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COLEÇÃO OUTRAS — PALAVRAS

VOLUME 8

Coronavida:
pandemia,
cidade e cultura
urbana
GISELLE BEIGUELMAN

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Coronavida:
pandemia,
cidade e cultura
urbana
GISELLE BEIGUELMAN
SUMÁRIO

03 Nota de apresentação
Prólogo do confinamento:
05 O espaço público é a primeira vítima fatal
A pandemia das imagens:
09 A revolta das janelas (estéticas dos novos
ativismos)
14 Entre bibliotecas e lives
26 O pós-pandêmico é agora
36 Referências bibliográficas
40 Sobre a autora
NOTA DE APRESENTAÇÃO

Coronavida é o nome de uma série que escrevi para a


Revista seLecT entre março e abril deste ano. A série se
desdobrou em seminários, vídeos e em colaborações
feitas para a revista Piauí, Folha de S. Paulo, Rádio USP
e n-1 edições. A supressão do espaço público, os novos
formatos de ativismo, a pandemia das imagens, de lives
a memes, a vigilância molecular do capitalismo fofinho,
o novo normal, a precarização das relações sociais e o
trabalho remoto são alguns dos temas abordados.
A convite da Escola da Cidade, esse material foi
reunido e editado na forma de um texto contínuo. Nele
apresento alguns pontos de reflexão sobre os impactos
do coronavírus na cultura urbana e na nossa compreensão
de cidade.

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PRÓLOGO DO CONFINAMENTO

o espaço público é a primeira vítima fatal

Já é possível dividir a vida entre a.C e d.C? Antes do


coronavírus e depois do coronavírus? Ninguém sabe
quanto tempo viveremos no “regime de exceção” da
pandemia, se meses ou anos, conforme alertou Soumya
Swaminathan, cientista chefe da Organização Mundial
de Saúde (OMS). O fato é que o “corona” é pra lá de
contemporâneo, transformando em cotidiano o
panorama mais sombrio do futuro da cidade.
As medidas de precaução contra sua propagação
enunciam uma cultura urbana do isolamento, da ojeriza
ao contato físico, da consagração do trabalho remoto e
da condenação do idoso a elemento disfuncional da
atualidade. O espaço público, por isso, foi sua primeira
vítima fatal. Da categoria de lugar “perigoso”, das
multidões amotinadas e do encontro com o inesperado,
uma definição que nos assombra desde o século XIX,
passa à de contagioso. A globalização, e todo o espectro
de mobilidade que implicava, aparece como algoz de uma
humanidade fragilizada pelos fluxos do capital. É preciso
parar, ficar em casa, fechar fronteiras e abrir muitas

Rua da Consolação, São Paulo, abril de de 2020, 16h.


Foto da autora.

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torneiras… A promessa dos territórios porosos e da força
dos nômades na requalificação social é brutalmente
suprimida pela contenção, pelo emparedamento da
quarentena e do revival dos nacionalismos.
Os mais otimistas identificaram nesse cenário sinais
positivos para um slow down geral, que nos faria repensar
o modo de vida 24/7 do capitalismo tardio e os fins do
sono e da Sociedade do Cansaço, conforme analisaram
Jonathan Crary e Byung Chul-Hang. O argumento é
que o isolamento poderia funcionar como um chamado
para acalmar-se, usar o que a tecnologia das redes tem
de melhor e fazer tudo o que é possível a distância: dar
aulas, assisti-las, fazer compras, gerir galerias de arte,
administrar finanças (pessoais e alheias), conversar…
Afinal, nessa via de raciocínio, o confinamento não
tem nada de complicado. Basta abrir as janelas, manter
a distância de 1,5 metro entre as pessoas e deixar o ar
circular… E quem vive em pequenos cômodos, com
suas famílias e, muitas vezes, dividindo espaço com
várias outras pessoas e não tem janela? Faz o quê? Liga
o ar-condicionado?! Não me espantaria com mais uma
resposta à la “não tem pão, comam bolo” das autoridades
e especialistas. Obviamente que não entram nessa conta
as pessoas que não podem fazer o seu trabalho de forma
remota, como camelôs, faxineiras, trabalhadores da
construção civil, montadores de exposição, frilas mil e
o neo “lumpesinato digital” que abastece serviços de

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delivery como o Ifood e o Rappi.
Não discuto a necessidade das medidas de
distanciamento social estabelecidas. Elas são a única
alternativa para conter a pandemia. E estou mais que
ciente que o coronavírus não é exclusividade dos pobres.
Contudo, são os socialmente mais vulneráveis os que
sofrem mais.
Nos primeiros dias de confinamento não conseguia
deixar de pensar nos anos 1980, quando ingressei na
FFLCH-USP para cursar História. Todos na contagem
regressiva para o fim da Ditadura, embalados pela
Revolução Sexual de Wilheim Reich e, de repente, o
vírus HIV caiu como uma bomba nas nossas cabeças,
corpos e almas. Nunca mais fomos os mesmos. Era
difícil prever, naquele momento, as sequelas da
coronavida na cultura urbana. Ainda é. Contudo, a
despeito de todas as incertezas e dúvidas, é impossível
desconsiderar que o coronavírus comprova uma velha
tese aristotélica: o homem é um ser político. Seu lugar
é a pólis, a rua, a cidade. Não atrás da tela.

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Apenas Lute, frases de Mariana Lacerda e Joana Amador projetadas
por Paulinho Fluxus e Lucas Bambozzi na Ocupação 9 de julho.
São Paulo,12 de março de 2020.
Foto de Paulinho Fluxus.
A PANDEMIA DAS IMAGENS

a revolta das janelas (estéticas dos novos


ativismos)

No Brasil, o vírus ganhou contornos ideológicos e


políticos únicos, diante do negacionismo da presidência
da República sobre a gravidade da maior crise de saúde
da história. A resposta das ruas foi aqui também peculiar.
Na impossibilidade de estar nas calçadas, protestando,
um levante audiovisual transformou os janelaços em
difusa e heterogênea pandemia de imagens, por meio de
projeções nas fachadas e empenas. Insisto nessa
nomenclatura, janelaço, em detrimento de panelaço, para
marcar uma linha divisória com o tipo de protesto que
marcou o processo de impeachment da presidente Dilma.
Afinal, naquele momento, protestar pelas janelas era uma
opção de quem decidiu não ir às ruas. No contexto do
coronavírus, no entanto, protestar pela janela tornou-se
a única via possível. E de fato, por todo país, em diferentes
cidades, as janelas foram tomadas, reconfigurando o
espaço público, esvaziado pelo isolamento, a partir de
uma performance coletiva e anônima.
As insatisfações subiram, na forma de imagens,
literalmente pelas paredes, e a empena foi convertida
na nova ágora dos tempos da coronavida. O
confinamento deu vazão a outras formas de ativismo e

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as estéticas construídas através das janelas. Não se trata
de uma versão atualizada de The Rear Window (Janela
indiscreta, 1954), em que o protagonista, imobilizado
em uma cadeira de rodas, decifra o seu entorno pela
janela mediada pelas lentes da câmera. Se no filme de
Hitchcock o movimento era de introjeção (a realidade
entrava pela janela, através da câmera), o que aconteceu,
a partir do isolamento social, foi o oposto. A lente do
projetor extravasou o que está dentro para fora,
catapultando o desejo de mudança e a revolta.

bat-sinal

“É como um bat-sinal”, me disse a fotógrafa Ana Ottoni.


Nas histórias do lendário Homem-Morcego, esse facho
de luz era o que a polícia de Gotham City dispunha
para acionar o Batman e inspirou a projeção que celebrou
o segundo mês do Occupy Wall Street, em Nova York
nos idos de 2011. No Brasil da pandemia, o sinal
luminoso funciona como uma espécie de grito de socorro
e mecanismo de protesto.
É difícil localizar quando começa esse tipo de
ativismo, que combina a projeção em grande escala, no
espaço urbano, com ação política. Contudo, ela passa
certamente pela Homeless Projection, do artista Krzysztof
Wodiczko, realizada nos anos 1980. Nesse projeto,
discutido em profundidade por Rosalind Deutsche,

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Wodiczko abordou a situação dos desabrigados,
projetando nos monumentos da Union Square, em Nova
York, as imagens da população que seria erradicada da
praça pela reurbanização dessa área. A intervenção foi
repetida em outras ocasiões e lugares e outras obras do
artista poderiam ser citadas aqui. Mas não há intenção
fazer neste espaço uma arqueologia das projeções
ativistas, algo que ensaiei brevemente em outro texto.
No entanto, vale lembrar de algumas ações que
ocorreram no Brasil, como o projeto Conjunto vazio, do
coletivo Colaboratório, na Virada Cultural de 2013, e
de uma inesquecível “ocupação” da fachada interativa
do WZ Hotel, do arquiteto Guto Requena, durante os
protestos contra e a favor do impeachment de Dilma
Roussef, em 2015. O Conjunto vazio colocava em pauta
a disponibilidade de imóveis desocupados no Vale do
Anhangabaú, em São Paulo, que poderiam ser usados
para habitação. Utilizou, durante uma noite (a de uma
Virada Cultural, em maio de 2013) alguns canhões de
luz para marcar imóveis vazios no Centro da capital. O
projeto contava também com um site onde se podia
marcar imóveis passíveis de ser habitados na região
central da cidade. Até o fim de 2015, 20 imóveis foram
marcados no mapa pelos membros do Colaboratório e
pelo público.
No caso da “ocupação” da fachada do WZ Hotel,
o processo de intervenção foi diferente. Equipada com

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chapas metálicas, luzes, softwares e sensores, essa
fachada foi programada para interpretar a qualidade do
ar e fazer com que as cores das luzes se alterem em
resposta a essas condições. As tonalidades mais quentes,
como vermelho e laranja, indicam maior grau de
poluição. Já a predominância de cores frias, como azul
e verde, indica que a qualidade do ar local é boa. Um
aplicativo para celular permite aos passantes interagir
com as informações cromáticas e “tingir” o edifício de
uma só cor, utilizando comando de voz e associando
uma cor de luz disponível às suas próprias ondas sonoras.
No dia 20 de agosto de 2015, quando ocorreram as
manifestações em defesa dos direitos sociais e em
resposta às que pediam o impeachment da presidente
Dilma Rousseff, na cidade de São Paulo, a fachada do
WZ Hotel transformou-se no palco de uma verdadeira
batalha de luzes, disputando a ocupação dos territórios
simbólicos da cidade. Da janela de um apartamento
iniciou-se a movimentação de tingir o prédio de
vermelho, em sinal de apoio à ex-presidente. Poucos
minutos depois, de outra janela próxima, ele era
“pintado” de azul, a cor que representava seus oponentes.
Anonimamente, a fachada convertia-se em plataforma
de debate dentro de um jogo de apropriações que fazia
aparecerem os novos espaços urbanos.
Esses fatos constituem momentos importantes da
história da apropriação da cidade como interface.

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Ocorre, porém, que o ativismo político de tomada das
empenas pelas imagens, no contexto do coronavírus, é
radicalmente distinto. Em primeiro lugar porque envolve
ações simultâneas em várias cidades, feitas por artistas
de diferentes gerações. Contudo não é apenas o raio da
ação dessas projeções o que se sobressai aí, mas a
dimensão política que as intervenções assumem no
contexto do confinamento, com chamadas críticas à
atuação inconsequente do governo federal, e também
orientadas ao bem-estar social e para a importância de
cuidar do outro.
O mais importante, no entanto, é que são imagens
de infiltração, que reinventam os edifícios como arena
compartilhada da cidade, mobilizando o “espectador
emancipado” sobre o qual fala Jacques Rancière.
Distante dos clichês sobre a dominação das mídias,
nesse livro, Rancière destaca o espetáculo artístico como
agente de transformação. Por fazer pensar, demanda
trabalho de síntese, o que está na base de fomentar nossa
capacidade de formular ideias. É como se presos, em
casa, ressuscitássemos, via o espetáculo das projeções,
a janela de Baudelaire, ponto de vista privilegiado, para
ele, de se estar no mundo. Pelo menos, na coronavida,
vale a regra do poeta: “Nesse buraco negro ou luminoso
vive a vida, sonha a vida, sofre a vida”.

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entre bibliotecas e lives

Definitivamente, a pandemia da Covid-19 é também


uma pandemia das imagens, mas não de qualquer
imagem. Nela reinam os cenários domésticos, com
destaque para as bibliotecas. O vírus, ao nos afastar uns
dos outros, não só nos transformou em registros visuais
que se comunicam por meio das telas, como fez boa
parte da programação da tevê – o formato de vídeo mais
comum no cotidiano – virar algo um tanto distinto do
que conhecíamos. Com o isolamento social, a televisão
nos lançou no interior das casas de uma extensa galeria
de pessoas, cujo universo particular nos era até então
inacessível: médicos, políticos, economistas, jornalistas,
psicólogos, atores e uma miríade de profissionais
especializados, convocados pelos programas para
comentar e explicar as dinâmicas do novo coronavírus
e as suas consequências políticas, econômicas, sociais e
culturais. É possível fazer uma pequena etnografia da
imagem da intimidade no Brasil de hoje observando o
que se passa nas telas, nas bordas da coronavida.
Médicos, por exemplo, optam muitas vezes por
transmitir suas imagens em ambientes neutros, de
paredes brancas e armários embutidos que parecem
altíssimos, enquadrados pessimamente pela câmera, o
que faz do espaço um trapézio medonho. Intelectuais e
acadêmicos das ciências humanas gravam em geral na

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frente de seus livros, muito embora alguns cariocas, que
têm o privilégio de viver em frente à praia, prefiram se
posicionar na sala de estar, próximos às janelas. Já os
cientistas falam entre livros e fichários empilhados no
escritório, como se estivessem em plena pesquisa,
vasculhando referências e confrontando pesquisas e
journals.
Políticos têm padrões mais variados, mas
posicionam-se com frequência diante da câmera como
se estivessem em trânsito, prontos para escapar. Suas
imagens em vídeo sugerem que estão sempre colados
ao imediatismo dos fatos e, ao mesmo tempo, prontos
para virar as costas e deixar tudo para trás. Entre eles,
há inclusive os que preferem se manifestar em pé e num
corredor – um ponto de passagem na casa, afinal. Ou
os que falam num lugar com o qual não têm vínculos,
como o apartamento de um flat ou hotel, espaço de
transitoriedade por excelência. Foi o caso de um político
que vi num debate televisivo, em cujo quarto via-se um
megamonitor de tevê e a cama totalmente desarrumada.
Economistas sentam-se em cadeiras altas, como se
presidissem o mundo. Nos seus “lugares de entrevista”
também são comuns os livros, com grande quantidade
de edições encadernadas com capa dura, de cores
variadas e letrinhas douradas na lombada. Não são raras
em suas casas as estantes de tipo armário, com portas
envidraçadas – é difícil não associar essa redoma com

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a ideia de preservação do patrimônio. É exceção, mas
pode ocorrer que o economista quase não tenha livros
na estante, como numa transmissão do ministro da
Economia, Paulo Guedes. No Twitter, uma pessoa
chegou a sugerir que se fizesse uma campanha de doação
de livros para o ministro, que costuma gravar suas
entrevistas na frente de um conjunto de prateleiras
praticamente vazias, com alguns poucos enfeites.
A tendência das pessoas que aparecem diante de
um cenário com estante de livros é tão forte que gerou
um dos melhores memes da temporada: “Vendo fundos
de tela com padrão de biblioteca para usar em lives.” O
que serviu de gancho para um espanhol esperto montar
um negócio fictício, oferecendo na Amazon estantes
cenográficas para adornar videoconferências.
As bibliotecas são parte essencial do que
descobrimos nesse “corpo a corpo” com a imagem dos
interiores da casa das celebridades e súbitas celebridades
televisivas. Toda biblioteca pessoal é uma espécie de
“enciclopédia mágica” sobre seu proprietário, como
aprendemos com Walter Benjamin. Ao contemplar sua
biblioteca, o escritor Alberto Manguel descreveu o
particular prazer de saber que está rodeado do
“inventário da minha vida”. Conscientemente ou não,
o personagem que posa na frente de seus livros escolhe
entregar ao espectador uma chave de acesso à leitura
que ele faz do mundo.

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Todos os ideais de um segmento da classe média,
o dos profissionais liberais, aparecem nesses cenários
domésticos, organizados em torno de peças que remetem
a certo status educacional e cultural. Por isso não são
fortuitos nem as estantes de livros como “objetos de
cena” (mesmo que sejam apenas livros de coleção, como
no caso de uma jornalista), nem o posicionamento da
webcam, de modo a “compor” a imagem da pessoa com
os quadros e outros objetos de arte da decoração.
É o arremate da utopia modernista, como definiu,
em uma banca da qual participei, o crítico e professor
Mauricio Lissovsky: o ideal do conforto para todos se
traduz na defesa (e na crença) de que “no futuro, todos
terão direito a uma poltrona”. O novo coronavírus
atualizou a sentença para: “No futuro, eu terei direito
à minha poltrona, meus livros e aspirador de pó.”
Como os moradores de comunidades e periferias
quase não são chamados para comentar a grave situação
em que se encontram, a imagem da rotina do isolamento
se confunde na televisão com os ideais de uma classe
social. Os poucos registros que contradizem essa retórica
visual aparecem no jornalismo independente. Exemplos
são o programa Tem Alguém em Casa?, do jornalista
Bruno Torturra, e a série História do Dia, do Movimento
Sem-Teto do Centro (MSTC), ambos transmitidos no
Instagram, via ferramenta IGTV e disponibilizados no
YouTube. No primeiro, várias entrevistas comentam a

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situação das favelas e dos desabrigados. No segundo,
que mostra depoimentos concedidos ao MSTC, a
preocupação é relatar o impacto da pandemia nos
moradores de ocupações. As pessoas falam na cozinha,
no quarto, entre beliches, no meio da roupa pendurada
sobre os móveis, carregando crianças no colo. Não há
paredes que isolem um cômodo do outro, o que põe em
questão algumas das prerrogativas dos cuidados para
conter a propagação da Covid-19.
Nos dois programas, o que vemos é a realidade do
desemprego, das dificuldades de acesso ao auxílio
emergencial, do abandono, da violência das ações
policiais, enfim, tudo que escapa do quadro mais ou
menos bem montado da tranquilidade dos lares padrão
dos apresentadores das grandes emissoras e de seus
convidados.
A incapacidade (ou falta de determinação?) dos
noticiosos das redes de tevê para dar visibilidade às
pessoas das periferias é desconcertante. Talvez isso ocorra
porque implicaria, afinal, uma tomada de posição a
respeito das políticas públicas de fato emergenciais. Na
bolha do #fiqueemcasa em que os meios de comunicação
operam, tal recorte definitivamente não cabe.
Paradoxalmente, a transmissão em si, com precária
qualidade visual e sonora, não corresponde em nada ao
intuito de arrumação que prevalece nas grandes
emissoras. As oscilações frequentes da rede acabaram

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me trazendo um upgrade incrível na capacidade de
entender as falas mal transmitidas nos vídeos. Hoje, sou
capaz de compreender frases completas a partir de
alguns poucos vocábulos tossidos no gargalo das
conexões e imaginar movimentos que teriam ocorrido
no auge de um congelamento súbito da tela.
Esse descompasso se deve à sobrecarga das redes.
Como o consumo de Internet disparou, algumas
operadoras manifestaram, ainda no início do
confinamento, temores de que a demanda, muito maior
do que a infraestrutura disponível permitia oferecer ao
consumidor, levasse à falência do sistema. Com isso,
vários serviços, como a Netflix e o YouTube, tomado
pelas lives, reduziram a resolução das transmissões, a
fim de evitar a sobrecarga nos seus servidores.
Estratégia usada para preencher a lacuna deixada
pela suspensão dos shows, peças de teatro e filmes nas
salas de cinema, a live tornou-se também o “palco”
preferencial de debates, no esforço que fazem instituições
culturais, galerias e universidades para ficar em contato
com o público. São indiscutivelmente um dos fenômenos
da quarentena. Não menos relevante é seu uso para a
exibição de performances artísticas e culinárias de
“instagramers” variados. Todos querem aparecer
“naturalmente” em casa, com filhos, maridos, mulheres,
pets, ou então sozinhos, ao lado de suas plantas, buscando
transmitir certo despojamento, o que não deixa de

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provocar forte estranheza por causa da fórmula
heterodoxa que combina confidência e exibicionismo.
Em paralelo, cresceram exponencialmente os
adeptos do Zoom, o software que se tornou mania. De
plataforma independente para videoconferências, criada
por uma pequena empresa de San José (Califórnia), o
Zoom transformou-se na rede social da pandemia,
registrando um aumento vertiginoso de usuários, que
saltaram de 10 milhões, em dezembro de 2019, para
200 milhões, em abril de 2020. Utilizado para bate-
papos, aulas e reuniões, evidencia que o novo coronavírus
mudou a forma como nos conectamos uns com os outros,
via Internet, colocando definitivamente a webcam no
meio da sala. Da atriz Meryl Streep a membros do
governo brasileiro, estamos todos mergulhados em uma
experiência global via streaming audiovisual.
No bojo desse processo, ressuscitamos a Internet
dos anos 1990. A febre das “visitas virtuais”, a compulsão
pelos “videochats” (travestidas agora de reuniões online
no Zoom e afins) e a glória das webcams são alguns dos
sintomas. A principal diferença é que nos anos 1990
nada funcionava. Por isso, não sabíamos como tudo isso
era chatíssimo e venerávamos essas benesses do Universo
Paralelo.
Universo Paralelo resgatei das catacumbas da
Internet. Mas, na onda de retrocessos políticos e
comportamentais que estamos vivendo mundo afora (e

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adentro), não seria de estranhar se, em algum momento,
voltássemos a falar “internautas”, “telepresença” e
“ciberespaço”. A overdose de virtualidades recriadas
chegou a tal ponto que o perfil @nazareamarga resumiu
a angústia geral em uma frase: “dá medo de ir na cozinha
e encontrar uma live”.
O problema se acirra no âmbito da arte. Com a
pandemia, descobrimos que museus, galerias e instituições
culturais estão na idade da pedra da Internet. Atropelados
pela pandemia e sem conteúdo artístico e cultural criado
para a web, aderiram aos únicos campos da vida on-line
que conhecem: redes sociais, e-commerce e saídas de
emergência apontadas para o Google Arts Institute.
Mas o isolamento poderia ser um bom pretexto para
revisitar ou descobrir quem não ficou na era do byte
lascado, começando pelas poucas coleções de Net Art,
como o Whitney Art Port que comissiona obras desde
2001, o Netescópio, do MEIAC (espanhol) e a Net Art
Anthology do Rhizome.org. Entre os brasileiros, enquanto
o único museu nacional com uma trajetória consistente
no campo da artemídia, o MAC-USP, não disponibiliza
na Internet sua coleção “web specific” e de videoarte
(trabalho em processo), uma alternativa é o site Web Arte
no Brasil, mantido há 20 anos por Fabio Fon, e o aarea,
que comissiona obras de Net Art a artistas que não têm
produções anteriores relacionadas ao meio on-line.
Importante, no entanto, sublinhar que a aridez das

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instituições culturais não se resume ao vazio de conteúdo
artístico. Isso fica patente quando se observa de que forma
laboratórios de centros de excelência, nada digitalmente
nativos, vêm explorando a Internet como dimensão
ampliada de seu patrimônio, como a Biblioteca Pública
de Nova York e o Museu do Prado. No Brasil, a ação mais
sintonizada com esses processos é a integração do Museu
do Ipiranga ao GLAM (sigla para Galleries Libraries,
Archives, and Museums) da Wikipedia, que visa a
expansão do seu acervo em meio digital, contemplando
imagens e verbetes críticos e de caracterização das obras.
Nenhuma dessas estratégias brota de um dia para o
outro. A compreensão da Internet para além de um
repositório de links e o reconhecimento de sua produção
artística são fatores determinantes, mas investimento em
pesquisa e criação são decisivos. Esse é, sem dúvida, o
único antídoto eficaz ao tsunami das lives e visitas virtuais.
Para além do gosto de passado mal resolvido que
as visitas virtuais trazem, o ponto “alto” desse inusitado
revival da Internet dos anos 1990 são as “linguagens”
das webcams. Dos telejornais às reuniões, essas câmeras
tornaram-se dominantes no espectro midiático de
ponta a ponta. À parte da intimidade forçada pela
telequarentena, com todos vendo a casa de todos, numa
cultura naturalizada da vigilância, as estéticas da
câmera do computador e do celular criaram todo um
repertório audiovisual. Entrevistas dos grandes serviços

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de mídia são um ótimo caso para pensar o fenômeno.
Por motivos óbvios, a quarentena, transformou esse
expediente em padrão, representando um verdadeiro
repositório do léxico da câmera mal posicionada. No
seu conjunto, identifiquei alguns procedimentos que
anoto aqui:

neo-pós-expressionimo alemão

Um estilo sui generis, mas muito comum nos tempos de


coronavida. Com um simples notebook e sua tela
inclinada, gera distorções assombrosas no espaço. As
paredes anunciam a iminência de um desabamento,
convergindo assustadoramente para o centro da cena.
Sustentam uma arquitetura em formato trapézio, de
modo que o teto aparece como se estivesse à beira de
um estrangulamento e a base (o solo) se mantém mais
ou menos no lugar.

filhos bastardos de orson welles

Muito popular entre os mais criativos, demanda um


banquinho onde se assenta o computador ou o celular.
De frente para a câmera e de corpo inteiro, a figura
aparece tipo um gigantesco triângulo humano, gravado
de baixo para cima dominando o mundo como se fosse
um verdadeiro Cidadão Kane.

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sem pescoço

Essa é uma linguagem muito complexa. Apesar de


extremamente popular, não consegui identificar como
é possível criar, ao vivo, o incrível efeito de suprimir o
pescoço com o uso de uma reles webcam. O fato é que
com o notebook aberto em um ângulo “x” e com o rosto
bem próximo à câmera, o pescoço desaparece.
No auge da minha inquietação, lembrei-me de um
filme dos anos 1980, Sexo, mentiras e videotape, de Steven
Soderbergh (Sex, lies and videotapes, 1989), cujas sequências
acontecem inteiramente entre quatro paredes. O
protagonista é um homem que sofre de impotência e
entrevista, por meio de vídeo, mulheres que falam de sua
vida sexual. Nas várias vezes que assisti a esse filme, eu
me atentava, sobretudo, para seu caráter de “anti-road
movie” e de libelo da pós-sexualidade, como analisou
Nelson Brissac Peixoto em um ensaio. Não havia me dado
conta que Sexo, mentiras e videotape foi tristemente
premonitório a respeito de algo que só agora estamos
vivendo plenamente: a experiência de ter acesso à
intimidade do outro por meio da imagem. Com a
particularidade, no caso brasileiro, de evidenciar o abismo
social e cultural em que nos metemos para além de todas
as telas.

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Av. Brigadeiro Faria Lima, São Paulo, março de 2020.
Foto da autora.
O PÓS-PANDÊMICO É AGORA

A Covid-19 coloca em pauta uma nova biopolítica, que


transforma a vigilância em um procedimento poroso e
adentra os corpos sem tocá-los. Seu motor, o mecanismo
que coloca essa vigilância em funcionamento, é a
administração do medo, a partir da combinação do
discurso da segurança pública com o da saúde pública.
Sua ef iciência depende da convergência entre
rastreabilidade e identidade, confluindo, em situações
extremas como a do coronavírus, para uma outra
hierarquia social entre os corpos imóveis e os móveis,
entre quem é visível e quem é invisível perante o Estado
e pelos algoritmos corporativos.
São os que podem parar, ficar em casa, os imóveis,
os que são rastreáveis, computáveis, vigiáveis e curáveis.
No contexto “laboratorial” que a coronavida impôs, no
qual a cumplicidade com o monitoramento é também
uma prerrogativa de sobrevivência, o não-rastreado é
aquele para o qual o Estado já havia voltado as costas.
Na espiral da “coronavigilância”, o sujeito móvel é aquele
invisível visível que nossa violência social teima em não
enxergar.
A ação governamental do Estado de São Paulo, por
exemplo, se apoia em um sistema que combina dados
estatísticos e a geolocalização de telefones celulares, que
permite identificar quantas pessoas estão cumprindo as

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recomendações de isolamento social. Essa não é uma
prática isolada no Brasil, mas presente no mundo todo.
Se é certo que tais processos de monitoramento não são
exclusivos das políticas públicas de combate ao
coronavírus, a propulsão da pandemia popularizou a
discussão sobre a dimensão e alcance individual da
digitalização de dados.
Tudo se passa como se estivéssemos vivendo no
filme Batman: o Cavaleiro das Trevas (2008), no qual
aparecia um painel de controle que monitorava Gotham
City inteira a partir dos sinais de celulares de seus
habitantes. Os aparelhos funcionavam como
microsonares e a emissão de seus sinais permitia inferir
uma quantidade tão monstruosa de registros, que o
sistema de controle devolvia, como resultado do
rastreamento, imagens 3D da paisagem e dos habitantes
de Gotham.
A tecnologia “testada” no Cavaleiro das Trevas não
está ainda disponível no nosso cotidiano. Contudo, os
avanços das formas de controle via dados provenientes
das redes, especialmente pelo uso do celular, indicam
que entramos de cabeça na era da Sociedade de Controle.
Nesse ensaio, Deleuze discute a emergência de uma
forma de vigilância distribuída, que relativiza o modelo
de controle panóptico, conceituado por Michel Foucault.
A esse sistema, que vai encontrar seu símbolo mais bem-
acabado no Big Brother orwelliano, superpõem-se

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processos de rastreamento que operam a partir de um
mundo invisível de códigos, de senhas, de fluxos de
dados migrantes entre bases computadorizadas de
algumas poucas corporações de tecnologia. São esses
dados, combinados às estatísticas dos sistemas públicos
de saúde, que gerenciam os movimentos da pandemia.
Eles alimentam desde as plataformas de monitoramento
do poder público a aplicativos como o Private Kit Save
Paths, desenvolvido no MIT Lab, e o israelense
HaMagen, entre vários outros.
Mas a esfera da vigilância que estamos vivendo hoje,
no âmago da coronavida, não se resume somente à
invisibilidade do controle dos minibrothers que habitam
em nossos bolsos e bolsas. Ela é uma vigilância
molecular, que se introjeta no corpo, escaneando sua
f isiologia, como os termômetros com sensores
infravermelhos que se tornaram icônicos da pandemia,
e armazena esses dados em servidores sobre os quais
não temos o mínimo controle ou conhecimento. Isso
faz com que a pergunta hoje não seja mais se seus dados
serão coletados, mas sim por quem, de que forma e os
possíveis destinos desses dados.
Ou será que é possível abstrair que empresas
privadas de tecnologia, do porte da Apple e do Google,
estão investindo pesadamente em sistemas de
rastreamento de contato (contact-tracing), orientados
para alertar os usuários da possível aproximação de uma

‐ 28 ‐
pessoa contaminada pelo coronavírus? E antes que se
diga que se trata de operação voltada a “apenas” quem
possui os celulares com o sistema operacional dessas
empresas, vale lembrar que estamos falando de 3 bilhões
de pessoas, ou seja, mais de um terço da população
mundial que é usuária dos aparelhos dessas duas
companhias.
É importante ter em mente também que os registros
feitos pelos aplicativos utilizados por vários governos,
e também distribuídos de forma independente na
Internet, podem capturar muito mais dados que o
deslocamento no espaço. Podem registrar a temperatura,
a pressão e a velocidade do andar, o que nos leva a uma
forma de vigilância que é, com destacou Yuval Harari,
subcutânea. E é esse aspecto indolor e invisível o que
garante à vigilância algorítmica passar desapercebida
como se não existisse. Nada mais coerente com as formas
de violência do capitalismo fofinho de nossa época.
Desde meados dos anos 1990 são formuladas
definições de diferentes matizes ideológicos sobre o
capitalismo. Capitalismo informacional (Castells),
capitalismo cognitivo (Hardt e Negri), capitalismo
criativo (Bill Gates) são algumas delas. A essas
definições acrescento uma: capitalismo fofinho, um
regime que celebra, por meio de ícones gordinhos e
arredondados, um mundo cor-de-rosa e azul-celeste,
que se expressa a partir de onomatopeias, likes e

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corações, propondo a visão de um mundo em que nada
machuca e todos são amigos.
Nesse contexto se consolida o que Claire Birchall
denominou de regime de shareveillance (vigilanciamento
em tradução livre), um combinado entre vigilância e
compartilhamento. Somos monitorados a partir dos
dados que doamos, de forma consciente ou inconsciente,
num arco heterogêneo e complexo, que vai das redes
sociais à emissão de documentos, como passaportes e
RGs com chip.
É isso que faz da vigilância, no contexto de
digitalização da cultura em que vivemos, uma prática
não necessariamente coercitiva. Ela pode operar, e de
fato opera, de forma naturalizada, pela necessidade de
se fazer parte do todo, de ser visível, e também de forma
compulsória, pela necessidade de ser socialmente
computável. Você pode optar em integrar-se, ou não,
às redes sociais (ainda que isso implique a sua
invisibilidade). Mas essa opção é mais difícil quando se
trata de uma pandemia do porte da do coronavírus, em
que o compartilhamento dos dados pode significar a
proteção da sua saúde.
Esse formato emergente de vigilância ocorre no
âmbito de novas práticas de violência social. Uma
violência algorítmica que põe a todos no cálculo das
vítimas do coronavírus. Ela não suprime a violência que
se volta às vítimas da necropolítica (os mais pobres, as

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mulheres, os negros, os imigrantes, os indígenas). No
entanto, cria também novas formas de brutalidade,
dilacerando ainda mais as relações de trabalho pela
normalização do precário.
Há quem diga que a coranavida poderia ser pior.
Poderia não ter memes, a dádiva da Internet no tempo
das redes sociais. É fato que quem vai contar a história
dessa nossa coronavida são os memes. Difícil lembrar
todas as surpresas que vivemos, da adaptação ao
isolamento social às sandices do presidente Bolsonaro,
e foram realmente os memes os que fizeram a crônica
do coronavírus. É nesse bem-humorado jornalismo à
queima-roupa que o cotidiano, os novos costumes e a
intensidade dos revezes políticos do país foram e são
registrados. E é na “Memeflix” da coronavida que mais
rapidamente se põe em questão o cotidiano político
brasileiro e as abordagens românticas do teletrabalho.
Sem se dobrar ao discurso sedutor sobre o conforto
de fazer tudo sem sair de casa, os memes dão destaque
ao aspecto mais perverso do trabalho remoto, revelando
que a ficção do Home Office é, na prática, a conversão
da casa em office home.
Tinha razão o artista Bruno Moreschi, quando me
dizia que o coronavírus iria transformar a todos em
turkers. Turkers é o nome (bastante preconceituoso,
diga-se) dos trabalhadores que operam nas primeiras
etapas dos processos de desenvolvimento de Inteligências

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Artificiais. É a eles que se destina a maçante tarefa de
fazer a identificação e classificação dos elementos que
integrarão os bancos de dados sobre os quais se
desenvolverão as programações avançadas de
aprendizado de máquina.
Eles prestam serviços em plataformas como
Amazon Mechanical Turk (Mturk), de onde vem a vil
alcunha, um dos principais sites de ofertas desse tipo
de trabalho. Para se ter uma ideia, cerca de meio milhão
de pessoas trabalham como prestadoras de serviço para
Mturk a custos ínfimos. Dispensável dizer que como
os motoristas da Uber, os turkers, o ícone do teletrabalho,
são induzidos a uma carga horária abusiva na tentativa
de compor a sua renda mensal. Esse modelo das galés
da Internet expande-se agora na coronavida para uma
parcela significativa de profissionais liberais e de criação,
e faz parte do pacote do “novo normal” pós-pandêmico,
penalizando ainda mais os que dele não podem
participar.
É difícil ainda conjeturar sobre como será o
cotidiano depois da súbita interrupção na mobilidade
determinada pela Covid-19. Contudo, à medida que
passam a ser corriqueiros os anúncios de mobiliário de
escritórios adequados para o distanciamento social,
modelos fashionistas de máscaras, projetos de design
para sinalização de afastamento entre os corpos, vai
ficando claro que pendemos para um estado de

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“individualismo conectado”. Ele remonta ao início dos
anos 2000 e é simultâneo à popularização da web 2.0,
um sistema que tem na facilidade do uso a razão do seu
sucesso. Mas é também o que converteu a Internet num
espaço povoado de “cidadelas” fortificadas, como definiu
Martin Warnke, onde as pessoas vivem dentro de alguns
poucos serviços populares dominantes. Qualquer
semelhança com o cotidiano da coronavida não é mera
coincidência.
É nessa arquitetura de informação que se consolida
a cultura do colaborativo e do compartilhado, tão
incensada pelas majors de tecnologia, da qual qualquer
um pode tomar parte, desde que de acordo com as regras
prescritas pelos algoritmos previamente programados.
Espaços de coworking são suas expressões na cultura
urbana, incidindo sobre a lógica dos jardins murados e
das bolhas das redes sociais e aplicativos, onde estamos
sempre sozinhos, porém conectados. Em harmonia com
o mantra de todos têm o direito a ser patrão de si mesmo,
impera aí a vulnerabilidade ditada pela ausência dos
direitos trabalhistas e de vínculos, fundamentais não
apenas no campo dos afetos, mas também para a própria
possibilidade de subversão.
A vida se uberiza e o darwinismo social dos dados,
que já tomou as redes, se impõe ao cotidiano da cidade.
Vencem sempre os mais fortes, os mais “bem avaliados”,
os mais acessados, os que se destacam na distopia bem-

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comportada do capitalismo fofinho. Profissionais de
RH celebram esse cenário, chamando a atenção para a
capacidade de “eventos” como o coronavírus de
“antecipar o futuro” da preponderância do trabalho
remoto. Uma de suas vantagens, de acordo com os
analistas, é a valorização das metas em detrimento do
cumprimento de horas de trabalho, muito embora
reconheçam que, em nome do valor da produtividade,
trabalha-se muito mais e as mulheres são extremamente
penalizadas pela superposição do ambiente de trabalho
às demandas familiares.
Encastelados na bolha doméstica e presos à tela,
vamos nos aproximando de uma visão de cidade que
incorpora noções perversas consolidadas na Web 2.0,
como a que aproxima as de público e grátis. Da mesma
forma que não se paga para entrar no Facebook, a
entrada nos shoppings centers também é gratuita. O
que não quer dizer que são lugares públicos. Mas é essa
cidade shopping center, de ruas vazias e pessoas sem
rosto que tende a vingar, como um dos legados do futuro
pós-pandêmico.
Espécie de assombração da “cidade genérica”
conceituada por Rem Koolhaas, na qual tudo migra
para o mundo on-line, a coronacity é uma “cidade
sedada”, feita para ser observada de um ponto de vista
sedentário. Mais excludente e mais monitorada, ela dá
corpo a uma sociedade que se divide entre os sucateados

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pelo trabalho remoto, o lumpesinato digital dos
deliveries, os subtrabalhadores turkerizados e milhares
de milhões de desabrigados.
Viagens, transportes públicos e aviões, tudo isso
será revisto e redimensionado ao fim da quarentena do
“coronga”. A multidão é contagiosa e celebrações
coletivas, como o carnaval, a parada LGBTQ+, os shows
de estádio e os espaços coletivos, como os cinemas, os
museus, os teatros e as escolas, não têm lugar na cultura
urbana que se anuncia com o novo normal. Ponderando
sobre o futuro pós-pandêmico, Bruno Latour disse que
“a última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que
fizemos antes”. Mas, talvez o futuro da pandemia já
tenha se tornado presente. E a primeira coisa a fazer
seria não deixar que a coronavida se torne o nosso
depois.

‐ 35 ‐
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‐ 39 ‐
SOBRE A AUTORA

GISELLE BEIGUELMAN é artista e professora Livre-Docente


da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo (FAU-USP). Pesquisa preservação de arte
digital, arte e ativismo na cidade em rede e as estéticas
da memória no século 21. Desenvolve projetos de
intervenções artísticas no espaço público e com mídias
digitais. É autora de Memória da amnésia: políticas do
esquecimento (Edições Sesc, 2019) e de vários livros e
artigos sobre o nomadismo contemporâneo e as práticas
da cultura digital. Foi coordenadora do curso de Design
da FAUUSP de 2013 a 2015, onde leciona desde 2011.
Entre seus projetos recentes destacam-se Memória da
amnésia (2015), Odiolândia (2017) e Monumento Nenhum
(2019). É membro do Laboratório para OUTROS
Urbanismos (FAUUSP) e do Interdisciplinary Laboratory
Image Knowledge da Humboldt-Universität zu Berlin.
Suas obras artísticas integram acervos de museus no Brasil
e no exterior, como ZKM (Alemanha), Jewish Museum
Berlin, MAC-USP, MAR (Rio de Janeiro) e Pinacoteca
de São Paulo. Entre outros prêmios, recebeu o Prêmio
ABCA 2016 (Associação Brasileira dos Críticos de Arte),
categoria Destaque. Em 2014, integrou o grupo de 10
net artistas internacionais convidados pelo The Webby
Awards para participar da exposição comemorativa dos
25 anos da WWW (The Web at 25). É colunista da Rádio
USP e da Revista Zum. Site pessoal: desvirtual.com.

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COLEÇÃO OUTRAS PALAVRAS

Viver a cidade, transformar a vida urbana


ANTONIO RISÉRIO

Inventar outros espaços, criar subjetividades libertárias


MARGARETH RAGO

Conciliação, regressão e cidade


TALES AB’SABER

Carolina Maria de Jesus: literatura e cidade em dissenso


FERNANDA R. MIRANDA

Rizoma temporal
PETER PÁL PELBART

Da metrópole à aldeia: um trajeto de Antropologia Urbana


JOSÉ GUILHERME C. MAGNANI

História natural das cidades


PEDRO PAULO PIMENTA

Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbana


GISELLE BEIGUELMAN
autora GISELLE BEIGUELMAN
revisão CAROU OLIVEIRA
projeto gráfico TRÊS DESIGN
diagramação EDITORA ESCOLA DA CIDADE
foto da contracapa JORGE LEPESTEUR
agradecimentos PAULA ALZUGARAY, GUILHERME
WISNIK, FABIO VALENTIM, MARINA RAGO MOREIRA,
BAÚ/ ESCOLA DA CIDADE, ALCINO LEITE NETO, SILAS
MARTÍ, LEILA KYOMURA, PETER PÁL PELBART, NILCE
ARAVECCHIA

COLEÇÃO OUTRAS PALAVRAS


coordenação FABIO VALENTIM E GUILHERME WISNIK

ASSOCIAÇÃO ESCOLA DA CIDADE


FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
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EDITORA ESCOLA DA CIDADE


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FERNANDA TEIXEIRA, LUISA MARINHO E LÚMINA KIKUCHI
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

BEIGUELMAN, Giselle.
Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbana / Giselle Beiguelman.
– São Paulo: ECidade, 2020.
44 p.; Digital. – (Outras palavras; v.8).

ISBN: 978-65-86368-10-9

1. Arte. 2. Covid 19. 3. Cultura Urbana. 4. Arte Urbana. 5.


Tecnologia. 6. Vigilância. I. Título. II. Série.

CDD 709

Catalogação elaborada por Edina R. F. Assis – CRB 8/6900

fontes Adobe Caslon Pro e Glacial Indifference

Edição digital distribuída gratuitamente.


São Paulo, julho de 2020.
GISELLE BEIGUELMAN

Coronavida discute os impacto da Covid-19 na


cultura urbana contemporânea e na nossa
compreensão de cidade. A supressão do espaço
público, os novos formatos de ativismo, a
pandemia das imagens, de lives a memes, a
vigilância molecular do novo normal, a
precarização das relações sociais e o trabalho
remoto são alguns dos temas abordados.

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