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Fotomontagem e surrealismo:
Jorge
ANNATERESA FABRIS
é professora do Programa
de Pós-graduação em
Artes da ECA-USP e autora
de, entre outros, Cândido
Portinari (Edusp).
de Lima REVISTA USP, São Paulo, n.55, p. 143-151, setembro/novembro 2002 143
E
m junho de 1943, o jornal A ção de uma das imagens do conjunto, colo-
Notícia dedica um artigo ao cada sob o signo da pornografia, pretende,
livro de fotomontagens A Pin- antes de tudo, desmoralizar a figura de Jorge
tura em Pânico, que o poeta de Lima. O retrato traçado por Ribas é com-
Jorge de Lima acabava de pleto, pois nele são evidenciados os dois
publicar. O tom negativo do aspectos centrais da personalidade do artis-
artigo de Tristão Ribas ta: sua atividade profissional (médico e pro-
explicita-se desde o título – fessor de Literatura Brasileira da Universi-
“Fotomontagem de Imorali- dade do Brasil) e seu apego a uma “forma
dades” –, abarcando tanto a dramática e moderna de Catolicismo” (2),
técnica, considerada “uma besteira à custa que transparecia nos poemas de Tempo e
dos outros, sem nenhum mérito”, quanto o Eternidade (1935, escrito em colaboração
significado da única imagem analisada num com Murilo Mendes) e A Túnica Inconsútil
conjunto bem maior (41 produções) (1). (1938). Escreve, de fato, Ribas:
Se a trivialização da fotomontagem, re-
duzida a uma técnica primária e ao alcance “Criaturas que deviam levar a vida a sério,
de qualquer criança, responde ao objetivo exercendo profissões que exigem espiritua-
preciso de denegrir a arte moderna, a avalia- lidade e aparência decente, gastam o tempo
com a expansão de letras e artes licencio-
sas, contribuindo direta ou indiretamente
para a corrupção dos costumes e do gosto
da humanidade. E o pior é que muitos dos
Sem título,
que se dedicam a esse gênero pretendem
1939 realizar a sua obra nefasta à sombra tutelar
do catolicismo, como se fosse possível a
Igreja patrocinar essas monstruosidades
contra a beleza e contra a moral” (3).
dade no sonho manifesto”; e o deslocamen- va da fotografia, a fotomontagem coloca 5 Idem, ibidem, p. 10.
to, no qual “um elemento latente é substi- em xeque a identidade de cada signo. Rom- 6 Claudio Marra, “La Rete
Culturologica”, in Francesca
tuído não por uma parte dele mesmo, mas pe-se, assim, o elo entre o sujeito e o efeito Alinovi; Claudio Marra, La Fo-
tografia : Illusione o
por alguma coisa mais remota, isto é, por pacificador do enquadramento da imagem Rivelazione ?, Bologna, Il
uma alusão” (7). que remete a um sentimento de integração Mulino, 1981, p. 171.
Uma observação de Serge Tisseron e pertencimento a um quadro comum. 7 Ana Maria Paulino, “Jorge de
Lima: a Revelação da Ima-
permite ampliar o leque da análise das re- As fotomontagens de Jorge de Lima gem”, in O Poeta Insólito :
lações entre fotografia e inconsciente e partilham dessa concepção, pois a articula- Fotomontagens de Jorge de
Lima, op. cit., p. 44.
pensar a problemática da fotomontagem a ção que elas propõem deriva claramente
8 Serge Tisseron, Le Mystère de
partir de um outro ponto de vista. Ao estu- dos mecanismos da vida psíquica. Do mes- la Chambre Claire :
Photographie et Inconscient,
dar a relação entre espectador e fotografia, mo modo que no sonho, a realidade é de- Paris, Flammarion, 1996, p.
Tisseron faz referência à exploração do composta a partir de fontes diferenciadas – 172.
lias”, entre outras. possibilidade da junção de opostos que 23 Idem, ibidem, pp. 54, 57-8.