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José Gil
Artigo publicado no livro Corpo, Arte e Clínica, organizado por Tania Mara
Galli Fonseca e Selda Engelman. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2004.
José Nuno Gil é filósofo, professor da Universidade Nova de Lisboa. Publicou
entre outros os livros Diferença e Negação em Fernando Pessoa e
Metamorfoses do Corpo. Encontra-se no prelo o livro Movimento Total.
um corpo sensível (Leib). Não o fazemos porque a nossa ideia de corpo difere da da
fenomenologia; como difere a ideia de consciência.
Há que considerar a consciência como um elemento paradoxal: sempre em
estreita imbricação com o corpo, ela atravessa os estados de maior intimidade,
mistura, osmose mesmo com o corpo; mas pode também dele afastar-se ao ponto de
parecer entrar em ruptura, separar-se, abandoná-lo como se de um elemento
estrangeiro se tratasse. Que a consciência deixe de habitar um corpo é uma
experiência comum, da ordem da psicose.
Esta separação, no entanto, nunca é completa. Mesmo nos casos extremos de
ruptura, permanece sempre uma ligação residual, um fio muitas vezes inconsciente
que faz com que a consciência se reconheça como pertencente àquele corpo e não a
outro.
"Consciência do corpo" significa assim uma espécie de avesso da
intencionalidade. Por exemplo, não se tem consciência do corpo como se a tem de
um objecto percepcionado. Aqui, toda a consciência não é "consciência de", o
objecto não surge "em carne e osso" diante do sujeito; pelo contrário, a consciência
do corpo é antes de mais impregnação da consciência pelo corpo. Numa série de
casos bem conhecidos, desde a experiência do bailarino que sente a energia fluir
através dos membros e os movimentos da consciência acompanhá-los, até a estados
vegetativos induzidos por drogas, a consciência aparece como um "meio" ou
"atmosfera" susceptível de ser invadida, captada, ocupada, por texturas finíssimas
que a obscurecem e que vêm dos movimentos do corpo. Em múltiplos estados
triviais de consciência do corpo – como no cansaço extremo, na insómnia, no acordar
prolongado – um dos efeitos mais visíveis é o abaixamento do limiar da consciência
clara. Este facto, contudo, não nos deve levar a caracterizar a consciência do corpo
como uma consciência subliminar.
É preciso definir a consciência do corpo não à maneira da fenomenologia
(mesmo de uma fenomenologia do corpo como a de Merleau-Ponty), não como o que
visa o sentido do objecto na percepção, por exemplo, mas como uma instância de
recepção de forças do mundo graças ao corpo; e, assim, uma instância de devir as
formas, as intensidades e o sentido do mundo.
A impregnação da consciência pelos movimentos do corpo é própria da
natureza da consciência: a descrição clássica da consciência como "tomada de
consciência" do objecto diferenciando-o do sujeito implica, curiosamente, essa
mesma impregnação. Não haveria tomada de consciência se esta não desposasse, de
uma maneira ou de outra, o objecto em questão. Ora "desposar" vale como metáfora
que recobre processos precisos de cognição e contágio, entre os quais a captação das
formas e das forças que animam o objecto. Como é que a consciência capta essas
características objectais? Fazendo-as suas: opera-se primeiro uma impregnação da
consciência pelo corpo; em seguida, este último entra em conexão com o mundo
exterior, o que significa que passa a coincidir com as forças do objecto. O corpo
inicia um devir-objecto quer dizer, em termos deleuzianos, que se cria uma zona de
indiscernibilidade entre o corpo e o objecto que faz com que o corpo transfira certos
dos seus traços ao objecto, e reciprocamente, que certas propriedades do objecto se
transmitam ao corpo. Assim se devém peixe, pedra ou cubo. A percepção do cubo de
Husserl não se explica de outro modo.
Notemos que esta descrição sumária da percepção de um objecto qualquer
não difere muito da percepção artística: também aqui ocorrem necessariamente um
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devir e uma osmose com a obra de arte. Para bem pintar um peixe, escrevia um
pintor japonês, é preciso aprender a tornar-se peixe.
Como se opera a conexão do corpo que impregna a consciência com os seus
movimentos, com o mundo?
Consideremos, primeiro, a noção de impregnação: se ela existe, e se existe
uma consciência do corpo – o que parece irrecusável – temos que admitir que nem a
consciência nem o corpo constituem duas "substâncias" ou "elementos" opostos, que
se definiriam por atributos contrários como no caso da concepção cartesiana,
adoptada por Husserl. Pelo contrário, uma tessitura comum atravessa os dois.
Qualquer que ela seja, para aceitar tal enunciado, é necessário inverter o ponto de
vista cartesiano de um corpo caracterizado por se situar no espaço, e uma consciência
incorporal. Inverter o ponto de vista significa fazer do corpo e da consciência duas
expressões ou manifestações de uma outra instância: passamos assim da
fenomenologia à ontologia.
Não é essa a questão que nos interessa agora. Mas tiremos dela um pequeno
proveito: e se considerássemos a expressão "movimento de pensamento" não como
uma metáfora do movimento de um corpo físico no espaço, mas, ao invés, tanto o
primeiro como o segundo movimento, como resultados, agora num registo
ontológico, de um movimento de uma outra natureza, mais profundo e original (que
o movimento de uma coisa no espaço euclidiano)? Um movimento virtual não
determinado pela distância, mas que se actualiza no espaço e no tempo?
Compreenderíamos então que o pensamento move-se realmente, porque se
movia já no espaço virtual. Aí não se define por parâmetros físicos, porque estes são
virtualmente indeterminados. Nem é ele determinado por não sei que factores
"espirituais" ou "inteligíveis". Digamos que a impregnação do pensamento pelos
movimentos do corpo se opera num espaço virtual em que se actualizam ao mesmo
tempo os movimentos corporais e os movimentos de pensamento. Numa imagem
simples e simplificadora, diríamos que num estado de transe ou de grande
intensidade de criação artística, por exemplo, quando a consciência se deixa invadir
pelos movimentos do corpo, os dois elementos convergem, transformando-se, para o
espaço único em que a osmose se produzirá: é no mesmo processo de actualização do
movimento virtual em movimento do corpo no espaço e em movimento de
pensamento, que ocorre a impregnação da consciência pelo corpo.
É assim que não só a consciência devém corpo de consciência – em que os
movimentos da consciência sabem do seu espaço tão imediatamente como o corpo
sabe dos seus gestos (practognósias) – mas o próprio corpo se torna consciência,
capaz de captar os mais ínfimos, invisíveis e inconscientes movimentos dos outros
corpos. Movimentos de forças e de pequenas percepções.
A consciência do corpo comporta assim dois regimes, um que resulta da
transformação da consciência vigil intencional, e outro que decorre da mutação do
corpo que se torna uma espécie de órgão de captação das mais finas vibrações do
mundo.
O primeiro regime, que diz respeito propriamente à consciência, constitui o
lado obscuro da intencionalidade. Merleau-Ponty referia-se amiúde à componente
"irreflectida" da consciência, por onde ela "mergulhava" as suas raízes no corpo. O
que chamámos o avesso da intencionalidade (ou consciência do corpo) é de outra
ordem. Primeiro, porque não tem como referência a consciência reflexiva, não se
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enquanto forma das forças que emanam do conjunto das pequenas percepções. Nada
se vê, nada se ouve, "sente-se" qualquer coisa indeterminada, ilocalizável, que se
confunde com o sentir do corpo inteiro (que é um não-sentir), mas que anuncia um
sentido.
Como diz Deleuze, num belo texto sobre as pequenas percepções de Leibniz
(primeiro tipo): "Voltemos aos textos célebres de Leibniz sobre o murmúrio do mar.
Aí também, duas interpretações são possíveis. Ou dizemos que a apercepção do
barulho do conjunto é clara mas confusa (não distinta), porque as pequenas
percepções que o compõem não são elas próprias claras, são confusas. Ou dizemos
que as pequenas percepções são elas próprias distintas e obscuras (não claras):
distintas porque captando relações diferenciais e singularidades, obscuras porque não
ainda "distinguidas", não ainda diferenciadas – e essas singularidades, ao condensar-
se determinam um limiar de consciência em relação com o nosso corpo, como um
limiar de diferenciação, a partir do qual as pequenas percepções se actualizam..."6
Para Deleuze, as pequenas percepções assim caracterizadas definem um
"inconsciente diferencial". O texto citado não contém já, implícita, a noção de
contorno do silêncio?
O segundo aspecto do inconsciente do corpo refere-se, como dissemos, às
cartografias das intensidades do corpo. Podemos imaginar uma gama infinitamente
variada de presenças de um mesmo corpo quase imóvel no espaço, desde a ausência
quase total de intensidades no coma profundo, à histerização extrema de um orador
político como Hitler. Digamos que a presença das intensidades se mede pela
influência que ela provoca nos que a percepcionam. O carisma induz o contágio, e
este não é mais do que uma comunicação de inconscientes.
Um só corpo pode ser habitado por presenças sucessivas diferentes, como o
demonstra a experiência mais comum. Melhor: um só corpo pode desdobrar-se em
dois ou três outros corpos simultaneamente. Suponhamos que, subitamente, opero
uma ruptura entre o meu discurso e os meus gestos (ou todo o meu comportamento
corporal) – o que acontece em múltiplas situações, por exemplo, numa situação de
sedução: o discurso continua a um nível de que se desprende o corpo que começa a
"falar" toda uma outra linguagem, que vem ecoar no próprio plano verbal. A
linguagem oral torna-se também indicativa dos movimentos corporais cujas
estratégias de sedução agem directamente sobre o corpo a seduzir. Que acontece,
então? O corpo do outro é solicitado por uma espécie de presença espectral do corpo
do sedutor, presença densa, que acorda o desejo do outro, e que procura intensificá-lo
e captá-lo.
Chamemos a esta presença corpo espectral (que surge como uma variante do
corpo virtual). Não é o corpo físico que suportava o discurso antes da sedução, é um
outro corpo invisível, mas presente, que, de certo modo, vem tomar o lugar do corpo
físico, empírico, agora elidido. Este corpo espectral torna-se um foco de forças
poderosas de contágio. Imperceptível mas produzindo efeitos, inconsciente mas
conectando-se com, e agindo imediatamente sobre o inconsciente do auditor.
Há que considerar, pois, um inconsciente da linguagem que é ao mesmo
tempo um corpo inconsciente (espectral), e um inconsciente do corpo. É o corpo
espectral que Hitler produzia nos seus discursos, como corpo-sem-órgãos de
intensidades paranóicas em que se inscreviam e circulavam as intensidades de
milhões de alemães (nazis ou não) irresistivelmente atraídos pela sua potência
oratória. Este inconsciente da linguagem é altamente performativo – não no sentido
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sua energia, de tal maneira que visem, por sua vez, novos agenciamentos de
intensificação de forças, e assim por diante.
Os agenciamentos, além de modais e locais, podem fazer do corpo inteiro um
só dispositivo – como na dança, por exemplo no Contacto-Improvisação em que a
tendência vai no sentido de construir uma espécie de corpo único agenciando (e
agenciado por) dois corpos em movimento que, no entanto, se agenciam, cada um
por si, com o espaço ou com os outros corpos. Assim acontece, igualmente, no amor
ou na amizade.
Abrir o corpo é abrir o espaço de agenciamento de fluxos de intensidades,
para que estes fluam segundo as vias mais adequadas. Agenciar é tecer, serzir, atar,
anexar, conectar, forjar os dispositivos apropriados à intensificação das forças; numa
palavra, é dar consistência à osmose para que esta não se transforme numa sopa
psicótica. A criação de agenciamentos uma morfogénese.
5. A abertura do corpo-consciência define a zona, como espaço privilegiado
de agenciamentos. Eis o nosso ponto de partida para pensar os processos clínicos e
artísticos em recíproco devir: por exemplo, não é porque os agenciamentos artísticos
abrem o corpo que adquirem poderes terapêuticos?
Toda uma série de problemas, extremamente complexos, decorre desta
simples questão. Deixemo-la, pois, em suspenso, na esperança de ter contribuído
minimamente à inteligência dos temas em debate neste Simpósio.
José GIL
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Notas
1. V. Harold Searles, L'effort pour rendre fou, Gallimard, 1977; do mesmo: Le contre-transfert,
Gallimard, 1991. De Françoise Dolto, em particular os Séminaire de psychanalyse d'enfants, I, II,
III Seuil, 82-88. De Françoise Davoine, La folie Wittgenstein, EPEL, Paris,1992.
2. V. Pierre Fédida, Crise et contre-transfert, PUF, 1992: e ainda: P. Fédida e Jean Guyautat (ed)
Mémoires Transferts, Echo-Centurion, 1986.
3. V., em especial, Maria Torok et Nicolas Abraham, L'Écorce et le noyau, Flammarion, 1978; e
Didier Dumas, L'Ange et le Fantôme, Minuit, 1985.
4. V. Wladimir Granoff et Jean-Michel Rey, L'occulte, objet de Ia pensée freudienne, PUF, 1983.
5. V. J. Gil, A imagem-nua e as pequenas percepções, Relógio d'Água, Lisboa, 1996.
6. Gilles Deleuze, Différence et Répétition, PUF, pp. 275-276.
7. Os rolos mágicos terapêuticos da Etiópia, feitos de pele de animais sacrificados, destinados a curar
várias doenças, representavam múltiplas figuras à volta de um corpo humano crivado de olhos em
toda a superfície da pele. O doente devia olhar (e ser olhado pel') o rolo, para expulsar os
demónios, causa da doença.
8. Se a abertura é literal e não metafórica, é porque realmente começamos a conhecer certas
propriedades da pele, por exemplo: a pele é também um órgão auditivo, além de ser o do sentido
do tacto.
9. Não será esta a definição do "corpo vibrátil" de Suely Rolnik?
10. V. a noção de "profundidade" em Deleuze, Différence et Répétition, op. cit.