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ANNATERESA FABRIS

Sem título, 1939


Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo

Fotomontagem e surrealismo:

Jorge
ANNATERESA FABRIS
é professora do Programa
de Pós-graduação em
Artes da ECA-USP e autora
de, entre outros, Cândido
Portinari (Edusp).

Investigação realizada com bolsa


de Produtividade em Pesquisa
CNPq.

de Lima REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 143-151, setembro/novembro 2002 143
E
m junho de 1943, o jornal A ção de uma das imagens do conjunto, colo-
Notícia dedica um artigo ao cada sob o signo da pornografia, pretende,
livro de fotomontagens A Pin- antes de tudo, desmoralizar a figura de Jorge
tura em Pânico, que o poeta de Lima. O retrato traçado por Ribas é com-
Jorge de Lima acabava de pleto, pois nele são evidenciados os dois
publicar. O tom negativo do aspectos centrais da personalidade do artis-
artigo de Tristão Ribas ta: sua atividade profissional (médico e pro-
explicita-se desde o título – fessor de Literatura Brasileira da Universi-
“Fotomontagem de Imorali- dade do Brasil) e seu apego a uma “forma
dades” –, abarcando tanto a dramática e moderna de Catolicismo” (2),
técnica, considerada “uma besteira à custa que transparecia nos poemas de Tempo e
dos outros, sem nenhum mérito”, quanto o Eternidade (1935, escrito em colaboração
significado da única imagem analisada num com Murilo Mendes) e A Túnica Inconsútil
conjunto bem maior (41 produções) (1). (1938). Escreve, de fato, Ribas:
Se a trivialização da fotomontagem, re-
duzida a uma técnica primária e ao alcance “Criaturas que deviam levar a vida a sério,
de qualquer criança, responde ao objetivo exercendo profissões que exigem espiritua-
preciso de denegrir a arte moderna, a avalia- lidade e aparência decente, gastam o tempo
com a expansão de letras e artes licencio-
sas, contribuindo direta ou indiretamente
para a corrupção dos costumes e do gosto
da humanidade. E o pior é que muitos dos
Sem título,
que se dedicam a esse gênero pretendem
1939 realizar a sua obra nefasta à sombra tutelar
do catolicismo, como se fosse possível a
Igreja patrocinar essas monstruosidades
contra a beleza e contra a moral” (3).

O requisitório de Ribas dá a impressão


de ser uma resposta a distância ao artigo
que Mário de Andrade dedicara às fotomon-
tagens de Lima em 1939. Naquele texto, a
descrição da simplicidade do processo téc-
nico era paralela ao papel conferido à ima-
ginação criadora, à qual caberia apanhar
“com rapidez na coleção das fotografias
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recortadas, os documentos capazes de se


coadunar num todo fantástico e sugestivo”.
“Processo de expressão lírica”, a
fotomontagem permitia ainda uma revela-
ção do inconsciente, pois fazia vir à tona as
tendências recônditas, os instintos e os de-
sejos recalcados, os ideais e a cultura de
uma pessoa:

“Dentro de uma centena de imagens recor-


tadas, que estejam a nossa disposição, dois
temperamentos diversos fatalmente esco-
lherão as imagens que lhes são mais gratas,
descobrirão combinações diferentes, mo-
vidos pelas suas verdades e instintos. E as-

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sim, os principais criadores de foto-
montagens se distinguem facilmente; as
suas personalidades divergem e se tornam
tão características como as de um poeta ou
de um pintor” (4).

Mário de Andrade atribuía uma função


pedagógica à fotomontagem, pois detecta-
va nela “uma espécie de introdução à arte
moderna”. Sua prática permitiria superar a
dificuldade de compreender os códigos
modernos, levando o público “a distinguir
o que há de valor técnico num quadro
cubista e o que há de sugestividade psico-
lógica e sonhadora no Sobre-realismo” (5).
Entre as várias observações do escritor,
aquela relativa à fotomontagem como
reveladora do inconsciente merece uma aten- Sem título,
ção particular porque permite rastrear uma espaço que constitui a imagem. Essa ex-
1939
das presenças determinantes na constitui- ploração desencadeia um movimento al-
ção do universo intelectual de Jorge de Lima. ternativo de confusão e desfusão que trans-
Freud, que fora lido pelo artista entre 1920 forma a imagem em espaço “a ser habita-
e 1927, havia estabelecido em A Interpreta- do” em cada uma de suas partes. Por impor
ção dos Sonhos (1900) uma analogia entre o uma forma de presença idêntica aos cor-
aparelho fotográfico e a vida psíquica a par- pos, aos objetos e ao espaço, a fotografia
tir da idéia de uma produção de imagens torna visível a unidade essencial do mun-
ativadas no momento oportuno (6). do, dos objetos e do sujeito num espaço que
Se a analogia proposta por Freud faz os banha e os envolve por igual. Desse
pensar no processo de revelação química, modo, a fotografia é chamada a autenticar 1 Tristão Ribas, “Fotomontagem
de Imoralidades”, in A Notí-
que torna manifesta uma imagem latente, seu modelo num quadro geográfico, social cia, Rio de Janeiro, 22/jun./
1943.
há outras correspondências entre a ou humano, e a reforçar uma identidade
pessoal, familiar e social (8). 2 Alfredo Bosi, História Concisa
fotomontagem e o trabalho onírico passí- da Literatura Brasileira, São
veis de serem estabelecidas. Ana Maria A fotomontagem, nessa perspectiva, Paulo, Cultrix, 1970, p. 503.
Paulino destaca duas possibilidades do pro- pode ser concebida como uma atitude que, 3 Tristão Ribas, op. cit.
cesso de elaboração onírica que podem ser ao explorar o espaço da imagem, detecta 4 Mário de Andrade, “Fantasias
de um Poeta”, in O Poeta Insó-
aplicadas aos trabalhos de Lima: a nele um conjunto de signos graças aos quais lito: Fotomontagens de Jorge
condensação, na qual “determinados ele- são potencializados os sentimentos de con- de Lima, São Paulo, Instituto
de Estudos Brasileiros da Uni-
mentos latentes que têm algo em comum fusão e desfusão provocados pelo primeiro versidade de São Paulo,
combinam-se e fundem-se em uma só uni- contato. Trabalhando contra a lógica coesi- 1987, p. 9.

dade no sonho manifesto”; e o deslocamen- va da fotografia, a fotomontagem coloca 5 Idem, ibidem, p. 10.

to, no qual “um elemento latente é substi- em xeque a identidade de cada signo. Rom- 6 Claudio Marra, “La Rete
Culturologica”, in Francesca
tuído não por uma parte dele mesmo, mas pe-se, assim, o elo entre o sujeito e o efeito Alinovi; Claudio Marra, La Fo-
tografia : Illusione o
por alguma coisa mais remota, isto é, por pacificador do enquadramento da imagem Rivelazione ?, Bologna, Il
uma alusão” (7). que remete a um sentimento de integração Mulino, 1981, p. 171.

Uma observação de Serge Tisseron e pertencimento a um quadro comum. 7 Ana Maria Paulino, “Jorge de
Lima: a Revelação da Ima-
permite ampliar o leque da análise das re- As fotomontagens de Jorge de Lima gem”, in O Poeta Insólito :
lações entre fotografia e inconsciente e partilham dessa concepção, pois a articula- Fotomontagens de Jorge de
Lima, op. cit., p. 44.
pensar a problemática da fotomontagem a ção que elas propõem deriva claramente
8 Serge Tisseron, Le Mystère de
partir de um outro ponto de vista. Ao estu- dos mecanismos da vida psíquica. Do mes- la Chambre Claire :
Photographie et Inconscient,
dar a relação entre espectador e fotografia, mo modo que no sonho, a realidade é de- Paris, Flammarion, 1996, p.
Tisseron faz referência à exploração do composta a partir de fontes diferenciadas – 172.

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em geral revistas e jornais brasileiros e Uma vez que o surrealismo almeja atin-
estrangeiros – e recomposta numa nova or- gir a figuração do mental, vale-se de novas
dem de maneira insólita e enigmática, ten- técnicas, entre as quais a colagem, definida
do como resultado uma “combinação do por Louis Aragon como um procedimento
imprevisto com a lógica”, como escreve poético que permite o desvio de um objeto
Murilo Mendes na apresentação de A Pin- de seu sentido convencional para “despertá-
tura em Pânico (9). lo numa nova realidade” (12). É desse des-
Embora Lima não estenda a prática da vio de função que nasce o maravilhoso,
fotomontagem para além das imagens pre- recusa de uma (determinada) realidade e
sentes no arquivo de Mário de Andrade, desenvolvimento de uma nova realidade,
daquelas divulgadas em A Pintura em Pâ- liberada por essa recusa. Aragon não hesita
nico e da composição para a capa de O Si- em colocar essa nova realidade sob o signo
nal de Deus, livro de Murilo Mendes até da ética, fazendo do maravilhoso “a
hoje inédito, é necessário lembrar que o materialização de um símbolo moral em
recurso à fragmentação e à desarticulação oposição violenta com a moral do mundo
já integrava seu universo poético e pictóri- no meio do qual surge” (13).
co. Por isso, mesmo tendo como modelo o Na visão dos surrealistas, a colagem
Max Ernst de La Femme 100 Têtes (1929) configura-se como uma desambientação
e o romance-colagem Une Semaine de mental que obriga o espectador a uma to-
Bonté (1934), o artista não se aproxima da mada de posição moral, ao confrontá-lo com
fotomontagem como de uma experiência uma figuração do imaginário, integrada na
casual. Sua motivação profunda está dire- realidade da própria percepção. O fictício e
tamente vinculada à busca constante de o imaginário encontram-se, assim, unidos
fragmentos “aparentemente desconexos, ao real. O supra-real não está além do real,
aproximados pela memória que ignora a mas atrás dele: para que apareça basta mo-
passagem do tempo” (10), num processo dificar os próprios hábitos perceptivos e
que estabelece um continuum entre poesia, mentais, abrindo-se para aproximações ar-
pintura e fotomontagem. bitrárias que conferem um sentido novo à
A proximidade de Jorge de Lima do imagem. Breton sintetiza muito bem o sig-
9 Murilo Mendes, “Nota Liminar”, surrealismo não deve ser buscada tanto num nificado daquela que considera uma “pro-
in Jorge de Lima, A Pintura em
Pânico, Rio de Janeiro, Tipogra- confronto de imagens quanto na adoção posta de organização absolutamente vir-
fia Luso-Brasileira, 1943. O li-
vro teve uma tiragem de 250 daquele “modelo puramente interior”, que gem”, ao analisar a contribuição de Ernst
exemplares rubricados pelo era a marca distintiva da poética francesa. em 1920:
autor. Foi consultado o exem-
plar no 13, pertencente a Má- Ao advogar a ruptura com o modelo sensí-
rio de Andrade.
vel, o surrealismo faz da imaginação o ele- “O objeto exterior tinha rompido com seu
10 Ana Maria Paulino, Jorge de
Lima, São Paulo, Edusp, 1995,
mento principal da criação: caberia à arte campo habitual, suas partes constitutivas
p. 88. enriquecer o já visível com uma nova tinham, de algum modo, se emancipado
11 Gérard Durozoi; Bernard visualidade, que seria o resultado do en- dele, de maneira a estabelecer com outros
Lecherbonnier, O Surrealismo:
Teorias , Temas , Técnicas , contro entre o real atual e o real possível, o elementos relações inteiramente novas, que
Coimbra, Livraria Almedina, objetivo (material, concreto) e o subjetivo fugiam do princípio da realidade, mas sem
1976, pp. 240-3; André
Breton, “Le Surréalisme et la (imaginário, onírico). À reprodução, típica deixar de ter conseqüências no plano do
Peinture”, in Le Surréalisme et la
Peinture , Paris, Gallimard,
da arte tradicional, o surrealismo substitui real (subversão da noção de relação)” (14).
1979, p. 4. a produção de um mundo novo. Para tanto,
12 Louis Aragon, “Max Ernst, seria possível lançar mão do objeto exteri- É justamente um estado de desam-
Peintre des Illusions”, in Les
Collages , Paris, Hermann, or como “um suporte longínquo, cujo sen- bientação mental não aceito que leva Tristão
1980, pp. 29-30. tido será totalmente modificado pela posi- Ribas a detectar em A Pintura em Pânico
13 Idem, “La Peinture au Défi”, in Les ção que ocupar em relação aos outros ele- uma “espécie de simpatia pelo pornográfi-
Collages, op. cit., pp. 38-9.
mentos da obra, isto é, pelas relações no- co” e a formular uma pergunta:
14 Gérard Durozoi; Bernard
Lecherbonnier, op. cit., pp. vas, inéditas, que o artista lhe fará manter
245-6; André Breton, “Genèse com o seu meio, em função de exigências “O que quer dizer por exemplo o senhor
et Perspectives Artistiques du
Surréalisme”, in op. cit., p. 64. internas” (11). doutor Jorge de Lima com aquele homem

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com cara de burguês grave e sisudo engo- forças idênticas” –, na qual é proposta uma
lindo um bicho que pelos modos teria sido analogia entre a cruz de Cristo e o avião,
um carneiro? Será um símbolo? Não se sabe. atribuída por Mário de Andrade ao “tempe-
O que se vê, entretanto, é que o autor de ramento místico e profundamente compas-
tesoura em punho ajeitou as figuras de sivo do poeta” (17).
maneira a dar ao boneco uma feição de O que deve ter desnorteado o articulista
bandalheira. O carneiro, de nádegas raspa- de A Notícia é justamente o cerne crítico da
das à moda de cabeça de alemão, só à força fotomontagem: a utilização de um análogo
de muito olhar é que é um carneiro. À pri- da realidade em sentido ilusionista, de
meira vista não passa de uma reprodução maneira a criar imagens inéditas não ape-
fidedigna de certo objeto obsceno muito nas pelas distorções dimensionais de vá-
usado em Pompéia na antigüidade” (15). rios personagens e objetos, mas sobretudo
pelas aproximações arbitrárias e enigmáti-
A atribuição de um significado porno- cas, que trazem o princípio da metamorfo-
gráfico ao conjunto de 41 fotomontagens a se para o interior do processo fotográfico.
partir de “Será Revelado no Final dos Tem- A opção pelas imagens fotográficas
pos” não faz justiça ao trabalho de Jorge de responde, em A Pintura em Pânico bem
Lima. Se Ribas detecta na imagem a pre- como nas colagens surrealistas, à vontade
sença de um falo artificial, a aproximação de pôr em discussão a convenção represen-
entre o homem com aparência burguesa e o tativa da arte realista e de introduzir um
carneiro parece obedecer a uma simbolo- princípio de desordem não apenas na lin-
gia precisa, uma vez que o animal repre- guagem, mas na própria realidade, que
senta o princípio masculino, o processo deveria sair renovada pelo choque percep-
inicial da vida em termos “de impulsão pura tivo provocado na visão retiniana. Murilo
e de irracional, de descarga eruptiva, ful- Mendes, que participara da gestação inici-
gurante, indomável, de arrebatamento des- al do livro de Jorge de Lima, parece não ter
medido, de sopro inflamado” (16). Tratar- dúvidas a esse respeito:
se-ia, portanto, de uma representação do
inconsciente que a sociedade tenta repri- “Desmontar a burrice, o tabu dos materiais
mir em vão, ao qual Jorge de Lima confere ricos, desarticular o espírito burguês em
um significado irônico através de uma le- todos os seus setores, organizar a inteli-
genda que remete à religião. gência e a sensibilidade; atingimos enfim a
A Pintura em Pânico é constituído por inevitável transfiguração do elemento so-
imagens que se referem ao processo vital, à cial e político. Movimentos paralelos: re-
morte, à violência, ao poder cego da ciência, volução política, revolução artística” (18).
à repressão social e religiosa por intermédio
de composições quase sempre enigmáticas, As fotomontagens de Jorge de Lima,
nas quais se destaca a presença de figuras impregnadas de ambigüidade, de signos
femininas na pose passiva da expectativa, conflitantes, de disfarces, respondem plena-
participando de um dispositivo que parecem mente à concepção de imagem formulada
desconhecer; de figuras masculinas reduzi- por Breton no “Manifesto do Surrealismo”
das a um corpo transparente que dá a ver os (1924). O que elas demonstram é que a “luz
sistemas arterial e muscular; de corpos da imagem” se deve justamente à aproxi-
acéfalos ou mutilados; de mãos, olhos, bra- mação fortuita de diferentes realidades afas-
ços, cabeças freqüentemente autônomos; de tadas entre si; é dela que brota aquela cen-
15 Tristão Ribas, op. cit.
paisagens áridas ou sombrias; de interiores telha capaz de conferir um valor poético e
16 Jean Chevalier; Alain
de laboratórios; de criaturas marinhas, dis- emotivo à composição. Próximo da idéia Gheerbrant, Dicionário de Sím-
bolos , Rio de Janeiro, José
tribuídas ora de maneira cumulativa, ora de bretoniana de que a centelha será tão mais Olympio, 1991, pp. 189-91.
maneira mais equilibrada. Não falta no con- bela quanto maior for a diferença de poten- 17 Mário de Andrade, op. cit., p.
junto uma composição claramente religiosa cial entre os vários vetores, quanto maior 9.
– “Surgiram forças eternas para lutar contra for o grau de arbitrariedade das aproxima- 18 Murilo Mendes, op. cit.

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ções propostas (19), o artista brasileiro não rata” de Une Semaine de Bonté); a sala de
hesita em explorar contradições evidentes. jantar dominada por três cabeças despro-
Em “Caim e Abel”, há um contraste fla- porcionais que conferem um clima de sus-
grante entre o título e as imagens dos dois pensão entre jocoso e enigmático à cena.
meninos em atitude amistosa. Em “O Jul- Em A Pintura em Pânico, tal efeito pode
gamento do Tempo”, a composição se ar- ser notado em “A Posteridade de Homero”,
ticula ao redor da inversão entre interio- na qual parece haver uma dissociação entre
ridade e aparência. Numa das fotomon- as figuras em procissão, que avançam em
tagens da coleção de Mário de Andrade, há direção ao mar, e a cabeça com asas do
uma derrisão da idéia sublime de feminili- poeta, que serve de calço a um aeróstato;
dade, obtida pela justaposição num único em “O Criminoso Lega sua Impressão Digi-
ícone dos arquétipos da bela e da fera. tal”, em virtude do agigantamento da ponta
19 André Breton, “Manifeste du
Surréalisme”, in Manifestes du Visões mais propriamente alucinatórias de um dedo contra um céu nublado; em “Os
Surréalisme, Paris, Gallimard, Seres Conseguem Desproporções, a Flores-
1971, pp. 31, 51-3.
podem ser consideradas a mulher velada
que dá a impressão de estar ressurgindo; a ta Recua: Eis os Gestos”, dominada por duas
20 Gérard Durozoi; Bernard
Lecherbonnier, op. cit., p. 114. justaposição da banqueta antropomórfica figuras mitológicas, cujas proporções con-
com a figura feminina encimada por uma trastam com a representação diminuta de
concha, que faz lembrar algumas das trans- seres humanos; em “O Começo da
formações de materiais ensaiadas por Max Catequese”, pelo contraste entre a simples
Sem título, Ernst (Saúde Através do Esporte, c. 1920; curiosidade dos dois burgueses e o caráter
1939 O Rouxinol Chinês, 1920; a “Náiade-cata- entre místico e hórrido da cena que se desen-
rola na caverna; em “A Poesia de uns De-
pende da Asfixia de Outros”, ritmada pela
indiferença da multidão diminuta ao enfor-
camento; em “Eis o Cálice de Fel”, impreg-
nada por uma visão mórbida da morte.
Em outras fotomontagens, Jorge de
Lima condensa mais nitidamente uma idéia
de composição como estrutura dotada de
um modo particular de existência, indepen-
dente da utilização corrente das imagens
num contexto utilitário. O procedimento
cumulativo faz aflorar afinidades secretas
entre diferentes imagens, dispostas de ma-
neira a discordarem entre si para ganharem
aquele “além do sentido” (20) enraizado
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em combinações impostas pelo inconsci-


ente. É o caso da composição que junta num
mesmo espaço uma figura de mulher con-
tra um fundo montanhoso, um esqueleto e
alguns objetos disparatados; da mulher
vestindo um casaco de peles que se justa-
põe a uma mão de manequim segurando
uma esfera, num espaço definido por li-
nhas de fuga, no qual se destacam uma fi-
gura minúscula e sua sombra; da segunda
versão de “A Poesia Abandona a Ciência à
sua Própria Sorte”, na qual se confrontam
o sagrado e o profano, o humano e o animal
e se perfila uma sexualidade indeterminada,
uma vez que nenhuma figura é de fato o

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que parece ser. Outras vezes, o artista uti- A evocação das idéias de Aragon possi-
liza o acúmulo de elementos para acrescer bilita uma outra aproximação entre Jorge
o sentido enigmático da composição: “Ah, de Lima e a poética surrealista a partir do
Fui Precipitado Quando Quis Fundir as confronto entre o título do ensaio que o
Coisas numa Só!”; “A Poesia Abandona a escritor francês dedicara à colagem em
Ciência à sua Própria Sorte” (primeira ver- 1930, “La Peinture au Défi”, e aquele do
são); “A Paz das Famílias”; “As Cata- livro do artista brasileiro, A Pintura em
cumbas Marinhas contra o Despotismo”. Pânico. Prognosticando que a pintura não
A essas composições pode ser aplicada passaria, no futuro, de “um divertimento
a reflexão de Breton sobre a produção de anódino reservado a moças e a velhos pro-
imagens no surrealismo: vincianos”, Aragon opõe-lhe o exemplo da
colagem, que permitiria superar a concep-
“Pode-se mesmo dizer que as imagens apa- ção individualista de “uma arte aviltada”
recem, nessa corrida vertiginosa, como os por “um modo de expressão de uma força
únicos guidões do espírito. O espírito con- e de um alcance desconhecidos”, capaz de
vence-se, pouco a pouco, da realidade su- restituir “seu verdadeiro sentido à velha
prema dessas imagens. Limitando-se, a atitude pictórica, impedindo o pintor de se
princípio, a suportá-las, apercebe-se logo entregar ao narcisismo, à arte pela arte,
que elas lisonjeiam sua razão, aumentam fazendo-o regressar às práticas mágicas que
outro tanto seu conhecimento. Toma cons- são a origem e a justificativa das represen-
ciência das extensões ilimitadas onde se tações plásticas, proibidas por várias reli-
manifestam seus desejos, onde o pró e o giões” (23).
contra se reduzem incessantemente, onde No caso de Jorge de Lima existem três
sua obscuridade não o trai” (21). explicações para o título do livro. A pri-
meira remete a um de seus avatares,
Não deixa de ser sintomático que uma Lautréamont, que lhe teria transmitido o
referência visual das fotomontagens de sentimento do pânico, do qual deriva a es-
Jorge de Lima seja De Chirico, do qual são tética da fotomontagem. A segunda é
evocados o jogo de remissões entre figura sugerida pela observação de duas compo-
e sombra, a presença do manequim e o sen- sições do livro – “A Poesia em Pânico” e
tido geométrico da composição. O pintor “O Poeta Trabalha” –, vistas como opostos
italiano não está apenas na base daquele complementares: se a poesia, representada
clima de suspensão que caracteriza algu- como uma figura renascentista, parece es-
mas imagens do artista brasileiro. Sua pre- tar em pânico diante do predomínio da ci-
sença parece reforçar ainda mais a opção ência, simbolizado pelos instrumentos as-
pela fotomontagem, se for lembrada a aná- tronômicos e pelo livro de profecias fecha-
lise que Aragon faz dos interiores meta- do, o poeta, inspirado nas figuras de De
físicos, nos quais vislumbrava a negação Chirico, realiza seu trabalho entregue ao
da pintura em virtude da imitação dos efei- sono, numa alusão evidente às forças do
tos da colagem (22). inconsciente. A terceira está conotada à
Outras presenças importantes são técnica utilizada que, embora simples, não
Tanguy com seu universo cíclico, cuja dis- deixa de apresentar elementos conceituais
posição evoca o princípio da colagem, que que permitem vislumbrar o desenvolvimen-
inspira “E Entre o Mar e as Nuvens Foram to de uma nova sensibilidade plástica ao al-
Surgindo as Primeiras Formas”; e Magritte, cance de todos, uma ampliação da experiên-
cuja desambientação do objeto e cujos con- cia da visão, o encontro do estético e do
trastes de significação parecem estar na base político, uma nova concepção de conheci-
21 André Breton, “Manifeste du
de várias composições de A Pintura em mento, um novo momento na história da Surréalisme”, op. cit., p. 52.
Pânico: “O Criminoso Lega sua Impressão humanidade no qual o homem “talvez possa 22 Louis Aragon, “La Peinture au
Digital”, “Caim e Abel”, “A Paz das Famí- destruir e construir ao mesmo tempo”. É na Défi”, op. cit., p. 55.

lias”, entre outras. possibilidade da junção de opostos que 23 Idem, ibidem, pp. 54, 57-8.

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Murilo Mendes faz residir a essência do É para essa plasticidade, para essa mo-
pânico, que “é muitas vezes necessário para bilidade de sentido que apontam as
se chegar à organização” (24). Não será fotomontagens de Jorge de Lima, cujo
desnecessário lembrar que, em termos visu- acúmulo de imagens parece obedecer aos
ais, Lima alcança os melhores resultados princípios da escrita automática. Os frag-
justamente nas fotomontagens, nas quais o mentos recontextualizados permitem per-
surrealismo é a poética determinante, ao ceber a existência latente de outros signifi-
passo que a pintura oscila entre várias ten- cados para além daqueles atribuídos à foto-
dências nem sempre reconciliáveis entre si. grafia no processo de comunicação con-
No primeiro e no terceiro caso, o pânico vencional, fazendo da fotomontagem um
é sinônimo de estranhamento e de amplia- espaço poético por excelência.
ção das possibilidades poéticas da imagem, Ao lançar mão de imagens já existentes
indicando não apenas uma insatisfação para e produzidas, em geral, para fins utilitá-
com as limitações da pintura, mas, antes de rios, Lima não coloca apenas em discussão
tudo, uma abertura àquela operação de sig- a noção de autoria, mas, sobretudo, inverte
no conceitual que havia levado vários re- a relação entre “artístico” e “não artístico”,
presentantes das vanguardas históricas a uma vez que se demonstra capaz de detec-
outorgarem um valor artístico a objetos tar as qualidades plásticas e evocativas de
descontextualizados ou encontrados casu- um material que despertou sua imaginação
almente. Extensão do princípio do objet criadora para associações insólitas e ines-
trouvé, a fotomontagem lança mão de peradas. Comparadas com sua produção
images trouvées para aprofundar a sensa- pictórica de cunho surrealista, as foto-
ção de estranhamento em relação à realida- montagens atestam a presença de uma ima-
de fenomênica. ginação mais rica e mais livre, que se serve
Ao colocar lado a lado elementos des- de um registro do real para realizar um tra-
conexos e ao criar associações inusitadas, balho de des-realização sistemática sob o
Jorge de Lima realiza com as imagens es- signo da reconciliação do consciente e do
colhidas de um repertório preexistente inconsciente, do objetivo e do subjetivo, da
aquela alquimia do verbo preconizada pe- percepção e da representação. No momen-
los surrealistas, conseqüência de uma ima- to em que justapõe imagens de diversas
ginação que rompeu os limites impostos proveniências, Lima deixa que seu eu mais
por uma razão demasiado estrita e restritiva. profundo se exprima, gerando materiais
Por isso, longe de acreditar na polaridade para uma análise da composição, feita de
“positivo”/“negativo”, o surrealismo bus- analogias e de saltos “ilógicos”, e para uma
ca reconstituir totalidades que tornam com- auto-análise: o aparente arbítrio do resulta-
plementar o que é percebido como contra- do alcançado responde, com efeito, a um
ditório no plano racional. Breton cria uma movimento próprio do inconsciente. Esse
imagem forte dessa postura quando, no resultado pode ser pensado nos termos do
“Segundo Manifesto do Surrealismo” “acaso objetivo”, proposto por Breton en-
(1930), propõe “arrastar ‘a rosa’ num movi- quanto manifestação misteriosa para o ho-
mento proveitoso de contradições menos be- mem de “uma necessidade que lhe escapa,
24 Ana Maria Paulino, Jorge de
Lima, op. cit., p. 79; Murilo nignas em que ela seja sucessivamente aquela embora ele a experimente vitalmente como
Mendes, op. cit.
que vem do jardim, aquela que ocupa um necessidade” (26).
25 Gérard Durozoi; Bernard lugar singular num sonho, aquela impossí- O “acaso objetivo” pode apresentar-se
Lecherbonnier, op. cit., p. 108;
André Breton, “Second Mani- vel de ser distraída do ‘buquê ótico’, aquela sob a forma de um encontro insólito, uma
feste du Surréalisme”, in op. cit.,
pp. 96-7, 134. que pode mudar totalmente de propriedades coincidência, uma premonição, sendo pre-
26 Gérard Durozoi; Bernard passando pela escrita automática, aquela que parado por movimentos subterrâneos de
Lecherbonnier, op. cit., pp. não tem senão aquilo que o pintor quis que longa duração. Pode ser favorecido, busca-
121-8; André Breton “Situation
Surréaliste de l’Objet”, in guardasse da rosa num quadro surrealista, e, do, provocado para colocar em xeque as
Position Politique du
Surréalisme , Paris, Denoël-
por fim, aquela, totalmente diferente dela idéias de continuidade e de coerência. É o
Gonthier, 1972, p. 146. mesma, que volta ao jardim” (25). que faz Max Ernst quando coloca a colagem

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sob o signo do acaso ou de “uma vontade nova chave de acesso ao universo do poeta
que favorece o acaso”, além de “uma von- Jorge de Lima. Por conferirem rostos di-
tade voltada […] para a confusão sistemá- versos à “grande musa” que se manifesta,
tica e o desregramento de todos os senti- poeticamente, sob múltiplas aparências e
dos” (27). O segundo significado de pânico nomes variados (30). Por reforçarem aque-
proposto para o livro de Jorge de Lima pa- la fantasia visual que permeia muitas de
rece estar vinculado a essa possibilidade de suas composições poéticas e que se
conferir uma vida própria às imagens gra- condensa de maneira paradigmática no
ças ao sonho, que afasta os receios provo- poema em prosa “O Grande Desastre Aé-
cados pelo predomínio da razão no estado reo de Ontem”:
de vigília (“A Poesia em Pânico”) e promo-
ve novos arranjos de signos com aqueles
“fragmentos desconexos” de que falava “Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor
Freud. Por isso, o trabalho do poeta é sim- para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que
bolizado pelo sono: é nesse momento que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabe-
as imagens se transformam automaticamen- leira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dança-
te, gerando deslocamentos, intercâmbios, rinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis
condensações, provocando fissuras nas identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no
seqüências de signos por onde passam di- ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo
ferentes efeitos de sentido (28). sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no
Metáfora do trabalho artístico, essa seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem
imagem de A Pintura em Pânico pode ser vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se
considerada a própria representação do dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de
automatismo do processo criador, por re- rosas, que ela pensou ser o pára-quedas, e a prima-dona com
meter subliminarmente a acontecimentos a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um come-
involuntários e inconscientes. Uma vez que, ta. E o sino que ia para a capela do oeste, vir dobrando
no sonho, os fragmentos adquirem uma finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adorme-
realidade surpreendente, o recurso à foto- cida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega!
grafia revela-se congenial aos objetivos de Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem
Lima por dois motivos: pelo efeito de ve- como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento.
rossimilhança de que tal imagem é porta- Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas mío-
dora e, inversamente, pela possibilidade de pes que pensam que é o arrebol” (31).
engendrar disfarces e alucinações graças
ao próprio dispositivo técnico.
Embora a prática da fotomontagem No interior desse universo intensamen- 27 Michel Carrouges, “Le Hasard
constitua apenas um momento na carreira te plástico, a fotomontagem ocupa um lu- Objectif”, in Ferdinand Alquié
(org.), Entretiens sur le
do artista, seu papel não pode ser subesti- gar privilegiado por apontar para uma Surréalisme , Paris, Mouton,
1968, pp. 272-3; Olivier
mado na análise de sua poética. Se for lem- visualidade alicerçada em metamorfoses e Barbarant, Le Surréalisme :
brado que, no surrealismo, a poesia não se desdobramentos, na qual nada é o que pa- “Nadja” d’André Breton, Pa-
ris, Gallimard, 1994, p. 29;
limita ao domínio verbal, penetrando em rece ser, regida como é por fantasias prove- Patrick Waldberg, Le
todos os ramos da criação (29), as nientes de uma realidade produzida meca- Surréalisme, Genève, Skira,
1962, p. 64.
fotomontagem poderão representar uma nicamente.
28 Eduardo Peñuela Cañizal,
Surrealismo: Rupturas Expres-
sivas, São Paulo, Atual, 1986,
p. 89.
29 René Passeron, “Le Surréalisme
des Peintres”, in Ferdinand
Alquié (org.), op. cit., p. 247.
30 Ana Maria Paulino, Jorge de
Lima, op. cit., pp. 41, 57.
31 Jorge de Lima, A Túnica
Inconsútil: Poesia, Rio de Janei-
ro, Cooperativa Cultural Gua-
nabara, 1938, p. 105.

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