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Eugênio Bucci
Arte sobre foto de Marcos Santos
resumo abstract
O presente artigo parte da constatação This article starts by pointing out the
do crescente f luxo de notícias growing flow of phony news which distorts
fraudulentas, que deformam os the decision-making process in democracy,
processos decisórios na democracia, and then locates in the concept of “factual
para localizar, no conceito de “verdade truth” as conceived by philosopher Hannah
factual” tal como ele foi pensado pela Arendt a possible ethical value capable of
filósofa Hannah Arendt, um possível conducting the practice of those working
valor ético capaz de ordenar a prática with information who are guided by
dos que trabalham com informação the will to preserve and strengthen the
orientados pela disposição de preservar democratic culture.
e fortalecer a cultura democrática.
Keywords: fake news; post-truth; press;
Palavras-chave: fake news; pós-verdade; democracy.
imprensa; democracia.
Marcos Santos/USP imagens
“Além disso, como os factos e os
acontecimentos – que são sempre
“
engendrados pelos homens vivendo
e agindo em conjunto – constituem
própria textura do domínio político,
é, naturalmente, a verdade de facto
que nos interessa mais aqui”
(Arendt, 1995)1.
–, a obra desencadeou ondas de antissemi- Faz tempo, portanto, que relatos inverí-
tismo pela Europa e difundiu preconceitos dicos embaralham a política e as comuni-
que levariam a perseguições genocidas, como cações humanas. Quando Hannah Arendt,
se viu no Holocausto. Inteiramente falso, o como vimos na epígrafe, faz o elogio da
livro arregimentou adeptos fanáticos, para os verdade factual como a substância que cons-
quais os problemas da civilização se deviam titui “a própria textura do domínio político”,
à ganância de usurários judeus. ela não ignora que as coisas sejam como
Agora, no século XXI, ainda um pouco são. Ao contrário, ela descreve longamente
antes de as redes sociais terem se convertido o comparecimento da mentira na política,
nessa epidemia totalizante, as falsificações desde a Antiguidade. Platão, que execrava
seguiam em ritmo intenso. A campanha reiteradamente o vício da mentira, no Livro
de invencionices movida em proveito de III de A República admitia que, “no inte-
George W. Bush para preparar a invasão resse da própria cidade”, o governante pode-
do Iraque ficou na história recente como ria mentir (a ele “compete mentir”), desde
outra evidência do estrago que as notícias que mentisse para proteger a cidade, mais
fraudulentas acarretam. ou menos como o médico pode recorrer à
Foi em 2003. Manchetes mentirosas – mentira piedosa para preservar o ânimo de
orientadas, toleradas ou induzidas pelo Pen- um paciente.
tágono – davam conta de que o ditador do Além de saber que a dissimulação com-
Iraque, Saddam Hussein, fabricava armas parece à oratória de políticos bons ou ruins,
químicas de destruição em massa. Jornais e mesmo de estadistas, Hannah Arendt toma
de boa reputação e de altas tiragens deram cuidados adicionais antes de declarar sua
destaque para essa história, o que ajudou aposta na vigência da verdade factual.
a convencer a opinião pública de que era Esclarece que a verdade factual não se
acertada a decisão de enviar tropas lide- confunde – nem deve se confundir – com
radas pelos Estados Unidos, com o apoio outras verdades, aquelas que se pretendem
entusiástico de Tony Blair, primeiro-ministro transcendentes ou simplesmente monumen-
inglês, para invadirem o Iraque. tais. A filósofa ressalta que a verdade fac-
Anos mais tarde, George W. Bush e Tony tual é pequena, frágil, efêmera. Como um
Blair admitiram que a acusação era uma primeiro registro dos acontecimentos, um
fraude, mas o dano já estava feito. Uma primeiro – e precário – esforço de conhe-
pesquisa divulgada no final de 2016 mostrou cer o que se passa no mundo, a verdade
que 53% dos americanos ainda acreditavam factual é mais vulnerável a falsificações
que a acusação de que o Iraque produzia e manipulações. Mesmo assim, a verdade
armas químicas de destruição em massa factual é facilmente reconhecível por todos,
fosse autêntica10. pelos homens e mulheres normais, comuns
(como os jornalistas profissionais, que são
e devem ser homens e mulheres comuns).
10 A pesquisa foi realizada de 17 a 20 de dezembro de
2016 em parceria entre a revista The Economist e o site Hannah Arendt diz que “podemos permi-
You Gov. Disponível em: https://today.yougov.com/
tir-nos negligenciar a questão de saber o
news/2016/12/27/belief-conspiracies-largely-depends-
-political-iden/. que é a verdade, contentando-nos em tomar
Se não houvesse esses graus de sepa- Não que as redes sociais devam ser inter-
rações que depuram e revigoram a textura pretadas como um “mal” em si. Elas trou-
de seu domínio, a política não seria pro- xeram arejamentos para o mundo da vida e
priamente a política, mas uma articulação para as esferas públicas, abriram novos canais
nos moldes das conspiratas palacianas, das para diálogos e mobilizações e desempenha-
guerras corporativas, do tráfico de influên- ram um papel bastante positivo, contra Esta-
cia transformado em rotina, ou, ainda, da dos pouco sensíveis e pouco abertos ao diá-
corrupção transformada em éthos. Para que logo, em episódios como a Primavera Árabe.
a política seja mesmo a política nos marcos Vistas nessa perspectiva, as redes ajudaram
da democracia, seus agentes não haverão a destampar demandas do público, ajudaram
de dispensar as vozes problematizadoras da a viabilizar a expressão de reivindicações
imprensa, que rabisca impressões ou flagran- populares e deram mais vigor ao mundo da
tes passageiros sobre os eventos e estimula vida, e trouxeram muito mais velocidade para
os debates em torno da interpretação dos os entendimentos espontâneos entre cida-
mesmos eventos. O que parece importar a dãos na esfera pública. Mais ainda, torna-
Hannah Arendt é que a imprensa seja com- ram mais do que evidentes, escancaradas, as
preendida como um domínio que não está debilidades e as limitações do Estado em se
contido naquele outro, o domínio político, comunicar com a sociedade, e impuseram
embora não deixe de ter um olho ali dentro. agendas de mais transparência e melhores
De outra parte, a política se define como níveis de accountability à máquina pública.
um domínio que não deve ser inquilino do No Brasil, nas grandes manifestações de rua
domínio da imprensa, embora viva tentando de 2013, os protestos se articularam pelas
lhe pôr o pé na porta. redes sociais, o que foi amplamente docu-
Um pouco mais para lá, um pouco mais mentado, registrado e reconhecido12.
para cá, a imprensa e a política guardam isso Há nas redes, como se viu, uma vocação
em comum. Em ambas, ao menos segundo para desalinhar os confortos do poder esta-
os pressupostos da democracia, persiste certa tal, o que acarretou reprimendas autoritárias
filiação a um plano discursivo de registro contra elas, além de reações de matiz con-
dos fatos. E é isso que vem se perdendo, servador. A ditadura chinesa, por exemplo,
velozmente. preferiu amordaçá-las e enquadrá-las desde
a primeira hora. As autocracias do mundo
UMA ESPERANÇA PARA árabe se opuseram a elas ao acusá-las de
gerar indisciplina e desagregação social. No
A VERDADE FACTUAL
Brasil, tivemos discursos governistas que se
empenhavam em demonizá-las, imputando a
Ninguém discorda de que ao menos um elas a culpa por supostas ações orquestradas
pedaço da responsabilidade pela desvalo- pelo “imperialismo” ou por outras entidades
rização da verdade factual cabe às redes análogas e, com isso, desestabilizar uma pre-
sociais e à internet, onde se acomodaram
confortavelmente as forças dedicadas à pro-
dução das notícias fraudulentas. 12 Ver, a esse propósito: Bucci (2016).
razão, e isso desde suas origens, nas revistas gam do que integram a sociedade. Elas
de amenidades e faits divers, cujas raízes não põem as pessoas em rede; põem as
remontam ao século XVII. Agora, o quadro é muralhas em rede, muralhas privatizadas.
pior. Nas redes sociais, diferentemente do que Dentro das muralhas, o que impulsiona a
acontecia na televisão ou no cinema, a pro- circulação dos relatos é a dinâmica própria
pagação das mensagens depende diretamente dos boatos, bastante passional, e não mais
da ação das audiências, nas quais o desejo a dinâmica de prestação de serviços de
leva vantagem sobre o pensamento. Uma informação de interesse público, segundo
notícia (falsificada, fraudulenta ou mesmo pontos de vista plurais. A função pública
verdadeira, pouco importa) só se difunde à de mediar o debate social, de investigar
medida que corresponda a emoções, quais- e relatar os acontecimentos de interesse
quer emoções, “positivas” ou “negativas”. geral com fidedignidade e de fazer circu-
Sobre o factual, predomina o sensacional – lar ideias e opiniões divergentes, função
daí o sensacionalismo. Sobre o argumento, essa que se fixou como o papel central
o sentimento ou o sentimentalismo. Esses da instituição da imprensa, corresponde
registros da percepção e do sensível, que apenas a uma franja marginal dentro das
passam pelo desejo, pelo sensacional, pelo interações da era digital. Agora, os pro-
sentimental, proporcionam conforto psíquico tocolos classicamente observados pela
aos indivíduos enredados em suas fantasias imprensa e pelas redações profissionais
narcisistas. A receita se revelou infalível. se confinam a ilhas que são minúsculas
Na era das redes sociais, o indivíduo se quando comparadas ao todo. O que é a
encontra encapsulado em multidões que o carteira de assinantes de um jornal, algo
espelham e o reafirmam ininterruptamente em torno dos 250 mil leitores, como no
– são as multidões de iguais, as multidões caso dos maiores diários do Brasil, perto
especulares, as multidões de mesmos. Vêm da escala de um Facebook, que tem perto
daí as tais “bolhas” das redes sociais, cujo de 2 bilhões de usuários com perfis ativos,
traço definidor é a impermeabilidade ao quase um terço da humanidade?15 As prá-
dissenso, a ponto de uma comunidade de ticas comunicacionais adotadas nas redes
uma determinada bolha mal tomar conhe- sociais, que não se pautam pela verifica-
cimento da outra. ção criteriosa dos fatos ou pelos critérios
Os algoritmos das redes sociais estimulam de veracidade e de pluralidade, soterram
e fortificam as bolhas, espessando as muralhas e comprimem as ilhas que observam os
que separam umas das outras – com a agra- protocolos clássicos da imprensa.
vante de que esses algoritmos são fechados
em códigos proprietários, de tal maneira que
os sistemas que regulam na prática o fluxo 15 “O Facebook informou que atingiu a cifra de 2,01
bilhões de usuários por mês entre os meses de abril
de informações não são públicos. A rede tec- e junho, o que representa alta de 17% em compa-
nológica por onde trafegam as informações, ração ao mesmo período do ano anterior.” Ver em:
“Facebook registra salto no lucro 71% no 2º trimestre
que deveria ser neutra, não o é. de 2017”. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/
Quando as focalizamos por essa lente, tecnologia/noticia/facebook-registra-salto-no-
-lucro-71-no-2-trimestre-de-2017.ghtml. Acesso em:
vemos que as redes sociais mais segre- 26 de outubro de 2017.
“Esta convicção insistente e antiga de que muito mais forte – em grande parte, graças
a verdade não é conquistada ou construída, às redes sociais, que banalizaram o sentido
mas revelada, fornecida gratuitamente, apa- de palavras como “notícia”, “informação” e,
rece muito claramente nas fantasias eco- claro, “verdade”.
nômicas que nós, como leitores de jornal, O estrago não ficou só nisso. Esse grau
costumamos ter. Esperamos que o jornal de monopólio, esse modelo de exploração
nos entregue a verdade, por menos lucra- que consegue extrair valor de trabalho das
tiva que seja a verdade. Para este serviço massas humanas que pensam estar apenas se
difícil e muitas vezes perigoso, que reco- divertindo fez das redes sociais uma usina de
nhecemos como fundamental, esperávamos, produção e de distribuição de notícias frau-
até outro dia, pagar a moeda de menor dulentas numa escala que não tem nenhum
valor emitida pelo Tesouro” (Lippmann, precedente. Uma sucuri de silício – uma
1997, p. 203)19. das múltiplas e simultâneas encarnações do
capital – tritura e engole a sociedade civil
Um século depois de essas palavras terem globalizada.
sido publicadas, não há dúvidas de que a A sucuri de silício não liga para a ver-
“convicção insistente e antiga” de que a dade factual, que virou uma espécie de fóssil
“verdade” é fornecida gratuitamente ficou pré-histórico.
Bibliografia
ARENDT, Hannah. “Verdade e Política”, in Entre o Passado e o Futuro. 8a ed. São Paulo,
Perspectiva, 2016.
. “Verdade e Política”, in Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Manuel
Alberto. Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1995.
BUCCI, Eugênio. A Forma Bruta dos Protestos. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
KEYES, Ralph. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life.
New York, St. Martin’s Press, 2004.
LIPPMANN, Walter. Public Opinion. New York, Free Press Paperbacks (Simon and
Schuster), 1997.
19 Texto original: “This insistent and ancient belief’ that serve us with truth, however unprofitable the truth may
truth is not earned, but inspired, revealed, supplied be. For this difficult and often dangerous service, which
gratis, comes out very plainly in our economic prejudices we recognize as fundamental, we expected to pay until
as readers of newspapers. We expect the newspaper to recently the smallest coin turned out by the mint”.