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TOMÁS DE AQUINO E A QUESTÃO DA SIMILITUDE POR

REPRESENTAÇÃO

Antonio Janunzi Neto

Resumo
O problema da representação mental pode ser considerado como uma questão central na
história da filosofia. É claro que comumente atribui-se ao período moderno a primazia do
seu tratamento com a instauração do sujeito de conhecimento como ponto de partida da
reflexão filosófica e do método científico. Entretanto, destaca-se que a questão da
representação já era amplamente debatida nos séculos XIII e XIV e, em certo sentido, a
teoria da species de Tomás de Aquino introduziu o problema da representação dentro
aristotelismo medieval, principalmente para tratar das questões cognitivas herdadas dos
textos do Estagirita. É neste ponto que se encontra o profícuo debate medievo sobre a
função representativa da species e suas questões céticas sobre a objetividade do
conhecimento.
Palavras-chave: Tomás de Aquino. Species. Similitude. Representação.

1. Status Quaestionis

Os problemas filosóficos sobre a cognição humana no período medieval, sobretudo


até o século XIII, eram lidos e considerados geralmente a partir de uma premissa realista
sobre a relação entre conteúdos mentais e suas referências ancoradas na realidade. Se em
certo sentido as questões céticas sobre a objetividade da cognição não eram supostas como
objeto da análise filosófica, por outro lado, havia uma forte pressuposição de um
ordenamento ontológico em relação à natureza das faculdades de conhecimento na sua
referência aos seus objetos reais. O próprio ponto de partida de Tomás de Aquino1 (1225-
1274), ao explicar o conhecimento humano sobre os objetos no mundo, admite que as
potências cognitivas assimilam de algum modo a coisa extra anima.
O intelecto conhece a própria natureza e substância da coisa; [...] a species
inteligível é uma semelhança da própria essência da coisa e de algum modo
a própria quididade e natureza da coisa de acordo com o seu ser inteligível
[...] e, portanto [...], é conhecida em virtude da essência ou quididade de
alguma forma no intelecto (Quolibet. VIII, 2,2)

Se em Quolibet VIII, e ao longo de todo Corpus Thomisticum, o realismo cognitivo


é um claro princípio assumido por Tomás de Aquino e, no que lhe concerne, a questão

1
Para facilitar ao leitor as referências aos textos de Tomás de Aquino e de outros autores medievais,
seguem-se as abreviações das obras que serão citadas ao longo do texto, conforme o uso consagrado pela
tradição de comentadores.
cética sobre a possibilidade do conhecimento humano não é um problema epistemológico
considerado pelo autor, ainda assim, encontra-se ampla discussão já no contexto medieval
e também nos intérpretes contemporâneos sobre a modalidade ou versão do realismo que
mais se adequa à ontologia do conhecimento proposta pelo Doutor Angélico.
Além disso, o próprio Tomás de Aquino dá indícios textuais para, ao menos, duas
possibilidades interpretativas sobre sua teoria da cognição. Se por um lado é possível
encontrá-lo afirmando que o conhecimento é uma certa relação de identidade entre
cognoscente e cognoscido “o intelecto em ato e o inteligível em ato são a mesma coisa da
mesma maneira que os sentidos em ato e os sensíveis em ato” (Cont. Gent. II, 59), por
outro, também se pode perceber que seus escritos dão margem para uma relação cognitiva
baseada no conceito de representação “[...] a semelhança por representação [...] é a
necessária entre conhecedor e coisa conhecida” (De Verit. q. 2, a.3).
Assim, em uma primeira leitura e tomando como regra os casos textuais
semelhantes a Cont. Gent. II, 59, é possível compreender a cognição humana como uma
relação diádica, isto é, os relacionados no ato de cognição são exclusivamente dois itens, o
cognoscente e o cognoscido em um processo de identidade. Entretanto, se se toma De Verit.
q.2, a.3, a relação cognitiva é triádica, ou seja, para que se estabeleça a relação entre sujeito
do conhecimento e o objeto extra mental de cognição é necessário admitir um elemento
representativo intermediário (HOFFMAN, 2002).
No âmbito da sensibilidade, as faculdades de conhecimento possuem cognição das coisas
materiais2 enquanto estas, por certo tipo de afecção, impactam (ST. I q.78, a.3) materialmente os

2
Um breve resumo do processo da assimilação de formas que ocorre na cognição sensorial pode ser
apresentado do seguinte modo: duas são as etapas da cognição sensorial, externa e interna (sentidos externos
e internos). Depois que os órgãos sensoriais são afetados pela materialidade das coisas individuais, há a
recepção, por parte da potência formal anímica de cada sentido, das formas – assim, as referidas formas são
ditas ‘assimiladas’. Desse modo, pode-se dizer que em cada sentido externo (tato, olfato, audição paladar,
visão), por ser uma composição de órgão material e potência anímica correspondente, há uma alteração
material (immutatio) por parte do órgão e a assimilação de uma forma por parte da potência sensitiva.
Depois da atualização dos sentidos externos, há a atividade dos sentidos internos (sentido comum,
cogitativa, imaginação e memória). Por seu turno, cada sentido interno possui uma operação específica pela
forma assimilada recebida dos sentidos internos. Assim, o sentido comum seria responsável pela
organização das múltiplas formas assimiladas pelos sentidos externos, pois deve-se supor um sentido que
organize sinteticamente o múltiplo recebido dos sentidos externos em uma forma unitária como condição
para que a imaginação opere a produção de uma forma imagética unitária. Posteriormente, a imaginação
produziria uma imagem sensível das coisas percebidas pelos sentidos externos. Assim, a imagem produzida
pela imaginação seria propriamente uma species sensível das coisas sensíveis, uma vez que ela é uma
similitude destas. Todas as referidas imagens produzidas pela imaginação são depositadas na memória
como seu receptáculo sensorial. Por fim, a cogitativa apreenderia as intentiones das formas assimiladas
pelos sentidos externos, sintetizadas pelo sentido comum e reproduzidas por similitude pela imaginação.
Ao que parece, apreender as intentiones significaria ‘julgar’ o apreendido pelos sentidos segundo a sua
utilidade para o sujeito cognitivo. Uma aproximação mais específica da teoria do conhecimento sensível
em Tomás de Aquino pode ser encontrada em ST. I q.78, a. 3-4. Para uma adequada compreensão da teoria
tomista da sensação, citam-se os seguintes autores: BURNYEAT, 2001; COHEN,1982; HALDANE,1983.
órgãos sensoriais constitutivos das próprias faculdades, causando assim, o primeiro estágio do
processo de atualização cognitiva sensorial que, posteriormente, resultará na presença intencional
da coisa sensível nos sentidos3. A relação entre potência cognoscitiva sensorial e coisa material
sensível é dita de modo direta4, pois o objeto de cognição dos sentidos são as propriedades
sensíveis inerentes à coisa material, isto é, por mais que a cognição sensorial seja constituída por
receptividade material e assimilação intencional, o que os sentidos conhecem é diretamente a
coisa sensível e material. Em outros termos, a relação é dita direta pelo fato de que o que é
conhecido, a saber, a coisa em suas propriedades sensíveis, já é um sensível – e, portanto, objeto
direto dos sentidos – em ato e não se precisando, por isso, de qualquer processo de atualização
cognitiva, como ocorre no âmbito da intelecção, já que nesta instância o universal enquanto objeto
inteligível só existe atualizado no próprio intelecto e não nas coisas materiais e individualizadas.5

A partir desta sintética descrição do processo de conhecimento dos sentidos, evidencia-


se que a relação entre as faculdades de cognição sensorial (sentidos externos e internos) e a coisa
sensível material é entendida por Tomás de Aquino como uma relação direta de conhecimento, já
que as próprias qualidades sensíveis dos objetos extra anima são a causa direta da operação dos
sentidos. Neste caso, se não há a necessidade de se admitir nenhum elemento cognitivo
intermediário, o Aquinate afirma categoricamente que “o sentido em ato identifica-se com o
sensível em ato” (Cont. Gent. II, 59).

Em paralelo a esta identificação entre coisa sensível e sentidos no ato de cognição, o


Doutor Angélico afirma que semelhante identificação cognitiva ocorreria também no âmbito da
intelecção “o intelecto em ato e o inteligível em ato são a mesma coisa” (Cont. Gent. II, 59).
Entretanto, destaca-se que há significativa diferença entre os objetos de conhecimento dos
sentidos e do intelecto, pois, por parte da faculdade sensível, seu objeto direto de cognição são as

3
Tomás de Aquino utiliza o conceito de intencionalidade para explicar a tese aristotélica segundo a qual o
conhecimento é um certo tipo de assimilação da forma (De Verit. q.1, a.1). Por sua vez, a assimilação que
ocorre no conhecimento sensível é entendida como um processo de dupla alteração dos sentidos: “Há duas
espécies de modificação: uma é natural, outra é espiritual. A modificação natural acontece quando a forma
do que causa a mudança é recebida no que é mudado segundo o seu ser natural. Por exemplo, o calor no
que é esquentado. Uma modificação espiritual (intencional) quando a forma é recebida segundo o seu ser
espiritual (intencional). Por exemplo: a forma da cor na pupila, que nem por isso se torna colorida” (ST I,
q.78, a.3) Kenny sintetiza de modo preciso a compreensão tomásica sobre a intencionalidade na cognição:
“Podemos resumir a doutrina de Tomás de Aquino sobre a intencionalidade do seguinte modo. Tanto a
percepção sensorial e a aquisição de informação intelectual a recepção de forma é feita de uma maneira,
mais ou menos imaterial, por um ser humano. Em ambos, na percepção e no pensamento, existe uma forma
intencional. Quando vejo a vermelhidão do sol poente, a vermelhidão existe intencionalmente na minha
visão, quando penso na redondeza da terra, a circularidade existe no meu intelecto. Em cada caso a forma
existe se a matéria a que se juntou na realidade: o próprio sol não entra no meu olho, nem a terra, com toda
a sua massa, passa para o meu intelecto.” (KENNY, 2002, p.253).
4
“[...] O singular é conhecido por nós diretamente mediante as faculdades sensitivas, que recebem as formas
das coisas em um órgão corpóreo, e desse modo as recebe sob determinadas dimensões [...].” (De Verit.
q.10, a.5).
5
É tese tomista a afirmação de que o universal só existe no intelecto por processo de abstração: “[...] os
universais [...] existem somente na alma.” (Sent. De Anima, III, lectio 12, n.8)
qualidades sensíveis em ato e inerentes à coisa material. O mesmo não ocorreria na intelecção,
pois o objeto direto de sua cognição é o inteligível em ato que só pode ter existência atual graças
ao processo de abstração realizado pelo intelecto agente na produção dos universais mentais.
Assim, resta considerar em que medida o inteligível é objeto para o intelecto e qual sua relação
com as coisas extra anima, pois, para Tomás, por mais que o inteligível em ato seja um derivado
operativo do intelecto, o objeto próprio da intelecção humana é a “quididade das coisas
materiais6” (ST I, q.85, a.8).

A questão, portanto, que será analisada neste artigo encontra-se no contexto da intelecção
humana e especificamente no que se refere à função própria da species7 na intelecção da coisa
material, visto que o âmbito da intelecção a sua função no processo de conhecimento intelectual
gera, em Tomás de Aquino e em autores posteriores tanto no período medieval (sécs. XIII e XIV)
quanto atualmente, múltiplas questões e algumas possíveis interpretações. O próprio Corpus
Thomisticum em seus textos de cunho gnosiológico parece dar suporte ao menos a duas linhas
interpretativas sobre o papel da species, a saber, o Realismo Direto8 e o Representacionalismo9.

Se se levar a já citada afirmação de Tomás sobre a identificação no ato entre


intelecto e inteligível, o realista direto reforçará a não necessidade de qualquer mediação
cognitiva entre operação abstrativa do intelecto na produção do inteligível e a quididade
das coisas materiais, objeto próprio da intelecção. O representacionalista entenderá que o
intelecto, para conhecer seu objeto, precisará operativamente de intermediários
representativos – a species inteligível e o conceito.

6
“O objeto de nosso intelecto, na vida presente, é a quididade da coisa material que é abstraída dos
fantasmas [...].” (ST. q.85, a.8).
7
Raul Landim Filho sintetiza claramente a noção de species em Tomás de Aquino: “A expressão ‘species’,
que é a tradução latina da palavra ‘eidos’, significa na teoria tomista do conhecimento ou bem a forma, e
neste caso ela não envolve a noção de matéria – individual ou comum –, ou bem a forma sensível ou
inteligível (verbo interior (mental), conceito) e neste caso ela não envolve a noção de matéria enquanto
princípio de individuação, mas pode envolver a noção de matéria comum.” (LANDIM FILHO, 2010, p.
67-68).
8
Interpretação que propõe a não mediação representativa entre o conteúdo intencional e a coisa real: é uma
mesma forma que existe intencionalmente de modo universal no intelecto e singularmente na coisa material.
Kretzmann, um dos intérpretes desta perspectiva, ao explicar a teoria da cognição em Tomás, afirma a
relação entre cognoscente e cognoscido é sempre direta e sem mediação: “a garantia de acesso é totalmente
direta, ao ponto da identidade fora entre objeto extra mental e a faculdade de conhecimento ao conhecer o
objeto.” (KRETZMANN, 1993, -138).
9
Diferentemente do Realismo Direto, esta interpretação visa justifica a plausibilidade da mediação
representativa do conceito do intelecto em relação à intelecção da coisa. Neste sentido, Panaccio propõe o
seguinte: “Por representacionalismo, eu vou significa [...] qualquer teoria da cognição que atribui um papel
crucial e indispensável para algum tipo de representação mental.” (PANACCIO, p. 5). Por sua vez, Pasnau
descreve da seguinte forma uma leitura representacionalista da função da species em Tomás de Aquino:
“não há diferença conceitual radical entre o papel das primeiras ideias modernas do papel das species de
Aquino. Ele parte do pressuposto, característico da filosofia do século XVII, que os objetos imediatos e
diretos de apreensão cognitiva são as nossas impressões internas. Sua posição sobre esta questão é sutil e
interessante. Mas não é radicalmente distinta da teoria moderna” (PASNAU, 1997, p.293).
Como dito, já nos próprios séculos XIII e XIV encontram-se autores que criticaram
a teoria da cognição de Tomás de Aquino por aparentemente sustentar que a species
inteligível é um intermediário mental necessário para a cognição intelectiva das coisas extra
anima. E aqui se identifica o início de uma significativa querela medieval – e retomada no
debate contemporâneo no século XX – sobre a teoria da cognição em Tomás de Aquino.
Neste sentido, apontam-se duas grandes vertentes interpretativas para a descrita questão: o
Realismo Direto e o Representacionalismo.

2. A hipótese interpretativa do Realismo Direto

Tomás de Aquino incorpora o aristotelismo cognitivo na afirmação de que o


conhecimento é um certo tipo de assimilação “[...] pois todo conhecimento realiza-se pela
assimilação do cognoscente à coisa conhecida, de modo que a assimilação diz-se causa do
conhecimento.” (De Verit. q.1, a.1), o Realismo Direto interpreta a teoria da cognição de
Tomás partindo da tese em que um cognoscido é assimilado por um cognoscente se a forma
do primeiro passar a existir, por assimilação intencional, no segundo.
Compreender o ato de cognição como um processo de assimilação da forma é uma
proposição ortodoxa no contexto epistemológico do aristotelismo em Tomás de Aquino.
Entretanto, a ênfase dada pelo Realismo Direto nessa relação formal é o que se pode
destacar como uma chave hermenêutica distintiva, sobretudo na chamada tese da identidade
formal “a garantia de acesso é direta, ao ponto da identidade formal entre objeto extra
mental e a faculdade de conhecimento ao conhecer o objeto” (KRETZMANN, 1994,
p.138). N. Kretzmann sustenta que a conexão entre cognoscente e cognoscido na teoria do
Aquinate só pode ser adequadamente compreendia à luz da relação diádica sem a mediação
de nenhum objeto intermediário cognitivo10. Pois, “o que está imediatamente presente al
intelecto quando apreender uma species [...] é a forma de uma coisa – a forma mesma que
também é presente na coisa material” (KRETZMANN, 1994, p.145).
Assim, para o Realismo Direto, se se encontrar Tomás de Aquino afirmando uma
identidade no ato de cognição, por exemplo, “o inteligido em ato é o intelecto em ato” (ST.
I q.85, a.2, ad.1) ou “o inteligido em ato implica a coisa e o ato mesmo de conhecer (ST. I
q.85, a.2, ad.2), deve-se considerar tais ocorrências como casos nos quais o autor entende a

10
Essa não mediação entre cognoscente e cognoscido no ato de cognição parecer ser um princípio
interpretativo constante na literatura realista direta. D. Perle, por exemplo, afirma algo semelhante “realistas
diretos afirma que estados intencionais são dirigidos em relação às coisas do mundo extra mental”
(PERLER, 2000, p. 111).
relação entre cognoscente e cognoscido a partir do princípio da identidade formal,
garantindo assim, o acesso direto e não mediado às coisas no mundo.
Talvez o principal ponto que identifica o Realismo Direto como uma interpretação
distinta das outras seja a necessidade de se admitir uma ‘forma comum’ para o
funcionamento da tese sobre a ‘identidade formal’. D. Perler admite que as formas devem
ser universais, pois somente deste modo poder-se-ia afirmar que há uma ‘identidade
formal’ na relação de similitude entre a forma da coisa presente na intelecção e a própria
forma nas coisas materiais, elemento especificativo de suas essências. Segundo esta
perspectiva, a forma deveria ser, por si, um elemento comum ou universal: instanciada
tanto em indivíduos numericamente distintos de uma mesma espécie como também no
intelecto, como species inteligível ou como conteúdo exibido pelo conceito. Assim, D.
Perler afirma:

As formas são universais e podem ser instanciadas em muitas coisas,


dentro e fora do intelecto. Se não houvesse tal universalidade, duas coisas
numericamente distintas, mas especificamente idênticas não poderiam ter
a mesma forma, e o intelecto não poderia assimilar a mesma forma que
também está presente em coisas materiais (PERLER, 2000, 116).

Ao que parece, a forma como um universal11 é condição de possibilidade para que


a tese da ‘identidade formal’ sobre o compartilhamento de formas entre cognição e
essência da coisa material funcione. Isso porque, se a forma não fosse per se um universal,
isto é, apta a estar em muitas coisas, materiais e imateriais, a mesma forma não poderia
ocorrer em múltiplas instâncias, o que inviabilizaria o processo de conhecimento segundo
o Realismo Direto. A partir daí resta ressaltar que nesta versão do realismo a forma deve
necessariamente ser um universal para que o processo de assimilação cognoscitiva seja
uma operação de aquisição da ‘mesma’ forma que ocorre numericamente distinta nas
coisas materiais no âmbito do objeto de conhecimento, obedecendo-se assim às seguintes
regras do Realismo Direto: a) cognição direta: não é necessário conhecer uma forma
prévia como condição de acesso à forma instanciada na coisa material e b) aspecto

11
Apenas contextualizando, a ‘forma comum’ ou universal não é uma tese estranha aos intérpretes da
gnosiológica do Aquinate. Assim, por exemplo, R.W Clark afirma: “Por que, portanto, não são as formas
nas coisas universais? Tomás frequentemente diz que formas são ‘comuns’ a coisas ou a ‘mesma’ nas
cosias, e assim por diante.” (CLARK. R. W. Saint Thomas Aquinas's Theory of Universals. The Monist,
n.58, p.168). Na mesma linha, autores como R. Pannier e T.D. Sullivan consideram que Tomás de Aquino
sustentam metafisicamente a forma como um universal existindo nas coisas (Cf. PANNIER, R.;
SULLIVAN, T. D. Aquinas's Solution to the Problem of Universals in De ente et essentia”. American
Catholic Philosophical Quarterly. Supplement, n. 68, p.159.)
veritativo do processo de assimilação: a forma conhecida pelo intelecto é adequada à
forma da coisa conhecida, pois se trata da ‘mesma’ forma.

Na explicação da forma como um universal instanciável, D. Perler12 a considera


segundo a chamada ‘tese da dupla existência’, ou seja, uma e a mesma forma pode ter, ao
menos, dois modos de existência: material nas coisas individuais e imaterial no âmbito da
cognição intelectiva. Com isso, a referida ‘dupla existência’ explicaria a razão pela qual a
noção de similitude da gnosiologia tomista deveria ser entendida à luz da ‘identidade
formal’, dado que a forma assimilada é somente uma instância possível da forma que
também ocorre como instanciada na coisa material. Neste caso, há ‘identidade formal’ no
processo de assimilação cognoscitiva porque uma e mesma forma ocorre em duas instâncias
distintas: intelecto e coisa. Assim sendo, se a ‘identidade formal’ supõe a ‘dupla existência’
da forma, isto poderia evidenciar que a própria forma, per se, é um universal. Neste caso,
não seria necessário admitir que o intelecto operasse a universalidade da forma, do mesmo
modo como é feito o conceito pelo intelecto agente. Ou seja, a forma seria naturalmente um
universal, comum a múltiplas instâncias, sem a necessidade de se admitir uma operação
intelectiva com condição da universalização da forma, salvaguardando por isso, a
objetividade do conhecimento humano sobre os objetos no mundo.

3. A crítica do “véu das species13” e os problemas da representação mental: breve


síntese de autores medievais e seus argumentos críticos à teoria cognitiva de Tomás
de Aquino

A finalidade teórica do Realismo Direto é exatamente afastar da compreensão dos


textos de Tomás de Aquino a leitura Representacionalista de sua posição sobre a species14

12
No intuito de afastar a teoria tomásica do Representacionalismo e de sustentar sua versão realista direta,
D. Perler reconhece que é necessário admitir os seguintes elementos metafísicos para a justificação da tese
da ‘identidade formal’: “Aquino defende uma versão elaborada do realismo direto que se baseia em duas
teses fundamentais: a ‘tese da dupla existência’ (uma e a mesma forma pode ter existência material e
imaterial) e a ‘tese de duplo aspecto’ (uma espécie pode ser considerada como um mero meio cognitivo ou
como um conteúdo). É a sua utilização destas duas teses que lhe permite introduzir as espécies inteligíveis
sem se comprometer com o representacionalismo.” (PERLER, 2000, p. 114).
13
R. Pasnau (1997) dedica uma capítulo de sua obra Theories of cognition in the later Middle Ages para
tratar do conjunto de autores nos séculos XIII e XIV que criticara a teoria das species cognitiva de Tomás
de Aquino como contendo um forte traço de representacionalismo inferencialista, ou seja, se se toma a
species inteligível como aquilo que permite a cognição da intelecto sobre as coisas extra anima, ela
enquanto meio cognitivo pode não garantir, per se, a objetividade da cognição do intelecto sobre o mundo
material – o chamado “problema cético” da species como meio cognitivo (PASNAU, 1997).
14
“A expressão ‘species’, que é a tradução latina da palavra ‘eidos’, significa na teoria tomista do
conhecimento ou bem a forma” (LANDIM FILHO, 2010, pp. 67-68).
cognitiva, isto é, entendê-la como uma mediação cognitiva e instrumental entre sujeito
cognoscente e coisa cognoscida (relação triádica). Com isso, para o Realismo Direto,
enquanto a postura Representacionalista propõe uma mediação cognitiva, ela poderia ser
uma candidata favorita à crítica do “véu das species” elaborada sobretudo a partir dos
séculos XIII e XIV. Com isso, a teoria das species do Aquinate, ao considerá-la como meio
necessário para a cognição humana, poderia estar sujeita aos problemas céticos e solipsistas,
inviabilizando assim, a possibilidade do realismo cognitivo.
Já no século de Tomás de Aquino (XIII) encontra-se Henrique de Gand (1240-1293)
considerando alguns problemas céticos no âmbito da cognição humana. Para o autor, a
questão da justificação da cognição era ponto de partida na sua abordagem sobre a função
da species:
Quem não percebe a essência e a qualidade de uma coisa, mas apenas sua
imagem, não pode conhecer a coisa. [...] Um ser humano, no entanto, não
percebe nada de uma coisa, exceto apenas sua imagem, o seja, uma species
recebida através dos sentidos, que é uma imagem da coisa e não a coisa em
si. Porque não a pedra, mas uma species da pedra está na alma [...] (Summa,
q.7, a.11).

Como destacado por R. Pasnau (1997), em Henrique de Gand encontram-se as


primeiras versões do problema do conhecimento que, diferentemente de Tomás, não tomam
como ponto de partida o realismo cognitivo e a certeza quase indubitável que o ato de
conhecer é direcionado para os as coisas no mundo material a partir de uma forte premissa
ontológica de ordenamento harmonioso entre ser e conhecer. O autor da Summa
Quaestionum Ordinariarum, influenciado pela teoria agostiniana da iluminação, pergunta-
se se o homem pode conhecer algo e se a iluminação é condição desta cognição.
E como se viu citação acima, Henrique de Gand apresenta uma das primeiras
leituras representacionalistas sobre a função da species ao afirmar que se ela é imagem da
coisa, a cognição humana pode certamente, pelo fato de sua imanência nas faculdades,
alcançá-la, mas tal certeza não permanece quando se tratar do conhecimento sobre as coisas
mesmas no mundo extra anima pela mediação ofertada pela species. Aqui se percebe uma
mudança do paradigma aristotélico sobre a necessidade da forma conhecida estar no sujeito
que conhece enquanto condição da própria cognição. Assim, se para Tomás, seguindo a
máxima da presença intencional da forma cognoscida no sujeito cognoscente – “a pedra
não está na alma, mas a species da pedra”15 –, a species é condição do conhecimento na
exata medida de sua existência na faculdade, em Henrique de Gand verifica-se, de modo

15
ST. I q. 76, a.2, ad.4.
contrário, que pelo próprio fato dessa presença da forma cognoscida enquanto species é que
se pode postular as questões céticas sobre a possibilidade do conhecimento humano. É
partir de Gand que se poderá ser verificada o início das críticas à species como condição da
cognição humana. E se em Henrique a species ainda é mantida na explicação do ato de
conhecimento graças à ação iluminadora do intelecto divino sobre o humano – “não há
qualquer conhecimento por apreensão certa e indubitável sobre a verdade sem olharmos
para o exemplar da verdade e da luz incriada” (Summa, q.27, a.13) – em Guilherme de
Ockham encontrar-se-á o abandono completa da teoria da species como necessária à
explicação do conhecimento humano sobre os objetos no mundo.
Pedro de João Olivi (1248-1298) estabeleceu uma crítica em que a própria species,
por sua condição essencialmente representativa, talvez não seja o modo mais adequado de
explicação do processo cognitivo em um contexto aristotélico, já que a consequência lógica
e necessária da species é “velar a coisa e impedir seu conhecimento” (I Sent. q.58, ad.14).
Assim, Olivi propõe o seguinte:
Do fato de que a species é considerada na mente como informadora e como
fonte do ato cognitivo, segue-se que quando a mente direciona sua atenção
para a species, ela vai se dobrar de volta em si mesma e no seu interior ao
invés de estender-se ao objeto extrínseco. Como resultado, a mente será
desviada da atenção aos objetos e não levada cognitivamente a eles (II Sent.
q.74).

O autor parece ter uma leitura representacionalista da species ao considerá-la


necessariamente como um intermediário cognitivo e devendo ser um objeto de cognição
mediador entre a mente e as coisas reais. Neste sentido, o caráter referencial e em essência
representativo da species é intrínseco à sua função no processo de cognição, sendo por isso,
uma teoria cuja herança epistemológica é o isolamento do mundo externo. Ou nas palavras
de Olivi: “[...] a species terá característica de objeto e fonte de intermediação
representativa” (I Sent. q.58, ad.14).
Seguindo esta linha crítica, Guilherme de Ockham (1285-1347) considera a não
necessidade total da teoria da species para a explicação do processo cognitivo humano.
Assim, Ockham propõe que, ao invés de se tomar a cognição em termos de processo
assimilativo da species como intermediário funcional, poder-se-ia admiti-la em termos de
captura imediata e direta do mundo externo sem a utilização de intermediários que, à luz
do seu clássico princípio de parcimônia, são dispensáveis (supérfluos) na explicação teórica
do ato de conhecer, isto é, portanto, o princípio da chamada tese ockhamista da cognição
intuitiva:
[...] para que se tenha a cognição intuitiva não é preciso por algo além da
intelecção e da coisa conhecida, e absolutamente nenhuma species. Isto se
prova: porque não se faz por mais o que se pode fazer por menos. Ora,
através da intelecção e da coisa vista, sem qualquer species, pode se dar a
cognição intuitiva. (Rep. II. q.13)

O aspecto central da crítica de Ockham à teoria da species de Tomás diz respeito


sobretudo à sustentação tomasiana de que “o intelecto não pode conhecer direta e
primeiramente o singular nas coisas materiais” (ST. I q.86, a.1) por razão da cláusula,
herdade de Platão e lida pelo Aquinate como aristotélica, “o incorpóreo não pode ser
modificado pelo corpóreo” (ST. I q.84, a.6). Neste sentido, para Ockham, a citada
interdição, validada em Tomás como o estatuto funcional da species, não é necessária para
o processo de intelecção, pois não há obstáculo ao intelecto para inteligir, ao seu modo
imaterial, a singularidade das coisas:

Como efeito, se o intelecto for modificado para a cognição do universal


precisamente pelo intelecto agente, do mesmo modo pode facilmente ser
sustentado que seja modificado por ele para a cognição do singular [...]
pode ser determinado inteligir este universal e não outro, [logo] pode ser
posto que seja determinado [...] inteligir este singular e não aquele” (Ord.
I, d.3, q.6).

Nota-se que Ockham é nítido ao se opor ao entendimento que o Aquinate dá ao


princípio do “incorpóreo não pode ser modificado pelo corpóreo”, pois isso não pode
significar uma limitação per se do intelecto em relação ao conhecimento direto, isto é, não
mediado pela species, dos singulares, já que o modo como as coisas são inteligidas tem
antes relação com o que é específico do inteligir do que com o que é próprio da coisa:
Logo, se não há qualquer impedimento para que o intelecto tenha cognição direta
(intuitiva) dos singulares, a species inteligível abstrata, como mediação representativa, não
é necessária (supérflua) para explicar o processo de cognição humana do mundo. Assim,
garante-se pela não necessidade da species a relação direta entre cognoscente e cognoscido.

4. A species inteligível e sua função representativa: a hipótese interpretativa do


Representacionalismo

4.1 Os problemas ontológicos do Realismo Direto


Se para o Realismo Direto, na tentativa de se sustentar a cognição direta pela tese
da identidade formal entre cognoscente e cognoscido, as formas “são universais e [...]
instanciadas em muitas coisas” (PERLER, 2000, p.116), em que medida a forma vista
desse modo pode se adequar, em termos de interpretação, tanto à tese tomista da total
individuação quanto à noção de indivíduo no quadro geral de sua metafísica aristotélica?
D. Perler chega a admitir que a forma deve ser a ‘mesma’ em coisas numericamente
distintas e, sendo a mesma tanto nas coisas quanto no intelecto, a relação de assimilação
cognitiva poderia ser entendida à luz da noção de ‘identidade formal’, como visto
anteriormente. Portanto, se a forma é comum e instanciável em múltiplos indivíduos,
permanecendo a mesma, deveria se admitir que no indivíduo, onde a forma é instanciada,
nem tudo é singular, pois a forma que determina o modo de existência deste é a mesma
em todos os outros. Por exemplo, Sócrates, Platão e Aristóteles seriam indivíduos
numericamente distintos e múltiplos em razão de suas matérias assinaladas. Contudo, sob
o aspecto da forma, haveria identidade, pois é a ‘mesma’ forma de homem que se
instancia em Sócrates, Platão e Aristóteles. Entretanto, como é de se observar na ontologia
tomásica sobre as substâncias matérias, todo e qualquer princípio ou propriedades
constitutivas são individualizadas pela matéria, pois esta ao receber – como um sujeito
potencial – o ato de ser da forma, a recebe individualizando-a em uma porção dimensiva
da matéria, constituindo assim as essências individuais das coisas materiais singulares.
Tomás, ao tratar da noção de indivíduo, parece enfatizar a característica da total
individualidade, principalmente quando propõe em inúmeros textos a diferença e
distinção entre a essência enquanto considera sob a perspectiva da definição e a essência
do indivíduo, pois não se identificariam em absoluto a ‘essência de homem’ e a ‘essência
de Sócrates’, já que no segundo há a participação da matéria assinalada e no primeiro
apenas a significação desta matéria – matéria não assinalada. Portanto, como seria
possível compatibilizar a interpretação do Realismo Direto se se entende a ‘forma
comum’ como: instanciável em muitos, isto é, um universal e a forma que permanece a
‘mesma’ em indivíduos numericamente distintos?

Parece ser vetada na ontologia tomista a possibilidade de se considerar algum


elemento comum ou universal como constituinte das substâncias matérias. Ao definir a
noção de indivíduo, Tomás de Aquino ressalta uma das características fundamentais para
se classificar algo como individual é o fato de não poder existir em muitos. Assim, se a
forma é compositiva das essências das substâncias materiais, com a matéria, ela não poder
existir em muitos, pois foi individuada pela matéria que a recebeu. De igual modo, já que a
forma é totalmente individualizada na essência das coisas matérias, a forma de um
indivíduo não poderia se identificar por completo com a forma de outro indivíduo, dado
que em ambos a forma é individuada. Neste aspecto, seria falso dizer que ‘a forma de
Sócrates’ é a mesma ‘forma de Aristóteles’.
Além do mais, o Realismo Direto, na sua tentativa de purificar a teoria da cognição
do Aquinate de qualquer síntese com o Representacionalismo, lê as ocorrências
terminológicas de similitude por representação no Corpus Thomisticum como casos nos
quais o autor afirmaria uma relação não de mera semelhança, mas de identidade entre
cognoscente e cognoscido. Porém, mesmo que Tomás afirme o objeto próprio do intelecto
como sendo “a quididade da coisa material” (ST. I, q.86, a.1) e que tanto a species
inteligível quanto o conceito não são objetos diretos de cognição no ato ordinário da
intelecção (In De Anima. III, q.2), ainda permanecem as fundamentais diferenças entre
cognoscido assimilado e a coisa extra anima, por mais que o realista direto dê grande ênfase
à tese da ‘identidade formal’ e suposição da forma comum para explicar a objetividade no
ato de conhecimento.
Neste sentido, pode-se encontrar Tomás afirmando a diferença numérica – por razão
da individuação – entre species inteligíveis nos intelectos humanos: “as species inteligíveis,
que são imateriais, conquanto sejam distintas em número em ti e em mim” (Comp. Theol.,
8). Assim, se a species cognitiva multiplica-se conforme a multiplicação dos intelectos
humanos, dada a composição hilemórfica do homem enquanto substância individual, e
sendo o próprio intelecto uma potência inerente à alma, o resultado de suas operações será
sempre individual e numericamente distinto em cada ocorrência se se toma a análise de
outros intelectos enquanto também produtores de suas species.
Ora, se a individuação é a marca de qualquer instanciação de alguma propriedade,
tanto no caso das substâncias materiais quanto no âmbito do intelecto, o que é produzido
pela operação intelectiva inere no próprio intelecto enquanto seu acidente, tal como afirma
o Aquinate “as species inteligível é distinta da essência do intelecto no qual existe de modo
acidental” (Contra Gent., I, 46), pois é causada pela própria intelecção (Q. D. De Verit., IV,
2). Logo, não pode se identificar essencialmente com o intelecto, mas somente estabelecer
com ele uma relação acidental.
Posto isso, se a causa da individuação da species cognitiva a saber, o próprio
intelecto, não é a mesma que ocorre nas coisas extra anima, a saber, a matéria assinalada,
isso evidencia em parte que a causa da species não é a causa da coisa, o que parecer ser
uma tese trivial. Entretanto, é significativo destacar que, no aristotelismo ontológico de
Tomás, duas coisas com causas distintas não podem ter uma relação de identidade, já que
a causalidade é critério metafísico da diferença entre relacionados.
Como se viu, se a suposição da ‘forma comum’ do Realismo Direto enfrenta
dificuldades significativas para ser harmonizada com a ontologia tomásica sobretudo
quando se considera a característica da total individualização das substâncias materiais
(também de sua forma e essência) por causa das matéria singular em sua composição,
também a tese da ‘identidade formal’ parece encontrar severas dificuldades, pois a species
inteligível por ser um produto exclusivo e derivado da operação intelectual é
numericamente diversa da coisa material e não pode se identificar em absoluto com ela.
Desse modo, por mais que o conhecimento humano envolva algum nível de isomorfismo
entre pensamento e mundo, esta relação poderia ser explicada à luz da semelhança
representativa, já que nesta ótica preserva-se as diferenças entre cognoscente e cognoscido
e não há necessidade de suposições ontológicas problemáticas no quadro geral da
metafísica do Aquinate. E o próprio autor é adepto de uma nomenclatura
representacionalista ao tratar da species enquanto condição da intelecção e cognição em
geral.

4.2 A viabilidade do Representacionalismo

Entretanto, se a teoria da species de Tomás, definida como defesa da similitude por


representação (De Verit. q.10, a.4, ad.4), foi amplamente criticada por flertar com os riscos
céticos e solipsistas, qual a razoabilidade de se interpretá-la ainda como uma categoria do
representacionalismo epistêmico?
Para uma justa compreensão da significação da noção de similitude em Tomás de
Aquino, é necessário inicialmente descrever a noção de ‘assimilação cognoscitiva’,
compreendida como característica básica da cognição humana de modo geral. Em ST. I
q.14, a.1 o autor parece apresentar umas das características mais genéricas da cognição,
independente do sujeito do qual se trata e, nesse contexto, afirma o seguinte:

[...] É preciso considerar que os que conhecem se distinguem dos que não
conhecem em que estes nada têm senão a sua própria forma, ao passo que
o que conhece é capaz, por natureza, de receber a forma de outra coisa:
pois a representação do conhecido está em quem conhece (ST. I q.14,
a.1).
A descrição do conhecimento como certa aquisição de forma é apresentada pelo
Aquinate seguindo a máxima do terceiro livro do De Anima de Aristóteles, a saber, “a
alma é de certo modo todas as coisas” (De Anima III, 8, 431b28-432a3). Neste sentido,
dizer que a alma pode ser todas as coisas, parece significar que ela pode possuir, além de
sua forma, as formas de outras coisas. Pode-se dizer com isso que a condição de
possibilidade para todo e qualquer cognoscente ser um cognoscente é o fato dele ser capaz
de possuir outras formas além da sua constituinte substancial. O não cognoscente, assim,
não conhece por uma impossibilidade estrutural de aquisição de outras formas16.

Entretanto, se a cognição significa a posse de uma outra forma para além da


própria do cognoscente, deve-se especificar que tipo de forma é esta e quais são as
condições para a sua recepção. A posse de formas por parte do cognoscente é entendida
por Tomás de Aquino como um processo de assimilação17 e como causa do próprio
conhecimento. Se a referida assimilação é causa do conhecimento, em alguma medida
deve-se admitir que neste processo de aquisição de formas há algum tipo de alteração no
próprio cognoscente. Assim sendo, o Aquinate enfatiza o tipo específico de alteração que
ocorre na recepção de formas no ato de cognição em contraposição a outros tipos de
alteração, que ocorrem entre as meras relações causais dos corpos físicos. Segundo o
autor, há duas espécies de modificação: natural e espiritual. A primeira se encontra nos
casos em que a forma que causa a mudança é recebida naquele que se altera segundo o
modo de existência natural daquela forma. No segundo modo, a forma responsável pela
alteração é recebida naquele que se altera segundo o modo de existência do alterado e não
ao modo da existência natural daquela forma.18 Esta estratégia de distinção parece ser
uma tentativa de se afastar do materialismo gnosiológico dos antigos pré-socráticos e, por
meio dela, Tomás estabelece uma nítida distinção entre o processo de assimilação de
formas na cognição e as mutações que ocorrem nas relações causais entre as coisas

16
Ainda neste artigo Tomás de Aquino apresenta a razão fundamental da distinção entre cognoscente e não
cognoscente, a imaterialidade: “Fica evidente que a natureza do que não conhece é mais restrita e mais
limitada; a dos que conhecem, ao contrário, tem maior amplitude e extensão. [...] Ora, é pela matéria que a
forma é restringida; [...] Fica claro, portanto, que a imaterialidade de uma coisa é a razão de que seja dotada
de conhecimento, e seu modo de conhecimento corresponde à sua imaterialidade.” (ST. I q.14, a.1).
17
Tomás de Aquino em De Verit. q.1, a.1 afirma: “Pois todo conhecimento realiza-se pela assimilação do
cognoscente à coisa conhecida, de modo que a assimilação diz-se causa do conhecimento.” (De Verit. q.1,
a.1).
18
“Há duas espécies de modificação: uma é natura, outra é espiritual. A modificação é natural quando a
forma do que causa a mudança é recebida no que é mudado segundo seu ser natural. Por exemplo, o calor
no que é esquentado. Uma modificação é espiritual quando a forma é recebida segundo o ser espiritual. Por
exemplo, a forma da cor na pupila, que nem por isso se torna colorida.” (ST. I q.78, a.1).
materiais. Dessa maneira, na assimilação cognitiva a forma recebida – mesmo alterando
o cognoscente – não é recebida segundo o seu próprio ser natural, mas de acordo com o
modo de existência do próprio cognoscente, isto é, intencional.

Além desta tese da assimilação cognitiva das formas, deve-se elencar uma outra,
imanente ao próprio contexto em questão, a saber: se a recepção de formas na assimilação
cognoscitiva não envolve diretamente a recepção de uma forma segundo o seu modo de
existência natural, resta admitir que a recepção em questão é feita segundo a modalidade
de existência do próprio cognoscente. Neste sentido, o Aquinate afirma: “[...] o modo de
conhecimento de uma coisa se produz segundo a condição do cognoscente, em que a
forma é recebida segundo seu modo de ser.” (De Verit. q.10, a.4). Ou seja, a forma
recebida pelo cognoscente na assimilação do ato de conhecimento não possui seu modo
de existência natural, tal como encontrado na própria coisa material, mas sim o modo de
ser do próprio cognoscente.

É neste contexto que se entende as reiteradas afirmações de Tomás – corroborando


Aristóteles – sobre a assimilação cognitiva das formas: “a pedra não está na alma, mas a
species da pedra.19” Em linha gerais, a noção de species20 significa a presença de uma
forma no cognoscente segundo o modo de existência deste último21. Por sua vez,
admitindo que todas as potências cognitivas do homem são derivadas da alma, princípio
formal e imaterial da constituição substancial dos indivíduos humanos, toda e qualquer
forma recebida por assimilação nestas potências – sensível ou inteligível – são formas
imateriais e intencionais22.

Para o Aquinate a cognição humana é constituída por dois tipos de potência


cognitiva: uma que se insere intrinsecamente em um órgão corporal, que atua como

19
ST. I q. 76, a.2, ad.4.
20
Raul Landim Filho sintetiza claramente a noção de species em Tomás de Aquino: “A expressão ‘species’,
que é a tradução latina da palavra ‘eidos’, significa na teoria tomista do conhecimento ou bem a forma, e
neste caso ela não envolve a noção de matéria – individual ou comum –, ou bem a forma sensível ou
inteligível (verbo interior (mental), conceito) e neste caso ela não envolve a noção de matéria enquanto
princípio de individuação, mas pode envolver a noção de matéria comum” (LANDIM FILHO, 2010. pp.
67-68).
21
É de se evidenciar que no sistema tomasiano a species, enquanto presença da forma do cognoscido no
cognoscente, ocorre tanto no âmbito do conhecimento sensível quanto no intelectivo, assim encontram-se
nos textos do Aquinate inúmeras referências à species sensível e também à species inteligível.
22
Sabe-se que Tomás de Aquino não trata de maneira expressa da noção de ‘intencionalidade’, eu seus
raros momentos de uso, o Aquinate parece identifica-la com a dimensão imaterial do conhecimento
humano. No seu comentário ao De Anima II, Tomás afirma o seguinte sobre a forma: “tem um modo de ser
diferente no sentido e na coisa sensível, pois na coisa sensível tem uma realidade natural e no sentido, ao
contrário, uma realidade intencional e espiritual.” (In De Anima II, l.53, n.533)
condição de possibilidade para sua atualização operativa, os sentidos; e outra que não
depende, para sua operação, de nenhum órgão material, o intelecto.23 Por estas razões, as
formas assimiladas em cada uma destas potências ocorrerão de modos diferentes. As
formas que ocorrem nos sentidos, pelo fato de serem atos de órgão corporais e sendo a
matéria princípio de individuação24, sempre serão formas particulares, ou seja, todas as
species sensíveis dos sentidos são formas assimiladas de formas materiais particulares.
Pode-se dizer, então, que as coisas materiais são causas das species sensíveis que ocorrem
nos sentidos25. Com isso, toda cognição deste tipo será conhecimento singular de
indivíduos, sem nenhum modo de universalidade. É nesse sentido que se compreende a
seguinte sentença tomasiana: “[...] O objeto de toda potência sensível é a forma conforme
existe em uma matéria corporal. Sendo essa matéria princípio de individuação, toda
potência sensível só conhece os particulares” (ST. I q.85, a.1).

No intelecto, a forma assimilada ocorre distintamente, pois ele não necessita –


como condição e operação – de qualquer órgão corporal, dado que, por definição, é uma
faculdade de conhecimento estritamente imaterial, não sendo ato de nenhum órgão
corporal e somente uma potência formal da alma, diferentemente das faculdades sensíveis
que são potências da alma enquanto atos inerentes em órgãos corporais. Assim, toda e
qualquer forma assimilada pelo intelecto será uma forma imaterial, visto que se toda
assimilação é constituída segundo o modo de ser do agente, as formas instanciadas pelo
intelecto serão da mesma natureza daquele, imaterial.

Se no domínio dos sentidos, as formas assimiladas (species sensíveis) são


causadas nas potências sensoriais pelas formas individuais das coisas sensíveis, entende-
se, por razão de causalidade26, que as species sensíveis são semelhanças das formas
individuais das coisas materiais. Já que as formais naturais das coisas materiais são
condições causais das species na potência sensorial, e não sendo possível que a forma

23
“Há três graus de potência cognoscitiva. Uma é ato de um órgão corporal: é o sentido [...]. Outra potência
cognoscitiva não é ato de um órgão corporal e não está unida de nenhuma maneira à matéria corporal; é o
intelecto angélico. [...] O intelecto humano se põe no meio: não é ato de um órgão, mas é uma potência da
alma, que é forma do corpo [...]”. (ST. I q.85, a.1).
24
“A matéria é princípio de individuação, não tomada de qualquer maneira, mas apenas a matéria
assinalada. Denomino matéria assinalada a que é considerada sob dimensões determinadas.” (De Ente. II).
25
“As coisas sensíveis que existem em ato fora da alma são causas das species sensíveis que estão nos
sentidos pelos quais sentimos.” (ST. I q.84, a.4).
26
Segundo Tomás de Aquino, seguindo a noção geral de causalidade, todo e qualquer efeito é engendrado
necessariamente por uma causa, a tal ponto que não é possível a existência de um efeito sem uma causa. A
própria noção de efeito só pode ser concebida ou definida por relação à noção de causa. Tomás em múltiplos
momentos cita esta relação, como por exemplo: “Os efeitos dependem da causa.” (De Verit. q.10, a.3).
assimilada exista no cognoscente ao seu modo natural, mas somente ao modo de ser do
próprio cognoscente, restaria aceitar que a forma assimilada só pode ser uma semelhança
da forma natural da coisa, tal como afirma o Aquinate: “As cores existem da mesma
maneira tanto na matéria corporal individual como na potência de ver. Elas podem, por
isso, imprimir sua semelhança na vista27.”

Entretanto, em que medida a forma assimilada pela potência inteligível (species


inteligível) pode ser uma semelhança (similitude) das formas que ocorrem nas coisas
materiais? A questão apresenta-se levando-se em consideração que a própria species
inteligível não é recebida no intelecto a partir das coisas materiais por intermédio causal
dos sentidos, mas sim produzida por ele próprio. Portanto, não haveria propriamente uma
relação de causalidade entre sentidos e intelecto, isto é, entre a species sensível e a species
inteligível, visto que parece haver um limite ontológico na relação de causalidade, a saber:
“nenhuma coisa corpórea pode agir sobre uma incorpórea28” (ST. I q.85, a.6). Logo, se
não é por causalidade29 das coisas materiais, mediante a species sensível dos sentidos,
que a species inteligível ocorre na intelecção, restaria admitir que o próprio intelecto é o
agente produtor e causador de suas species30. Assim, Tomás de Aquino admite a
existência de um intelecto – intelecto agente31 – que opera a produção de suas próprias

27
ST. I q.85, a.1, ad.3.
28
Essa máxima metafísica que determinar os tipos de relação causais possíveis parece supor uma premissão
ontológica, isto é, que uma modalidade de existência ‘inferior’ não poder ser causa de efeitos em uma
modalidade de existência ‘superior”. Há, portanto, uma hierarquia de modos de existência segundo uma
lógica de ‘perfeção no existir”. Esta classificação não é extranha à ontologia de Tomás, pois por henraça
platônica a gradação dos modos de ser supõe que o modo de ser material é menos perfeito que o modo de
ser imaterial ou forma, pois a matéria sempre tende à sua degradação, além de ser um modo de existir , por
si, potencial. Já aquilo que existe de modo imaterial e puramente formal não possui, por si, a caracteristica
corruptiva da matéria, sendo porntato, um modo de ser mais perfeito.
29
Mesmo que Tomás de Aquino utilize a noção de ‘recepção’ pelo intelecto a partir das coisas mediante os
sentidos, não se deve entender essa passividade em significação estrita – no âmbito da causalidade –, pois
o intelecto é uma potência imaterial da alma sem inerência em algum órgão, diferentemente dos sentidos
que inerem em órgãos materiais, como já dito. Ainda, considerando que na relação de causalidade o efeito
sempre é proporcional em natureza à sua causa, não se poderia admitir que os sentidos sejam causa direta
da species no intelecto, pois se fosse o caso, dever-se-ia também admitir algum tipo de materialidade no
intelecto para justificar a referida relação de causalidade – admissão problemática no sistema gnosiológico
do Aquinate. Portanto, passagens como encontradas em ST. I q.85, a.1 deveriam ser interpretadas à luz da
referida consideração: “[...] O intelecto recebe as imagens dos corpos materiais e mutáveis sob um modo
imaterial e imutável, à sua maneira, pois o que é recebido está naquele que recebe segundo o modo de quem
recebe. – Deve-se dizer, portanto, que a alma conhece os corpos por meio do intelecto, por um
conhecimento imaterial, universal e necessário.” (ST. I q.84, a.1).
30
“[...] No que concerne às representações imaginárias, a operação intelectual é causada pelos sentidos.
Entretanto, as representações imaginárias são incapazes de modificar o intelecto possível, mas devem se
tornar inteligíveis em ato pelo intelecto agente. Em consequência, não se pode dizer que o conhecimento
sensível seja a causa total e perfeita do conhecimento intelectual, mas antes que é a matéria da causa.” (ST.
I q.84, a.6).
31
“Mas, porque Aristóteles de um lado não admitindo a subsistência das formas das coisas naturais, sem
matéria e de outro, dizendo que as formas existentes na matéria não são inteligíveis em ato, resulta que as
formas assimiladas, dado que as formas assimiladas dos sentidos não podem ser causa
total da intelecção e que a species inteligível, diferentemente da sensível, em parte alguma
se encontra em ato como condição prévia da operação cognitiva.

É neste contexto que Tomás de Aquino insere sua teoria da abstração32 na


explicação do processo de produção da species inteligível pelo intelecto agente e da
relação entre os sentidos e intelecto. Com isso, abstrair é um ato intelectivo pelo que, a
partir da imagem sensível e individual da coisa material – confeccionada pela imaginação,
mediante um encadeamento de processos sensoriais –, seria produzido no próprio
intelecto um inteligível em ato e, pelo próprio ato abstrativo, aquele inteligível é um
universal, isto é, uma propriedade mental que pode ser atribuída a múltiplos indivíduos
através da predicação judicativa. Se no domínio da cognição sensorial o sensível, objeto
dos sentidos, já se encontra em ato e põe em movimento a sensação, na cognição
intelectiva, ao contrário, o inteligível precisa ser atualizado pelo próprio intelecto, pois a
imagem produzida pela imaginação só é potencialmente inteligível, dependendo, por isso,
de um intelecto agente para atualizar sua inteligibilidade. Sinteticamente, pode-se dizer
que a imagem sensorial produzida pela imaginação seria o termo a quo33 do processo
abstrativo, onde se encontraria o inteligível somente em potência, isto é, a imagem
enquanto similitude individual da coisa material. Por sua vez, após o ato de abstração, o
inteligível potencial se tornaria em ato por ação intelectiva no próprio intelecto – este
seria o termo ad quem do processo abstrativo: o inteligível em ato. Dessa maneira, afirma
o Aquinate:

naturezas ou formas das coisas sensíveis, que inteligimos, não são inteligíveis em ato. Ora, nada passa da
potência para o ato senão por um ser em ato; assim, o sentido torna-se atual pelo sensível atual. Logo, é
necessário admitir-se uma virtude, no intelecto, que atualize os inteligíveis, abstraindo as espécies das
condições materiais. E essa é a necessidade de se admitir um intelecto agente.” (ST. I q.79, a.3).
32
A teoria tomásica da abstração pode ser compreendia à luz de três textos fundamentais: De Ente. II, In
Boeth. De Trin. q.5, a.3 e ST. I q.85, a.1. No primeiro, o autor trata da noção de ‘abstração do todo’, ou
seja, de como o intelecto produz os universais a partir das coisas materiais individuais. No segundo texto
encontram-se algumas questões relativas à natureza dos elementos matemáticos e como são produzidos
pela ‘abstração da forma’. Por sua vez, o terceiro se detém no papel da imagem sensorial produzida pelos
sentidos como condição para a produção da species inteligível por parte do intelecto agente.
33
Esta é a razão apresentada pelo Aquinate na explicação da imagem sensorial como termo a quo do
processo abstrativo: “[...] na recepção pela qual o intelecto possível recolhe a species das coisas a partir dos
fantasmas, os fantasmas funcionam como agentes instrumentais ou secundários, mas o intelecto agente,
como agente principal e primeiro. E daí o efeito da ação é deixado no intelecto possível segundo a condição
de ambos e não segundo somente a condição de um dos dois. Daí o intelecto possível recebe as formas
como inteligíveis em ato, a partir da força do intelecto agente, mas [as recebe] como similitude de coisas
determinadas a partir da cognição do fantasma. E assim as formas inteligíveis em ato não são por si
existentes nem na imaginação nem no intelecto agente, mas somente no intelecto possível.” (De Verit.
q.10, a.6, ad.7).
Pela ação do intelecto agente, voltando-se para as representações
imaginárias, se produz certa semelhança no intelecto possível; essa
semelhança é representativa das coisas de que se têm representações
imaginárias, somente quanto à natureza específica. E é nesse sentido que
se diz que a espécie inteligível é abstraída das representações
imaginárias, mas isso não significa que uma forma, numericamente a
mesma, que antes estava nas representações imaginárias se encontre em
seguida no intelecto possível, à maneira como um corpo, tirado de um
lugar, é transportado para outro (ST. I q.85, a.1, ad.3).

O trecho supracitado propõe que pelo ato de abstração o intelecto agente, tendo
como ponto de partida a species sensível produzida pela imaginação, produz também uma
semelhança da coisa, análoga à semelhança encontrada na própria imaginação. A
diferença fundamental diria respeito aos distintos modos de ser semelhança. A imagem é
uma semelhança individual de objetos, pois tanto a coisa quanto a sua imagem envolvem
matéria – a coisa é composta por forma substancial e matéria como princípio de
individuação34 e a imagem produzida pelos sentidos na imaginação representa a coisa em
suas condições materiais individuantes, somente sem a matéria assinalada, constituinte
essencial da própria coisa35. Por seu turno, a species inteligível atualizada na intelecção
pelo processo da abstração também seria uma semelhança da coisa material, pois o termo
a quo deste processo é a própria imagem da imaginação, similitude dos singulares
materiais. Entretanto, a semelhança da species inteligível não é individual, mas sim
universal, pois no ato de abstração desconsiderou-se por operação abstrativa todos os
aspectos individuantes envolvidos na imagem sensorial, que por isso, era somente
inteligível em potência. Por fim, a citação acima adverte para a justa compreensão da
atualização do inteligível a partir da imagem sensorial, isto é, o referido processo não
significa que a mesma forma é transferida para o intelecto e tornada inteligível em ato.
Antes, a passagem da potência ao ato do inteligível é um processo abstrativo, realizado
pelo intelecto e no intelecto, apenas tendo como ponto de partida a semelhança imagética
da imaginação.

34
“A matéria é princípio de individuação, não tomada de qualquer maneira, mas apenas a matéria
assinalada. Denomino matéria assinalada a que é considerada sob dimensões determinadas.” (De Ente. II).
35
“Nas substâncias compostas nota-se forma e matéria [...]. Não se pode dizer que apenas um deles seja
denominado essência. De fato, que a matéria sozinha não seja a essência da coisa é patente, pois a coisa
tanto é cognoscível como é classificada numa espécie ou num gênero pela essência; ora, nem a matéria é
princípio de conhecimento, nem algo fixado num gênero ou espécie graças a ela, mas graças àquilo que
algo é em ato. Também a forma sozinha não pode ser denominada essência da substância composta. Com
efeito [...] a essência é aquilo que é significado pela definição da coisa. Ora, a definição das substâncias
naturais contém, não apenas a forma, mas também a matéria [...].” (De Ente. II).
Dado o exposto, pode-se dizer que tanto a species sensível da imaginação quanto
a species inteligível do intelecto são semelhanças – similitudines – das coisas matérias.
Entretanto, o que significaria dizer que algo é ‘semelhança’ na gnosiologia tomista? Se
por um lado a species significa no sistema tomasiano a presença de formas no
cognoscente, por outro resta ainda expor que tipo de relação há entre a forma enquanto
assimilada cognitivamente e a coisa material da qual se tem conhecimento. Neste segundo
aspecto da species, Tomás de Aquino considera a sua característica de similitude, isto é,
a species sempre é a semelhança do cognoscido no cognoscente. No De Verit. q.10, a.4,
o Aquinate afirma:

“Deve-se afirmar que todo conhecimento se produz segundo uma forma.


[...] Uma forma deste tipo pode ser considerada de duplo modo; o
primeiro segundo o ser que possui no cognoscente, e o segundo de acordo
com a relação que possui com a coisa de que é semelhança. [...] Em
relação ao segundo se determina o conhecimento até certo cognoscível
determinado” (De Verit. q.10, a.4).

Se conforme o primeiro modo de tratamento da forma assimilada verificou-se que


esta deve existir no cognoscente não ao seu modo natural, mas sim ao modo imaterial e
intencional do sujeito de conhecimento, o segundo aspecto de consideração da species
revela-a como sendo uma similitude das coisas materiais cognoscíveis. Como se viu, tanto
a forma assimilada pela potência sensível quanto a forma que ocorre na potência
inteligível são consideradas por Tomás de Aquino como similitudes ou semelhanças das
coisas materiais. Sobre a noção de similitude, Tomás de Aquino diz:

[...] Uma semelhança entre duas coisas pode ser entendida em dois
sentidos. Em certo sentido, segundo um acordo em sua própria natureza
e tal similitude não é necessária entre conhecedor e coisa conhecida [...]
O outro sentido que se tem é a semelhança por representação e esta é
necessária entre conhecedor e coisa conhecida” (De Verit. q.2, a.3, ad.9).

Ao que parece, existem dois tipos de semelhança segundo o Aquinate: por um


acordo conforme a natureza e por representação. Em relação ao primeiro, uma coisa pode
ser dita semelhança de outra se houver alguma identidade de propriedades encontradas
em ambos os sujeitos da relação de semelhança, por exemplo, quando se diz que aquilo
que aquece e o aquecido compartilham a propriedade de ter determinada temperatura, ou
quando se diz que dois objetos possuem a brancura como acidente qualitativo de suas
respectivas extensões. O segundo modo de semelhança parece não se identificar ao
primeiro, pois é o tipo de relação de similitude que ocorre entre cognoscente e
cognoscido. Neste tipo, mesmo que exista na relação um certo compartilhamento de
formas, isto não ocorre da mesma maneira como no primeiro, pois quando o cognoscente
assimila a forma do cognoscido aquele não assume as propriedades da forma tal como ela
existe na coisa. Por exemplo, o intelecto ao conceber a forma da brancura de uma certa
coisa não se torna branco ele mesmo. Por isso, deve-se supor um outro modo de relação
de semelhança distinto do primeiro, um modo que Tomás de Aquino denomina
“semelhança por representação” e que só ocorre no âmbito do ato de cognição. Assim,
tanto as species sensíveis quanto as species inteligíveis são semelhanças das coisas
materiais segundo o modo de representação36, ou seja, representam para o cognoscente
as propriedades sensíveis e inteligíveis das coisas materiais – os sentidos de maneira
singular e material e o intelecto de maneira universal e imaterial.

A species inteligível, no que lhe concerne, seria uma similitude por representação
das propriedades formais e potencialmente inteligíveis da coisa material. Entretanto,
mesmo que a referida species seja um inteligível em ato, universal e imaterial, e que a
coisa material em que esta species tem base possua um modo de existência totalmente
singularizado pela matéria como seu princípio de individuação, a relação de semelhança
ainda é possível, por duas razões: o compartilhamento de formas na relação de similitude
por representação não supõe que a forma semelhante tenha o mesmo modo de ser da qual
ela é uma similitude e dado que a species inteligível em ato foi abstraída pelo intelecto
agente a partir da imagem da coisa material, produzida pela potência imaginativa e, sendo
esta imagem uma similitude singular da coisa material, a própria species é autorizada a
ser também uma similitude, pois como se viu, a species sensível é propriamente o termo
a quo do processo de atualização do inteligível no intelecto por abstração. Logo, a
diferença de similitude entre imagem sensorial e species inteligível diria respeito ao fato

36
Em De Verit. q.10, a.4, ad.4 Tomás de Aquino explica o que significaria uma semelhança por
representação: “Na mente não existem senão formas imateriais, contudo elas podem ser similitudes das
coisas materiais. Com efeito, não é necessário que a similitude tenha o modo de ser daquilo do qual ela é
uma similitude, mas somente que convenha na razão, assim como a forma do homem na estátua de ouro e
a forma do homem que tem ser de carne e osso.” (De Verit. q.10, a.4, ad.4). Assim, segundo o autor, o
compartilhamento de formas da relação de semelhança por representação não supõe que a forma
compartilhada tenha o mesmo modo de ser nos relacionados. Isso tornaria possível a similitude por
representação no processo de cognição, pois sabe-se que no ato de conhecimento o cognoscido é no
cognoscente, por assimilação de formas, ao modo existencial deste último.
de que a primeira é uma semelhança singular de coisas individuais, já a segunda é uma
similitude imaterial e universal de coisas particulares.

Pelo apresentado, se a species tem inerência no sujeito cognoscente enquanto


condição sine qua non da cognição, necessariamente ela deve ter uma função
representativa?

Paul Hoffman afirma que a premissa básica do aristotelismo epistemológico de


Tomás, na qual a imanência da forma cognitiva é entendida como princípio de toda e
qualquer ato de conhecimento, inevitavelmente engendrará uma postura
representacionalista:
É minha convicção que a teoria da cognição de Aristóteles e as dos
seus seguidores tomistas são impulsionadas pela suposição básicas
[...] que só podemos ter cognição imediata dos objetos na medida em
que eles existem em nós. O que considero serem as questões
controversas dessa interpretação são, em primeiro lugar, se os
aristotélicos pretendiam conciliar esta suposição com o realismo
direto e, em segundo lugar, se ela implica um representacionalismo
(HOFFMAN, 2002, p. 165).

Assim, o problema cético sobre a species como condição da cognição humana não
seria derivado de qualquer interpretação medieval ou sobretudo de Tomás de Aquino, mas
especificamente da premissa fundamental da epistemologia Aristotélica, aquilo que, em
certa medida, é o centro do De Anima do Estagirita, a tese a partir da qual todo o seu sistema
explicativo dos processos cognitivos se fundamental e, neste caso, o representacionalismo
seria característica própria da suposição aristotélica sobre a imanência da forma da cognição
“a alma é de certo modo todas as coisas” (De Anima III, 8, 431b28-432a3). Logo, se para
conhecer a alma deve possuir uma species, é inevitável admitir que esta tem uma função
cognitiva ao mediar por representação a relação entre cognoscente e cognoscido. Neste
sentido, a teoria da species de Tomás de Aquino é essencialmente representacionalista, não
por inovação, mas sim por dependência das premissas epistêmicas do De Anima de
Aristóteles.
Ao que parece, esse é exatamente o cerne conclusivo e a perspectiva da crítica
medieval do “véu das species” engendrada tanto por Henrique de Gand, Pedro João Olivi
e sobretudo por Guilherme de Ockham com o seu abandono completo por qualquer
necessidade da species na explicação da cognição humana dos objetos fora da mente. É
interessante ressaltar que esse afastamento não foi entendido por esse autores como crítica
estrita ao De Anima de Aristóteles, mas sobretudo por uma tentativa ortodoxo de interpretá-
lo contra a leitura de Tomás de Aquino. Isto é, por exemplo, o que afirma R. Pasnau:

Na minha leitura, Olivi e Ockham não compreenderam mal a doutrina das


species. Em vez disso, viram que esta se baseia em suposições altamente
questionáveis sobre a mente e a percepção. [...] Tomás de Aquino está
empenhado numa teoria em que as species funcionam como um tipo de
intermediário cognitivo que seria eliminado por Olivi e Ockham
(PASNAU, 1997, p.196).

Compreende-se com isso que toda e qualquer teoria da species em campo


epistemológico supõe ou admite por princípio uma versão representacionalista sobre o
funcionamento da cognição humana em relação às coisas extra anima, ou seja, a relação
entre cognoscente e cognoscido é sempre mediada pela participação causal e cognitiva da
species, pois somente esta pode atender e realizar a aristotélica suposição da imanência da
forma conhecido na faculdade anímica.
Entretanto, Tomás de Aquino é categórico ao afirmar que nenhuma species
inteligível poder ser objeto próprio da cognição humana, pois se fosse o caso, o homem
estaria fadado tanto ao problema do relativismo quanto a não objetividade das ciências
sobre o mundo. Logo, na esteira de um possível afastamento do Representacionalismo, os
defensores do Realismo Direto em Tomás de Aquino dão ênfase às canônicas interdições
apresentadas pelo autor em ST. I q.85, a.2 para sustentar a cognição direta e a função
meramente mediadora da species inteligível, incapacitando assim as possíveis
aproximações entre o Aquinate e qualquer teoria representacionalista. Contra aqueles que
defendem o intelecto como conhecedor direto somente de suas impressões (species),
encontrar-se-ia no autor da Suma Teológica as seguintes razões:

Mas essa opinião é evidentemente falsa, por duas razões. Primeira, porque
é o mesmo o que conhecemos e aquilo de que trata as ciências. Se, pois,
aquilo que conhecemos fosse somente as species que estão na alma, todas
as ciências não seriam de coisas que estão fora da alma, mas somente das
species inteligíveis que estão na alma. [...] Segunda razão: porque se
chegaria ao erro dos antigos que diziam que tudo o que parece é
verdadeiro, e assim afirmações contraditórias seriam ao mesmo tempo
verdadeiras. Se com efeito, uma potência não conhece senão sua própria
impressão, só dela julga. Ora, uma coisa parece ser de tal maneira,
conforme a potência cognoscitiva está afetada desse ou daquele modo.
Portanto, o julgamento da potência cognoscitiva terá por objeto aquilo
mesmo que ela julga, a saber, sua própria impressão, segundo sua própria
impressão, segundo o que ela é; e assim todo julgamento será verdadeiro
(ST. I, q.85, a.2).
Tomás de Aquino adverte sobre as consequências de se admitir a species
inteligível como sendo o conhecido na cognição da coisa. Fosse esse o caso, ocorreriam
dois graves problemas para o conhecer: a ciência de modo geral não seria sobre as coisas,
mas sobre itens mentais e todo e qualquer julgamento operado por um intelecto seria
verdadeiro. As duas razões parecem apontar para o problema da objetividade do
conhecimento caso admita-se a species inteligível como cognoscida no ato de cognição
da coisa material. Já que as referidas species, em seu estatuto ontológico, são meros
acidentes do intelecto, este não poderia produzir conhecimento objetivo se aquelas fossem
o objeto direto da cognição, pois dada sua característica acidental, as species são múltiplas
tal como são múltiplos os intelectos e, logo, toda cognição intelectiva seria sobre seus
próprios acidentes e não sobre as essências das substâncias materiais, inviabilizando a
ciência natural objetiva. Considerando ainda que por razão de sua acidentalidade as
species são múltiplas tal como são múltiplos os intelectos, todos julgamentos operados
por intelectos teriam como regra de adequação veritativa apenas suas próprias species
inteligíveis. Assim, todos os juízos seriam verdadeiros, inclusive os contraditórios, não
por razão da objetividade da coisa, mas pela subjetividade das species como afecções
acidentais de um intelectos individuais

Por mais que ST I, q.85, a.2 tenha sido lido – sobretudo pelo Realismo Direto –
como uma clara posição de Tomás contra o representacionalismo epistemológico, já que
aqui se pode encontrar a negação da species como objeto direto da cognição, pode-se
verificar, assim como faz R. Pasnau (1997), que nesta passagem o Aquinate não está
argumentando contra o representacionalismo, mas sim contra o idealismo epistêmico. As
interdições são estabelecidas para negar que uma mera propriedade metal ou sensorial
seja o objeto próprio e exclusivo da cognição humana, isto é, que qualquer conhecimento
realizado pelo homem sobre o mundo externo seja somente das afecções acidentais
ocorrendo nas faculdades da alma. Se o idealismo funcional das species é o negado por
Tomás, não se obtém desta interdição uma segunda na qual as próprias species seriam
intermediários cognitivos para o mundo extra anima. Assim, para o autor da Suma
Teológica “as species inteligíveis estão para o intelecto como aquilo pelo qual – ut quo –
o intelecto conhece”, ou seja, textualmente o Aquinate manifesta, ou permite, que alguma
leitura representacionalista possa ser derivada a partir da função da species na medida em
que ela é expressa como uma mediação funcional e cognitiva entre o cognoscente e o
cognoscido37.

Se, portanto, a species possui função mediadora indispensável é ainda preciso


destacar que a teoria da cognição de Tomás marcadamente possui um aspecto realista na
defesa de que o objeto próprio do conhecimento humana resolve-se na “quididade das
coisas materiais” (De Verit. q.1, a.12) e não nas próprias species que a representa no
intelecto – como ficou evidenciado nas interdições de ST I, q.85, a.2. O Aquinate
considera que as species podem ser objetos de cognição somente por ato de reflexão do
intelecto quando este se volta para sua operação38. Entretanto, nos casos ordinários – ato
direto – quando se considera a coisa extra mental a species não é objeto de conhecimento.

Se por um lado, como se viu, a species é mediadora da cognição, por outro o


Doutor Angélico não abre mão da afirmação de que aquilo que é conhecido
prioritariamente pelo intelecto identifica-se com as propriedades inteligíveis extra anima,
ou seja, as quididades das coisas materiais enquanto objetos próprios do conhecimento
intelectual. Ora, a tradição medieval posterior sobretudo em Pedro de João Olivi e
Guilherme de Ockham, como visto na crítica do “véu das species”, considera que
qualquer teoria da cognição que postule a necessidade funcional da species estará, nesta
mesma consideração, assumindo o aspecto de mediação cognitiva entre cognoscente e
cognoscido e, portanto, também contraindo por efeito colateral todas as questões céticas
e solipsistas herdadas a partir do princípio da mediação representativa. É neste mesmo
sentido que se pode destacar as razões pelas quais o Realismo Direto tem particular
interesse em afastar de Tomás de Aquino qualquer leitura que considera o papel
representativo da species enquanto princípio de cognição. Perler, por exemplo, ao analisar
o papel da species inteligível neste processo, enfatiza sua função meramente instrumental,

37
Em relação ao tipo de representacionalismo que deve ser aplicado À interpretação dos textos do Aquinate,
Panaccio propõe o seguinte: “por representacionalismo eu vou significar qualquer teoria da cognição que
atribui um papel crucial e indispensável para algum tipo de representação mental. E por representação
mental, vou significar qualquer sinal simbólico existente em alguma mente individual e dotada dentro desta
mente de um conteúdo semântico. A representação mental, neste vocabulário, é um símbolo mental
referindo-se a algo mais, algo extra mental na maioria dos casos” (PANACCIO, 2001, p.5).
38
Reforçando tanto a característica da imanência da forma como condição da cognição quanto a
característica representativa da mediação, Tomás de Aquino sustenta o aspecto realista de sua teoria ao
negar que a species, por mais que tenha uma função central para o ato de conhecer, não é ela o objeto de
conhecimento e só acessada por reflexão: “deve-se dizer que haja um ou vários intelectos, o que se conhece
é uma só coisa. Pois o que se conhece não está no intelecto por si mesmo, mas segundo sua semelhança:
“A pedra não está na alma, mas a imagem da pedra”, diz o Filósofo no livro III do De anima. E, no entanto,
o que se conhece é a pedra e não a imagem da pedra, a menos que o intelecto faça uma ato reflexo sobre si
mesmo. De outra sorte, não haveria ciência da realidade, mas somente das espécies inteligíveis” (ST. I,
q.76, a.2, ad.4).
citando o respondeo de ST. I q.85, a.2 e apresentando a species como aquilo pelo qual –
o ut quo – é possível a intelecção da coisa pelo intelecto, e não como o que é – id quod –
conhecido por ele no ato de cognição da coisa extra mental. Com isso, só secundariamente
e, por outro ato – per reflexionem –, a species seria objeto direto do intelecto, mas aqui
ele já não visa a coisa material, e sim os elementos e as etapas instrumentais da cognição
direta inicial. Portanto, a estratégia interpretativa defendida pelo Realismo Direto
claramente procura reformular a noção de similitude como representação, tentando
distanciar da teoria do conhecimento do Aquinate qualquer possibilidade de síntese ou
mistura com os moldes gnosiológicos do Representacionalismo. Para isso, seria ponto
capital afastar – ou reinterpretar – do campo da cognição inteligível a noção de similitude
como representação39.

Mas, como se verificou, o preço teórico pago pelo Realismo Direto é exatamente
sustentar princípios ontológicos e epistêmicos incompatíveis com o quadro geral da
metafísica do Aquinate, sobretudo a tese metafísica da ‘forma comum’ per se e a clara e
textual defesa do autor sobre a species como similitude por representação. Portanto, para
evitar as citadas inconsistências interpretativas, é ainda possível sustentar em Tomás uma
teoria da species de viés representacionalista?

É exatamente o cumprimento desta finalidade, em crítica ao Realismo Direto, que


se encontram autores como Panaccio (2001), Hoffman (2002), Pasnau (1997) e Landim
Filho (2010) revisitando tanto a tradição medieval e moderna crítica a Tomás quanto o
texto do próprio Aquinate para compreensão de sua teoria da species. Assim Pasnau, por
exemplo, afirma que Tomás de Aquino está comprometido claramente com uma versão
representacionalista sobre a função da species na cognição em defesa daquilo que é
chamado pelo intérprete como a “Doutrina do Ato-Objeto”:

Se olharmos para os lugares que Tomás de Aquino nega que as species


sejam objetos de cognição [por exemplo, ST. I, q.85, a.2], é claro que não
se nega a Doutrina do Ato-Objeto, e muito menos o representacionalismo
[...], mas ele é contra um tipo de idealismo. O argumento [de ST. I, q.85,
a.2) não tem nada a dizer contra a doutrina do Ato-Objeto, um realismo

39
Perler sintetiza claramente as pretensões do Realismo Direto ao afastar os textos de Tomás de Aquino de
qualquer interpretação representacionalista: “dada a compreensão técnica do termo latino similitudo, seria
completamente errôneo atribuir uma posição representacionalista a Aquino sobre a base de suas declarações
sobre a similitude. Pelo contrário, estas declarações falam claramente em favor de uma versão modificada
do realismo direto. Pois o que está imediatamente presente ao intelecto quando apreende uma species
similitude qua (qual a semelhança de) é a forma de uma coisa – a forma mesma que também é presente na
coisa material. Na verdade, é a relação de identidade e não uma relação de semelhança que faz uma species
ser uma similitude” (PERLER, 2000, p.115).
representativo. Tomás nega que exista alguma maneira mais imediata de
vermos o mundo externo do que o mediado pela species [...]. [Ao que
parece] Tomás está comprometido com a Doutrina do Ato-Objeto na qual
quem vê o mundo externo também vê a species ao mesmo tempo ou, pelo
menos, apreende a species de alguma maneira. Além disso, nesta
doutrina, é em virtude de apreender tais species que o mundo externo é
percebido (PASNAU, 1997, 210).

Segundo Pasnau, a teoria da cognição de Tomás de Aquino, por estar em princípio


comprometida com a tese aristotélica da assimilação da species enquanto condição do ato
de conhecimento, em nenhum momento, mesmo para sustentar a prioridade cognitivo do
extra anima, abdica da mediação ofertada pela própria species. E isto em nada
compromete o realismo de Tomás, pois conhecer mediante a species é modo – humano –
mais direto e imediato de se ter acesso às coisas fora da mente. Neste sentido, pode-se
dizer que a crítica medieval do “véus das species” seria em parte corretamente aplicada à
teoria da cognição do Aquinate, mas ainda assim e, ao contrário das inferências
engendradas pelas conclusões teóricas em favor da dispensabilidade da species em Pedro
de João Olivi e em Ockham, a objetividade do conhecimento humano estaria garantida
não apesar da mediação funcional e cognitiva da species, mas graças a ela, pois esse seria
o modo mais imediato – isto é, mediado relativamente – da alma humana possuir
conhecimento sobre as coisas materiais no mundo. Obviamente, essa leitura de R. Pasnau
não é um defesa de um representacionalismo inferencial40, mas que a species é uma
representação mediadora em termo funcionais – ao atualizar o intelecto – e também
cognitiva ao ser um conteúdo nocional juntamente com os objetos extra mentais41. E isto

40
Em certo sentido, a leitura feita por Raul Landim, na tentativa de se justificar a plausibilidade de uma
leitura representacionalista da teoria de Tomás, é compatível com a proposta da Doutrina do Ato-Objeto de
Pasnau: “a teoria gnosiológica de Tomás poderia ser interpretada como um tipo de representacionalismo
não inferencial. Graças à operação mental de formação do conceito e de conversão ao fantasma são
produzidas representações ou similitudes intencionais de objetos para os quais o conhecimento humano,
dependente do sensível, está prioritariamente voltado. Estas operações são condições necessárias para a
apreensão das coisas, isto é, mediante elas ou por intermédio delas as coisas são apreendidas, embora não
seja preciso que o termo ou o produto dessas operações mentais seja reconhecido como objeto para exercer
sua função de meio de conhecimento. Nem a identidade de formas nem a existência de uma forma comum,
cujas instâncias teriam modos de ser diferentes (intencionais e naturais), precisam ser postuladas para
explicar, segundo Tomás, o papel do conceito na intelecção dos objetos do conhecimento” (LANDIM
FILHO, 2010, p.78).
41 Panaccio, como já citado, também constrói uma leitura interpretativa de defesa do representacionalismo

em Tomás próximo ao proposto pelos já citados autores: “Temos que concluir que a teoria da cognição
intelectual de Tomás de Aquino é basicamente representacionalista, no sentido bastante comum do termo
que adotei aqui: ela atribui um papel crucial e indispensável a certos itens mentais (species e conceito)
dotados de conteúdo semântico, nenhum dos quais é, em qualquer sentido forte, visto como idêntico às
quididades que representa. A identidade intencional, nas maneiras mais comum de Tomás de Aquino falar,
é analisada como uma relação de similitude e não como uma relação de identidade real. O que exatamente
essa semelhança deve ser foi deixado em aberto aqui, como no próprio Tomás de Aquino. A questão, até
parece ser o núcleo da teoria cognitiva tomista já que o Aquinate, tanto nos textos de
juventude quanto de maturidade, sempre expressou a species como similitude
representativa do extra anima para e no intelecto. Logo, uma leitura representacionalista
sobre os textos de Tomás poderia ofertar uma síntese doutrinal da species e, por isso,
também conceder resposta à crítica medieval do “véu das species”, tal como
exemplificado pela apresentação do argumento de Pasnau e com fins exclusivamente
epistemológicos, sem a necessidade, portanto, da suposição de premissas ontológicas
aparentemente incompatíveis com a metafísica aristotélica de Tomás, o que parecer ser o
caso no Realismo Direto.

5. Conclusão

6. Referências bibliográficas

onde posso ver, ainda precisa de mais elucidação. 'Similitudo', como Tomás de Aquino a entendeu, com
base no uso comum em filosofia e teologia, poderia ter incluído, de uma forma ou de outra, um componente
causal que normalmente não associaríamos, hoje, à "semelhança". Mas o cerne disso ainda teria que ser
algum tipo de isomorfismo” (PANACCIO, 2001, p.25).

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