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Pós-política e corrosão da verdade

Eugênio Bucci
Arte sobre foto de Marcos Santos
resumo abstract

O presente artigo parte da constatação This article starts by pointing out the
do crescente f luxo de notícias growing flow of phony news which distorts
fraudulentas, que deformam os the decision-making process in democracy,
processos decisórios na democracia, and then locates in the concept of “factual
para localizar, no conceito de “verdade truth” as conceived by philosopher Hannah
factual” tal como ele foi pensado pela Arendt a possible ethical value capable of
filósofa Hannah Arendt, um possível conducting the practice of those working
valor ético capaz de ordenar a prática with information who are guided by
dos que trabalham com informação the will to preserve and strengthen the
orientados pela disposição de preservar democratic culture.
e fortalecer a cultura democrática.
Keywords: fake news; post-truth; press;
Palavras-chave: fake news; pós-verdade; democracy.
imprensa; democracia.
Marcos Santos/USP imagens
“Além disso, como os factos e os
acontecimentos – que são sempre


engendrados pelos homens vivendo
e agindo em conjunto – constituem
própria textura do domínio político,
é, naturalmente, a verdade de facto
que nos interessa mais aqui”
(Arendt, 1995)1.

A Arte da Mentira: A Polí- de Donald Trump para a presidência dos


tica da Pós-Verdade na Era Estados Unidos, em grande parte abastecida
das Redes Sociais.” Com
essa chamada de capa, o
semanário inglês The Eco-
e agem conjuntamente – constituem a verdadeira
nomist, em sua edição de textura do domínio político, é evidentemente com a
10 de setembro de 2016, verdade factual que nos ocupamos sobretudo aqui”.
Mesmo assim, embora a expressão “verdade factual”
proclamou o ocaso da verdade factual e pau- seja mais corrente do que a expressão “verdade de
tou um debate que se estendeu por meses na facto” no português do Brasil, em diversas outras
passagens a tradução portuguesa encontrou soluções
Europa e nas Américas2. Segundo a revista, mais claras aos objetivos do presente trabalho. Por
isso, deu-se preferência a ela nas citações que serão
o divórcio entre o discurso político e os fatos feitas a seguir.
teria se agravado violentamente. A campanha 2 No original: “Art of the Lie: Post-Truth Politics in the
Age of Social Media”.

1 Disponível em: http://abdet.com.br/site/wp-content/


uploads/2014/11/Verdade-e-pol%C3%ADtica.pdf. O presente ensaio foi extraído da conferência proferida
Acesso em: 20 de maio de 2017. No original, publica- no Ciclo Mutações, em 2017, organizado por Adauto No-
do em primeira mão na revista The New Yorker (ver vaes, cuja íntegra será publicada em uma coletânea pos-
edição de 25 de fevereiro de 1967): “Moreover, since teriormente. O texto se beneficiou da pesquisa realizada
facts and events – the invariable outcome of men living pelo autor para a sua prova de erudição em concurso
and acting together – constitute the very texture of the para o cargo de professor titular no Departamento de
political realm, it is, of course, factual truth that we are Informação e Cultura (CBD), da Escola de Comunicações e
most concerned with here”. O texto depois foi publi- Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em junho
cado ao lado de outros ensaios no livro Between Past de 2017. Para a elaboração do texto final, foi de enorme
and Future (ver a edição americana da Penguin Books valia a colaboração da jornalista Ana Helena Rodrigues.
de 2006, com prefácio de Jerome Kohn) e também
está disponível na internet: https://idanlandau.files.
wordpress.com/2014/12/arendt-truth-and-politics.pdf
(acesso em: 28 de outubro de 2017). Na tradução
brasileira, de Mauro W. Barbosa (Arendt, 2016, p. 287),
a expressão “verdade de facto” (do original “factual
truth”) aparece como “verdade factual”, que soa mais EUGÊNIO BUCCI é professor titular
direta aos ouvidos brasileiros. Eis a íntegra da frase da Escola de Comunicações e Artes
na tradução brasileira: “Mais ainda, visto que fatos e (ECA) da USP e autor de, entre outros,
eventos – o resultado invariável de homens que vivem O Estado de Narciso (Companhia das Letras).

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por notícias fraudulentas3, e a propaganda “política da pós-verdade” parece ter sido


mais do que enganosa que levou à vitória do cunhada por um blogueiro, David Roberts,
“Brexit” no Reino Unido foram apontadas no dia 1º de abril de 2010, para nomear
como sintomas. As democracias mais estáveis uma cultura política em que a política pro-
do planeta estariam ingressando numa era priamente dita, ou seja, a opinião pública
em que os relatos sobre os acontecimentos e as narrativas mediáticas, se desconecta-
perderam referência na verdade factual (ou ram inteiramente das policies, ou seja, da
“verdade de facto”, ou, ainda, a verdade que policy, ou seja, das ferramentas pelas quais
se extrai da verificação honesta e do relato são debatidas, estruturadas e implementadas
fidedigno dos fatos e dos acontecimentos). as políticas públicas e, ao fim e ao cabo, a
Dois meses depois dessa capa de The Eco- própria substância da legislação em Estados
nomist, o termo “pós-verdade” foi declarado democráticos de direito7.
“a palavra do ano” pelo Dicionário Oxford.
Em inglês, “post-truth” é um adjetivo que O PRECÁRIO ESTATUTO DA VERDADE
“qualifica um ambiente em que os fatos obje-
NA IMPRENSA E NA POLÍTICA
tivos têm menos peso do que apelos emocio-
nais ou crenças pessoais em formar a opi-
nião pública”4. Também segundo o Dicionário Uma das presunções mais vãs do século
Oxford, hoje é muito mais fácil, para um XX foi a promessa dos diários de entregar
agente político e para as pessoas em geral, a seus leitores nada menos que “a verdade”.
manipular dados conforme sua vontade5. O jornal dos bolcheviques na Rússia revo-
O neologismo foi usado pela primeira lucionária de 1917, depois transformado em
vez num artigo do dramaturgo sérvio Steve órgão oficial da União Soviética, tinha o
Tesich, publicado em 1992 no jornal ame- nome de Pravda, que, em russo, quer dizer
ricano The Nation 6. Em 2004, a expressão “a verdade”, e deu naquilo lá.
foi título de um livro de Ralph Keyes, The A imprensa, ao menos na visão de seus
Post-Truth Era (Keyes, 2004). A expressão praticantes menos pernósticos, nunca teve a
missão de entregar “a” verdade às pessoas,
3 A expressão “fake news”, em inglês, costuma ser
muito menos a verdade com “V” maiúsculo.
traduzida como “notícia falsa” ou “notícias falsas”. A Não foi sem um toque de sarcasmo que,
tradução sugerida pelo professor Carlos Eduardo Lins
da Silva, adotada aqui, é “notícias fraudulentas”. O em 1922, o jornalista Walter Lippmann per-
sentido do adjetivo fake, em inglês, envolve intenção
do agente de enganar o interlocutor, o público ou o
destinatário. O adjetivo “falso”, em português, não im-
plica esse dolo, essa intenção maliciosa. Desse modo,
a expressão “notícias falsas” é fraca para traduzir o 7 Trecho de David Roberts no original: “We live in post-
sentido da expressão “fake news”. -truth politics: a political culture in which politics (public
opinion and media narratives) have become almost
4 No original: “Relating to or denoting circumstances in entirely disconnected from policy (the substance of legis-
which objective facts are less influential in shaping public lation). This obviously dims any hope of reasoned legis-
opinion than appeals to emotion and personal belief”. lative compromise. But in another way, it can be seen as
5 Verbete original no Dicionário Oxford: “In this era of liberating. If the political damage of maximal Republican
post-truth politics, it’s easy to cherry-pick data and come opposition is a fixed quantity — if policy is orthogonal to
to whatever conclusion you desire”. politics — then there is little point to policy compromises.
They do not appreciably change the politics”. Disponível
6 A história é contada em: https://www.oxforddictiona- em: http://grist.org/article/2010-03-30-post-truth-
ries.com/press/news/2016/12/11/WOTY-16. -politics/.

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cebeu que o mesmo público que costuma dade. “A função da notícia é sinalizar um
idolatrar a verdade, atribuindo a ela uma evento. A função da verdade é trazer luz para
aura sacrossanta, não quer dispender um fatos ocultos, relacioná-los a outros, e traçar
centavo para remunerá-la: um retrato da realidade a partir do qual os
homens possam atuar” (Lippmann, 1997,
“Esperamos que o jornal nos entregue a p. 226)9. “Sinalizar um evento” quer dizer
verdade. [...] Para este serviço difícil e mui- noticiá-lo, promover um primeiro conheci-
tas vezes perigoso, que reconhecemos como mento dos fatos – conhecimento transitório
fundamental, esperávamos, até outro dia, e precário. Um bom órgão de imprensa avisa
pagar a moeda de menor valor emitida pelo sobre o que se passa e, com isso, ajuda o
Tesouro. Agora, aceitamos pagar dois ou, cidadão a modular suas expectativas em rela-
talvez, três centavos nos dias de semana; ção ao futuro próximo. A questão filosófica
aos domingos, por uma enciclopédia ilus- da verdade, por ele entendida como uma
trada e uma revista de variedades que vêm categoria que se situa além do registro dos
encartadas no diário da nossa preferência, fatos, escaparia ao jornalismo.
estamos dispostos a pagar cinco ou até, O pior é que o oposto da verdade, ou
quando muito, dez centavos. Ninguém pensa seja, a mentira nua e crua, esta não escapa
por um momento que deveria pagar pelo ao jornalismo. A mentira de imprensa é tão
jornal” (Lippmann, 1997, p. 203)8. antiga quanto a imprensa. Quando olhamos
os jornais da virada do século XVIII para
Descrente das verdades exageradamente o século XIX na Europa e nos Estados
triunfais, Lippmann se afastava desse tipo Unidos, vemos um festival de calúnias e
de pretensão e, mais ainda, não misturava xingamentos sem nenhum compromisso com
a função da imprensa com a função da ver- o equilíbrio, a ponderação e a objetividade.
Os diários que conquistaram na prática a
liberdade de imprensa primavam pela vio-
8 Vale a pena ler a íntegra do parágrafo original (o tre- lência da linguagem e mentiam à vontade.
cho traduzido e citado acima está em grifo, a seguir, A qualidade jornalística, não custa lembrar,
na transcrição do original em inglês): “This insistent and
ancient belief’ that truth is not earned, but inspired, reve- só veio como consequência do exercício da
aled, supplied gratis, comes out very plainly in our econo-
mic prejudices as readers of newspapers. We expect the
liberdade, não o contrário.
newspaper to serve us with truth, however unprofitable Também em livros, a mentira dolosa é tão
the truth may be. For this difficult and often dangerous
service, which we recognize as fundamental, we ex- velha quanto a invenção de Gutenberg. Os
pected to pay until recently the smallest coin turned Protocolos dos Sábios do Sião talvez seja o
out by the mint. We have accustomed ourselves now
to paying two even three cents on weekdays, and on exemplo mais conhecido. De origem obscura
Sundays, for an i11ustrated encyclopedia and vaudevil-
le entertainment attached, we have screwed ourselves
– provavelmente foi forjado nos bastidores
up to paying a nickel or even a dime. Nobody thinks do czarismo, na Rússia, já em seus estertores
for a moment that he ought to pay for his newspaper.
He expects the fountains of truth to bubble, but he enters
into no contract, legal or moral, involving any risk, cost
or trouble to himself. He will pay a nominal price when it
suits him, will stop paying whenever it suits him, will turn 9 Em inglês: “The function of news is to signalize an event,
to another paper when that suits him”. Observação: a the function of truth is to bring to light the hidern facts,
exemplo desta, todas as traduções de textos citados to set them into relation with each other, an make a
em inglês nesta conferência foram feitas pelo autor. picture of reality on which men can act”.

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–, a obra desencadeou ondas de antissemi- Faz tempo, portanto, que relatos inverí-
tismo pela Europa e difundiu preconceitos dicos embaralham a política e as comuni-
que levariam a perseguições genocidas, como cações humanas. Quando Hannah Arendt,
se viu no Holocausto. Inteiramente falso, o como vimos na epígrafe, faz o elogio da
livro arregimentou adeptos fanáticos, para os verdade factual como a substância que cons-
quais os problemas da civilização se deviam titui “a própria textura do domínio político”,
à ganância de usurários judeus. ela não ignora que as coisas sejam como
Agora, no século XXI, ainda um pouco são. Ao contrário, ela descreve longamente
antes de as redes sociais terem se convertido o comparecimento da mentira na política,
nessa epidemia totalizante, as falsificações desde a Antiguidade. Platão, que execrava
seguiam em ritmo intenso. A campanha reiteradamente o vício da mentira, no Livro
de invencionices movida em proveito de III de A República admitia que, “no inte-
George W. Bush para preparar a invasão resse da própria cidade”, o governante pode-
do Iraque ficou na história recente como ria mentir (a ele “compete mentir”), desde
outra evidência do estrago que as notícias que mentisse para proteger a cidade, mais
fraudulentas acarretam. ou menos como o médico pode recorrer à
Foi em 2003. Manchetes mentirosas – mentira piedosa para preservar o ânimo de
orientadas, toleradas ou induzidas pelo Pen- um paciente.
tágono – davam conta de que o ditador do Além de saber que a dissimulação com-
Iraque, Saddam Hussein, fabricava armas parece à oratória de políticos bons ou ruins,
químicas de destruição em massa. Jornais e mesmo de estadistas, Hannah Arendt toma
de boa reputação e de altas tiragens deram cuidados adicionais antes de declarar sua
destaque para essa história, o que ajudou aposta na vigência da verdade factual.
a convencer a opinião pública de que era Esclarece que a verdade factual não se
acertada a decisão de enviar tropas lide- confunde – nem deve se confundir – com
radas pelos Estados Unidos, com o apoio outras verdades, aquelas que se pretendem
entusiástico de Tony Blair, primeiro-ministro transcendentes ou simplesmente monumen-
inglês, para invadirem o Iraque. tais. A filósofa ressalta que a verdade fac-
Anos mais tarde, George W. Bush e Tony tual é pequena, frágil, efêmera. Como um
Blair admitiram que a acusação era uma primeiro registro dos acontecimentos, um
fraude, mas o dano já estava feito. Uma primeiro – e precário – esforço de conhe-
pesquisa divulgada no final de 2016 mostrou cer o que se passa no mundo, a verdade
que 53% dos americanos ainda acreditavam factual é mais vulnerável a falsificações
que a acusação de que o Iraque produzia e manipulações. Mesmo assim, a verdade
armas químicas de destruição em massa factual é facilmente reconhecível por todos,
fosse autêntica10. pelos homens e mulheres normais, comuns
(como os jornalistas profissionais, que são
e devem ser homens e mulheres comuns).
10 A pesquisa foi realizada de 17 a 20 de dezembro de
2016 em parceria entre a revista The Economist e o site Hannah Arendt diz que “podemos permi-
You Gov. Disponível em: https://today.yougov.com/
tir-nos negligenciar a questão de saber o
news/2016/12/27/belief-conspiracies-largely-depends-
-political-iden/. que é a verdade, contentando-nos em tomar

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a palavra no sentido em que os homens pretendem trabalhar com a busca da verdade
comumente a entendem” (Arendt, 1995)11. factual devem situar-se fora do domínio polí-
No nível dos fatos, dos acontecimentos, tico. Fica evidente, também, que confiar à
dos eventos que todos vemos e que todos política o papel de estabelecer a verdade dos
temos condições de verificar e comprovar fatos é flertar com o autoritarismo, ou mesmo
no uso das habilidades e das faculdades com o totalitarismo.
comuns dos seres humanos comuns, não há Hannah Arendt enaltece o valor do tra-
ninguém que não saiba divisar as distin- balho do repórter, que ela reputa indispensá-
ções entre a verdade factual e a invenção vel para que tomemos conhecimento do que
deliberada de falsidades com o objetivo de se passa e, mais ainda, para que a própria
esconder os fatos. política se efetive.
A partir daí, a filósofa separa o lugar da
verdade – mesmo dessa verdade menos gran- “O facto de dizer a verdade de facto com-
diosa, como é a verdade factual – do lugar da preende muito mais que a informação quoti-
ação política. Trata-se de uma desvinculação diana fornecida pelos jornalistas, ainda que
categórica, uma cisão de método: uma coisa sem eles nunca nos pudéssemos situar num
é a esfera abrangida pela política; outra, bem mundo em mudança perpétua, e no sentido
distinta, é aquela em que os fatos são apu- mais literal, não soubéssemos nunca onde
rados, investigados, pesquisados, narrados, estávamos. Isso é, certamente, da mais ime-
historiados. Reside na política o engenho diata importância política; mas se a imprensa
especial de se apropriar dos fatos a partir se tornasse alguma vez realmente o ‘quarto
de representações ou relatos elaborados em poder’ deveria ser protegida contra todo o
outros domínios, inclusive no jornalismo, mas governo e agressão social ainda mais cui-
a função de localizar e apontar a verdade, dadosamente do que o é o poder judicial.
bem como a função de difundi-la, não tem Porque essa função política muito importante
seu lugar no domínio político. A política se que consiste em divulgar a informação é
vale – e deve mesmo se valer – da verdade exercida do exterior do domínio político pro-
factual, mas, para tanto, precisa ir buscá-la priamente dito; nenhuma acção nem nenhuma
fora de seus domínios. decisão política estão, ou deveriam estar,
Enquanto a política – ainda que lide com implicadas” (Arendt, 1995, parte V).
o conflito de expectativas e interesses – supõe
o coletivo, o comunitário, o gregário, as con- A democracia teria então o dever de zelar
fraternizações afetivas, as aglutinações asso- permanentemente por “essa função política
ciativas e as concertações em regime de inter- muito importante que consiste em divulgar a
dependências, a função de “dizer a verdade” informação”, sem a qual não poderia exis-
requer a independência radical. Fica evidente tir. De sua parte, a política, mesmo para se
que, no pensamento da filósofa, aqueles que proteger de si mesma e evitar que as crenças
que normalmente cultiva se transformem em
fanatismos irracionais, precisa buscar anco-
11 Disponível em: http://abdet.com.br/site/wp-content/ rar suas decisões nos fatos e, dessa maneira,
uploads/2014/11/Verdade-e-pol%C3%ADtica.pdf.
Acesso em: 20 de maio de 2017. encontrar sua textura adequada.

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Se não houvesse esses graus de sepa- Não que as redes sociais devam ser inter-
rações que depuram e revigoram a textura pretadas como um “mal” em si. Elas trou-
de seu domínio, a política não seria pro- xeram arejamentos para o mundo da vida e
priamente a política, mas uma articulação para as esferas públicas, abriram novos canais
nos moldes das conspiratas palacianas, das para diálogos e mobilizações e desempenha-
guerras corporativas, do tráfico de influên- ram um papel bastante positivo, contra Esta-
cia transformado em rotina, ou, ainda, da dos pouco sensíveis e pouco abertos ao diá-
corrupção transformada em éthos. Para que logo, em episódios como a Primavera Árabe.
a política seja mesmo a política nos marcos Vistas nessa perspectiva, as redes ajudaram
da democracia, seus agentes não haverão a destampar demandas do público, ajudaram
de dispensar as vozes problematizadoras da a viabilizar a expressão de reivindicações
imprensa, que rabisca impressões ou flagran- populares e deram mais vigor ao mundo da
tes passageiros sobre os eventos e estimula vida, e trouxeram muito mais velocidade para
os debates em torno da interpretação dos os entendimentos espontâneos entre cida-
mesmos eventos. O que parece importar a dãos na esfera pública. Mais ainda, torna-
Hannah Arendt é que a imprensa seja com- ram mais do que evidentes, escancaradas, as
preendida como um domínio que não está debilidades e as limitações do Estado em se
contido naquele outro, o domínio político, comunicar com a sociedade, e impuseram
embora não deixe de ter um olho ali dentro. agendas de mais transparência e melhores
De outra parte, a política se define como níveis de accountability à máquina pública.
um domínio que não deve ser inquilino do No Brasil, nas grandes manifestações de rua
domínio da imprensa, embora viva tentando de 2013, os protestos se articularam pelas
lhe pôr o pé na porta. redes sociais, o que foi amplamente docu-
Um pouco mais para lá, um pouco mais mentado, registrado e reconhecido12.
para cá, a imprensa e a política guardam isso Há nas redes, como se viu, uma vocação
em comum. Em ambas, ao menos segundo para desalinhar os confortos do poder esta-
os pressupostos da democracia, persiste certa tal, o que acarretou reprimendas autoritárias
filiação a um plano discursivo de registro contra elas, além de reações de matiz con-
dos fatos. E é isso que vem se perdendo, servador. A ditadura chinesa, por exemplo,
velozmente. preferiu amordaçá-las e enquadrá-las desde
a primeira hora. As autocracias do mundo
UMA ESPERANÇA PARA árabe se opuseram a elas ao acusá-las de
gerar indisciplina e desagregação social. No
A VERDADE FACTUAL
Brasil, tivemos discursos governistas que se
empenhavam em demonizá-las, imputando a
Ninguém discorda de que ao menos um elas a culpa por supostas ações orquestradas
pedaço da responsabilidade pela desvalo- pelo “imperialismo” ou por outras entidades
rização da verdade factual cabe às redes análogas e, com isso, desestabilizar uma pre-
sociais e à internet, onde se acomodaram
confortavelmente as forças dedicadas à pro-
dução das notícias fraudulentas. 12 Ver, a esse propósito: Bucci (2016).

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sidência da República que seria “popular” e o dia seguinte, foram replicadas e dissemi-
“de esquerda”. Nesses casos, as redes sociais nadas com extrema rapidez13.  
foram atacadas por seus méritos, e foram O segundo fator é econômico. Notícias
atacadas por forças cultural e politicamente fraudulentas dão lucro. Dentro do ambiente
retrógradas, avessas à expansão da liberdade. virtual do Google e do Facebook, a fraude
Não é por esse ângulo que as redes são compensa. Quanto maior o número de cli-
criticadas aqui. O problema delas não está cks, mais o autor fatura. E, como a mentira
na tecnologia ou nas interações intensas que é fácil de produzir (é barata) e desperta o
elas propiciam, mas em questões relacionadas furor das audiências, um dos melhores negó-
à concentração de propriedade, à exploração cios da atualidade é noticiar acontecimentos
industrial do olhar do desejo que essas rela- que nunca aconteceram de verdade – e que,
ções engendram e aos moldes monopolistas mesmo assim, despertam emoções fortes nos
com os quais elas se apossaram do fluxo chamados internautas14.
das comunicações digitais em todo o pla- As redes sociais acrescentam à paisagem
neta. O problema está nas relações sociais globalitária um pacote inédito de perversida-
(relações de produção da indústria do ima- des. Agora, as notícias circulam segundo os
ginário) e no fato de que, tendo se enraizado ditames do entretenimento, que se orientam
no mundo da vida e na esfera pública, elas exclusivamente por fontes pulsionais, sem
não são públicas em seus controles e na sua as mediações da razão. Bem sabemos que a
propriedade. Sob a malha tecnológica, elas indústria do entretenimento nunca apreciou a
promovem a tecnociência e o capital como
substitutos da própria política.
Vistas por aí, fica nítido como o Facebook 13 O site Consultor Jurídico noticiou uma das medições
e o Twitter, além dos sites de busca, a exem- que foram feitas na época: “Notícias falsas sobre
a Operação ‘Lava Jato’ causam maior repercussão
plo do Google, aceleraram e fortaleceram do que as verdadeiras. A constatação foi feita pelo
site  BuzzFeed, que mediu o engajamento gerado
a pós-verdade. Isso se deu por pelo menos no Facebook por textos verdadeiros ou não sobre a
dois motivos. O primeiro tem a ver com um investigação na Petrobras. As interações com as dez
notícias falsas mais comentadas chegam a quase 4
incremento de velocidade, de alcance, de milhões, contra 2,7 milhões com o ranking das ver-
eficácia e de escala. Vários levantamentos dadeiras”. Disponível em: http://www.conjur.com.
br/2016-nov-22/noticias-falsas-lava-jato-repercutem-
mostram que as notícias fraudulentas reper- -verdadeiras.
cutem mais do que as verdadeiras. E mais 14 O caderno “Ilustríssima”, publicado pelo jornal Folha
de S. Paulo aos domingos, trouxe, na edição de 19
rapidamente. E arrebatam as amplas massas de fevereiro de 2017, duas reportagens e um artigo
de um modo acachapante, num grau jamais analítico sobre o tema da pós-verdade e das fake
news. Escrita por Fábio Victor, a reportagem “Como
atingido pelos meios jornalísticos mais con- Funciona a Engrenagem das Notícias Falsas no Brasil”
vencionais. Em questão de um dia ou dois, mostra os meandros da atividade altamente lucrativa
dos grupos apócrifos que confeccionam e distribuem
a campanha de Trump conseguiu fazer com notícias fraudulentas. Na mesma edição, o jornalista
Nelson de Sá, em “Como os Grandes Jornais e as Mí-
que metade dos Estados Unidos acreditasse dias Sociais Tentam Responder à Invenção Deliberada
que Barack Obama nasceu no Quênia. A de Fatos”, relata as estratégias das redações profissio-
nais para enfrentar as ondas de boatos programadas
mesma coisa se verifica no Brasil. Manche- com finalidades políticas. Por fim, o filósofo Osvaldo
tes malucas, como a que, no final de 2016, Giaccoia reflete sobre o tema da verdade no artigo
“E se o Erro, a Fabulação, o Engano Revelarem-se Tão
anunciava diariamente a prisão de Lula para Essenciais Quanto a Verdade?”.

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razão, e isso desde suas origens, nas revistas gam do que integram a sociedade. Elas
de amenidades e faits divers, cujas raízes não põem as pessoas em rede; põem as
remontam ao século XVII. Agora, o quadro é muralhas em rede, muralhas privatizadas.
pior. Nas redes sociais, diferentemente do que Dentro das muralhas, o que impulsiona a
acontecia na televisão ou no cinema, a pro- circulação dos relatos é a dinâmica própria
pagação das mensagens depende diretamente dos boatos, bastante passional, e não mais
da ação das audiências, nas quais o desejo a dinâmica de prestação de serviços de
leva vantagem sobre o pensamento. Uma informação de interesse público, segundo
notícia (falsificada, fraudulenta ou mesmo pontos de vista plurais. A função pública
verdadeira, pouco importa) só se difunde à de mediar o debate social, de investigar
medida que corresponda a emoções, quais- e relatar os acontecimentos de interesse
quer emoções, “positivas” ou “negativas”. geral com fidedignidade e de fazer circu-
Sobre o factual, predomina o sensacional – lar ideias e opiniões divergentes, função
daí o sensacionalismo. Sobre o argumento, essa que se fixou como o papel central
o sentimento ou o sentimentalismo. Esses da instituição da imprensa, corresponde
registros da percepção e do sensível, que apenas a uma franja marginal dentro das
passam pelo desejo, pelo sensacional, pelo interações da era digital. Agora, os pro-
sentimental, proporcionam conforto psíquico tocolos classicamente observados pela
aos indivíduos enredados em suas fantasias imprensa e pelas redações profissionais
narcisistas. A receita se revelou infalível. se confinam a ilhas que são minúsculas
Na era das redes sociais, o indivíduo se quando comparadas ao todo. O que é a
encontra encapsulado em multidões que o carteira de assinantes de um jornal, algo
espelham e o reafirmam ininterruptamente em torno dos 250 mil leitores, como no
– são as multidões de iguais, as multidões caso dos maiores diários do Brasil, perto
especulares, as multidões de mesmos. Vêm da escala de um Facebook, que tem perto
daí as tais “bolhas” das redes sociais, cujo de 2 bilhões de usuários com perfis ativos,
traço definidor é a impermeabilidade ao quase um terço da humanidade?15 As prá-
dissenso, a ponto de uma comunidade de ticas comunicacionais adotadas nas redes
uma determinada bolha mal tomar conhe- sociais, que não se pautam pela verifica-
cimento da outra. ção criteriosa dos fatos ou pelos critérios
Os algoritmos das redes sociais estimulam de veracidade e de pluralidade, soterram
e fortificam as bolhas, espessando as muralhas e comprimem as ilhas que observam os
que separam umas das outras – com a agra- protocolos clássicos da imprensa.
vante de que esses algoritmos são fechados
em códigos proprietários, de tal maneira que
os sistemas que regulam na prática o fluxo 15 “O Facebook informou que atingiu a cifra de 2,01
bilhões de usuários por mês entre os meses de abril
de informações não são públicos. A rede tec- e junho, o que representa alta de 17% em compa-
nológica por onde trafegam as informações, ração ao mesmo período do ano anterior.” Ver em:
“Facebook registra salto no lucro 71% no 2º trimestre
que deveria ser neutra, não o é. de 2017”. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/
Quando as focalizamos por essa lente, tecnologia/noticia/facebook-registra-salto-no-
-lucro-71-no-2-trimestre-de-2017.ghtml. Acesso em:
vemos que as redes sociais mais segre- 26 de outubro de 2017.

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Também são perversas as relações de pro- Sua receita em publicidade, em 2017, deve
priedade das novíssimas empresas ditas “de ultrapassar os US$ 36 bilhões, num cresci-
tecnologia” ou de “inovação”, como Google e mento de 35% em relação ao ano anterior18.
Facebook. Essas duas são monopólios globais. A fórmula de fabricação de valor na
Podemos vê-las, também, como um duopó- indústria do imaginário implementada por
lio mundial que controla a maior parcela do empresas como Facebook e Twitter é tão
tráfego das pessoas comuns na internet. Não genial quanto devastadora. Nelas, os usuários
obstante, seus usuários não costumam mani- entram no jogo como mão de obra (gratuita e,
festar preocupação com os efeitos nefastos das logo, escrava), como matéria-prima (também
práticas monopolistas sobre a circulação das gratuita) e, por fim, como mercadoria. Graças
ideias. Discursos contra alegados monopólios a esse modelo originalíssimo, o Facebook
da informação, que costumam ter como alvo, não precisa gastar um centavo para “gerar
no Brasil, a Rede Globo, difundidos profu- conteúdo” (no jargão horroroso da indústria),
samente no Facebook, não emitem o menor pois seus usuários atuam como digitadores,
sinal de que se deram conta do monopólio fotógrafos, locutores, atores, sonoplastas,
mundial exercido pelo próprio Facebook. escritores e tudo o mais. Os usuários são
Essas empresas registram taxas de cres- os operários que confeccionam ou extraem
cimento espantosas. O Google é a segunda a matéria-prima, da qual são também os
marca mais valiosa do mundo. Com seu beneficiadores e empacotadores. E, embora
preço estimado em US$ 141,7 bilhões em se vejam como “clientes” de um “serviço”
setembro de 2017, a marca Google fica que imaginam gratuito, esses usuários são
atrás apenas da marca Apple16. O valor da também a mercadoria final. São seus olhos
empresa Apple – e não apenas da marca que são vendidos aos anunciantes, o que
Apple – alcançou o patamar de US$ 900 parece alegrá-los enormemente.
bilhões em novembro de 2017, tornando-se O regime das muralhas em rede recortando
a empresa mais valiosa a ser negociada na o imaginário em bolhas também concorreu
Bolsa de Nova York. A Alphabet (empresa para acentuar a percepção (ilusória, fictícia)
controladora do Google) chegou ao valor de de que as notícias que vão e vêm são gratuitas
US$ 700 bilhões17. ou deveriam ser. Incrível como, nos anos 20
O Facebook, embora não lidere o ranking do século passado, o jornalista Walter Lipp-
das marcas mais caras, é um caso impressio- mann já registrara esse fetiche econômico
nante. Seu valor de mercado, como empresa do público de supor que os noticiários caem
(não apenas como marca, portanto), bateu do céu e, portanto, não valem um centavo.
na casa dos US$ 499,8 bilhões de dólares. Relembremos o que Lippmann disse (num
trecho que, em parte, já foi citado aqui):

16 Disponível em: http://www.valor.com.br/empre-


sas/5132310/apple-e-google-sao-marcas-mais-valio-
sas-do-mundo. Acesso em: 26 de outubro de 2017.
18 “Facebook registra salto no lucro 71% no 2º trimestre
17 Disponível em: http://www.valor.com.br/empre- de 2017”. Disponível em: https://g1.globo.com/tec-
sas/5186711/apple-atinge-valor-de-mercado-de- nologia/noticia/facebook-registra-salto-no-lucro-71-
-us-900-bilhoes-na-bolsa-de-nova-york. Acesso em: -no-2-trimestre-de-2017.ghtml. Acesso em: 26 de
9 de novembro de 2017. outubro de 2017.

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dossiê pós-verdade e jornalismo

“Esta convicção insistente e antiga de que muito mais forte – em grande parte, graças
a verdade não é conquistada ou construída, às redes sociais, que banalizaram o sentido
mas revelada, fornecida gratuitamente, apa- de palavras como “notícia”, “informação” e,
rece muito claramente nas fantasias eco- claro, “verdade”.
nômicas que nós, como leitores de jornal, O estrago não ficou só nisso. Esse grau
costumamos ter. Esperamos que o jornal de monopólio, esse modelo de exploração
nos entregue a verdade, por menos lucra- que consegue extrair valor de trabalho das
tiva que seja a verdade. Para este serviço massas humanas que pensam estar apenas se
difícil e muitas vezes perigoso, que reco- divertindo fez das redes sociais uma usina de
nhecemos como fundamental, esperávamos, produção e de distribuição de notícias frau-
até outro dia, pagar a moeda de menor dulentas numa escala que não tem nenhum
valor emitida pelo Tesouro” (Lippmann, precedente. Uma sucuri de silício – uma
1997, p. 203)19. das múltiplas e simultâneas encarnações do
capital – tritura e engole a sociedade civil
Um século depois de essas palavras terem globalizada.
sido publicadas, não há dúvidas de que a A sucuri de silício não liga para a ver-
“convicção insistente e antiga” de que a dade factual, que virou uma espécie de fóssil
“verdade” é fornecida gratuitamente ficou pré-histórico.

Bibliografia

ARENDT, Hannah. “Verdade e Política”, in Entre o Passado e o Futuro. 8a ed. São Paulo,
Perspectiva, 2016.
. “Verdade e Política”, in Entre o Passado e o Futuro. Tradução de Manuel
Alberto. Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1995.
BUCCI, Eugênio. A Forma Bruta dos Protestos. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
KEYES, Ralph. The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life.
New York, St. Martin’s Press, 2004.
LIPPMANN, Walter. Public Opinion. New York, Free Press Paperbacks (Simon and
Schuster), 1997.

19 Texto original: “This insistent and ancient belief’ that serve us with truth, however unprofitable the truth may
truth is not earned, but inspired, revealed, supplied be. For this difficult and often dangerous service, which
gratis, comes out very plainly in our economic prejudices we recognize as fundamental, we expected to pay until
as readers of newspapers. We expect the newspaper to recently the smallest coin turned out by the mint”.

30 Revista USP • São Paulo • n. 116 • p. 19-30 • janeiro/fevereiro/março 2018

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