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A percepção e a fenomenologia

(Observação: o título foi modificado para se atender aos objetivos da aula)

(Do Livro: Convite à filosofia, de Marilena Chauí, Ed. Ática, 2000, pp. 120-125)

Marilena Chauí

1. Sensação e percepção

O conhecimento sensível também é chamado de conhecimento empírico ou experiência sensível e suas formas principais são
a sensação e a percepção.

A tradição filosófica, até o século XX, distinguia sensação de percepção pelo grau de complexidade.

A sensação é o que nos dá as qualidades exteriores e interiores, isto é, as qualidades dos objetos e os efeitos internos dessas
qualidades sobre nós. Na sensação vemos, tocamos, sentimos, ouvimos qualidades puras e diretas: cores, odores, sabores,
texturas. Sentimos o quente e o frio, o doce e o amargo, o liso e o rugoso, o vermelho e o verde, etc.

Sentir é algo ambíguo, pois o sensível é, ao mesmo tempo, a qualidade que está no objeto e o sentimento interno que nosso
corpo possui das qualidades sentidas. Por isso, a tradição costuma dizer que a sensação é uma reação corporal imediata a um
estímulo ou excitação externa, sem que seja possível distinguir, no ato da sensação, o estímulo exterior e o sentimento
interior. Essa distinção só poderia ser feita num laboratório, com análise de nossa anatomia, fisiologia e sistema nervoso.

Quando examinamos a sensação, notamos que ninguém diz que sente o quente, vê o azul e engole o amargo. Pelo contrário,
dizemos que a água está quente, que o céu é azul e que o alimento está amargo. Isto é, sentimos as qualidades como
integrantes de seres mais amplos e complexos do que a sensação isolada de cada qualidade. Por isso, se diz que, na realidade,
só temos sensações sob a forma de percepções, isto é, de sínteses de sensações.

Empirismo e intelectualismo

Duas grandes concepções sobre a sensação e a percepção fazem parte da tradição filosófica: a empirista e a intelectualista.

Para os empiristas, a sensação e a percepção dependem das coisas exteriores, isto é, são causadas por estímulos externos que
agem sobre nossos sentidos e sobre o nosso sistema nervoso, recebendo uma resposta que parte de nosso cérebro, volta a
percorrer nosso sistema nervoso e chega aos nossos sentidos sob a forma de uma sensação (uma cor, um sabor, um odor), ou
de uma associação de sensações numa percepção (vejo um objeto vermelho, sinto o sabor de uma carne, sinto o cheiro da
rosa, etc.).

A sensação seria pontual, isto é, um ponto do objeto externo toca um de meus órgãos dos sentidos e faz um percurso no
interior do meu corpo, indo ao cérebro e voltando às extremidades sensoriais. Cada sensação é independente das outras e cabe
à percepção unificá-las e organizá-las numa síntese. A causa do conhecimento sensível é a coisa externa, de modo que a
sensação e a percepção são efeitos passivos de uma atividade dos corpos exteriores sobre o nosso corpo. O conhecimento é
obtido por soma e associação das sensações na percepção e tal soma e associação dependem da freqüência, da repetição e da
sucessão dos estímulos externos e de nossos hábitos.

Para os intelectualistas, a sensação e a percepção dependem do sujeito do conhecimento e a coisa exterior é apenas a ocasião
para que tenhamos a sensação ou a percepção. Nesse caso, o sujeito é ativo e a coisa externa é passiva, ou seja, sentir e
perceber são fenômenos que dependem da capacidade do sujeito para decompor um objeto em suas qualidades simples (a
sensação) e de recompor o objeto como um todo, dando-lhe organização e interpretação (a percepção).

A passagem da sensação para a percepção é, neste caso, um ato realizado pelo intelecto do sujeito do conhecimento, que
confere organização e sentido às sensações. Não haveria algo propriamente chamado percepção, mas sensações dispersas ou
elementares; sua organização ou síntese seria feita pela inteligência e receberia o nome de percepção. Assim, na sensação,
“sentimos” qualidades pontuais, dispersas, elementares e, na percepção, “sabemos” que estamos tendo sensação de um objeto
que possui as qualidades sentidas por nós. Como disse um filósofo, perceber é “saber que percebo”; ver é “pensamento de
ver”; ouvir é “pensamento de ouvir”, e assim por diante.

Para os empiristas, a sensação conduz à percepção como uma síntese passiva, isto é, que depende do objeto exterior. Para os
intelectualistas, a sensação conduz à percepção como síntese ativa, isto é, que depende da atividade do entendimento.

Para os empiristas, as idéias são provenientes das percepções. Para os intelectualistas, a sensação e a percepção são sempre
confusas e devem ser abandonadas quando o pensamento formula as idéias puras.
Psicologia da forma e fenomenologia

Em nosso século, porém, a Filosofia alterou bastante essas duas tradições e as superou numa nova concepção do
conhecimento sensível. As mudanças foram trazidas pelo fenomenologia de Husserl e pela Psicologia da Forma ou teoria da
Gestalt (Gestalt é uma palavra alemã que significa: configuração, figura estruturada, forma). Ambas mostraram:

- contra o empirismo, que a sensação não é reflexo pontual ou uma resposta físico-fisiológica a um estímulo externo também
pontual;

- contra o intelectualismo, que a percepção não é uma atividade sintética feita pelo pensamento sobre as sensações;

- contra o empirismo e o intelectualismo, que não há diferença entre sensação e percepção.

Empiristas e intelectualistas, apesar de suas diferenças, concordavam num aspecto: julgavam que a sensação era uma relação
de causa e efeito entre pontos das coisas e pontos de nosso corpo. As coisas seriam como mosaicos de qualidades isoladas
justapostas e nosso aparelho sensorial (órgãos dos sentidos, sistema nervoso e cérebro) também seria um mosaico de
receptores isolados e justapostos. Por isso, a percepção era considerada a atividade que “somava” ou “juntava” as partes
numa síntese que seria o objeto percebido.

Fenomenologia e Gestalt, porém, mostram que não há diferença entre sensação e percepção porque nunca temos sensações
parciais, pontuais ou elementares, isto é, sensações separadas de cada qualidade, que depois o espírito juntaria e organizaria
como percepção de um único objeto. Sentimos e percebemos formas, isto é, totalidades estruturadas dotadas de sentido ou de
significação.

Assim, por exemplo, ter a sensação e a percepção de um cavalo é sentir/perceber de uma só vez sua cor (ou cores), suas
partes, sua cara, seu lombo e seu rabo, seu porte, seu tamanho, seu cheiro, seus ruídos, seus movimentos. O cavalo-percebido
não é um feixe de qualidades isoladas que enviam estímulos aos meus órgãos dos sentidos (como suporia o empirista), nem
um objeto indeterminado esperando que meu pensamento diga às minhas sensações: “Este objeto é um cavalo” (como suporia
o intelectualista). O cavalo-percebido não é um mosaico de estímulos exteriores (empirismo), nem uma idéia
(intelectualismo), mas é, exatamente, um cavalo-percebido.

As experiências conhecidas como figura-e-fundo mostram que não temos sensações parciais, mas percepções globais de uma
forma ou de uma estrutura:

A B C

As experiências com formas “incompletas” mostram que a percepção sempre percebe uma totalidade completa, o que seria
impossível se tivéssemos sensações elementares que o pensamento unificaria numa percepção:
Se a percepção fosse uma soma de sensações parciais e se cada sensação dependesse dos estímulos diretos que as coisas
produzissem em nossos órgãos dos sentidos, então teríamos que ver como sendo de mesmo tamanho duas linhas que são
objetivamente de mesmo tamanho. Mas a experiência mostra que nós as percebemos como formas ou totalidades diferentes:

O que é a percepção
A percepção possui as seguintes características:

- é o conhecimento sensorial de configurações ou de totalidades organizadas e dotadas de sentido e não uma soma de
sensações elementares; sensação e percepção são a mesma coisa;

- é o conhecimento de um sujeito corporal, isto é, uma vivência corporal, de modo que a situação de nosso corpo e as
condições de nosso corpo são tão importantes quanto a situação e as condições dos objetos percebidos;

- é sempre uma experiência dotada de significação, isto é, o percebido é dotado de sentido e tem sentido em nossa história de
vida, fazendo parte de nosso mundo e de nossas vivências;

- o próprio mundo exterior não é uma coleção ou uma soma de coisas isoladas, mas está organizado em formas e estruturas
complexas dotadas de sentido. Uma paisagem, por exemplo, não é uma soma de coisas que estão apenas próximas umas das
outras, mas é a percepção de coisas que formam um todo complexo e com sentido: o vale só é vale por causa da montanha,
cuja altura e distância só podem ser avaliadas porque há o céu, as árvores, um rio e um caminho; o verde do vale só pode ser
percebido por contraste com o cinza ou o dourado da montanha; o azul do céu só pode ser percebido por causa do verde da
vegetação e o marrom da terra; essa paisagem será um espetáculo de contemplação se o sujeito da percepção estiver
repousado, mas será um objeto digno de ser visto por outros se o sujeito da percepção for um pintor, ou será um obstáculo, se
o sujeito da percepção for um viajante que descobre que precisa ultrapassar a montanha. Em resumo: na percepção, o mundo
possui forma e sentido e ambos são inseparáveis do sujeito da percepção;

- a percepção é assim uma relação do sujeito com o mundo exterior e não uma reação físico-fisiológica de um sujeito físico-
fisiológico a um conjunto de estímulos externos (como suporia o empirista), nem uma idéia formulada pelo sujeito (como
suporia o intelectualista). A relação dá sentido ao percebido e ao percebedor, e um não existe sem o outro;

- O mundo percebido é qualitativo, significativo, estruturado e estamos nele como sujeitos ativos, isto é, damos às coisas
percebidas novos sentidos e novos valores, pois as coisas fazem parte de nossas vidas e interagimos com o mundo;

- o mundo percebido é um mundo intercorporal, isto é, as relações se estabelecem entre nosso corpo, os corpos dos outros
sujeitos e os corpos das coisas, de modo que a percepção é uma forma de comunicação que estabelecemos com os outros e
com as coisas;

- a percepção depende das coisas e de nosso corpo, depende do mundo e de nossos sentidos, depende do exterior e do interior,
e por isso é mais adequado falar em campo perceptivo para indicar que se trata de uma relação complexa entre o corpo-sujeito
e os corpos-objetos num campo de significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras, motrizes, espaciais, temporais
e lingüísticas. A percepção é uma conduta vital, uma comunicação, uma interpretação e uma valoração do mundo, a partir da
estrutura de relações entre nosso corpo e o mundo;

- a percepção envolve toda nossa personalidade, nossa história pessoal, nossa afetividade, nossos desejos e paixões, isto é, a
percepção é uma maneira fundamental de os seres humanos estarem no mundo. Percebemos as coisas e os outros de modo
positivo ou negativo, percebemos as coisas como instrumentos ou como valores, reagimos positiva ou negativamente a cores,
odores, sabores, texturas, distâncias, tamanhos. O mundo é percebido qualitativamente, efetivamente e valorativamente.
Quando percebemos uma outra pessoa, por exemplo, não temos uma coleção de sensações que nos dariam as partes isoladas
de seu corpo, mas a percebemos como tendo uma fisionomia (agradável ou desagradável, bela ou feia, serena ou agitada,
sadia ou doentia, sedutora ou repelente) e por essa percepção definimos nosso modo de relação com ela;
- a percepção envolve nossa vida social, isto é, os significados e os valores das coisas percebidas decorrem de nossa
sociedade e do modo como nela as coisas e as pessoas recebem sentido, valor ou função. Assim, objetos que para nossa
sociedade não causam temor, podem causar numa outra sociedade. Por exemplo, em nossa sociedade, um espelho ou uma
fotografia são objetos funcionais ou artísticos, meios de nos vermos em imagem; no entanto, para muitas sociedades
indígenas, ver a imagem de alguém ou a sua própria é ver a alma desse alguém e faze-lo perder a identidade e a vida, de
modo que a percepção de um espelho ou de uma fotografia pode ser uma percepção apavorante;

- a percepção nos oferece um acesso ao mundo dos objetos práticos e instrumentais, isto é, nos orienta para a ação cotidiana e
para as ações técnicas mais simples; a percepção é uma forma de conhecimento e de ação fundamental para as artes, que são
capazes de criar um “outro” mundo pela simples alteração que provoca em nossa percepção cotidiana e costumeira. Basta
lembrar aqui o texto de Clarice Lispector sobre o inseto e sobre o ovo (unidade 3, capítulo 8);

- a percepção não é uma idéia confusa ou inferior, como julgava a tradição, mas uma maneira de ter idéias sensíveis ou
significações perceptivas;

- a percepção está sujeita a uma forma especial de erro: a ilusão, como vimos no exemplo dos versos de Mário de Andrade
sobre a garoa de São Paulo, a confusão do branco e do negro, do pobre e do rico.

Percepção e teoria do conhecimento

Do ponto de vista das teorias do conhecimento, há três concepções principais sobre o papel da percepção:

1. nas teorias empiristas, a percepção é a única fonte de conhecimento, estando na origem das idéias abstratas formuladas
pelo pensamento. Hume, por exemplo, afirma que todo conhecimento é percepção e que existem dois tipos de percepção: as
impressões (sensações, emoções e paixões) e as idéias (imagens das impressões);

2. nas teorias racionalistas intelectualistas, a percepção é considerada não muito confiável para o conhecimento porque
depende das condições particulares de quem percebe e está propensa a ilusões, pois freqüentemente a imagem percebida não
corresponde à realidade do objeto.

Vemos o Sol menor do que a Terra, mas ele realmente é maior do que ela. Descartes menciona o modo como percebemos um
bastão mergulhado na água: embora o bastão seja reto e contínuo, percebemos a parte mergulhada como se o bastão estivesse
entortado e como se houvesse descontinuidade entre a parte que está fora da água e a parte mergulhada. O bastão é percebido
como distorcido, embora, na realidade, não esteja deformado.

Para a concepção racionalista intelectualista, o pensamento filosófico e científico deve abandonar os dados da percepção e
formular as idéias em relação com o percebido; trata-se de explicar e corrigir a percepção;

3. na teoria fenomenológica do conhecimento, a percepção é considerada originária e parte principal do conhecimento


humano, mas com uma estrutura diferente do pensamento abstrato, que opera com idéias. Qual a diferença? A percepção
sempre se realiza por perfis ou perspectivas, isto é, nunca podemos perceber de uma só vez um objeto, pois somente
percebemos algumas de suas faces de cada vez; no pensamento, nosso intelecto compreende uma idéia de uma só vez e por
inteiro, isto é, captamos a totalidade do sentido de uma idéia de uma só vez, sem precisar examinar cada uma de suas “faces”.

Na percepção, nunca poderemos ver, de uma só vez, as seis faces de um cubo, pois “perceber um cubo” significa, justamente,
nunca vê-lo de uma só vez por inteiro. Ao contrário, quando o geômetra pensa o cubo, ele o pensa como figura de seis lados
e, para seu pensamento, as seis faces estão todas presentes simultaneamente.

Quanto ao problema da ilusão, a fenomenologia considera que ela não existe. Se tomarmos, por exemplo, o verso de Mário de
Andrade, diremos que perceber uma pessoa sob a garoa ou a neblina de São Paulo é percebe-la como negra de longe e branca
de perto ou como branca de longe e negra de perto: são quatro percepções diferentes e que são como são porque perceber é
sempre perceber um campo de objetos que permite corrigir uma percepção por meio de outra.

Podemos compreender mais claramente a diferença entre as três concepções através de um exemplo, oferecido pelo filósofo
Merleau-Ponty:

Olhemos para uma piscina ladrilhada de verde-claro e rodeada por um jardim. O que percebemos?

O empirista dirá que recebemos estímulos de todos os elementos que estão em nosso campo visual: cores, sons, reflexos; que
esses estímulos isolados são levados a nosso cérebro, onde causam uma impressão e que a consciência dessa impressão é a
percepção como soma dos estímulos.

O intelectualista nos dirá que vemos qualidades sensíveis – líquido, cor, reflexos – de uma realidade distorcida: vemos
árvores sobre a superfície das águas, embora as árvores não estejam ali; vemos os ladrilhos do fundo como se fossem curvos,
côncavos, convexos, embora sejam quadrados e lisos; vemos a água colorida, quando, na realidade, ela não tem cor. Vemos,
portanto, algo que nosso intelecto ou nosso pensamento nos avisa que não corresponde à realidade.

O fenomenólogo, porém, mostrará que perceber-uma-piscina-ladrilhada-com-água-e-rodeada-de-árvores é perceber


exatamente isso: os reflexos das árvores na água, as nuances de cor no líquido, a movimentação dos ladrilhos. Não estamos
recebendo estímulos que formarão impressões no cérebro: estamos percebendo uma forma organizada ou uma estrutura.

Não estamos tendo ilusões visuais, vendo ladrilhos “apesar” da água que os deformaria; nem estamos vendo a água “apesar”
dos reflexos das árvores que a deformariam. Estamos vendo e percebendo ladrilhos-de-uma-piscina-com-água (portanto,
formas móveis no chão e nas paredes da piscina); estamos vendo ou percebendo as-árvores-à-volta-de-uma-piscina-com-água
(portanto, refletindo-se nas águas e agitando-se aos ventos); estamos vendo ou percebendo a água-de-uma-piscina (portanto,
agitando os ladrilhos, recebendo reflexos, mudando de cor e de tonalidade). Isso é perceber.

A percepção se realiza num campo perceptivo e o percebido não está “deformado” por nada, pois ver não é fazer geometria
nem física. Não há ilusões na percepção; perceber é diferente de pensar e não uma forma inferior e deformada do
pensamento. A percepção não é causada pelos objetos sobre nós, nem é causada pelo nosso corpo sobre as coisas: é a relação
entre elas e nós e nós e elas; uma relação possível porque elas são corpos e nós também somos corporais.

FENOMENOLOGIA APÓS HUSSERL

Heidegger e Merleu Ponty

(O título está modificado para atender os objetivos da aula)

Filósofos que vieram após Husserl e adotaram suas idéias desenvolveram a nova ontologia. Entre esses filósofos, dois
merecem especial destaque: Martin Heidegger e o francês Maurice Merleau-Ponty. Ambos modificaram várias das idéias
de Husserl e esforçaram-se para liberar a ontologia do velho problema deixado pela metafísica, qual seja, o dilema do
realismo e do idealismo, dilema que Husserl resolvera em favor do idealismo pelo papel preponderante que dera à
consciência ou ao sujeito do conhecimento.

Qual o dilema posto pelo realismo e pelo idealismo?

O realismo afirma que, se eliminarmos o sujeito e a consciência, restam as coisas em si mesmas, a realidade verdadeira, o ser
em si.
O idealismo, ao contrário, afirma que se eliminarmos as coisas ou o nôumeno, resta a consciência ou o sujeito que, através
das operações do conhecimento, põe a realidade, o objeto.

Heidegger e Merleau-Ponty afirmam que as duas posições estão equivocadas e que são "erros gêmeos", cabendo à nova
ontologia superá-los, isto é, resolver o problema Heráclito-Parmênides, Platão-Aristóteles, medievais e modernos, Kant e
Husserl. Como resolver um problema milenar como esse e que é, afinal, a própria história da metafísica e da ontologia?
Dizem os dois filósofos: se eliminarmos a consciência, não sobra nada, pois as coisas existem para nós, isto é, para uma
consciência que as percebe, imagina, que delas se lembra, nelas pensa, que as transforma pelo trabalho, etc. Se eliminarmos
as coisas, também não resta nada, pois não podemos viver sem o mundo nem fora dele; não somos os criadores do mundo e
sim seus habitantes.
Damos sentido ao mundo, transformamos as coisas, criamos utensílios, obras de arte, instituições sociais, mas não criamos o
próprio mundo. Sem a consciência, não há mundo para nós. Sem o mundo, não temos como conhecer nem agir. Um mundo
sem nós será tudo quanto se queira, menos o que entendemos por realidade. Uma consciência sem o mundo será tudo quanto
se queira, menos consciência humana.
A nova ontologia parte da afirmação de que estamos no mundo e de que o mundo é mais velho do que nós (isto é, não
esperou o sujeito do conhecimento para existir), mas, simultaneamente, de que somos capazes de dar sentido ao mundo,
conhecê-lo e transformá-lo.
Não somos uma consciência reflexiva pura, mas uma consciência encarnada num corpo. Nosso corpo não é apenas uma coisa
natural, tal como a física, a biologia e a psicologia o estudam, mas é um corpo humano, isto é, habitado e animado por uma
consciência. Não somos pensamento puro, pois somos um corpo. Não somos uma coisa natural, pois somos uma consciência.
O mundo não é um conjunto de coisas e fatos estudados pelas ciências segundo relações de causa e efeito e leis naturais.
Além do mundo como conjunto racional de fatos científicos, há o mundo como lugar onde vivemos com os outros e rodeados
pelas coisas, um mundo qualitativo de cores, sons, odores, figuras, fisionomias, obstáculos, um mundo afetivo de pessoas,
lugares, lembranças, promessas, esperanças, conflitos, lutas.
Somos seres temporais - nascemos e temos consciência da morte. Somos seres intersubjetivos - vivemos na companhia dos
outros. Somos seres culturais - criamos a linguagem, o trabalho, a sociedade, a religião, a política, a ética, as artes e as
técnicas, a filosofia e as ciências.

O que é, pois, a realidade? É justamente a existência do mundo material, natural, ideal, cultural e a nossa existência nele. A
realidade é o campo formado por seres ou entes diferenciados e relacionados entre si, que possuem sentido em si mesmos e
que também recebem de nós outros e novos sentidos. A realidade ou o Ser não é o Objeto-Coisa, sem a consciência. Mas,
também, não é o Sujeito-Consciência, sem as coisas e os outros. A realidade ou o Ser é o cruzamento e a diferenciação entre
o sensível e o inteligível, entre o material-natural e o ideal-cultural, entre o qualitativo e o quantitativo, entre o fato e o
sentido, entre o psíquico e o corporal, etc.
O que estuda a ontologia? Os entes ou seres antes que sejam investigados pelas ciências, e depois que se tornaram
enigmáticos para nossa vida cotidiana. Em outras palavras, os entes ou os seres antes de serem transformados em conceitos
das ciências e depois que nossa experiência cotidiana sofreu o espanto, a admiração e o estranhamento de que eles sejam
como nos parecem ser, ou não sejam o que nos parecem ser.
A ontologia estuda as essências antes que sejam fatos da ciência explicativa e depois que se tornaram estranhas para nós.
Digo, por exemplo, "Vejo esta casa vermelha, próxima da azul". A ontologia indaga: O que é ver, qual a essência da visão? O
que é uma casa ou qual a essência da habitação? Que é vermelho ou azul ou qual é a essência da cor? Que é ver cores? O que
é a cor?

Pergunto, por exemplo, "Que horas são?". A ontologia indaga: O que é o tempo? Qual a essência da temporalidade?
Pedro fala: "A cidade já está perto". A ontologia indaga: O que é o espaço? Qual é a essência da espacialidade? Que é perto e
longe? Que é distância?
Antônio diz a Paulo: "Aquelas duas árvores são idênticas, mas a terceira é diferente". A ontologia indaga: O que é
identidade? E a diferença? O que é "duas" e "terceira"? Ou seja, o que é o número?
Ana me diz: "Ouvi uma música belíssima, não essa coisa feia que você está escutando". A ontologia indaga: O que é a beleza
e a feiúra? Existem o belo em si e o feio em si, ou beleza e feiúra são avaliações e valores que atribuímos às coisas? O que é
um valor?
Cecília conta a Joana: "Pedro realizou um ato generoso, protegendo a criança, mas Eugênia foi egoísta ao não ajuda-lo". A
ontologia indaga: O que é a generosidade ou o egoísmo? Existem em si e por si mesmos ou são avaliações que fazemos das
ações humanas? O que é uma virtude? O que é um vício? O que é um valor?
Como se observa, a ontologia investiga a essência ou sentido do ente físico ou natural, do ente psíquico, lógico, matemático,
estético, ético, temporal, espacial, etc. Investiga as diferenças e as relações entre eles, seu modo próprio de existir, sua
origem, sua finalidade. O que é o mundo? O que é o eu ou a consciência? O que é o corpo? O que é o outro? O que é o
espaço-tempo? O que é a linguagem? O que é o trabalho? A religião? A arte? A sociedade? A história? A morte? O infinito?
Eis as questões da ontologia.
Recupera-se, assim, a velha questão filosófica: "O que é isto que é?", mas acrescida de nova questão: "Para quem é isto que
é?". Volta-se, pois, a buscar o to on, o Ser ou a essência das coisas, dos atos, dos valores humanos, da vida e da morte, do
infinito e do finito. A pergunta "O que é isto que é?" refere-se ao modo de ser dos entes naturais, artificiais, ideais e humanos;
a pergunta "Para quem é isto que é?" refere-se ao sentido ou à significação desses entes.
Tomemos um exemplo para nos ajudar a compreender o modo de pensar da ontologia. Acompanhemos, brevemente, o estudo
de Merleau-Ponty sobre a essência ou o ser do tempo e a essência ou o ser do nosso corpo.

O que é o tempo?

Estamos acostumados a considerar o tempo como uma linha reta, feita da sucessão de instantes, ou como uma sucessão de
"agoras" - um "agora" que já foi é o passado, o "agora" que está sendo é o presente, um "agora" que virá é o futuro.
A metafísica realista usa, freqüentemente, a imagem do rio para representar o tempo como algo que passa sem cessar: a
nascente é o passado, o lugar onde me encontro é o presente, a foz é o futuro. Há dois enganos nessa imagem. Em primeiro
lugar, trata-se de uma imagem espacial para referir-se ao que é temporal, isto é, pretende explicar a essência do tempo (o
escoamento) usando a essência do espaço (a sucessão de pontos). Em segundo lugar, a imagem do rio não corresponde ao
escoamento do tempo. Para que correspondesse, precisaria estar invertida, pois a água que está na nascente é aquela que ainda
não passou pelo lugar onde estou e, portanto, ela é, para mim, o futuro e não o passado; a água que está na foz é aquela que já
passou pelo lugar onde estou e, portanto, para mim, é o passado e não o futuro.
Tentando evitar os enganos do realismo, a metafísica idealista dirá que o tempo é a forma do sentido interno, isto é, uma
forma criada pelo sujeito do conhecimento ou pela consciência reflexiva para organizar a experiência subjetiva da sucessão.
O tempo não existe, mas é uma identidade produzida pela razão, um conceito subjetivo para estruturar o que é experimentado
como sucessivo.
Um novo engano acaba de ser cometido. Se o tempo for uma forma ou um conceito produzido pela consciência reflexiva ou
pelo sujeito para organizar a sucessão, não haverá sucessão a organizar, pois a consciência reflexiva ou o sujeito do
conhecimento opera sempre e exclusivamente com o que é atual, com o que está dado presentemente ao pensamento. Para a
reflexão só existe a simultaneidade e a sucessão se reduz a uma experiência psicológica ou empírica, ao sentimento de que há
um "antes" e um "depois", tais palavras indicando o modo como nos referimos à lembranças e expectativas pessoais.
Indaguemos, porém, o que é vivenciar o próprio tempo.
Quando vivencio o meu presente, ele se apresenta como uma situação na qual sinto, faço, digo, penso coisas, atuo de várias
maneiras e tenho experiência de uma situação aberta, isto é, na qual muitas coisas são possíveis para mim, muitas coisas
podem acontecer. Quando rememoro meu passado, percebo que entre ele e o meu presente há uma diferença: quando ele era
o meu presente, também estava aberto a muitas possibilidades, mas somente algumas se realizaram. Por isso, o passado
lembrado não é uma situação aberta como o presente, mas fechada, terminada. Assim, meu passado não é simplesmente o que
veio antes do meu presente, mas algo qualitativamente diferente do presente: este é aberto, aquele, fechado.
Quando imagino meu futuro, antevejo, a partir das possibilidades abertas em meu presente, como seria se certas
possibilidades se concretizassem e se outras não se realizassem. Meu futuro não é simplesmente o que vem depois do meu
presente, mas algo qualitativamente diferente do presente: é o que poderá ser, se as aberturas do meu presente se
concretizarem e, portanto, se o que, hoje, está aberto ou em suspenso, estiver, amanhã, fechado e realizado.
Meu passado e meu futuro nunca são os mesmos. Cada vez que me lembro do meu passado, eu o faço a partir do meu
presente e, cada vez, este é diferente, fazendo-me recordar de maneiras diversas o que passou. Cada vez que imagino meu
futuro, eu o faço a partir de meu presente, que, sendo sempre diferente, imagina diferentemente o futuro. Não revivo o
passado, mas o rememoro tal como sou hoje em meu presente. Não vivo o meu futuro, mas o imagino tal como sou hoje em
meu presente. O presente é uma contração temporal que arranca o passado do esquecimento e abre o futuro para o possível. O
passado e o futuro são dilatações temporais, distorções do presente.
Que é lembrar? É captar no contínuo temporal uma diferença real entre o que estou vivendo no presente e o que estou
vivenciando do passado. Que é esquecer? É perder a fisionomia ou o relevo de um momento do passado. Que é esperar? É
buscar no contínuo temporal uma diferença possível entre o que estou vivendo e o que estou vivenciando do futuro.
O que é o tempo?
Em primeiro lugar, é um escoamento interno e externo, um fluir contínuo, que vai produzindo diferenças dentro de si mesmo.
Em segundo lugar, é uma contração e uma dilatação de si mesmo, um juntar-se a si mesmo e consigo mesmo (na lembrança)
e um expandir-se a si mesmo e consigo mesmo (na esperança). O tempo é a produção da identidade e da diferença consigo
mesmo e, nesse sentido, é uma dimensão do meu ser (não estou no tempo, mas sou temporal) e uma dimensão de todos os
entes (não estão no tempo, mas são temporais).
O tempo não é um receptáculo de instantes, não é uma linha de momentos sucessivos, não é a distância entre um "agora", um
"antes" e um "depois", mas é o movimento interno dos entes para reunirem-se consigo mesmos (o presente como centro que
busca o passado e o futuro) e para se diferenciarem de si mesmos (o presente como diferença qualitativa em face do passado e
do futuro). O Ser é tempo.
O que é nosso corpo? Qual sua essência?
A física dirá que é um agregado de átomos, uma certa massa e energia, que funciona de acordo com as leis gerais da
Natureza. A química dirá que é feito de moléculas de água, oxigênio, carbono, de enzimas e proteínas, funcionando como
qualquer outro corpo químico. A biologia dirá que é um organismo vivo, um indivíduo membro de uma espécie (animal,
mamífero, vertebrado, bípede), capaz de adaptar-se ao meio ambiente por operações e funções internas, dotado de um código
genético hereditário, que se reproduz sexualmente. A psicologia dirá que é um feixe de carne, músculos, ossos, que formam
aparelhos receptores de estímulos externos e internos e aparelhos emissores de respostas internas e externas a tais estímulos,
capaz de ter comportamentos observáveis.
Todas essas respostas dizem que nosso corpo é uma coisa entre as coisas, uma máquina receptiva e ativa que pode ser
explicada por relações de causa e efeito, suas operações são observáveis direta ou indiretamente - podendo ser examinado em
seus mínimos detalhes nos laboratórios, classificado e conhecido. Nosso corpo, como qualquer coisa, é um objeto de
conhecimento.
Porém, será isso o corpo que é nosso?
Meu corpo é um ser visível no meio dos outros seres visíveis, mas que tem a peculiaridade de ser um visível vidente: vejo,
além de ser vista. Não só isso. Posso me ver, sou visível para mim mesma. E posso me ver vendo.
Meu corpo é um ser táctil como os outros corpos, podendo ser tocado. Mas também tem o poder de tocar, é tocante; e é capaz
de tocar-se, como quando minha mão direita toca a esquerda e já não sabemos quem toca e quem é tocado.
Meu corpo é sonoro como outros corpos, como os cristais e os metais; pode ser ouvido. Mas tem o poder de ouvir. Mais do
que isso, pode fazer-se ouvir e pode ouvir-se quando emite sons. Do fundo da garganta, passando pela língua e pelos dentes,
com os movimentos de meus lábios transformo a sonoridade em sentido, dizendo palavras. Ouço-me falando e ouço quem me
fala. Sou sonora para mim mesma.
Meu corpo estende a mão e toca outra mão em outro corpo, vê um olhar, percebe uma fisionomia, escuta uma outra voz: sei
que diante de mim está um corpo que é meu outro, um outro humano habitado por consciência e eu o sei porque me fala e,
como eu, seu corpo produz palavras, sentido.
Visível-vidente, táctil-tocante, sonoro-ouvinte/falante, meu corpo se vê vendo, se toca tocando, se escuta escutando e falando.
Meu corpo não é coisa, não é máquina, não é feixe de ossos, músculos e sangue, não é uma rede de causas e efeitos, não é um
receptáculo para uma alma ou para uma consciência: é meu modo fundamental de ser e de estar no mundo, de me relacionar
com ele e dele se relacionar comigo. Meu corpo é um sensível que sente e se sente, que se sabe sentir e se sentindo. É uma
interioridade exteriorizada e uma exterioridade interiorizada. É esse o ser ou a essência do meu corpo. Meu corpo tem, como
todos os entes, uma dimensão metafísica ou ontológica.

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