Você está na página 1de 15

Divulgação

Jimmy’s Hall, o novo filme de Ken Loach Pág. 11

Circulação Nacional Uma visão popular do Brasil e do mundo R$ 3,00

Ano 13 • Número 650 São Paulo, de 13 a 19 de agosto de 2015 www.brasildefato.com.br

Para além das panelas


Setores golpistas usam mentiras na internet, principalmente
por meio das redes sociais, para inflar protesto anti-Dilma.
Essa tem sido a estratégia dos que afirmam enfrentar a
corrupção enganando a população com mentiras absurdas.
Enquanto esses setores tentam de todas as formas derrubar
a presidenta Dilma, os movimentos sindical e sociais
articulam atos em defesa da normalidade democrática.
“Nada justifica um golpe no Brasil”, afirma a psicanalista
Maria Rita Kehl. Págs. 6 e 7

ISSN 1978-5134
“Amor e ódio” entre LGBT Morre general torturador
e moradores de rua Pág. 9 no Chile de Pinochet Pág. 14
Guilherme C. Delgado Beto Almeida Altamiro Borges
Apropriação financeira Lições do Mais Médicos Aécio, o “arregão”
Há que se reconhecer o óbvio, de O governo não organiza uma mídia Sob o comando do cambaleante Aécio
que enquanto tais motivos da avidez própria capaz de divulgar ações como Neves, o PSDB decidiu utilizar a rede
financeira por proteger seus ativos, o Mais Médicos, hoje com aprovação nacional de rádio e tevê para convocar
socializando perdas, prevalecerem na de 95% do povo. Uma contradição as marchas golpistas de 16 de agosto.
gestão da crise econômica, a crise se com as pesquisas que apontam queda No entanto, existe a desconfiança de
prolongará indefinidamente. Pág. 2 de sua popularidade. Pág. 3 que cambaleante é um “arregão”. Pág. 3
2 de 13 a 19 de agosto de 2015

editorial

Defesa da democracia e luta antiimperialista


A SEMANA PASSADA deixou graves
questões a serem pensadas.
sa a brandir o porrete do “Domínio
do Fato”, introduzido em nossa juris-
Nossas lutas hoje, e omisso frente aos desmandos jurí-
dicos da atual Lava Jato, permitindo
to das guerras que os EUA promo-
vem mundo afora, caminham as su-
A primeira diz respeito à posi-
ção assumida pela direção nacional
prudência na versão do não menos
truculento, doutor Joaquim Barbosa,
devem se travar inclusive, que o dirigente da PF vies-
se a público afirmar que a área onde
as empreiteiras, para reconstruir
o que antes bombardearam, arra-
do Partido dos Trabalhadores (PT) e
anunciada pelo seu presidente, Rui
quando presidente do Supremo Tri-
bunal Federal (STF).
em duas frentes: se inclui a Lava Jato é totalmente in-
dependente da ação do Ministério da
saram, destruíram. E aqui temos
(nós, a esquerda) um nó a desatar:
Falcão, de não se manifestar a res- Segundo porque, ao aceitar as jus- pela garantia das Justiça. Sim, além de inexplicável, é se na questão do petróleo, a sua de-
peito da prisão preventiva (sem tem- tificativas e argumentos do doutor absolutamente condenável. É indis- fesa diz respeito à luta pela sobera-
po determinado) e transferência de Moro, coonesta a transgressão da le- nossas conquistas pensável botar ordem na casa, e exi- nia do nosso território e nossas ri-
Brasília (onde cumpria prisão domi- galidade democrática, segundo a gir o cumprimento dos instrumentos quezas (a Petrobras é estatal), a
ciliar) para Curitiba (PR), do ex-mi- qual todas as pessoas são inocentes democráticas e pela legais desta República. disputa entre as empreiteiras dos
nistro e ex-presidente do partido, Jo- até serem julgadas. Tudo o que já escrevemos acima, EUA e as brasileiras já se coloca no
sé Dirceu, por decisão do juiz federal, Ou seja, frente ao ex-ministro Jo- defesa da nossa porém, não passa da superfície das quadro das disputas interimperia-
Sérgio Moro. sé Dirceu (ou a qualquer dos presos questões em jogo – o que pode criar listas – ainda que imperialismo X
O argumento apresentado pelo di- da Operação Lava Jato ou qualquer soberania uma cortina de fumaça que esconda subimperialismo. E agora?
rigente petista para justificar a omis- investigação e processos), ninguém outras maquinações ainda mais si- 3. Além disto, a questão do urâ-
são do partido é singela: esta prisão pode se posicionar a partir de gos- nistras. nio enriquecido, e o nosso projeto de
do ex-ministro diz respeito a uma tar ou não gostar; ser companheiro Sejamos claros: submarino nuclear levaram à prisão
acusação de desvio de dinheiro para ou confrade, inimigo ou adversário. 1. O interesse dos EUA pelo nos- – com os mesmos procedimentos ju-
fins pessoais e não partidários. O que está em jogo – daí a gravidade so petróleo – do que eles não abrem rídicos usados contra o ex-ministro
Ora, essa justificativa é ainda mais dessa prisão – é a garantia de meca- Mas, se até aqui nos detivemos no mão. Não foi por acaso que tudo te- José Dirceu, empreiteiros e outros –
perversa que a decisão. nismos fundamentais da nossa de- PT, há também o que cobrarmos do ve início na Petrobras. Entendem os o almirante Othon Luiz Pinheiro da
Primeiro porque, ao afirmar a de- mocracia – e este é o grande pecado governo do PT: a absoluta omissão EUA que o Pré-Sal é deles. E este é Silva, presidente licenciado da Ele-
cisão, pressupõe que a denuncia do dos dirigentes petistas que concor- do ministro da Justiça, doutor Edu- o jogo do PSDB: entregar o Pré-Sal. tronuclear e cientista reconhecido in-
juiz Moro é realmente procedente – daram em se omitir frente ao caso. ardo Cardozo. O senador tucano José Serra, quan- ternacionalmente.
quando na verdade estamos frente a Aliás, com esta decisão “aloprada”, Explicamos: como recentemen- do derrotado nas eleições de 2009, Ou seja, nossas lutas hoje, devem
mais uma tramoia do Judiciário que eles estão entregando suas próprias te comentou em conversa informal já havia se comprometido com a em- se travar em duas frentes: pela ga-
se fundamenta apenas em declara- cabeças para serem usadas (sem cul- um jovem economista, não é possí- presa estadunidense Chevron, em lhe rantia das nossas conquistas demo-
ção obtida através do instituto jurí- pa ou julgamento) pelos Moro, Bar- vel entender como o ministro Cardo- entregar parte do Pré-Sal. Hoje, to- cráticas (por exemplo, que os pro-
dico da Delação Premiada, forneci- bosa e outras figuras responsáveis zo, que teve uma precisa e rápida in- dos conhecem seu projeto de lei no cessos obedeçam às nossas leis) e pe-
da – no caso – por outro réu, senhor por produzir material para os espe- tervenção junto à Polícia Federal no Senado, nesse mesmo sentido. la defesa da nossa soberania, contra
Milton Pascowitch. Assim, a partir da táculos midiáticos indispensáveis à sentido de por fim à operação Satia- 2. A disputa do mercado interna- a ingerência do imperialismo na defi-
Delação Premiada, o juiz Moro pas- ação dos golpistas. graha, se mantenha hoje impotente cional com as empreiteiras. No lei- nição do nosso destino.

opinião Guilherme C. Delgado crônica Elaine Tavares

Apropriação Laerte
Escolhendo o paraíso
financeira EU TIVE A VISÃO DO INFERNO. E como sou muito religiosa,
aquilo me bateu feio. Era sábado, final de tarde. Hora de tomar
um cafezinho com leite e fazer bolinhos de chuva para acompa-

na crise
nhar. Odeio cozinha, mas o dia, frio e pálido, estava pedindo. As-
sim, cheia de boa vontade fui fazer a magia da mistura dos sa-
bores. Receita sobre a mesa, ovos, farinha, fermento, banana e...
putz...faltou o açúcar. Aí não dava mais para não fazer. A boca já
salivava antecipando o gosto. O jeito era descer e comprar o da-
HÁ PROCESSOS econômicos que se nado. Morava a dois passos de um grande supermercado. Não
realizam de forma sub-reptícia, prin- gostava muito de comprar ali. Evitava a mais não poder. Sempre
cipalmente em momentos de crise preferi o pequeno comércio, aonde o dono me chama pelo nome
econômica e política como o atual. É e sabe do meu gosto. Aonde a menina que atende sorri para mim
o caso da apropriação financeira ex- e diz que o pão está bem pretinho, como eu gosto. Essas coisas
traordinária, que realizam, de for- de quem se conhece. O olho no olho. Mas, afinal, era uma emer-
ma politicamente regulada ou con- gência, e a receita esperava impaciente para ser completada.
venientemente frouxa, os proprie- Desci correndo e entrei no super. Como estava com pressa, mal
tários de dois ativos financeiros es- percebi o lugar. Fui direto para a prateleira do açúcar. Peguei um
tratégicos – títulos da dívida públi- quilo e voltei correndo em direção aos caixas. Foi então que tive
ca e terras rurais. No primeiro caso, a visão do inferno. Eram mais de quarenta caixas. Todos lotados.
ocorre um estrepitoso silêncio mi- As filas, imensas. Nem a preferencial para cestinhas dava mo-
diático, com as exceções de praxe, le. Era gente demais. Num repente eu me vi ali, entre aquele po-
para o fato de que a política de juros vo que falava sem parar. Vozes em todos os tons. Carrinhos lota-
altos do Banco Central, que eleva em dos de porcarias. Muita, mas muita Coca-Cola. Coisas que, certa-
doze meses – de julho de 2014 a ju- mente, não eram essenciais. Aquilo me embrulhou o estômago,
lho de 2015, a taxa de juros Selic de mas perseverei. Lá na minha pia, bolinhos esperavam.
11% a 14,25% ao ano, gerando em
contrapartida uma despesa financei-
ra extra da União ao redor de R$ 90 Há que se reconhecer o salvar a renda fundiária e a renda fi- Lá, era o céu. Quase ninguém. Os
bilhões. Observe o leitor que esta é nanceira em uma economia de cres-
óbvio, de que enquanto
apenas a despesa extra, porque o vo- cimento zero ou negativa. grandes quase sempre engolem o
lume de juros devidos totais, consi- tais motivos da A “mágica” distributiva que o pen-
derado um estoque de dívida públi-
ca mobiliária de R$ 2,3 trilhões em avidez financeira por
samento ultraconservador conse-
guiu produzir na crise fiscal foi a de
pequeno. Mesmo assim, a atendente
2015 fica no entorno dos R$ 320 bi- proteger seus ativos, apontar para o “ajuste fiscal” radi- sorriu para mim, entregou o açúcar,
lhões ao ano. cal, cujo efeito imediato em seis me-
Economistas conservadores que socializando perdas, ses provocou tal queda na receita perguntou se não ia querer o pão
vociferam contra os gastos sociais do prevalecerem na gestão pública (tributária, previdenciária e
Seguro-Desemprego, da Previdên- patrimonial da União), que obrigou
cia Social, da Lei Orgânica da Assis- da crise econômica, o próprio governo a rever suas me-
tência Social, do Sistema Único de tas de superávit primário para 2015 Entrei numa das filas. O coração apertando. Veio à mente as
Saúde e da Educação Básica, apon- a crise se prolongará (praticamente zero) e 2016. Mas não fotos do Sebastião Salgado, sobre as migrações. Êxodo. Um exér-
tando-os, dissimuladamente, co- indefinidamente sossegou a avidez dos proprietários cito de miseráveis, famintos, em marcha, num mundo tão pouco
mo “bola da vez” para um mal expli- da riqueza financeira que, agora in- solidário. O açúcar começou a pesar. Na minha frente, duas mu-
cado “ajuste estrutural”, silenciam vocando o “ajuste estrutural”, miram lheres bem vestidas discutiam acaloradamente sobre algo da no-
completamente para o caráter com- o corte dos direitos sociais protegi- vela. Um garoto berrava em desespero porque queria que o pai
pletamente desequilibrado do “ajus- dos por regra constitucional. levasse um carrinho horroroso, puro plástico. Dois adolescen-
te” monetário do Banco Central e o O movimento de defesa financei- tes bebiam iogurte e davam altas risadas. A algaravia ia crescen-
claudicante ajuste fiscal ora em cur- ra, preventivo na dívida pública e no do e eu, agarrada ao meu saquinho de açúcar, fui ficando sem ar.
so. mercado de terras, opera também, Uma menina de uns 13 anos cantarolava uma canção do Luan
Outra forma sub-reptícia de pro- com todo sigilo bancário de pra- Santana e duas outras mulheres discutiam atrás de mim sobre
duzir valorização financeira na cri- xe, no “saneamento” de dívidas pri- o quanto seria bom se o Aécio fosse presidente. Comecei a pas-
se econômica, favorecendo, no ca- ras brasileiro. Os preços das terras vadas, de que temos vários indícios sar mal.
so, um outro título patrimonial es- rurais no Brasil, segundo os levanta- pela tradição da política econômica A visão daquela multidão debruçada nos carrinhos abarrota-
tratégico, é combinar medidas regu- mentos mais recentes, não tem caído brasileira, tais dívidas, mais dia me- dos, aquele povo saciado, cheio de supérfluos, as falas vazias,
latórias com outras não-regulatórias em termos reais, refletindo aparen- nos dia transformar-se-ão em “es- os caixas amarelos com luzes vermelhas piscando, os gritos das
para impedir que a queda nos pre- temente a desregulação e a provisão queletos financeiros”, reivindicando crianças, o barulho, o ruído das latas de Coca-Cola sendo aber-
ços das commodities desvalorize os de crédito público, mas não as cha- um “lugar ao sol” – a dívida pública tas, o caos, foi me sufocando. Comecei a arder. De medo, de ver-
preços das terras rurais, impactados madas variáveis de mercado (preços mais bem remunerada do mundo. gonha, de fazer parte disso. De estar ali. Então eu soube que se
por mais de uma década do boom das commodities) Finalmente, há que se reconhecer houver inferno ele é assim. Um grande supermercado onde pes-
das commodities. Dentre as medi- Proprietários de ativos financei- o óbvio, de que enquanto tais moti- soas compram o que não precisam e cantam músicas do Luan
das regulatórias, figura o Plano Safra ros e de recursos naturais – terras, vos da avidez financeira por prote- Santana. Veio uma espécie de desespero, e a fila não andava.
2015-2016, que manteve o volume recursos hídricos, minas e campos ger seus ativos, socializando perdas, Uma garota, com uma camiseta que levava estampada a bandei-
de crédito e os subsídios oferecidos petroleiros, normalmente estariam prevalecerem na gestão da crise eco- ra dos Estados Unidos, explodiu um chiclete no meu ouvido. Foi
pelo Sistema Nacional de Crédito preocupados com a reversão dos nômica, a crise se prolongará indefi- o que me salvou. Eu pirei total. Larguei o quilo de açúcar e sai
Rural, recusados ao sistema indus- preços externos das commodities. nidamente. E pior ainda será se con- em desabalada carreira. Sacudi o pó das sandálias e decidi andar
trial, abastecido pelo BNDES. E no Alguns, de fato, sentiram a crise, co- seguirem passar a ideia de um cor- as quatro quadras que me separavam da padaria mais próxima.
caso das medidas não regulatórias, mo é o caso das grandes empresas te mais profundo nos direitos sociais Lá, era o céu. Quase ninguém. Os grandes quase sempre engo-
temos a completa inocuidade da po- do setor – Petrobras, Vale, Albras- básicos – tese pomposamente vendi- lem o pequeno. Mesmo assim, a atendente sorriu para mim, en-
lítica fundiária, no sentido de con- -Alunorte, etc. –, cujos negócios ex- da como “ajuste estrutural”. tregou o açúcar, perguntou se não ia querer o pão. “Tá como tu
trolar a excessiva valorização e con- ternos encolheram. Mas há uma via gosta”. Disse “não, vou fazer bolinhos” e saí contente da vida.
centração privada da propriedade secreta de apropriação de fundos Guilherme Costa Delgado é Nunca mais voltei ao supermercado. Quero a quenturinha do pa-
rural, agora desbordando para uma públicos – a dívida pública e o mer- doutor em Economia pela Unicamp e raíso, enquanto ele existir!
almejada (pelo agronegócio), inter- cado de terras, que vem sendo man- consultor da Comissão Brasileira
nacionalização do mercado de ter- tido artificialmente valorizados para de Justiça e Paz. Elaine Tavares é jornalista.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG),
Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália),
Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP), Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper
(Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Le onardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ), Pilar Oliva (São Paulo – SP) • Ilustradores: Latuff,
Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Aparecida Terra • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira •
Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Juliana Fernandes • Endereço: Alameda Olga, 399 – Barra Funda – São Paulo – SP CEP: 01155-040 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 4301-9590 – São Paulo/SP –
redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: Taiga • Distribuição: Dinap Ltda. – Distribuidora Nacional de Publicações • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro,
Beto Almeida, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier,
René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sergio Luiz Monteiro, Vito Giannotti (in memoriam) • Assinaturas: (11) 2131–0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 13 a 19 de agosto de 2015 3

instantâneo Terezinha Vicente

Por democracia
feminista
RESTAURAR O PODER feminino no mundo.
Ressignificar a Política e o fazer político. Isto é o
que querem as mulheres da #partidA da demo-
cracia feminista. A #partidA é o nome que se deu
a um movimento que, lançado há dois meses sob
liderança da filósofa feminista Márcia Tiburi, já
tem núcleos em várias cidades do país e vem cau-
sando polêmica ao pensar na criação de um par-
tido feminista. O desejo de construir um contra-
ponto ao estado atual do poder é o desafio a que
se propõem estas mulheres. Elas estão cansadas
de ser silenciadas dentro das organizações e dos
partidos, de esquerda inclusive, pois são protago-
nistas na própria vida. Elas defendem uma poÉ-
ticA feministA como uma nova forma de pensar
e estar no mundo.
O poder feminino foi esmagado durante toda a
história da humanidade, por isso o mundo está
em desequilíbrio e o planeta morrendo. O femi-
nino também existe nos homens e neles também
é reprimido. E o que seria esse poder feminino?
A ligação com a natureza, com a vida, o cuidar do
outro e do bem coletivo. No cotidiano, a maioria
das mulheres enfrenta muitas dificuldades e elas
decorrem das decisões políticas dos que gover-
nam. Entretanto, este aspecto da vida é despoliti-
zado pela cultura patriarcal dominante e o traba-
lho das mulheres é invisibilizado, desqualificado
e desvalorizado. Somem-se a isso a crescente vio-
lência contra a mulher e a permanente tentativa
de controle sobre seu corpo e sua subjetividade.
As feministas foram as primeiras a dizer o
quanto o pessoal é político e o quanto a política
interfere na vida pessoal. O capitalismo vive nova
crise e a democracia que serviu ao seu desenvol-
vimento mostra sua podridão em toda parte. O
imperialismo, por meio de 85 famílias que detém
o poder global de fato, utiliza todas as suas ar-
mas (literalmente) para continuar na exploração
Altamiro Borges e controle da humanidade. A esquerda, por sua
vez, precisa urgentemente reinventar-se, pois as
estruturas partidárias verticais e competitivas

Aécio, o “arregão” mostraram seus desvios ideológicos e não conse-


guiram incorporar as questões de gênero, raça/
etnia, diversidade sexual, direito ao próprio cor-
po, campos geradores de muita opressão exerci-
SOB O COMANDO do cambaleante Aécio Neves, o PS- tom do discurso sobre impeachment da presidenta e pa- da na sujeição das pessoas.
DB decidiu utilizar a rede nacional de rádio e tevê pa- ra discutir a participação da legenda nos protestos con-
ra convocar as marchas golpistas de 16 de agosto. A ini- tra o governo agendados para o dia 16 de agosto. O par-
ciativa, porém, gerou bicadas no ninho. Os governado-
res da sigla, mais preocupados com a crise nos seus Es-
tido tem sido bastante criticado pela hesitação quanto ao
tema”, relata a revista Época. O esforço, entretanto, não
Queremos conter o avanço do
tados, criticaram a teatral valentia do senador minei-
ro. As bravatas de Aécio Neves, que sofreu duas derro-
surtiu efeitos.
Os governadores Beto Richa (Paraná), Marconi Perillo
capital e do patriarcado na sua
tas no ano passado – perdeu a disputa presidencial e foi
escorraçado de Minas Gerais – não unificam o tucanato.
(Goiás) e Geraldo Alckmin vieram a público para contes-
tar o uso da rede nacional de rádio e televisão para apoiar
sanha opressora e destruidora
Elas também não convencem os fascistas mirins que exi- as marchas pelo impeachment. O próprio FHC, mentor da maior parte da humanidade
gem o impeachment de Dilma. Para eles, o cambaleante intelectual dos tucanos, também destoou da retórica rai-
é um “arregão”, que convoca protestos, mas não aparece vosa ao afirmar, em entrevista a uma revista alemã, que
– preferindo o aconchego do seu lar no Leblon. “Dilma é uma pessoa honrada” e não está envolvida no
A divisão no PSDB é explícita. Aécio Neves está deses- esquema de corrupção da Petrobras. A reação deixou o O feminismo mudou a forma de ver o mundo.
perado. Ele sabe que será descartado em breve no ninho “chefe” do PSDB ainda mais cambaleante e pendurado na O feminismo é revolucionário porque é contra
tucano e aposta todas as suas fichas no golpe imediato. brocha. Após convocar as marchas na TV, ele mesmo já cultura hegemônica, é cultura do afeto, das emo-
Já Geraldo Alckmin, com o peso de São Paulo, sabe que dá sinais de recuo. “Aécio afirmou que ‘possivelmente’ irá ções, da busca de índices de felicidade, prioriza-
dispõe de mais tempo político e prefere “sangrar” Dil- aos atos. Disse, no entanto, que a sigla continua tratando dos aos econômicos. O feminismo quer o bem
ma até 2018. No desespero, “Aécio Neves convocou reu- com cautela temas como o impeachment”, relata a Folha. para toda a humanidade e isso significa respei-
nião da executiva do partido, em Brasília, para alinhar o Será que o arregão vai arregar novamente? tar e incluir todas as singularidades e desenvol-
ver suas potências. Política para nós não é essa
disputa corrupta por cargos, salários, carreiras
Beto Almeida e benesses em que se transformaram os poderes
de Estado, nem essa “guerra fratricida” que acon-

Lições do Mais Médicos


tece dentro dos partidos. A #partidA surge por-
que não aceitamos essa forma arcaica de organi-
zação do poder político; mas sua identidade mal
começou a ser construída. Sabemos que existem
outros coletivos experimentando também orga-
UM EMOTIVO ATO em comemoração aos 2 anos do Pro- que o Mais Médicos representa uma expansão do SUS, nizar-se de maneira horizontal, colaborativa, de-
grama Mais Médicos foi realizado na semana que passou uma ação de Estado coerente na saúde. mocrática; nós acreditamos no feminismo como
no Palácio do Planalto, reunindo Dilma Rousseff, médi- Mas, o discurso da estudante potiguar Ana Luiza Silva, a ética para essa construção.
cos cubanos e estudantes de medicina de origem humil- de Caicó, beneficiária da política de inclusão na reforma A #partidA quer dar voz a quem não tem voz.
de, também beneficiados pelo programa que foi alvo de do ensino médico, descentralizando as faculdades e en- Muitas frentes de luta nos interessam, somos
repugnante campanha de demolição por parte do capita- frentando a oligarquia médica que queria manter a pou- contra o capitalismo, o racismo, o preconcei-
lismo hospitalar, farmacêutico e da oligarquia médica a ca oferta de médicos, para com isto, justificar a dependên- to com a diversidade sexual, o proibicionismo, o
seu serviço. cia da estrutura privada, hospitalar e farmacêutica, arran- fascismo e todos os “ismos” da opressão. Quere-
Durante o ato, a fala de Everton, que estudou medicina cou lágrimas. mos rodas de reflexão, criação e ação interliga-
em Cuba, gratuitamente, e que trabalha hoje no Mais Mé- Lamentavelmente, o governo e o PT não organizaram das às rodas de outros movimentos. Queremos
dicos no interior do Paraná, foi esclarecedora da função uma mídia própria capaz de divulgar ações gigantescas formar uma potente ciranda feminista indigna-
revolucionária da Ilha ao montar a Escola Latinoamerica- como o Mais Médicos, hoje com aprovação de 95% do da com o atual estado das coisas; queremos con-
na de Medicina. “Não aprendi apenas fisiologia ou anato- povo, numa contradição com as pesquisas que apon- ter o avanço do capital e do patriarcado na sua
mia em Cuba, mas sim valores, humanismo e solidarieda- tam popularidade em queda do governo Dilma. Termi- sanha opressora e destruidora da maior parte da
de prática”, disse ele, lembrando que a campanha reacio- no recomendando aos leitores que assistam este vídeo humanidade. (https://www.facebook.com/si-
nária foi derrotada pela objetiva compreensão do povo, https://www.youtube.com/watch?v=jk6If14pFJ8&sp- gapartida?fref=ts https://www.facebook.com/
sem qualquer preconceito contra médicos cubanos, cam- freload=10, que o multipliquem e reforcem , mesmo tar- groups/apartidafeminista/)
panha que confundiu uma parte da categoria médica ei- diamente, as iniciativas para construção de uma mídia
vada de elitismo e inicialmente refratária a compreender popular no país. Terezinha Vicente é jornalista.

fatos em foco
da Redação
Alemanha lucrou mais de 100 bilhões Ato contra ódio pede punição por Julgamento no STF pode levar Brasil dar um passo importante para viabilizar o
de euros com a crise na Grécia atentado no Instituto Lula a descriminalizar porte de drogas acesso de dependentes químicos ao trata-
A Alemanha “se beneficiou claramen- Mais de mil pessoas participaram dia 7 O Brasil pode se igualar aos demais paí- mento de saúde, além de pôr fim à estig-
te com a crise grega”, em mais de 100 de agosto do ato de solidariedade ao Ins- ses da América do Sul que descrimina- matização do usuário como criminoso.
bilhões de euros, segundo um estudo tituto Lula, que foi alvo de atentado dia lizaram o porte de drogas hoje ilícitas e
divulgado dia 10 de agosto pelo Institu- 30 de julho. Lula chegou acompanhado passar a ser tolerante com o consumo e Ambev é condenada por
to de Investigação Econômica Leibniz, da ex-primeira-dama, Marisa Letícia, e com o cultivo para uso próprio. A medida terceirização irregular
informou a agência France Presse. O foi recepcionado com cartazes e faixas de depende do Supremo Tribunal Federal A Justiça do Trabalho condenou a Ambev
instituto, sem fins lucrativos, conside- apoio. A manifestação teve a presença de (STF) que deve julgar, neste mês, ação a pagar indenização de R$ 1 milhão por ter-
rou que o valor representa a poupança sindicalistas, representantes de diversos questionando a inconstitucionalidade ceirização irregular. Uma ação civil pública,
garantida pela Alemanha por meio de movimentos sociais e lideranças políticas da proibição. A Defensoria Pública do movida pelo Ministério Público do Trabalho,
baixas taxas de juros sobre as suas obri- ligadas a partidos progressistas. A estreita Estado de São Paulo recorreu à Corte, constatou que trabalhadores terceirizados da
gações, resultantes da atração da sua esquina onde fica a instituição, no bairro do alegando que o porte de drogas, tipifica- fábrica de Agudos (SP) estavam exercendo
economia sobre investidores assustados Ipiranga, zona sul de São Paulo, ficou lota- do no Artigo 28 da Lei 11.343, de 2006, funções consideradas atividade-fim (que
com a instabilidade grega. Os estimados da. Os manifestantes espalharam fumaça não pode ser considerado crime, por não caracteriza a finalidade da empresa). Entre
100 bilhões de euros que a Alemanha vermelha, fizeram um abraço no Instituto e prejudicar terceiros. O relator é o minis- essas atividades estão manuseio, seleção,
poupou desde 2010 constituíram cerca entregaram flores. Ricardo Patah, presiden- tro Gilmar Mendes, que finalizou o voto movimentação, empacotamento e movimen-
de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) te da UGT, diz: “Democracia é o regime do e deve colocar o tema em votação ainda tação interna de cargas, insumos, vasilha-
do país. Outros países como os Estados diálogo, não da violência e das provocações. este mês. Para especialistas em segurança mes, bebidas e similares. A decisão também
Unidos, a França e a Holanda também Sou solidário a Lula como serei a todos que, pública, direitos humanos e drogas, o STF proíbe a Ambev de terceirizar as funções
se beneficiaram, mas “a um nível muito porventura, foram vítimas de atos como o tem a chance de colocar o Brasil no mes- essenciais em qualquer fábrica no país, sob
mais reduzido”. (Agência Brasil) que ocorreu aqui”. (Agência Sindical) mo patamar de outros países da região e pena de multa diária. (Agência Sindical)
4 de 13 a 19 de agosto de 2015 brasil 5

“É possível uma tranquilidade fundada na violência?”


ENTREVISTA Segundo das vítimas. Nos anos 1980, por exem- tão em jogo, quais são os valores que são do local, são membros de uma família. Tem de pensar em algo pontual, a co-
plo, tem um perfil de vítimas mais jo- considerados graves em cada momento. Nós entendemos o anseio, mas o que se meçar pela própria discussão sobre o as-
a socióloga Ariadne vens e houve também um aumento da Apesar de esse ser um crime que encar- coloca em questão é: por que essa res- sunto, para mostrar que esse tipo de ação
Natal, para impedir esses proporção de mulheres entre as víti- cera muito, não motiva uma reação des- posta? Ela é a mais adequada? Vai real- não é eficiente no sentido de combater a
mas de linchamento, de 5% para 10%. sa natureza. mente trazer tranquilidade? É possível criminalidade, ou seja, esse tipo de ação
linchamentos, tem de Ao longo do período diminuiu o número uma tranquilidade fundada na violên- não vai diminuir o número de crimes.
de notícias sobre linchamentos e, na mi- Por trás desses linchamentos, cia? A percepção do problema é com- Mas, para impedir esses linchamentos,
trabalhar com as causas, as nha avaliação, isso tem a ver com o mo- que são violentos, há motivações partilhada, mas o acordo com a resolu- tem de trabalhar com as causas, as quais
mento. Ou seja, o interesse da impren- como a preservação de valores, ção é que não é. Esse é um tipo de situa- estão relacionadas com essa percepção
quais estão relacionadas sa sobre esse tipo de evento é sazonal. conforme você menciona. Parece ção que gera debate, porque para muitas de que as instituições não darão as res-
com essa percepção de Tem picos de casos registrados em al- algo contraditório? pessoas o linchamento é aceitável e gera postas que as pessoas esperam. Se as
guns momentos, e aponto na pesquisa Parece, claro. Mas a revolta se dá jus- uma resposta. Trata-se de uma contro- pessoas se sentissem seguras e achassem
que as instituições não que esses picos estão relacionados com tamente por conta da quebra da ordem. vérsia muito grande. que poderiam recorrer à polícia, à Jus-
a repercussão dos casos, ou seja, quan- É claro que é uma ideia falsa, porque se tiça, elas não estariam propensas a agir
darão as respostas que as do tem um caso que reverbera bastante, tem a percepção de que eliminando a dessa maneira. Elas estão propensas jus-
pessoas esperam em seguida há mais informações e notí- pessoa que quebrou a ordem, estaria se “É preciso construir a ideia tamente porque não confiam na capaci-
cias sobre isso. restabelecendo a ordem. O discurso das dade que essas instituições têm. É preci-
Elenquei duas hipóteses para analisar pessoas que cometeram linchamento ou de que ter a lei funcionando so restabelecer essa confiança e mostrar
essa questão: uma delas é esse interesse que moram em comunidades onde es- que respeitar direitos não significa não
Patricia Fachin da imprensa por esse tipo de fenômeno; ses linchamentos acontecem, é de que,
é bom para todo mundo e ir fazer justiça. Pelo contrário, quando você
de São Leopoldo (RS) a outra é de que, diante de um caso de depois do linchamento, é possível andar contra ela é ruim para todo dá o direito de defesa a uma pessoa, di-
grande repercussão, outros casos acon- tranquilo pela rua e pelo bairro porque o reito de que ela possa ser julgada e pague
A LÓGICA que sustenta os casos de lin- teceriam. É provável que as duas coisas bandido não está mais lá e de que há paz. mundo” sua pena, esse não é um processo injus-
chamento no Brasil está relacionada aconteçam. No ano passado, por exem- Mas é óbvio que se trata de uma paz fun- to. É preciso construir a ideia de que ter a
com “a existência de uma cultura de uso plo, tivemos um caso e neste ano já tive- dada numa violência brutal. lei funcionando é bom para todo mundo
da violência para resolver conflitos”, diz mos outros. Para quem está olhando de fora, é im- e ir contra ela é ruim para todo mundo.
Ariadne Natal à IHU On-Line, na entre- possível ver uma situação dessas e pen- Que ações ou mudanças estruturais Ou seja, quando as pessoas desrespeitam
vista a seguir, concedida por telefone. sar que se trata de paz. Por outro lado, poderiam ser desenvolvidas para a lei, elas também estão cometendo um
Autora da dissertação de mestrado 30 “O linchamento, ao contrário, é uma temos de entender que se é esse tipo de conter esse tipo de ação? crime. (IHU On-Line)
anos de linchamentos na região me- ação que gera paz, imagina o que as pes- USP
tropolitana de São Paulo – 1980-2009 ação extremamente pública, e para soas estão vivendo no momento anterior
(2013), a socióloga frisa que a democra- ao linchamento. Então, essa situação es-
cia brasileira “não foi capaz de garantir
aquelas pessoas que têm uma sede de tá relacionada a uma série de privações,
que as instituições tomassem as rédeas resolução — que não é justiça, mas aliada a uma percepção de que a crimi-
em casos de conflitos, e tampouco ga- nalidade é presente, alta e de que não há
rantir que os direitos fossem respeitados é vingança —, o linchamento é uma respostas para a resolução desse caso,
nos diversos aspectos, inclusive os direi- mas de que a partir do linchamento al-
tos daquelas pessoas que são acusadas possibilidade de ver que algo foi feito” go foi feito.
de algum crime”. O sistema de Justiça é muito invisí-
A violência praticada nos casos de lin- vel e as pessoas não veem a coisa acon-
chamentos, explica, também é motiva- tecer, ou seja, uma pessoa pode ser jul-
da por um desejo de “manter a ordem” A principal motivação foi o crime con- gada e condenada, mas não vemos no-
e de eliminar as pessoas que cometeram tra a vida, a segunda motivação foi crime tícia disso; só temos notícia do crime e
crimes, para “manter a paz”, porque “há contra o patrimônio, como roubo, e a ter- parece que nada está sendo feito. O lin-
um sentimento generalizado de que há ceira está relacionada a crimes contra os chamento, ao contrário, é uma ação ex-
impunidade e de que as pessoas têm me- costumes, que são crimes relacionados tremamente pública, e para aquelas pes-
do. Ou seja, a percepção das pessoas é de a questões sexuais. As motivações mu- soas que têm uma sede de resolução —
que há uma criminalidade generalizada dam um pouco ao longo do tempo, por- que não é justiça, mas é vingança —, o
e essa sensação, às vezes, é mais impor- que na década de 1980 tinha uma pro- linchamento é uma possibilidade de ver
tante do que os números”. Na avaliação porção maior de crimes contra o patri- que algo foi feito. Existe um apelo emo-
da socióloga, o linchamento é motivado, mônio, mas depois esse índice diminuiu. cional muito forte nos linchamentos, por
de outro lado, por “uma ideia bastante Ao longo de todo esse acompanha- isso eles geram uma sensação de que há
rasa de que o problema da criminalida- mento, não vi casos de linchamentos re- resolução.
de está focado em alguns indivíduos e de lacionados ao tráfico de drogas, justa- Além disso, as pessoas que partici- QUEM É
que, eliminando-os, se conseguiria esta- mente porque essa não é uma situação pam de linchamentos são pessoas das Ariadne Natal é graduada em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade de
belecer a ordem”. cometeu um delito. Então, as pessoas se ciar e julgar aqueles que são culpados. O reações. Então, sem testemunhas é difí- em que se tem uma vítima específica, próprias comunidades, ou seja, não são São Paulo - USP, onde atualmente cursa o doutorado na mesma área, desenvolvendo a pesquisa
revoltam contra o suspeito de ter come- linchamento deixa de fora as instituições cil investigar esse tipo de crime. ou seja, não é um tipo de crime que gera malucos e psicopatas, são pessoas co- Entre a defesa e a violação da lei: Percepções de policiais militares a respeito de seu papel, poder
tido um delito e praticam uma ação vio- que foram criadas para lidar com essas Hoje, muitas dessas ações acabam uma revolta na população. Isso demons- muns. As notícias falam que os partici- e legitimidade.
“A percepção das pessoas é lenta com o objetivo de restabelecer es- situações, por conta do descrédito que se sendo filmadas e, através das imagens, é tra também quais são os valores que es- pantes de linchamentos são moradores
sa ordem, eliminando ou tentando eli- tem em relação ao fato de essas institui- possível identificar quem são as pessoas
de que há uma criminalidade minar a pessoa. ções poderem dar alguma resposta. envolvidas, mas é um tipo de crime de
Essa é a lógica de fundo, mas, além difícil resolução. Geralmente o Institu-
generalizada e essa sensação, disso, tem uma questão que está relacio- Linchamentos acontecem também to Médico-Legal (IML) faz exames para VIOLÊNCIA
às vezes, é mais importante nada com a existência de uma cultura de entre os presos? identificar qual foi a lesão que provocou

Uma análise dos


uso da violência para resolver conflitos. Sim, porque o linchamento tem a ver a morte e, nesse caso, seria necessário
do que os números. Por Infelizmente a nossa democracia não foi com uma ação que quebra alguns valo- identificar quem foi o responsável pela
capaz de garantir que as instituições to- res, os quais variam bastante conforme o lesão. No caso do Maranhão, temos a in-
conta disso, algumas pessoas massem as rédeas em casos de conflitos, grupo em questão. Então, de acordo com formação de que o que provocou a mor-
e tampouco garantir que os direitos fos- o código dentro da cadeia, uma pessoa te de Cledenilson foi uma facada. Então,
tomam certas medidas

assassinatos em Rondônia
sem respeitados nos diversos aspectos, roubar, por exemplo, não é considerado provavelmente a polícia está atrás de
para resolver os conflitos, inclusive os direitos daquelas pessoas um problema, mas cometer um ato de quem o esfaqueou, porque é mais fácil
que são acusadas de algum crime. Elas estupro fere o código interno dos presos. de identificar a responsabilidade. É difí-
e os casos de linchamento não têm a cidadania suspensa por terem Ocorre, contudo, que o linchamen- cil solucionar esses casos, especialmente
cometido algum crime ou por serem cul- to sempre envolve uma disputa despro- quando não se tem casos de morte, por-
entrariam nesse contexto” padas. São esses valores que, apesar de porcional entre uma vítima e um núme- que é mais difícil de a polícia investigar.
vivermos numa democracia, não conse- ro grande de agressores, e tem o objeti-
guimos incutir nas pessoas. vo de fundo de controle social, de fazer Que avaliação você faz da OPINIÃO A violência Assim, a violência tem sido o soneto A frustação e o desencanto cada vez ta relação jurídica. Os Inquéritos Poli-
justiça. Ou seja, trata-se sempre de uma abordagem e divulgação feita do indissociável do latifúndio e da grilagem mais crescente quanto aos Programas e ciais que investigam a morte dos traba-
Ariadne Natal analisou mais de 500 Por que, segundo sua avaliação, resposta a uma ação especial que é con- linchamento de Cledenilson, no tem sido o soneto intocados na Amazônia Legal. Em Ron- promessas governamentais (Programa lhadores são relegados ao esquecimento.
casos de linchamento que ocorreram no o linchamento é algo aceito siderada problemática. Maranhão? indissociável do latifúndio dônia, pela análise preliminar dos da- de Regularização fundiária na Amazônia Assim, uma vez mais, a questão agrária
país, e destaca que é possível entender no Brasil? Esse sentimento de Tem formas diferentes de noticiar es- dos da violência, compreende-se clara- Legal), a falta de oportunidades de tra- é tratada como questão de polícia e não
o anseio das pessoas que cometem es- impunidade justifica as ações? se tipo de ocorrência, desde abordagens e da grilagem intocados mente que esta violência é bem locali- balho nos núcleos urbanos (em Rondô- de política. Assim, inclusive para a região
sas ações, mas “o que se coloca em ques- Não sei se ele justifica, mas ajuda a ex- “Existe um processo de valores que que alimentam novos casos, porque na- zada na região onde a questão das ter- nia o que mais emprega e gera renda no onde ocorreu a maioria dos assassinatos,
tão é: por que essa resposta? Ela é a mais plicar, porque as pessoas têm uma cer- turaliza a situação e diz que esses casos na Amazônia Legal ras públicas não foi resolvida (Região de PIB é o setor de serviços), reanima as or- o esforço uníssono de governo e outras
adequada? Vai realmente trazer tranqui- ta abertura para resolver os conflitos de são compartilhados, entre eles está são legítimos e, com isso, estimula ou- Ariquemes, Machadinho d’Oeste e Buri- ganizações e movimentos sociais no que autoridades públicas têm clamado por
lidade?” Embora seja “impossível” pen- maneira violenta. Há outras situações essa ideia de que eliminar o outro é tras pessoas a agir da mesma maneira, tis). Trata-se, ou de áreas irregularmen- se refere às ocupações de terras como patrulha rural ao invés de políticas pú-
sar que o linchamento resolverá o pro- em que a população muitas vezes apoia criando um clima em que esse tipo de te ocupadas por grandes especuladores instrumento legítimo de promover a dis- blicas que resolvam a questão fundiária.
blema da segurança, a socióloga pontua a violência, e o anseio é o mesmo: o de legítimo para garantir a segurança” ação não é favorável. No ano passado, Afonso das Chagas imobiliários ou áreas de antigas conces- tribuição de terras (sobretudo as públi- Historicamente, o Estado tem se fei-
que “temos de entender que se é esse ti- eliminar aquela pessoa que cometeu um por exemplo, no caso de um linchamen- sões de terras. Com a manutenção da cas) e garantir meios de sobrevivência e to presente indiretamente através de po-
po de ação que gera paz, imagina o que crime como forma de garantir a paz. É to em Botafogo, no Rio de Janeiro, uma A HISTÓRIA de colonização do Estado pecuária, como fonte primária de pro- dignidade aos camponeses. líticas equivocadas. O próprio Tribunal
as pessoas estão vivendo no momen- uma ideia bastante rasa de que o proble- jornalista deu uma declaração dizendo de Rondônia, desde o início, conforme dução de matéria-prima (carne e leite), de Contas ao fiscalizar o Programa Ter-
to anterior ao linchamento. Então, es- ma da criminalidade está focado em al- Como os linchamentos são que o linchamento foi em legítima defe- sustenta Octavio Ianni no livro Colo- esta região tende a uma reconcentração ra Legal constata o baixo índice de atingi-
sa situação está relacionada a uma sé- guns indivíduos e de que, eliminando- tratados legalmente? sa, ou seja, legitimou esse tipo de ação. nização e contrarreforma agrária na de terras e, sob as lacunas e equívocos A justiça estadual e federal, mento das metas, alertando inclusive pa-
rie de privações, aliada a uma percepção -os, se conseguiria estabelecer a ordem. Há uma dificuldade da polícia em tra- Outra possibilidade de noticiar é ex- Amazônia (publicado pela Editora Vo- de um Programa feito para “não funcio- ra o fato de que, a maioria dos benefici-
de que a criminalidade é presente, alta e Essa é uma ideia falsa de combater a cri- tar desse tipo de fenômeno, primeiro, pondo o linchamento de maneira crítica, zes, 1979), caracteriza-se como contrar- nar”, a grilagem mantém-se como es- de forma generalizada, não ários não se enquadra nos critérios pre-
de que não há respostas para a resolução minalidade, mas que tem uma lógica porque é algo que é imprevisível, mas como foi feito pelo Jornal Extra, do Rio reforma agrária, ou seja, em momento tratégia do latifúndio. E este latifúndio vistos do próprio programa. Dessa for-
desse caso, mas de que a partir do lin- que está não só por trás dos linchamen- quando a polícia se depara com uma si- de Janeiro, que abordou o caso do Mara- algum, desde o Programa de Integração tem na violência sua alma-gêmea. A jus-
compreende nem a questão agrária ma, a revisão do próprio programa é me-
chamento algo foi feito”. tos, mas de outras ações, as quais con- tuação dessas, tem a função de impedir nhão com uma capa em que foi coloca- Nacional (1970), da época dos militares, tiça estadual e federal, de forma genera- como uma questão social, nem a dida de necessidade indiscutível, e isso,
Entre as propostas para diminuir esse tam com o apoio da população e, por is- que isso aconteça e, portanto, cessar as da a imagem do rapaz amarrado no pos- a reforma agrária foi tratada como polí- lizada, não compreende nem a questão a partir dos próprios resultados. Igual-
tipo de crime, ela é categórica: “É preci- so, continuam acontecendo. Existe um agressões é sempre a primeira preocu- te e outra imagem de um negro amarra- tica pública de Estado. A década de 1980 agrária como uma questão social, nem histórica questão dos bens públicos mente, nos poucos casos de retomada
so construir a ideia de que ter a lei fun- processo de valores que são comparti- pação. Ocorre, contudo, que nem sem- do ao tronco, fazendo alusão à escravi- caracterizou-se, no recém-criado Esta- a histórica questão dos bens públicos, de terras públicas irregularmente ocupa-
cionando é bom para todo mundo e ir lhados, entre eles está essa ideia de que pre no calor dos acontecimentos a po- dão e mostrando o absurdo do lincha- do de Rondônia, como um dos períodos no caso a terra pública, sua retomada e das, por parte do programa, não encon-
contra ela é ruim para todo mundo. Ou eliminar o outro é legítimo para garantir lícia militar se preocupa em identificar mento. Ou seja, é possível noticiar o caso mais sangrentos no que se refere à vio- destinação, como uma questão a ser dis- tra ressonância por parte da Justiça Fe-
seja, quando as pessoas desrespeitam a a segurança. quem são os agressores. Muitas vezes a de maneira crítica, mostrando um pro- lência ligada à questão agrária. De lá pa- cutida e resolvida por esta instância. O Mas também a fragilidade dos movi- deral que precisa legitimar a imissão na
lei, elas também estão cometendo um polícia é chamada em razão do delito an- blema que tem de ser resolvido. ra cá, infelizmente, a violência no campo grileiro, não raras vezes, é tratado como mentos sociais, a ausência de formação posse da União em tais áreas. Por últi-
crime”. terior, do qual o linchado é acusado. A tem sido permanentemente associada à proprietário, o especulador imobiliário e debate político em sentido amplo da mo, se não houver um esforço concentra-
“Infelizmente a nossa democracia não polícia chega na ocorrência com a infor- desorganização fundiária, à reconcen- como legítimo destinatário de terras pú- questão agrária, facilita também a pro- do e conjunto por parte dos órgãos fede-
Qual é a lógica que sustenta os mação de que algo ocorreu, mas se depa- “Em casos que envolvem tração da terra, à inércia do órgão res- blicas e os movimentos sociais como vi- cura por estes grupos de muitos que ve- rais em uma estratégia de fiscalização e
linchamentos? foi capaz de garantir que as instituições ra com o acusado do roubo, por exem- ponsável pela reforma agrária e ainda, lões, invariavelmente. em em tais movimentos a oportunidade efetivação das medidas necessárias, ob-
homicídio do suspeito, e que
Ariadne Natal – Uma questão de fun- tomassem as rédeas em casos de conflitos, plo, sendo agredido. Então, ela identifi- de forma específica, à complacência da A inicial vocação agrícola do Esta- da “terra fácil”, criando, por vezes, um jetivando uma “higienização” nos cartó-
do importante é a de que as instituições ca o suspeito e o detém, mas nem sem- necessita de uma investigação, justiça frente ao tratamento da questão, do de Rondônia há duas décadas foi re- ambiente de contendas internas, despre- rios de registros de imóveis e outros se-
do Estado não são uma fonte de segu- e tampouco garantir que os direitos pre faz alguma coisa em relação à agres- com as variáveis da notória criminaliza- definida como vocação à pecuária. Is- paro e, até, situações associadas a inte- tores governamentais, incluindo autar-
rança garantida. Nesse sentido, há um são física que ele está sofrendo. O mais há uma dificuldade de realizar ção dos movimentos sociais e os equívo- so demanda mais terra, aquece a grila- resses particulares, terreno propício pa- quias, a “legalização da grilagem” perdu-
sentimento generalizado de que há im- fossem respeitados nos diversos aspectos, comum, portanto, é o linchamento não cos no tratamento das terras públicas. gem e incentiva a especulação imobiliá- ra especuladores imobiliários, madei- rará, perdurando igualmente a violência
punidade e de que as pessoas têm me- ser caracterizado como uma ocorrência a investigação porque são Recentemente criado, em 2009, o Pro- ria. O Estado, como desde sempre, tem reiros e, inclusive, a reprodução da gri- como instrumento de sustentação explí-
do. Ou seja, a percepção das pessoas é de
inclusive os direitos daquelas pessoas que cita destes esquemas de apropriação de
criminal também. múltiplos atores participando da grama Terra Legal, objetivava, ainda que chegado sempre depois, e muitas vezes, lagem. Sem a compreensão política do
que há uma criminalidade generalizada são acusadas de algum crime” Em casos que envolvem homicídio do retoricamente, resolver a questão da ter- apenas assumindo a legitimação do fa- processo, pode ocorrer, em certas situa- terras públicas e especulação imobiliária.
e essa sensação, às vezes, é mais impor- suspeito, e que necessita de uma investi- agressão ao suspeito” ra pública e do secular problema da gri- to consumado. É mais de 13 milhões de ções, até a utilização da pretensa organi- A fim de romper com o império da im-
tante do que os números. Por conta dis- gação, há uma dificuldade de realizar a lagem em terras amazônicas. Com uma cabeça de gado, o rebanho bovino, pa- zação das pequenas posses por parte de punidade do latifúndio, compete às pró-
so, algumas pessoas tomam certas medi- investigação porque são múltiplos ato- tarefa de regularizar mais de 67 milhões ra uma população de aproximadamen- grandes interesses. prias instâncias superiores do Judiciá-
das para resolver os conflitos, e os casos O que os casos de linchamento res participando da agressão ao suspei- de hectares e seis anos depois, o progra- te 1,7 milhão de habitantes. O ciclo da Na região, onde ocorreu a maioria dos rio uma força-tarefa no sentido de acom-
de linchamento entrariam nesse contex- evidenciam sobre o sistema to. O papel da polícia seria identificar as Pode nos falar sobre os 589 ma governamental não deu conta de re- pecuária ainda tem seu fôlego, mas a crimes, no Estado de Rondônia, o diag- panhar de perto e monitorar o funciona-
to. Isso seria uma forma de tentar es- judiciário brasileiro? ações individualmente, mas o problema casos de linchamento que você solver o caos fundiário na Amazônia. Em época da soja se aproxima. No Estado, nóstico policial de qualquer assassina- mento da Justiça no Estado de Rondônia.
tabelecer uma “ordem”, porque se tra- Fica claro, nos casos de linchamento, é que nesses casos, geralmente, ninguém analisou na região metropolitana outro rumo, tem servido muito mais à a cada ano avança a área de produção to ou tentativa de assassinato, localizado
ta de uma ação violenta, mas essa ação que a população não recorre a essas ins- está disposto a falar, porque muitas ve- de São Paulo entre 1980 e 2009? “legalização” de grandes áreas de terras do grão, que já passa de 200 mil hecta- em área rural, possui destaque na carti- Afonso das Chagas é professor de Direito
tem como objetivo fazer justiça e garan- tituições em razão da falta de confiança zes o linchamento acontece em comuni- Quais os casos que motivaram os públicas irregularmente ocupadas (gri- res, sobretudo avançando em regiões de lha militar como crime ligado aos sem- da Universidade Federal de Rondônia (Unir),
tir uma ordem que foi quebrada ou que que se tem nelas, seja por causa da inefi- dades e as pessoas não querem denun- linchamentos ao longo dos anos? lagem), do que promover uma justa dis- pastagem degradada, o gado vai dando -terra. Mandantes, fazendeiros e grilei- já foi coordenador da CPT Rondônia e hoje
parece ter sido quebrada por alguém que ciência em identificar responsáveis, indi- ciar o vizinho, por exemplo, por medo de Tem uma série de variações no perfil tribuição fundiária na região. lugar à soja. ros nunca figuram no polo passivo des- é colaborador da Pastoral no estado.
6 de 13 a 19 de agosto de 2015 brasil

Golpistas usam mentiras na rede


para inflar protesto anti-Dilma Reprodução/Facebook

“EU NÃO VOU” A curiosa estratégia Políticas Públicas da USP, Pablo Ortella-
do, e pela professora de relações interna-
dos que afirmam enfrentar a cionais da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), Esther Solano, detectou
corrupção enganando a população que a crença em boatos era muito forte
com mentiras tão absurdas que era entre os participantes paulistas da mani-
festação de 12 de abril.
mais simples dizer a verdade Os pesquisadores ouviram 541 pes-
soas na Avenida Paulista, e identifica-
ram que 47,3% dos entrevistados “con-
fiam muito” em informações obtidas pe-
Rodrigo Gomes lo Facebook. Outros 26,6% têm a mes-
de São Paulo (SP) ma percepção de informações repassa-
da Rede Brasil Atual das pelo aplicativo de celular Whatsapp.
Nada menos que 71,3% dos manifes-
NA TARDE DO DIA 6 muitas pesso- tantes entrevistados acreditam que Fa-
as perceberam que estavam confirma- bio Luiz, o Lulinha, filho do ex-presi-
das nos chamados eventos das redes so- dente Lula, é sócio da Friboi – aquela
ciais pelo impeachment da presidenta da mesma que contratou Roberto Carlos e
República, Dilma Rousseff, mesmo sem Toni Ramos como garotos-propaganda.
nunca terem aceitado tal convite e nem A informação já foi desmentida muitas
sequer cogitarem participar, por posicio- vezes, inclusive pelo presidente do gru-
namento ideológico. Fato é, que eventos po JBS, que controla a Friboi, José Ba-
criados com outros objetivos – do apoio tista Júnior.
à presidenta à repulsa ao clima de golpis- Outros 53,2% dos manifestantes an-
mo – tinham sido alterados proposital- ti-corrupção disseram acreditar que “o
mente para aumentar o alcance da con- PCC é um braço armado do PT”. E 42,6%
vocação para os protestos marcados para que “o PT trouxe 50 mil haitianos para
o dia 16 de agosto. votar na Dilma nas últimas eleições”.
Um dos eventos modificados era rela- Nas redes também são comuns pos-
cionado às eleições do ano passado e se tagens, vídeos e textos com “denún-
chamava “eu não voto em Aécio Neves”. cias”, que precisam ser repassadas “an-
Como o site não exclui eventos já reali- tes que sejam censuradas”. Alguns gru-
zados, alguém mudou o nome do even- pos têm até “veículos de comunicação”
to para “16 de agosto eu vou pra rua #Fo- Página do evento “eu não voto em Aécio Neves” transformado em “16 de agosto eu vou pra rua #ForaPT” próprios, para dar mais credibilidade
raPT”. E os defensores do impeachment às notícias forjadas, misturadas a no-
ganharam, automaticamente, 70 mil As informações falsas estão na estru- muita questão. Como pode ter sido frau- tas retiradas de portais da grande im-
apoiadores. No entanto, permaneceu a tura da convocação das manifestações dada só a eleição presidencial, num plei- prensa. Nessa bagunça, os golpistas se
foto de fundo com o rosto do candida- de rua. No ato realizado em 15 de março, to que elegeu governadores, deputados e esbaldam.
to tucano. Ao perceber a farsa, de ontem seus organizadores bradavam dos carros senadores? Não importa. A “notícia” do dia 7 de agosto é que a
para hoje 30 mil retiraram seus apoios ao de som que “Dilma cortou a internet na Os usuários desse expediente são cria- carta-renúncia de Dilma Rousseff esta-
evento. Avenida Paulista, para impedir a revolu- tivos: “Dilma vai proibir as religiões”, ria pronta, aguardando o momento cer-
Esse tipo de prática tem sido comum ção”. Em uma aglomeração tão grande “Dilma vai pegar o dinheiro das poupan- to para ser divulgada. Quem dá o “fu-
entre os grupos que tentam convencer a de pessoas é comum que a internet não ças”, “Dilma vai acabar com a família”, ro” é o colunista do jornal Metro e blo-
sociedade de que a corrupção no Brasil funcione. O mesmo ocorre com rádio. É “O PT vai instaurar uma ditadura comu- gueiro limpinho, Cláudio Humberto, que
foi inventada por Dilma, o ex-presiden- rara uma estação que pegue bem na Pau- nista no Brasil”, “O PT trouxe os haitia- foi porta-voz do ex-presidente Fernando
te Luiz Inácio Lula da Silva e o PT. Utili- lista devido à quantidade de transmisso- nos para votar na Dilma”. Collor de Mello e é uma espécie de Rei-
zam de todo tipo de fraudes e enganações res instalados na região. Mas o que im- Até mesmo um “combo” de pedidos naldo Azevedo fora da Veja. Se os mani-
com a justificativa de “salvar o Brasil”. porta é o “efeito manada” com que a fú- de impeachment publicado numa re- festantes estão lutando contra a corrup-
O expediente não é novo, e ficou mais ria se espalha. de social viralizou. Segundo o boato, se- ção, como podem crer em uma informa-
intenso com as redes sociais e o acesso à Também naquele domingo, os golpis- ria preciso registrar o pedido em um car- ção sem fontes, passada por um ex-alia-
internet por dispositivos como celulares tas exaltaram um “relatório de uma au- tório, pedindo “combo de quatro impea- do do Collor?
e tablets. No dia de ir às urnas na última ditoria em Washington que garantiu que chments”, para garantir que os petistas Os combatentes contra a corrupção pa-
eleição, uma mensagem de que o dolei- as eleições de 2014 foram fraudadas”. O não assumissem de novo e o tucano Aé- recem se importar tanto com a origem da
ro Alberto Youssef, primeiro delator re- “ativista” Marcello Reis, do grupo Revol- cio Neves pudesse ser o novo presidente. corrupção no Brasil quanto com a vera-
levante da operação Lava Jato, havia si- tados On-Line, se emocionava ao ber- cidade nas notícias que engolem, quan-
do envenenado na prisão inundou celu- rar “Dilma não foi eleita”. Só não expli- Fundamento do lhes convêm. Para acabar com Dilma,
lares em todo o país, a ponto de a Polícia cava de onde saía a tese fantasiosa – e Mas não se mente à toa. O recurso tem Lula e o PT, vale-tudo, até mesmo esses
Federal (PF) emitir nota garantindo que de explicações convincentes os seguido- fundamento. Uma pesquisa coordena- exemplos bem-acabados de corrupção da
ele gozava de plena saúde. res dessa onda de ódio não fazem mesmo da pelo professor do curso de Gestão de verdade como estratégia política.

ORGANIZAÇÃO

Movimentos sindical e sociais articulam atos em


defesa da normalidade democrática
SEM GOLPE política drástica, que acabe com o finan- nária que é preciso manter as mobiliza- cas habitacionais e a repressão aos mo-
ciamento privado das campanhas, que ções nas ruas, em defesa da democracia. vimentos de moradia, sem falar do sis-
Plenária dos movimentos recupere a fidelidade partidária e o sen- “Nosso estado paulista articula toda a tema prisional caótico, comandado em
tido dos partidos”, pontuou. política conservadora, que culmina com grande parte pelo crime organizado.
sociais sinaliza necessidade Deputada estadual pelo PCdoB, Leci a política atrasada de ódio e de ataque à Há ainda a falta de segurança para o
de organização e Brandão defendeu medida igual. “A re- democracia brasileira e não aceitamos is- povo e os desmandos da polícia militar
forma política é necessária para que este- so. Nossa resposta se dará nas ruas, no paulista, principalmente em relação à
participação popular jamos no poder, porque nós não estamos dia 20.” juventude e aos negros, os escândalos de
lá. Quando houver financiamento públi- Leia a seguir a íntegra do documento corrupção nas obras como o Rodoanel
para conter investidas co de campanha é que ocuparemos os es- tirado na plenária: (do esquecido caso do famoso Paulo Pre-
paços e teremos a representatividade, se- to) e o cartel do metrô, tema que teve co-
retrógradas e urgência de jamos nós movimentos sociais, negros e O povo de São Paulo mo enfoque a articulação das empresas
o governo direcionar suas mulheres”, disse.
Durante o encontro, os movimentos
é contra o golpe e não as relações com os governos tuca-
nos há anos.
forças à esquerda aprovaram a carta O povo de São Pau- Todos e todas às ruas O governo de São Paulo também se re-
lo é contra o golpe (íntegra abaixo), na no dia 20 de agosto cusa a cooperar com os governos muni-
qual repudiam a ameaça de trapaça polí- O Fórum dos Movimentos Sociais do cipais e federal no SUS, na participação
tica da direita brasileira, atrelada ao im- Estado de São Paulo se organiza a par- de programas de sucesso como o SAMU.
Érica Aragão e perialismo, que tenta desestabilizar o go- tir de dezenas de movimentos e entida- Por fim, a educação em São Paulo não
Vanessa Ramos verno federal, abrindo caminho para o des, do campo e da cidade, que buscam vai bem, em todos os níveis, com o des-
de São Paulo (SP) impeachment de Dilma Rousseff. No do- acompanhar e avaliar a conjuntura, monte das escolas, universidades e dos
cumento, as organizações apontam que o bem como construir um projeto de Esta- institutos de pesquisa, inclusive de re-
CONTRA OS AJUSTES fiscais, mas tam- conservadorismo tem como berço o esta- do inclusivo, democrático e popular. ferência nacional. Como marca de sua
bém contra o golpe. Por direitos sociais, do de São Paulo, liderado pelo PSDB há As mais de 50 organizações que postura, o governo estadual também
mas também em defesa da democracia. mais de 20 anos. compõem esta frente acreditam que não dialoga com os sindicatos que fa-
Essas são as bandeiras que os movimen- Stédile avalia que os setores mais favo- a ameaça de golpe da direita brasilei- zem greve e combate as categorias. Um
tos sindical e sociais do campo e da cida- recidos do país também enfrentam pro- ra, atrelada ao imperialismo, que nesse dos maiores exemplos dos últimos tem-
de levarão às ruas de São Paulo, no dia blemas e, num cenário de acirramen- momento se organiza a partir de parti- po foi a desmoralização que fez da lu-
20 de agosto. A manifestação está previs- to, estão divididos. “Uma parte está apa- dos, de parcela importante e significati- ta dos professores e professoras do Es-
ta para a partir das 17h, no Largo da Ba- vorada e levando dinheiro pro exterior. va da mídia, de grupos de direita con- tado, inclusive desrespeitando decisões
tata, bairro de Pinheiros, zona oeste da Outra anuncia um programa para sair servadora e reacionária, precisa ser do Judiciário.
capital paulista. da crise, que é o realinhamento da nos- barrada nas ruas pelo povo. Por tudo isso, nós, do Fórum dos Mo-
No dia 7 de agosto, no auditório da sa economia aos EUA, a volta ao Estado Aqui em São Paulo, a direita conser- vimentos Sociais do Estado de São Pau-
Apeoesp (o sindicato que representa os mínimo, com cortes de gastos sociais. E vadora e golpista tem expressão forte e lo, conclamamos toda a sociedade pau-
professores da rede pública estadual de uma terceira proposta é cortar os direitos se alojou no governo do Estado há mais lista para se unir nas agendas de luta.
ensino), as organizações que compõem dos trabalhadores.” de 20 anos. Como no projeto tucano e No dia 20 de agosto estaremos nas ru-
o Fórum dos Movimentos Sociais de São da direita nacional, o governo procu- as em defesa da democracia, da Petro-
Paulo definiram a realização de atos e Golpe agora? ra reduzir os direitos dos trabalhado- bras e do pré-sal, por direitos da clas-
marchas para os dias que antecederão o Ao falar sobre a atual cena política na- res e trabalhadoras, além de combater se trabalhadora, contra o ajuste fiscal
ato do dia 20. cional, Stédile destacou que é preciso os movimentos sociais e qualquer sinal e por uma reforma do sistema político.
Para o representante do Movimen- sim pressionar o governo Dilma, mas à de mobilização. Conclamamos a população de São
to dos Trabalhadores Rurais Sem Ter- esquerda. “Votamos num programa que Além de ter privatizado e de querer Paulo a participar das mobilizações
ra (MST), João Pedro Stédile, o cenário não está sendo colocado. O [Joaquim] privatizar ainda mais o Estado, há uma defendendo um Estado também demo-
brasileiro enfrenta três diferentes cri- Levy não nos representa. Quanto mais blindagem da mídia paulista e nacional crático e que garanta direitos a todos
ses: econômica, de investimento público passa o tempo, mais Dilma vai sendo de- em relação ao PSDB e, principalmente, e a todas.
e política – e um dos caminhos é a refor- sacreditada pelas massas. Daí também em relação ao PSDB paulista e ao go-
ma do sistema político. que a nossa saída é organizar o povo e ir vernador Geraldo Alckmin. Isso tudo, Fórum dos Movimentos Sociais do
“A cada eleição teremos uma operação pra rua defender os nossos interesses.” mesmo diante dos descasos e descala- Estado de São Paulo
Lava Jato se não mudarmos este sistema. O vice-presidente da CUT São Pau- bros que fazem, como a negação da cri-
Isso só mudará se houver uma reforma lo, Douglas Izzo, reforçou durante a ple- se da falta de água, a ausência de políti- São Paulo, 7 de agosto de 2015.
brasil de 13 a 19 de agosto de 2015 7

“Nada justifica um golpe no Brasil”,


afirma Maria Rita Kehl
ENTREVISTA Segundo a psicanalista, a democracia é um valor inestimável e o cidadão tem que preservá-la e defendê-la sempre
Aloisio Mauricio/Folhapress

Walber Pinto
de São Paulo (SP)

“NADA JUSTIFICA um golpe no Brasil,


nem de direita e nem de esquerda, mas a
possibilidade de isso ocorrer assanha se-
tores conservadores, até então desconhe-
cidos, e que hoje se sentem à vontade pa-
ra pedir a volta dos militares. Com isso,
demonstram, inclusive, desconhecimen-
to sobre a ditadura militar e os casos de
corrupção que assolaram o governo nos
anos de chumbo.”
A opinião é da psicanalista, especia-
lista em Psicologia pela PUC-SP, ensa-
ísta e jornalista, Maria Rita Kehl, indica-
da, em 2010, pela presidenta Dilma Rou-
sseff para integrar a Comissão Nacional
da Verdade, que investigou os crimes du-
rante o período da ditadura.
Nesta semana, ela recebeu a reporta-
gem do Portal da CUT em seu consultó-
rio, no bairro de Perdizes, em São Paulo,
e demonstrou preocupação com o cená-
rio político. “Esse é o pior momento que
vivemos, com esse atual presidente da
Câmara dos Deputados.”
A autora do livro Ressentimento (edi-
tora Casa do Psicólogo), que aborda qua-
tro pontos de vista diferentes – na clínica
psicanalítica, na produção literária, nos
movimentos sociais e na filosofia – ana-
lisa o avanço do ódio e do conservadoris-
mo no país. Veja a entrevista a seguir:

“Quando os governos de
esquerda, mesmo que sejam
moderados, estão no poder, Manifestação em São Paulo: onda conservadora empunha bandeiras como a volta dos militares
quem está insatisfeito é a
Mesmo não havendo Há uma torcida [por parte da porém a sociedade votou nesses repre-
direita, então é ela quem vai fundamentação jurídica para mídia] contra o atual governo? sentantes. Eduardo Cunha é uma pessoa
o afastamento da presidenta É claro que tem uma torcida contra o que não se detém diante do apelo ao bom
pra rua. Só que esse governo Dilma, alguns especialistas governo do PT. Eu não acho que a im- senso, da moralidade. Ele tem um proje-
afirmam que pode acontecer. prensa seja golpista, ela é de direita, con- to pessoal, manipula fortemente, não sei
de esquerda não criou base Podemos falar em golpe? servadora. Naquela outra passeata da di- em que base ele manipula, me parece que
de esquerda, pois fez tanta Se não há fundamentação, quer di- reita [15 de março deste ano] a estimati- tem uma prática mafiosa, isso é o que os
zer que vai existir? Não tem elementos. va da Globo era de 1 milhão de pessoas e jornais dizem.
concessão com a direita que Vai trazer o exército? Eu não sei se a im- a PM, que é PM, falou em duzentas mil,
prensa espelha algo que está acontecen- e olhe lá. Nós [esquerda] temos que fazer
ficou atordoado” do no país. Acho a democracia um valor crescer o Brasil de Fato, o Portal da CUT, “Nós [esquerda] temos que
inestimável, temos que preservá-la, de- a TVT e a imprensa de esquerda.
fendê-la sempre, de qualquer maneira. fazer crescer o Brasil de
Nada justifica um golpe, nem de direita Fato, o Portal da CUT, a TVT
Como você avalia esse momento e nem de esquerda, um golpe que supri- “A sociedade brasileira nunca
da conjuntura política em que me a democracia, que suprime a liber- e a imprensa de esquerda”
setores conservadores de direita dade. Há uma retomada do conserva- conseguiu erradicar a corrupção,
avançam e pedem o impeachment dorismo, inclusive uma direita pra lá de inclusive a corrupção nas grandes
da presidenta Dilma? conservadora que pede a volta dos mi-
Maria Rita Kehl – Eu tenho tanto me- litares. Isso é de uma ignorância, é co- estatais começa ali. Mas no Podemos falar que o Brasil
do dessa onda conservadora que está na mo se os militares viessem colocar or- está passando por uma crise
sociedade que não consigo dizer se vai dem na casa. A corrupção endêmica co- ponto que nos dói mais, há uma institucional, uma falência na
ou não ter impeachment, porque o me- meça na ditadura, porque não havia no- responsabilidade do PT, nessa representatividade dos partidos
do me impede de enxergar claramente tícia nem imprensa livre e nas estatais políticos?
a conjuntura. O fato do Eduardo Cunha permitia-se que se metesse a mão. A so- despolitização da sociedade brasileira” Eu gostaria de poder dizer que há uma
estar na operação Lava Jato, quer dizer, ciedade brasileira nunca conseguiu er- falência, e que os partidos não represen-
isso que é triste, porque não podemos radicar a corrupção, inclusive a corrup- tam a sociedade brasileira, mas eu pos-
contar com a sociedade para defender ção nas grandes estatais começa ali. Mas so estar errada, porque os partidos talvez
o governo. Quem está mobilizado nes- no ponto que nos dói mais, há uma res- A Câmara dos Deputados, sob representem a sociedade brasileira. Tal-
se momento é a direita pelas redes so- ponsabilidade do PT, nessa despolitiza- comando de Eduardo Cunha, tem vez a sociedade brasileira esteja num re-
ciais e pelo descontentamento que já vi- ção da sociedade brasileira. colocado pautas que vão contra trocesso conservador, já que ela tem uma
nha desde o governo Lula, mas que es- os direitos dos trabalhadores tendência conservadora. O Brasil foi o
tava em minoria por não querer o go- e contra os direitos humanos, último país livre, dos países do ocidente,
verno do PT, além de estarem mobiliza- “Acho a democracia um como é o caso da terceirização, a abolir a escravidão. Foi uma elite que
dos pela crise econômica. Não é absur- do financiamento empresarial de deitou na sopa porque os outros países
do que, quando os governos de esquer- valor inestimável, temos campanha, da maioridade penal já tinham abolido, e que só deixou de ser
da, mesmo que sejam moderados, estão e da PEC 451, que viola o direito porque se tornou economicamente invi-
no poder, quem está insatisfeito é a di-
que preservá-la, defendê- à saúde, entre outras. Qual sua ável por uma elite cafeeira e canavieira.
reita, então é ela quem vai pra rua. Só la sempre, de qualquer avaliação sobre isso?
que esse governo de esquerda não criou O que eu posso dizer desse Congresso?
base de esquerda, pois fez tanta conces- maneira. Nada justifica um No caso das igrejas evangélicas não sei “Eduardo Cunha é uma pessoa
são com a direita que ficou atordoado. analisar o crescimento delas, eu respeito
Outra coisa que também criticamos [do golpe, nem de direita e nem as religiões que vieram do protestantis- que não se detém diante do apelo
Lula] foi a coalizão com o PMDB, embo-
de esquerda, um golpe que mo de Lutero, mas é claro que essa ban- ao bom senso, da moralidade. Ele
ra o PMDB no período militar tenha si- cada é uma bancada mais conservado-
do um partido valoroso – porque o MDB suprime a democracia, que ra. Avaliar o Congresso nesse momento tem um projeto pessoal, manipula
foi um partido que teve elementos valo- é me pedir pra dizer um monte de pala- fortemente, não sei em que base
rosos de oposição – quando virou o PM- suprime a liberdade” vrão porque é uma decepção gigantesca,
DB, principalmente depois das alianças José Antonio Teixeira/ALESP ele manipula, me parece que tem
com os governos petistas, vira um parti-
do ônibus: entra quem quer. Esse é o pior
uma prática mafiosa, isso é o que
momento, com o atual presidente da Câ- E como você avalia o os jornais dizem”
mara, Eduardo Cunha. O PMDB quer es- comportamento da mídia nesse
tar perto do poder, seja ele qual for. Se processo?
naquele momento o Executivo tivesse co- A mídia é conservadora, no entanto,
locado limite nas reivindicações, o PM- a imprensa, as televisões, o patrão de- Nas duas ditaduras que tivemos aqui,
DB não iria deixar de apoiar e nem vi- les não é só o dono da empresa, o pa- a oposição foi fraca. Se considerarmos a
rar oposição. Tanto que ele só vira oposi- trão deles são os leitores e os telespec- oposição à ditadura Argentina, Chilena
ção hoje porque o governo está despresti- tadores. Se a imprensa fica mais con- e Uruguaia, não é que lá houveram mui-
giado por conta de uma crise econômica. servadora é porque esses leitores estão tos mortos e muito mais presos, porque
Quer dizer, é um partido sem moral, sem mais conservadores, uma coisa alimen- as ditaduras eram brutais - aqui houve
fibra. É fácil virar oposição e ficar chanta- ta a outra. A Folha de S. Paulo no final menos porque teve menos oposição. A
geando a presidenta. No entanto, quando dos anos 1970 virou uma imprensa pro- questão é que a passeata dos cem mil em
Lula estava forte, era a hora de ter barra- gressista quando a grande parte da so- apoio ao Jango foi superada pela Marcha
do e não barrou. ciedade brasileira estava contra a dita- da Família com Deus pela Liberdade. A
dura. Na ditadura, a Comissão Nacio- sociedade do Brasil na sua formação so-
nal da Verdade não conseguiu compro- cioeconômica é conservadora. Muitas
“Esse é o pior momento, var isso e não lembro se está anexo dos mudanças progressistas foram efeitos
relatórios; dizia-se que Octávio Frias de arranjos da elite, porque não valiam
com o atual presidente da [morto em 2007] emprestava os carros mais à pena, como é o caso da escravi-
pra levar presos ou cadáveres. Então, dão e da República. E, mesmo assim, no
Câmara, Eduardo Cunha. O não é que eles eram contra a ditadura caso da República o primeiro grande ato
PMDB quer estar perto do por princípios, mas quando foi crescen- qual foi? Reprimir Canudos de uma ma-
do a onda de insatisfação no país pelos neira horrorosa e violentíssima. Então,
poder, seja ele qual for” militares, a imprensa se coloca contra. tem um conservadorismo aqui, princi-
Não dá para saber quem vem primeiro, palmente com os pobres, com os quilom-
se é o ovo ou a galinha. A psicanalista Maria Rita Kehl bolas, camponeses. (Portal da CUT)
8 de 13 a 19 de agosto de 2015 brasil

Reflexões sobre o (in)consciente coletivo Orlando kissner/Fotos Públicas


OPINIÃO Morei na Itália Circunstâncias: entre os primeiros não
existia a figura do constrangimento ou
em 1992 e 1993, em da vergonha, só o medo – em princípio
eles eram as vítimas. Nossos pais e filhos,
pleno auge da operação até netos, dos anos de chumbo só tinham
Mãos Limpas. Presenciei medo, por nós – não sofriam constran-
gimento moral entre vizinhos, professo-
seu resultado para a res ou colegas de trabalho, pelo contrá-
rio, sentiam-se orgulhosos da nossa co-
Itália. E a Lava Jato, que ragem e idealismo, assim como nós (cer-
resultado trará ao Brasil? tos ou errados) tínhamos até certo orgu-
lho de nós mesmos, tão convictos que
éramos das nossas bandeiras por demo-
cracia e justiça social.
Helenita M. Sipahi Entre os segundos existe principal-
mente a vergonha, por eles e por suas fa-
ENTRE TANTAS imagens e notícias diá- mílias, até porque os crimes dos quais
rias que me ferem olhos e ouvidos há me- são acusados estão associados cultural-
ses (um caldeirão de alta pressão prestes mente a desvios de caráter e são, do pon-
a explodir, que mistura corrupção, de- to de vista moral, indefensáveis. Suas fa-
semprego, terceirização, impeachment, mílias se tornam assim expostas a cons-
maioridade penal, ajuste fiscal e outros trangimentos de toda ordem.
temas, reais e/ou ampliados midiatica-
mente, insinuando a derrocada final e fa- Será por isto que o homem
tal de um país soberano), duas imagens branco chorava diante da TV?
me chocaram particularmente nos úl- Delação: não recordo de delações pre-
timos dias, as quais, na minha opinião, miadas na operação italiana; se existi-
têm relação entre si: a do corpo de um ram, não foram na mesma proporção
homem negro, nu, amarrado a um pos- que aqui. De qualquer forma, com prê-
te e linchado por populares após tenta- mio ou sem prêmio, esta expressão me
tiva de assalto e a de um homem bran- enoja; quando acontece, forçada ou não,
co desabando em pranto convulsivo du- expõe e amplia exponencialmente des-
rante um depoimento ao juiz Sérgio Mo- vios de caráter já existentes e destrói os
ro, em Curitiba, frente às câmeras de TV. últimos resquícios de dignidade que ain-
Essas duas imagens tem nomes dife- da existam no acusado. Tem sido o prin-
rentes – intolerância e arrogância – e cipal instrumento jurídico responsável
um suposto sobrenome comum – justi- pelo enorme sucesso do “meritíssimo” -
ça. A primeira com as próprias mãos e a explorado e estimulado por pressões psi-
segunda através de procedimento legal cológicas continuadas, longo tempo de
(legítimo?). Entre elas paira, inconteste, confinamento preventivo e oferta de van-
uma terceira vítima, de caráter civilizató- tagens, como qualquer “lei do Gerson” -
rio: a preservação universal dos direitos uma espécie de tortura sofisticada do sé-
individuais, de defesa legal e da integri- culo 21, segundo Ives Gandra Martins.
dade física, psicológica e moral.
Que valores éticos estão em jogo
Como chegamos a isto? no tabuleiro da justiça nos dias
Antes de mais nada devemos reco- de hoje?
nhecer, em que pese os extraordinários Historicamente, que exemplos deixa-
avanços sociais e de inclusão dos três remos para nossas futuras gerações?!
governos do Partido dos Trabalhadores, A cultura de ódio extrapola a área política, atinge valores civilizatórios e aprofunda preconceitos Os sobreviventes políticos saíram in-
nunca antes promovidos por nenhum teiros dos tempos da Ditadura, apesar
outro na mesma escala, que várias in- morreu no exílio em 2000, sem ter cum- O que resultará da operação Lava dela.
frações éticas tem sido atribuídas a inte- prido a pena. Di Pietro fundou um par- Jato para o Brasil? Outros presos, culpados ou não, e mes-
grantes do partido, algumas comprova- tido político, tendo apenas 3% dos votos Só o tempo dirá. Entretanto, algumas mo condenados, podem vir a superar su-
das (em nada diferente das que ocorre- nas eleições que se seguiram. comparações e perspectivas já devem as culpas, medos e constrangimentos e
ram em governos e partidos que lhes an- nos colocar em alerta: a) em relação à sair inteiros de suas tragédias pessoais;
tecederam – a aparente diferença de di- A operação Mãos Limpas era Petrobras, tramita no Congresso desde os homens das delações premiadas serão
mensão se deve ao fato de que os de ago- necessária? Qual foi o resultado março projeto do Sen. Serra que, basea- para sempre só a sombra de si mesmos...
ra são investigados com rigor e com to- para a Itália? do nas denúncias e investigações da La-
dos os holofotes ligados), além de erros Claro que era necessária, não há dúvi- va Jato, pretende privatizar parte da ex- Ninguém dá nome de rua a
na condução da política econômica, ca- da. Seguindo-se ao esfacelamento da an- ploração e produção do pré-sal (um an- Calabar
bíveis de urgentíssima correção. tiga União Soviética surgiram inúmeras tigo compromisso seu, da campanha de Exposição midiática: investigações,
Entretanto, desde a campanha eleito- denúncias de que políticos italianos, em 2010, com o grupo petrolífero americano denúncias e julgamentos deveriam ser
ral e reeleição da presidenta da Repúbli- especial do Partido Comunista, mas não Chevron, desde a descoberta do pré-sal); fenômenos naturais em qualquer socie-
ca em 2014, setores inconformados com só eles, recebiam recursos da KGB (o fa- b) o grau de comprometimento financei- dade civilizada – são regras do Direito.
a derrota, alas conservadoras do Con- moso ouro de Moscou) e propinas de ro das empreiteiras envolvidas na opera- O que se questiona é o abuso de expo-
gresso e a quase totalidade da grande mí- grandes empresas públicas e privadas, ção pode levar algumas delas à insolvên- sição na mídia de investigados e julgado-
dia vem orquestrando uma campanha de entre elas as do setor de petróleo; nes- cia e, por serem as maiores e mais espe- res, transformando a priori os primeiros
demonização do Partido dos Trabalha- ta modalidade estariam incluídos parla- cializadas do país, prejudicar, no futuro em condenados e os segundos em heróis
dores e do governo, ampliando diutur- mentares e dirigentes de outros partidos próximo, os projetos de ampliação e de- nacionais – desde o chamado mensalão.
namente a verdadeira extensão da cri- – Partido Socialista, Democracia Cristã e senvolvimento da infraestrutura do pró- A operação Mãos Limpas na Itália foi se-
se econômica e incutindo na sociedade outros, acusados de receber doações ir- prio país; c) o cerco aos partidos políticos melhante, e lá como cá, era a mídia “ofi-
um sentimento de ódio e intolerância. regulares para suas campanhas. Mais de – com honoráveis e explícitas exceções –, cial” que comandava o show, a mídia do
Político conhecido, e nunca investigado, 6.000 pessoas investigadas, centenas e notadamente ao Partido dos Trabalhado- Berlusconi que depois assumiu o poder...
afirma que a presidenta se reelegeu com centenas presas e cerca de 1.200 conde- res, com a ajuda cotidiana da grande im- mas ali havia, pelo menos, uma diferen-
os votos de pobres e de nordestinos; ou- nadas. Ironicamente, poucas ou quase prensa, já leva a sociedade àquele clima ça fundamental: a imparcialidade. Todos
tro, diante da crise, diz que a presiden- nenhuma do Partido Comunista... de desesperança e descrença nos agentes os partidos e agentes citados ou denun-
ta tem que sangrar, a mídia conclama, políticos e nas instituições. Pode não so- ciados recebiam o mesmo tratamento
sem pudor, a classe média para manifes- O que resultou da operação Mãos brar pedra sobre pedra. – da imprensa e da justiça. Na Lava Ja-
tações e panelaços contra a presidenta e Limpas para a Itália? Não se questionam a validade nem a to e em outras demandas judiciais, não
faz vazamentos seletivos e convenientes Independente dos acertos e erros da oportunidade das operações Mãos Lim- – “uns são mais iguais que os outros” co-
da operação Lava Jato... operação, e da sua própria validade, o re- pas e Lava Jato. O que se questiona são mo no ditado popular. Se assim não fos-
No limite e em consequência, a cultu- sultado que os analistas da época e os de métodos empregados, excessos e expo- se, por que as doações de campanha pa-
ra de ódio e intolerância extrapola a área agora apontam como sendo o mais signi- sição midiáticos em ambas e resulta- ra candidatos do PT são em princípio cri-
política, atinge valores civilizatórios e ficativo foi o fim da primeira república do dos, confirmados em uma e previsíveis minosas e as de outros partidos, p.ex. do
aprofunda preconceitos raciais, de clas- pós-guerra – com importante desindus- na outra. PSDB, sequer constam da lista de inves-
se, gênero e opção sexual, até religiosos trialização do país na década seguinte, tigações? Por que os vazamentos de da-
(a garota espancada ao sair de um cul- privatização da estatal do petróleo, der- Aqui entra a imagem do homem dos sigilosos são sempre seletivos, con-
to afro); o homem negro linchado e ou- rocada de todos os partidos políticos (o branco aos prantos frente às venientes, permitidos e nunca contesta-
tras tentativas de linchamento, repeti- PSI que ficou de pé nada tinha do origi- câmeras de TV. dos? Por que uma denúncia sem provas
das agressões a homossexuais, ataques nal) e um sentimento difuso de descren- Certamente o juiz Sergio Moro não na revista Época se transforma imedia-
digitais à apresentadora negra e, nos es- ça e falta de engajamento da sociedade tem experiência de estar em prisão, co- tamente em investigação de tráfico inter-
tádios, a jogadores negros, achaques de em relação à atividade política – o vácuo mo não tinha o procurador Di Pietro na nacional de influência do ex-presiden-
ministros em hospitais, restaurantes e que se seguiu facilitou o florescimento de Itália. Nem sensibilidade para distin- te Lula e as tratativas e conferências in-
aeronaves. Ontem, mais um caso de lin- partidos neofascistas e xenófobos como a guir o estado de espírito e as circunstân- ternacionais do outro ex-presidente são
chamento, na favela da Rocinha no Rio! Liga Norte e o PdL (Povo da Liberdade), cias de acusados e réus políticos daque- consideradas “do bem”? Por que a aqui-
No episódio recente de produção e dis- de Sílvio Berlusconi, magnata das comu- las de acusados de crimes comuns. Ou sição do famoso apartamento de 11 mi-
tribuição de adesivos pornográficos si- nicações na Itália, o ex-primeiro-minis- tem e se utiliza delas. A diferença pode lhões de euros em Paris (entrevista a Mô-
mulando o estupro da presidenta (crime tro “bufo” que acaba de ser condenado... parecer pequena (afinal uns e outros se- nica Bergamo, 2011) à época das priva-
claro de incitação coletiva à violência e por corrupção! Com a anomia que se ins- riam presos acusados criminalmente), tizações, nunca foi investigada? Se isto
ameaça à integridade física e moral, não talou na década de 90 e os escândalos da mas não é. não é seletivo...
só da presidenta, mas de todas as mulhe- era Berlusconi, a Itália perdeu o protago- Reprodução Por fim, analisemos as consequências
res brasileiras), não vimos nenhuma rea- nismo político que sempre teve no pós- dessas operações para os envolvidos: na
ção indignada da grande imprensa nem -guerra e é hoje uma peça menor na co- Mãos Limpas foram investigadas 6.000
do próprio Congresso como instituição, munidade europeia, com todas as conse- pessoas e condenadas 1.200; as demais
como se fosse tudo banal, apenas mais quências – 20 anos depois da operação 4.800 foram excluídas ou absolvidas.
um ataque pessoal à presidenta. Um in- Mãos Limpas ficou muito mais pobre, Mas antes disto – dado o arrogante es-
quérito, sigiloso, foi aberto mas, coinci- com taxas de desemprego de 14%, 40% petáculo midiático – tiveram suas vidas
dentemente, neste caso nenhum vaza- entre os jovens de 18 a 24 anos. expostas e devassadas e suas reputações
mento sobre o autor e financiadores... destruídas. Quem garante que os 12 sui-
Tudo, fruto e exemplos de extrema in- A operação Lava Jato é cidas não estariam entre os absolvidos
tolerância, alguns beirando a barbárie. necessária? Qual será o resultado se estivessem vivos? Suicídio nestes ca-
para o Brasil? sos nem sempre é confissão de culpa; po-
E o homem branco chorando Claro que é necessária, sem dúvida. de ser apenas desespero e impotência
diante das câmeras de TV? Há graves denúncias de corrupção e des- diante da violência sofrida.
Sou ex-presa política da década de 1970 vios que devem ser apurados e punidos. Se eu fosse o homem branco (qual-
e morei na Itália em 1992 e 1993, em ple- A nossa maior empresa – orgulho nacio- quer que fosse minha culpa, ou nenhu-
no auge da operação Mãos Limpas – co- nal – foi espoliada por ação de poucos, ma) eu também choraria frente às câme-
nheço, portanto, os dois lados. Lá, o pro- insisto poucos, altos funcionários da em- ras de TV. O homem negro, nu, sequer
curador Di Pietro (alter-ego do juiz Sér- presa, alguns réus confessos, e políticos teve tempo de chorar...
gio Moro) também prendeu durante me- de todos os partidos, repito todos, rece- É o Brasil em que estamos nos trans-
ses a fio dezenas e dezenas de figurões, beram para suas campanhas vultuosas formando – intolerante, arrogante e
entre empresários e políticos – deputa- doações de grandes empresas (regula- cruel.
dos, senadores, secretários, ministros e res? irregulares? a esclarecer). Há por- Definitivamente, não foi este o país
dois ex-primeiros-ministros (Giulio An- tanto que investigar e, se culpados, pu- com que eu sonhei! (Carta Maior)
dreotti e Bettino Craxi). Dos investiga- nir. Na semana passada, foram divulga-
dos, 12 se suicidaram durante as inves- das as primeiras condenações. Justas? Helenita M. Sipahi é médica, ex-presa polí-
tigações, sete enquanto eu estava lá, An- Difícil avaliar a culpabilidade e circuns- tica da década de 1970, atua no movimen-
dreotti foi absolvido após 5 anos e Craxi tâncias de cada um. É a palavra do juiz. A médica Helenita M. Sipahi to médico, em São Paulo.
brasil de 13 a 19 de agosto de 2015 9

População LGBT é alvo de


discriminação também entre sem-teto Wilson Dias/ABr

ENTREVISTA Padre Júlio


Lancellotti fala da relação de “amor
e ódio” entre a população LGBT e
moradores de rua e critica políticas
públicas para o seguimento

Marcela Belchior
de São Paulo (SP)

A POPULAÇÃO LGBT (Lésbicas, Gays,


Bissexuais e Transgêneros) que vive em
situação de rua no Brasil sofre ainda
mais violência e discriminação do que
os demais sem moradia no país. Além
da exclusão por parte da família, ami-
gos, mercado de trabalho e Poder Públi-
co, imersos numa circunstância existen-
cial que os leva à carência material abso-
luta e ao total abandono em praças e cal-
çadas, esse público é rebaixado por uma
hierarquia das ruas, que os delega uma
condição de subordinação a outros tam-
bém sem-teto.
Para falar sobre o assunto, a Adital en-
trevistou Júlio Lancellotti, sacerdote ca-
tólico brasileiro, monsenhor e pároco
da Igreja São Miguel Arcanjo, na cida-
de de São Paulo, e coordenador da Pas-
toral da População de Rua em São Paulo.
O padre, que é também pedagogo e teó- O padre Júlio Lancellotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, em São Paulo
logo, doutor Honoris Causa pela Ponti-
fícia Universidade Católica de São Pau- ódio. São eles que lavam a roupa dos ou- que é interessante nisto: o povo da rua viver. Eles não têm uma escola específi-
lo (PUC-SP), dedica grande parte de sua tros, são rejeitados, mas têm os compa- tem uma relação muito forte com os ca- ca, um hospital específico. Pode ser uma
atuação ao trabalho social, especialmen- nheiros. Têm também proteção. Pois os chorros. E os cachorros são mais bem resposta momentânea. Um exemplo
te junto a crianças e adolescentes infrato- que são mais discriminadores são os que cuidados do que eles. Tem gente que dá bom disso são as Olimpíadas, que é um
res, detentos em liberdade assistida, pa- marcam, depois, encontro com eles. É comida para a população de rua e tem evento extremamente competitivo. Por
cientes soropositivos, populações de bai- uma relação de tensão. gente que leva comida para os cachorros. isso é que há as Olimpíadas dos deficien-
xa renda e em situação de rua. E tem gente que visita a população de rua tes. Eles são tão atletas quando os outros,
É possível identificar pontos em por causa dos cachorros. Coloca-se o ca- mas têm de fazer Olimpíadas diferentes
Como avalia a situação da comum nas histórias do LGBT chorro como centro, porque ele retribui dos outros.
população LGBT que vive nas em situação de rua? Como foram o afeto, o cuidado, e a população de rua é
ruas do Brasil? parar nessa condição? mais contraditória, nem sempre retribui, O que representou o lava-
Júlio Lancellotti – A situação da po- A população de rua reproduz os mes- como o cachorro. pés da atriz Viviany Beleboni,
pulação de rua LGBT é a mesma que toda mos preconceitos, rejeita e estabelece re- que sofreu ameaças por ter
a população LGBT vive no Brasil, agra- lações afetivas. Tem o conflito com a fa- O que significa uma gestão participado da 19ª Parada do
vada pela exposição na rua, sofrendo mília, com a comunidade local. E uma caracterizada por ações Orgulho LGBT, pregada numa
violência e discriminação potencializa- coisa que me chama muito a atenção: os higienistas? cruz, na capital paulista?
da. Sem nenhuma proteção, sofrem ain- conflitos religiosos. De igrejas que não É aquela ação que quer eliminar a po- Misericórdia e pedido de perdão, aco-
da mais da repressão das polícias. Nem aceitam algumas denominações, que os breza eliminando os pobres. Tratando-os lhimento sem julgamento, vivência radi-
sempre encontram proteção, apoio e au- acaba expulsando do convívio religioso. como lixo e resíduos. Essas ações higie- cal do seguimento de Jesus. A pergunta
tonomia. Posso falar a partir da popula- Esses grupos, em geral, são famílias tam- nistas são muito presentes aqui em São é? Jesus a acolheria ou não? Lavaria seus
ção LGBT que vive na cidade de São Pau- bém, que, por causa da situação religio- Paulo. Na praça 14 Bis houve uma ação pés ou a rejeitaria? Fizeram um baru-
lo, que eu conheço mais. Há peculiarida- sa, são intolerantes e não aceitam, de for- truculenta do “rapa” [fiscais]. As pesso- lho enorme em cima de uma coisa... Ve-
des em várias cidades do Brasil. Essa po- ma alguma, a convivência. Querem que as estavam celebrando uma missa e co- mos crucificação dos camponeses, meni-
pulação é facilmente identificável. A dis- as pessoas mudem. Esses que estão na meçaram a retirar as coisas das pesso- nos de rua, pessoas negras, indígenas... A
criminação e o preconceito crescem pe- rua são os que assumem sua condição, as. Pedi: “Parem de fazer isso! Sejam vo- intolerância é porque é uma transexual.
las circunstâncias de vida deles, e aca- vivem sua condição e acabam ficando na cês evangélicos, católicos, espíritas, mu- Ela se identificou com a dor de Cristo e
bam sendo extremamente feridos, sofri- rua, porque não têm nenhum espaço so- çulmanos, judeus, budistas, ateus, ag- outros se identificaram com a dor dela.
dos e discriminados. cial de acolhimento. nósticos... Sejam humanos, parem de ti- Jesus morreu por nós, todos pecado-
Eu me lembro muito bem de um jo- rar as coisas dos irmãos de rua! Isso é res. Jesus não morreu por uma categoria
Quais os desafios enfrentados vem que estava me dizendo do confli- uma questão de humanidade!”. Estava vip ou de exclusividade. Seu amor é pa-
por essas pessoas? Houve to que ele tinha com o pai, no grupo da frio, garoando. Eles não puderam carre- ra todo mundo, para os transexuais tam-
avanços nos direitos humanos igreja, e eu perguntei para ele: “quem é gar seus objetos. O que a polícia diz? “Su- bém. Lavar os pés foi um gesto que Je-
dos sem-teto LGBT? que te aceita, dá carinho e gosta de vo- mam. Armem sua barraquinha diante da sus fez com aqueles que eram seus discí-
Enfrentam desafios comuns à popu- cê?”. E ele disse: “Minha avó”. “Como tua assistência social.” Não importa para on- pulos, que o abandonaram, o traíram ou
lação de rua, mais o preconceito e dis- avó te trata?”. “Me dá carinho, me agra- de vão. A Polícia Militar também está di- o negaram. Os primeiros que devem ser
criminação, assédio e até a necessida- da, me dá comida, quer que eu vá para zendo que vai plantar drogas e forjar fla- respeitados são aqueles que são discrimi-
de de prostituírem-se, doenças, aban- a casa dela, tomar banho. Tem compai- grantes. A ação da Prefeitura é extrema- nados e tratados de maneira cruel. A mi-
dono, imensa carência afetiva e bus- xão pelo meu sofrimento, é muito afetu- mente higienista. nha pergunta é sempre esta: Jesus lava-
ca de proteção. Existem questões espe- osa comigo.” Eu disse: “Deus te ama co- ria os pés dela? A trataria com misericór-
cíficas, de sobrevivência. Questões es- mo a sua avó”. Então, ele ficou muito sur- dia e compaixão? Aí as pessoas me per-
pecíficas da área de saúde, dos atendi- preendido. “Deus me ama? Por que ele “A relação com a mídia é guntam: mas ela trataria com respeito a
mentos. Há algumas tentativas, como me fez mulher num corpo de homem?” religião? Esta é uma pergunta que Jesus
em São Paulo, onde se fez um centro de Então, são conflitos muito fortes. É uma conflitiva, espetacular e de nunca fez.
acolhida específico para eles. A grande questão existencial, dentro do simbolis- não entendimento do mundo
pergunta é: não deveriam estar integra- mo das questões sociais. Isso se agrava e Que contribuições o Papa
dos em todos os espaços, aprenderem a agudiza, jogando essas pessoas nas ruas. da rua e suas consequências. Francisco tem trazido para a luta
lidar, aceitar e conviver, sem que sejam do povo em situação de rua?
massacradas? Tem que ter um espaço Qual sua avaliação sobre a Na maior parte das vezes, Na medida em que age, dá exemplo ao
onde tenha um banheiro que eles pos- relação da mídia com o povo em é um interesse factual, um Vaticano, acolhendo os moradores de
sam usar ou em todo lugar tem que ter situação de rua? Qual a imagem rua, na visão geral do sistema, que des-
um banheiro para eles? disseminada? interesse episódico” carta, e na sua transformação. Na defe-
A relação com a mídia é conflitiva, es- sa dos pobres e esquecidos. Eu acredito
petacular e de não entendimento do que a mensagem do Papa Francisco con-
“A população de rua reproduz os mundo da rua e suas consequências. Na tribui muito para os movimentos sociais
maior parte das vezes, é um interesse fac- Em declarações, o senhor na Bolívia, a partir dos três T: teto, tra-
mesmos preconceitos, rejeita e tual, um interesse episódico. Não tem ne- comentou que o Censo da balho e terra. Isto está extremamente li-
nhum interesse existencial, nenhum pro- População de Rua de São Paulo gado à população que vive nas ruas, que
estabelece relações afetivas. Tem cesso de vida dessas pessoas. É como tu- “é uma fantasia”. Por quê? precisa de trabalho, teto e terra. Eu colo-
o conflito com a família, com a do: uma pessoa foi queimada, então, isto Porque não conseguiu realizar o que caria ainda um quarto T: ternura. O Pa-
é notícia; se ela achou uma carteira, isto anuncia: contar toda a população de rua pa Francisco tem dito muito isto: não te-
comunidade local” é notícia. É sempre nesse mundo do con- da cidade. Não levou em conta os que es- nham medo da ternura.
sumo. Consumo das pessoas e das notí- tão em entidades não conveniadas, como
cias. Todas as discussões são imediatis- a Missão Belém, e usou o mesmo con- Ao longo dos 30 anos de
tas, pragmáticas e de consumo. ceito de população de rua do Censo de sacerdócio, o senhor já foi
Como os governos têm lidado 2000, por questão técnica, e não atua- perseguido, ameaçado,
com as pessoas em situação de Como a sociedade se relaciona lizou o conceito frente à realidade, que processado, viveu momentos de
rua e, em especial, com os LGBT? com o povo em situação de rua? mudou. O Censo não levou em conta tensão com a polícia. Como avalia
Existem leis, propostas, mas, em geral, Que sociedade? Eles não fazem parte quem está em barraco, só quem está em sua trajetória?
impositivas e verticais. Há muita pressão desta tão falada sociedade. Há uma dis- barraca, considerando o primeiro, faveli- Dura, cheia de momentos desafiadores
e programas sucateados e improvisados. sociação do real, do que é simbolizado, zação. Há lugares que, sabemos, não são e consoladores. Feliz por ser amigo dos
Nos momentos de crise, como agora, são na medida em que se quer vender a ima- caracterizados como favelas. Aí, a Assis- mais pobres e aviltados, de ser amado
os primeiros afetados. O grupo LGBT re- gem de uma pessoa inofensiva, um “coi- tência Social diz que isso é problema da por aqueles que ninguém ama. É uma lu-
cebe respostas parciais e não atingem to- tadinho”. E essas pessoas carregam tam- Habitação. E também não contaram os ta pela vida, uma luta de resistência, um
dos. Como esse espaço específico, mas bém contradições, desejos, buscas, revol- que estão em entidades religiosas, ou em combate diante de situações que querem
que tem várias outras questões. Por que tas. Eles são quase pasteurizados. Eles hospitais e clínicas. destruir os fracos, os pequenos. Hoje em
eles ficam no centro de acolhida? Como são marcados pela mídia, pelo consumis- dia, a intolerância, o preconceito e a rai-
eles podem ter acesso à questão da mo- mo. As relações reais são muito confliti- Como avalia os abrigos va é cada vez maior. Existe muita solida-
radia e serem respeitados? vas. Às vezes, a mídia passa uma visão destinados aos LGBT, a exemplo riedade, mas existe muito ódio também.
idealizada. do Centro de Acolhida Zaki
Como é a convivência do povo Narchi, em São Paulo? Deseja acrescentar algo mais?
em situação de rua com os LGBT, O senhor já comentou que Foi uma tentativa de mascarar a rea- Que na velhice faço memória de tudo
que também vivem na rua? estamos vivendo uma sociedade lidade em cima de uma resposta gasta e o que vivi, com marcas e cicatrizes, mui-
Pelo que eu percebo, é uma rela- “cachorrocêntrica”. O que seria inadequada de “albergue”, porque não tas imagens de ternura, muitas sauda-
ção contraditória e cheia de contrastes. isto? tem autonomia para uma moradia com des dos que amei, com força para resistir
Eles são também, muitas vezes, rejeita- É a cultura do cachorro, do petshop. dignidade. É aquilo que te disse: é mais e insistir, e não aceitar que os pequenos
dos pelo próprio segmento da população São Paulo tem 4 mil padarias e 4 mil fácil fazer um lugar específico do que fa- sejam pisados. (Colaborou Cristina Fon-
de rua, que tem uma relação de amor e pets. Fome de pão e carência de cão. O zer com que essas pessoas possam con- tenele) (Adital)
10 de 13 a 19 de agosto de 2015 cultura

Tudo por amor ao cinema Trombone Comunica

DOCUMENTÁRIO
Aurélio Michiles refaz
a politizada trajetória
de Cosme Alves Netto,
embaixador do cinema
do Leste Europeu e da
América Hispânica no Brasil

Maria do Rosário Caetano


de São Paulo (SP)

O CINEASTA Aurélio Michiles construiu


uma mais que justa homenagem, em for-
ma de filme, ao cineclubista, militante
político e conservador da Cinemateca do
MAM (Museu de Arte Moderna do Rio),
Cosme Alves Netto (1937-1996). O docu-
mentário intitulado, poeticamente, “Tu-
do Por Amor ao Cinema” está em cartaz
em diversas capitais brasileiras e deve
ser visto por todos os que se interessam
por política e cinema. Afinal, foi a estas
duas atividades que o saudoso Cosme de-
dicou sua vida.
Filho de poderoso empresário amazo-
nense, Cosme cresceu em Manaus, cerca-
do de amigos, livros, filmes e de um gran-
de interesse pela filosofia e pela política.
E pouco interesse pelos negócios do pai,
nucleados na holding Companhia Indus-
trial Amazonense. Aos 17 anos, deixou Os cineastas Aurélio Michiles e Eduardo Coutinho: mergulho na história do cinema
sua cidade natal para prestar vestibular
no Rio de Janeiro. Ingressou na Facul-

Um filme que cultiva a cinefilia,


dade Nacional de Filosofia e iniciou-se
no cineclubismo e na militância política.
Primeiro, atuou no Grupo de Estudos Ci-
nematográficos (GEC), da União Metro-

sem esquecer a ação política


politana de Estudantes (UME), e na Ju-
ventude Universitária Católica (JUC).
Em seguida, na Ação Popular (AP), or-
ganismo da esquerda católica extraparla-
mentar, criado em 1962, por Herbert de
Souza, o Betinho, e outras lideranças. Até “Tudo Por Amor ao Cinema” é um filme recomendado a cinéfilos politizados
o final de sua vida (Cosme morreu no Rio
de Janeiro, aos 59 anos), integraria a di-
retoria do Instituto Brasileiro de Estudos lio pelas imagens o levou ao mergulho Mais emoção
Sociais e Econômicos (Ibase), comanda- de São Paulo (SP) na história do cinema e a lançar mão Outro momento emocionante do fil-
do pelo irmão do Henfil. de fragmentos de setenta filmes, habil- me registra a luta de Cosme (com apoio
No governo Goulart (1961-1964), o Seu autor, Aurélio Michiles, amazo- mente montados por Fernando Coim- de José Carlos Avellar) para salvar fil-
Brasil fervia. E o jovem Cosme corria nense como Cosme, já dirigiu 18 do- bra (diretor do premiadíssimo lon- mes brasileiros proibidos pela ditadu-
da faculdade de filosofia para os cine- cumentários. Dois de longa-metragem. ga “O Lobo Atrás da Porta”). O títu- ra militar (1964-1984), caso de “Cabra
clubes, do GEC para sindicatos e igre- Além deste dedicado a Cosme, ele re- lo mais citado, claro, é “O Encouraça- Marcado para Morrer” e “Manhã Cin-
jas, passando sempre pela Cinemateca alizou cine-biografia do cineasta luso- do Potemkin”, visto na rebelião dos ma- zenta”. Onde guardar os negativos do
do MAM, onde conseguia filmes que se- -brasileiro Silvino Santos (1886-1970), rinheiros russos e na famosa sequência filme interrompido de Eduardo Couti-
riam exibidos para estudantes, operá- na qual misturou ficção (José de Abreu da Escadaria de Odessa. A ele se soma- nho? O cineasta lembra que Cosme os
rios e fiéis de paróquias progressistas. interpreta Silvino) e documentação his- rão filmes como “O Garoto”, de Chaplin, guardou na Cinemateca do MAM, mas
Mas em 1962, ele foi instado pela famí- tórica. Para o baiano Glauber Rocha “Aurora”, de Murnau (clássico da era com nome falso (“Rosas do Campo”). Se
lia a regressar a Manaus para assumir os (1939-1981), uma de suas paixões ciné- muda, que Cosme assistia com Miguel algum representante da ditadura apare-
negócios da holding. Preocupou-se mais filas, Aurélio ergueu canto de amor ei- Pereira, quando se daria sua segunda cesse para recolher os filmes proibidos,
em criar um Centro Popular de Cultu- sensteiniano de 52 minutos, exibido prisão), “Cabra Marcado para Morrer”, não encontrariam nem sinal da saga de
ra (CPC), inspirado nas ideias de Pau- com ótima repercussão na TV Cultura: de Eduardo Coutinho, “Manhã Cinzen- Dona Elizabeth e de João Pedro Teixei-
lo Freire, que na parte administrativa da “Que Viva Glauber!” (1991). ta”, de Olney São Paulo, e “A Idade da ra. “Manhã Cinzenta”, proscrito porque
empresa. Não aguentou o peso dos ne- Os outros médias-metragens de Mi- Terra”, de Glauber Rocha. uma cópia dele foi encontrada num Ca-
gócios e regressou ao Rio, abrindo mão chiles, que estudou Arquitetura na Uni- Cosme participou de dois longas fic- ravelli sequestrado por miltantes políti-
da fortuna paterna. versidade de Brasília (UnB) e vive em cionais. Interpretou um bispo em “O cos, também viveu sob identificação fal-
São Paulo desde os anos 1980, tratam Grande Mentecapto”, de Oswaldo Cal- sa.
da questão indígena, outra de suas pai- deira, e a si mesmo em “Cinema de Lá- Emocionantes são também as ima-
Por exibir o “O Encouraçado xões (“O Brasil Grande e os Índios Gi- grimas”, de Nelson Pereira dos Santos, gens do incêndio que destrui o Museu
gantes”), de monumentos de nossa ar- no qual contracenou com Raul Cortez. de Arte Moderna do Rio, em 1978. Por
Potemkin” para marinheiros quitetura (como o Teatro Amazonas), Às imagens do filme de Nelson, Aurélio sorte, a Cinemateca, plantada no belo
da gráfica utópica soviética, do látex, do somou trechos de documentários que ti- conjunto arquitetônico da Praia do Fla-
sublevados, ele foi preso em 1964. guaraná e dos sabores do Rio Negro. veram Cosme como foco: “A Cinemate- mengo, salvou-se. Tudo foi registrado
Voltaria à prisão em 1969, nos Para construir “Tudo por Amor ao Ci- ca Segundo Cosme Alves Netto” (Valên- pelo fotógrafo e cineasta Walter Carva-
nema”, Aurélio colheu dezenas de de- cio Xavier, 1988), “Movimento Cineclu- lho, dando origem ao curta-metragem
dias que se seguiram ao AI-5 poimentos no Brasil e em Cuba. Cha- bista”, obra inacabada de Walter Carva- “MAM S.O.S”, que ganha potente reuti-
mam atenção os testemunhos da antro- lho, 1977-1980), Noticiero ICAIC (San- lização em “Tudo por Amor ao Cinema”.
póloga Iza Guerra, que foi noiva de Cos- tiago Alvarez-1980), “I Festival Nor- Por fim, há que se registrar a perti-
me e, como ele, fundadora da AP (ele te de Cinema” (Cezídio Barbosa-1969), nência dos afetivos, mas sólidos, de-
Nos idos de março, Cosme exibiu “O assinou a ata de fundação no Rio, ela, “A Árvore da Fortuna” (Michiles-1992) poimentos prestados ao filme por Gló-
Encouraçado Potemkin” (Serguei Ei- na Paraíba), do alemão Rolland Scha- e “Abujamra Entrevista Cosme” (Zelito ria e Vanessa, viúva e filha de Cosme.
senstein/1925) para os marinheiros su- ffer, diretor do Instituto Cultural Bra- Viana, 1996, realizado quatro dias antes A médica Glória Maria Barbosa conta
blevados. Quando o golpe militar triun- sil-Alemanha (ICBA), em Salvador, e da morte do amazonense). que era militante da causa negra, quan-
fou, na madrugada de primeiro de abril, grande apoiador da Jornada de Cinema Por tamanha riqueza de material de do foi à Cinemateca do MAM buscar fil-
o jovem Alves Netto estava na lista dos da Bahia, do escritor Márcio de Souza, arquivo e por saber como somar tantas mes que tivessem a cultura afro-bra-
procurados. Foi preso e teve que respon- conterrâneo e amigo de Cosme, dos crí- imagens, estabelecendo diálogos entre sileira como tema. Recebeu de Cosme
der a Inquérito Policial Militar (IPM). ticos José Carlos Avellar e Carlos Alber- elas, “Tudo por Amor ao Cinema” é um substantiva lista de títulos para exibir
Foi libertado alguns meses depois por to Mattos, do embaixador Arnaldo Car- filme que se deixa ver com muito prazer. no grupo em que militava. E a promes-
“falta de provas”. Quando José Sanz, pai rilho e das cubanas Lola Calvino e Al- Os mais politizados vão ficar surpre- sa de que voltaria para que almoçassem
dos futuros cineastas Sérgio e Luiz Alber- químia Peña. Sem falar nos comoventes sos com o depoimento do cineasta Ge- juntos. Ela voltou, almoçaram juntos
to Sanz, deixou a Cinemateca do MAM, depoimentos de Glória Barbosa, viúva raldo Moraes. Ele relembra o kafkia- e ela retribuiu com um almoço na ca-
em 1965, Cosme ocupou interinamente de Cosme, e a da filha que o casal ado- no “episódio da caderneta”. De tão es- sa dela. Casaram-se e Glória quis ado-
o cargo de diretor. Assumiria o posto, de tou, Vanessa Barbosa Ferreira. pantoso, este intrincado registro do em- tar um filho. Cosme não tinha nenhuma
fato, dois anos depois e nele permanece- bate entre militantes de esquerda ver- paciência com criança. Ficou relutante.
ria até 1988. Mergulho sus aparelho repressivo militar nos leva Mas cedeu. A escolhida foi uma menina
Por duas décadas, Cosme transformou Com tantos depoimentos, “Tudo por a pensar em folclore político ou lorota. serelepe, que ele aprendeu a amar e que
a Cinemateca do MAM em “embaixada” Amor ao Cinema” poderia ter se trans- Aurélio garante tratar-se de “fato acon- hoje vive no Rio Grande do Norte, pró-
informal do cinema do Leste Europeu e formado em um cansativo “filme de ca- tecido, com outras testemunhas, como xima da mãe, ao lado dos quatro netos
da América Latina. Promoveu mostras beças falantes”. Mas o amor de Auré- o cineasta paraense Januário Guedes” que Cosme não pôde conhecer. (MRC).
de cinema tcheco (difundindo filmes co-
mo “Um Dia, Um Gato”, de Voitech Jas-
ny), polonês (“Madre Joana dos Anjos”,

Um turco amazonense?
de Jerzy Kavalerowich), soviéticos (ape-
sar da maldição que recaía sobre esta ci-
nematografia), argentinos (“La Hora de
los Hornos”, de Solanas & Getino), boli-
vianos (filmes de Jorge Sanjinés) e cuba-
nos (“Memórias do Subdesenvolvimen-
to”, de Alea, entre outros). o oceano de navio e passou por Dakar, tamanhas privações, se ele era filho de
A relação de Cosme com Cuba foi das de São Paulo (SP) no Marrocos, onde provavelmente com- pai rico, industrial? Pois agora, poucos
mais profundas. Ajudou o Festival del prou este chapéu e o eternizou nesta fo- meses atrás, Glória me enviou carta es-
Nuevo Cine Latinoamericano de la Ha- Há uma foto de Cosme Alves Netto, to, guardada com zelo. Fez a viagem jun- crita pelo pai do Cosme, na qual ele conta
vana desde seu nascimento, em 1979 mostrada em “Tudo por Amor ao Cine- to com amigos e uma amiga. Estes re- que tinha recebido correspondência do
(edição vencida por “Coronel Delmiro ma”, que surpreende até os que convi- tornaram ao Brasil e Cosme seguiu para filho e que já havia remetido, através de
Gouveia”, de Geraldo Sarno), integrou veram com ele, por décadas. O vemos Paris, pois queria conhecer a Cinemate- ordem bancária, dinheiro para ele. Tra-
a direção colegiada da Fundação do jovem, de pele bem morena e fantasia- ca do Henri Langlois (1914-1977). ta-se de carta super carinhosa, que revela
Novo Cinema Latino-Americano, se- do de “turco”. Que registro é este? Tal Depoimentos de suas amigas da épo- muito da relação entre os dois. O pai pe-
diada na Finca Santa Bárbara e coman- indumentária foi usada num baile de ca registram que ele chegou a dormir nos de que Cosme observe tudo e depois re-
dada por Gabriel García Márquez (1927 carnaval, em Manaus? bancos de praça, passou necessidades, late em detalhes toda experiência pari-
-2014) e ajudou na criação da Escola Aurélio Michiles esclarece: “trata-se mas realizou seu sonho de conhecer a Ci- siense. “A sua opinião é muito importan-
Internacional de Cinema de San Anto- de retrato realizado na primeira via- nemateca Francesa e Langlois. Isto nos te para mim”, afirmava. Publiquei a carta
nio de los Baños. gem internacional do Cosme. Ele cruzou leva a perguntar: mas como passou por na página do filme no Facebook”. (MRC)
cultura de 13 a 19 de agosto de 2015 11

O Salão de Baile de Jimmy


CINEMA Cineasta
Divulgação
to dos proprietários de terra e do Padre
Sheridan (Jim Norton). O velho sacerdo-
exercita seu realismo te teme as ideias progressistas de Jimmy,
crítico, explicita a luta que está, ainda por cima, ensinando os
jovens a dançar o jazz, visto como prática
de classes e encontra a lasciva, portanto demoníaca, de negros.
alegria num salão de baile Indignada
A influente revista francesa Cahiers du
onde irlandeses pobres Cinéma detestou o filme e ficou indigna-
aprendem a dançar o jazz da com sua seleção para a disputa da Pal-
ma de Ouro, em Cannes 2014. Tachou-o
de “acadêmico, sem élan”. Chegou a di-
Maria do Rosário Caetano zer que “Jimmy´s Hall” “cheira a naftali-
de São Paulo (SP) na”. É histórico o desinteresse da revista
por filmes políticos. Em especial os que
DEPOIS DA COMÉDIA social “A Parte têm a luta de classes como motor da his-
dos Anjos” (2012), o mais divertido dos tória. A mais influente publicação dedi-
filmes de Ken Loach, o cineasta realizou cada à cinefilia nasceu de um grupo ca-
um sólido documentário (“O Espírito de tólico (caso de seu principal mentor, o
45”) sobre a devastação (pelos neolibe- brilhante André Bazin) e conheceu uma
rais comandados por Margareth Tat- única fase ultra-politizada: a comanda-
cher) do Estado de Bem-Estar Social er- da por Godard e grupo maoísta, no final
guido, no pós-Guerra, em sua Inglaterra dos anos 1960, comecinho dos 70. Hoje,
natal. Agora, chega aos cinemas brasi- cultiva a cinefilia temperada com pitadas
leiros seu filme mais recente, “Jimmy’s pop. Para seus articulistas, o cinema de
Hall”, que será exibido com seu título Ken Loach & Paul Laverty não é digno de
britânico. Não se sabe porque não hou- interesse.
ve tradução. “Jimmy’s hall”, quadragésimo filme do diretor inglês Ken Loach A sorte é que a revista já não tem o
O filme – o quadragésimo na carrei- prestígio de outrora. O Festival de Can-
ra do diretor, se somarmos suas obras (1886-1945), irlandês banido de seu O foco de “Jimmy´s Hall” ilumina a lu- nes – assim como os de Veneza e Berlim
para TV e cinema – ganharia muito se país, Ken Loach lançou mão de roteiro ta de um indivíduo, apoiado em sua co- – tem imenso interesse pelo cinema do
fosse chamado de “O Salão de Baile de de seu mais assíduo colaborador, o es- munidade, contra as instituições. No ca- realizador britânico. Ele já participou de
Jimmy”. Até porque colocaria ênfase em cocês Paul Laverty. Juntos desde “Ter- so, a Igreja Católica e os donos de terra. A 17 edições do festival francês, ganhou a
seu cenário principal, um salão mantido ra e Liberdade”, no qual Laverty inter- Irlanda acabara de sair de cruenta guer- Palma de Ouro em 2006, com “Ventos da
pelo militante comunista Jimmy Gral- pretou integrante das milícias republi- ra civil. O clima de acirramento de âni- Liberdade”, vários prêmio do Juri (com
ton. E evocaria clássico do italiano Ettore canas, eles realizaram mais 15 filmes mos é perceptível. Depois de dez anos, “Agenda Secreta”, “Chuva de Pedras” e
Scola (“O Baile”, 1983). (todos escritos pelo escocês, que dei- Jimmy Gralton (interpretado pelo ótimo “Terra e Liberdade”), além de vários prê-
O novo filme de Ken Loach, autor de xou a atuação de lado e tornou-se prolí- ator Barry Ward) regressa dos EUA pa- mios da Fipresci – Federação da Crítica
títulos poderosos como “Terra e Liber- fico roteirista). ra cuidar da mãe, viúva e doente. Os jo- Internacional (com “Black Jack”, “Riff-
dade” e “Kes”, narra história de cunho A parceria começou com “A Canção de vens, que o têm como uma lenda, pedem -Riff” e “Terra e Liberdade”). Em Vene-
social e político, ambientada em peque- Carla” (1996), filme ligado à história da que reabra o salão onde a comunidade za, ganhou um Leão de Ouro pelo con-
na cidade irlandesa, no século passado Nicarágua, país onde Laverty viveu por dançava, cantava, cultivava a literatu- junto da obra, em 1994. Em Berlim, goza
(anos 1930), e temperada com discre- três anos e desenvolveu trabalho na área ra, aprendia a desenhar ou a lutar boxe. de imenso prestígio (participou de edição
tos bom humor e culto ao prazer. Pa- dos Direitos Humanos (atuou também O local, resgatado, torna-se também es- recente do Festival alemão, com “O Espí-
ra registrar a saga de Jimmy Gralton em El Salvador e na Guatemala). paço de reuniões políticas. Para desgos- rito de 45”).

Homenagem a Hobsbawn Filmografia de Ken Loach


O Brasil de Fato enumera, abaixo, alguns dos destaques da obra de Ken Loach
lar com sacerdote mais jovem, com quem
de São Paulo (SP) divide tarefas religiosas, um dos melho-
res (senão o melhor) diálogos do filme. O de São Paulo (SP)
Ken Loach e Paul Laverty promovem, padre mais jovem (e menos radical) ar-
em “Jimmy’s Hall”, sensível homena- gumenta que Jimmy é um só, que não se- Terra e Liberdade (1995)
gem a Eric Hobsbawn (1917- 2012), au- rá capaz de convencer a todos que o cer- Baseado em dois livros (“Homenagem à Catalunha”, de George Orwell, e “Barcelona Roja:
tor de antológica e apaixonada História cam da validade de suas ideias. O padre Dietário de la Revolución – Julio de 1936 a Enero de 1939”, de Tomás Caballé Clos), o filme,
Social do Jazz. As melhores sequências mais velho lembra que um só homem escrito por Jim Allen, somou esforços de produtores ingleses, espanhóis, italianos e alemães.
do filme mostraram os provincianos ir- (Marx), com um único livro (O Capital) Com elenco internacional (pois reúne brigadistas de várias origens, que foram lutar ao lado
landeses aprendendo a dançar emba- causou um imenso estrago. dos republicanos, contra os franquistas, na Guerra Civil Espanhola), este drama (109 minu-
lados pelo som de gramofone, que exe- Jimmy será, mais uma vez, persegui- tos) é falado em inglês, espanhol e catalão. É, para muitos, o melhor filme já feito sobre o con-
cuta composições de grandes jazzistas do por suas ideias político-culturais-re- flito que dilacerou a Espanha e chegou a termo com o triunfo dos falangistas, comandados por
negros. O poder eclesiástico lamenta o creativas e expulso de seu país. Mas an- Francisco Franco e apoiados pelos nazistas de Hitler. Disponível em DVD.
abandono de danças e ritmos tradicio- tes, contará com a cumplicidade da ve-
nais da Irlanda em detrimento daque- lha mãe, que manterá com os policiais Kes (1969)
le gênero “demoníaco” e importado, via encarregados de prendê-lo, conver- Um dos primeiros filmes de Ken Loach. Escrito por Barry Hines, que adaptou o conto “A
Nova York, da África. sa das mais desconcertantes. No terre- Kestrel for a Knave”. Os ingleses, quando elaboram listas de filmes que devem ser vistos por
O filme de Ken Loach mereceria crí- no do realismo crítico, Ken Loach segue adolescentes, nunca deixam de colocar “Kes” entre os dez primeiros (na Lista do BFI-British
ticas se vilanizasse os antagonistas de imbatível. Seus elencos formados com Film Institute, ocupa o sétimo lugar). O protagonista do filme, Billy Casper, é um pequeno de-
Jimmy. Mas isto não acontece. O ponto atores pouco conhecidos, seus orçamen- sajustado. Tem problemas em casa, na escola, com a polícia. Teme que seu destino seja o da
de vista do cineasta é – e ele não esconde tos enxutos (sua obra de maior enverga- maioria dos que o cercam: trabalhar nas minas de carvão. Um dia, se interessa pela criação de
isto – o dos que lutam contra o poder da dura, “Terra e Liberdade”, um épico de falcões e rouba um livro para com ele instruir-se no assunto. Sua relação com o pássaro Kes
Igreja e dos donos de terra. Mas nem por guerra, deve ter custado um décimo da mudará sua vida, pelo menos temporariamente. O garoto que interpreta Billy (David Bradley)
isto simplificará, por exemplo, o influen- mais barata super-produção bélica de imanta os olhos de quem o vê. Falado no “dialeto” das ruas proletárias de Yorkshire, o filme
te Padre Sheridan, maior opositor de Hollywood) e seu permanente diálogo causou espécie à United Artists, poderosa “major” norte-americana, que o distribuiu. Ao ver
Jimmy. Idoso e inimigo feroz das ideias com o cinema documental fazem dele o “Kes” pela primeira vez, os executivos da empresa disseram a Loach que era mais fácil enten-
comunistas, o religioso não será mostra- mais coerente dos narradores do cine- der húngaro, que o inglês falado pelos personagens. Para assisti-lo, o jeito é prestar atenção
do como um bronco. Mas sim, como ho- ma que tem a luta de classe como motor nas sessões do Telecine Cult, que às vezes, o programa.
mem de grande cultura, capaz de entabu- da História. (MRC)
Chuva de Pedras (1993)
Drama social que dialoga com a comédia. O filme conta a história de Bob, um homem re-
ligioso e devotado à família, que está desempregado e vivendo de pequenos bicos. Apesar de
sua precária situação econômica, ele faz questão de dar à filha um vestido novo, bonito e mui-
Uma parceria engajada e vitoriosa to caro, para que ela possa fazer a primeira comunhão. O padre sugere que ele compre um ves-
tido de segunda mão. Ele insiste no que custa mais. Para conseguir o dinheiro, adota medidas
desesperadas, que colocarão em risco sua família, seus valores e até sua “alma”.

de São Paulo (SP)


Suzanne Maddock, entre muitos outros Meu nome é Joe (1998) e À Procura de Eric (2009)
(afinal trata-se de filme-coral). “Meu Nome é Joe” é, também, um drama que dialoga com a comédia. Seu protagonista, o
Icíar, que além de atriz é cineasta (di- escocês Joe Kavanagh, interpretado por Peter Mullam (papel que lhe rendeu a Palma de Ou-
O encontro de Ken Loach, que ano retora de “Te Doy Mis Ojos”, premia- ro em Cannes) é um ex-alcoólatra, apaixonado por futebol (e pela Seleção Brasileira de 1970).
que vem fará 80 anos, com Paul Laver- do com o Goya, em 2003), estreou ain- Ele se torna, em fase de abstinência, treinador do time dos Alcoólicos Anônimos e se apaixo-
ty, de 58, tinha tudo para dar certo. O da adolescente no cinema. E pelas mãos na por uma assistente social. Para ajudar um amigo, Liam, integrante da medíocre equipe que
inglês, filho de um engenheiro elétrico, do mestre Victor Érice, em “El Sur”, um ele treina, Joe aceita trabalhar para traficantes de drogas, decisão que lhe trará muitos pro-
estudou Advocacia em Oxford e foi alu- filme quase tão bom quanto a obra-pri- blemas. Quem gostar de “Meu Nome é Joe” deverá assistir, também, ao longa-metragem “À
no brilhante. Engajou-se, ainda jovem, ma do cineasta, “O Espírito da Colmeia” Procura de Eric”, protagonizado por um carteiro (Steve Evets) alucinado pelo jogador francês
em movimentos da esquerda trotskista. (1973). Seu nome figura nos créditos de Eric Cantona, que praticou seu melhor futebol em campos ingleses, tornando-se ídolo do po-
O escocês, nascido em Calcutá, na Índia, 22 filmes. Está casada com Paul Laverty deroso Manchester United. O jogador, que a torcida chamava de King Eric, aparece nos sur-
de mãe irlandesa e pai escocês, também desde 1995. Os dois vivem entre Madri, tos sofridos pelo carteiro. Num deles, depois de fumar muita maconha (surrupiada dos ente-
estudou Advocacia. Tornou-se militante Glasgow e Londres. ados encapetados), ele “encontra” Eric Cantona, os dois conversam e queimam mais erva. O
dos Direitos Humanos e foi para a Amé- Ken Loach chegou a pensar em se apo- jogador que aparece na “viagem” do fã é o ídolo altivo e imponente, que fascinou a Inglaterra.
rica Central (Nicarágua, El Salvador e sentar quando fazia “Jimmy´s Hall”. A
Guatemala) defender os injustiçados. boa recepção dada ao filme, vendido pa- Ventos da Liberdade (2006)
O encontro dos dois se deu no mo- ra países dos cinco continentes, o rea- Este filme rendeu a Palma de Ouro a Ken Loach. Teria sido melhor se ele a tivesse recebi-
mento mais luminoso da carreira de nimou. Nunca dirigiu um blockbuster, do onze anos antes, por “Terra e Liberdade”, este sim, seu filme mais vigorosos e apaixonante.
Ken Loach: o das filmagens do liber- nunca quis trabalhar com grandes or- “Ventos da Liberdade” se passa na Irlanda, em 1920. O país está em guerra contra a Inglaterra
tário “Terra e Liberdade”, o mais ori- çamentos, nem dirigir estrelas que ga- e, também, em guerra civil. Os irmãos Damien (Cillian Murphy), que abandona a carreira de
ginal registro da ação das Brigadas In- nham milhões de dólares. Faz filmes pe- médico para lutar pela independência, e Teddy (Padraic Delaney), um guerrilheiro convicto,
ternacionais na Guerra Civil Espanho- quenos e, excepcionalmente, médios. E a são os protagonistas. À medida que o conflito vai ganhando contornos trágicos, os irmãos se
la (1936-1939). O filme, que causou fu- soma de seus públicos, espalhados pela desentendem e ficam em campos opostos. Um (Damien) aceita o acordo de paz assinado com
ror em Cannes-1995, portanto no ano Europa, América Latina e Ásia, permite os ingleses. Outro acha tal acordo humilhante e parte para ações de terror, junto a seus com-
do Centenário do Cinema, perdeu a Pal- que ele siga em frente. Continuará, sem- panheiros no recém-criado IRA (Exército Revolucionário Irlandês).
ma de Ouro para “Underground”, do pre em parceria com Laverty, contando
iugoslavo Emir Kusturica. Mas serviu história de perdedores, pequenos cida- A Parte dos Anjos (2012)
de trampolim para projetar Loach pe- dãos atormentados por problemas eco- Esta, sim, é uma comédia para valer. O drama entra pelas frestas. Robbie (Paul Brannigan)
las telas do mundo. No filme, Laverty nômicos e inseridos em ambientes hos- é um jovem escocês de passado delinquente. Está para ser pai e, por pouco, escapa de novo
foi ator, embora sua paixão fosse a es- tis. Mas, munidos de alguma esperança. período no xadrez. A paternidade o motiva a regenerar-se. Num programa de recuperação so-
crita. Tinha muitos roteiros guardados. Por menor que seja. cial, quando deve prestar serviços comunitários, visita destilaria de uísque. Descobre que tem
Durante as filmagens conheceu e apai- Quem quiser saber mais sobre a tra- olfato privilegiado e resolve fazer carreira trabalhando na destilaria. Só que seus colegas o
xonou-se pela atriz Icíar Bollaín, nas- jetória do cineasta britânico pode assis- acompanham ao leilão de uísque raríssimo e bolam plano para dar um golpe no proprietário
cida na Espanha, em 1967. Ela figura- tir aos documentários “Great Directors da iguaria, arrumando uma boa grana. O filme diverte o espectador inteligente e, de quebra,
va no elenco, ao lado de Ian Hart, Ro- – Ken Loach” (Angela Ismailos, 2009, faz dura crítica ao capitalismo, que transforma em fetiche determinadas mercadorias (um uís-
sana Pastor, Tom Gilroy, Frédéric Pier- 90’) e “A Special Day” (Une Journée que de preço exorbitante, por exemplo). (MRC)
rot, Paschal Demolon, Marc Martínez, Particuliére). (MRC)
12 de 13 a 19 de agosto de 2015 cultura

Crimes (quase) perfeitos


CRÔNICA O gerente entrou em pânico, sentiu-se
vítima do cheque sem fundo. Chamou a polícia
e, acompanhado do delegado, bateu na casa do
primeiro comprador

Frei Betto

ÀS 11 DA MANHÃ, A MULHER parou na Avenida Paulista, junto a um


ponto de ônibus. Buscava um táxi. Súbito, um sujeito se aproximou. Aos
berros, disse: “Vagabunda! Sai de casa, arruma outro e ainda quer usar o
que comprei com meu dinheiro!”. Arrancou o colar, a pulseira, enfiou a
mão na bolsa e se afastou resmungando.
A mulher ficou paralisada, lívida. Cerca de dez pessoas no ponto de ôni-
bus assistiram à cena, convictos de que em briga de marido e mulher nin-
guém mete a colher. Ao se recuperar do susto, conseguiu dizer que era
bem casada e nunca vira o ladrão que desaparecera na esquina.
Ele apareceu em uma concessionária de veículos às 16h30. Examinou as
ofertas e escolheu um Land Rover Discovery 4x4, zero quilômetro. Após
apresentar documentos e atestado de residência, pagou, no cheque, R$
244 mil. Feliz, saiu dirigindo.
Quarenta minutos depois o mesmo veículo retornou à concessionária;
agora, conduzido por outro motorista. Queria comprar equipamentos. O
gerente indagou se era parente do comprador. “Não” – disse o cliente –
“acabo de pagar, em dinheiro, cento e setenta mil por este carro”.
O gerente entrou em pânico, sentiu-se vítima do cheque sem fundo.
Chamou a polícia e, acompanhado do delegado, bateu na casa do primei-
ro comprador. Lá estava ele, tranquilo, arrumando as malas. Tinha passa-
gem aérea para embarcar, naquela noite, para Buenos Aires.
Diante da fúria do gerente e da inquirição do delegado, o sujeito convo-
cou seu advogado. O carro não era dele? Se quisesse, podia tê-lo vendido
por R$ 1. Ou doado.
“OK” – retrucou o delegado – “mas o senhor só viaja depois que o ban-
co abrir amanhã e ficar comprovado que o cheque tem fundos”. Impossí-
vel adiar a viagem. Na manhã seguinte teria que assinar um contrato na
capital argentina e, se não aparecesse, perderia em multa 200 mil dólares.
O gerente, convencido de se tratar de um estelionatário, aceitou o acordo
proposto pelo advogado: o cliente suspenderia a viagem, mas se o cheque
tivesse fundos ele seria ressarcido em 200 mil dólares.
O homem cancelou a viagem. Na manhã seguinte, confirmou-se: o che-
que tinha fundos.
Reunida a diretoria do banco, o presidente abriu o jogo: havia pro-
vas de que o diretor-tesoureiro desviara alguns milhões de reais para
a sua conta privada. Surpresos, todos encararam o acusado. Antes que
ele pudesse fazer uso da palavra, o presidente acrescentou que o banco
preferia evitar escândalos, de modo a preservar seu bom nome na pra-
ça. Bastava o diretor devolver o valor, em dinheiro e bens, e assinar a
carta de demissão.
O acusado, imbuído de fleuma britânica, advertiu: “Em todos esses anos
na tesouraria documentei inúmeras falcatruas cometidas pelos senhores
e pela própria instituição bancária. Se eu for preso, os senhores também
irão. Que fique bem claro: deixo hoje o banco, viajo esta noite para o exte-
rior e a minha conta permanece intocada. De acordo?” Reunida a diretoria do banco, o presidente abriu
Ninguém discordou.
O caminhão-reboque do Detran parou à porta da faculdade. Várias mo- o jogo: havia provas de que o diretor-tesoureiro
tos se encontravam estacionadas de modo irregular. Os fiscais armaram desviara alguns milhões de reais para a sua conta
a rampa na carroceria e passaram a recolhê-las. Para evitar arranhões em
suas máquinas possantes, alguns motoqueiros ainda ajudaram a subi-las. privada. Surpresos, todos encararam o acusado
Passados menos de 30 minutos, confirmaram não se tratar do Detran...
O deputado Paulo Maluf foi acusado de pagar R$ 4,901 milhões, em
1996, quando prefeito de São Paulo, por um serviço que não foi feito na
construção do Complexo Ayrton Senna, em São Paulo. Pagou com dinhei-
ro seu (não dele), meu, nosso.
Na terça, 7 de agosto de 2007, o STF mandou arquivar o processo. Ale-
gou que, mesmo que Maluf fosse culpado, o crime prescrevera.
Portanto, no Brasil basta prolongar o processo até o crime prescrever.

Frei Betto é escritor, autor do romance policial


Hotel Brasil (Rocco), entre outros livros.

www.malvados.com. br dahmer

PALAVRAS CRUZADAS
Horizontais: 1.Tempero – Movimento social brasileiro que completou 30 anos
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
em 2014 – Nas eleições 2012, foi o candidato do PT à Prefeitura de Campinas. 1
2.Que não tem nada dentro – Pronto Socorro. 3.Cair neve – Em inglês, diz –se
“home” – Medida de sensibilidade de um filme fotográfico. 4.“Cobra”, em tupi – 2

Ala de um hospital para casos graves. 5.Emissora que foi alvo dos protestos em
3
2013 – No sentido figurado, acontecimento inesperado. 6.“Dentro”, em inglês –
Segunda nota musical. 7.Desde 2011, há uma marcha mundial com este nome. 4
8.Frequência de rádio – Patativa do Assaré nasceu neste estado (sigla). 9.Têm
sido introduzidas pelo Estado como compensatória – Agência de espionagem 5

dos Estados Unidos – Lampião nasceu neste estado (sigla). 10.Cor que tem o
6
nome de uma flor – Interjeição de decepção – Dá risada. 11.Uma forma de greve
– “Sim”, em espanhol – Catedral. 7

Verticais: 1.A Globo é acusada deste crime. 2.Sua carne é apreciada por uns e 8
considerada nojenta por outros. 3.Conjunto de folhas de papel, em branco, es-
9
critas ou impressas, soltas ou cosidas, em brochura ou encadernadas – De “?”,
quando sabemos algo de memória. 4.Presidente do STF que não achou alto o
10
gasto público de R$ 850 mil para receber o papa no Palácio Guanabara, em visita
ao Brasil em julho de 2013. 5.Que é chefe de – Igual. 7.Lugares onde magistra- 11
dos desempenham o seu cargo. 9.Arte de regular as relações de um Estado com
os outros Estados. 10. “Casa”, em tupi – Bosque. 11.Em alemão, diz –se “Farbe”.
12.Reza. 13.Nome do programa do governo federal que cadastrou médicos para
receberem uma bolsa de R$ 10 mil para trabalharem em locais carentes de aten- 10.Oca – Mata. 11.Cor. 12.Ora. 13.Mais médicos. 15.Neo – Atacar. 16.SE – Is. 18.Espionagem.
dimento. 15.Prefixo que significa “novo” – Agredir. 16.Menor estado brasileiro, Verticais: 1.Sonegação. 2.Rã. 3.Livro – Cor. 4.Barbosa. 5.Mor – Tal. 7.Tribunais. 9.Política.
pouco maior do que Israel – “É” ou “está”, em inglês. 18.O ex–técnico da CIA, Edw- 6.In – Ré. 7.Vadias. 8.AM – CE. 9.Cotas – CIA – PE. 10.Rosa – Pô – Ri. 11.Paralisação – Sí – Sé.
ard Snowden, denunciou os Estados Unidos por esta prática. Horizontais: 1.Sal – MST – Pochmann. 2.Oco – PS. 3.Nevar – Lar – ISO. 4.M’boi – UTI. 5.Globo – Bomba.
cultura de 13 a 19 de agosto de 2015 13

“Colocar o menino na cadeia


ele está perdido para sempre” Talita Alessandra
EM SÃO PAULO Em visita ra conhecer a si mesmo e a relação com a
fotografia o “salvou” quando tinha a mes-
ao Brasil, o fotógrafo Klavdij ma idade dos meninos fotografados.
Sluban apresenta a série Sluban tem um contato real com os
prisioneiros. Convive com os garotos e,
“Entre Parênteses – Jovens na em troca, oferece workshops aos jovens
interessados. Nessas duas décadas nun-
Prisão” e fala sobre o trabalho ca teve nenhum tipo de problema com os
adolescentes.
desenvolvido há 20 anos Há similaridades entre ele e os jovens
com jovens encarcerados ao conhecidos nos cárceres. A questão do
não pertencimento é uma delas. Nas-
redor do mundo cido na França, Sluban mudou-se ain-
da pequeno para um vilarejo no leste
europeu e depois voltou à França. Des-
sa experiência, recorda ter sido difícil a
Talita Alessandra Tristão adaptação. Aponta também o fato de es-
de São Paulo (SP) tar “na fronteira”, por não se ajustar às
perspectivas da sociedade. E é aí que a
EM 1995 O FRANCÊS de origem eslo- fotografia apresentada por ele pode pro-
vena Klavdij Sluban inicia um projeto porcionar outros caminhos.
no Centro de Detenção para menores de Além de países europeus, em 2006
Fleury-Mérogis, a maior instituição peni- Sluban conheceu algumas prisões loca-
tenciária da Europa, localizada na Fran- lizadas na América Central, como em El
ça. Após um ano de negociações com o Salvador e Guatemala, às quais visitou
Ministério da Justiça local, consegue au- com frequência durante 5 anos.
torização para desenvolver uma oficina Não existe medo. “Absolutamente
de fotografias junto aos meninos em si- nunca. A maior parte das vezes esses me-
tuação prisional. ninos estão abandonados. Ali, convivem
O grande interesse por adolescentes e O fotógrafo Klavdij Sluban durante abertura da exposição “Entre Parênteses – Jovens na Prisão” no Brasil com eles próprios. A fotografia pode dar
suas particularidades permeia suas esco- a possibilidade para eles estruturarem a
Reprodução

lhas pessoal e acadêmica, tanto que a dis- própria identidade”, argumenta o artista
sertação de seu mestrado teve como tema cuja fotografia deu sentido à vida.
os adolescentes na literatura anglo-ame-
ricana. Embora a formação literária pos- Inspirações e influências
sa contribuir para desenvolver diferen- Um dos grandes incentivadores de
tes linguagens fotográficas, não é a par- Sluban no projeto com os meninos em
te mais interessante na troca com os jo- situação de cárcere foi o fotojornalis-
vens. Sluban é descrente quando fala so- ta francês Henri Cartier-Bresson (1908-
bre sistema educacional ou métodos for- 2004). Antes de se conhecerem pesso-
mais e, por ansiar algo mais humano, co- almente, Sluban o escreveu para pedir
mo a vivência, prefere estar nas institui- apoio no início de suas idas às prisões.
ções penais em vez da sala de aula no pa- Cartier-Bresson abraçou imediatamente
pel de professor. “Foda-se a teoria! Exis- a ideia, inclusive por sempre ter mantido
te uma verdade que é muito mais eficien- contato com os jovens presos na França.
te do que qualquer outra na fotografia.” Os encontros eram sempre intensos, pois
Cartier-Bresson também viveu experiên-
cia prisional.
“Não quero servir um propósito, uma À época da Segunda Guerra Mun-
dial, Henri Cartier-Bresson foi captura-
causa. Não quero minhas fotografias do por soldados alemães como prisionei-
em jornais ilustrando algo que não ro de guerra. Em fevereiro de 1943, em
sua terceira tentativa de fuga, consegue
seja o que eu quero passar Exposição reúne 25 fotografias de centros de detenção para adolescentes libertar-se.
Em conversa com Sluban, Cartier-
ção com a possível distorção de seu tra- lho Balcãs Trânsito), o artista se apressa -Bresson confidenciou que não se encon-
balho. “Não quero servir um propósito, em negar ser especialista em fotos ou em trava com os meninos encarcerados para
O artista trabalha de forma indepen- uma causa. Não quero minhas fotogra- celas. Fotografa nos ambientes prisionais transmitir o ofício fotográfico, mas sim
dente, em vez de ficar atrelado às insti- fias em jornais ilustrando algo que não por unir sua arte com a paixão em com- para ensiná-los a fugir da prisão! Além
tuições ou agências. “Eu fotografo em seja o que eu quero passar.” partilhar a prática com adolescentes em dessa grande referência, outros fotógra-
primeira pessoa, no singular. É subje- Ganhador de prêmios como Niépce situação inusitada. Começou a gostar de fos aos quais Sluban cita como apoiado-
tivo. Eu assino, é como eu vejo as coi- (em 2000), Leica (em 2004) e da Radio fotografias quando adolescente “porque res e influências são os franceses William
sas”, pontua, ao falar sobre a preocupa- Internacional Francesa (RFI, pelo traba- tinha que encontrar outra maneira” pa- Klein e Marc Riboud.

Entre Parênteses – Jovens na Prisão Na Fundação Casa


Pela primeira vez no Brasil, Sluban quer contato humano, sem jul- ra. Mas estou procurando luz. As fotos
de São Paulo (SP)
gamentos. Nunca pergunta por qual mo- mais escuras tem alguma luz e é essa luz
Klavdij Sluban conversou tivo o garoto cumpre pena, isso é irrele- que eu procuro.”
vante quando se toca outra alma, mas Na França, quando iniciou as ativida- Klavdij Sluban está em São Paulo, região do
com o público presente gosta de saber o nome de cada um deles. des, a diretoria prisional entregou a ele país cujo abuso de internações contra meno-
na Biblioteca Mário de No início de um dos slides com as fo- os considerados “piores garotos”, numa res resulta em mais de 10 mil jovens em si-
tos tiradas pelos meninos presos na tentativa de destruírem o projeto. Mas tuação carcerária em todo o Estado. O artista
Andrade, dia 6 de agosto, França, passa o nome deles nas legen- os rapazes foram muito bons e, após sete é responsável por dois workshops para ado-
das. Mohamed, Yacini e Kamel são al- anos, o artista foi “jogado para fora”, por lescente de duas unidades da Fundação Ca-
para a inauguração de guns. Nomes de origem árabe. Em um fazer bem demais aos meninos. “Exis- sa. O primeiro aconteceu do dia 3 ao dia 7 de
país com a islamofobia e a xenofobia te o pensamento judaico-cristão de que agosto e o próximo acontece do dia 10 ao dia
sua exposição “Entre tão evidentes, é fácil imaginar o motivo quando vai para a prisão tem que sofrer.” 14 deste mês.
de serem esses os nomes comuns dos Sluban aponta a importância dos pro- Sluban fica contente em poder desenvolver
Parênteses – Jovens prisioneiros. fissionais trabalharem com crianças sem essas atividades de forma muito próxima dos
na Prisão” Na França, a rotina dos meninos, que uniformes e vestirem-se como civis. Na meninos. Nessas experiências ele leva câme-
podem ir à cadeia com 13 anos, é mas- França, alguns guardas que se coloca- ras, fala, mostra os conceitos básicos e deixa os
sacrante. As luzes se apagam às 21h00 e ram no mesmo nível dos prisioneiros, no meninos fotografarem as imagens considera-
não há incentivo cultural. Eles chegam a sentido de usarem roupas comuns, fo- das interessantes. Decidem juntos quais serão
de São Paulo (SP) ficar o dia inteiro na cama. Atualmente, ram chamados por outros de traidores, impressas. Quando prontas, escolhem as mais
estuda-se a privatização dos presídios, o tiveram seus carros danificados e foram expressivas para compor a exposição e as de-
A escolha do título dessa série de fotos que geraria altos lucros conforme maior impedidos de trabalhar, numa evidente mais são entregues aos familiares.
compara simbolicamente os parênteses o número de prisioneiros. “É uma estru- amostra do predomínio da postura ini- Ao unir as questões estética e social, Sluban
às grades. tura de campo de concentração. Isso é miga por parte dos agentes do Estado e lança luz nos cárceres e apresenta uma possibi-
Há um questionamento, por parte do Paris”, destaca Sluban. do repúdio entre os funcionários àque- lidade paralela de educação em sistemas fecha-
fotógrafo, no sentido da sociedade pre- Na série de fotos em exposição no Bra- les que não concordam com a postura re- dos, cuja estrutura falida é a do castigo. “Os ga-
cisar saber o perfil de quem é colocado sil são apresentadas 25 fotografias origi- pressora da instituição. rotos são o mais interessante. Mais do que os
na prisão. Na França, por exemplo, o co- nais de Sluban nos centros de detenção O artista gosta de trabalhar lenta- políticos. Eles nunca estão na média. São mui-
lonialismo é um forte motivador para se para adolescentes em países como Fran- mente, para se sentir parte. Na Geórgia, to espertos, inteligentes, rápidos para entender.
aprisionar pessoas não europeias. Estão ça, Rússia, Geórgia, Sérvia, etc. O fotó- Sluban ficou 15 dias na cela e três meses São como fogos de artifício. Nunca é chato! Vo-
na terceira geração de imigrantes e mui- grafo trabalhou no Leste Europeu e nos nos campos junto com os adolescentes. cês entendem porque faço isso há mais de 20
tos dos jovens prisioneiros são descen- Balcãs, em países por ele definidos como “Sempre me senti um prisioneiro fugiti- anos? É uma dinâmica! Uma energia!”
dentes de árabes ou africanos. uma “outra Europa, da qual não sabemos vo”. Contrário ao sensacionalismo e ao Klavdij Sluban, coincidentemente, está no
No Brasil, a população carcerária é nem os nomes”. imediatismo, ele vivencia as situações de país em um momento com intensa discussão
composta, predominantemente, por pes- forma humana e profunda. Como exem- referente à diminuição da maioridade penal. O
soas negras. O mesmo é percebido em Semelhança plo, cita sua experiência nos Balcãs, onde artista que há duas décadas escolheu olhar pa-
prisões estadunidenses, com grande par- Embora as fotos sejam feitas em vários trabalhou por cinco anos para fazer 40 ra os jovens em situação de cárcere e os tirar da
cela de presidiários negros e latinos. O lugares do mundo, a semelhança entre os fotos, nos anos 1990. invisibilidade social é enfático ao afirmar: “No
sistema carcerário reproduz os precon- garotos impressiona. Em cada um desses Nas prisões, Sluban enxerga os meni- momento que vocês colocam o menino na ca-
ceitos sociais. meninos existe a indumentária estereoti- nos como pessoas e também fotógrafos deia ele está perdido para sempre.” (TAT)
Nelson Mandela dizia que ninguém sa- pada (cabeça raspada, uniforme), existe em potencial. “O motivo pelo qual ado-
be verdadeiramente o que é uma nação um rosto triste, uma juventude marcada ro trabalhar com esses rapazes é que eles
até que tenha estado dentro de suas pri- pelo confinamento, mas também há ter- são crus. Matéria-prima pura. A fotogra-
sões, pois uma nação não deve ser julga- nura. Sem legendas, as fotos falam. Ex- fia pode ser um canalizador de energias Serviço
da pela forma como trata seus cidadãos primem sentimentos profundos. “São di- para algo positivo.” A exposição Entre Parênteses – Jovens
mais elevados, mas seus menos queridos. ferentes sistemas, mas os rapazes sofrem O aprisionamento, assim como a foto- na Prisão fica em cartaz na Biblioteca Mário de
O fotógrafo enxerga as prisões como o da mesma maneira. Não há nenhuma grafia, reflete o tempo presente. “Os me- Andrade, em São Paulo (SP) até o dia 3 de outubro.
subsistema dentro de prisões maiores, alegria ou felicidade.” ninos enxergam a experiência do presen- O resultado dos trabalhos feitos com os meninos da
que são os próprios países em que es- Todas as fotografias de Sluban são em te de maneira negativa. Só conseguem Fundação Casa pode ser visto a partir do dia 27 de
tão. “Cadeia não é uma coisa tão desta- preto e branco. Essa opção é a represen- pensar o antes e o depois [do encarcera-
agosto no Centro Cultural da Juventude (CCJ) da Vila
cada no meu trabalho, mas sim regimes tação da busca pela luz, pela vida. “Pare- mento]. Na fotografia, o presente é per-
Nova Cachoeirinha. (TAT)
específicos.” ce chato e deprimente por ter coisa escu- manente.” (TAT)
14 de 13 a 19 de agosto de 2015 américa latina

Morre Contreras, general responsável


pela tortura no Chile de Pinochet Reprodução
DITADURA 529 anos de prisão
Após o fim da ditadura, Manuel Con-
Minutos depois do seu treras continuou sendo uma figura em-
blemática dos anos Pinochet, dessa vez
falecimento, milhares de simbolizando o outro lado da ambigui-
manifestantes foram às ruas dade chilena com relação ao tema.
Embora não tenha sido capaz de le-
em Santiago para celebrar var o ditador Augusto Pinochet à prisão,
a Justiça aplicou diversas condenações a
a morte do torturador El Mamo.
Contreras foi, aliás, o primeiro militar
chileno a ser preso por uma causa de di-
reitos humanos – em 1993, ele foi res-
Victor Farinelli ponsabilizado pelo assassinato de Lete-
de Santiago (Chile) lier. Após sua prisão, o militar rompeu
relações com Pinochet, e o acusou por
MORREU NA NOITE de sexta-feira, 7 de um esquema de vender armas ilegalmen-
agosto, por conta do avanço de um qua- te para a Croácia e de possuir ligações
dro de câncer colorretal, o ex-militar Ma- com o narcotráfico, além de revelar da-
nuel Contreras, o conhecido no Chile por dos de contas que o ditador possuía em
ter sido o braço direito do ditador Augus- bancos na Suíça e nos Estados Unidos.
to Pinochet (1973-1990) e principal res- Em 2001, depois de oito anos na ca-
ponsável pelos organismos de inteligên- deia, conseguiu o benefício de prisão do-
cia, tortura e eliminação de opositores miciliar, que duraria apenas dois anos, já
durante o regime. que em 2003, ele voltaria a prisão, após
Segundo o porta-voz do Palácio de La sua primeira sentença perpétua, por sua
Moneda, Marcelo Díaz, Contreras não responsabilidade no Caso Villa Grimaldi
terá direito a um funeral com honras – o maior centro de tortura da ditadura
militares, como supõe o fato de ter se chilena, que funcionou durante a segun-
aposentado do Exército como general, Responsável pelo sequestro e tortura de milhares de chilenos, o general Manuel Contreras morreu aos 86 anos da metade dos anos de 1970.
já que o Estado não reconhecerá hon- Desde então, vem acumulando conde-
ras a um condenado por delitos de di- ca relata que o ditador reservava a ele a treras manteve contato regular remune- nações na Justiça. Na quarta-feira (29/7)
reitos humanos. Entre os diversos pro- primeira reunião de cada dia, o que lhe rado com a CIA (Agência Central de Inte- em que foi trasladado ao Hospital Mili-
cessos que enfrentou no Chile, Contre- valeu a alcunha de “o coronel por cima ligência dos Estados Unidos)”. tar, devido à complicações em seu estado
ras acumulou 529 anos de prisão e duas dos generais”. O informe também se refere a ele co- de saúde, Contreras recebeu sua última
condenações perpétuas. Até o momen- Mais que isso, El Mamo Contreras ti- mo “um dos mais participativos articula- condenação, por 13 anos de prisão, pela
to, o Exército do Chile não se pronun- nha fama de um coronel temido pe- dores da Operação Condor”, sendo res- sua responsabilidade no Caso Villarroel
ciou a respeito. los generais, principalmente depois das ponsável por tratar diretamente com os Ganga, um dos subcasos relacionados à
Minutos depois do seu falecimento, mortes de dois generais em estranhas agentes de CIA que atuaram no conti- Operação Colombo.
três pequenos grupos, com alguns mi- circunstâncias: Augusto Lutz, em 1974, nente, como Micheal Townley. A parce- Com essa nova sentença, Contreras
lhares de manifestantes cada, foram às por suposta septicemia – suspeita-se de ria entre e Townley e Contreras foi res- passou a acumular 529 anos de pri-
ruas em Santiago para celebrar a mor- envenenamento –, e Óscar Bonilla, em ponsável por atentados dentro e fora do são, além de duas condenações perpé-
te do torturador: uma delas em frente 1975, vítima de um acidente de helicóp- Chile, embora os mais conhecidos te- tuas. A professora Carmen Gloria Quin-
ao Hospital Militar (onde ele estava in- tero – caso que se tornou ainda mais nham sido os assassinatos do general tana, sobrevivente do Caso Queimados
ternado), outro na praça Itália (tradicio- controverso depois da morte dos três Carlos Prats (em Buenos Aires, 1974) e – cujas responsabilidades foram revela-
nal ponto de celebrações futebolísticas) técnicos franceses enviados para inves- do ex-embaixador Orlando Letelier (em das na semana passada, com a quebra
e um terceiro em frente ao Palácio de La tigar e determinar a causa do acidente Washington, 1976). do pacto de silêncio por parte do ex-sol-
Moneda. Os grupos traziam bandeiras com o helicóptero. A relação, contudo, só existiu durante a dado –, se referiu a Contreras em cole-
chilenas e do Partido Comunista do Chi- Segundo o Informe Hichney, divulga- época do DINA. Quando Pinochet dissol- tiva de imprensa, após protocolar uma
le, além de fotos de pessoas desapareci- do pelo Departamento de Estado norte- ve o primeiro serviço de repressão e cria queixa formal contra os responsáveis
das durante a ditadura, vítimas dos ser- -americano em 2000, Manuel Contreras a CNI, Townley deixa o país e Contreras do atentado contra ela. “Ele foi o pior
viços secretos chefiados por ele. foi colaborador dos serviços de inteligên- passa apenas alguns meses como chefe dos assassinos, e sua morte não signifi-
Conhecido como “El Mamo” Contre- cia estadunidenses entre os anos de 1967 da repressão, mas logo é substituído pe- ca nada. Todos já sabíamos que ele não
ras, foi o coronel designado pelo ditador – ano seguinte ao curso realizado na Es- lo coronel Odlanier Mena. Para compen- viveria o suficiente para pagar nem pe-
chileno, em novembro de 1973, para or- cola das Américas – e 1985. O documen- sar, Pinochet nomeia Contreras general, la metade dos crimes que cometeu, e da
ganizar, estruturar e comandar primei- to detalha que, entre 1974 e 1977, “Con- no ano seguinte. dor que provocou.” (Opera Mundi)
ramente o Departamento de Inteligên-
cia Nacional (DINA), que funcionou en-
tre 1973 e 1977.
Depois, também trabalhou na cria- GOVERNO

Com rejeição de 70%,


ção da Central Nacional de Informações
(CNI), que funcionou entre 1977 e 1990,
e também foi o primeiro diretor do ór-
gão, mas permaneceu poucos meses, su-

Bachelet redefine prioridades


cumbindo às mesmas pressões de or-
ganizações de direitos humanos que le-
varam ao fim do DINA. Cedeu o cargo
a Odlanier Mena, mas, segundo rela-
tos de jornalistas e historiadores chile-
nos, continuou sendo a eminência par-
da dentro das estruturas da repressão CHILE da, Rodrigo Valdés, mudar a projeção talhe a respeito da forma com a que se
até o fim da ditadura, e principal articu- da arrecadação para 2016, ano em que pretende trabalhar sobre o tema. “É
lador de todas as mais importantes ope- Segundo presidenta começa a valer as mudanças da refor- fundamental explicar para a população
rações de caça a opositores – com exce- ma tributária aprovada em 2014. “O go- o que é uma Constituição, no que ela
ção da Caravana da Morte, ocorrida dias
chilena, mudanças não são verno está tomando medidas para me- afeta o dia a dia das pessoas, para que
depois do golpe de Estado contra Salva- passo atrás nas propostas lhorar essas projeções econômicas, mas elas entendam a importância de parti-
dor Allende, em setembro e outubro de enquanto essas melhoras não chegam, é cipar dessa mudança”, afirmou, sobre a
1973, que foi liderada pelo general Ser- reformistas da gestão, preciso planejar as políticas de acordo primeira fase da reforma.
gio Arellano Stark. com uma estimativa realista dos recur- As organizações que defendem a rea-
mas sim um “realismo sem sos”, comentou Valdés. lização de uma Assembleia Constituin-
Formação no Brasil renúncia” aos projetos te para elaboração da nova Carta Mag-
Antes da ditadura, El Mamo já era co- na, no entanto, voltaram a expressar sua
nhecido dentro das filas do Exército chi- “O governo está tomando frustração com a falta de claridade com
leno por seu perfil claramente anticomu- respeito à fórmula com a qual se realiza-
nista, que teria se consolidado após dois Victor Farinelli medidas para melhorar essas rá a reforma da atual constituição, em vi-
cursos realizados por ele nos anos 1960: de Santiago (Chile) gor desde 1980, período em que o país
em 1966, no Forte Gulick (um edifício da
projeções econômicas, mas estava sob a ditadura de Augusto Pino-
Escola das Américas no antigo território EM MEIO A ÍNDICES de desaprova- enquanto essas melhoras chet (1973-1990)
estadunidense da Zona do Canal do Pa- ção do governo na casa dos 70%, a pre-
namá), e em 1967, na brasileira ESEFEX sidenta chilena, Michelle Bachelet, de- não chegam, é preciso Reforma trabalhista e aborto
(Escola de Educação Física do Exército), cidiu, com o novo ministério montado Outra reforma que deverá ter mudan-
quando o Brasil já era governado pelos em maio deste ano, redefinir as priorida- planejar as políticas de ças é a do código trabalhista, mas sem
militares. des para os próximos anos do mandato acordo com uma estimativa alterar os pontos considerados vitais pe-
Segundo alguns historiadores chilenos, – que se encerra em 2018. Na reunião de lo Partido Comunista, como reforço do
o general Carlos Prats, comandante-che- cúpula, que durou seis horas, participa- realista dos recursos” direito à sindicalização e à negociação
fe das Forças Armadas durante o gover- ram parte dos ministros, senadores e de- coletiva, a ponto de o partido colocar em
no de Salvador Allende (1970-1973), sa- putados da Nova Maioria (coalizão go- dúvida sua continuidade dentro da No-
bia dessa condição, e por isso tentou evi- vernista), incluindo os presidentes dos va Maioria caso houvesse algum recuo
tar uma rápida ascensão de Contreras – sete partidos que compõem a aliança. Mudanças na educação significativo no projeto. Após a cúpu-
que, até então, era major. Após a reunião no dia 3 de agosto, Ba- A situação econômica levou o governo la, o deputado Guillermo Teillier, presi-
Em 1972, o major Contreras ensaiou chelet fez uma declaração para a im- a anunciar mudanças para a gratuidade dente do PC, afirmou que “os comunis-
o que seriam seus anos mais sanguiná- prensa, na qual apresentou algumas das no ensino universitário, um dos pontos tas estão com a presidente Bachelet, e
rios, ao planejar secretamente a trans- mudanças – e insistiu que elas não sig- centrais da reforma educacional. A par- vão apoiá-la com muita força, a começar
formação do quartel de Tejas Verdes nificam um passo atrás no ímpeto re- tir de 2016, os 50% mais pobres entre os por esta semana”.
(localizado num setor rural, 100 km a formista do governo, mas um “realismo estudantes de cada universidade públi- A frase aludiu também ao projeto de
oeste de Santiago) num centro de tor- sem renúncia”. ca chilena poderão estudar de graça. A despenalização do aborto – liderado pe-
tura, antes mesmo do golpe de Estado “Estamos diante de uma nova etapa do ideia inicial, no entanto, era a gratuida- la ministra de Políticas para a Mulher, a
contra Allende. governo, na que os objetivos são os mes- de universal. comunista Claudia Pascual – que pode-
Posteriormente, com a renúncia de mos do programa, mesmo se adaptando “A meta final continua sendo a gratui- ria entrar na pauta de votação da Câma-
Prats e a nomeação de Pinochet como aos desafios da economia, e a nova equi- dade universal dentro das universidades ra ainda nesta semana. O projeto prevê
comandante-chefe das Forças Armadas, pe vai começar a imprimir agora o seu estatais, essa meta não precisa ser alcan- a despenalização do aborto em somen-
Contreras recebe a patente de coronel, e estilo”, explicou a mandatária, se refe- çada por este governo, se não podemos te três casos: risco de vida para a mu-
passa, ainda antes do golpe de Estado, a rindo aos tímidos prognósticos de cres- chegar a isso agora, outras administra- lher, inviabilidade fetal e gravidez como
ser a figura mais próxima de quem logo cimento para o país em 2015 e o fato de ções poderão”, disse Bachelet. No dia 4, resultado de abuso sexual.
seria o ditador do país. que esta foi a primeira reunião da No- a presidente insistiu que a reforma edu- O texto é considerado uma prova de
va Maioria desde a nomeação da segun- cacional é o projeto “de maior prioridade fogo para a unidade dentro da Nova
Ligação com a CIA da equipe ministerial, em maio passado. do governo”. Maioria, já que a sua apreciação tem si-
Durante seus tempos como chefe do O baixo crescimento do último ano Outro objetivo que o governo mante- do sistematicamente adiada com apoio
DINA e da CNI, Contreras acumulou de governo de Sebastián Piñera (2010- ve presente na agenda é o da reforma de parte do Partido Democrata Cris-
muitos inimigos dentro das forças ar- 2014), que deve se repetir em 2015 de- constitucional, cujos detalhes devem ser tão, pertencente à coalizão governista.
madas, por ser o assessor mais próximo vido ao preço em queda do cobre – ma- anunciados somente em setembro. Há parlamentares na agremiação que
de Pinochet durante os primeiros cinco téria-prima responsável por 65% do PIB Contudo, em sua declaração após a admitem publicamente serem contra o
anos da ditadura – a imprensa da épo- chileno –, fez o novo ministro da Fazen- reunião, Bachelet revelou um único de- projeto. (Opera Mundi)
internacional de 13 a 19 de agosto de 2015 15

Arsenal nuclear é suficiente para armar


cada país com 85 bombas atômicas US Army
GUERRA Gastos
De acordo com a ONG Global Zero, que
Os nove detentores defende um mundo sem armas nuclea-
das 16 mil ogivas estão res, nesta década (entre 2010 e 2020),
os governos ao redor do mundo gastarão
modernizando seus em torno de 1 trilhão de dólares em ar-
mas nucleares.
arsenais e não há indícios A mesma organização aponta que os
nove países gastaram, em 2011, apro-
de que possam abrir mão ximadamente 100 bilhões de dólares
do programa nuclear em programas nucleares — sendo que
somente os Estados Unidos gastaram
num futuro próximo 61,3 bilhões de dólares. O estudo con-
sidera ainda que, em uma estimativa
conservadora, o custo representa 9%
do total de investimentos militares a
Vanessa Martina Silva cada ano.
de São Paulo (SP) Em tom crítico, a ONG pontua que os
gestores precisam fazer escolhas, “sobre-
EM 1945, AINDA no contexto da 2ª tudo em tempos de crise”, e que prefe-
Guerra Mundial, os Estados Unidos rem realizar cortes em “educação, saúde,
lançaram a bomba “Little Boy” (peque- segurança pública e outros serviços es-
no garoto) sobre Hiroshima, resultando senciais”, mas não em armas nucleares.
na morte de cerca de 140 mil civis ja-
poneses. Passados 70 anos, apesar dos Não-Proliferação
tratados de desarmamento nuclear, a São nove os países que possuem re-
quantidade de armas deste tipo existen- conhecidamente armas nucleares: Es-
te, mais de 16 mil, seria suficiente pa- tados Unidos, Rússia, Reino Unido,
ra armar todos os países do mundo com França, República Popular da China,
85 ogivas — ou o equivalente ao arsenal Índia, Paquistão e Coreia do Norte e
nuclear de Israel, como indica o último Imagem cedida pelo exército dos EUA mostra momento da explosão da bomba em Hiroshima Israel.
Boletim dos Cientistas Atômicos, publi- Mas, somente os cinco países integran-

Opera Mundi
cado ano passado. tes do Tratado de Não-Proliferação de
Hiroshima foi o primeiro alvo de uma Armas Nucleares (TNP), e que também
bomba nuclear na história. Três dias de- são os cinco membros permanentes do
pois, a também japonesa Nagasaki teria Conselho de Segurança da ONU — Esta-
o mesmo tratamento, alvo da ogiva nor- dos Unidos, Rússia, França, Reino Unido
te-americana “Fat Man” (Homem Gor- e China — possuem mais de 98% das ar-
do). O saldo total de mortos decorren- mas nucleares do mundo, como aponta o
tes dos dois ataques ultrapassa os 200 estudo citado.
mil civis japoneses. Após os bombar- Assim, apesar do aumento de arma-
deios, ocorreram mais de 2.000 deto- mento em países fora do TNP, a respon-
nações de bombas nucleares em testes sabilidade pela redução das armas de
e demonstrações, nenhuma delas foi em destruição em massa é predominante-
outra guerra. mente do chamado grupo dos cinco, diz
O uso das bombas impulsionou a cor- o estudo científico.
rida armamentista entre Estados Uni- O trabalho, realizado por Hans M.
dos e a URSS (União das Repúblicas So- Kristensen e Robert S. Norris, am-
cialistas Soviéticas) durante o período bos da Federação de Cientistas Nor-
conhecido como Guerra Fria (1945- te-Americanos, conclui que o TNP es-
1991). Não por acaso, hoje Rússia e os tá diante de um dilema. “Após décadas
EUA detêm 93% das armas nucleares de de redução dos níveis das ogivas nucle-
todo o mundo. ares após a Guerra Fria, esta tendên-
A quantidade de ogivas prontas pa- cia parece ter diminuído e todos os Es-
ra o uso sob a posse de Washington tados com armamento nuclear estão
e Moscou é aproximadamente 25 ve- ocupados modernizando seus arsenais
zes superior à da França, que detém o nucleares. Não há indicações de que al-
terceiro maior arsenal. E, se permane- guma das potências esteja planejando
cer no mesmo ritmo de crescimento, os desistir das armas nucleares em um fu-
dois arsenais que crescem mais rapida- turo previsível. Ao contrário, todas fa-
mente, Paquistão e Índia, poderiam le- lam da importância das armas nuclea-
var 760 anos para atingir os dois países res para a segurança nacional”, aponta.
no topo da lista. (Opera Mundi)

A “justiça” líbia convém ao Ocidente


OPINIÃO Com o fuzilamento dos jura nunca ter torturado ninguém, e ago- e enviava a informação que proporciona- ligação por vídeo com o povoado contro-
ra pode ser encontrado relaxado num da pelos exilados, não sem antes torturá- lado pela milícia onde esteve preso des-
oposicionistas, os acordos secretos condomínio de luxo no Qatar, porque os -los. Os grupos de direitos humanos con- de a sua captura, em 2011. Em 2013, Em-
entre os torturadores de Gaddafi britânicos e os estadunidenses são agra- sideravam Senussi a “caixa-preta” das li- merson me disse que quando ele e os de-
decidos pela ajuda de quem apontou os gações secretas que começaram depois mais advogados de Sanussi quiseram sa-
e os serviços de inteligência agentes da Al Qaeda na África –, estive- que Tony Blair, com toda a delicadeza, ber se agentes do MI6 haviam interroga-
ram entre os mais leais jagunços a servi- beijou o grande líder em pessoa. Senus- do o seu cliente enquanto esteve na Mau-
ocidentais ficaram a salvo ço de Gaddafi. Mas se supõe que a justiça si sabia muito mais das nossas agências ritânia – antes de ser entregue ilegal-
ao estilo Nuremberg requer a revelação de espionagem e seus truques sujos do mente à Líbia–, William Hague, secre-
total dos crimes dos acusados. que Saif Gaddafi, o filho do defunto Mu- tário britânico de política exterior, se ne-
O julgamento de Saddam foi uma pro- ammar, que também foi conveniente- gou a responder.
Robert Fisk va. O crime mais monstruoso do ditador mente sentenciado à morte. Talvez por No fim de semana, Emmerson deplo-
iraquiano foi o massacre com gás con- isso, Senussi fugiu, primeiro para a Mau- rou a sentença de morte, porque Senussi
CALAR A BOCA DELES. Disso se tratou. tra os curdos, cometido na região de Ha- ritânia, que deveria tê-lo entregue ao Tri- não teve representação legal nem acesso
Um golpe de misericórdia, ou um pelo- labja, em 1988 – ocasião na que morre- bunal de Haia. Mas após receber um su- à sua família, não pode preparar sua de-
tão de fuzilamento, e os segredos foram ra, 5 mil homens, mulheres e crianças. borno de 200 milhões de dólares, segun- fesa nem teve nenhuma oportunidade de
parar na tumba. Saddam Hussein não te- Entretanto, o espetáculo dos julgamen- do alguns parlamentares líbios, a Mauri- questionar a promotoria.
ve a oportunidade de nos contar sobre to que montaram os anglo estaduniden- tânia o devolveu à Trípoli. “O julgamento se produziu numa at-
os seus acordos com as empresas esta- ses em 2005 se concentrou na execução Uma vez ali, talvez Senussi tenha sol- mosfera de medo extremo, insegurança
dunidenses e alemãs, que forneceram o de 140 xiitas no povoado de Dujail, em tado a língua sobre todas as nossas su- e intimidação”, relatou ele, “na que fun-
gás que ele usou contra os curdos. Agora, 1982. Sim, essa também foi uma atroci- jas ações, que ele bem conhecia. Sua fi- cionários judiciais e advogados da defesa
o espião mais audaz de Gaddafi, Abdalá dade, mas a de Halabja foi um genocídio. lha, Anoud, me disse que quando viu chegaram a ser ameaçados e atacados fi-
Senussi, será fuzilado na Líbia, antes que seu pai na prisão de Trípoli, muito an- sicamente”.
tenha a oportunidade de relatar sua ínti- tes do julgamento, ele parecia ter sido Como me disse, no fim de semana, ou-
ma relação com os serviços de segurança Somos responsáveis pelo que “golpeado nos olhos e no nariz”, e esta- tro britânico, que durante muito tempo
ocidentais, quando servia de ligação en- va muito fraco, com menos de 35 quilos se empenhou numa longa luta para de-
tre seu chefe, a CIA e o MI6 britânico. ocorre na Líbia hoje, e, portanto, de peso. “Estava sob a ameaça de mais fender Senussi: “Todos os que estão en-
Não é surpreendente – ou talvez nem responsáveis também pela sentença torturas se contasse a alguém sobre o volvidos no segredo serão executados”.
tanto – que apesar da indignação da tratamento que recebia.” Não é que as vítimas de Gaddafi re-
Anistia Internacional pela farsa do jul- de morte contra Senussi Então, o que os seus torturadores o ceberam melhor “justiça”, mas foi Tony
gamento, e da “profunda lamentação” da obrigaram a revelar? E, tendo em vis- Blair quem beijou o malvado ditador, e
entidade de direitos humanos da ONU ta que sabemos que o MI6 e a CIA escre- David Cameron quem ajudou a destruí-
pelas sentenças, os britânicos e estadu- vem a informação que lhes dá vontade -lo. Somos responsáveis pelo que ocor-
nidenses não tenham movido uma palha O foco permitiu evitar cuidadosamente quando as obtêm de torturadores árabes, re na Líbia hoje, e, portanto, responsá-
desde que Senussi, que Saif (filho de Ga- qualquer indagação judicial que tocas- quem elaborou as perguntas? Há qua- veis também pela sentença de morte con-
ddafi) e mais um monte de outros jagun- se no assunto de como Saddam adqui- se dois anos atrás, Anoud me disse que tra Senussi. Mas quando os rifles vomi-
ços do regime foram sentenciados à mor- riu o gás para extinguir todas aquelas al- o pai não teria direito a um julgamento tarem suas balas ao amanhecer, daqui a
te, na semana passada, num processo mas – uma companhia de produtos quí- justo. Ela tinha razão. dois meses, não poucos agentes britâni-
onde não contaram com defensores, nem micos, com sede em Nova Jersey. Quan- O advogado internacional de Senus- cos escondidos nesse estranho edifício às
provas documentais contra, nem teste- do os carrascos de Saddam foram inter- si, Ben Emmerson, soube que algo mui- margens do Tâmisa darão um suspiro de
munhas? Todos esses acordos secretos rogados sobre Halabja, seu chefe já havia to ruim ocorria no caso quando a Corte alívio. (The Independent/La Jornada –
entre os odiosos torturadores de Gaddafi sido enforcado. Penal Internacional de Haia aceitou que Carta Maior)
e nossos serviços de inteligência ficaram Os crimes contra a humanidade, sem Senussi fosse julgado pelo tribunal acos-  
a salvo para sempre. Graças a Deus pela dúvida, estão no currículo de Abdalá sado pelas milícias, em Trípoli. Ainda as- Robert Fisk é jornalista e escritor britânico
“justiça” líbia. Senussi. Ao menos os respectivos às tor- sim, essa mesma corte pediu que Saif Ga- que vive em Beirute, premiado várias vezes
Certo, esses homens eram meros ban- turas impostas por ele a exilados líbios, ddafi fosse enviado a Haia. Será que essa com reportagens sobre o Oriente Médio. É
didos desprezíveis: Senussi é responsá- depois de sua bárbara rendição, com a diferença se deu porque ele sabia menos? um dos raros repórteres ocidentais que fala
vel pelo massacre de mais de mil presos ajuda do MI6 e de outras agências oci- Em todo caso, não o levaram para lá. fluentemente o idioma árabe.
políticos de Gaddafi, por exemplo. Mas dentais. Ele ajudou a montar o comitê de Foi condenado à morte pelo mesmo tri-  
ele e seu sucessor, Moussa Koussa – que recepção no lado de Trípoli, que produzia bunal que julgou Sanussi, através de uma Tradução: Victor Farinelli.
16 de 13 a 19 de agosto de 2015 internacional

Fluxo de imigrantes africanos e árabes


alimenta xenofobia da União Europeia Italian Navy/Massimo Sestini

CRISE HUMANITÁRIA
Mesmo com toda a
repressão e o risco de
viajar em transportes
improvisados, imigrantes
continuam chegando em
vários países da Europa

Achille Lollo
de Roma (Itália)

NOS PORTOS da Espanha, Itália e Gré-


cia e nos postos de fronteiras da Hun-
gria, Bulgária, Croácia, Eslovênia e Sér-
via, imigrantes africanos e árabes conti-
nuam a chegar, apesar das medidas re-
pressivas adotadas por quase todos os es-
tados membros da União Europeia. Ho-
mens, mulheres, muitas delas grávidas,
e agora até crianças, enfrentam os riscos Barco repleto de imigrantes africanos se aproxima da costa italiana
da travessia do Mar Mediterrâneo ou vi-
vem o pesadelo de viajar fechados em ca- embarcação pegando no corpo a violên- áticas racistas chegam mesmo a associar alimentam as linhas de montagem e que
minhões, para serem descarregados per- cia das ondas do mar consegue barate- imigrantes a roubos, estupros e ao nar- não tem nenhuma especialização técni-
to das fronteiras que, em seguida, tentam ar a passagem por mil e quinhentos eu- cotráfico. cas são ucranianos, poloneses e búlga-
atravessar rumo às cidades onde alguém ros. Nas barcaças o preço é mais alto, en-   ros. Em Roma e Milão, 80% dos pedrei-
os espera. tre três mil e três mil e quinhentos euros.  Mão de obra barata ros são albaneses e romenos.  Na agricul-
Todos os dias esse roteiro se repete,   Na Europa as imigrações descontro- tura, 80% das empresas italianas utili-
com homens, mulheres e crianças mor- Um negócio lucrativo ladas começaram, em 1990, logo após zam a mão de obra estrangeira africana
rendo afogados ou sufocados em contê- Na Turquia, Egito, Líbia, Tunísia, Ar- a queda do Muro de Berlim. Milhares e árabe para fazer as colheitas de frutas
ineres selados para enganar a vistoria gélia e Marrocos o transporte de imi- de romenos, búlgaros, poloneses, ucra- e verduras. Uma mão de obra que é paga
dos policias de fronteira.  Os que chegam grantes virou um negócio extremamente nianos e albaneses se espalharam pelos “a cottimo”, isto é, baseada na quantida-
à Itália pelo mar são salvos pelas unida- lucrativo que, apesar dos desastres e das mais ricos países europeus aproveitando de de produtos recolhidos - forma de pa-
des da Marinha que os entregam aos fun- tragédias, está em continuo crescimento. o momento de incerteza daqueles anos. gamento abolida com a Constituição de
cionários dos Centros de Acolhimento. As milícias de Trípoli, Mesurata e Ben- E os governos desses países liberaram a 1948, mas que hoje vale para imigran-
Ali são feitas longas pesquisas para defi- gase passaram até a proteger as compa- entrega de passaportes para não serem tes africanos e árabes. Também vale citar
nir quem tem direito ao asilo político ou nhias de navegação que recrutam os ma- considerados impopulares e para legiti- que 87% das jovens submetidas à pros-
quem deve ser expulso por ser conside- rinheiros e que contatam os grupos de marem a propaganda que incentivava a tituição, entre os 16 e os 25 anos, são ro-
rado clandestino. Na prática, quase nin- imigrantes. fuga das ditaduras comunistas em busca menas, ucranianas, lituanas e nigerianas.
guém é expulso, uma vez que a maioria Quatro viagens anuais, transportando do lucro e do consumismo fácil do capi- Para muitos, o fenômeno da imigração
consegue uma saída, fugindo em direção em cada uma cerca de 500 pessoas, ren- talismo europeu. descontrolada também tem favorecido a
às cidades onde são auxiliados pelas gan- dem aos donos da companhia perto de degradação de bairros das grandes cida-
gues da economia ilegal. seis milhões de euros (21 milhões de re- des, onde chefões mafiosos da economia
Os donos dos barcos exploram calcu- ais). Evidentemente, este negócio não é “Na maioria dos casos, são velhas ilegal utilizam as novas gangues de afri-
ladamente as leis que obrigam os navios feito por bandidos simplórios. Existem canos, árabes, albaneses, romenos e ciga-
mercantes e militares a socorrer qual- várias organizações criminosas que man- barcaças que deveriam embarcar nos para ampliar negócios ilícitos, como
quer embarcação que lance o sinal de So- tém ativos os fluxos das imigrações que, no máximo 150 pessoas, mas que a prostituição e a venda de drogas.
corro (SOS). Quando chegam às águas agora, partem dos países da África sube-
territoriais da Itália, da Espanha ou da quatorial (Nigéria, Camarões, Senegal chegam a embarcar 500, e às vezes, Oportunismo Politico
Grécia, desligam ou até sabotam os mo- e Centrafricana), do Sahel (Tchad, Ma- Recentemente, os 28 países-mem-
tores e pedem ajuda. Na maioria dos ca- li e Níger) e do Chifre Africano (Sudão, até 700 pessoas, sem nenhuma bros da União Europeia, após as tragé-
sos, são velhas barcaças que deveriam Eritreia, e Somália) para depois ingres- reserva de água, de comida ou os dias acontecidas no Mediterrâneo, se
embarcar no máximo 150 pessoas, mas sar nas tradicionais rotas clandestinas da reuniram para debater a proposta de co-
que chegam a embarcar 500, e às ve- Tunísia, do Marrocos e da Argélia. Além obrigatórios salva-vidas” tas que, timidamente, o governo italia-
zes, até 700 pessoas, sem nenhuma re- disso, há também o fluxo de imigrações no de Matteo Renzi havia apresentado
serva de água, de comida ou os obriga- vindo do Oriente Médio, em particular em Bruxelas. Na realidade, esta reunião
tórios salva-vidas. Por isso, quando es- da Síria, Iraque e Afeganistão. As estatís- serviu para evidenciar o oportunismo, o
sas embarcações vão à deriva, arrastadas ticas de 2015 apontam ainda a existência É necessário dizer que estas imigra- egoísmo e, sobretudo, a falta de solida-
sem rumo por dias e noites pelas corren- de muitos imigrantes vindos do Paquis- ções, depois dos primeiros momen- riedade por parte das nações da Europa
tes do Mar Mediterrâneo, a travessia po- tão. tos emocionantes, foram planejadas por do Norte para com os quatro países da
de se transformar em tragédia. Pode-se dizer que muitos destes refu- agências ligadas  a diferentes setores em- Europa do Sul (Portugal, Espanha, Itá-
giados fogem das guerras que o imperia- presariais com o objetivo de municiar a lia e Grécia), que hoje, por conta de sua
lismo criou no Oriente Médio ou no con- União Europeia com uma mão de obra posição geográfica, recebem 70% do flu-
“Na prática, quase tinente africano. Mas é necessário reco- barata, sem consciência política e dispos- xo imigratório.
nhecer que a maioria foge da fome e do ta a trabalhar sem os contratos oficiais
ninguém é expulso uma desemprego endêmico, procurando um garantidos pelos sindicatos, aceitando o
vez que a maioria consegue lugar qualquer na Europa para recons- chamado “contrato negro”. Este era um “Não é surpresa que a grande
truir suas vidas. acordo individual com o qual um empre-
uma saída, fugindo em A maioria dos que aceitam o risco das sário contratava oficialmente um traba- imprensa alimente a xenofobia dos
travessias são jovens trabalhadores, en- lhador estrangeiro por um salário rebai- partidos políticos operando uma
direção às cidades” tre 18 e 28 anos, que ficaram sem nenhu- xado de 70%, oferecendo por fora outra
ma perspectiva em seu país, já que seus parcela de 30%, sem, no entanto, pagar perigosa associação visual entre
pais venderam as poucas terras ou o pe- as horas extras e recolher as contribui-
Segundo informes extraoficiais da Ar- queno rebanho para financiar o sonho ções para a aposentadoria, o seguro-de- a degradação das metrópoles e as
quidiocese de Trípoli, na Líbia, nos últi- europeu dos filhos. semprego e o auxílio-doença. Essa situa- barbáries cometidas pelo Estado
mos três anos, cerca de 20 mil pessoas Essa situação está criando um dile- ção trouxe uma série de problemas para
desapareceram na travessia sendo que os ma humanitário complexo, sobretudo o mundo do trabalho, mas gerou um lu- Islâmico na Síria e no Iraque”
naufrágios mais frequentes envolveram nos países europeus que vivem uma cri- cro inesperado para donos de empresas
barquinhos infláveis de borracha. Movi- se econômica. O fator imigração se tor- de serviços e comerciantes.
dos pelo lucro fácil, os donos dessas em- nou uma questão crítica para os gover- Essa situação se repete ainda hoje. Em
barcações as carregam com até 150 pes- nos da Itália, Espanha, Portugal e, prin- Roma, por exemplo, e na maioria das Esse oportunismo é explorado até as
soas quando, em condições normais, es- cipalmente, da Grécia. Nos países ricos grandes cidades italianas, boa parte dos últimas consequências para reafirmar
ses barcos podem transportar, no máxi- da União Europeia (Alemanha, Fran- imigrantes clandestinos do Sri Lanca tra- a imagem nacionalista dos novos par-
mo, 25 pessoas. ça, Dinamarca, Grã Bretanha, Holan- balham como seguranças noturnos das tidos direitistas, neofascistas e xenófo-
Outro elemento importante nesse trá- da, Bélgica e Áustria), a imigração des- bombas de gasolina Self, mas se o moto- bos. Na Itália, por exemplo, a Liga Nor-
fico humano é o preço exorbitante que os controlada também traz consequências, rista lhe oferece um trocado eles abaste- te, que em 2012 havia regredido ao mí-
atravessadores exigem dos imigrantes. sendo explorada por partidos de direita, cem o carro como um frentista comum. nimo quórum parlamentar com miserá-
Uma “passagem” nos assentos centrais que cresceram e acirraram a histórica No nordeste italiano, no famoso Tri- veis 3,8%, agora alcança 8%, ocupando
dos barcos de borracha custa, em média, xenofobia dos povos da Europa do Nor- ângulo da indústria branca (geladeiras, um grande espaço na mídia por denun-
dois mil euros (cerca de sete mil reais). te, reforçando sua aversão às pessoas e maquinas de lavar e pequenos eletrodo- ciar a “invasão” da Itália. Até na tran-
Quem aceita o risco de sentar na beira da culturas estrangeiras. Campanhas midi- mésticos), todos os trabalhadores que quila Dinamarca foi formado um novo
partido cujo programa visa liberar os di-
namarqueses do perigo estrangeiro.
Foreign Affairs Council

Não é surpresa que a grande imprensa


alimente a xenofobia dos partidos polí-
ticos operando uma perigosa associação
visual entre a degradação das metrópo-
les e as barbáries cometidas pelo Esta-
do Islâmico na Síria e no Iraque. Graças
a esta livre associação de imagens, os lí-
deres do racismo europeu - a francesa
Le Pen e o italiano Salvini - apresentam
em seus discursos os estrangeiros como
potenciais inimigos do Ocidente, já que
são muçulmanos e possíveis recrutas do
fundamentalismo islâmico. Esse sórdi-
do jogo de palavras é feito para alimen-
tar uma guerra psicológica como a dos
tempos das guerras entre o cruzado Ri-
cardo Coração de Leão e o príncipe ára-
be Saladim.

Achille Lollo é jornalista italiano,


correspondente do Brasil de Fato na
Itália, editor do programa TV “Quadrante
Informativo”, colunista do “Correio da
Cidadania, colaborador do “ALBA
O Conselho de Assuntos Externos da UE se reúne para discutir a questão da imigração no Mediterrâneo Informazione” e do “L’Antidiplomatico”.

Você também pode gostar