformas incluíram a privatização de empresas públicas, reor-
denamento das políticas e da administração pública. Esse processo se caracte-
rizou por um desmonte dos direitos sociais no Brasil, por um desfinanciamento
398

da seguridade social, expresso numa precarização dos serviços públicos, repro-


duzindo a lógica do público para os pobres e o privado para as classes mais
abastadas. De acordo com Druck (2021), a reestruturação do Estado se dá em
dois campos “1. privatização de empresas estatais e 2. reformas do aparelho
estatal, introduzindo o Estado gerencial, sustentado na mercadorização da
instituição pública, que passa a funcionar como uma empresa” (DRUCK,
2021, P. 4).
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado representa um forte
ataque às conquistas dos trabalhadores por intermédio de sua orientação
de transferência de ações do Estado para o mercado, redução dos direitos
sociais, desmonte da seguridade, fortes ataques ao funcionalismo público
e um intenso processo de desregulamentação do trabalho. O governo de
FHC (1995-2002) não alterou apenas a estruturação das políticas públicas
previstas na Constituição Federal de 1988, modificou também a Adminis-

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tração Pública, a partir de uma contrarreforma administrativa de caráter
trabalhista, que implementou um modelo gerencial e atacou frontalmente
o Regime Júridico Único (RJU) que regulamenta o trabalho dos servidores
públicos. Bresser-Pereira, principal ideólogo da contrarreforma gerencial do
Estado, pensa que a contrarreforma administrativa deve impor um modelo
mais flexível de gestão da força de trabalho estatal, seguindo as tendências
do mercado de trabalho na esfera privada:

A reforma gerencial no Brasil [...] aprofunda e renova a reforma buro-


crática, propondo uma forma mais flexível e descentralizada de admi-
nistrar os recursos humanos, e definindo um novo tipo de servidor
público, cuja ação deverá se concentrar na administração dos órgão
específicos e núcleos estratégicos do Estado [...] (BRESSER-PEREIRA,
1997, p. 267).

Nessa perspectiva, os serviços que não envolvessem o desempenho


das funções administrativas e o exercício dos poderes do Estado deve-
riam ser transferidos para a iniciativa privada ou para o setor público não
estatal. No âmbito do serviço estatal, propõem-se novas formas de gestão
dos servidores públicos, visando o aumento de eficiência. Há uma pro-
funda restrição às atividades desenvolvidas pelos servidores, que segundo
Bresser-Pereira (1997) deveriam ser restritas à formulação, ao controle e
à avaliação das políticas públicas (retirando-se a sua implementação), à
fiscalização da execução das leis, ao poder de polícia e à defesa, à procu-
radoria e aos advogados da União, à assessoria direta a parlamentares, à
regulação e controle do mercado e à direção de órgão do poder judiciário. A
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 399

terceirização apresenta-se como uma forma de enxugamento desses gastos


públicos com servidores, a partir de transferências de direitos para a lógica
dos serviços privados.

Segundo a lógica da reforma do Estado dos anos 90, estes serviços devem
em princípio ser terceirizados, ou seja, devem ser submetidos à licitação
pública e contratados com terceiros. Dessa forma, esses serviços, que
são serviços de mercado, passam a ser realizados competitivamente, com
substancial economia para o Tesouro (BRESSER-PEREIRA, 1997, p. 29).

Nesta direção, a terceirização no Estado representa a tentativa de destrui-


ção do Regime Jurídico Único (RJU), apresentado para sociedade como um
peso para o Orçamento da União. Os servidores públicos, desde o governo
Collor, são um dos grandes alvos de ataques do neoliberalismo, e a estabilidade
no trabalho - que é um requisito do desenvolvimento da função pública - passa
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a ser vista como um privilégio de uma burocracia ineficiente. Decididamente,


esse processo precisa ser analisado com base no fundo público, compreen-
dendo que a retirada dos direitos trabalhistas dos servidores públicos expressa
uma punção do orçamento público. Trata-se de um movimento simbiótico
entre a expropriação dos direitos trabalhistas e sociais em curso no Estado.
Representa novas formas de transferência de fundo público para o capital
funcionante e financeiro, expressa na apropriação da parcela do Orçamento
da União desembolsado no âmbito do pagamento dos servidores públicos.
Em nossa compreensão, as alterações inseridas pelo gerencialismo na
esfera pública alteram objetivamente o processo de trabalho coletivo, ou seja,
trata-se não apenas de novas formas de contratação e reposição da relação
entre o público e o privado. O conjunto dos trabalhadores da esfera pública
vem sendo submetido sucessivamente a novas formas de gestão e controle do
processo de trabalho coletivo, alterando o conteúdo objetivo das profissões e
as formas de responder às demandas dos usuários. O Serviço Social inserido
majoritariamente na esfera pública vem sendo profundamente afetado com os
padrões da administração pública gerencial, que sinalizam uma perspectiva
incompatível com o PEP coletivamente construído pela categoria profissional.

A influência do gerencialismo e a precarização do trabalho


profissional na Previdência Social

Nós, assistentes sociais, temos um projeto profissional crítico, com-


prometido com a classe trabalhadora, o que nos permite apreender o movi-
mento da luta de classes na sociedade, e, portanto, não somos uma categoria
400

profissional formada para reproduzir acriticamente os interesses institu-


cionais. As transformações em curso são, em sua essência, contrárias aos
trabalhadores e usuários da previdência, aos princípios e valores defendidos
pela categoria profissional.
Compreendemos o Serviço Social inserido na divisão sociotécnica do
trabalho, como especialização do trabalho coletivo vinculada aos mecanis-
mos de dominação ideológica no âmbito da operacionalização dos serviços
sociais ofertados pelo Estado, empresariado e instituições sem fins lucrativos.
Desenvolvemos, nesses espaços, ações de cunho sócio-educativo que viabili-
zam o acesso aos direitos os meios de exercê-lo (IAMAMOTO, 2012). Nesta
direção, o valor de nosso trabalho não se espelha numa mercadoria concreta
ao final do processo de trabalho, mas sim na prestação de serviços sociais,
portanto, se realiza como atividade.
De acordo com os estudos de Iamamoto (2012), refletir sobre o Serviço

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Social como trabalho requer recuperar as categorias da crítica da economia
política. Nesta direção, o/a assistente social é inserido nas relações de assa-
lariamento, onde seu trabalho possui um valor de uso e um valor de troca,
determinado por sua utilidade e pelo tempo socialmente necessário para sua
reprodução. Por não possuir os meios de trabalho necessários o/a assistente
social vende sua força de trabalho em troca de um equivalente. Nessa com-
preensão o trabalho é social e condição de reprodução da sociedade capitalista,
não está, portanto, restrito ao ato de transformação da natureza.
O assistente social, como trabalhador assalariado, não detém todos os
meios necessários para realização de seu trabalho, logo, vende sua força de
trabalho em troca de um equivalente. O empregador, por sua vez, é quem
detém o controle do processo de trabalho, detém, em parte, os meios e condi-
ções necessárias para a realização do trabalho. Ao chegar aos espaços sócio-
-ocupacionais o processo de trabalho coletivo não é ajustado de acordo com
a demanda dos assistentes sociais, ao contrário, é a profissão que se ajusta ao
processo de trabalho empreendido pela instituição.
Desse modo, acreditamos que o Serviço Social se insere em processos
de trabalho coletivos que não são por ele organizados. O fato de não existir
um processo de trabalho do Serviço Social não retira nossas especificidades
profissionais, ao contrário, é o processo de trabalho coletivo que ilumina
nossa contribuição, e, é esse processo que permite diferenciar, das demais
profissões, nossa contribuição no interior das instituições.
No âmbito da política previdenciária, observamos um avanço na intensi-
ficação dos padrões gerenciais, expressos na forma de organização do trabalho
coletivo fruto da redução do número de servidores e inserção massiva de
tecnologias da informação (TI’s) norteadas, em grande medida, pelos pilares
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 401

da indústria 4.0 na esfera improdutiva. Um mecanismo chave disso foi a


implementação do App Meu INSS Digital a partir de 2017, digitalizando os
processos, criando filas virtuais e fechando as Agências da Previdência Social
(APS) para a classe trabalhadora219.
Da mesma forma, alguns processos já são totalmente analisados, defe-
ridos ou indeferidos por sistemas de inteligência artificial produzidos pela
inserção dos algoritmos na política previdenciária, com destaque, sobre-
tudo, para os casos de aposentadoria por idade, onde os servidores públicos
só atuam quando há falha no sistema. A influência do algoritmo também
determina o que os profissionais irão realizar nas APS, acirrando o controle
do processo de trabalho pela instituição. É o App, por meio do controle da
gerência, que determina o número de atendimentos e o tipo de atendimento
a ser realizado pelos profissionais. Os padrões de eficácia e eficiência vin-
culam-se ao aceleramento dos atendimentos em detrimento da qualidade e
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resolutividade deles.

De acordo com Cardoso Jr. e Pires (2020), pela simples razão de que
critérios privados ou meramente técnicos não podem ser transpostos
automaticamente para o setor público. O aumento da competição laboral
interna, ainda que possa redundar em maiores indicadores de produtivi-
dade individual, raramente significará melhores condições de sanidade
e salubridade em locais de trabalho que primam pela cooperação como
fundamento da ação coletiva, nem tampouco significará maior eficiên-
cia, eficácia ou efetividade da ação pública de modo geral (NEIVA,
2020, p. 19).

Esse cenário adverso tem levado os profissionais críticos, signatários


dos princípios e valores presentes em nosso PEP à exaustão, ao fatalismo
e, também, ao adoecimento. Essas mudanças vêm alterando objetivamente
o processo de trabalho coletivo na política previdenciária. Os impactos são
sentidos pelo conjunto de trabalhadores da instituição, não sendo exclusivos
do Serviço Social, contudo, pela natureza dos compromissos que defendemos
enquanto categoria, tais ataques têm se expressado de forma particular para
profissão colocando novos desafios para a direção estratégica construída pelos
assistentes sociais.
No âmbito dos desafios profissionais eles são muitos, nesse trabalho
iremos centrar em alguns temas que têm mobilizado a categoria profissional e
incidem na alteração da participação do Serviço Social no interior do processo

219 Desde a criação do App o acesso à instituição é mediado pelo sistema digital, pois é ele que agenda e
distribui o trabalho nas APS, por meio da algoritimização da política social.
402

de trabalho coletivo no contexto de predomínio do gerencialismo na esfera


pública. Em nossa compreensão as TI’s têm sido um dos principais pilares de
espraiamento da lógica gerencial nas políticas públicas, trata-se, portanto, de
novas formas de gestão e organização do trabalho, cada vez mais próximas
das práticas operadas na esfera privada.
Uma das características marcantes da TI’s na esfera produtiva remete
à diminuição do tempo de trabalho ocioso, assim, a “ampliação do uso
das TIC, ocorrem duas modificações importantes no trabalho do assistente
social: o redimensionamento do uso da informação e a introdução da racio-
nalidade técnica pautada no binômio eficácia/eficiência” (CESAR, 2022, p.
108). Tais medidas, adotadas na esfera pública, descaracterizam o trabalho
profissional, uma vez que o tempo de reflexão, a socialização de informa-
ção com a rede, a sistematização do trabalho profissional e o atendimento
de demandas espontâneas são entendidos como tempo ocioso220. Nessa

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conjuntura, as assistentes sociais têm seu trabalho reduzido a realização
de avaliações sociais de pessoas com deficiência para o BPC (Benefício de
Prestação Continuada), onde a eficácia e eficiência são aferidas por meio
do produtivismo castrador da criatividade no interior do trabalho dos/as
assistentes sociais221.
É preciso ter nítido, também, que a produtividade na esfera pública passa
por fatores econômicos, sociais e políticos que colocam particularidades frente
a iniciativa privada e vem sendo desconsideradas pelo gerencialismo. A inten-
sificação das avaliações sociais vem comprometendo o registro profissional
e a escuta atenta, padronizando um tempo de trabalho que desconsidera as
particularidades de cada usuário atendido pela profissão. A lógica da produti-
vidade impõe um padrão de atendimento de uma hora, há inúmeros relatos de
casos altamente complexos que demandam uma escuta que excede o tempo
estabelecido pela instituição, contudo, a forma de organização do processo
de trabalho compromete e até mesmo impede que o assistente social possa
trabalhar devidamente essas particularidades.
Outro elemento oriundo das práticas gerenciais inseridas por intermé-
dio da algoritimização da política previdenciária é a avaliação social média,
inserida pela lei 14.176/2021. Historicamente os requerentes passavam pela

220 Essas atribuições estão previstas no Manual Técnico do Serviço Social, disponível em: https://www.alexan-
dretriches.com.br/wp-content/uploads/2017/11/PAP_Manual-técnico-do-serviço-social.pdf
221 Na maioria das APS os/as assistentes sociais têm sua agenda semanal preenchida pelos sistemas digitais
com 7 avaliações sociais diárias. O tempo de preenchimento de uma avaliação social simples dura uma
hora, os casos complexos demandam mais tempo, contudo, se exceder o tempo em algum atendimento os
assistentes sociais devem reduzir o tempo atendimentos dos subsequentes. Destaca-se que, nessa esfera,
o Serviço Social perdeu, para gerência, o controle e priorização das atividades que irá desenvolver.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 403

avaliação social222, para, depois, ser encaminhado para perícia médica. Após
essa mudança a perícia pode ser realizada antes da avaliação social e, depen-
dendo do parecer do perito, o caso não precisa passar pelo Serviço Social223.
Sinalizamos que muitos impedimentos considerados leves ou moderados
pela perícia podem se tornar graves a partir dos aspectos sociais ligados ao
preconceito, ausência de serviços e equipamentos públicos, além falta de
acessibilidade e ausência de vínculos familiares.
Para a categoria profissional, a avaliação social média vem representando
uma perda de espaço sócio-ocupacional na instituição. Ao minar a única ati-
vidade desenvolvida pelas/os assistentes sociais, ao retirar a obrigatoriedade
de nossa participação, temos um sério risco para a profissão no Regime Geral
de Previdência Social (Instituto Nacional de Seguro Social - INSS). Nós
observamos que a instituição vem, nos termos de Marx (1980), simplificando
um trabalho complexo. Parece-nos que o aprofundamento da precarização
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do trabalho tem promovido processos de desprofissionalização do Serviço


Social na previdência224.

A tendência para a desprofissionalização assenta naquilo que se pode cha-


mar mecanismos de desqualificação dos profissionais, de perda ou transfe-
rência de conhecimentos e saberes, seja para os consumidores, o público
em geral, os computadores ou os manuais (RODRIGUES, 2002, p. 71).

Em nossa apreciação, a instituição compreendeu que não pode retirar


essa profissão da política previdenciária de forma hierárquica, por meio de
portarias. Parece-nos que a expulsão do Serviço Social vem sendo feita por
meio de um intenso processo de precarização que vem acirrando a despro-
fissionalização através da retirada dos conhecimentos próprios da categoria
profissional que ora são passados para o serviço 135225, ora são mediados pela
lógica do algoritmo, ora podem ser operados por recepcionista de nível médio.

222 A avaliação social da pessoa com deficiência é um dos requisitos para acessar o Benefício de Prestação
Continuada (BPC). Assim, o/a assistente social aborda aspectos sociais que aprofundam as disparidades
vivenciadas pelas pessoas com deficiência, rompendo, portanto, com a restrita visão biomédica.
223 Os casos em que a perícia é favorável ao deferimento utiliza-se de inteligência artificial para simular uma
avaliação social que era realizada por assistentes sociais.
224 Uma expressão latente desse movimento situa-se na contratação de assistentes sociais por meio da nomen-
clatura genérica de Analista de Seguro Social com ênfase em Serviço Social. Esse fato representa muito
mais que a mudança de nomenclatura, expressa, sobretudo, a criação de um trabalho genérico, para um
processo de trabalho também genérico. A expressão mais latente desse processo está no trabalho de
assistentes sociais na reabilitação profissional, onde são chamados a desenvolver o mesmo processo de
trabalho que médicos, fisioterapeutas e psicólogos. Nesse processo, a categoria profissional perde suas
atribuições privativas e o trabalho passa a ser orientado pelas competências profissionais.
225 O Serviço 135 é operacionalizado por profissionais terceirizados que não atuam em nenhuma APS e não
possuem nível superior. Observa-se uma tecnificação da socialização de informações que perde seu caráter
404

Uma questão nova e latente é a medida provisória 1.113/2022 que abre


a possibilidade de terceirização das avaliações sociais. Se nós assistentes
sociais estávamos sendo rebaixados à condição de avaliadores sociais, agora
estamos caminhando para virar fiscais de prestadores de serviços. Essa ten-
dência reflete um novo avanço do gerencialismo na política previdenciária,
expresso na terceirização das atividades fim da referida política. Temos, nesse
contexto, um ataque frontal ao Regime Jurídico Único e um intenso processo
de flexibilização do trabalho. Caso a medida venha a ser implementada tere-
mos um corpo profissional que desconhece os territórios, o perfil da população
e a realidade institucional. Uma massa sobrante no “exército assistencial de
reserva” (IAMAMOTO, 2014) sendo convocada para prestar um serviço
pontual, precário, remunerado por avaliação entregue.
No âmbito da principal (e única) atividade desenvolvida pela categoria
profissional, observamos a inserção de tecnologias da informação através

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das chamadas avaliações sociais remotas ou teleavaliações. Podemos tratá-la
como uma nova requisição que vem sendo imposta no interior da instituição a
partir de um retrocesso expresso na Lei no 14.176/2021, onde as/os assistentes
sociais são requisitados para realizarem avaliações sociais por telechamada.
Temos ainda pouco acúmulo de reflexão e debates sobre essa forma de atuação,
mas nossa tarefa consiste em fazer uma aproximação com algumas questões
que parecem apresentar tendências para o conjunto do trabalho desempenhado
pelos/as assistentes sociais nas mais variadas políticas públicas.
De imediato, vemos que as teleavaliações causam uma falsa sensação
de rapidez no trabalho. O que já foi percebido, com a iniciativa do projeto
piloto, é que seu tempo de execução é superior226 ao da avaliação social pre-
sencial. Parece-nos que está em jogo duas questões. Em primeiro lugar, vemos
que a requisição institucional por teleavaliação está inserida no projeto de
esvaziamento das APS, o que, a médio prazo, juntamente com outras ações,
tende a provocar fechamento de agências e estimular a construção de espaços
de trabalho virtuais. Em segundo, em APS do interior, onde a demanda por
avaliação social de pessoa com deficiência é menor, a teleavaliação permitiria
preencher a agenda desses profissionais com demandas de avaliação social
oriundas de outras APS. Trata-se, portanto, de uma tendência de criar uma
política virtualizada, acompanhada, para tal, de uma nova forma de gestão
e organização do trabalho dos assistentes sociais. É importante reforçar que

sócio-educativo e se restringe aos critérios exigidos na política.


226 Nos relatos dos assistentes sociais que participaram do projeto piloto é possível perceber que há um tempo
para que o usuário assimile o modelo remoto, os relatos também sinalizam uma entrevista inicialmente
truncada e uma dificuldade de interação com o usuário.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 405

a instituição vem considerando tempo ocioso aquele que não é destinado à


avaliação social.
Em nossa compreensão, os instrumentos incidem diretamente no âmbito
do serviço que prestamos. O recurso as TI’s têm limites que não são passíveis
de serem superados no interior do trabalho profissional, ou seja, não é uma
questão apenas de fazer o melhor ou ter uma escuta atenta. Esses elemen-
tos não são capazes de superar os limites de uma teleavaliação, podem, no
máximo, mitigá-los.
Dada a falta de acesso aos sistemas digitais pela parcela da população
mais pobre, acreditamos que tal processo fere/limita o princípio fundamental
vinculado ao “posicionamento em favor da equidade e justiça social, que
assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas
e políticas sociais, bem como sua gestão democrática” (CFESS, 2012, p. 23).
Outra lacuna, ainda não respondida, refere-se ao sigilo profissional. Em
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cada avaliação social diversos aspectos são abordados, tais como: discrimina-
ção, preconceito, situação familiar, acesso a serviços, empregabilidade, difi-
culdades vivenciadas no cotidiano, dentre outros. Ao abordar esses assuntos,
tanto o profissional, quanto o usuário precisam se sentir seguros de que não
estão sendo ouvidos por outros. Parece-nos que a teleavaliação compromete
o sigilo e assegurá-lo deixa de ser uma mediação com incidência direta do
assistente social. É preciso cobrar esclarecimentos institucionais quanto ao
sigilo dos usuários, fazendo valer nossa autonomia relativa, regulamentada
em nossas legislações profissionais.
A teleavaliação também subtrai momentos de interação entre o profissio-
nal e a pessoa com deficiência, pois através da tela do computador você já não
enxerga na íntegra o sujeito atendido. As câmeras podem apresentar problemas
e se ficarem fechadas, mesmo assim, o atendimento prossegue? Sem câmeras,
trata-se de uma audioavaliação? Parece-nos que tais tendências podem nos
aproximar de um telemarketing social, que exige nossa reflexão apurada.
Outro elemento que surge desse contexto é a possibilidade de atender
usuários em regiões geográficas distintas das que atuamos. Em nossa com-
preensão, a avaliação social exige o mínimo de conhecimento do território
para que possamos mensurar as diversas barreiras enfrentadas pelas pessoas
com deficiência em cada região do país, bem como suas desproteções sociais
e relacionais. Parece-nos que tal modalidade aprofunda uma compreensão da
avaliação social como um instrumento tecnicista, dissociada dos elementos
necessários para sua realização, de acordo com Guerra et al.

Requisitam procedimentos instrumentais operatórios, padronizados à luz


da racionalidade formal-abstrata, conectados com o que vem previamente
406

estabelecido pela instituição, pelos programas e projetos, pela política


social. Assim, a racionalidade formal-abstrata orienta as respostas profis-
sionais, sendo essa uma das mediações que se interpõem entre as demandas
e respostas profissionais (GUERRA et al., 2016, 12).

Apesar dos apontamentos realizados, observamos que segmentos da


categoria profissional, entusiasta desse projeto, vem realizando uma defesa da
teleavaliação, contraditoriamente, em nome do PEP do Serviço Social. No dia
22/11/2022 os/as assistentes sociais que fazem teleavaliação na Superintendên-
cia Regional do Instituto Nacional do Seguro Social no Norte/Centro-Oeste
(SRNCO) realizaram um evento comemorativo sobre o alcance de 10 mil
avaliações sociais remotas realizadas na região227. Esse emblemático evento
mostra que o que era um projeto piloto já não é mais, trata-se de uma nova
forma de operacionalização do trabalho profissional.
Em nossa compreensão há visões que vem utilizando o princípio que vin-

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cula o trabalho profissional aos interesses da classe trabalhadora desvinculado
de seus fundamentos. Isto é, há uma gerencialização dos valores e princípios
radicalmente críticos, onde o aumento da produtividade, a baixa qualidade dos
serviços prestados, a ampliação do controle da gerência vem sendo legitimada
com o discurso de ampliação do acesso da classe trabalhadora aos benefícios
sociais. Esquecem, propositalmente, que o/a assistente social também faz parte da
classe trabalhadora e que tais alterações apresentam retrocessos tanto no campo
das relações de trabalho, quanto nos produtos desse trabalho, materializado no
conjunto de serviços ofertados pela categoria profissional. No contexto de des-
monte do Estado e de uma permanente contrarreforma administrativa de caráter
trabalhista, temos segmentos profissionais aderindo a padrões ultraneoliberais
nas políticas públicas, que ampliam a precarização e implementam processos
de trabalhos de caráter gerencialista utilizando de forma injusta e oportunista a
direção estratégica do PEP. Reforçamos, que não há compatibilidade entre o PEP
e os padrões gerenciais mencionados. E, nesse cenário, a defesa coerente com o
PEP deve ser empreendida tendo em vista a ampliação do corpo profissional e
não através da intensificação e aumento da exploração do trabalho.
O cenário revela que o gerencialismo vem alterando o processo de tra-
balho coletivo empreendido nas instituições públicas com sérios impactos
para o Serviço Social e para população que depende dos serviços prestados
na esfera pública. É preciso ter nítido que toda e qualquer tentativa de articu-
lação entre os parâmetros gerenciais e o PEP são uma farsa teórica e política

227 É importante pontuar que o evento foi restrito aos assistentes sociais que trabalham remotamente, excluindo
os profissionais que estão no trabalho presencial. Tal questão vem expressando uma fragmentação da
categoria profissional, que, em nossa compreensão, refletem distintas compreensões sobre o PEP.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 407

que desvirtuam a direção estratégica construída coletivamente pela categoria.


Em tempos de banalização de nossos valores e princípios é preciso reafir-
mar a natureza radicalmente crítica de seus fundamentos para que possamos
enfrentar as alterações no mundo do trabalho com coerência ético-política,
teórico-metodológica e técnico-operativa.

Considerações Finais

Sinalizamos que a permanente contrarreforma administrativa/trabalhista


do Estado brasileiro se apoia nos pilares do gerencialismo que, por sua vez,
vem se sustentando, em grande medida, pela inserção massiva de TI’s e inte-
ligência artificial no âmbito do processo de trabalho coletivo. Essas medidas
vêm assegurando uma redução dos gastos com a operacionalização das polí-
ticas públicas e promovendo intensas alterações para o trabalho nessa esfera.
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No âmbito previdenciário, identificamos que não se trata apenas da inserção


de TI’s, mas sim de uma nova forma de organização e gestão do que vem
descaracterizando o trabalho dos/as assistentes sociais na previdência social.
A/o assistente social como trabalhador/a assalariado/a não detém todos
os meios necessários para a operacionalização de seu trabalho, tendo que
vender sua capacidade de trabalho para o empregador. No âmbito da política
previdenciária consideramos que o processo de trabalho coletivo tem por
objetivo implementar um conjunto de direitos previdenciários, e, atualmente,
o Serviço Social vem participando, quase que exclusivamente, no âmbito das
avaliações sociais de pessoas com deficiência requerentes do BPC.
Destacamos que uma das tendências gerenciais para o trabalho profis-
sional está materializada no desrespeito ao conjunto de ações previstas no
Manual Técnico do Serviço Social, que prevê: socialização de informações;
estudos exploratórios; reuniões técnicas; assessoria a rede; dentre outras
ações. Observamos que as atividades voltadas à dimensão socioeducativa
do trabalho profissional vêm sendo frontalmente atacadas, uma vez que elas
não são consideradas produtivas para instituição. Essa tendência vem redu-
zindo o Serviço Social aos benefícios sociais; temos, nesse cenário, inúmeros
profissionais que aderem acriticamente a essa associação reproduzindo um
perigoso discurso formalista que afirma: “o Serviço Social é uma profissão
que assegura direitos”.
Em nossa compreensão essa visão reduz a dimensão socioeducativa à
inserção em benefícios sociais, comprometendo ações que incidam sobre
desproteções relacionais vivenciadas por nossos usuários. Acreditamos que
as respostas as expressões da questão social não podem ser reduzidas aos
benefícios sociais, embora eles sejam uma mediação fundamental. Nossa
408

experiência na previdência também revela que quem assegura direitos é o


Estado, esse fato se expressa em milhares de benefícios deferidos que ficam,
por anos, represados pela instituição.
Diante desse cenário adverso observamos inúmeras iniciativas de resis-
tências e defesa dos princípios ético-políticos frente as crescentes transfor-
mações vivenciadas na instituição. Identificamos, também, uma profunda
fragmentação da categoria profissional e sua expressão fenomênica está entre
os que fazem e não fazem teleavaliação; mas, sua essência está numa profunda
disputa entre projetos de profissão radicalmente distintos. Acreditamos que
não há como barrar a inserção das TI’s na esfera pública, contudo, precisamos
qualificar sua forma de utilização, prezando pela natureza pública da política
previdenciária, pela qualidade dos serviços ofertados e pelas condições de
trabalho que potencializem a mediação com os valores e princípios defendidos
pela categoria profissional.

Editora CRV - Proibida a comercialização


LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 409

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acesso ao benefício de prestação continuada, estipular parâmetros adicionais
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de caracterização da situação de miserabilidade e de vulnerabilidade social e


dispor sobre o auxílio-inclusão de que trata a Lei nº 13.146, de 6 de julho de
2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência); autoriza, em caráter excepcional,
a realização de avaliação social mediada por meio de videoconferência; e dá
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A partir do início da década de 1970, o capitalismo tem complexifi-


cado suas formas de acumulação, provocando profundas alterações tanto
nas formas de produção quanto na composição das classes sociais. Dentre
essas mudanças, uma das mais importantes ocorreu no mundo do trabalho
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(ANTUNES, 2022).
Maia (2022), numa tentativa de síntese, destaca quatro aspectos que
foram centrais para as mudanças que ocorreram no mundo do trabalho. Essas
mudanças, obviamente, seguiram ritmos distintos, conforme o país em ques-
tão, mas constituíram um novo modelo balizado pelo que conhecemos como
“toyotismo”, no qual se propõe:

a) trocar o modelo rígido de produção por outro altamente flexível; b)


aumentar a competitividade a partir de uma redução do preço do produto
final através do baixo custo de produção - que remete ao aprimoramento
dos métodos de extração de mais-valia relativa, mas também retorna a
modelos aprimorados de mais-valia absoluta (o que impõe tecnologias
de controle mais eficientes); c) buscar a implementação de uma “fábrica
mínima” que não se responsabilize por toda a linha produtiva - o que
promove uma profunda descentralização da produção a nível global; e d)
gerenciar um “estoque zero” com a finalidade de manter a produtividade
ligada diretamente à circulação, garantindo a potência produtiva máxima
sempre que possível (MAIA, 2022, p. 79).

Essas mudanças fizeram-se acompanhar de um crescente avanço tec-


nológico, “tendência que se intensificou a partir da crise de 2008-2009 e
possibilitou que as corporações globais, sempre sob hegemonia financeira,
avançassem na ‘flexibilização’ do trabalho, um eufemismo para corrosão e
derrogação da legislação protetora do trabalho”(ANTUNES, 2022, p. 126).
Com o advento da pandemia do Coronavírus, e diante do necessário
isolamento para se diminuir o contágio pela doença, a tendência do avanço
tecnológico ganha novo impulso, com a adoção do teletrabalho e do home
414

office como modalidades de trabalho utilizadas em praticamente todos os


ramos em que puderem ser implantados. Do ponto de vista empresarial e
também para muitos governos, as vantagens no uso dessas modalidades são
evidentes, na exata medida em que fomentam:

[...] mais individualização do trabalho; maior distanciamento social;


menos relações solidárias e coletivas no espaço de trabalho (onde flo-
resce a consciência das reais condições de trabalho); distanciamento da
organização sindical ; tendência crescente à eliminação dos direitos [...];
fim da separação entre tempo de trabalho e tempo de vida (visto que as
nefastas metas ou são preestabelecidas ou se encontram interiorizadas nas
subjetividades que trabalham); e o que também é de grande importância,
[...] mais duplicação e justaposição entre trabalho produtivo e trabalho
reprodutivo, com clara incidência da intensificação do trabalho feminino,
[aumentando] ainda mais a desigual divisão sociossexual e racial do tra-

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balho (ANTUNES, 2022, p. 28).

Indubitavelmente, os avanços tecnológicos, que poderiam servir à huma-


nidade e particularmente ao bem-estar no campo do trabalho, têm progressiva-
mente “eliminado” o trabalho vivo, aumentado o desemprego, a informalidade
e a desigualdade, concentrando mais riqueza nas mãos de uma pequeníssima
parcela da sociedade.
Em síntese, com o advento do neoliberalismo e o aprofundamento da
hegemonia do capital financeiro, presencia-se mundialmente uma reestrutura-
ção produtiva do capital, que vem carreando profundas consequências sociais
para a classe trabalhadora como um todo.
Todo esse processo tem início, no Brasil, a partir de meados da década
de 1990, mais especificamente na gestão de Fernando Henrique Cardoso
(1994-2002), quando o governo brasileiro deu passos decisivos para aderir
aos princípios neoliberais, o que se fez acompanhar de novas regulações que
corroeram crescentemente a já frágil legislação protetora do trabalho.
Na impossibilidade de analisarmos nesse espaço todas essas mudan-
ças legais, vamos nos ater à conjuntura mais recente, na qual assistimos,
nada mais nada menos do que: à aprovação da Emenda Constitucional n.
95, de 15 de dezembro de 2016, que limitou o teto de gastos por 20 anos, da
(Contra)Reforma trabalhista, que reduziu os gastos diretos do capital com o
trabalho, por meio do arrocho salarial, da flexibilização da jornada, da lega-
lização do trabalho temporário e da pejotização das relações trabalhistas e
da (Contra)Reforma da Previdência (Emenda Constitucional n. 103, de 12
de novembro de 2019), que dificultou o acesso a esse direito e diminuiu o
valor das aposentadorias.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 415

Pode-se mesmo dizer que uma das metas centrais do golpe – que desti-
tuiu, sem prova material e cabal, a então presidenta eleita Dilma Rousseff –,
ocorrido em 31 de agosto de 2016, foi precisamente, o ataque ao trabalho, seja
no sentido distributivo da renda, seja no sentido organizativo dos movimentos
sociais e de trabalhadores. Dito de outro modo:

[...] o centro da lógica conservadora e autoritária estabelecida teve como


objetivo recolocar as condições históricas de superexploração do traba-
lho, negar e destruir o aparato de regulação das relações de trabalho, do
contrato social estabelecido nas últimas décadas e desmobilizar as orga-
nizações de trabalhadores (TRINDADE, 2018, s.p.).

Em texto anteriormente escrito (MANCEBO; SANTORUM; RIBEIRO;


LÉDA, 2020), elencamos em 10 itens os impactos da (contra)reforma traba-
lhista. Em síntese, concluímos que, longe de ser uma regulação apta a reduzir
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os índices alarmantes de desemprego e perda do poder de compra da classe


trabalhadora, em verdade, a nova lei representou o aprofundamento do processo
de precarização da vida e seus efeitos são particularmente sentidos por mulheres
e pela população negra, que compõem a maioria dos trabalhadores precarizados
no Brasil. A partir de então, aprofunda-se no cotidiano do mundo do trabalho,
processos como privatização, precarização do trabalho, desregulamentação,
desemprego estrutural, trabalho temporário, parcial e atípico. Também anali-
samos que a (contra)reforma não afeta apenas os trabalhadores da iniciativa
privada, mas também a oferta dos serviços públicos. A previsão, por exemplo,
da ampliação do uso da terceirização e a introdução do trabalho intermitente
na seara pública, abre margem, inclusive, para o fim ou para a diminuição do
número de concursos (MANCEBO; SANTORUM; RIBEIRO; LÉDA, 2020).
Nesse texto, pretendemos aprofundar um dos aspectos citados no artigo
acima referenciado: o aumento das doenças ocupacionais, particularmente,
no campo da saúde mental, que têm crescido em todo mundo e, também,
em nosso país.

Adoecimento no mundo do trabalho

Preliminarmente, cabe reafirmar que a produção de subjetividades é o


resultado de um indissociável vínculo entre o sujeito e o contexto (histórico,
econômico, político, cultural), em que vive e se socializa, vínculo esse que é
mesmo indispensável para que ele possa existir e sobreviver enquanto sujeito
concreto. Assim, devemos compreender que os processos de subjetivação, dia-
leticamente, não advêm de qualquer concepção apriorística ou essencializada
416

de sujeito, mas que também não são submetidos a um determinismo social


inexorável, diante do qual os sujeitos seriam prisioneiros do mundo e sem
qualquer autonomia para se autodeterminarem (MAIA, 2022).

[...] do mesmo modo como a sociabilidade não produz o sujeito enquanto


efeito necessário, muito menos o sujeito é totalmente livre para se autode-
terminar isolado do mundo e dos outros ou ignorando a norma que inaugura
sua reflexividade – [a socialização] nem é totalmente determinada e nem
totalmente livre, possuindo uma dialética própria (MAIA, 2022, p. 58).

Cabe, então, definirmos como temos nos constituído subjetivamente


no atual estágio do capitalismo. Consideramos, com Dardot e Laval (2019),
que o neoliberalismo não é apenas uma teoria ou política econômica, mas
uma “racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor
por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a

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lógica do capital até a converter na forma das subjetividades e na norma das
existências” (DARDOT; LAVAL, 2019, s/p.).
Em outros termos, a reestruturação produtiva, as mudanças no Estado, a
supremacia do mercado e todas as mudanças culturais que se seguiram à ado-
ção do receituário neoliberal necessitavam e, de fato, fizeram-se acompanhar
“por um novo horizonte de produção de subjetividades capaz de se adequar
ao novo mundo que surgia” (MAIA, 2022, p. 83).
A “nova racionalidade” do mundo (o neoliberalismo) consiste num
ambiente permanente de concorrência, de expansão da racionalidade de mer-
cado e de generalização da forma-empresa. O neoliberalismo mobiliza todas
as esferas da atividade humana, não se reduz às dinâmicas econômicas ou às
estratégias políticas necessárias à reprodução da acumulação capitalista, de
modo que os imperativos concorrenciais e o empreendedorismo individual
são progressivamente internalizados pelos próprios sujeitos. É, portanto, “um
sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo
a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”
(LAVAL; DARDOT, 2016, p. 7), o que nos permite entender

como são moldadas as nossas relações sociais, a forma como gerimos o


nosso tempo, o ritmo acelerado que impomos a nós mesmos, a pressão
constante pela produtividade em forma de autocobrança e, em especial,
as novas formas de sofrimento que experienciamos (MAIA, 2022, p.16).

Como empreendedor e tendo o modelo da empresa como modo de subje-


tivação, o sujeito se vê como o responsável único de criar suas possibilidades
sejam econômicas, intelectuais, ou ainda afetivas. É sua a responsabilidade de
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 417

gerir tudo isso solitariamente! Não devemos ignorar, ainda, que as mutações
subjetivas provocadas pelo neoliberalismo “operam no sentido do egoísmo
social, da negação da solidariedade e da redistribuição e que podem desem-
bocar em movimentos reacionários ou até mesmo neofascistas” (LAVAL;
DARDOT, 2016, p. 9), o que de fato, tem ocorrido.
Trata-se de um individualismo exacerbado, de uma gestão da vida como
uma empresa (o sujeito como empresário de si mesmo), de uma crença quase
religiosa na meritocracia e da consolidação de uma “vida social” na qual
toda figura de solidariedade acaba por ser destruída. Do sujeito, exige-se
a participação no jogo da concorrência e a otimização permanente de suas
capacidades competitivas. Em outros termos, sob condições de desigualdade
desenfreada e de mobilidade bastante reduzida, reiterar a lógica de que nós
somos os responsáveis por nosso destino, além de culpabilizar os que ficam
para trás, corrói a solidariedade e os coletivos.
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Nesse ponto da discussão, é preciso reafirmar que a apologia do “Estado


mínimo”, tão cara a doutrinadores neoliberais, é simplesmente enganadora e
falsa. Na realidade, o que se assiste é uma nova modalidade de intervenção
estatal, um Estado forte, que generaliza a concorrência, as leis do mercado
e o modelo da empresa para todas as áreas da sociedade e de nossa socia-
bilidade. Em consequência, toda proteção ao trabalho, à vida, e aos mais
frágeis é “ressignificada como proteção à preguiça, à falta de iniciativa, ou
como infantilização do cidadão pelo Estado” (SILVA JÚNIOR, 2020, p. 251),
toda função assistencial do Estado passa a ser suspeita, como uma forma de
fomentar uma sociedade composta de sujeitos dependentes, preguiçosos e
incapazes. Como adverte Safatle (2020), mais do que um modelo econômico,
o neoliberalismo é uma engenharia social, que sela o triunfo do Estado, e não
sua redução ao mínimo.
Uma das estratégias bem-sucedidas do neoliberalismo foi, justamente,
ter-nos imposto uma compreensão privada do mal-estar (FORTANET,
2021) e isto porque construiu-se a ideia “de que a pobreza, o desemprego,
enfim, o fracasso do sonho do empreendedor se [devem] a defeitos indivi-
duais. Se as pessoas [são] pobres ou desempregadas, a culpa [é] delas, de
seu caráter, de sua falta de aspirações, de sua má gestão” (FORTANET,
2021). Ignora-se as condições de produção do adoecimento e do mal-
-estar, atribui-se ao próprio sujeito o desconforto sofrido mediante
um processo violento de ultrarresponsabilização e, consequentemente,
encaminha-se o tratamento (seja psicológico ou farmacológico) de uma
perspectiva individual.
Conforme análise de Safatle, Silva Júnior e Dunker (2020), é possí-
vel afirmar que cada época prescreve a maneira como devemos exprimir ou
418

esconder, narrar ou silenciar, reconhecer ou criticar modalidades específicas


de sofrimento.

Em outras palavras, a forma como uma cultura escolhe nomear e narra-


tivizar o sofrimento psíquico, a maneira como ele é incluído ou excluído
por determinados discursos, o modo como ele reconhece sujeitos para
certas demandas e estados informulados de mal-estar possuem valor etio-
lógico[...] (SAFATLE; SILVA JÚNIOR; DUNKER, 2020, p. 8-9).

Não por acaso, a ascensão do neoliberalismo nos anos 1970 é seguida por
uma modificação brutal das formas de descrição e categorização do sofrimento
psíquico, emergindo, inclusive a depressão. Na realidade, com o neolibera-
lismo, o próprio capitalismo parece ter sofrido uma mutação em relação ao
sofrimento psíquico. “Em vez de proteção e narrativização do sofrimento,
descobre-se que a administração do sofrimento, em dose correta e de forma

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adequada, pode ser um forte impulso para o aumento da produtividade” (DUN-
KER, 2020, p. 166).

[A partir de então] o sofrimento não é mais um obstáculo para o desenvolvi-


mento da indústria, mas pode ser metodicamente produzido e administrado
para aumentar o desempenho e é isso que caracteriza o neoliberalismo
no contexto das políticas de sofrimento: individualização, intensificação
e instrumentalização (DUNKER, 2020, p. 167).

Assim, enquanto a depressão emerge como narrativa hegemônica de


sofrimento, como o perdedor numa sociedade que faz a competição penetrar
em todos os poros da vida individual e da vida social, “a mania [confunde-
-se] com o perfil desejável para a liderança e o autoempreendimento de si”
(DUNKER; PAULON; SANCHES; LANA; LIMA; BAZZO, 2020, p. 231).
Conforme análises de Corbanezi (2021):

Apesar da origem longínqua, bem como das diferentes concepções de


melancolia que se estabeleceram ao longo da história da medicina ociden-
tal, a depressão, enquanto possível atualização desse estado de espírito,
pode ser considerada um fenômeno social relativamente novo: sua eleva-
ção expressiva nos índices epidemiológicos mundiais ocorre, sobretudo,
a partir de 1970, quando passa então a ser divulgada como a “doença da
moda”, o “mal do século” (p. 16-17).
[...] a ideia de epidemia de depressão adquire sentido quando relacio-
nada a um discurso exterior que estimula permanentemente o indivíduo
a produzir bem-estar, a otimizar suas capacidades e a se autorrealizar
em todas as dimensões da sociabilidade. Ou seja, a depressão, segundo
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 419

a concepção psiquiátrica atual, parece se constituir como um problema


relevante para a cultura ocidental, especialmente em relação a uma forma
de governar a vida (p. 24).

Em síntese, o adoecimento mental, que hoje assume enormes proporções,


deve ser considerado como um sintoma de uma sociedade competitiva, que
remete a uma luta de todos contra todos, uma sociedade que pune e exclui,
sem contrapartidas solidárias, e que ultraresponsabiliza os sujeitos pelo seu
próprio fracasso.

Adoecimento e trabalho na universidade

Há profundas diferenças entre as instituições de ensino superior (IES),


conforme o país que se esteja a considerar e mesmo dentro de um mesmo
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território. Todavia, a despeito dessas distinções, consideramos ser útil o


traçado de tendências mais gerais que marcam o desenvolvimento das
universidades no atual contexto. Sob o neoliberalismo, como vimos, as
transformações do capitalismo são profundas e vão muito além das mudan-
ças econômicas, afetando inclusive o modo de governo dos indivíduos, e
é claro, de todas as instituições. Para Laval (2023), o neoliberalismo é um
“regime de verdade”, e

[...] o regime neoliberal de verdade que, gradualmente, se impõe à uni-


versidade, como alhures, é a validação pelo mercado. É verdade, legiti-
mamente verdade, o que é economicamente eficaz. Disto decorre uma
gradual desvalorização da universidade clássica como lugar do conhe-
cimento racional. O emprego passa a ser a finalidade exclusiva do que
ali é ensinado, assim como o “valor econômico” torna-se a finalidade da
pesquisa (LAVAL, 2023, p. 2).

Do ponto de vista da nova regulação do sistema universitário, a ideologia


que se faz acompanhar diz respeito à primazia da competição, da concorrência
e, portanto, da obrigação de que todos os componentes institucionais mante-
nham uma alta performance neste mercado. A universidade neoliberal, como
a chama Laval (2023), não visa à igualdade entre unidades e estruturas que
a compõem. Na realidade, “o discurso oficial quer que a desigualdade entre
instituições e entre formações seja a um tempo inevitável e desejável em face
da concorrência global que obrigaria a concentrar recursos nos ‘melhores’
em nome de uma lógica de excelência e performance” (LAVAL, 2023, p. 3).
Por certo, encontramo-nos diante de mudanças que põem em xeque
não apenas os modos de organização das universidades, mas também suas
420

finalidades e suas funções sociais, culturais e políticas, mudanças que fomen-


tam a expansão do setor privado de ensino superior, mas que também tentam
promover uma profunda transformação do setor público, mediante a introdu-
ção, em graus crescentes, dos parâmetros de funcionamento de uma empresa.
Um primeiro aspecto a se considerar nesse pareamento com as empresas,
diz respeito ao abandono da dimensão democrática que uma universidade
deve ter. Isto ocorre com o progressivo aumento de poder dos “gestores” e o
“esvaziamento” dos órgãos colegiados das instituições.
Simultaneamente, com a recorrente diminuição de financiamento,
constrói-se uma complexa burocracia que vincula organicamente avalia-
ção e verbas. Técnicas de quantificação compõem um sistema hermético e
totalitário de avaliações e comparações constantes – como a classificação
de periódicos e a contagem de publicações e citações – que viabilizam a
atribuição de valores hierarquizados às unidades de pesquisa e aos pesqui-

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sadores, de modo que [...] “um bom pesquisador, [é] aquele que tem [...] um
escore bibliométrico e de citações elevado” (LAVAL, 2023, p. 4), é aquele
que tende a se transformar objetiva e subjetivamente em um empreende-
dor-de-si-mesmo, um sujeito de alta performance, “forçado a administrar
e aumentar seu capital bibliométrico e de citações desenvolvendo uma
estratégia de publicação de ‘papers’, com vistas a captar os parcos recursos
hoje disponíveis” (LAVAL, 2023, p. 4). Com isso, a própria condução da
atividade de pesquisa, o que inclui seu conteúdo, submete-se aos critérios
e métodos de gestão.
Decorrências lógicas de todo esse processo são, por um lado, a perda
de autonomia da universidade (com seu ensino, cada vez mais, voltado uti-
litariamente às culturas e lógicas próprias do mercado profissional e a pro-
dução do conhecimento cada vez mais disponível às expectativas de quem
patrocina a concessão de recursos às unidades de investigação) e, por outro,
a pressão competitiva permanente a que todos os partícipes (mas principal-
mente o professor-pesquisador) são submetidos, criando assim um ambiente
de competição e concorrência generalizados e a produção de resultados cada
vez maiores, muitas vezes com a extensão do trabalho para a vida pessoal e
social. Conforme Laval (2023), “o uso de si transforma-se em uma espécie
de superexploração das próprias capacidades mentais, numa auto-aceleração
que conduz a um trabalho muitas vezes decepcionante, num processo de
auto-excitação” (p. 4).
Nessa conversão da educação em mercadoria, a chamada revolução
tecnológica jogou um papel central, que foi potencializado com o advento
da pandemia da Covid-19, em que as condições e oportunidades de acele-
ração das mudanças foram excepcionais. No caso brasileiro, por exemplo,
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 421

a consolidação do ensino a distância (EAD) no nível superior permitiu sur-


preendentes possibilidades de negócios para as empresas educacionais.
Por fim, mas não menos importante, cabe referência à chamada “guerra
cultural” que se faz presente em diversos países, incluindo o Brasil. Tra-
ta-se, sinteticamente, de uma “doutrina de combate difuso na esfera dos
valores, ideias e concepções de mundo através da manipulação massiva
de informações com o uso de novas tecnologias digitais”. (TRICONTI-
NENTAL, 2021, p.16). Ela pode ter fundamento xenófobo, racista, sexista
e fascista, ou tudo isso junto, apresentando “um grupo como guardião de
um mundo cristão-ocidental idealizado e ameaçado pelo pretenso avanço
do anticristianismo, do comunismo, do ateísmo, da depravação sexual e
de culturas estrangeiras alienígenas” (TRICONTINENTAL, 2021, p.16).
As instituições educacionais, com especial relevo as universidades, são
tomadas como espaços privilegiados “para a difusão e a infiltração des-
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sas forças estranhas que ameaçam a tradição”. “Daí a desconfiança da


liberdade de pensamento, da ciência, do intelectualismo e do pensamento
crítico característicos do espaço educacional” (TRICONTINENTAL, 2021,
p.16). No Brasil, deve-se destacar as propostas do Escola Sem Partido, das
escolas cívicos-militares e do homeschooling como movimentos que bem
exemplificam a guerra cultural.
Os impactos gerados pela guerra cultural são de grande monta, pois
maculam a necessária liberdade acadêmica, reforçam a quebra da demo-
cracia universitária, negam “as regras estabelecidas e respeitadas por todos
e que [devem fazer] prevalecer [como] valor de verdade do conhecimento
além de qualquer outra consideração” (LAVAL, 2023, p. 6) e fomentam o
medo de retaliações e de consequências negativas (e punitivas) quando da
veiculação de informações contrárias aos princípios doutrinários, incre-
mentando a autocensura.
Em síntese, deve-se considerar que a submissão da universidade à
lógica empresarial somada a todas as ações advindas da guerra cultural
ferem mortalmente a principal função da universidade em relação à socie-
dade que é a de ser um lócus permanente e ativo de reflexividade crítica,
não somente da formação que presta, do conhecimento nela produzido,
bem como da própria sociedade.

Considerações finais

Discutimos ao longo desse texto que a gestão neoliberal (empresarial)


imposta à universidade – que compreende, dentre outros aspectos, arrocho
financeiro, precarização, ritmo intenso de produtividade, cobrança de metas
422

muitas vezes irrealizáveis em prazos exíguos, criação de uma dinâmica organi-


camente relacionada ao desempenho, à performance e à concorrência – remete
à naturalização da exaustão de estudantes e de seus trabalhadores.
Conforme Maia,

se a sociedade vem apresentando dados alarmantes em relação ao


aumento brutal no número de depressivos, ansiosos e esgotados, a uni-
versidade, por sua estrutura mais fechada e por ter aplicado o modelo
de gestão neoliberal, criando um novo ambiente acadêmico, tornou-se
uma panela de pressão que potencializa o surgimento de sujeitos em
colapso mental (2022, p. 140).

O adoecimento na universidade, tão silencioso quanto insidioso, aumenta


e pode ser relacionado a diversos aspectos: ao não-reconhecimento do/no
trabalho, às limitações das estratégias defensivas e das resistências ao modelo

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de gestão gerencialista, às injunções paradoxais, que por vezes pregam eufe-
misticamente o coletivo e a qualidade, num sistema que demanda competiti-
vidade, concorrência, individualismo e avaliações quantitativas recorrentes,
à crescente intensificação do trabalho, à internalização das pressões, com a
interpolação do trabalho à vida privada, dentre outros aspectos. Conforme
Silva e Ruza (2018), “os diagnósticos de depressão e de distúrbios afetivos e
de humor são os que mais se destacam” e os autores relacionam o sofrimento,
embora nem sempre produtor de adoecimento propriamente dito, aos impe-
dimentos dos ideais ético-políticos dos trabalhadores.

Eles [os sofrimentos] se relacionam a sofrimentos éticos e políticos, sobre-


tudo nos casos dos [trabalhadores] imbuídos de um ideal, [aqueles que]
por meio de suas atividades profissionais, [pretendem ser] produtores de
ações transformadoras. [Trabalhadores] que [têm a] intenção de fazer, da
instituição universitária, uma instituição com função social, e, portanto,
eficaz na busca do enfrentamento da desigualdade social e da produção da
justiça social. E que, ao se depararem com impedimentos, sofrem, quando
não adoecem (SILVA; RUZA, 2018, p.8).

Neste ponto da discussão, faz-se necessário repor uma questão vital,


relacionando toda a discussão precedente ao sistema de metabolismo social do
capital que destrói o trabalho, a natureza e, consequentemente, a humanidade,
impondo-se, conforme análises de Antunes (2022) “inventar um outro sistema
de metabolismo verdadeiramente social e, portanto, contrário aos imperativos
expansionistas, incontroláveis e destrutivos do sistema de capital” (p. 32).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 423

Todavia, se esse é o norte estratégico, não se pode simplesmente esperar


por uma transformação geral da sociedade antes de começar a mudá-la. Assim,
é preciso começar a reescrever a realidade das universidades com outras for-
mas de produzir conhecimento, outras práticas de formação, que tenham por
orientação outro modelo de universidade.
Essa é uma discussão amplíssima, que daria motivo para a escrita de um
outro texto, todavia em termos simplificados destacamos:

1. A necessidade de tratarmos a questão do trabalho em outra dimen-


são, exercitar o trabalho humano e social, concebendo-o como
“atividade vital, livre, autodeterminada, fundada no tempo dispo-
nível, contrariamente ao trabalho assalariado alienado, que tipifica
a sociedade do capital” (ANTUNES, 2022, p. 31). Nesta linha de
reflexão, Cardoso, Calvete, Krein e Dal Rosso (2022) reforçam, por
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exemplo, em suas análises, a emergência de se recolocar em pauta


discussões e lutas, a respeito da redução da jornada de trabalho,
como uma das ações que podem contribuir para enfrentar o crescente
mal-estar criado pela crise atual no mundo do trabalho e melhorar
a qualidade de vida dos trabalhadores.
2. Desmistificar a proposição utilitarista de que a universidade deve
abrir-se ao mundo empresarial, imprimindo na formação acadêmica
não somente os saberes acadêmicos próprios a cada profissão, mas
também a reflexividade crítica, “de modo que os futuros profissio-
nais que tenham concluído a formação universitária possam integrar
seu ambiente de trabalho e sua vida social [com] o que ali apren-
deram, em particular exercendo seu livre arbítrio como cidadãos
esclarecidos” (LAVAL, 2023, p. 6).
3. Por fim, incentivar a substituição das múltiplas práticas de compe-
tição/concorrência, pela cooperação, pela construção de coletivos
que possam, inclusive, contribuir para a desindividualização do
mal-estar, seja localizando as condições materiais das raízes do
sofrimento; compartilhando as inquietações, os sofrimentos e as
“soluções”; interrompendo coletivamente alguns mecanismos que
promovem o mal-estar, bem como, entendendo que nem mesmo
o fracasso é algo meramente individual. Em síntese, coletivizar o
mal-estar, politizando-o!
424

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EXPANSÃO PRECARIZADA
DA FORMAÇÃO PARA O
TRABALHO COMPLEXO NO
BRASIL NO SÉCULO XXI
Amanda da Silva Belo
Carlos Felipe Nunes Moreira
Ney Luiz Teixeira de Almeida
DOI: 10.24824/978652515286.8.427-452

Introdução
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Este capítulo aborda a temática da precarização do trabalho e das condições


de vida tomando como objeto de reflexão o processo de expansão educacional
brasileiro experimentado ao longo dos governos Lula e Dilma, entre os anos
de 2003 e 2016, nos campos da educação profissional e tecnológica e da edu-
cação superior. Trata-se da exposição de resultados parciais de atividades de
pesquisa que buscam identificar como que tendências presentes nos processos
de precarização social do trabalho na esfera produtiva nos anos de 1990 esten-
dem-se para as atividades laborais que não são diretamente exploradas com o
intuito de valorizar o capital, ou seja, aquelas que compõem o largo espectro
de consumo coletivo dos chamados serviços sociais ofertados pelo Estado a
partir das políticas públicas.
Para tanto, a política de educação se constitui no foco desta reflexão,
visto que expressa, no período em tela, importantes contradições para a com-
preensão do processo de precarização do trabalho que se realiza no âmbito do
Estado. Sob o primado da desregulamentação das relações de trabalho, ope-
rou-se uma expansão de largo alcance e capilaridade territorial, induzida pela
ação do governo federal e com algum impacto na recomposição dos empregos
públicos – se comparado com o governo Fernando Henrique Cardoso –, mas
sem alterar os pressupostos básicos da agenda neoliberal.
Tomando como referência que a ação do Estado é atravessada pelas
lutas sociais e que em cada conjuntura as correlações de força entre as
classes sociais fundamentais e suas frações produzem contornos mais ou
menos refratários ao reconhecimento das necessidades sociais da classe
trabalhadora, a política educacional dos governos Lula e Dilma expressou
de forma nítida os traços do pacto social de coalização de classes que os
428

sustentou até o golpe judicial-midiático-parlamentar de 2016. Resulta dessa


conformação de interesses um processo de expansão educacional nos níveis
e modalidades que organizam a formação para o trabalho complexo em
sintonia tanto com as necessidades do projeto societário de uma burguesia
do capitalismo periférico e dependente, como em relação às aspirações e
lutas sociais de frações da classe trabalhadora.
Destarte, o processo de expansão da rede de educação profissional e tec-
nológica e da educação superior é aqui problematizado em sua dupla dimensão
de precarização: tanto do trabalho docente, quanto da educação enquanto um
direito não universalizado. Envolvendo, nos dois casos, as condições sobre
as quais a ampliação do acesso foi forjada e as novas exigências formativas
para o trabalho complexo na periferia do capitalismo.

Apontamentos introdutórios sobre a formação para o trabalho

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complexo e o processo de expansão educacional

Marx no Livro 1 de O Capital expõe com clareza que o trabalho com-


plexo se distingue do trabalho simples por ser “a exteriorização de uma força
de trabalho com custos mais altos de formação” (2017, p. 274), e que requer,
portanto, mais tempo de formação do que o que é necessário para a execução
do trabalho simples. A qualidade distinta do trabalho superior e a formação
especializada serão objetivadas em um valor de uso da mesma forma que
aquelas derivadas do trabalho simples ao serem acionadas durante o processo
de trabalho. Contudo, na sociedade capitalista essa condição está subsumida
à lógica da valorização, o que torna o trabalho concreto, produtor de valor de
uso, em base material para a produção do mais-valor.
Assegurar as condições necessárias para que o processo de acumulação
capitalista se realize e se mantenha tornou-se uma das funções centrais do Estado
que passa a atuar na “mediação direta entre infra e superestrutura” ao mesmo
tempo em que exerce suas “funções repressivas e integradoras” segundo Ernest
Mandel (1982). Deste modo, a garantia das condições de formação para o traba-
lho simples e para o trabalho complexo se constituiu numa decisiva determinação
histórica dos processos de organização da escola, das hierarquias formativas e dos
sistemas educacionais no capitalismo. As exigências formativas advindas tanto
das diferentes fases do desenvolvimento das forças produtivas como das lutas
sociais empreendidas pela classe trabalhadora ao logo do processo de expansão
urbano-industrial convergiram para a emergência e desenvolvimento do que hoje
se reconhece como políticas educacionais nas sociedades ocidentais.
A consolidação da educação, assim como a de outros campos necessá-
rios à garantia das condições de reprodução da força de trabalho, contribuiu
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 429

significativamente para a ampliação das formas de organização interna do Estado


na fase monopólica do capital. O que implicou um aumento progressivo, ao
longo de boa parte do século XX, da punção realizada pelo Estado de parte do
mais-valor socialmente produzido para a constituição do fundo público (SAL-
VADOR, 2018). Contudo, é mediante as disputas entre as frações de classe que
se fazem representar no âmbito do Estado e a partir da política econômica em
curso em cada conjuntura que são definidos os percentuais, as formas e as áreas
destinadas à sua utilização, dentre elas as políticas públicas e, em particular, a
de educação.
Essas disputas ocorreram ao longo de treze anos não sem tensões e recom-
posições de interesses em função das condições institucionais de governabilidade
dada pelas alianças que levaram ao poder Lula e Dilma em conjunturas políti-
cas e econômicas internas e externas bem distintas. A capacidade indutora do
Estado no campo das políticas sociais durante as duas gestões do governo Lula,
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mesmo com uma política econômica que não reverteu nenhuma das tendências
estruturais construídas entorno do ajuste fiscal permanente (BERHING, 2021),
obteve êxito em função de um ciclo de expansão do mercado interno alicerçado
no aumento do poder aquisitivo de parcela da classe trabalhadora pela via do
aumento real do salário mínimo e dos benefícios sociais e programas de trans-
ferência de renda e alta dos preços das comodities no mercado internacional.
Já o governo Dilma, além de não dispor das mesmas condições econô-
micas - em função dos efeitos da crise de 2008 que exigiu cortes nos investi-
mentos –, também não obteve as mesmas bases de apoio político, sobretudo
em função das medidas mais restritivas que teve que tomar e que foram pro-
fundamente criticadas por diferentes setores da sociedade, como se verificou
nas jornadas de junho de 2013, e que “serviram de mote” para a interrupção
de seu mandato, com o golpe de 2016.
Porém, foi nesse período que o país experimentou um processo de expan-
são, sem precedentes, dos níveis e modalidades da política de educação que
cumprem uma função importante no processo de formação para o trabalho
complexo. Nesse contexto, obedecendo a um padrão de intervenção do Estado
sob nítida perspectiva gerencialista (NEWMAN & CLARKE, 2012) e não
universalizante, a partir da criação de programas que requeriam a adesão
de instituições e entes governamentais para o recebimento dos investimen-
tos. Cabe destacar que a formação para o trabalho complexo no capitalismo
monopolista, segundo Neves e Pronko (2008, p. 27) “tem por finalidade a
preparação de especialistas que possam aumentar a produtividade do trabalho
sob sua direção e, simultaneamente, a formação de intelectuais orgânicos da
sociabilidade capitalista”. No entanto as exigências formativas em termos
de tempo, conteúdo e amplitude da base social a partir da qual esses estratos
430

serão recrutados variam de acordo com a inserção de cada país na divisão


internacional do trabalho.
Reconhecendo as particularidades do desenvolvimento do capitalismo
no Brasil, a partir de sua condição periférica e dependente, Florestan Fer-
nandes (1976) ressalta que “a revolução burguesa no Brasil” difere no plano
político, econômico e cultural daquelas experimentadas nos países centrais,
tidas como “clássicas”, em virtude de ter se constituído em um processo
autocrático, a partir de uma modernização que não rompe, ao contrário,
se sustenta e se entrelaça com as forças arcaicas e conservadoras herdadas
do passado colonial e que não possibilitou uma efetiva universalização do
trabalho assalariado e dos direitos sociais.
É a partir desses traços históricos que conformam: 1- a dinâmica entre
as classes sociais fundamentais na periferia do capitalismo; 2- as condições
postas pela coalização de classes expressa no campo educacional pelo movi-

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mento “Todos pela Educação” (instituído em 2007 e atuante desde então em
favor de um novo tipo de empresariamento da educação228); 3- as disputas
pelo fundo público em um período comportou tanto um ciclo de crescimento
como de retração econômica; 4- a afirmação de tendências gerencialistas no
campo das políticas públicas; que é possível pensar o processo de expansão
da educação profissional e tecnológica e da educação superior. Afinal, o que
representou essa expansão considerando que no período em questão, apesar da
autoproclamação governamental de “neodesenvolvimentista”, não se verificou
nenhum projeto efetivo de desenvolvimento que justificasse o considerável
aumento de uma força de trabalho para o trabalho complexo? Tampouco tal
expansão representou uma alteração qualitativa radical dos processos for-
mativos que englobam. Talvez exatamente por essas premissas estarem mais
presentes no campo dos discursos oficiais produzidos em sua defesa do que
de fato na análise das relações concretas entre o desenvolvimento das forças
produtivas e as lutas pelo acesso à educação na atual quadratura do capitalismo
dependente e periférico em um contexto de crise e produção de alternativas
sob a hegemonia financeira é que se torna necessário examinar o significado
dessa expansão duplamente precarizada.
As contrarreformas implantadas a partir dos anos de 1990 trazem para
as relações e condições de trabalho dos chamados serviços sociais, operados
a partir do Estado através das políticas públicas, mecanismos de gestão e
desregulamentação que já estavam presentes na esfera produtiva a partir da
“flexibilização” dos processos e relações de trabalho decorrentes do esgota-
mento do padrão fordista-keynesianista (ANTUNES, 2000). As condições

228 A respeito do alcance do empresariamento da educação de novo tipo e a função estratégica desempe nhada
pelo movimento “Todos pela Educação” destacamos a detalhada pesquisa realizada por Martins (2013).
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 431

de ofertas dos serviços sociais a partir de então são profundamente alteradas


envolvendo processos objetivos e subjetivos que incidem sobre o trabalho
improdutivo que mobiliza um contingente expressivo de funcionários do
Estado. São trabalhadores intelectuais que integram processos de trabalho
coletivos que requerem em grande parte uma formação especializada para
o exercício de funções no campo da dominação política e ideológica, ainda
que inscritos no circuito do consumo coletivo de bens e serviços como saúde,
educação e assistência social entre outros.
A precarização social do trabalho, nos termos apontados por Druck “ins-
tabiliza e cria uma permanente insegurança e volatilidade no trabalho, fragi-
liza os vínculos e impõe perdas dos mais variados tipos (direitos, empregos,
saúde e vida) para todos que vivem do trabalho” (2013, p .61). E ainda que o
trabalhador que atua na esfera do Estado não esteja vinculado diretamente ao
processo de produção do valor, a sua reprodução pela via do assalariamento
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depende não só da produção, como da realização e apropriação de parcela do


valor na forma de fundo público pelo Estado. Essa relação de dependência ao
ciclo geral de produção e distribuição do valor é de suma importância para
a compreensão de que a parcela do fundo público que o remunera e financia
as condições de realização de seu trabalho que, em última instância, objeti-
varão no âmbito das políticas públicas os serviços necessários à reprodução
da força de trabalho produtiva e improdutiva, está em disputa o tempo todo.
As previsões orçamentárias, portanto, dependem dessas disputas, assim como
dos arranjos políticos e da política econômica, mas sobretudo, das condições
gerais asseguradas para a acumulação capitalista que, na periferia do capi-
talismo determina condições de superexploração da força de trabalho para a
extração de um sobrevalor excedente.
A precarização do trabalho docente, como uma das condições da própria
expansão das ofertas educacionais que envolvem a formação para o trabalho
complexo, não se atém ao conjunto dos trabalhadores docentes obviamente,
mas, nos termos desse trabalho privilegia-se esse tipo de trabalhador.
As formas de precarização no âmbito do trabalho improdutivo que obje-
tiva o processo de formação para o trabalho complexo não se dissociam da
precarização da vida daqueles que dependem da ação do Estado para acessar
a ciência e a tecnologia como mediação fundamental para sua inserção no
circuito de compra e venda da força de trabalho de tipo superior.
Cabe destacar também que a expansão precarizada das instituições que
formam para o trabalho complexo não ocorreu a despeito das novas exigên-
cias de dominação política e ideológica que integram as respostas à crise do
capital produzida pela autocracia burguesa que na periferia do capitalismo
sempre defendeu projetos educacionais heteronômicos. Expressa desse modo
432

também uma precarização da formação de certos tipos de intelectuais, cujo


tempo, conteúdo e modalidades de formação estão em sintonia às necessida-
des do atual estágio de regressão dos direitos sociais, das disputas no campo
ideológico e da política, assim como do barateamento do preço da força de
trabalho especializada em decorrência do aumento exponencial de sua oferta.

A expansão da Rede de Educação Profissional e Tecnológica

A precarização do trabalho docente na educação profissional e tec-


nológica deve ser examinada a partir do processo de expansão do acesso,
sobretudo com a criação da Rede Federal de Educação Profissional e Tec-
nológica, através da Lei 11.892, em 2008 (BRASIL, 2008). De acordo com
Prada e Garcia, a expansão dos Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia (IF’s) em mais de 400% deu-se via um processo contraditório que

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possibilitou o aumento de matrículas e a regionalização dessas instituições
em diversas partes do Brasil e, segundo as autoras “fruto dessa contradição,
não tivemos, na proporção da expansão, a melhoria das estruturas internas
desses Institutos com a adequação dos espaços, dos laboratórios e da quan-
tidade de servidores” (2019, p. 101).
Para melhor compreender a singular expansão dos IF’s observada ao
longo dos governos Lula e Dilma, faz-se necessário recuperar alguns elemen-
tos da centenária história da rede federal de educação profissional no país.
Segundo Valério Arcary, as transformações que essa rede conheceu nas duas
últimas décadas foram mais significativas que nos noventa anos anteriores.
“Na verdade, nenhuma esfera da educação pública no Brasil, em nenhum
nível de ensino, passou por tantas mudanças como ela, desde o fim da dita-
dura militar” (2015, n.p.). Ainda de acordo com o autor, a rede experimentou
cinco grandes fases no último meio século, até chegar à atual configuração
de Institutos Federais Educação, Ciência e Tecnologia; a saber:

a) Entre 1968 e 1988: período no qual a política educacional profissio-


nalizante da ditadura militar favorecia o Senai e o Senac, as Escolas
Técnicas Federais se consolidaram como instituições que ofere-
ciam ensino público de boa qualidade, com condições de trabalho
e remuneração superiores às que existiam seja na rede pública ou
privada, apesar da inexistência de liberdades democráticas básicas
nas instituições, como direito à organização sindical e estudantil;
b) Entre 1988 e 1996: com o fim da ditadura e a aprovação da Consti-
tuição de 1988, os servidores passaram a estar regulados pelo Esta-
tuto Jurídico Único. Os concursos públicos – embora com poucas
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 433

vagas – tomaram o lugar dos enviesados processos seletivos internos


e os diretores passaram a ser eleitos pela comunidade – apesar do
voto não-universal. Outras características dessa fase são o conge-
lamento salarial, a manutenção do projeto educacional (já consoli-
dado e que gozava de reconhecimento público) e a legalização da
organização sindical e estudantil;
c) Entre 1996 e 2003: a primeira grande reforma expansionista da Rede
ocorreu em 1997, através do Programa de Expansão da Educação
Profissional (PROEP), que resultou de empréstimo no valor de US$
250 milhões assinado entre o Ministério da Educação e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento. Um processo circunscrito às
contrarreformas neoliberais do Estado já em curso, buscando con-
tratos e parcerias com o setor privado, realizando pouco ou nenhum
concurso público e mantendo salários sem reajustes (o que fez explo-
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dir o número de greves). Foi também neste período que aconteceu a


“Cefetização”229 da maioria das antigas Escolas Técnicas Federais;
d) Entre 2003 e 2008: logo na primeira fase do governo de coalizão
de classe liderado pelo Partido dos Trabalhadores fica já evidente a
inexistência de um projeto alternativo e de caráter contra hegemô-
nico para a Rede. Há a consolidação da Cefetização (com a amplia-
ção de cursos superiores) e, por pressão sindical, há a restauração
do ensino integrado (uma importante reivindicação docente) e a
negociação de Planos de Carreira (tanto para professores quanto
para técnico-administrativos).

De 2008 para cá a rede viveu sua maior transformação. Os IF’s, criados


em 2009, em uma década chegou ao total de 38 Institutos Federais (além
de dois CEFET’s e o Colégio Pedro II)230, com 562 unidades por todo país.
Em 2002, os municípios atendidos pela rede somavam 120. Em 2015 a rede
atingiu 512 municípios. E o número de professores e servidores mais do
que triplicou. Os Institutos Federais se constituíram em “mega instituições”
cuja comparação no campo internacional se torna inviável (ARCARY, 2015).
Somente o Instituto Federal de São Paulo – o maior do país em expansão –
que tinha nos anos 1990 apenas três unidades231, passou de 5.000 alunos e
300 professores para, ainda em 2012, mais de 18.000 alunos matriculados e
mais de 1.105 professores distribuídos em 40 unidades.

229 Referência aos Centros Federais de Educação Técnica e Tecnológica (CEFET’s).


230 Fonte: portal do Ministério da Educação. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/rede-federal-inicial/. Acesso
em: 28 dez. 2022.
231 A sede em São Paulo e duas unidades descentralizadas: Cubatão e Sertãozinho.
434

Quanto à totalidade da rede, Prada e Garcia destacam que com a aprova-


ção do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), via Decreto
n. 7.234/2010 (BRASIL, 2010a), “[…] houve o aumento da destinação de
recursos de R$ 152.886.227,02 para R$ 423.532.188,22 [...] articulados ao
aumento de matrículas advindas do processo de expansão da rede federal.
Essas matrículas passaram de 487.930 em 2010 para 878.682 em 2017” (2019,
p. 89). Data deste mesmo ano o já referido golpe que destituiu Dilma Rous-
seff da Presidência da República e – com vistas a um ajuste fiscal ainda mais
profundo – a aprovação no Congresso Nacional das Leis 13.429 (BRASIL,
2017b) e 13.467 (BRASIL, 2017c) que, respectivamente, regulamenta em
larga escala os processos de terceirização e promove a contrarreforma da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), além da Emenda Constitucional
N° 95 (BRASIL, 2016a) que estabelece por duas décadas teto para investi-
mentos públicos.

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Nessa nova conjuntura política, as diretrizes econômicas do Estado vêm
sendo mais bem alinhadas para assegurar as condições do processo de acu-
mulação capitalista pela via da regressão de direitos e reorientação do fundo
público. Tendo em vista que a precarização do trabalho assalariado é inerente
à valorização permanente do capital, “a precarização do trabalho docente, por
sua vez, não é um fenômeno isolado, inserindo-se no processo mais amplo
de precarização do trabalho em geral [...]” afirma Kuenzer (2021, p. 235).
De acordo com a autora, a precarização do trabalho docente no regime de
acumulação flexível envolve aquilo que ela chama de inclusão excludente:
“[...] a escola inclui, mas com condições desiguais e precarizadas de forma-
ção, que conferem legitimidade à inclusão precarizada, pontual e temporária
no mundo do trabalho, puxado pela demanda” (idem, p. 245). Nesse sentido:

À precarização da formação, a reforma da legislação trabalhista responde


com a flexibilização das formas de contratação: terceirização, contratos
por tempo determinado, contratos intermitentes, uberização passam a
conviver com contratos estáveis obtidos por meio de concursos públicos,
agora também ameaçados pela reforma administrativa, em discussão no
Congresso Nacional (KUENZER, 2021, p. 246).

Em síntese: frente às necessidades de uma produção social cada vez mais


flexível, a precarização das relações de trabalho – acirradas pelas contrarrefor-
mas trabalhistas, especialmente as de 2017 – tem como impacto no trabalho
docente um processo de precarização mediado pelas citadas contrarreformas
e pela ampliação do acesso a uma educação voltada para a formação de
futuros trabalhadores adequados à flexibilização. Uma “inclusão excludente”
(KUENZER, 2021) para docentes e discentes.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 435

Quanto ao contingenciamento de recursos públicos, parte inerente da


contrarreforma acelerada (mas não inaugurada) pós-golpe de 2016, Prada e
Garcia destacam que “em um período de quatro anos [de 2015 até 2019], a
perda foi de mais de 22,7 bilhões em recursos federais para o setor [educacio-
nal], ou seja, o corte corresponde a 28,15% sobre os recursos destinados em
2014” (2019, p. 93-94). Contingenciamento este que perpassa: (i) diminuições
do orçamento do MEC em 2015 e 2016 (menos R$ 10 bilhões e 6,4 bilhões
respectivamente) e (ii) aprovação da Emenda Constitucional n. 95 (BRASIL,
2016a) e da Portaria n. 282 (que alterou o valor de despesas já aprovada antes na
LOA), totalizando ainda menos R$ 6,3 bilhões para os IF’s entre 2017 e 2019.
Considerando as conclusões identificadas por de Arcary (2015), pode-se
afirmar que a expansão da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnoló-
gica, mediada pelo conjunto das contrarreformas, tem incitado modificações
na organização do processo de trabalho coletivo nos IF’s implicando, por
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exemplo, que 20% dos professores da sala de aula fossem deslocados para a
gestão de unidades descentralizadas nos interiores dos Estados. Nas palavras
do autor (e em consonância com a noção de inclusão excludente):

Esta promoção para a gestão permitiu diminuir resistências, mas teve


como consequência, simetricamente, um aumento da precarização da
força de trabalho. Uma forte desestabilização nos Institutos, com uma
ampliação do número de professores temporários, com contratos não
renováveis depois de dois anos, que superou os 30% em muitos Institutos.
[...] Mas, sobretudo, porque as condições de trabalho nos novos cursos
e nas unidades interiorizadas foram e, em muitas permanecem, mais
do que precárias (ARCARY, 2015, n.p. Grifos nossos)

O que se verifica, portanto, no fenômeno da elevação do acesso à edu-


cação profissional e tecnológica brasileira no século XXI é a expansão não
homogênea e precarizada de uma cadeia formativa que articula docentes com
níveis e qualidade de formação variadas, que formarão trabalhadores com
competências desiguais e diferenciadas demandas pelo mercado (KUENZER,
2021) dos países de capitalismo periférico e dependente, bem adequado aos
imperativos da expropriação dual do excedente econômico e ao padrão com-
pósito de hegemonia burguesa (FERNANDES, 1975).
Uma expansão do acesso educacional que se, por um lado, a aparência do
fenômeno sugere ampliação democrática da cidadania, por outro, um estudo
crítico minimamente atento às suas raízes revela um processo de precari-
zação do trabalho nos IF’s que articula todos os indicadores da precariza-
ção social do trabalho no Brasil destacados por Druck (2013): mudanças na
436

forma de organização/gestão do trabalho, na legislação trabalhista e social,


no papel do Estado e suas políticas sociais, além de um novo comportamento
dos sindicatos.
“Admitir que a expansão desta Rede Federal, elevando as oportunida-
des de acesso à educação pública e gratuita foi, em geral, útil, não permite
concluir senão isso mesmo, o que é pouco” (ARCARY, 2015, n.p.). Certa
vez o arquiteto alemão Ludwig van der Rohe disse a famosa frase menos
é mais apenas quando o mais é demais. Talvez o seu exato oposto seja útil
para sintetizar a expansão precarizada ora analisada: mais é menos sempre
que o menos é tão pouco.

Principais tendências da precarização do trabalho docente nas


universidades

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Avançando no debate sobre a precarização do trabalho docente nos
diferentes níveis e modalidades da educação vinculadas à formação para o
trabalho complexo, destaca-se nesse momento algumas aproximações à edu-
cação superior federal que, assim como na educação profissional e tecnológica
também ocorreu assentada em bases de precarização do trabalho docente.
Sob esta base crítica, indaga-se até que ponto a educação mercantilizada e o
processo de precarização do trabalho docente se associam aos pilares centrais
de sustentação das diretrizes propostas pelo capital, sob a égide neoliberal.
Dentre as reformulações da educação superior que atendem aos interes-
ses do capital, estão: a privatização das universidades públicas por meio de
cursos pagos; parcerias entre empresas e universidades; criação de fundações
de direito privado; incentivo à competitividade e ao empreendedorismo; entre
outros. A educação superior se encontra no cerne do interesse do capital, refe-
rente à subordinação da ciência ao mercado, ao produzir novos conhecimentos
úteis às empresas, que possam fomentar a concorrência (LIMA, 2012).
Considerando a herança de precarização do trabalho brasileiro e as carac-
terísticas da reestruturação produtiva que têm atingido o trabalho coletivo
dos docentes na contemporaneidade, vale destacar que eles, em seu cotidiano
laboral, têm sido subjugados a uma crescente precarização do trabalho, que
engloba a flexibilização laboral, a restrição e a limitação de direitos, a subjuga-
ção a novos métodos e formas de organização sociotécnica do trabalho; além
de uma exigência de ampliação das produções científicas, mercantilização
do conhecimento e da pesquisa universitária, que seguindo aos ditames do
mercado, têm sido realizadas de acordo com os interesses do setor privado (da
indústria, dos serviços e dos sistemas financeiros); sendo executadas, assim,
sob encomendas para atender às demandas do capital.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 437

Relacionado a isso, Oliveira (2011) descreve as características que encer-


ram a educação na contemporaneidade e permitem o processo de intensificação
do trabalho docente, tendo sua materialização expressa pelos “[...] contratos
temporários, pelo aumento das atribuições vinculadas à nova organização
escolares e pela profusão de conexões da escola com o empresariado […].
Além disso, o trabalho docente foi objetivizado e ‘desespecializado’ de tal
maneira a reproduzir a ‘qualidade total’ e o controle de processos. […] (p. 42).
Ainda, há a tendência à diferenciação dos orçamentos das instituições
federais de ensino superior, de acordo com os índices de produtividade gera-
dos, que tem relação com os recursos provenientes de arrecadação própria,
obtidos diretamente pelas instituições federais de educação superior, que são
relacionados às ações e formas de prestação de serviços pelas instituições,
para obtenção de recursos. Nessa dinâmica, o docente se torna um pesquisador
especializado em captar recursos pela concorrência em torno dos editais e/ou
Editora CRV - Proibida a comercialização

pela defesa da venda de produtos e serviços desenvolvidos nas universidades.


Ademais, Sguissard e Silva Junior (2018) relacionam essa temática à
redução do poder aquisitivo dos salários dos docentes na educação superior,
que tem sofrido ao longo dos anos perdas decorrentes da falta de uma política
de reajustes regulares. Para que haja reajustes salariais, portanto, são necessá-
rias reivindicações coordenadas pelos sindicatos, que incluem ações de para-
lisações e greves, que acarretam “[…] enormes prejuízos para as atividades
de ensino, pesquisa e extensão. Pode–se dizer que este fenômeno é um dos
mais claros sintomas ou marcas da deterioração das condições de trabalho
dos professores da IFES nas últimas décadas […] (p. 99).
Nestes marcos, são conhecidas as características do trabalho docente,
de reprodução de “[…] um mercado de trabalho diversificado e fragmen-
tado, composto por poucos trabalhadores centrais, estáveis, qualificados e
com melhores remunerações; e um número cada vez maior de trabalhadores
periféricos, temporários, em mutação, facilmente substituíveis […]” (MAN-
CEBO; ROCHA, 2002, p. 67).
Santos (2000) denuncia uma situação de precarização do trabalho
docente, denominando como “professorado lúmpen”. Para ele, a crise eco-
nômica/financeira das universidades, que limita e inviabiliza novas contrata-
ções de docentes para suprir as vagas daqueles que se aposentam e a inserção
de uma lógica administrativa pautada nos princípios neoliberais de gestão e
controle, adotada pelas reitorias das universidades, consolida o consenso de
que o trabalho intelectual dos docentes se avalia pela quantidade de turmas
que ministra e pelas disciplinas que é responsável em turmas numerosas232.

232 Nestes termos, os docentes das universidades têm vivenciado, por um lado, uma “[…] crescente proleta-
rização em termos econômicos e, por outro, nossa insidiosa transformação numa espécie de lumpesinato
438

Vale notar também que a precarização do trabalho docente se expressa ainda


pela busca de quantificação do seu trabalho através da publicação de artigos e
papers que demarquem a sua produtividade acadêmica, uma vez que conside-
ramos que nesse processo de precarização, o docente precisa se responsabilizar
por essa produção como um aditivo ao seu trabalho realizado na universidade,
em uma aproximação com os preceitos de um “empreendedorismo acadêmico”.
Deve-se mencionar ainda as formas de contratações precárias que ocorrem
através da modalidade de tutoria, ou professor temporário, que tem paulati-
namente crescido nas instituições públicas. Já outras duas expressões dessa
precarização em curso são: a terceirização e a expansão do mercado educa-
cional, por meio da tecnologização e informatização, que favorece o ensino a
distância; visto que, “[…] a promoção dessas tecnologias vai ao encontro das
preocupações daqueles que querem reorganizar o ensino colocando um fim no
face-a-face do professor com seus alunos” (LAVAL, 2004, p. 221).

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Adjunto a essa dinâmica, outra forma operacional na universidade é a
educação a distância, através do uso e mediação das tecnologias e da sub-
missão do trabalho docente às contratações precárias e temporárias; além da
imposição aos docentes concursados, de observância aos ditames oriundos
da gestão empresarial, e mensuração quantitativa das ações de trabalho, sob
parâmetros produtivistas e competitivos.
A partir dessas análises, observa-se que está em curso, na educação
superior federal, um projeto que expressa os interesses do capital para as
universidades, desmantelando e atacando qualquer perspectiva de autonomia
universitária e estabelecendo de forma regulamentada, procedimentos nor-
matizados por um arcabouço legal e jurídico e aprofundando a heteronomia
do processo de expansão da educação superior no Brasil.
Partindo desse pressuposto, como forma de regulamentar e dar corpo
às ações de contrarreforma na educação superior, o Estado brasileiro imple-
mentou um conjunto de leis, decretos e normativas que vão ao encontro das
medidas e orientações de atendimento dos interesses do capital, para expansão
e ampliação da educação superior, através da “massificação” da formação,
ancorada na incorreta ideia de “democratização” do acesso.
Destaca-se nesse processo, o Programa de Apoio a Planos de Reestrutu-
ração e Expansão das Universidades Federais (REUNI) (BRASIL, 2007), que
expressa uma concepção e prática de universidade que dá materialidade e con-
cretude às políticas de contrarreforma do Estado na educação superior federal
e que atende, de forma ideológica e conscientemente subordinada às diretrizes
dos organismos financeiros internacionais (multilaterais/ supranacionais), como:
Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM), Organização

intelectual […]” (SANTOS, 2000).


LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 439

para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização das


Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), entre outros.
Essas conexões revelam que o trabalho docente se torna mais precarizado
também em decorrência das mudanças pelas quais passou a universidade nas
duas últimas décadas, derivadas de outros programas e políticas importantes,
como: o Sistema de Seleção Unificado (SISU) (BRASIL, 2012a), a Lei de
Reserva de Vagas, “Lei de Cotas” – Lei nº 12.711 (BRASIL, 2012b), e o
Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) (BRASIL, 2010a)233,
mas que reiteram o caráter não universal desse processo de expansão.
Tais políticas, normativas e programas impuseram novas requisições ao tra-
balho docente, enquanto parte do trabalhador coletivo, diante de uma expansão
da educação superior sintonizada às exigências de “flexibilização” da formação,
por meio da diversificação de formas/modalidades de acesso e permanência
dos discentes. Assim, de forma contraditória, as condições de ampliação do
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acesso determinada pela ausência de investimentos públicos suficientes para


assegurar a oferta adequada de uma formação intelectual para os novos e futuros
trabalhadores complexos, produziram no amplo espectro da expansão da edu-
cação superior no Brasil, uma universidade pública maior e mais precarizada
e sucateada, impactando os processos e relações de trabalho em seu interior.
Segundo Santos e Melo (2019), o REUNI não contou, em sua implemen-
tação, com ações de “[…] melhoramento dos espaços físicos e realização de
concursos para completar os quadros docentes das universidades, mas sim a
uma nova forma de organizar a educação superior, tendo em vista o baratea-
mento da mesma […]” (p. 13). Sendo possível entender que: “a partir de tal
lógica, há uma crescente intensificação e precarização do trabalho docente com
um forte movimento de sucateamento das universidades públicas […]” (p. 18).
O aumento do número de matrículas em cursos de graduação nas universi-
dades públicas federais entre os anos 2007 e 2017, correspondeu a 106,2%, de
acordo com o Censo da Educação Superior divulgado pelo INEP. O quantitativo
de matrículas em cursos de graduação presenciais, em 2007, era de 578.536,
nas universidades públicas federais no Brasil. Já em 2017, as universidades
federais detiveram, dentre o total de discentes que se matricularam nos cursos de
graduação presenciais e a distância, 1.120.804 matrículas discentes nos cursos
de graduação (INEP, 2007; 2017). Contudo, o aumento do número de vagas
discentes, não foi acompanhada pelo crescimento do orçamento. Ao contrário,
90% das 63 universidades federais tiveram perda real no orçamento, de 2013 a

233 O PNAES tem como finalidade ampliar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública
federal. E estabelece como áreas de ação da assistência estudantil: alimentação; transporte; atenção à
saúde; inclusão digital; cultura; esporte; creche; moradia estudantil; apoio pedagógico; e acesso, participação
e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades
e superdotação (BRASIL, 2010a).
440

2017; ainda, os recursos garantidos pelo governo federal diminuíram 28,5%, na


média nacional; e 2017 teve o menor repasse de verbas em sete anos, ou seja, o
valor destinado às despesas não obrigatórias (para manutenção e obras), segundo
o levantamento realizado pelo site G1 Educação, vinculado à Rede Globo, com
dados cedidos pelo Ministério da Educação – por meio de um levantamento
de dados do Sistema do Orçamento Público (Siop), feito pela Subsecretaria de
Planejamento e Orçamento (SPO) do MEC (G1 – GLOBO, 2018).
Destarte, a expansão da educação superior federal provocou mudanças
no processo de reorganização do trabalho docente na universidade, tanto no
que se refere a inserção na graduação como na pós-graduação. Dessa forma,
por um lado tem-se a intensificação do trabalho vivenciada pelos docentes
inseridos nos programas de pós-graduação das universidades, que é pau-
tada pela lógica produtivista acadêmica, advinda das publicações em revistas
científicas qualificadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

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Nível Superior (CAPES) e às exigências e critérios de produção de pesquisas
que atendam aos interesses do mercado; e por outro lado, os docentes dos
novos campi universitários e cursos, criados a partir da expansão segundo
implantação do REUNI, voltados para o ensino diminuto, salas de aula com
um número elevado de discentes, e cursos aligeirados e massificados.
Cabe sinalizar que a expansão da educação superior experimentada
nos governos Lula e Dilma ainda que represente uma política que não dá
continuidade ao desmonte que caracterizou o governo Fernando Henrique
Cardoso, também não rompe com o padrão não universitário em que pese o
investimento realizado a partir do REUNI e suas bases gerencialistas. E que
se estende aos processos de avaliação assentados em critérios oriundos do
setor privado, que abrangem a gestão, flexibilização, produtivismo, alcance
de metas, que colocam a ciência e a produção do conhecimento sob a égide
da lógica do mercado, com incentivos das parcerias público-privadas, venda
de cursos, busca pelo empreendedorismo e produtivismo na universidade.
Dentre as principais legislações regulamentadas na educação superior
federal, que conjugam medidas de flexibilização e desregulamentação do
trabalho, além de redução de verbas para financiamento das políticas públi-
cas, destacam-se: a Instrução Normativa nº5/2017 (BRASIL, 2017e), que
regulamenta a contratação de serviços sob o regime de execução indireta no
âmbito da administração pública federal; a Lei nº 13.429/2017 (BRASIL,
2017b) que estabelece o trabalho temporário nas empresas urbanas e dispõe
sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços também
no âmbito público; a Emenda Constitucional N° 95 (BRASIL, 2016a), que
prevê o congelamento dos gastos públicos por 20 (vinte) anos, já mencionada
anteriormente ao analisarmos a Educação Profissional e Tecnológica.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 441

Além da Lei n° 13.243/2016, (BRASIL, 2016b) que tem como objetivo


favorecer a maior competitividade das empresas, através de uma relação e
cooperação entre as empresas e o setor público (dentre às quais, as univer-
sidades federais são parte constituinte e majoritária). Para tanto, assegura
tratamento diferenciado, favorecido e simplificado a estas, prevendo o com-
partilhamento e permissão de uso dos laboratórios, equipamentos, recursos
humanos e capital intelectual das Instituições Científica, Tecnológica e de
Inovação (ICTs), e gestão da propriedade intelectual e de transferência de
tecnologia produzida; além de permitir que docentes com dedicação exclusiva
trabalhem nas empresas, com remuneração.
Evidentemente que o trabalho docente, no processo de expansão da edu-
cação superior, se reorganiza para atender a duas premissas principais em
termos neoliberais: a universidade voltada para o ensino de graduação aligei-
rado, massificado e que não contempla o tripé ensino, pesquisa e extensão; e a
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universidade enquanto centro de excelência em pesquisa, com cursos de pós-


-graduação e pesquisa que seguem padrões avaliativos internacionais, voltados
para a produtividade e competitividade. Em ambos os casos, há precarização
e reorganização do trabalho docente, porém, diferenciados de acordo com as
demandas e requisições de trabalho, em que se inserem. Cabendo destacar
que essas políticas são implantadas a partir de recomendações dos organismos
internacionais, e se materializam nas legislações nacionais aprovadas.
O quadro a seguir reúne algumas das legislações que desde 2007, quando
da aprovação do “Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação” (BRA-
SIL, 2007a), constitutiva do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE),
a coalização de classes que sustentou uma boa parte dos governos de Lula e
Dilma passa a ter uma atuação mais contundente na subordinação dos pro-
cessos de expansão para o trabalho complexo aos interesses hegemônicos
das burguesias de serviços e financeiras, até aquelas contrarreformas reali-
zadas já no governo Temer, mas que são importantes para a compreensão da
expansão precarizada.
442

Quadro nº 1 – Relação de legislações que incidem sobre as condições de expansão


da formação para o trabalho complexo no Brasil no período entre 2007 e 2017.
Modalidades/
Data de Governo/
Legislação Disposição e destinação níveis da
publicação presidente
Educação

Consolida o “Plano de Metas Compromisso Todos


Pela Educação”, pelos entes federados, com
Decreto
a participação das famílias e da comunidade,
6.094/2007 24 de abril Educação
mediante programas e ações de assistência técnica Lula da Silva
(BRASIL, de 2007. Básica
e financeira. Propõe diretrizes e estabelece metas
2007a)
para o IDEB das escolas e das Redes Municipais
e Estaduais de Ensino.

Decreto nº
Institui o Programa de Apoio a Planos de
6.096/2007 24 de abril Educação
Reestruturação e Expansão das Universidades Lula da Silva
(BRASIL, de 2007. Superior
Federais (REUNI).
2007b).

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Institui a Rede Federal de Educação Profissional,
Lei nº Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais
29 de
11.892/2008 de Educação, Ciência e Tecnologia. Equipara os Educação
dezembro Lula da Silva
(BRASIL, Institutos Federais às universidades federais, em Tecnológica
de 2008.
2008). relação à regulação, avaliação e supervisão das
instituições dos cursos de educação superior.

Decreto nº Dispõe sobre a Política Nacional de Formação


6.755/2009 Decreto nº dos Profissionais da Educação Básica (PARFOR),
Decreto nº
(BRASIL, 6.755 – 29 que institui o Programa Nacional de Formação de
6.755 – Lula
2009), de janeiro Profissionais da Educação Básica, articulando Educação
da Silva
revogada de 2009. ações das instituições de ensino superior Básica e
Decreto Nº
pelo Decreto Decreto nº vinculadas ao sistema federal, estaduais e distrital Superior
8.752 -Dilma
nº 8.752/2016 8.752 – 9 de de educação. Prevê a inserção de professores da
Rousseff
(BRASIL, maio de 2016 rede básica da educação na educação superior
2016c) federal para formação em cursos de licenciatura.

Decreto nº
7.234/2010 19 de julho Dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Educação
Lula da Silva
(BRASIL, de 2010. Estudantil (PNAES). Superior
2010a).

Projeto de
Educação
Lei (PL) n° 20 de
Aprova o Plano Nacional de Educação para o Básica,
8035/2010 dezembro Lula da Silva
decênio 2011-2020, e dá outras providências. Tecnológica
(BRASIL, de 2010.
e Superior
2010b).

continua...
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 443
continuação

Modalidades/
Data de Governo/
Legislação Disposição e destinação níveis da
publicação presidente
Educação

Prevê o ingresso nas universidades federais e IFs


de ensino técnico de nível médio, prevendo reserva
para ingresso nos cursos de graduação de no
Lei nº mínimo 50% para estudantes que tenham cursado
Educação
12.711/2012 29 de agosto integralmente o ensino médio em escolas públicas. Dilma
Tecnológica
(BRASIL, de 2012. Dentro dessa destinação, prevê o preenchimento Rousseff
e Superior
2012b). de estudantes oriundos de famílias com renda
per capita igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo;
autodeclarados pretos, pardos e indígenas e
pessoas com deficiência.

Lei n° Educação
13.005/2014 25 de junho Aprova o Plano Nacional de Educação (PNE), com Dilma Básica,
(BRASIL, de 2014. vigência por 10 (dez) anos (2014-2024). Rousseff Tecnológica
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2014). e Superior

Emenda
Educação
Constitucional 15 de Altera a Constituição Federal de 1988, impondo um
Básica,
n.º 95/2016 dezembro teto limite para os gastos públicos, com correção Michel Temer
Tecnológica
(BRASIL, de 2016. pela inflação, por até 20 anos.
e Superior
2016a).

Estabelece um novo marco legal da Ciência,


Lei n° Tecnologia e Inovação (C,T&I), dispondo sobre
13.243/2016 11 de janeiro estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, Dilma Educação
(BRASIL, de 2016. à capacitação científica e tecnológica e à inovação. Rousseff Superior
2016b). Regulamenta a aliança entre o capital privado e as
universidades, com a entrada de investimentos.

Altera as Leis nºs 9.394, de 20 de dezembro de


1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, e 11.494, de 20 de junho
2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção
Lei nº e Desenvolvimento da Educação Básica e de
16 de
13.415/2017 Valorização dos Profissionais da Educação, a
fevereiro Michel Temer Ensino Médio
(BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada
de 2017
2017a) pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943,
e o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967;
revoga a Lei nº 11.161, de 5 de agosto de 2005;
e institui a Política de Fomento à Implementação
de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral.
Altera dispositivos da Lei nº 6.019/1974, que
Lei N°
dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas Educação
13.429/2017 31 de março
urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre Michel Temer Tecnológica
(BRASIL, de 2017
as relações de trabalho na empresa de prestação e Superior
2017b)
de serviços a terceiros.

continua...
444
continuação

Modalidades/
Data de Governo/
Legislação Disposição e destinação níveis da
publicação presidente
Educação

Lei
Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
13.467/2017 13 de julho Educação
a fim de adequar a legislação às novas relações Michel Temer
(BRASIL, de 2017. Tecnológica
de trabalho.
2017c)
Decreto nº Regulamenta a Educação a Distância (EaD),
9.057/2017 25 de maio permitindo às instituições de ensino superior a Educação
Michel Temer
(BRASIL, de 2017. ampliar a oferta de cursos superiores de graduação Superior
2017d) e pós-graduação a distância.
Instrução
Dispõe sobre as regras e diretrizes do procedimento
Normativa
26 de maio de contratação de serviços sob o regime de Educação
nº 5/2017 Michel Temer
de 2017. execução indireta no âmbito da administração Superior
(BRASIL,
pública federal direta, autárquica e fundacional.
2017e).

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Fonte: Quadro elaborado pelos autores a partir de levantamentos realizadas
no processo de pesquisa para a produção desse capítulo.

É importante ressaltar que as bases legais constituem, contraditoria-


mente, um importante componente da ação do Estado para o processo de
desregulamentação do trabalho protegido que caracteriza em grande medida
o trabalho realizado pelos docentes. Nesta direção, a precarização do traba-
lho docente, um dos elementos de sustentação da expansão precarizada da
educação profissional e tecnológica assim como da educação superior, sofre
com a intensificação, a destituição de direitos e a subordinação às métricas
e parâmetros das agências de fomento e aquelas advindas dos organismos
multilaterais a partir do escopo gerencialista que atravessa o conjunto das
legislações listadas no quadro.
Elas não esgotam o amplo campo legal mobilizado nessa direção e
tampouco devem ser compreendidas com continuidades isentas de ten-
sões e contradições entre os diferentes governos referidos e que, de certo
modo, ultrapassa o propósito inicial dessa reflexão. Apenas indicam que o
arcabouço legal necessário para a compreensão das condições que impu-
tam ao processo de expansão das instituições responsáveis pela formação
para o trabalho complexo a marca da dupla precarização (vida e trabalho)
se apoia em processos que atingem a totalidade da classe trabalhadora
de diferentes formas, privando-as ainda mais dos meios de reprodução
material e espiritual, ou seja, tanto das condições de assalariamento que,
embora típicas do padrão fordista-keynesianista não foram universalizadas
no Brasil, quanto do acesso aos níveis superiores do trabalho complexo
pela via da educação pública.
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 445

Considerações Finais

O presente capítulo teve como objetivo analisar como a expansão educa-


cional voltada para o trabalho complexo no Brasil tem ocorrido nos níveis da
Educação Profissional e Tecnológica e Superior nos últimos anos, sobretudo
pela via programática de planos e programas heterogêneos; e não por uma
política que universalize o direito à educação. Ainda, tal expansão assenta-
-se sobre as bases de precarização do trabalho docente, guardando relação
com as formas de avaliações externas que pautam a gestão e o controle do
trabalho; o financiamento da educação em seus diferentes níveis/modali-
dades; o arcabouço jurídico-legal que abrange as legislações trabalhistas e
educacionais; a contrarreforma da CLT e as diversas formas de flexibilização
de contratação, através da terceirização, contratos temporários e por tempo
parcial, intensificadas pela tecnologização/informatização; o ensino a dis-
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tância; o rebaixamento do piso salarial e necessidade de busca de aumento


da remuneração pela via do empreendedorismo acadêmico; entre outros
fatores que legitimam a precarização sob os postulados do capital na esteira
da agenda e sociabilidade neoliberal.
A precarização do trabalho na política de educação, campo de interesse
nesse texto, não só atende às exigências de manutenção das taxas de lucro
em diferentes setores produtivos, como dos novos nichos de valorização do
capital de serviços pela via do novo tipo de empresariamento da educação
e que passou a ocupar lugar de destaque na composição do Ministério da
Educação desde 2007, como da garantia de rentabilidade do capital rentista.
A intensificação do trabalho docente torna-se, desse ponto de vista, uma
das condições a partir da qual esse processo de expansão ocorreu, como
vetor resultante de uma ampliação que não foi sustentava por novas fontes
de financiamento e atendeu, no período, às pressões oriundas de certas
frações da classe trabalhadora e às requisições das frações burguesas que
aumentaram o percentual de mais-valor apropriado em função da ampliação
das condições de exploração de uma parcela jovem de trabalhadores com
formação para o trabalho complexo.
A amplitude dessa precarização não impede que se reconheça que nos
governos Lula e Dilma há uma correlação de forças que não se evidencia no
governo que os precedem, tampouco se mantém na avalancha neoconservadora
e ultraneoliberal que os sucedem. Porém, a partir da reatualização das marcas
autocráticas e do aprofundamento de um projeto de educação heteronômico
no campo da educação profissional e tecnológica e superior, reitera-se ao
final dessa exposição as várias indagações feitas ao longo do texto sobre o
real significado dessa expansão frente aos padrões de contrarreformas, ou
446

mesmo contrarrevolucionários que balizam desde o final do século passado


as respostas do Estado frente às demandas das frações da classe trabalhadora.
Além da necessidade de aprofundamento sobre o significado dessa expan-
são precarizada para os processos de controle da produtividade do trabalho e
de dominação ideológica e política para os quais essa massa de trabalhadores
complexos vem sendo formada considerando-se válidas as incidências que
produzem sobre o trabalho docente, as práticas pedagógicas e sua subordi-
nação aos controles gerencialistas.

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LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 447

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de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvol-
vimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação,
a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no
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ÍNDICE REMISSIVO
A
Acidente industrial 223, 224, 225, 234, 235, 236, 237, 238, 239, 240
Acidentes de trabalho 44, 48, 100, 209, 234, 243, 365, 372, 377, 379, 380, 396
Adoecimento 48, 103, 114, 118, 156, 190, 252, 365, 378, 379, 383, 396, 401,
413, 415, 417, 419, 422
Aretê 181, 188, 190, 191, 192, 193
Assistentes sociais 85, 87, 88, 92, 96, 98, 99, 101, 102, 103, 104, 108, 293,
339, 364, 391, 392, 399, 400, 401, 402, 403, 404, 406, 407, 410, 451

B
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Barragem 131, 180, 181, 188, 192, 193, 194, 196, 199, 200, 209, 223, 225,
228, 232, 233, 239, 240

C
Cadeia de valor 199, 209, 210, 214, 215, 216
Capital 39, 40, 41, 43, 44, 45, 46, 50, 51, 52, 56, 58, 61, 67, 68, 69, 70, 71,
72, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 81, 83, 85, 86, 87, 88, 89, 91, 92, 93, 94, 95,
96, 97, 99, 101, 103, 106, 107, 114, 115, 116, 117, 118, 120, 121, 123, 124,
125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 135, 141, 142, 146, 147, 148, 149, 150,
152, 153, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167,
168, 169, 170, 171, 173, 177, 178, 179, 180, 183, 184, 185, 186, 187, 188,
189, 191, 192, 193, 194, 195, 196, 197, 201, 202, 203, 204, 205, 206, 207,
208, 209, 211, 212, 214, 216, 217, 219, 221, 228, 237, 240, 243, 248, 249,
255, 258, 259, 261, 267, 268, 271, 274, 277, 281, 282, 283, 284, 285, 286,
287, 291, 292, 293, 295, 297, 299, 300, 301, 302, 303, 306, 307, 308, 309,
312, 315, 317, 318, 319, 320, 321, 322, 323, 324, 325, 326, 327, 328, 329,
330, 333, 339, 344, 345, 348, 349, 350, 351, 352, 358, 361, 362, 363, 365,
367, 369, 370, 371, 372, 373, 374, 376, 377, 378, 379, 380, 383, 385, 389,
393, 394, 395, 399, 409, 410, 414, 416, 420, 422, 423, 427, 428, 429, 431,
434, 436, 437, 438, 441, 443, 445, 451, 461, 462
Capitalismo 35, 37, 38, 39, 42, 44, 45, 46, 49, 50, 51, 52, 53, 55, 56, 57, 58,
61, 62, 63, 65, 68, 69, 72, 75, 76, 77, 79, 80, 82, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91,
93, 94, 99, 101, 102, 105, 106, 107, 109, 110, 114, 115, 116, 117, 119, 122,
123, 124, 125, 128, 129, 130, 131, 132, 135, 141, 142, 146, 149, 150, 151,
152, 153, 154, 155, 156, 157, 159, 162, 164, 165, 167, 169, 170, 171, 173,
454

181, 182, 183, 185, 187, 188, 196, 199, 200, 204, 206, 207, 212, 216, 218,
219, 229, 237, 263, 265, 283, 291, 292, 300, 303, 317, 318, 319, 321, 323,
326, 327, 328, 338, 349, 351, 352, 356, 358, 359, 362, 363, 364, 368, 369,
372, 375, 376, 377, 387, 388, 413, 416, 418, 419, 424, 425, 428, 429, 430,
431, 435, 450, 451, 463
Caucaia 290, 291, 299, 302, 303, 304, 305, 307, 312
Condições de vida 3, 57, 104, 125, 130, 139, 140, 146, 149, 150, 151, 152,
154, 155, 157, 166, 167, 168, 169, 199, 224, 230, 239, 245, 299, 300, 312,
317, 318, 322, 358, 371, 385, 427
Consolidação das leis 55, 306, 314, 328, 346, 352, 366, 388, 434, 443,
444, 449
Contrarreforma 92, 328, 348, 352, 353, 355, 356, 373, 374, 378, 381, 391,
392, 395, 397, 398, 406, 407, 434, 435, 438, 445

Editora CRV - Proibida a comercialização


Covid-19 88, 89, 91, 92, 139, 168, 245, 290, 328, 329, 350, 356, 358, 386, 420
Crise do capital 74, 85, 123, 129, 130, 142, 171, 207, 395, 431, 462

D
Direitos do trabalho 39, 47, 60, 68, 92, 107, 118, 119, 122, 344
Divisão internacional 55, 94, 116, 200, 371, 430

E
Economia política 106, 107, 138, 144, 145, 146, 152, 173, 197, 219, 243,
251, 286, 287, 333, 339, 363, 389, 400, 410, 451, 461
Espaço agrário 177, 178, 180, 181, 194
Expansão da educação 430, 433, 438, 439, 440, 441, 450
Expropriação e violência 177, 182, 188, 194, 286

F
Força de trabalho 40, 46, 48, 57, 59, 61, 69, 71, 72, 77, 79, 89, 90, 92, 101,
110, 112, 116, 125, 128, 130, 135, 144, 151, 153, 156, 157, 158, 159, 160,
162, 165, 166, 185, 188, 201, 202, 203, 206, 209, 239, 241, 242, 265, 266,
268, 281, 283, 292, 293, 294, 301, 307, 317, 319, 320, 321, 325, 328, 329,
330, 333, 335, 337, 346, 357, 358, 359, 365, 366, 367, 368, 369, 370, 371,
372, 373, 375, 376, 377, 378, 379, 383, 384, 385, 392, 393, 395, 398, 400,
428, 430, 431, 432, 435
Fordismo 40, 41, 46, 50, 52, 58, 59, 68, 70, 71, 77, 89, 90, 109, 110, 113,
114, 116, 121, 153, 155, 170, 324, 368, 369, 389
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 455

Formas de organização 37, 54, 55, 60, 90, 96, 110, 111, 112, 116, 119, 265,
267, 269, 271, 276, 281, 286, 374, 429, 436

G
Geografia 124, 145, 147, 177, 185, 195, 196, 243, 273, 285, 314, 331, 345,
363, 459, 463, 464
Gestão e organização 47, 48, 367, 396, 402, 404
Governador valadares 199, 200, 207, 210, 212, 215, 216, 217, 220

H
Habitação 212, 245, 248, 251, 253, 254, 255, 256, 258, 260, 264, 296, 372

I
Editora CRV - Proibida a comercialização

Informação e comunicação 37, 40, 88, 91, 92, 94, 95, 108, 208, 409
Interesse social 246, 248, 251, 253, 254, 255, 258, 260, 264

L
Lei 4, 64, 138, 155, 158, 163, 169, 184, 186, 190, 201, 202, 204, 205, 246,
247, 255, 256, 262, 264, 265, 274, 275, 280, 285, 287, 304, 314, 315, 332,
334, 335, 336, 346, 347, 348, 352, 353, 354, 355, 359, 361, 370, 388, 402,
404, 409, 415, 432, 439, 440, 441, 442, 443, 444, 448, 449

M
Mal-estar 55, 90, 413, 417, 418, 423, 424
Mapa de risco 290, 314, 315
Maracanaú 290, 291, 294, 295, 297, 299, 300, 301, 302, 303, 304, 305, 306,
312, 463
Meios de produção 97, 110, 157, 188, 201, 202, 203, 204, 277, 280, 284,
317, 319, 320, 370, 371, 372, 392, 393
Mercado de trabalho 38, 39, 43, 46, 48, 50, 55, 60, 66, 74, 78, 87, 90, 92, 96,
117, 132, 156, 161, 203, 231, 311, 312, 313, 325, 327, 329, 353, 356, 359,
365, 366, 367, 368, 369, 374, 382, 383, 384, 385, 386, 396, 397, 398, 437
Minério 181, 189, 200, 201, 207, 208, 210, 212, 217, 220, 223, 224, 226,
227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 237, 238, 239, 240, 242
Miséria automatizada 67
Miséria do trabalho 120, 173, 387, 388, 409, 450
456

Modo de produção 40, 58, 89, 110, 149, 155, 157, 158, 159, 161, 162, 164,
165, 166, 167, 201, 202, 206, 207, 225, 232, 267, 272, 277, 281, 283, 317,
324, 329, 345, 351, 369

N
Novo proletariado 54, 59, 63, 105, 120, 144, 242, 338, 387

O
Operação urbana 246, 247, 248, 250, 252, 262

P
População em situação de rua 261, 289, 290, 291, 292, 293, 299, 302, 304,
305, 306, 308, 311, 312, 313, 315, 461, 463

Editora CRV - Proibida a comercialização


Pós-graduação 105, 144, 145, 195, 197, 200, 218, 220, 224, 242, 262, 264,
285, 291, 296, 315, 338, 343, 390, 411, 440, 441, 444, 451, 452, 459, 460,
461, 462, 463, 464
Precariedade 37, 38, 39, 40, 50, 53, 55, 57, 58, 59, 61, 66, 88, 89, 90, 91,
111, 117, 123, 124, 125, 130, 131, 142, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155,
157, 158, 161, 162, 163, 164, 167, 169, 170, 173, 174, 181, 200, 217, 260,
318, 327, 371, 376, 385
Precarização 3, 35, 37, 38, 39, 41, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 50, 52, 53, 54, 55,
56, 57, 58, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 73, 76, 78, 79, 85, 86, 87,
89, 90, 91, 92, 102, 111, 116, 119, 127, 128, 130, 133, 149, 153, 155, 156,
160, 167, 168, 169, 171, 172, 173, 209, 224, 229, 237, 239, 245, 246, 252,
253, 255, 323, 329, 338, 341, 344, 345, 348, 357, 358, 359, 360, 361, 362,
364, 365, 367, 368, 369, 373, 374, 375, 376, 377, 378, 379, 381, 384, 385,
388, 392, 395, 396, 398, 399, 403, 406, 409, 410, 415, 421, 427, 428, 431,
432, 434, 435, 436, 437, 438, 439, 441, 444, 445, 450, 460
Privilégio da servidão 63, 105, 120, 144, 237, 242, 329, 338, 387
Processo de trabalho 96, 102, 110, 203, 270, 271, 282, 319, 320, 376, 391,
392, 393, 399, 400, 401, 402, 403, 406, 407, 428, 435
Produção capitalista 58, 67, 70, 92, 146, 149, 158, 196, 201, 205, 206, 207,
219, 224, 225, 232, 263, 267, 277, 278, 280, 281, 282, 283, 317, 320, 324,
329, 345, 369, 378
Proletariado 51, 54, 57, 58, 59, 60, 63, 77, 83, 105, 120, 144, 185, 202, 242,
338, 387
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 457

R
Rede federal 432, 434, 435, 436, 442, 448
Região portuária 245, 246, 247, 248, 249, 250, 251, 252, 253, 255, 257, 258,
259, 264
Reprodução ampliada 68, 86, 129, 149, 157, 165, 167, 201, 202, 205, 207,
249, 277, 300
Reprodução social 68, 70, 74, 75, 78, 90, 99, 103, 106, 109, 123, 124, 128,
129, 130, 131, 132, 133, 135, 136, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 151, 156,
157, 160, 171, 238, 265, 269, 272, 284, 300, 317, 324, 326, 459
Rio de Janeiro 64, 65, 66, 82, 83, 108, 120, 122, 144, 145, 146, 172, 173,
177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 186, 187, 188, 189, 190, 192, 193, 194,
195, 196, 197, 218, 219, 220, 221, 224, 242, 243, 245, 246, 247, 248, 249,
250, 252, 253, 254, 256, 257, 259, 262, 263, 264, 273, 276, 286, 314, 315,
Editora CRV - Proibida a comercialização

338, 339, 361, 362, 363, 364, 365, 381, 388, 389, 390, 410, 450, 451, 459,
460, 461, 462, 463, 464
Risco pessoal 290, 314, 315
Risco pessoal e social 290, 314, 315

S
São Paulo 63, 64, 65, 66, 82, 83, 105, 106, 107, 108, 120, 121, 122, 144,
145, 146, 147, 148, 171, 172, 173, 174, 195, 196, 197, 218, 219, 220, 221,
242, 243, 262, 263, 273, 285, 286, 287, 289, 290, 296, 301, 314, 315, 338,
339, 361, 362, 363, 364, 387, 388, 389, 390, 409, 410, 424, 433, 447, 450,
451, 452, 460
Saúde-doença 365, 376, 377, 378, 379, 380, 385, 390
Serviço social 89, 95, 99, 105, 106, 107, 108, 120, 171, 173, 195, 200, 224,
242, 246, 262, 291, 315, 338, 339, 343, 364, 387, 390, 391, 392, 396, 399,
400, 401, 402, 403, 406, 407, 409, 410, 450, 451, 459, 460, 461, 462, 463, 464
Situação de rua 261, 289, 290, 291, 292, 293, 299, 300, 302, 304, 305, 306,
308, 311, 312, 313, 315, 461, 463
Superexploração 79, 90, 92, 116, 123, 125, 182, 194, 242, 294, 351, 359,
372, 373, 375, 377, 378, 385, 390, 415, 420, 431

T
Taxa de lucro 72, 161, 165, 203, 205, 229, 395
Taylorismo 40, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 116, 121, 324
Tempo de trabalho 86, 98, 102, 103, 106, 119, 129, 158, 159, 160, 171, 204,
323, 373, 395, 402, 414
Trabalho coletivo 102, 293, 391, 392, 399, 400, 401, 402, 406, 407, 435, 436
Trabalho digital 106, 107, 108, 110, 115, 118, 119, 120, 122, 387
Trabalho docente 425, 428, 431, 432, 434, 436, 437, 438, 439, 440, 441,
444, 445, 446, 450, 451

V
Vale do Rio Doce 200, 210, 212, 223, 225, 226, 243

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SOBRE OS(AS) AUTORES(AS)

Amanda da Silva Belo


Assistente Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Graduada
em Servi Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre
e Doutora em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social da UERJ.
Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Serviço Social na área de
Educação (GEPESSE). Email: amandasilvabelo@yahoo.com.br

Ana Maria Almeida da Costa


Professora Associada da Universidade Federal Fluminense-UFF/Departamento
de Serviço Social de Campos. Doutora em Serviço Social pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro -UERJ/PPGSS. Mestre em Educação pela Uni-
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versidade Federal Fluminense - UFF. Integrante do Núcleo de Pesquisa em


Dinâmica Capitalista e Ação Política – NETRAD e do Grupo de Estudos,
Pesquisa e Extensão em Geografia Agrária (GeoAgraria). costa_ana@id.uff.br

Ana Inês Simões Cardoso de Melo


Assistente social, doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) e pós-
-doutorado no ISMT-Coimbra/PT. Professora associada aposentada de Graduação
e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGSS/FSS/UERJ). Inte-
grante do Programa de Estudos do Trabalho e Reprodução Social (PETRES) e
do Laboratório de Imagem (Li) da FSS/UERJ. Email: iness@infolink.com.br

André Menezes
Professor do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG). Mestre em Planejamento e Políticas Públicas (Universi-
dade Estadual do Ceará - UECE). Atualmente, cursa Doutorado no Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PPGSS-UERJ). Email: andre.menezes@professor.ufcg.edu.br

Carlos Felipe Nunes Moreira


Assistente Social. Mestre e Doutor em Serviço Social pela UERJ. Professor
Adjunto da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Membro do Grupo de
Estudo e Pesquisa sobre Serviço Social na área de Educação (GEPESSE).
Coordenador no Núcleo de Sistematização de Experiências no Campo das
460

Políticas Públicas da Faculdade de Serviço Social da UERJ (NSEPP-UERJ).


felipe_pito@yahoo.com.br

Deise Mancebo
Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Programa de Pós-graduação em Polí-
ticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ). Doutora em História da
Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), com
pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Cientista do Nosso
Estado da FAPERJ. Bolsista de produtividade do CNPq, nível 1. Membro da
coordenação colegiada da Rede Universitas/Br e da Rede ASTE. E-mail: deise.
mancebo@gmail.com

Fábio Fraga dos Santos

Editora CRV - Proibida a comercialização


Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (2002),
mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (2005) e douto-
rado em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2021).
Atualmente é professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha
e Mucuri. Email: fabiofraga@hotmail.com

Graça Druck
Professora titular do Programa de Pós-graduação em C. Sociais da Faculdade
de Filosofia e C. Humanas e do Programa de Serviço Social da Universidade
Federal da Bahia. Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Huma-
nidades/CRH/UFBa. Bolsista Produtividade do CNPq. Membro da Rede de
Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista – REMIR.
Estudiosa da precarização do trabalho, terceirização, servidores públicos,
reformas administrativas e neoliberalismo. Email: druckg@gmail.com

Gênesis de Oliveira Pereira


Assistente Social, mestre em Serviço pelo Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor
em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto
na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Orçamento de Pessoal,
precarização e Serviço Social – GEPOPPSS da UFRJ. Email: genesis.
oliveira@gmail.com
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 461

Inês Stampa
Assistente Social. Professora associada do Departamento e do Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio). Pós-doutora em Sociologia e Antropologia (UFRJ).
Doutora em Serviço Social (PUC-Rio). Bolsista de Produtividade em Pes-
quisa do CNPq – PQ 1B. Líder do Grupo de Pesquisa Trabalho, Políticas
Públicas e Serviço Social (TRAPPUS) registrado no DGP/CNPq. Email:
inezstampa@gmail.com

Juliana Menezes
Assistente Social, mestre em Serviço Social pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); doutora em Serviço Social pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); professora Adjunta da Faculdade
de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); assistente
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social em exercício no Pronto Socorro Municipal de Rio das Ostras/RJ. Email:


juliana_mmendez@hotmail.com

Lana Carrijo
Assistente social formada pela FSS-UERJ. Mestre em Serviço Social pelo
PPGSSDR-UFF. Doutoranda em Serviço Social pelo PPGSS-UFRJ, desen-
volve pesquisa de tese sobre a crise contemporânea do capital, com ênfase
no capital fictício e na crítica do trabalho. E-mail: lana.carrijo@gmail.com

Luci Praun
Professora da Universidade Federal do Acre (Ufac) e do Programa de Pós-
-Graduação em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC
(Ufabc). Autora do livro Reestruturação Produtiva, Saúde e Degradação do
Trabalho (Papel Social, 2016). Email: lupraun@uol.com.br

Maria Fernanda Escurra


Assistente Social (UNR/Argentina), Mestre (UFRJ) e Doutora (UERJ) em
Serviço Social (2015). Profa. Adjunta da FSS/UERJ desde 2016, membro do
CEOI, atualmente coordena Projeto Prodocência sobre população em situa-
ção de rua. Área de pesquisa: relações sociais, trabalho e pobreza. Email:
mfescurra@gmail.com

Maria Gorete da Gama


Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ)
462

Articuladora do Instituto Rede Jubileu Sul Brasil no Rio de Janeiro/Ação


Mulheres por Reparação das Dívidas Sociais. Assistente Social no Colégio
Estadual Reverendo Hugh Clarence Tucker/Projeto Escola Criativa e de Opor-
tunidade/SEEDUC/UERJ. Área de Pesquisa: Moradia, Políticas Sociais e
Território. Email: ggama.slv2005@gmail.com

Mariela Becher
Professora Adjunta da FSS/UERJ. Atualmente realiza Pós-Doutorado na Uni-
versidade de Bonn, Alemanha. Desenvolve pesquisa na área de crise do capital,
implosão do sujeito moderno, revoltas sociais, com ênfase na Formação Social
Latinoamericana. E-mail: marielabecher@gmail.com

Mônica de Jesus César


Graduada em Serviço Social e especialista em Políticas Sociais pela UERJ,

Editora CRV - Proibida a comercialização


mestre e doutora em Serviço Social (ESS/UFRJ). Professora Associada da
Faculdade de Serviço Social da UERJ. Tem experiência profissional em
empresas privadas, de economia mista e órgãos públicos, com destaque para
a sua inserção na área do trabalho, saúde do trabalhador e previdência social.
Atualmente é membro do comitê editorial da Revista Em Pauta da FSS/UERJ.
Email: mojcesar@gmail.com

Ney Luiz Teixeira de Almeida


Professor Associado da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Mestre e Dou-
tor em Educação pela UFF. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e
Formação Humana, ambos da UERJ. Vice-líder do Grupo de Estudo e Pes-
quisa sobre Serviço Social na área de Educação (GEPESSE). Coordenador do
Núcleo de Sistematização de Experiências no Campo das Políticas Públicas
da FSS/UERJ (NSEPP-UERJ). E-mail: neylta@hotmail.com

Paula Cristina Nunes de Sá


Graduada em Serviço Social, especialista em Serviço Social e Saúde e mes-
tre em Serviço Social (FSS/UERJ), Assistente social do Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS), com experiência profissional em Serviço Social,
Reabilitação Profissional, Saúde do Trabalhador, Avaliação da Pessoa com
Deficiência (Modelo de Classificação Internacional de Funcionalidade - CIF)
e atuando, principalmente, junto aos seguintes temas: trabalho, saúde do tra-
balhador, política social e previdência social. Email: pacrissa@yahoo.com.br
LABIRINTOS DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E DAS CONDIÇÕES DE VIDA 463

Paulo Roberto Raposo Alentejano


Professor Associado do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Gra-
duação em Geografia da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Pro-
fessor do PPGG em Desenvolvimento Territorial da América Latina e Caribe da
Universidade Estadual Paulista em parceria com a Escola Nacional Florestan
Fernandes. Geógrafo. Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
pelo CPDA/UFRRJ.Coordenador do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão
em Geografia Agrária (GeoAgraria). Email: paulinhochinelo@gmail.com

Pedro Catanzaro da Rocha Leão


Geógrafo pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CNPq no Labora-
tório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO-UFF).
Email: pedroleao0498@gmail.com
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Raquel Raichelis
Assistente Social; Doutora em Serviço Social pela PUC-SP; Pós-doutorado na
Universidade Autônoma de Barcelona; Coordenadora do Núcleo de Estudos
e Pesquisa Trabalho e Profissão cadastrado no diretório do CNPQ. Pesquisa-
dora do CNPq (1D). Professora e atual Coordenadora (2021-2023) do PPG
em Serviço Social da PUC-SP. Email: raichelis@uol.com.br

Régia Prado
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Assistente social do Cen-
tro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro
Pop) de Maracanaú, Ceará (CE), e do Hospital Instituto Doutor José Frota
(IJF), em Fortaleza (CE). E-mail: regiaprado@gmail.com

Ricardo Antunes
Professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH-UNICAMP. Publicou
recentemente Capitalismo Pandêmico (Boitempo, 2022), editado também
na Itália e Áustria e organizou Icebergs à deriva (no prelo, Boitempo, 2023).
Coordena a Coleção Mundo do Trabalho (Boitempo). Email: : rlcantu-
nes53@gmail.com

Roberto Coelho do Carmo


Assistente Social, Doutor em Serviço Social (UERJ) e Pós-doutorando em
Serviço Social (UNIFESP), Docente do Departamento de Serviço Social da
Universidade Federal de Ouro Preto (DESSO/UFOP). Coordenador do Grupo
464

de Estudo e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Serviço Social. E-mail: roberto.


carmo@ufop.edu.br

Rosangela Nair de Carvalho Barbosa


Assistente Social. Professora associada do Departamento de Política Social
e do Programa de Estudos de Trabalho e Política da Faculdade de Serviço
Social da UERJ. Integrante do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da UERJ. Pós-doutora em Sociologia na UFRJ. Pesquisa e publica na área do
trabalho e da teoria marxista. Bolsista produtividade CNPq 2. Email: rosan-
gelancb@uol.com.br

Tatiane Valéria Cardoso dos Santos


Assistente Social da Prefeitura de Nova Iguaçu/RJ. Perita Judicial do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro. Professora agregada do Departamento de Ser-

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viço Social da Pontifícia Universidade católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Doutora em Serviço Social (PUC-Rio). Mestre em Serviço Social (UERJ).
Especialista em Serviço Social em Oncologia (INCA). Pesquisadora associada
do Grupo de Pesquisa Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social (TRA-
PPUS) registrado no DGP/CNPq. Email: tcardoso@puc-rio.br

Thiago Canettieri
Professor do departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG.
Doutor em Geografia pela UFMG. Pesquisador do Cosmópolis (UFMG/CNPq)
e Observatório das metrópoles (RMBH/CNPq). Autor do livro A Condição
Periférica” (Editora Consequência). Email: thiago.canettieri@gmail.com

Valeria Forti
Assistente Social, tendo atuado na SMDS-RJ por duas décadas;
doutora em Serviço Social pela UFRJ; professora de Graduação e do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social
(FSS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGSS/FSS/Uerj); coor-
denadora de projetos de pesquisa e extensão vinculados ao tema “ética, trabalho
e Serviço Social”. Email: vforti17@gmail.com
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Labirintos da
Ney Luiz Teixeira de Almeida
Professor Associado da Faculdade
precarização do trabalho
de Serviço Social da UERJ. Mestre
e Doutor em Educação pela UFF. e das condições de vida
Professor do Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social e do
Programa de Pós-Graduação em A coletânea “Labirintos da Precarização do Trabalho e das
Políticas Públicas e Formação Hu+ Condições de Vida” gira em torno do trabalho e das condições
mana, ambos da UERJ. Vice- líder de vida dos trabalhadores no capitalismo, tomando a precari-
do Grupo de Estudo e Pesquisa zação como dimensão estrutural, que se expressa em

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sobre Serviço Social na área de manifestações diferenciadas de reprodução ampliada do
Educação (GEPESSE). capital, ao longo do tempo e nos espaços sociais. Ela reúne
reflexões teóricas e analíticas sobre as diferentes expressões
Rosangela Nair de Carvalho da precarização das formas de vida e de trabalho da classe
Barbosa trabalhadora na realidade brasileira. Também, dá destaque a
Assistente Social. Professora gestão da superpopulação relativa, considerando aí políticas
associada do Departamento de públicas, trabalhos profissionais, violência do Estado, entre
Política Social e do Programa de outras variantes. Aborda a interface do tema da precarização
Estudos de Trabalho e Política da com os fundamentos da sociabilidade capitalista e/ou com
Faculdade de Serviço Social da o debate da crise do capital, da neoliberalização do Estado e
UERJ. Integrante do Programa de da financeirização, nestas duas décadas do Século XXI.
Pós-Graduação em Serviço Social
da UERJ. Pós-doutorado em
Sociologia na UFRJ. Pesquisa e
publica na área do trabalho e da
teoria marxista. Bolsista produtivi+
dade CNPq 2.

SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm ISBN 978-65-251-5286-8
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)

9 786525 152868

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