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ANALFABETOS DIGITAIS

Media Literacy e Redes Sociais:


a confusão entre público e privado

Madeleine Lacsko
“O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância,
é a ilusão do conhecimento.”
Daniel Boorstin

MADELEINE LACSKO
Jornalista, especialista em
Media Literacy e
tendências do debate
público na era digital
Com 23 anos de experiência
em comunicação, é colunista
da Gazeta do Povo. Atuou na
Jovem Pan, Antagonista e
Rádio Trianon. Foi consultora
internacional do UNICEF
Angola, assessora no Supremo
Tribunal Federal, na
Assembleia Legislativa de São
Paulo e na CCR. Trabalhou na
Change.org.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 4

CAPÍTULO 1
Media Literacy - que bicho é esse? 6
As novas gerações 7

CAPÍTULO 2
O mais importante dos conhecimentos 10
Como saber meu nível de Media Literacy? 11

CAPÍTULO 3
O algoritmo 20
Anonimato x Pseudônimo 34

CAPÍTULO 4
Redes Sociais: heróis ou vilões? 39

CAPÍTULO 5
Guia de Media Literacy nas redes sociais 42

RESUMO DA ÓPERA 48

BIOGRAFIA DA AUTORA
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APRESENTAÇÃO

A era da hipercomunicação e o mindset digital criaram uma nova


necessidade para o cidadão comum: Media Literacy. A
expressão quer dizer a capacidade de aprender a "ler" a mídia,
de entender o que está por trás da mensagem, as técnicas
utilizadas e a diferença entre informação e propaganda.

Hoje, cada cidadão comum é um meio de comunicação - mas


quantos de nós dominam as técnicas de comunicação
necessárias tanto para checar informações quanto para fazer
com que os outros entendam o que realmente queremos dizer?

Depois de me dedicar, durante 3 anos, exclusivamente à


cobertura política, observei que as pessoas têm sede de
participar, mas não encontram locais apartidários para buscar
conhecimento sobre política nem conseguem identificar com
facilidade as técnicas de propaganda utilizadas principalmente
nas mídias sociais.

Resolvi fazer um mergulho nos estudos mais atualizados sobre o


tema e desvendar os bastidores do jornalismo e da análise
política para o cidadão comum. O primeiro resultado dessa
iniciativa é o curso ​ESTUDARPOLITICA.COM​, uma fonte de
informação apartidária e simples, com os principais conceitos
que têm sido explorados e distorcidos no debate político nas
redes sociais.

O segundo produto é este e-book, ANALFABETOS DIGITAIS, uma


iniciativa para levar informação de qualidade sobre as técnicas
mais avançadas de comunicação utilizadas nas redes sociais por
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marqueteiros e estrategistas de propaganda. A intenção não é
ensinar essa arte, mas mostrar como nós estamos participando
involuntariamente deste ballet orquestrado por poucos. Acredito
que conhecimento liberta. E trago nesse e-book um
conhecimento que não encontrei condensado em livros, mas um
resumo de um processo bastante sofrido em alguns momentos
de entender o que se passava com o discurso na era das redes
sociais.

Você deve ter percebido os ânimos exaltados, o aumento do


volume, a tendência de nos organizar em grupos e diluir as
características que nos fazem únicos, a avidez por likes e a
necessidade de aprovação social. Nada disso é catastrófico nem
errado, é apenas a evolução tecnológica se acomodando entre
nós.

A linguagem é a amálgama da sociedade e agora ela também é


intermediada pelas novas tecnologias que nos proporcionam
hiperconectividade. Todos saberão dizer em que suas vidas
foram mudadas para melhor com essa evolução, a questão é
aprender a identificar neste novo mundo onde estão os
problemas e as melhores formas de solução.

Conto aqui a história que vivemos juntos nesses últimos anos,


traduzindo minhas experiências e meus sentimentos em regras
de comunicação. Espero que a minha travessia pela estrada
esburacada e escorregadia das mentiras e manipulações sirva
para evitar que você se sinta perdido nesse caminho. É possível
um caminho mais simples, por isso compartilho minha
experiência pessoal e meus estudos com você.

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MEDIA LITERACY - QUE BICHO É ESSE?
Media Literacy é a capacidade de ENCONTRAR, ANALISAR,
AVALIAR, CRIAR e AGIR usando todas as formas possíveis de
comunicação.

O termo, de tradução difícil na Língua Portuguesa, quer dizer algo


como “alfabetização midiática”, tida pela Organização das
Nações Unidas como prioridade na educação, cultura e nos
processos de pacificação. Esse conceito surge com as mídias
digitais, que diversificam os meios e as formas de passar
mensagens, fazendo com que o significado e o contexto dessas
mensagens seja muito confuso para quem ainda pensa a
comunicação seguindo a lógica do mundo analógico.

Os estudantes, sobretudo do Ensino Médio, são considerados


prioridades pela ONU, que tem duas agências com forte
dedicação a Media Literacy, a UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e a
UNAOC (Aliança das Civilizações, vinculada à ONU). As novas
gerações são a chave de um futuro melhor, mas os adultos de
hoje estão num ponto mais perigoso que os jovens, o da ilusão do
conhecimento.

A era da hipercomunicação, ao contrário do que pensam muitos


adultos, não se trata de novas tecnologias de comunicação.
Estamos falando de um sistema cada vez mais sofisticado de
informação e entretenimento que nos atinge, conforme a
definição clássica, “de forma multisensorial, afetando a forma
como pensamos, sentimos e nos comunicamos”.

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Um dos maiores erros que uma liderança pode cometer nos dias
de hoje é tomar decisões de comunicação como se ainda vivesse
no mundo analógico. A pessoa dá entrevista para divulgar um
assunto em uma mídia, participa de um debate para contrapor
uma visão oposta, faz uma declaração nas mídias sociais porque
pretende que aquela mensagem chegue ao máximo possível de
pessoas. Às vezes, arrisco dizer, comete todos esses erros ao
mesmo tempo e não percebe as consequências a tempo, já que
não consegue ler a relação entre as mídias de hoje, as marcas e
tendências.

Temos uma geração de gente culta, esclarecida, que fala bem, lê


muito, escreve com maestria e é completamente analfabeta.
Hoje, ser plenamente alfabetizado inclui a capacidade de
analisar de forma crítica mensagens de todo tipo recebidas por
diversas redes que funcionam paralelamente. Além disso, é
necessário saber organizar os vídeos, áudios, imagens e textos
de uma forma efetiva para que a nossa mensagem seja
distribuída por essas redes. É muito fácil ter uma ilusão de que a
mensagem foi distribuída sem levar em conta a complexidade
das redes e a interação entre diversas mensagens e marcas. O
emissor imagina ter dito algo ao público quando, na verdade, diz
outra coisa, seja por engano ou porque foi levado a erro.

AS NOVAS GERAÇÕES

A transformação nas comunicações deixou numa espécie de


limbo geracional as pessoas que têm mais de 17 anos. São
pessoas que vivenciaram a transição digital, em diferentes graus.
Quanto mais idade a pessoa tem, mais tempo ela viveu a
dinâmica de um mundo analógico e mais adaptações precisará

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fazer para que seu raciocínio opere na frequência do mundo
digital.

Não quer dizer que as pessoas mais velhas necessariamente


demorem mais ou tenham mais dificuldades para compreender o
que muda nos relacionamentos, forma de pensar, expectativas e
maneiras de consumir informações. Tudo depende da
capacidade de adaptação e vontade de aprender de cada
indivíduo.

E por que eu falei exatamente 17 anos? Porque a área da


Educação já percebeu essas mudanças e foi, gradativamente,
fazendo uma transição no que formalmente é considerado ser
alfabetizado. Quem tinha 15 anos em 2018 já foi avaliado numa
dinâmica que considera a diversidade do mundo digital. A
transição nessa compreensão não foi brusca, mas foi bastante
rápida.

Tomo aqui como exemplo algo bem específico que sempre faz
parte do debate público brasileiro, o PISA. Falo do Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), feito nos
países membros anualmente com estudantes de 15 anos de
idade.

Quem tinha 15 anos de idade no último teste, feito em 2018, está


na primeira turma de estudantes já avaliada após uma
reformulação completa no conceito de alfabetização. Até a
edição anterior, o conceito de plena alfabetização tinha o foco
em leitura, compreensão e alfabetização de textos. O que se

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incluiu agora? Capacidade de encontrar informações e de avaliar
fontes.

Todos os que têm mais de 15 anos não tiveram posta à prova, no


sistema educacional, a capacidade de encontrar informações
que deseja e verificar se são confiáveis. Agora, são fatores
determinantes da capacidade de leitura.

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O MAIS IMPORTANTE DOS CONHECIMENTOS
Quando pensamos naquela divisão clássica de conhecimentos
feita nas escolas, podemos até pensar que a leitura e a
comunicação são tão importantes quanto ciências e
matemática, por exemplo. Segundo os educadores, trata-se de
graus diferentes de importância. Capacidade de leitura é o
conhecimento mais importante de um ser humano.

"A capacidade de leitura não é apenas o fundamento para obter


bons resultados em outras áreas do sistema educacional, mas
também um pré-requisito para a participação com sucesso na
maioria das áreas da vida adulta"​, segundo a OCDE. Mas o que é
a tal “capacidade de leitura”? Um conceito que acompanhou as
mudanças dos últimos 20 anos.

No ano 2000: "​ Capacidade de leitura é entender, usar e refletir


sobre textos escritos, de forma a que o indivíduo atinja os
próprios objetivos de desenvolvimento de conhecimento e
potencial e participe na sociedade".

Em 2009 já se sentiu o efeito das novas tecnologias na


capacidade de leitura, que passou a ganhar um conceito a mais,
interação: ​"Capacidade de leitura é entender, usar ,refletir sobre
e interagir com textos escritos, de forma a que o indivíduo atinja
os próprios objetivos de desenvolvimento de conhecimento e
potencial e participe na sociedade".

Em 2018, nova mudança. Agora, capacidade de leitura também


engloba a capacidade de avaliar. Além disso, passou-se a
considerar que texto não é apenas o que vem escrito, engloba
todas as modalidades possíveis de comunicação digital.

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"Capacidade de leitura é entender, usar , avaliar, refletir sobre e
interagir com textos escritos, de forma a que o indivíduo atinja os
próprios objetivos de desenvolvimento de conhecimento e
potencial e participe na sociedade"​.

A rigor, segundo a OCDE, não houve mudança na definição de


capacidade de leitura, o que mudou foi o mundo. A definição
recebeu alterações pontuais para que signifique hoje o mesmo
nível de capacidade que significava há 20 anos. ​"Estabelecer e
conquistar objetivos não são os motivadores apenas da decisão
de interagir com textos, fazer seleção de textos e passagens de
texto, mas também decisões de parar de interagir com
determinado texto, passar a interagir com outro, comparar e
integrar a informação avaliada de diversas fontes"​, explicam os
especialistas em educação que fazem o PISA.

A comunicação extrapolou a barreira do debate de ideias e da


compreensão de texto, passa a ser habilidade importante a de
decidir com o que e quem interagir.

COMO SABER MEU NÍVEL DE MEDIA LITERACY?


Evidente que a vida adulta e o uso múltiplo que fazemos das
redes sociais são muito mais complexos do que as exigências
para um exame escolar de adolescente, por mais difícil e
elaborado que seja. Ainda assim, considero que o passo-a-passo
do PISA para verificar quem tem capacidade de leitura é um bom
manual para que adultos tenham uma ideia de como se
posicionam.

Na realidade, não considero interessante, sob o ponto de vista da


comunicação, que um adulto faça esse teste para avaliar seu

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nível de Media Literacy. O que sugiro é ler os requisitos e os níveis
de classificação detalhadamente. É por meio da compreensão
desses critérios e das diferenças sutis entre os 7 níveis de Media
Literacy que podemos, de maneira honesta, descobrir em que
ponto estamos e quais são as habilidades que precisamos
trabalhar para nos manter no mais alto.

Uma dica importante é primeiro reparar se ali há algum conceito


ou ideia em que você jamais havia pensado antes ou de que
ainda não havia ouvido falar. Provavelmente são esses os seus
maiores entraves para estar no nível mais alto e, de repente, lidar
com eles pode ser muito mais simples do que você pensa.

Há 3 HABILIDADES BÁSICAS que determinam que uma pessoa


tem capacidade de leitura:

1. Localizar informação: acessar e colher informação em um


texto, procurar e selecionar textos relevantes.

2. Compreender: representar o sentido literal, compreender


conclusões e fazer as próprias conclusões.

3. Avaliar e refletir: avaliar qualidade e credibilidade, refletir sobre


forma e conteúdo, detectar conflitos e lidar com eles."

O desempenho das pessoas não é linear em todas as


capacidades aí citadas, ele varia. É combinando essas variações
que o PISA chega a 7 níveis diferentes de compreensão de texto -
lembrando sempre que texto não é mais só aquilo que está
escrito, engloba também vídeos, imagens, áudios e até o universo
dos memes. Os níveis são: 1b, 1a, 2, 3, 4, 5 e 6. O nível seguinte
tem, além das habilidades descritas na seção dele, o pleno
domínio das habilidades descritas em todos os níveis anteriores.
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Apenas quem está nos níveis 5 e 6 é plenamente capaz de
diferenciar fatos de opinião na nova realidade da informação.

Níveis de proficiência em capacidade de leitura, segundo a


avaliação do PISA:

Nível 1b: Localizar uma peça única de informação explícita


colocada em local evidente, num texto curto e com simplicidade
sintática, em contexto e tipo que conhece bem, como narrativa
ou listas simples. São textos que geralmente dão apoio ao leitor
repetindo a informação ou adicionando fotos e símbolos
familiares. Os leitores podem interpretar os textos fazendo
conexões simples entre informações parecidas.

Nível 1a: Localizar mais que uma peça de informação explícita,


reconhecer o tema principal e o propósito do autor em um texto
sobre tema que domina ou fazer uma conexão simples entre a
informação do texto e o conhecimento do cotidiano. São textos
em que a informação principal é bem destacada e o leitor é
explicitamente direcionado a ela, sem levar em conta ou havendo
um mínimo de informações conflitantes.

Nível 2: Localizar uma ou mais peças de informações. Pode


reconhecer a ideia principal em um texto, entender relações ou
interpretar significados em uma parte limitada do texto mesmo
quando a informação não é tão explícita e necessita um pouco
de raciocínio. Nesse nível, as tarefas envolvem comparações ou
contrastes baseados em um único elemento do texto. A reflexão
típica deste nível requer fazer comparações ou conexões entre o
texto e conhecimento externo, recorrendo à experiência e atitude
individual.

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Nível 3: Localizar e, em alguns casos, reconhecer relações entre
várias peças de informações. Integrar várias partes de um texto
em ordem para identificar a ideia principal, entender a relação ou
interpretar o significado de uma frase ou palavra. É preciso levar
em conta vários fatores para comparar, contrastar ou
categorizar. A informação não é tão evidente ou há competição
de informações, como obstáculos no texto, por exemplo, ideias
que são contrárias às expectativas ou expressas em formato de
negação. A reflexão requer conexões, comparações e
explicações ou a avaliação de um elemento do texto. Necessário
demonstrar bom conhecimento do texto com relação ao
conhecimento familiar e cotidiano. Não chega a requerer
compreensão detalhada do texto, mas pelo menos busca de
apoio em senso comum.

Nível 4: Localizar e organizar várias peças com informação


embutida. Interpretar nuances de linguagem de parte do texto
comparando com o todo. Compreensão e categorização de
textos num contexto em que não está familiarizado. Capacidade
de criar hipóteses ou avaliar o texto de forma crítica usando
conhecimento do senso comum ou acadêmico. Demonstrar
grande compreensão de textos longos e complexos com cujo
conteúdo ou forma não tem familiaridade.

Nível 5: Localizar e organizar várias peças com informação


profundamente embutida, concluindo quais informações no texto
são relevantes. Reflexão por meio de criação de hipóteses ou
avaliação crítica a partir de conhecimento especializado.
Entender completamente e em detalhe texto cujo conteúdo ou
forma não é familiar. Nesse nível - e não nos anteriores - o leitor é

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capaz de lidar com conceitos que são contrários às suas
expectativas ou crenças.

Nível 6: Capacidade de tirar múltiplas conclusões, fazer


comparações e contrastes que são detalhados e precisos.
Completo e detalhado entendimento de um ou mais textos e
integrar informação de mais de um texto. Lidar com ideias não
familiares na presença de informações explícitas que concorrem
com elas e gerar categorias abstratas para interpretações. Criar
hipóteses ou fazer avaliações críticas do texto sobre um assunto
em que não são familiarizados, levando em conta múltiplos
critérios e perspectiva e aplicando entendimento sofisticado para
além do que está no texto. Uma condição importante para
identificar e realizar tarefas neste nível é a precisão de análise e a
atenção fina ao detalhe que é quase imperceptível nos textos.

É muito interessante ler a sequência, ainda que a gente não seja


especialista para compreender exatamente todas as nuances da
avaliação. Acompanhe que localizar a informação é algo tratado
com tantas camadas quanto uma cebola, com diferentes níveis
de capacidade não apenas pela capacidade de ler e domínio
tecnológico, mas também pelo repertório de ideias e conceitos.
Quanto maior o domínio da leitura, menor a ideia de verdade
absoluta e maior a capacidade de compreender aquilo que é
diferente das nossas crenças e valores.

Precisamos lembrar também da importância do conceito de


interação. Já vimos a complexidade que se tornou saber ler,
vamos pensar agora na série de habilidades que precisamos ter
para nos expressar. Os princípios são os mesmos: ter em mente o
que queremos dizer às pessoas. O que cai definitivamente por
terra é aquela frase antiga: “eu sou responsável pelo que eu digo
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e não pelo que você entende”. Na verdade, pode até não ser
responsável, mas acaba sofrendo as consequências. Precisamos
compreender o caminho que será trilhado pela informação para
que as pessoas entendam da maneira mais clara possível o que
queremos dizer.

No PISA, há uma preocupação muito grande com a


diferenciação entre opinião e fato porque o debate é sobre
capacidade de leitura. Se passamos à esfera de Media Literacy,
principalmente nas redes sociais, precisamos apresentar mais
um conceito, o de impressão, algo derivado da fantasia.. Todos
nós fantasiamos coisas boas e ruins sobre situações, ambições,
planos e pessoas.

Fora do mundo virtual, é muito comum a gente saber identificar


quando um raciocínio nosso é ou parte de uma fantasia sem
nexo nenhum com a realidade, ancorada apenas no nosso
universo interno, coisas que às vezes não sabemos explicar. Um
exemplo prosaico? Sabe aquela pessoa de quem você tem
ranço? Uma pessoa com quem o santo não bate de jeito
nenhum, com quem você simplesmente não vai com a cara,
sente uma energia ruim mas sabe que a tal pessoa nunca lhe fez
nada e você não tem motivo para se sentir assim.

Saber que não há motivação para aquilo de ruim que você sente
e, muitas vezes, pensa sobre uma pessoa tem impacto na forma
como você age com ela e fala dela. Imagine se você não fosse
capaz de perceber essa diferença? Se você confundisse um
ranço besta, desses imotivados mesmo, com o sentimento que
você tem por alguém que já traiu sua confiança ou já te
prejudicou. Nesse caso, sua forma de agir socialmente seria um

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tanto confusa e geraria problemas ou pelo excesso de
desconfiança ou pela falta de abertura ao outro.

Nas redes sociais, as fantasias são frequentemente confundidas


com opiniões que, supostamente, teriam peso para contrapor
fatos. O resultado final é a contestação da realidade com
impressões, ou seja, viver num universo paralelo, criado para que
tudo seja como queremos que seja. Precisamos ter muita clareza
da diferença de conceitos entre FATO, OPINIÃO e IMPRESSÃO.

FATO - Algo que pode ser comprovado de forma inequívoca.


Exemplo: ​“As eleições no Brasil são feitas com urnas eletrônicas”​.
É possível verificar se é verdade ou não de maneira inequívoca,
portanto é um fato.

OPINIÃO​ - É a avaliação pessoal, com base em fatos e teorias.

Exemplo: ​“As autoridades não lidam bem com os


questionamentos sobre segurança das urnas eletrônicas”​.

Qual é o FATO que conheço e do qual eu parto para opinar?

Há pessoas que questionam publicamente a segurança das


urnas eletrônicas.

Qual é a minha OPINIÃO sobre o assunto?

Sou comunicadora e sei que a estratégia de minimizar


preocupações das pessoas, mesmo quando são absurdas e
infundadas, dá a impressão de que as autoridades estão
escondendo algo. Minha opinião é que poderiam agir de outra
forma.

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Qual é a minha OPINIÃO sobre a segurança das urnas
eletrônicas?

Eu não tenho opinião formada porque não domino tecnicamente


a área de segurança digital nem conheço os fatos necessários
para emitir essa opinião.

IMPRESSÃO - É o que eu sinto sobre o tema, tendo a consciência


de que não se trata de opinião nem serve para contrapor dados
de quem realmente entende do assunto tecnicamente.

Exemplo: “Eu tenho impressão de que as urnas eletrônicas são


mais seguras que as de papel”.

Qual o FATO por trás dessa afirmação?

Nenhum e, por isso, é impossível que seja uma opinião. É uma


afirmação que eu sou livre para fazer e revela um sentimento que
tenho decorrente de algumas experiências. Cobri muitas eleições
e sinto que havia muito mais problemas quando as urnas eram
de papel, pela falta de controle e demora nas apurações.

E por que isso NÃO é uma OPINIÃO?

Porque eu tenho consciência de que a minha análise parte do


sentimento que eu tenho com relação a essas experiências, não
de FATOS. Eu não tenho acesso ao número total de problemas e
a extensão deles nas duas modalidades de eleição.

Então você não pode dizer nada se não estudou aquilo o


suficiente?

Pelo contrário! Todos nós somos livres para dizer tudo isso que
sentimos diante de uma situação, afirmação ou pessoa. O que

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não podemos é pensar que esse sentimento serve como
contestação de uma OPINIÃO (a avaliação de quem conhece os
fatos) ou pior ainda, para desdizer um FATO em si.

Essa diferenciação é importantíssima e fundamental para a


nossa interação em sociedade e para que a gente consiga
representar bem nosso papel como cidadãos. Lembremos
daquele conceito de que parte da capacidade de leitura é decidir
com o que interagir e com o que parar de interagir. Saber com
clareza a diferença entre FATO, OPINIÃO e IMPRESSÃO evita
que a gente faça interações típicas de quem não domina a
capacidade de leitura na nossa época, ou seja, tenta colocar no
mesmo patamar diferentes tipos de expressão, que devem ser
colocadas em patamares diferentes num debate.

As pessoas não fazem isso porque são estúpidas ou


desinformadas, mas porque as mudanças tecnológicas alteram
nossa percepção da interação e, de certa forma, trazem uma
confusão entre o universo privado e o debate público. Já não
eram linhas muito bem definidas com a mídia analógica no caso
de celebridades e autoridades, o que é o universo público e
particular de cada um difere dependendo da cultura. Agora que
todos nós viramos um meio de comunicação, cabe a cada um de
nós estabelecer esses limites de maneira consciente e a base
para esse processo é o conhecimento.

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O ALGORITMO
Há um elemento importantíssimo que passou a ser parte do
debate público: o celular. Cada vez mais ele passa a ser um
instrumento mediador de relações humanas e, pelas
características do seu uso e da nossa relação com ele, há
alterações significativas na forma de interagir com as outras
pessoas, seja individualmente, seja no debate público.

Se é instrumento para acelerar o compartilhamento de


informações, dados e documentos, o celular também evita
muitos dos incômodos da comunicação analógica, praticamente
todos os que residem em ter de lidar com as reações do outro e
demonstrar nossas emoções.

A comunicação entre duas pessoas abandonou a lógica de


ajustar ritmos e seguir um fluxo de interação. Agora cada um
decide qual é o seu tempo, sem ter de reagir ao tempo do outro
ou da situação em si. O sentimento de estar desprevenido muda,
já que decidimos em que momento queremos ter contato com a
pessoa e como sem ter de ouvir a voz, sentir o cheiro ou lidar com
as nuances do olhar.

Pense na situação específica de ter que contar algo difícil ou


embaraçoso para alguém. Creio que formular as hipóteses nas
diferentes formas de contato usando um exemplo com
componente emocional é a melhor forma de deixar clara na
mente a mudança completa não só na tecnologia, mas no
conteúdo da informação e nas expectativas sobre a outra
pessoa.

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Vamos começar pelo encontro pessoal, suponhamos uma mesa,
com um sentado de cada lado, olho no olho. Você primeiro avalia
a situação levando em conta o estado emocional do seu
interlocutor, daí encontra a melhor forma de contar o que precisa.
À medida em que vai contando, mede pelas reações segundo a
segundo a modulação do tom, a escolha das palavras, o
caminho da conversa ou até mesmo desistir dela. O olhar é muito
poderoso para conectar pessoas a despertar empatia, é parte
importante do processo de comunicação.

Pensemos agora uma conversa por telefone. Você se prepara


para ligar, pega o número, sente o clima pela voz quando a
pessoa atende, provavelmente inicia uma conversa mais leve
para saber como está o humor da pessoa no outro lado da linha.
Dependendo dessas respostas é que a conversa principal vai
adiante ou não naquele momento, sempre levando em conta
como está sendo a reação. Por telefone, é bem mais fácil a coisa
degringolar do que pessoalmente. Aposto que você, leitor,
também já teve seu momento de bater telefone na cara com o
coração saindo pela boca.

Agora uma outra situação: comunicar algo difícil por email a uma
pessoa com quem você tem relações pessoais. Se for uma
questão muito pessoal ou envolvendo emoções, a decisão de
comunicar por email pode ser lida como uma bela de uma
canalhice. Nesses casos, a gente se prepara, escreve o texto,
relê, verifica o que pode e, muitas vezes, pede para alguém de
confiança revisar antes de mandar. Mesmo com todo cuidado, já
sabemos que há um risco grande de haver ruído e necessidade
de explicação de algum detalhe. Muitas pessoas lêem
imaginando a voz de quem conhecem, a entonação, o olhar. Isso

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compromete a compreensão do texto, já que algo dito de uma
forma pode ser lido de outra por diferença de tom, ainda que com
as mesmas palavras.

E onde mesmo eu pretendo chegar com isso? Na consciência de


que nós já sabemos que precisamos e como devemos nos
preparar para o tipo de interação que iremos ter com as pessoas.

Apesar de ser algo tão natural do nosso comportamento, acaba


ficando um pouco confuso diante da mediação do celular. O
nosso costume, quase no piloto automático, é fazer os ajustes
conforme o que media a nossa interação: se é o olhar, um
aparelho telefônico ou um computador que envia a mensagem. O
smartphone, que brincamos ser um celular que serve para tudo
menos para falar no telefone, é um hábito muito novo.

Quem tem mais de 30 anos viu o celular passar na nossa vida


como telefone móvel e depois, pouco a pouco, adquirir novas
funções. Primeiro e-mail, acesso a um navegador e depois, com
muita rapidez foram surgindo os novos aplicativos de
comunicação, os aplicativos com redes sociais que já estavam
no computador.

Pense o seguinte: mal faz 10 anos que existe Whatsapp. Eu


lembro nitidamente a primeira vez em que vi o aplicativo. Meu
filho, que tem quase 9 anos, era bebê de levar no carrinho. Fomos
a um parque com um amigo meu, jornalista, que estava
encantado com o aplicativo. Lembro que ele e outra amiga em
comum, que não estava lá, mandaram mensagens de voz um
para o outro. Aquilo me causou uma sensação estranhíssima e
me pareceu uma perda de tempo enorme. Por que alguém
gastaria todo o tempo de dizer e teria de esperar o outro ouvir
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tudo, gastando o mesmo tempo para então o processo se repetir
na resposta? Hoje eu rio por ter pensado isso.

Não é só a tecnologia que aprendemos a usar, o uso dela


também mudou profundamente. E, no caso do celular,
acabamos colocando em um único aparelhinho, que anda com a
gente o tempo todo, diversas áreas da nossa vida. O ritual para
falar um segredo para uma amiga querida ou mandar um aviso
importante para o chefe passou a ser exatamente o mesmo e
muito rápido. Não há a diferenciação e a gente pouco pensa
porque, qualquer que seja o meio escolhido - vídeo ou voz, ao vivo
ou gravados, textos ou links - eles serão feitos no mesmo
aparelho, seguindo o mesmo ritual.

Nós desenvolvemos tanta intimidade com o celular que um dos


maiores clichês é sentir-se nu ao perceber que está sem ele. E
nessa intimidade mora o perigo. Criamos uma confusão tão
grande entre público e privado que, arrisco dizer, não
conseguimos definir um limite entre aquilo que deveria existir
exclusivamente no mundo do pensamento e o que deve ser
verbalizado. ​Duas fronteiras importantes estão menos claras a
partir do uso do smartphone:

1. O que devo guardar nos pensamentos x o que devo dizer

2. Conversas privadas x debate público

Todos temos consciência dessas fronteiras e, de uma forma ou


de outra, imaginamos qual o processo de evolução de uma ideia
e de sua formulação em palavras para atravessar a origem nos
pensamentos, as ponderações mais racionais, o diálogo com os
mais íntimos, o diálogo com conhecidos e um nível de maturação

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que possibilite que o produto final, já lapidado, seja dito em
público. Mas e os impulsos?

Sabemos conter nossos impulsos em diversas situações.


Algumas vezes, mais com um do que com outros, perdemos as
estribeiras e nos arrependemos depois. Faz parte. Mas o conjunto
de variáveis da convivência social acaba nos incentivando a
melhorar o comportamento e dominar nossos impulsos em nome
de uma boa relação com as pessoas. E por que seríamos
diferentes nas redes sociais? Algoritmos.

Se, na convivência interpessoal, promovemos aquilo que


achamos bom, de qualidade, que dá vontade de dividir, que é
interessante ou que dá status, pensamos que a seleção é feita da
mesma forma em qualquer ambiente. Ocorre que, nas redes
sociais, não é assim. O negócio das redes sociais não é a
informação ou difusão de notícias e ideias, é a captação e venda
de milhares de dados diferentes sobre milhões de usuários. Esses
dados são usados comercialmente, para publicidade
direcionada de todo tipo.

Se você quer compreender exatamente o que significa


publicidade direcionada, sugiro que veja o documentário
“Privacidade Hackeada”, que está disponível na Netflix e conta os
desdobramentos judiciais do escândalo de uso indevido de
dados pelo Facebook. Tento me fazer compreender por um
resumo.

Já aconteceu de você pesquisar o preço de alguma coisa e


depois, em tudo quanto é site ou rede social que você entra tem
propaganda daquilo? Muito provavelmente. Essa outra é um
pouco mais rara, mas já tem muita gente dizendo sim. Já te
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aconteceu de conversar sobre algo por telefone ou até
pessoalmente com uma pessoa e começar a aparecer anúncio
relativo ao tema do assunto em sites ou redes sociais? Esse é o
resultado da publicidade direcionada, uma verdadeira revolução
no mundo da publicidade e a única razão pela qual aplicativos e
sites passaram a valer bilhões.

Para montar modelos em que o cliente ideal é apresentado à


marca, potencializando os efeitos da propaganda, é necessário
coletar o máximo possível de dados do cliente. Aqui não bastam
as premissas antigas do marketing, como sexo, faixa etária, faixa
de renda, onde mora. Estamos falando de algo mais profundo:
investigar como age cada pessoa e montar um padrão para
estabelecer se aquela pessoa compraria determinado produto.
Montar esses padrões para uma infinidade de temas exige
coletar muitos dados das pessoas.

Esses dados são cada clique que damos, o que postamos, o que
fingimos não ter visto no perfil dos outros, o que compartilhamos,
em que tela passamos muito tempo, as postagens das quais
falamos com as pessoas na vida real (os sites captam os
microfones, lembra?), o que nos fez vibrar, rir, xingar, calar.
Estima-se que são pelo menos 7 mil pontos os necessários para
elaborar os perfis e prever, até melhor que nossos conhecidos,
como cada um de nós vai agir diante de alguma situação.

A grande questão é como manter as pessoas plugadas e


interagindo com Facebook, Twitter, Whatsapp e Instagram
tempo suficiente para coletar esses dados tão preciosos para os
bilionários do Vale do Silício. Aí é que entra o tal do ALGORITMO
de que tanto se tem falado em tudo quanto é canto. O que é esse
ALGORITMO? Tecnicamente, um algoritmo é uma sequência
25
lógica e finita de instruções para executar as várias e finitas
etapas de uma tarefa. Qual a tarefa? Manter as pessoas
interagindo com a plataforma o máximo possível de tempo.

Há uma indústria que consegue há muitos anos essa


interatividade constante: cassinos. Convencer pessoas a fazer
apostas totalmente desfavoráveis e sem sentido é um processo
bem complexo, mas possível. No caso das plataformas, não há a
perspectiva de ganho financeiro para o usuário final, o cidadão
comum, apenas para quem é o cliente da plataforma, que a usa
para vender produtos ou serviços. O que oferecer então?
Perspectiva de mais status ou de valorização pessoal.

Aqui temos a união de batalhões de psiquiatras, psicólogos e


neurologistas com o que há de mais sofisticado na indústria da
tecnologia da informação. São os experts em comportamento e
funcionamento do cérebro que vão descobrir, elaborar e ditar as
melhores técnicas para nos manter conectados e interagindo o
maior tempo possível. Já os experts em tecnologia da informação
vão fazer a programação para que essas técnicas funcionem.

Quais são os sentimentos que mais paralisam as pessoas e


provocam reações? Medo, raiva e ressentimento. Todos temos
essas emoções, mas em cada um de nós ela é provocada de
formas diferentes. Os dados coletados com a interação na
plataforma vão servir para identificar o que exatamente nos
provoca cada uma dessas emoções. Então, o ALGORITMO vai
organizar as entregas na sua timeline, você vai receber com mais
frequência aquilo que lhe causa esses sentimentos paralisantes.

26
Não se trata de maldade, mas de viabilizar uma indústria
bilionária cuja matéria-prima, os dados pessoais, precisa ser
voluntariamente entregue por seus donos.

E como isso vira dinheiro? Pelas campanhas de marketing das


empresas, feitas pela primeira vez na história de acordo com as
emoções dos clientes. Essas campanhas são pensadas para
provocar determinados sentimentos e disparadas
especificamente para os indivíduos sensíveis a eles. Até aí, nada
muito diferente da evolução da indústria da propaganda.

O caos começa quando os políticos descobrem que podem


utilizar essas ferramentas para qualquer propósito, sem o
compromisso de falar a verdade, fazendo sua vontade
prevalecer. Para que você entenda exatamente como isso
funciona, conto um caso curioso do filme Privacidade Hackeada,
ocorrido em Trinidad e Tobago, pequeno país do Caribe que
recebeu imigração indiana historicamente.

A população é dividida entre os latinos e os indianos. A equipe de


campanha do lado indiano havia identificado que tinha grandes
riscos de perder, estava muito atrás nas pesquisas. Foi
contratado um serviço de entrega de campanhas por redes
sociais. A primeira avaliação é de que a principal dificuldade da
candidata indiana era entre os jovens latinos e eles não estavam
indecisos, eram contra tudo o que ela representa. Qual seria
então a solução? Convencê-los a não votar. Mas como fazer uma
campanha direcionada somente aos jovens latinos? Os
especialistas em comportamento resolveram fazer uma
campanha destinada a todos os jovens.

27
Foi criado um vídeo viral de protesto contra a corrupção. Era uma
música em que influencers inauguravam um sinal específico com
os braços para dizer que não iriam votar. Esse vídeo foi
distribuídos especificamente para os jovens que já haviam
demonstrado reagir bastante às discussões sobre corrupção. É
importante saber que o vídeo não é distribuído e simplesmente
não aparece para as demais pessoas. Os jovens impactados
começaram a fazer suas próprias versões do vídeo.

A tal da coreografia de quem se recusava a votar em protesto


contra a política se transformou rapidamente numa febre em
Trinidad e Tobago. Todos os jovens postavam os vídeos. E como
isso faria o lado indiano ganhar? É uma pergunta que nós
fazemos, mas os especialistas em comportamento tinham na
ponta da língua a resposta. O jovem indiano pode até entrar nas
modinhas dos amigos e fazer os vídeos mas, no dia da eleição,
obedece os pais sem questionar. Já a cultura latina dá mais
autonomia aos filhos. Funcionou. O lado indiano venceu.

Percebam que a manipulação é sofisticada e subreptícia. Quem


viu o vídeo na internet muito dificilmente imaginaria que se trata
de material elaborado especificamente para que um lado
ganhasse, afinal a mensagem é muito diferente disso. Dar
atenção apenas à mensagem em si é a forma de ler o mundo
analógico, não o digital. Na era da hipercomunicação, a
mensagem não necessariamente significa a intenção e a crença
de quem a emite. Como o faz e com quem interage ou escolhe
não interagir é que vai determinar o efeito da mensagem, a
comunicação ganhou uma camada a mais.

É dessa forma que um material que diz ser contra a corrupção na


política pode ser utilizado para, sem avisar as pessoas, fazer
28
campanha para um político específico, justamente o que muitas
dessas pessoas rejeitam. Ao se engajar na estratégia enganosa,
essas pessoas não fizeram campanha contra a corrupção,
fizeram campanha a favor da candidatura indiana. Será que
você já caiu em uma dessas? Eu já, até aprender com mais
profundidade sobre Media Literacy.

Quem pensa de forma analógica tende a reagir às informações


que recebe de acordo com duas premissas falsas:

1. Que a informação chegou por ser relevante e muito divulgada.

2. Que é possível fazer um debate sobre o conteúdo.

As redes sociais possuem um modelo de negócio em que não é


possível priorizar qualidade ou debate saudável. A
hierarquização da informação que chega até nós não é mais
pela relevância, de acordo com critérios jornalísticos, é apenas
pelo potencial de nos manter engajados. Reagir é uma escolha, a
forma de reagir é outra. Ao debater o tema como se a
comunicação fosse feita apenas no plano da linguagem, nos
esquecemos da importância do ALGORITMO no contexto.

Se você responde a alguém que faz, sem contar, parte de


alguma estratégia específica de marketing, você apresenta essa
pessoa automaticamente a toda sua rede de contatos e amplia o
que quer que ela esteja fazendo. Se você decide interagir com
alguém que não conhece, suponhamos, criticando algo que a
pessoa disse ou seu comportamento pode estar, sem saber,
ajudando a pessoa a consolidar uma estratégia de marketing.

Provocar pessoas com uma base sólida de seguidores, usando


perfis verdadeiros, falsos ou robôs é um método consagrado de
29
usar a notoriedade das redes sociais para ganhar relevância
social. Obviamente quem tem uma biografia a defender, uma
imagem para preservar e o que perder profissionalmente não
pode se meter numa aventura dessas.

É dessa forma que se fortalece o que eu chamo de “Economia do


Ressentimento”. As redes sociais são a tempestade perfeita para
que pessoas ressentidas e sem nada a perder virem um
verdadeiro sucesso. E elas realmente são um sucesso no sentido
de fazer com que os demais fiquem muito tempo nas
plataformas interagindo e fornecendo dados valiosos,
precisamos reconhecer. O problema é que nossa mentalidade
analógica confunde a excelência nessa tarefa com capacidade
de aplicar o discurso aparentemente defendido por esses perfis.

Muito embora, no meu meio profissional, essa estratégia seja


mais visível no debate político, é largamente utilizada em todos os
meios profissionais. É comum que o atirador de pedras,
provocador de caos, atraia a atenção e ganhe uma legião de
seguidores. Ele mobiliza as emoções dos demais, então inicia um
movimento em que aquele conteúdo vai ganhando cada vez
mais alcance.

É aí que entram os tais “robôs”, perfis controlados manualmente


ou eletronicamente por pessoas que usam outros nomes e
disparam mensagens combinadas o tempo todo. Se, quando
iniciada uma campanha publicitária ou um boato contra um
concorrente, um número grande de robôs começar a interagir
com essa postagem, será favorecido pelo ALGORITMO e
ampliará seu alcance. Como as plataformas entendem que há

30
muita interação, mesmo que seja artificialmente promovida,
acabam priorizando.

Ao chegar a mais pessoas e com muitos comentários, a


postagem nos acolhe pela emoção. Quando a estratégia é, por
exemplo, disseminar uma mentira, podemos ser enganados pelo
número de perfis comentando que aquilo é verídico. Não haveria
tanta gente assim enganada no mundo, claro que é verdade. Isso
ocorre mesmo que essas “pessoas” sejam um único rapaz
frustrado de 22 anos atrás de 100 perfis diferentes.

A estratégia de xingar pessoas com muito alcance também


funciona dessa maneira. Quando o post é distribuído às pessoas
comuns, ele chega com uma tonelada de perfis comentando que
alguém fez ou é tal coisa e comentando. Quem olha aquela
quantidade e diversidade de pessoas afirmando a mesma coisa
tende a concluir que só pode ser verdade.

A tendência é que as pessoas, já atingidas justamente por aquilo


que particularmente provoca ódio e medo nelas, reajam
instantaneamente ou compulsivamente. Os robôs são
necessários apenas para fazer com que o conteúdo chegue em
quem vai se render emocionalmente a ele. A partir daí, as
pessoas assumem o linchamento de alguém ou trabalham de
graça numa estratégia de marketing.

Quanto mais fundo uma plataforma pisa no acelerador de sua


estratégia de coleta de dados, pior ficará o ambiente e mais
longe da realidade ficarão os usuários manipulados.

Chegamos, no ano passado, a um ponto em que pessoas de


vários países já estavam reclamando do nível tóxico do debate

31
nas mídias sociais. Alimentadas por aquilo que deixa seus nervos
à flor da pele, as pessoas perdem o limite da civilidade e, de tanto
isso ser repetido, passa a se tornar cada vez mais comum. As
próprias plataformas percebem que, se acelerarem demais,
tornam-se inviáveis. Por isso, as próprias redes estão tomando
providências.

Não se trata de um movimento moral em que enganar as


pessoas passa a ser visto como algo errado, não se iluda.
Trata-se de uma resposta a diversos escândalos mundiais de uso
indevido dos dados das pessoas, utilização de usuários como
cobaias de testes psicológicos sem o conhecimento deles e
relações promíscuas com políticos corruptos e ditadores
sanguinários. Enquanto isso é tratado pelos Congressos ou na
Justiça, uma resposta é dada à sociedade.

Cada uma das plataformas tomou um tipo de medida que deixa


brecha para a criação do ambiente tóxico, afinal ele engaja e é a
alma do negócio. O que se fez agora é baixar um pouco a
voracidade, deixar as pessoas engajadas mas não viciadas. Se
os efeitos da normalização da agressividade e acreditar em
realidade paralela começam a extrapolar a vida digital de
alguém, a pessoa será pressionada pela família e pelos amigos a
rever o uso da rede. Consequentemente, a rede em questão fica
com imagem arranhada perante um grupo grande de pessoas. O
melhor caminho é não levar os usuários ao limite.

O Whatsapp resolveu banir 400 mil números de telefones


utilizados para disparos robotizados por 6 empresas diferentes
no Brasil. Disparos robotizados não são um simples spam, são a
utilização de um número como se fosse integrante de grupos,
disseminando informações que deixam os demais participantes
32
especialmente agitados emocionalmente. A partir da primeira
avalanche, são as pessoas, manipuladas sem saber, que dão
continuidade ao processo. No entanto, as brechas utilizadas para
cadastrar os robôs no sistema não foram completamente
fechadas.

O Facebook decidiu fazer um plano em que identifica na tela


quando uma informação é falsa e há várias escalas de punição
para quem ajuda na disseminação do que é sabidamente
mentira, chegando inclusive ao banimento dos perfis reincidentes
sistematicamente. No entanto, não vai proibir a veiculação de
mentiras em posts impulsionados por políticos.

O Twitter proibiu todo e qualquer impulsionamento no debate


político. Segundo a plataforma, assuntos políticos precisam
ganhar relevância pela importância que têm para as pessoas,
não porque alguém pagou para que pareçam relevantes. No
entanto, continua fazendo vista grossa para os perfis fakes,
principalmente os mais virulentos, que geram mais engajamento.

O YouTube baniu da plataforma os perfis falsos e robôs, após


fazer uma identificação de quais eram eles. No entanto, continua
promovendo indicações do conteúdo que mais engaja, ou seja, o
de posições mais gritadas ou extremadas em diversos temas.

O Instagram parece ser uma plataforma mais tranquila, com


menos turbulência no debate e um foco enorme em parecer
estar bem. No entanto, faça uma busca sobre vacinas que você
verá o pesadelo. Trata-se do paraíso das informações falsas
sobre saúde, já que é uma plataforma muito focada na imagem.

33
Sempre que alguém ousa tocar no assunto de controle dos
desvios e desviados de rede social, os que mais utilizam esses
mecanismos gritam com apelo emocional que a intenção é o
controle da internet e um atentado contra a liberdade de
expressão. Obviamente, como eles usam toda a estrutura de
manipulação, sabem bem como provocar pessoas reais e fazer
com que se engajem na gritaria.

Eles só deixam de fora um detalhe: são eles que estão tirando a


liberdade de expressão das pessoas. A maneira mais efetiva de
escravizar não é pelo grilhão, pela força, é criando uma ilusão de
liberdade individual. As pessoas que se unem contra os controles
não sabem que suas emoções são sistematicamente
manipuladas de forma calculada para que sejam voluntárias em
projetos com que não concordam. Isso é LIBERDADE? Claro que
não.

ANONIMATO X PSEUDÔNIMO

Há um debate acalorado nas redes sociais sobre o direito de usar


perfis anônimos ou pseudônimos. Acompanhar essa discussão é
um exercício excelente para perceber como o ambiente das
redes sociais inclui com naturalidade no debate o elemento
manipulação.

É curioso que a defesa dos anônimos é veemente no pequeno


grupo de pessoas poderosas que se valem de recursos como
perfis falsos e robôs para gerar falsos consensos e falsos
dissensos, inflamando em seguida uma multidão para um debate
vazio. E essa construção sempre vai falar em liberdade de

34
expressão tentando fazer uma simetria falsa entre anonimato e
pseudônimo.

Trata-se de dois conceitos diferentes. A Constituição Federal diz,


em seu art. 5o, que é livre a expressão, mas vedado o anonimato.
Leis infraconstitucionais, no entanto, garantem o direito de usar
pseudônimo. Como isso é possível? Porque anonimato é bem
diferente de pseudônimo.

O pseudônimo nas redes sociais pode ser usado por uma


infinidade de motivos, que vão desde a vergonha de se expor
publicamente até a necessidade de expressão artística. No
entanto, ele não significa anonimato. A liberdade de expressão
traz consigo o direito de criar personas pelos mais variados
motivos, mas não de fugir das consequências do que essas
personas fazem. Parece uma sutileza mas desequilibra bastante
a balança.

Muitos alegam falsamente que, ao criar uma conta em uma rede


social, todos somos rastreáveis. É só pedir judicialmente o IP,
endereço do computador que posta e se chega ao responsável.
Não é o que os fatos vêm dizendo nos tribunais. Há diversas
formas de mascarar o endereço do computador e fugir das
autoridades e, na realidade, muitas vezes as plataformas
respondem judicialmente que não são capazes de identificar os
usuários e isso se torna uma discussão inútil.

Os funcionários das carreiras jurídicas têm a impressão de saber


lidar com as novas mídias, já que dominam as técnicas para ter
acesso às redes e postar, por isso não percebem quando estão
sendo manipulados e capitulam em defender a honra e a

35
liberdade das pessoas por não compreender a dinâmica do
universo virtual. Quem ganha com isso? Os fora-da-lei.

Recentemente, as plataformas de crowdfunding, depois de


processos judiciais, resolveram mudar a forma de repasse do
dinheiro arrecadado ao usuário final. Há casos de canais
grandes, vinculados a políticos, presentes em todas as redes
sociais, que arrecadam dinheiro e não se consegue identificar
quem é o responsável nem o montante total movimentado pela
operação de mídia ou sua origem.

As plataformas de crowdfunding se depararam com algo que a


justiça criminal brasileira já conhece há tempos, o “empréstimo”
de conta bancária. Ele começa a aparecer na cartilha de
desculpas anedóticas que inviabilizam punições com os golpes
do sequestro aplicados via celular. Trata-se de ligar para alguém
dizendo que um parente está sequestrado, pedir um valor em
depósito bancário e convencer a pessoa pelo terror. Ela paga e
não havia sequestro nenhum.

Verdadeiras centrais telefônicas do crime organizado foram


montadas para esse tipo de golpe. Muita gente não entende
como dá tão certo. Não é só ver em que conta esse dinheiro foi
depositado e identificar a pessoa? O problema é o sigilo
bancário? Não, o problema é o “empréstimo” de contas
bancárias. Quando se chega ao dono da conta, ele não tem
efetivamente acesso a ela, cartão, senha, nada. Geralmente
abriu para um terceiro que também não é quem está controlando
a conta. Também há casos de contas abertas sem que o titular
imagine sua existência. Trata-se de um grande emaranhado de

36
pistas que invariavelmente termina sem identificar quem
efetivamente recebe o dinheiro pelos golpes.

É deste universo nobre que muitos anônimos tiraram a inspiração


para financiar seus projetos. Diferentemente de quem usa
pseudônimo, que se identifica e recebe na própria conta, os
anônimos jamais se identificam, sequer para a plataforma e,
conforme mostram diversos processos judiciais, muitas vezes
recebem dinheiro de crowdfunding em contas de terceiros.
Também era possível, até algum tempo atrás, que esses
depósitos fossem feitos sem a identificação completa ou usando
o CPF de outra pessoa. Prato feito para a lavagem de dinheiro.

A solução não veio de controles governamentais, mas das


próprias plataformas. Até agora, principalmente pela ignorância
completa sobre a dinâmica da interatividade virtual combinada
com a arrogância de pensar que sabe como funciona porque
sabe operar as plataformas, o Poder Público no Brasil não tem
sido capaz sequer de dar respostas a distorções e desequilíbrios
causados pelo mau uso de redes sociais. Tenho acompanhado
especificamente um caso em que desembargadores não
compreendem sequer o que é a plataforma de financiamento e
as decisões são verdadeiras pérolas da ficção científica.

Os CEOs das empresas de crowdfunding provavelmente


subestimaram a criatividade do malandro brasileiro e a
malemolência do sistema bancário nacional. Resolveram eles
próprios acabar com a festa e exigiram que, para receber o
dinheiro que havia sido doado a suas causas, as pessoas
assegurassem ser donas das contas bancárias que receberiam.
Além de confirmar a conta bancária e a numeração dos
documentos, passaram a requisitar foto dos documentos e selfie
37
segurando os documentos, sistema semelhante ao que é feito
pelos bancos virtuais.

Nas plataformas de crowdfunding continuamos tendo diversos


anônimos e projetos que usam o pseudônimo como forma de
expressão artística para o público em geral, mas todos eles são
vinculados a um CPF ou CNPJ, a identificação de quem é
responsável por aquele conteúdo.

Há uma grande discussão sobre prós e contras de fazer o


mesmo tipo de exigência para que sejam abertas contas em
redes sociais. Eu sou favorável e conheço gente com argumentos
bem razoáveis para ser contra. É um debate que precisamos
fazer e não tenho certeza de que haja uma resposta global,
talvez dependa de como cada sociedade tem utilizado as redes.
O problema é que se trata de um debate truncado por dois
valores muito importantes: poder e dinheiro.

Quando esse debate é travado nas redes, participam dele com


muito fôlego os que se beneficiam da possibilidade de delinquir
no anonimato e não arcar com as consequências. Também
estão ali os que manipulam os demais com subterfúgios para
driblar o algoritmo e criar falsos consensos e falsos dissensos
com o intuito de consolidar poder. Junte-se a isso o fato de que
essa movimentação tem sido muito lucrativa para os bilionários
que são donos das redes sociais. Quanto mais confusão, mais
tempo as pessoas ficam online e interagindo.

Você pode ter uma opinião formada sobre este tema ou não, o
importante é iniciar a discussão, a pesquisa e o raciocínio.

38
REDES SOCIAIS: HERÓIS OU VILÕES?
Há um dito antigo de que a diferença entre o remédio e o veneno
está na dosagem. As redes sociais trouxeram muitas inovações
excelentes e melhoram a vida de muita gente, mas há distorções
por uso inadequado. Elas ocorrem propositalmente, com a
intenção de manipular os outros ou obter vantagem, mas
também por desconhecimento ou ilusão de conhecimento.

O tanto que conhecemos sobre a dinâmica das redes sociais e a


forma como decidimos interagir ou não com pessoas e grupos é
o que determina se nos beneficiaremos desse uso ou se nos
deixaremos manipular.

Não gosto da ideia de regras de etiqueta no uso das redes


sociais ou do que é permitido ou não. A forma como cada pessoa
escolhe se expressar e em que contexto é muito particular e é
saudável que tenhamos essa liberdade. O exercício dessa
liberdade depende de entender o cenário das redes sociais para
saber exatamente que decisões estamos tomando ao nos
expressar, interagir e reproduzir conteúdos.

O ponto principal a se ter em mente é: comunicação em redes


sociais não é só o que dizemos, mas também com quem e como
interagimos.

Isso é importantíssimo principalmente para pessoas que têm


reputação profissional e moral fora da internet. Não há duas
personas, uma online e outra offline, trata-se de um único mundo
em que ações nas redes sociais têm impactos na vida real e
vice-versa.

39
Toda vez que escolhemos interagir com alguém, seja para
concordar ou execrar, estabelecemos um vínculo com essa
pessoa e todo seu grupo. Um erro comum de pessoas públicas é
espalhar a forma de contato com quem faz ofensas rasteiras e
provocações. Ao imaginar que está criticando a pessoa ou ou
ato, na verdade está aumentando sua base de seguidores e
mostrando a quem tem vergonha de dar vazão a esses impulsos
que isso existe.

Ah, mas então temos de ficar quietos? Não, apenas ser


estratégicos. É possível fazer a mesma crítica e o mesmo
raciocínio sem distribuir o link e a identidade da pessoa que
talvez só tenha exagerado no discurso exatamente para
conseguir distribuição de seu perfil para uma base maior.

Compartilhamentos dizem muito sobre quem somos, muito mais


do que nossas afirmações e postagens. Ao decidir compartilhar
um conteúdo, intencionalmente ou não, estabelecemos
publicamente um vínculo com quem produziu aquele conteúdo e
começamos a interagir com a base dessa pessoa.

Por que é importante saber disso e pensar a respeito? Outro dia


estive em um evento acadêmico em que um palestrante, com
doutorado de uma prestigiosa universidade europeia, exibiu um
vídeo feito por um site que emula o design jornalístico, mas é algo
de fundo de quintal que inventa fatos sensacionalistas para
ganhar dinheiro com cliques. O problema é que não exibiu para
falar disso, mas para servir como ilustração daquilo que
apresentou na palestra, como se o vídeo fosse a confirmação
dos fatos.

40
Obviamente, para quem já se iniciou em Media Literacy, aquilo foi
um golpe duro na imagem pública daquele acadêmico. Falava
sobre controle, critérios, cuidado e ilegalidades mas confiava
cegamente em gente pilantra e não percebia a diferença entre
os enganos que produziam e divulgações com critério jornalístico.
Isso não significa que ele reproduza esse desleixo em sua área
acadêmica, mas deixa essa impressão, ainda que injusta.

Outro ponto é a relação com órgãos de imprensa, seja da grande


imprensa ou da mídia alternativa. Pessoas que se destacam em
suas áreas profissionais tendem a ver oportunidades de estar na
mídia como uma forma de levar seu trabalho e conhecimento a
um público maior e diverso. Imaginar que isso se potencializa
com as redes sociais é o raciocínio típico de quem se deixa
inebriar pela arrogância de imaginar que conhece o
funcionamento das redes sem se dar ao trabalho de conhecer.

As redes sociais não potencializam o alcance de uma mensagem


passada nas mídias tradicionais, elas mudam completamente a
relação. Toda vez que decidimos estar em algum espaço de
comunicação, estamos misturando nossa imagem e nossa
reputação com a de quem o produz. Não existe mais a lógica de
buscar espaço na mídia porque todos somos órgãos de
comunicação na era das redes digitais. Unir sua marca pessoal à
marca de alguma instituição implica passar a imagem de
aprovação às práticas daquela instituição.

Tendemos a dar mais importância ao conteúdo do que à forma


como ele é divulgado ou por quem. Fomos treinados assim pela
educação analógica, onde isso fazia sentido. Não faz mais. Agir
nessa lógica pode gerar o resultado oposto ao que pretendemos.

41
GUIA DE MEDIA LITERACY NAS REDES SOCIAIS
A tecnologia nos encanta e dá a impressão de ser algo
completamente novo. No caso das redes sociais, essa impressão
não é de todo verdadeira. Estamos falando de relações
humanas, uma mescla daquilo que está na luz com o que é
deixado nas sombras.

O problema no uso das redes é a sensação de intimidade e


anonimato em todos os ambientes. Tem gente que se comporta
como se estivesse na intimidade do próprio quarto bem no meio
do coreto da cidade. Sim, acredito muito nas analogias para
facilitar nossa relação via redes sociais.

Há o que eu considero ou não adequado para mim nas redes e a


forma como enxergo o que os outros fazem. A sua forma, com
toda certeza, será diferente mesmo que seja similar. O que
exatamente devemos dizer ou como agir é uma decisão tomada
com base no conjunto de valores e experiências pessoais. Como
fazer então um guia para as redes sociais que seja válido para
todos?

Há uma coisa que vale para todos: CONSCIÊNCIA.

Qualquer que seja seu tipo de personalidade ou sua intenção, o


importante é ter consciência de que tipo de efeito uma ação nas
redes sociais vai gerar. Se você ficar clicando em muito filme de
teoria da conspiração, vai receber muita teoria da conspiração.
Caso você goste disso e saiba que é teoria da conspiração,
excepcional, as redes vão entregar algo que você deseja. Caso
você estivesse buscando notícias, aí temos um problema.

42
Se você chegou até aqui, já deve ter pensado bastante essa
dinâmica. Vamos nos concentrar em outro ponto, que ainda não
abordei, e que creio ser o fundamental para reger a forma como
você se comporta nas redes: a diferença entre o público e o
privado.

Nem todos nossos pensamentos e sentimentos são


compartilhados. Quando fazemos essa opção, escolhemos
diferentes graus de intimidade para decidir o que compartilhar.
Nas redes sociais, a dinâmica é muito parecida. Não há
proibições, mas consciência de quem é o grupo para quem
estamos falando determinado assunto ou a quem estamos
demonstrando nossas reações e com quem nos relacionamos
publicamente.

GRAUS DE PRIVACIDADE

Todos temos pensamentos dos quais nos envergonhamos ou


arrependemos. Chegar a conclusões e ter ideias faz parte de um
processo em que muito lixo é descartado, tanto internamente
quanto na interação com outras pessoas.

Pense em alguém contra quem você tem birra. Birra mesmo,


daquela infantil. A pessoa nunca lhe fez nada de errado, não há
um nada para dizer sobre o comportamento dela, mas a birra
continua ali. Você pode pensar “nossa, como eu gostaria que
essa fulana morresse”, mas provavelmente não vai gritar isso no
meio do culto da igreja ou na frente do seu chefe.

Esse é o tipo de escolha com que nos deparamos nas redes


sociais. Você tem toda a liberdade de, no meio de uma missa de
sétimo dia, gritar a plenos pulmões “foi tarde esse infeliz”, desde

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que saiba que está fazendo isso no meio da missa da pessoa e
quais são as consequências. Nas redes sociais, muita gente faz
isso achando que está cochichando bem baixinho com a
cunhada.

Elencar nossos pensamentos e reações em graus de intimidade


é um exercício excelente para fazer um bom uso das redes
sociais, que podem ser grandes oportunidades de
relacionamento com gente interessante, conhecimento, lazer,
aprendizado e até de evolução profissional.

GRAU 0 - O SUPER ÍNTIMO

Sabe aquelas coisas que a gente pensa mas tem até vergonha
de ter pensado? Que, se a gente olhar no olho de alguém, não
tem coragem de falar aquilo daquele jeito? Que a gente sabe que
vai repensar e se arrepender dali a dois passos? Pois é, todo
mundo sabe muito bem, principalmente quando estamos
reagindo a algo que nos tira do sério ou toca em feridas da alma.

Não tem como evitar esse tipo de pensamento e reação, mesmo


que não nos faça bem. É necessário partir desses rompantes
para a elaboração dos nossos pensamentos e sentimentos.
Muitas dessas coisas sequer chegarão intactas aos ouvidos dos
nossos mais íntimos, do padre ou do psicólogo: já as teremos
elaborado melhor.

Há coisas que pensamos e só pensamos. A intimidade com o


telefone celular pode borrar essa fronteira. Pense muito nisso
quando algo lhe provocar, lhe tirar do sério a ponto de ter
sensações físicas como coração acelerado.

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GRAU 1 - MINHA GENTE

Há coisas que falamos para quem gosta da gente e conhece


nossos defeitos, os mais próximos, de confiança, que não vão
repassar a informação nem fazer julgamento. São as questões
que dizemos a quem pode acolher nossa intranquilidade e nos
ajudar a processar os fatos ou sentimentos.

Essas questões são o primeiro grau daquilo que compartilhamos


nas redes sociais, em todas elas. Quando o que você tem a dizer
ou a sua reação a algo que viu estiver nessa categoria, use:

- ​Mensagem individual privada - seja por Whatsapp, Facebook,


Twitter ou Instagram.

GRAU 2 - UM MILHÃO DE AMIGOS

Há as coisas que dizemos aos que nos conhecem e conhecem


nosso caráter. Ainda estamos no círculo em que há amor e
afetividade, mas onde também podemos ser mal interpretados
por alguém e já tivemos de aparar arestas com alguns. É um
ambiente acolhedor, mas também podemos ser julgados ou nos
sentir mal. Quando o que você tem a dizer ou a sua reação a algo
que viu estiver nessa categoria, use:

- Mensagem direta

- Grupo só com pessoas que você conhece pessoalmente e com


quem tem relacionamento próximo

- Forme um grupo específico para debater esse tema

- Use (com moderação) o grupo da família

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GRAU 3 - COLEGA NÃO É AMIGO

Aqui já saímos do círculo do amor, estamos no círculo do respeito


e do relacionamento. São as coisas que dizemos ou as emoções
que escolhemos demonstrar entre pessoas que tem um nível de
compreensão com os nossos deslizes, mas não esperamos que
nos defendam em situações embaraçosas ou controversas.
Também a questão de manter segredo é incerta, espera-se da
maioria, mas não de todos.

Não estamos falando de um grupo que ataca nem distorce, mas


de alguém que não tem um relacionamento próximo o suficiente
para contar que te defenda e acolha mesmo na discordância.
Quando o que você tem a dizer ou a sua reação a algo que viu
estiver nessa categoria, use:

- Grupos temáticos fechados: pode ser postagem, comentário a


postagem alheia ou compartilhamento de informação.

- Listas de transmissão: você pode criar um grupo para dividir


essa informação.

- Perfis fechados: nesse caso, você pode fazer posts ou


compartilhar esse tipo de informação.

GRAU 4 - SELVA

Aqui é a praça pública, onde você pode ou não ser visto por todo
mundo que você conhece, inclusive seus inimigos. O que estiver
aí pode tanto ser compreendido quanto distorcido. Têm livre
acesso todas as pessoas da sua família, do seu trabalho, de onde
você estuda, da sua igreja, do futebol, do grupo de voluntários, do
clube do livro.

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Imagine que você reuniu todas as pessoas que você conhece, as
que gosta e não gosta, as que você ama e que odeia, as que lhe
acolhem e que lhe tratam mal, as que te dão apoio e as que
podem decidir sobre coisas importantes na sua vida. Agora
escolha o que, em que tom, de que forma e acompanhado de
quem vai ser apresentado a elas por você.

Perceba que não estou falando que você deve ser de uma forma
ou outra, melhor ou pior. Há dias em que queremos mesmo tocar
fogo em tudo e temos esse direito. O importante é ter a
consciência do que estamos fazendo. Pense nesse cenário
principalmente quando estiver reagindo a algo que mexe com
você emocionalmente.

Há pessoas que compartilham com uma enormidade de


desconhecidos fatos que eu manteria somente para mim. Não é
errado, é diferença de personalidade. Milhões de pessoas estão
encontrando suporte psicológico no enfrentamento de
problemas comuns compartilhando coisas que, para outras
pessoas, seriam da esfera da intimidade. São decisões pessoais.

Quando o que você tem a dizer ou a sua reação a algo que viu
estiver nessa categoria, use:

- Post aberto (texto, foto ou vídeo)

- Comentário em post aberto

- Compartilhamento em perfil aberto

- Compartilhamento em grupos com desconhecidos

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RESUMO DA ÓPERA
Produzi este e-book com base em experiências pessoais nos
últimos 4 anos, troca de informações com quem também viveu a
turbulência das redes sociais e muita leitura sobre o assunto.

Já errei bastante e construir conhecimento sobre o tema é um


edifício erguido sobre prejuízos profissionais, emocionais e
financeiros que eu espero evitar na vida de quem venha a ler este
trabalho.

Talvez muitos dos conceitos que trouxe aqui sejam já familiares


para você ou talvez possa ter tido a honra de lhe apresentar uma
novidade.

Seja qual for o caso, espero que essa pequena contribuição para
sistematizar ideias possa fazer uma diferença positiva na sua
vida e na vida das pessoas com quem você se importa.

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BIOGRAFIA DA AUTORA
www.madeleinelacsko.com.br
www.estudarpolitica.com

Depois de 12 anos de carreira como repórter em São Paulo,


cobrindo principalmente política, polícia e cidades, Madeleine
Lacsko percebeu que o cidadão comum tem uma espécie de
desconfiança dos jornalistas e resolveu ir ao coração do
problema. Concluiu que uma boa dose do distanciamento se
deve ao fato de jornalistas reportarem situações que jamais
viveram e, então, deu uma guinada na carreira.

Durante 7 anos, dedicou-se a trabalhar, na área de comunicação


mas com responsabilidades comuns, em diversos setores da
economia nacional e internacional. Era a oportunidade de,
finalmente, vivenciar situações sobre as quais costumava fazer
reportagens.

O ponto de partida foi em 2008, com um cargo no Supremo


Tribunal Federal. Em 2010, foi Consultora Internacional em
Comunicação para o Desenvolvimento do UNICEF Angola, tendo
feito parte da equipe que erradicou a pólio no país. De volta ao
Brasil, quis conhecer a iniciativa privada e teve uma
oportunidade no departamento de marketing da CCR. Em
seguida, participou do lançamento da plataforma Change.org no
Brasil, tendo sido a primeira diretora de comunicação da B-Corp
no Brasil. A última parada antes do retorno à imprensa foi como
assessora parlamentar do presidente da Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo.

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Ao viver a experiência de ser gestora no setor público e privado,
no Brasil e exterior, a jornalista conheceu por dentro - e aprendeu
a utilizar - as principais técnicas de propaganda e manipulação
que impedem a informação de chegar da forma correta ao
público comum. Driblar essas táticas de comunicação faz com
que saiba exatamente como pegar no pé dos poderosos.

Em 2015, voltou à imprensa tendo, além dessa experiência,


conhecimento e treinamento em mídias digitais. Madeleine
Lacsko já havia compreendido que não era apenas uma nova
tecnologia, era um "Mindset Digital", que dava à imprensa um
público com expectativas diferentes e formas diferentes de se
relacionar com a informação e com o poder.

Dedicou-se a implementar núcleos de vídeo para mídias sociais


entranhados no dia-a-dia e na forma de produção e trabalho de
órgãos de mídia com operações tradicionais. O primeiro projeto
foi no YouTube da Jovem Pan, o programa Radioatividade, o
primeiro do mundo a estrear ao vivo em Periscope. Depois,
implementou a TV Antagonista, canal de vídeo do blog. Em 2017,
foi convidada pelo tradicional jornal ​Gazeta do Povo para
implementar seu canal de vídeo​, onde até hoje mantém um
programa ao vivo. Também é ​colunista da Gazeta do Povo​.

FORMAÇÃO E HISTÓRICO PROFISSIONAL

Formada em Jornalismo com especialização em Marketing


Político pela USP, Madeleine Lacsko fez a transição da máquina
de escrever para a internet pelas ondas do rádio. E foi por meio
da interatividade, transportada de um veículo a outro, que
manteve viva a relação com um público jovem e fiel.

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Foi repórter da Rádio Trianon durante 2 anos, repórter e
apresentadora da Rádio Jovem Pan durante 10 anos, blogueira
do Huffington Post e primeira apresentadora da TV Antagonista.

Também trabalhou na iniciativa privada, no departamento de


marketing da CCR e como diretora de comunicação da
Change.org no Brasil.

Fez parte do departamento de comunicação do Supremo


Tribunal Federal e foi assessora do presidente da Comissão de
Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo.

Foi Consultora Internacional em Comunicação para o


Desenvolvimento do UNICEF Angola, atuando em mobilização
social, advocacy e mídia.

Foi International Visitor do Departamento de Estado dos Estados


Unidos no International Leadership Program em Jornalismo
Investigativo.

Fez dezenas de palestras, conferências e treinamentos sobre


comunicação e novas tecnologias no Brasil e exterior, para
jornalistas, membros do Judiciário, oficiais e praças da Polícia
Militar e público em geral.

Recebeu diversos prêmios e condecorações, no Brasil e no


exterior, entre eles:

● ICDB - International Children's Day of Broadcasting


Award, concedido pelo Unicef em Nova York para a
melhor produção de programação infanto-juvenil do
mundo​

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● Ordem do Mérito da Justiça Militar

● Diploma Mérito da Comunicação da Polícia Militar do


Estado de São Paulo

● Medalha de Mérito de Justiça e Disciplina da Polícia


Militar do Estado de São Paulo

● Reconhecimento Oficial da Força Aérea Brasileira

● Reconhecimento Oficial do Colégio de Presidentes de


Tribunais de Justiça

● Prêmio Anamatra de Direitos Humanos

● Prêmio da Parada LGBT do Rio de Janeiro

Janeiro de 2020
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