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O QUE É A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL

1. A fenomenologia é uma corrente filosófica que exerceu muita influência na metade do século XX.
2) Surge com o filósofo alemão Husserl (1859-1938)
3) Husserl com a fenomenologia tenta reconstituir a vocação da filosofia que é sobretudo interrogar o que
expressa algo dinâmico.
4) O que é fenômeno:
4.1 Etimologia de fenômeno: vem da palavra grega phainomenon particípio presente de phainesthai que
significa aparecer. Aparecer carrega dois significados: ato de ocultar a realidade e manifestação ou revelação
da mesma realidade.
4.2 Nos dicionários:
- Dicionário Aurélio: “Tudo quanto é percebido pelos sentidos ou pela consciência; tudo o que se observa de
extraordinário no ar ou no céu”.
- Dicionário de filosofia de Abagnano: O mesmo que aparência. Nesse sentido o fenômeno é a aparência
sensível que se contrapõe à realidade, podendo ser considerado manifestação desta, ou que se contrapõe ao
fato, do qual pode ser considerado idêntico. (2007, p.510).
4.3 Na filosofia de Kant: (século XVIII): Fenômeno é o que não pertence ao objeto em si mesmo. É o que é
constituído pela relação que se tem com o sujeito. É inseparável da representação que o sujeito tem dele
através de categorias lógicas. Ou seja, o meu ver está determinado por categorias que estão no sujeito
como causa, relação, etc.. Não sei o que são as coisas são em si, mas apenas como elas aparecem para
mim.

4.4 Fenômeno para Husserl (séc. XIX e XX): Sentido diferente de Kant. Fenômeno começou a indicar
aquilo que aparece ou se manifesta em si mesmo, como é em si, na sua ESSÊNCIA. Mas para isto exige
a reflexão filosófica, não é uma manifestação natural da coisa.

5. Então concluindo há três sentidos para o termo fenômeno segundo o dicionário de Abagnano:
5.1 Aparência pura e simples (ou fato puro e simples), considerada ou não como manifestação da realidade
ou fato real;
5.2 Objeto do conhecimento humano, delimitado pela relação com o homem - KANT
5.3 Revelação do objeto em si - HUSSERL

6) O ponto de partida da fenomenologia de Husserl é a relação entre sujeito e objeto, ou seja, como se
constitui o conhecimento. Uma das problemáticas mais importantes da História da Filosofia.
7) Como se constitui na modernidade esta relação? Podemos dizer que há três vertentes:

1ª) Realismo: primado do objeto em si mesmo apreendido pelos sentidos e depois registrado pelo intelecto.
Para o realista a representação que fazemos das coisas está subordinada aos objetos em si mesmos. O ponto
de partida são os objetos ou as coisas mesmas. As coisas são apreendidas pelos sentidos e depois registradas
pelo intelecto. Exemplo de filósofos realistas: Aristóteles, Locke, etc...
2ª) Idealismo: há a primazia do sujeito, da mente, das idéias que se constituem como ponto de partida para a
reconstituição de um acordo entre as coisas e a mente. Acordo ou correspondência que se estabelece a partir
de uma análise das idéias que me fazem chegar a uma certa conformidade entre as idéias e as coisas.
3ª) Filosofia de Kant: procura superar este impasse entre realismo e idealismo. Institui um meio termo entre
o sujeito e as coisas. Deixou de privilegiar um ou outro. Buscou uma síntese entre os elementos subjetivo e
objetivo. Concluiu pela relatividade do conhecimento já que o conhecimento estruturando-se por via do
sujeito, através de mecanismos lógicos, se constitui de forma relativa ao sujeito. Não se poderia constituir
sem a contribuição fundamental do sujeito. A realidade existe mas só é apreendida a partir de categorias que
provém do sujeito. A partir desta concepção introduz a idéia de FENÔMENO que expressa a idéia da
realidade não como ela poderia ser em si mesma (não sabemos como ela poderia ser em si mesma) mas tal
como ela aparece a nós, ao sujeito do conhecimento. Aparece condicionada por determinadas estruturas
lógicas da nossa mente que Kant chama de ELEMENTOS TRANSCENDENTAIS. Transcendentais porque
estão antes da nossa experiência com o mundo e que condicionam esta experiência dando os fatores para sua
organização. Não há objeto sem comprometimento com o sujeito, há correlação entre sujeito e objeto. A
realidade, o objeto é o fenômeno apreendido pela consciência, pelo sujeito.
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9. Husserl critica Kant e todas as teorias constituídas a partir deste filósofo. Contra Kant, Husserl afirma que
não há a coisa em si (noumenon), o incognoscível. Tudo o que existe é fenômeno que é a presença real das
coisas diante da consciência. O fenômeno não está em mim, mas diante de mim. É a apresentação de um
objeto para a consciência. É ele que determina essa consciência como sendo percepção de determinado
objeto. O fenômeno determina também o modo com o objeto é apresentado à consciência, sob que aspecto
ele nos é dado. Exemplo: o vencedor de Austerlitz e o vencido de Waterloo, referem-se ao mesmo
personagem: Napoleão. O mesmo acontece em relação a um objeto qualquer. É apenas um aspecto do objeto
que vem à nossa presença, um aspecto que é variável e dependente de um ponto de vista. Por exemplo uma
árvore. O modo de doação da árvore é distinto se a percebo da janela ou do jardim, segundo um ângulo ou
outro. Não existe a coisa mesma independente de um ponto de vista unilateral e variável através do qual ela
se apresenta a alguém. Quando vario a minha perspectiva subjetiva sobre a árvore, o que obtenho é outra
perspectiva igualmente subjetiva sobre algo: nunca arvore me será dada sem a prisão a um ponto de vista. O
objeto intencional será a unidade sintética de seus múltiplos modos de doação ou fenômenos. Toda
consciência é consciência de um objeto e reciprocamente de que todo objeto é objeto para uma consciência.
Mas o aspecto dado reenvia ao aspecto não dado. O aspecto dado envia aos não dados. Fenômenos não são
somente as coisas materiais ou naturais mas também as coisas puramente idéias, ou seja, que existem
somente no pensamento. Fenomenologia é a DESCRIÇÃO de todos os fenômenos, ou ESSÊNCIAS de todas
estas realidades: materiais, naturais, ideais, culturais.
Husserl detectou na filosofia de Kant e em outras um certo desequilíbrio na relação entre sujeito e objeto,
entre a consciência e as coisas. Com isto as coisas perderiam a sua realidade, a sua autonomia neste processo
de apreensão. Vê uma contaminação das coisas pelo sujeito. Haveria uma tal adaptação das coisas pelo
sujeito que elas não mais manteriam uma realidade própria. Ou seja, o sujeito projetaria nas coisas vários
componentes quer de ordem lógica, psicológica, social e toda esta projeção que fazemos sobre as coisas
contamina-as. De tal forma que colhemos do mundo, das coisas aquilo que lá nós colocamos.
10. Então propõe um método de conhecimento de tal forma que a nossa relação com as coisas se torne mais
autêntica, mais verdadeira. Propõe a volta às coisas mesmas no processo de conhecimento, propõe recuperar
a realidade do mundo, a realidade das coisas.
- Para que tal aconteça é necessário antes de tudo separar cuidadosamente a nossa consciência, como sujeito
do conhecimento, desta carga naturalista que costuma estar depositada nela. Depois desta separação podemos
rearticular o modo pelo qual a consciência se vincula às coisas. É a tentativa de purificar a relação entre o
sujeito e o objeto.
- Com isto não preciso me envolver com o impasse entre a posição realista e a idealista como se o
conhecimento fosse sempre uma competição entre a consciência e as coisas para ver qual prevalece na
constituição da objetividade. Esta competição é uma maneira ruim, inadequada e que prejudica o processo de
conhecimento. É necessária uma relação mais equilibrada entre as instâncias subjetiva e objetiva.
- Uma vez purificada a consciência dos amálgamas naturalistas eu percebo o que deveria ser sempre óbvio.
Quando falo em consciência, procuro definir o que seja consciência, eu noto que consciência é sempre
consciência de alguma coisa.
- Esta própria relação entre consciência e as coisas já me permite afirmar que não posso definir a consciência
fora da relação com as coisas, ela não é nada fora desta relação. Não é uma coisa que se opõe a outras coisas
e nem substância. Não é um fato observável. Consciência é um modo de o sujeito visar, entender o mundo. É
um MOVIMENTO de olhar, visar as coisas. Puro ato. É uma FUNCIONALIDADE, o ato de ver, é o ato de
constituir ou criar as ESSÊNCIAS que são SIGNIFICAÇÕES, SENTIDOS.
- Não corro mais o risco de as coisas serem assimiladas pela consciência ou que o sujeito seja assimilado
pelas coisas. A apreensão mantém a separação: de um lado a consciência, este MOVIMENTO de olhar, de
visar as coisas. De outro lado as COISAS que, para se tornarem objeto da consciência e na medida que se
tornam objeto da consciência, é preciso que elas permaneçam com uma realidade própria, com um autonomia
própria.
- Este tipo de relação Husserl chama de INTENCIONALIDADE (palavra que recolhe da filosofia medieval e
usa em um sentido muito próprio). Intencionalidade é o modo como a consciência visa, PERCEBE as coisas.
Ter intenção significa visar as coisas, olhar as coisas dando-lhes SIGNIFICAÇÃO. Quando digo “tenho
consciência de alguma coisa” este “de” não significa que esta coisa se tornou minha e sim que sou consciente
dela na medida em que ela continua existindo fora de mim. A consciência não se encarna nas coisas. Dá
significado a elas mas permanece diferente delas. A intencionalidade revela o lado ativo da consciência que
não encontramos na filosofia de Descartes (racionalismo) nem da de Locke (empirismo). Nos dois casos a
consciência ou subjetividade só entra em cena como uma instância essencialmente passiva. A
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intencionalidade será para Husserl uma fenômeno da ordem da representação. Intencionar é tender por meio
de determinados conteúdos dados à consciência, a outros conteúdos não dados. Existe intencionalidade
sempre que, através de um dado, nós visamos algo não dado, sempre que uma certa presença exprimir uma
determinada ausência.
- Esta concepção traz como conseqüência uma alteração muito profunda na forma como se compreende a
relação entre INTERIORIDADE e EXTERIORIDADE porque a relação entre sujeito e objeto sempre foi
dependente desta. De um lado o sujeito, de outro o objeto. De um lado o interno com suas idéias, categorias
(Kant) e de outra o externo com o conjunto das coisas. Quando Husserl mostra que esta interioridade, ou
seja, a consciência do sujeito, não tem esta dureza, esta rudeza quase material como costumava ser
concebida, pelo contrário algo leve, que se projeta na direção das coisas, o conhecimento da exterioridade
não exige que o sujeito venha a abdicar de sua interioridade.
- este sujeito, o ato de conhecer, Husserl o chama de EGO (eu) mas não é a substância pensante de Descartes.
- Já que há sujeito de um lado, objeto de outro, ou seja, se há uma diferença eu não posso pretender que o
sujeito seja dotado de uma objetividade tal que eu possa compará-o às próprias coisas. Tem que ter uma
natureza diferente.
- Então, reafirmando, trata-se de um VOLTAR ÁS PRÓPRIAS COISAS. É a distinção muito nítida entre a
consciência e as coisas que permite a Husserl manter a autonomia das coisas em relação à consciência.
- O conhecimento, ou seja, o ato de eu dar ao mundo um caráter inteligível, se dá portanto no encontro entre
a consciências e as coisas. É esta relação bipolar que constitui o verdadeiro conhecimento . Nem a
consciência o constitui sozinha, nem as coisas do mundo.

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FONTE PRINCIPAL: Palestra "Fenomenologia e Existencialismo" do filósofo Franklin Leopoldo e Silva em


Café Filosófico da TV Cultura. Traça um painel sobre a fenomenologia discorrendo sobre a teoria e seu
fundador Edmund Husserl (1859-1938). Segundo o filósofo a fenomenologia, graças à sua característica
renovadora na análise do pensamento, ultrapassou a simples elaboração de uma doutrina para transpor os
limites da filosofia como disciplina. Além da importância histórica da proposta fenomenológica, o
palestrante aponta Sartre (1905 -1980) como um continuador da fenomenologia, graças à sua apreensão
profunda e abrangente da reflexão husselriana.

OUTRAS FONTES:

- CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, Editora Ática, 2000, São Paulo

A FENOMENOLOGIA DE MERLEAU-PONTY E AS CIÊNCIAS HUMANAS


(Revista Mente, cérebro e Filosofia , p. 78-81)

Luiz Damon Santos Moutinho

O surgimento das modernas ciências do homem levantou um problema ao qual tanto cientistas quanto
filósofos foram sensíveis: afinal, como pode o homem ser, a um só tempo, sujeito e objeto de conhecimento?
Seu olhar não é demasiado carregado de prejuízos, de valores, de interesses, de modo que, no fundo, o que
ele chama de "homem" não é senão o resultado carregado desse olhar? Não falta aí, a esse conhecimento,
uma crítica de si mesmo, uma desconfiança em relação a si?
Essa crítica não é, no limite, impossível, já que é sempre o homem o sujeito de conhecimento e,
portanto, cada passo nessa linha não é senão a troca de um prejuízo por outro? Esse "objeto" não perde assim
toda a consistência, toda a objetividade, e esse conhecimento não se torna, por isso mesmo, apenas uma ética,
não uma verdadeira ciência? Como pode o homem conhecer-se a si mesmo? Como pode traçar a linha de
demarcação - a extensão, os limites, a natureza desse conhecimento?
Merleau-Ponty debateu todas essas questões em sua obra. Deu-lhes uma dimensão e um alcance
inéditos, vendo nelas não simples questões localizadas, mas signos de nossa modernidade - mais ainda:
signos capazes de pôr em questão essa modernidade que se iniciou lá atrás, no século XVII. Afinal, foi com
Descartes que teve início uma definição de objeto e de sujeito que pautou e ao mesmo tempo foi contestada
por essas discussões. Tudo se passa como se elas gestassem uma nova modernidade, como se se redefinisse
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por meio delas uma nova ontologia, como se as ciências humanas carregassem em si a exigência dessa nova
ontologia - a exigência de uma reforma de nosso entendimento. São essas conseqüências - a ontologia, a
reforma do entendimento - que Merleau-Ponty procura tirar do debate em torno das ciências humanas. Seu
interesse por elas não é mera curiosidade, elas não são um simples domínio inconseqüente do saber; elas
impõem uma tarefa à filosofia. Vejamos como ele as tematiza.
No texto As ciências do homem e a fenomenologia, o filósofo nota a dificuldade da objetivação, cuja
conseqüência mais evidente é sua autonegação. Afinal, uma objetivação estrita, que torna todo
comportamento humano, todo pensamento, um puro objeto, implica que esse objeto só possa ser explicado
por causas exteriores a ele; ele é então uma variável dependente sem valor intrínseco, mero fenômeno
residual. O modelo é o das ciências da natureza, mais especialmente, de uma física que despe a matéria de
qualquer finalidade e a pensa como pura exterioridade, como pura inércia, cujos movimentos remetem a
causas externas. Essa "ontologia", a de um puro objeto que nada tem de "subjetivo", foi construída no século
XVII, a partir de Galileu e Descartes. O movimento é bem conhecido: a física das quantidades, da
mensuração, do cálculo, a física de "língua matemática", exige uma coisa extensa que tenha apenas
propriedades físicas mensuráveis, as chamadas "qualidades primárias": movimento, figura, espaço, tempo
etc. Todo o feixe de qualidades sensíveis que encontramos no objeto é relegado à interioridade do sujeito.
Por exemplo, a cor, tal como a vemos, é um evento subjetivo que resulta de nosso encontro com a matéria e
por isso habita apenas nossa interioridade. Assim, sujeito e objeto são exclusivos um do outro: de um lado,
um exterior extenso, pura matéria, e, de outro, um interior inextenso, de imagens, idéias, sensações etc.
Eis aqui o "dualismo cartesiano" que, para Merleau-Ponry, marcou todo o pensamento moderno.
Afinal, é esse modelo que está por trás das ciências humanas dos pioneiros: ao longo do século XIX, eles as
conceberam com base no modelo das ciências naturais, como se isso devesse assegurar, por si só, a
cientificidade buscada pelas jovens ciências. Daí porque, segundo Foucault, o modelo então vigente tomava
o homem como homo natura. Os fenômenos psíquicos eram reduzidos a fenômenos naturais (físicos, físico-
químicos, biológicos), a variáveis dependentes deles, explicáveis, portanto, com base em causas externas a
eles.
Se é esse o pano de fundo, se é essa a ontologia que alimenta as ciências humanas, é preciso notar, no
passo dado por elas, uma grave diferença em relação à ontologia do século XVII: é o que essa ontologia não
reduz o ser do sujeito, da alma, do pensamento, em suma, a "interioridade" do sujeito, a simples efeito. Há
ali um terceiro termo, o "infinito positivo", para assegurar não apenas o valor ontológico da idéia, mas a
correspondência entre ela (no caso da idéia do entendimento) e a coisa em si. As ciências humanas, por sua
vez, reduzem o próprio "subjetivo" a efeito: elas conservam um dos lados da moeda, o objeto não-
subjetivo, e rejeitam o outro, ou melhor, tornam-no um efeito do primeiro. É por isso que, seguindo um
modelo de análise que Husserl realizara nos Prolegômenos às investigações lógicas, Merleau-Ponty nota
que as ciências humanas terminam por desenraizar seus próprios fundamentos:

Se os pensamentos e os princípios diretores do espírito são, a cada momento, apenas o


resultado das causas exteriores que agem sobre ele, as razões pelas quais eu afirmo alguma
coisa não são em realidade as verdadeiras razões de minha afirmação. (Parcours deux, pág.
50)

Assim, os postulados (o do objeto, o da causalidade etc.) são marcados de dúvida pelos pró prios
resultados da pesquisa e o termo da investigação é um ceticismo acerca de si: se o homem se concebe
plenamente passivo, é essa concepção mesma que é posta em xeque e termina por se negar. Verdade que o
pesquisador toma o outro como objeto, e é sempre do outro que se trata, mas é justamente contra ele
mesmo que é necessário apontar a crítica.
Segue-se daí o inverso, a necessidade de virar a moeda? Historicamente, nas últimas décadas do
século XIX, houve uma reação ao naturalismo das ciências humanas. É então que a atividade humana entra
em cena: o sentido não é resultado de processo mecânico, mas produção humana, produção que se
cristalizou no tempo; se o homem quer conhecer-se a si mesmo, deve então, segundo uma dessas versões,
voltar-se para sua própria história. Ele já não é tomado, nota Foucault, "no nível desse denominador
comum que o assimila a todo ser vivente, mas no seu próprio nível, nas condutas nas quais se exprime, na
consciência em que se reconhece, na história pessoal através da qual ele se constituiu". (Problematização
do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise, pág. 127) É verdade que, entre as muitas ciências "psi" que
tomam o sentido como fio de investigação, nem todas admitiriam vinculá-lo a uma "atividade humana",
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ligando esse sentido a uma produção subjetiva; é o caso da Psicanálise, examinado adiante. No entan to,
para além das divergências, um ponto parece uni-las: o ultrapassamento do nível da natureza. E é por isso
que, ainda que em diferentes versões, todas elas trazem ao primeiro plano, com o tema do sentido, a
questão mais ampla e que interessa mais de perto ao filósofo, a questão do sujeito. Em alguma medida,
todas elas põem em relevo, mais do que o naturalismo, o esta tuto problemático da subjetividade.
Para Merleau-Ponty, a sobrevivência da ontologia cartesiana se exprime também em sua versão
subjetivista. Essa versão não é das ciências humanas, mas de uma investigação filosófica que, fazendo um
recuo reflexivo por relação ao conhecimento, pergunta-se por suas condições de possibilidade. E é então
que um sujeito desmundanizado aparece, um sujeito transcendental distinto do sujeito empírico de que
tratam as ciências humanas. E é para ele que converge o conjunto daquelas condições formais de
possibilidade. Kant e Husserl, de maneiras diferentes, seriam os exemplos clássicos desse gênero de
investigação.
Ora, ao debater essa versão, Merleau-Ponty não pretende apenas mostrar, contra os idea lismos
kantiano e husserliano, a inerência do sujeito ao mundo - ele pretende ainda mostrar um outro tipo de
relação entre filosofia e ciências, particularmente entre filosofia e ciências humanas. Tudo se passa como
se, do lado da filosofia, herdeira direta da versão subjetivista da ontologia cartesiana, a possibilidade do
recuo reflexivo em direção a um puro sujeito, desencarnado e desmundanizado, fosse interditada - o que,
para Merleau-Ponty, a seqüência mesma da obra de Husserl já revelaria. Um sujeito existencial,
mundanizado e situado, um ser-no-mundo surge então como o pólo intencional de uma relação que é
também, embora em estilo diferente, o tema das ciências humanas. É essa aproximação entre o filósofo e o
psicólogo (ou, mais geralmente, entre o filósofo e os temas da cultura) a primeira conseqüência da crítica
do idealismo.
A crítica do objetivismo é complementada então por essa outra, pela crítica do subjetivismo, e
ambas são as duas faces de uma mesma moeda, a ontologia cartesiana.
As críticas recusam-se uma à outra. Se o objetivismo nos diz que o pensamento é efeito de
mecanismos psicológicos, sociais ou históricos, que toda opinião é o resul tado da ação combinada dessas
condições exteriores, então é a filosofia que perde sua justificação:

Como pretender ainda, como filósofo, que se detém verdades, e verdades eternas, quando é
manifesto que as diferentes filosofias, recolocadas no quadro psicológico, social ou
histórico ao qual pertencem, não são nada mais que expressões destas causas exteriores?.
(Parcours deux, pãgs. 50-51)

A pretensão filosófica de alçar àquelas condições formais do saber, sem vínculo com a situação
concreta do filósofo, portanto desenraizada de quaisquer condições psicológicas, sociais ou históricas,
aparece então como simples ilusão - aos olhos desse objetivismo, como sobrevivência da metafísica que o
avanço do saber deve pôr abaixo. Quanto mais o saber progredir, mais ele mostra aquelas condições e,
conseqüentemente, menos espaço resta para a alma; esse postulado sobrevive apenas circuns tancialmente,
isto é, enquanto a ciência não tiver expandido todos os seus ten táculos sobre o homem e reduzido a pó esse
resíduo da religião, a alma. O projeto aqui é o de um determinismo universal e a alma é o último reduto, o
centro da cidadela a ser conquistado.
A crítica inversa é feita pelo filósofo segundo o modelo exposto acima: o objetivismo entregue a si
mesmo redunda em ceticismo . A razão disso é que ele é cego, sem intuição; vai à experiência privando-se
dos meios pelos quais ele pode pôr em questão o arranjo mesmo dessa experiência . O objetivista crê que
flagramos as coisas em sua nudez, que não há, entre nós e elas, nenhuma distân cia; é essa distância, esse
recuo mínimo pelo qual dispomos o mundo, que o objetivista recalca. O mundo nos assedia e nos cerca,
mas somos testemunhas dessa presença, sem o que não haveria presen ça a ninguém; logo, não haveria
presença alguma. Ele age sobre nós, mas não na forma de um estímulo ao qual responderíamos
automaticamente; esse "estímulo" mesmo pertence a um campo que pres supõe, por sua vez, uma
organização: é no interior desse mundo organizado, des se mundo "humano" que o estímulo age . Antes que
unilateral, a relação é circular: do mundo a nós, de nós ao mundo. Não é no espaço da física, no espaço
clássico, homogêneo e geométrico, que habita mos; é no espaço de experiência, nesse que compomos pelo
nosso corpo em uma espacialização continuada.

Tomemos o exemplo simples da sensação, tratado por Merleau-Ponty na in trodução à Fenomenologia da


percepção: que seria a sensação? Um estímulo pontual, elementar? Assim pretende uma das formas de
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objetivismo, aquela que, para evitar toda confusão, começa por dividir o objeto a ser conhecido em partes
tão simples quanto possível. A sensação seria o elemento simples. No entanto, a mais simples das nossas
percepções de fato, nota o filósofo, envolve relações e não elementos absolutos.

Se figurarmos um único ponto, nós o figuraremos em um espaço, sobre um fundo homogêneo a partir do
qual ele se destaca; logo, ele já é figura sobre um fundo, ele é parte desse todo relacionado, não um
elemento simples e absoluto. Por que então o objetivista julga que, de direito, ele pode compor nossa
percepção em elemento simples? Há aqui um pressuposto que anima essa decomposição: o da plena deter-
minação.

Se eu tentar traçar os limites meu campo visual, por exemplo, não terei uma linha demarcatória nítida; no
entanto, o objetivista julga que, de direito, posso traçá-la, e ele assim julga porque compõe meu campo visual.
Anima-o pretensão de conhecer meu campo visual plenamente, de determiná-lo à exaustão, e, para isso, a
decomposição é um passo: é a partir dela que posso suprimir a confusão de minha percepção de fato. Confuso é
aquele todo relacionado, aquele conjunto interligado, esse que não podemos definir, que escapa à precisão. Ora,
a passagem do confuso ao distinto é a passagem da indeterminação constitutiva da nossa vida à sua plena
determinação, da percepção ao seu conceito, da experiência sensível a uma idéia. Quem o vê que essa
passagem nada mais faz que anular o sujeito, aquele cuja simples presença traz ao mundo a confusão? Quem
não vê que o recalque do subjetivo é a condição para o conhecimento claro e e distinto? É esse recalque a
marca do objetivismo e é ele que, abandonado a si mesmo, se consuma no ceticismo.

Mas, por que, afinal, ceticismo? O passo decisivo dado pelo crítico do objetivismo é o seguinte: ele afeta de
ceticismo o pensamento que pretende que todo pensamento é resultado de causas exteriores, e, se ele assim o
faz, é porque o pensamento é, para esse crítico, alguma coisa e não nada. Ou melhor: porque, para ele, uma tese
qualquer não pode, sem prejuízo, abstrair de sua formulação, porque o caminho que vai até o conhecido é parte
do conhecimento, porque, em suma, do conjunto total das condições de conhecimento, faz parte o próprio
sujeito de conhecimento.

Daí porque Merleau-Ponty afirma: "Há uma verdade definitiva no retorno cartesiano das coisas ou das idéias ao
eu". (Fenomenologia da percepção, pãg. 494)

Mas isso não significa uma retomada do sujeito puro, desse espírito que só está seguro da verdade porque seus
enunciados exprimiriam, "Não algumas condições naturais ou históricas exteriores a ele, mas um contato direto
e interior do espírito com o espírito, uma verdade `intrínseca"'. (Parcours deux, p. 51) Uma verdade que as
ciências humanas, em sentido contrário, mostrariam ser impossível, já que o espírito é, segundo elas,
exteriormente condicionado . Não se trata, para Merleau-Ponty, de uma retomada do sujeito puro: a crítica ao
objetivismo recoloca em questão o pólo subjetivo, certamente, mas esse pólo parece antes o de um ser-no-
mundo do que um sujeito formal. Ele é, não o lugar da coincidência de si a si, não um espírito em contato
consigo, mas uma operação atual pela qual temos experiência das coisas.
Não se trata, portanto, de interiorizar o mundo, de reduzi-lo à representação que eu tenho dele; trata-se
antes de perspectivá-lo, de dizer que toda abstração, mesmo a abstração lógica, implica essa perspectiva - e ela
implica não quando eu penso nela, porque eu ainda a pensaria como dado, mas porque dela eu posso traçar a
gênese, isto é, porque ela é produzida. É essa produção (produção de toda essência, de toda abstração) que
torna o sujeito uma questão incontornável. O que singulariza a posição de Merleau-Ponty é que essa questão
não pode ser resolvida apenas no nível da filosofia, ainda que a filosofia se liberte de toda forma de idealismo.
Justamente porque o que está em pauta agora é um ser-no-mundo, a esfera de atuação das ciências humanas
está em relação de continuidade com a da filosofia (isso não vale apenas para as ciências humanas, bem
entendido, mas para a esfera mais geral da cultura). O próprio desenvolvimento das ciências humanas, por seu
lado, as levou a superar o objetivismo de primeira hora - assim como a crítica merleau-pontiana do idealismo a
levou para além do subjetivismo. Ambas as críticas representam, cada uma por um lado, uma crítica da
ontologia cartesiana, a qual, como sombra projetada, se estende por todo o pensamento moderno.
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