Você está na página 1de 8

André Saito Casagrande – n.

USP 8983311
FLF0268 – História da Filosofia Medieval I
Prof. José Carlos Estevão

Sobre a diferença entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento abstrativo e suas


consequências em Guilherme de Ockham.

I. Introdução

Guilherme de Ockham, filósofo inglês que viveu entre o final do século XIII e
início do XIV, é considerado um expoente de uma fase crítica da filosofia escolástica.
Phioteus Boehner1 traça essa distinção, chamando fase sintética aquela de sistematização
da filosofia grega, e incorporação de seus fundamentos à teologia católica. A fase crítica,
à qual pertence Ockham segundo essa divisão, consistiria na rejeição de alguns dos pilares
da filosofia grega, em especial da metafísica aristotélica.

Mesmo operando essa ruptura, Ockham o faz comentando, em diversas ocasiões,


obras do Organon aristotélico, além da Metafísica e da Física. A necessidade de enfrentar
o Filósofo, como Aristóteles é chamado pelos escolásticos, reforça a grandeza da
inovação trazida no pensamento do filósofo inglês, e ilustra a transição entre uma fase
sintética e uma fase crítica da escolástica.

O resultado dessa leitura de Aristóteles, por Ockham, é o distanciamento da noção


platônico-aristotélica de que a Ciência (ἐπιστήμη), no sentido forte que os gregos
atribuíam ao termo, trata dos universais. Para o autor medieval, não há universais senão
enquanto termos, ou conceitos.

Essa tese metafísica, radicalmente oposta à Teoria das Formas platônica e à


metafísica hilemorfista aristotélica, ficou conhecida posteriormente como nominalismo.
Essa nova metafísica, será nossa conclusão, é a consequência da epistemologia
ockhaniana, no centro da qual encontra-se a distinção entre conhecimento intuitivo e
conhecimento abstrativo.

1
William of Ockham (translated By Philotheus Boehner) - Philosophical Writings _ A Selection-Bobbs-
Merrill Company, Inc. The Library of Liberal Arts (1964).
O percurso, portanto, será o de apresentar o que Ockham entende por
conhecimento científico, para então chegar à noção de termo e à teoria da suposição, e
enfim às noções de conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo. Por fim,
demonstraremos como todo esse arcabouço teórico sustenta a formulação da metafísica
nominalista, em clara ruptura com o aristotelismo dos escolásticos anteriores.

II. A noção de conhecimento científico para Ockham

No Prólogo à exposição sobre o livro VIII da Física2, Ockham fornece as bases


para compreendermos aquilo que ele entende por conhecimento científico. Concordamos
com Boehner no sentido de que a concepção de Ockham não diverge, a princípio, daquela
de Aristóteles.

Ockham’s ideal of scientific knowledge is extremely high. He


knows that any cognition of a truth may be found in the various
sciences; however, his ideal of a strictly scientific knowledge is
the same as that developed by Aristotle in the Posterior Analytics.
According to Aristotle those propositions only are scientifically
known which are obtained by a syllogistic process from evident
propositions which are necessary, i.e. always true and never
false.3

Contudo, enquanto Aristóteles não faz uma distinção entre as proposições


enquanto atos do intelecto, distintos das coisas que eles significam, Ockham desenvolve
uma teoria do conhecimento baseada em termos. Para o filósofo medieval, o
conhecimento é de proposições cujos termos supõem pelas – ou “fazem as vezes de” –
coisas que eles significam, e não das coisas enquanto entidades.

Esses termos, inicialmente pensados como objetos ou conteúdos mentais,


posteriormente serão tratados por Ockham como atos do intelecto. Deste modo, podemos
sintetizar que ele entende por conhecimento científico a conclusão necessária obtida por
proposições evidentes e necessárias acerca atos do intelecto. Boehner observa, ainda:

... no statement of actual fact about this world is in this sense truly
a scientific statement.4

2
Idem, pp. 2 – 16.
3
Idem, p. xxiii.
4
Idem, p. xxiv.
Essa conclusão se faz clara na sequência dos argumentos de Ockham no Prólogo
à exposição sobre o livro VIII da Física, em que tratando das ciências naturais, em
particular a física, o filósofo diz:

Now the fact is that the propositions known by natural sciences


are composed not of sensible things or substances, but of mental
contents or concepts that are common to such things. Hence,
properly speaking, the science of nature is not about corruptible
amd generable things, nor about natural substances nor about
movable things, for none of these things is subject or predicate in
any conclusion known by natural science. Properly speaking, the
science of nature is about mental contents which are common to
such things, and which stand precisely for such things in many
propositions (...).
... A real science is not about things, but about mental contents
standing for things.5

Ou seja, se a ciência em sentido estrito é a de conhecimento de proposições, e as


proposições tratam de termos – esses conteúdos mentais ou, posteriormente, atos do
intelecto –, então é necessário concluir que não há ciência das coisas, mas tão somente de
termos. Daí Ockham deter-se na definição e categorização de termos – categoremáticos e
sincategoremáticos, de primeira e segunda imposição, primeira e segunda intenção,
conotativos e absolutos etc. Não cumpre discutir essas categorias aqui, bastando mostrar
que os termos são centrais à concepção de Ockham de ciência. Eles são os objetos, ou
melhor, sujeitos da ciência.

Sabemos, ainda, que a ciência lida com universais. Mas pelo que foi dito acima,
ela não lida com coisas, e sim com conteúdos mentais (ou atos do intelecto) que supõem
pelas coisas. Logo, universais não são coisas que existem na realidade, mas termos que
se aplicam conjuntamente a diversos termos singulares.

Resta saber, entretanto, o que exatamente são esses atos do intelecto que supõem
pelas coisas e, ainda, o que são essas “coisas” que causam esses atos do intelecto. Pois
parece, a princípio, que se há coisas produzindo atos do intelecto, então seria possível

5
Idem, pp. 12 – 13.
afirmar que não é sequer possível distingui-las do intelecto, e concluir que a ciência trata
das coisas mesmas.

Este não é o caso. Conforme vimos, a ciência lida com conclusões necessárias
obtidas por meio de um processo silogístico a partir de proposições evidentes e
necessárias. Por outro lado, o conhecimento dessas “coisas”, acerca dos quais os termos
supõem, é necessariamente contingente (conforme veremos abaixo). Logo, conheço
verdades contingentes acerca de singulares e, a partir delas, verdades necessárias. Ou seja,
a ciência não é a do conhecimento de coisas singulares, que conheço apenas
contingentemente, mas das proposições acerca dessas coisas singulares que obtemos por
meio do conhecimento intuitivo e abstrativo.

III. A distinção entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo

Tomás de Aquino, contra quem Ockham defende uma nova concepção


epistemológica, sustentava que o conhecimento ocorre por intermédio de uma espécie
sensível e uma espécie inteligível. Trata-se de uma visão complexa do processo cognitivo,
cuja relevância aqui é simplesmente o fato de que ele é mediado. A epistemologia de
Ockham, em radical oposição, afirma uma cognição imediata.
A cognição imediata se dá pelo conhecimento intuitivo. Ockham assim a define:

Intuititve cognition of a thing is cognition that enables us to know


whether the thing exists or does not exist, in such a way that, if
the thing exists, then the intellect immediately judges that it exists
and evidentely knows that it exists ...
... intuititve cognition is such that when one thing known by
means of it inheres as an accident in another, or is locally distant
from the other, or stands in some other relation to the other, then
non-complex cognition of these things gives us an immediate
knowledge whether a certain thing inheres or does not inhere in
another, or whether it is distant from it or not, and so for other
contingent truths...6

6
Idem, p. 26.
Conhecimento intuitivo ou, para evitar possíveis confusões com a noção forte de
conhecimento para Ockham, cognição intuitiva, é um contato epistêmico direto com as
coisas. Nas palavras de Eleonore Stump:

There is just direct epistemic contact between the cognizer and


the thing cognized. And that direct epistemic contact, which is not
mediated by any process or mechanism, is what intuitive
cognition is.7

Essa forma de cognição imediata necessariamente nos faz conhecer um objeto


singular. A existência ou não existência de um objeto, bem como seus acidentes (e.g. a
vermelhidão da maçã) é sempre referenciada a uma única coisa. Esse conhecimento do
singular produz no intelecto um termo que supõe pela coisa conhecida intuitivamente,
ainda que puramente mental – ou seja, sem palavras faladas ou escritas que o signifiquem.
Mas esse termo é um produto de um outro conhecimento, um que não me forneça
imediatamente o conhecimento acerca da existência ou não existência do objeto. Ou seja,
considerando que a cognição intuitiva me faz assentir acerca da existência ou da não
existência do objeto diretamente conhecido, um conhecimento que abstraia essa
perspectiva existencial não pode ser, ele também, cognição intuitiva. Trata-se da cognição
abstrativa, definida por Ockham como:

... that knowledge by which it cannot be evidently known whether


a contingent fact exists or does not exist. In this way abstractive
cognition abstracts from existence and non-existence; because, in
opposition to intuitive cogntion, it does not enable us to know the
existence of what does exist or the non-existence of what does not
exist.
Likewise, trhough abstractive cognition no contingent truth, in
particular none relating to the present, can be evidently known. 8

No entanto, é necessário admitir que o conhecimento evidente de contingentes é


possível (pois, olhando para uma maçã sei que ela existe e é vermelha). Logo, o

7
Stump, Eleonore. The Mechanics of Cognition: Ockham on Mediating Species, In The Cambridge
companion to Ockham / edited by Paul Vincent Spade. Cambridge University Press: 1999, p. 184.
8
William of Ockham (translated By Philotheus Boehner) - Philosophical Writings _ A Selection-Bobbs-
Merrill Company, Inc. The Library of Liberal Arts (1964), p. 26.
conhecimento evidente de contingentes é possível por meio da cognição intuitiva, e diante
dessa evidência produzo termos que supõem por eles. Esses termos, abstraídos da
existência ou não-existência da coisa intuitivamente conhecida, são objetos do
conhecimento abstrativo.
O conhecimento abstrativo se dá por um hábito do intelecto, uma repetição de atos
de cognição intuitiva acerca do mesmo objeto. Do mesmo modo, o conhecimento
intuitivo de objetos similares produz um hábito (conhecimento abstrativo) no intelecto
cuja consequência é a formulação de termos comuns a esses objetos. Nesse sentido, o
conhecimento intuitivo sempre precede o conhecimento abstrativo.

What is first known by such cognition is an extra-mental thing


which is not a sign. But everything oustide the mind is singular ...
Furthermore, the object precedes the act which is proper to it and
that comes first in order of origination, but only a singular thing
precedes such an act...
... I mantain that this cognition which is simple, proper to a
singular thing, and the first to be acquired, is an intuitive
cognition.9

Vemos, então, que o contato com as coisas se dá primeiramente pela cognição


intuitiva. Esse ato do intelecto já é, em si, um termo que supõe pela coisa. Ele é o sujeito
do conhecimento.
Conforme conheço intuitivamente diversas coisas, desenvolvo um hábito capaz
de rememorar e imaginar aquilo que inicialmente adquiri mediante o conhecimento
intuitivo. Faço isso sem considerar a existência ou não-existência daquilo de que lembro
ou do que imagino, por meio do conhecimento abstrativo. Vejo homens singulares e
eventualmente trato o termo homem, que supõem por um indivíduo, como um termo
comum aos homens singulares. Ele passa a supor por outra coisa, a saber, uma categoria
que engloba aqueles indivíduos singulares que conheci por meio da cognição intuitiva.
Operando as relações entre dois indivíduos singulares estão termos que não
supõem por nenhuma coisa extra-mental, pois a suposição pela coisa extra-mental é
inicialmente dada pela cognição intuitiva, que me faz conhecer os acidentes singulares e
a existência ou não existência do singular conhecido intuitivamente. As relações, por

9
Idem, p. 31
outro lado, são necessariamente comuns. Se não é possível conhecer senão singulares pela
cognição intuitiva, então os termos que supõem por relações de comunidade ou quaisquer
outras são dados pelo conhecimento abstrativo, e que não se referem a coisas extra-
mentais.
Logo, toda a proposição que lida com universais é produzida por um
conhecimento abstrativo, e se opera exclusivamente em relação a termos que supõem, por
sua vez, outros termos ou conteúdos extra-mentais, mas nunca diretamente em relação a
coisas extra-mentais. Até mesmo porque, para Ockham, o conhecimento intuitivo não é
proposicional.
Para concluirmos nosso trabalho, pretendemos lidar com as consequências dessa
distinção entre conhecimento intuitivo e abstrativo, a saber, o estatuto dos universais
segundo Ockham. Dado que existem conceitos universais, ou seja, nós os conhecemos de
alguma forma, mas que ao mesmo tempo eles não se referem a objetos extra-mentais,
necessariamente singulares, como Ockham os pensou?

IV. Conclusão

Conforme adiantamos, Guilherme de Ockham rompe com a tradicional


metafísica aristotélica que havia embasado a filosofia escolástica de seus antecessores. A
metafísica de Aristóteles se ocupa do Ser enquanto Ser, do universal necessário e que se
encontra, de algum modo, disperso nos particulares. Antes dele, Platão lidara com o
mesmo problema, por meio da Teoria das Formas e da noção de participação.
Ockham toma o caminho oposto, e embora não elimine a existência em geral dos
universais, nega a existência do universal para além da ciência enquanto proposicional.
Ou seja, ele desloca a noção de conhecimento de um realismo, uma relação de
correspondência necessária entre o conteúdo proposicional do intelecto e os objetos extra-
mentais, para uma relação de significação, de suposição.
Não é o mesmo dizer, por exemplo, que Ockham é um idealista, e que a teoria da
suppositio produz as mesmas consequências filosóficas de uma teoria da representação.
Não se trata de um relação de representação. Se trata de uma metafísica em que todas as
criações de Deus são contingentes, e só é possível conhecer imediatamente algo
contingente. O universal é produto de um processo cognitivo, de uma formulação de
termos que significam relações entre singulares. O universal é um nome.
Assim, por meio de uma teoria epistemológica que atribui o caráter de verdade a
um conteúdo proposicional que articula termos obtidos por um conhecimento intuitivo, a
princípio, e por um conhecimento abstrativo, posteriormente, Ockham desloca a questão
do universal da realidade para o universal enquanto ato do intelecto.

V. Bibliografia

GHISALBERTI, A., Guilherme de Ockham. Trad. de L. A. de Boni. Porto Alegre,


Edipucrs, [1972] 1997.

KARGER, ELIZABETH. Ockham’s Misunderstood Theory of Intuitive and Abstractive


Cognition, In The Cambridge companion to Ockham / edited by Paul Vincent Spade.
Cambridge University Press: 1999.

STUMP, ELEONORE. The Mechanics of Cognition: Ockham on Mediating Species, In


The Cambridge companion to Ockham / edited by Paul Vincent Spade. Cambridge
University Press: 1999.

WILLIAM OF OCKHAM (translated By Philotheus Boehner) - Philosophical Writings -


A Selection. Bobbs-Merrill Company, Inc. The Library of Liberal Arts: 1964

WILLIAM OF OCKHAM, “Seleção de obras [de Ph. Boehner]” in TOMÁS DE


AQUINO et al., Seleção de textos. Trad. de C. L. de Mattos. Os pensadores, VIII. São
Paulo, Abril, 1973 [etc.], pp. 339-404.

Você também pode gostar