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Comecei e recomecei a redação dessa crítica várias vezes. Estava decidido a fazer algo
objetivo. Afinal, o filme tem, apenas, 16 minutos, ou seja, é um curta-metragem. É uma
questão de assistir e pronto, não? Mas aí eu parei e pensei: o que será que os leitores
que não conhecem a primeira obra de Luis Buñuel vão pensar? Que ele é um maluco
completo? Ou que sou eu o maluco completo?
Então, depois de diversos falsos começos, decidi iniciar por uma experiência própria,
que ilustra muita bem, eu acho, o que é Um Cão Andaluz. Sim, farei a crítica e, se você
for impaciente, pule para o “capítulo” chamado “A crítica” mais abaixo. Se, por outro
lado, quiser algo mais contextualizado, leia tudo.
Em qualquer hipótese, sugiro fortemente que veja o curta antes e depois volte aqui. Não
pelo riscos de haver spoilers em meus comentários, pois não há como fazer spoiler
desse filme, mas sim porque, como o primeiro “capítulo” deixará claro e reiterarei
ainda outras vezes, a experiência é tudo nesse caso.
Uma das obras expostas, porém, não era de artes plásticas, mas sim uma televisão
passando Um Cão Andaluz em loop. Como já havia visto o filme algumas vezes,
resolvi ficar parado, vendo a reação das pessoas. Fiz isso por meia hora logo quando
cheguei e, depois, por mais meia hora antes de ir embora.
Mas o que mais me interessou e me cativou foram mesmo as reações espontâneas das
pessoas que não faziam ideia do que estavam assistindo. Muitos tentavam discutir o
significado de cada cena, da mesma maneira que nós tentamos discutir o significado de
um quadro de Jackson Pollock. Alguns até estabeleciam umas conexões aqui e ali, mas
ninguém simplesmente descartava o que estava vendo como loucura total.
Outros, mais pudicos, ficavam indignados pela nudez (o filme é de 1929!) e de uma
certa violência. Outros, ainda, que começavam a assistir o filme efetivamente de seu
começo, paravam imediatamente depois de verem, horrorizados, o corte do olho por
uma navalha feito pelo próprio Buñuel em cena. Esses descartavam o filme como
“nojento”, “de terror” ou coisas do gênero, pelo que dava para perceber pelos
fragmentos audíveis dos diálogos travados a passos rápidos em direção à saída.
Notei, também, tentativas de emprestar significados religiosos ao filme, muito em
virtude da cena do homem puxando as tábuas dos Dez Mandamentos, dois padres e dois
pianos de calda com burros mortos em cima (sim, isso mesmo que vocês leram). As
explicações eram as mais diversas: “o homem está tentando vencer a tentação”, “os
pianos significam o peso da culpa cristã”, “os padres formam a consciência religiosa do
homem”.
Como afirmei de outra forma no começo: Um Cão Andaluz é muito mais uma
experiência sensorial quase única do que propriamente um filme. É um experimento de
desconstrução narrativa que precisa ser visto e revisto e, sim, apreciado.
Fiz questão de salientar acima a busca pelo significado das imagens que são costuradas
por Buñuel, exatamente porque o diretor e também Salvador Dalí queriam exatamente
evitar isso. A história de como esse filme foi imaginado é muito peculiar e interessante.
Tudo começou quando Buñuel, egresso de sua “escola de cinema” como diretor-
assistente de Jean Epstein, na França, sentou-se com seu então amigo Salvador Dalí (os
dois brigariam feio não muito tempo depois e jamais voltariam a se falar) em um
restaurante e conversaram sobre um sonho que Buñuel tivera sobre uma nuvem
cortando a lua como uma lâmina cortando um olho. Dalí, que, em termos de bizarrices,
não fica atrás de Buñuel, respondeu que sonhara com uma mão da qual várias formigas
sairiam.
Com isso em mente, os dois foram descartando ideias atrás de ideias ate que chegaram
ao que, hoje, podemos assistir, embasbacados, em nossas televisões. O dinheiro para
filmar veio da própria mãe de Buñuel, que era de família abastada.
A crítica
Um Cão Andaluz foi criado para servir de rompimento ao padrão cinematográfico então
vigente – na verdade até hoje vigente – que determina, em linhas bem gerais, que tudo
que está na tela deve fazer sentido (direto ou indireto), fazendo parte de uma narrativa
coesa. Quando Luis Buñuel trabalhou com o polonês Jean Epstein em filmes como A
Queda da Casa de Usher (1928), ele aprendeu a firme técnica imposta pelo diretor.
Tudo era calculado. Tudo seguia um raciocínio.
Apesar de dever muito a Epstein, Buñuel decide partir para a ruptura total, literalmente
trazendo sonhos para as telas. E como sonhos não necessariamente têm estrutura formal
– um começo, meio e fim – assim ele fez, junto com Salvador Dalí.
Se vocês, nesse momento, procuram algum tipo de sinopse da obra, podem esquecer.
Trata-se de um curta-metragem de 16 minutos que é uma colagem de imagens tiradas
de sonhos de Buñuel e Dalí, propositalmente sem significado. Vemos de um olho
cortado por uma lâmina de barbear até formigas saindo da mão de um homem,
passando por um ciclista caindo no chão sem maiores explicações, um homem puxando
as tábuas dos Dez Mandamentos, dois padres e dois pianos de cauda com animais
mortos em cima, além de uma mulher sendo apalpada, um passeio na praia, corpos
enterrados na areia, tudo isso com uma trilha sonora (escolhida por Buñuel) composta
de trechos de obras de Wagner e tangos argentinos.
Pouco importa o efeito que o filme terá em cada um de nós. Uma coisa, porém, é muito
certa e inegável: você não se esquecerá do que viu. E, eu garanto, são poucos filmes
que entram para esse panteão dos verdadeiramente inesquecíveis.
RITTER FAN.