Você está na página 1de 3

OS PERIGOS DA INDIFERENÇA

À verdade
Armando Medeiros
Vice-presidente da ABCPública/ Brasil

Apelos emocionais e que mo- O conceito de Embora não seja exatamen-


bilizam crenças pessoais são te uma nova descoberta, o
pós-verdade foi revigorado
mais eficazes para conquistar conceito de pós-verdade foi
a opinião pública do que fatos a partir da explosão revigorado a partir da explo-
objetivos. Este é o significado de informações geradas são de informações geradas
de post-truth (pós-verdade), a ou reproduzidas na web. O
ou reproduzidas na web
palavra emblemática do ano fenômeno produz sinais de
de 2016, de acordo com o Di- alerta inquietantes. Nas mídias
cionário Oxford. sociais, a ausência de uma instância para esta-
belece filtros, separar o joio do trigo e colocar
Mas o que é realmente novo nesta definição? em perspectiva visões distintas, cria um quadro
propício para não acreditar em nada do que o
O enfoque sobre as pessoas assimilarem conte- outro diz, e se agarrar em sua própria convicção.
údos a partir de um processo de memorização e
percepção seletivas, de acordo com seu repertório As novas tecnologias conectam núcleos familia-
de convicções, está presente nas teorias de comu- res, amigos, grupos de discussões. Neste territó-
nicação que buscaram, no século passado, des- rio – em que Facebook e Whatsapp são os princi-
vendar os caminhos da persuasão. pais vetores – descobrimos crenças, pensamentos
e valores que referenciam pessoas e comunida-
A psicanálise demonstrou o poder dos aspectos des, sejam próximas ou distantes, inclusive pa-
subjetivos e inconscientes nas ações dos indivídu- rentes longínquos. Estabelecemos cumplicidade e
os. Mal-entendidos também são frequentes na tra- memes que esbanjam humor e irreverência. Mas
jetória científica de teorias políticas, econômicas, surpresas e decepções se materializam também
sociais e seu confronto com a realidade social re- neste espaço. Discussões acirradas e ácidas são
pleta de releituras e reinterpretações das certezas corriqueiras. Laços são desfeitos. Só mesmo os
produzidas pelo conhecimento objetivo. espíritos pacientes e imbuídos de avançado grau
de tolerância conseguem se deliciar. O irreversí-
Na política brasileira, há uma antológica frase, vel contexto da pós-verdade atropela um espaço
cuja autoria é atribuída a várias raposas minei- que poderia favorecer a convivência e o diálogo.
ras (Antônio Carlos de Andrade, José Maria Alk-
min, Gustavo Capanema, Tancredo Neves) que Na era da pós-verdade, pródiga de acontecimen-
diz: “em política, o que importa é a versão, não tos marcantes como a saída da Grã-Bretanha da
o fato”. União Europeia e a disputada campanha eleitoral

23
O desafio determinante Se a então presidente brasileira jamais colocou
o dedo em riste em direção à imprensa, postu-
é a capacidade do jornalismo
ra oposta tem sido adotada pelo atual presidente
de enfraquecer os construtores norte-americano.
interessados em meias-verdades
Nos EUA, para sustentar sua narrativa, o candi-
ou falsidades inteiras
dato e hoje titular da Casa Branca disparou du-
ras críticas sobre o comportamento da imprensa.
Trump, conhecido por disseminar crenças e abor-
norte-americana, fica claro que guerrilheiros da dagens extremistas, utiliza amplamente as redes
“verdade” e guerrilheiros da “mentira” – ambos sociais, um ambiente onde a checagem tem crité-
alternando posições – prosperam em contextos rios frouxos. E é exatamente nas redes sociais que
altamente inflamáveis e radicalizados. A disputa o presidente e seu núcleo duro ecoam, aos qua-
entre aqueles que gritaram “é golpe” e aqueles tro cantos, o que ele próprio dissemina como sua
que gritaram “é constitucional”, no Brasil, duran- “verdade”: “a imprensa é mentirosa”. As tensões
te a queda de Dilma Rousseff, cristalizam a ideia chegaram ao ponto de o próprio Trump declarar
de um mundo movido a paixões e crenças. Onde os jornalistas como as espécies mais desonestas
a verdade não é mais necessária. do planeta.

O fenômeno remete à pergunta de como o jorna- Em ambos os casos, a disputa crucial é quem
lismo, ou a imprensa, convive com os novos tem- tem poder para estabelecer a “verdade” numa
pos, extremamente polarizados, além de caracte- era de (pós) verdade. É uma realidade na qual os
rizados por audiências fragmentadas e dispersas. emissores de notícias – na concepção de apurar,
checar, ouvir diferentes vozes – não são mais fa-
O cenário brasileiro pré-impeachment da presi- cilmente identificáveis.
dente Dilma Rousseff e a trajetória de Trump rumo
ao cargo de presidente dos Estados Unidos – re- Os novos capítulos na equação comunicativa –
velam realidades distintas nas quais o novelo con- Estado, Imprensa e Cidadãos –, talvez sejam ca-
trovertido da pós-verdade envolveu fontes oficiais racterizados pela apropriação do burburinho digi-
e a imprensa. tal das redes sociais e de escancaradas lutas em
torno da “verdade” (brigas com a imprensa).
No Brasil, durante o processo de impeachment
(fenômeno claramente recheado de verdades al- Para o jornalismo, a pós-verdade significa ameaça
ternativas), as promessas de um futuro radiante, e oportunidade.
sobretudo na economia, alardeados pelos anti-
-dilmistas, foram endossadas com baixo grau de Em um primeiro momento, o jornalismo sai en-
questionamento por significativa parte da mídia fraquecido neste cenário no qual “todo mundo”
brasileira. A então presidente pouco investiu nesta é produtor de conteúdo e cujo imperativo é com-
disputa de narrativas e suas reações mais contun- partilhar nas redes sociais imediatamente. Ler a
dentes, no campo da comunicação, ocorreram íntegra de um post raramente é a prática. Veri-
somente no mês de março de 2016, três meses ficar a credibilidade da fonte, questionar o teor
após o acolhimento do pedido de impeachment ou levantar dúvidas são comportamentos igno-
na Câmara dos Deputados. rados. O importante é dar um clique e transmitir
manchetes que, via de regra, apontam culpados,

24
criam bodes expiatórios e oferecem soluções ra-
sas para temas complexos.

Mas em um segundo momento, com tantas infor-


mações desencontradas, espera-se o triunfo da
apuração rigorosa sobre as inconsistências do re-
lato. O exercício trivial de checar a veracidade da
informação – na concepção do jornalismo, como
um bem social e serviço ao público – poderá res-
taurar o papel do jornalismo como fonte confiável
de informação, mesmo que em um modelo adap-
tado aos novos tempos, em que a multiplicação e
emissão dos fatos estejam sob a égide das novas
redes. O desafio determinante é a capacidade do
jornalismo de enfraquecer os construtores interes-
sados em meias-verdades ou falsidades inteiras.
teção social. É necessário avançar em regulações
Para o jornalismo retomar seu referencial de ver- que possam punir os inventores de mentiras e
dade circunstancial é necessário investimento, meias-verdades.
inovação, equipes estruturadas. O quadro atual
é de uma indústria em crise financeira e de iden- Apresentar convicções com base em desinforma-
tidade, cuja redução de custos se faz às custas ções pode ser compreensível, mas oferece riscos.
de demissões que fragilizam as esperanças do Quando ninguém acredita mais que exista uma
surgimento de combatentes da pós-verdade. Ao verdade, ou algo aproximado, quando o que vale
contrário, o que assistimos hoje, inclusive no no- é simplesmente acreditar na sua própria razão,
ticiário televisivo, é um jornalismo debilitado que parece que a verdade está sendo abolida ou ex-
acaba por jogar mais gasolina no território incen- pulsa da convivência social.
diado das paixões e crenças.
As consequências sociais deste contexto são inquie-
Seja como for, o momento de separar o joio do tantes. Na política, o enfraquecimento da noção e
trigo abre a oportunidade de desmontar ardis de do valor da verdade é um perigo para a sociedade.
spin doctores, ou de interesses políticos e ideoló- O roteiro previsível aponta para o acirramento da
gicos, dispersos no anonimato das redes. Existem intolerância e para o estímulo ao totalitarismo.
atores ávidos para estimular crenças radicais,
cultivar preconceitos e posições extremas que são A pós-verdade pode custar caro.
abraçadas com fervor, principalmente nas redes,
onde os haters, trollers, portais fakes ou páginas
especializadas em boatos, se proliferam. Sem fa-
lar que muitos ainda gozam do anonimato.
Bibliografia:
ALMEIDA. Rodrigo de. À sombra do poder: bastidores da crise que
Nas conjunturas polarizadas, quando a maioria derrubou Dilma Rousseff. São Paulo: Leya, 2016.
da sociedade fica à mercê de agentes, cuja ha- GIANNETTI. Eduardo. O Mercado das Crenças. São Paulo, Cia.
das Letras, 2003.
bilidade é criar cortinas de fumaça e manipular MARCONDES. Ciro. Sociedade Tecnológica. São Paulo,
informações, vale pensar em mecanismos de pro- Scipione. 1994.

25

Você também pode gostar