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Crítica

A vida também é feita de coisas deixadas pelo caminho. Muitas delas deixam de
fazer sentido, ou se mostram inviáveis diante de nossas incertezas e contradições.
Quem não teve de abandonar sonhos, desejos, projetos, é porque nunca sonhou,
desejou, projetou, nunca quis entender para que diabos viemos ao mundo.

Já Visto Jamais Visto procura dar um sentido a uma série dessas coisas,
alternando-as com outras (em menor número) que serviram à finalidade original,
que fizeram parte de alguma obra terminada e lançada em sua época. Ou seja,
trechos de filmes inacabados se juntaram a imagens de filmes finalizados (alguns
deles já devidamente estudados, como é o caso de Bang Bang). Uma tentativa de
reanimar algo desfalecido, esquecido, quase perdido, pela companhia de obras
vivas, no caso, vivas pela mente daqueles que as viram e foram afetados por elas.

Imagens já vistas, assim, dialogam com imagens jamais vistas. Imagens vistas,
montadas de modo a criar um sentido jamais visto, com imagens não vistas,
montadas para dialogar com as que foram vistas. A ideia conjuga liberdade e
investigação, mais um punhado de outras coisas difíceis de precisar. Investigação
do passado, do que não deu certo, do que ficou pelo caminho e do que foi
realizado e amado. Dos amados, dos que o amavam, dos que amam. Coisas
deixadas pelo caminho agora adquirem um novo sentido, percorrem um outro
caminho. Cinema antiburocrático, processo de autodescoberta, indagação sobre o
que é estar no mundo, sobre o filmar, sobre o lembrar e o esquecer. Um inventário
da memória.

O que Andrea Tonacci realiza é uma colagem de tempos, anseios, tentativas e


frustrações. Uma busca pelo sentido daquilo que se sobressaiu em meio a um
vasto material de arquivo; daquilo que foi escolhido, montado, ajuntado. Imagens
que vão de 1958 a 1998, incluindo também filmes familiares e diários de viagem.

Sobram as indagações: quem é esse misterioso cabeludo que aparece com raios e
trovões? Tonacci informa que é Sérgio Mamberti, irreconhecível porque jovem,
muitos anos antes do famoso mordomo que interpretou na novela Vale Tudo
(1988), exibida, até onde sei, também em Portugal. Mas o que ele faz ali? De que
filme ele veio? E mais. Por que as crianças carregam armas? Por que a fixação com
aquela imagem específica de Cristo, vista na década de 1970 e retomada duas
décadas depois (ou melhor, é precisamente o contrário, seguindo a lógica em que
as duas sequências foram montadas).

Não são raros os filmes brasileiros recentes que procuram seguir essa estrutura de
colagem para investigar o passado. Mas nenhum deles consegue atingir o nível de
indagação e investigação da memória que Tonacci desenvolve aqui. Já Visto Jamais
Visto não navega pelos mesmos mares de Elena (Petra Costa, 2013) ou A Memória
que me Contam (Lúcia Murat, 2012). Tem muito mais a ver com Nem Tudo é
Verdade (1986) e Tudo é Brasil (1997), filmes em que Rogério Sganzerla procura
entender o Brasil por meio da visita de Orson Welles, no início da década de 1940.
Porque desse processo nasce, igualmente, a invenção, fruto de uma enorme
inquietação, por certo, mas também da abertura ao que o mundo possa oferecer.
Tonacci e Sganzerla, não por acaso, são dois dos maiores inventores do cinema.

Muitas ideias se repetem nessa invenção: dedo infantil no buraco de fechadura,


sombras apresentando ou substituindo personagens, a pequena estátua de Cristo,
o menino ao piano, o homem misterioso que surge (três vezes) com o raio, a caixa
de música do palhaço, a discussão sobre o tempo do filme seguida da capa do livro
A Thief of Time (de Tony Hillerman), a chave no vaso, uma criança com uma arma,
o fusca vermelho descendo a colina… As sobreposições de imagens também se
repetem, e multiplicam o filme, dilatam sua duração, driblam a exigência dos 54
minutos e representam o fluxo de memória que se quer investigar, dentro de uma
construção inevitavelmente flácida, rosselliniana em sua essência.

E num golpe rigoroso e implacável, o filme se encerra com uma citação de Il


Desprezzo, de Alberto Moravia, lida por Tonacci em algum momento dos anos 1990
e entendida, hoje, como a mais profunda crítica a um estado cinematográfico
(brasileiro, decerto, mas ousaria dizer mundial) provavelmente irreversível: “(…)
naturalmente pode acontecer que o filme seja de qualidade superior, que o diretor
e os colaboradores estejam ligados já em precedência de mútua estima e amizade
e que, em suma, o trabalho se desenvolva naquelas condições ideais que possam
verificar-se em qualquer atividade humana, porquanto ingrata; mas estas
favoráveis combinações são raras, como, de fato, são raros os bons filmes”.

Já Visto Jamais Visto é um enigma. Daqueles que despertam em nós o desejo de


decifrá-lo, ao menos em parte, e mesmo sabendo que grande parte de sua força
vem da impossibilidade de compreendê-lo totalmente. É o grande filme brasileiro
(latino-americano?) desta década.

Sérgio Alpendre

Conversa com Andrea Tonacci


Perdidos e achados de Andrea Tonacci
A cena final de "Já Visto Jamais Visto" (2013), seu último filme concluído, mostra
Andrea Tonacci sozinho no quadro, em plano americano de três quartos, banhado
por uma luz lateral que entra pela esquerda e deixa no escuro a metade direita da
imagem.

Sentado numa cama, ele lê em voz alta, em seu italiano materno, um trecho do
romance "O Desprezo" (1954), de Alberto Moravia. O texto opõe dois tipos de
realização de um filme: o primeiro, pautado por uma intimidade artificial e carente
de inspiração, e o segundo, atravessado pela estima entre diretor e colaboradores,
reunidos não simplesmente para cumprir uma encomenda.

Embora essa modalidade de trabalho partilhado tenha aparecido no filme (nas


cenas de conversa sobre o roteiro de "Paixões" com o amigo Joel Yamaji, ou de
interação, em diferentes filmagens, com outros parceiros, a começar por seu filho
Daniel), foi com a imagem, de datação indeterminada, do cineasta como leitor
solitário recolhido num quarto que Tonacci decidiu concluí-lo.

Revisto agora, esse plano, que fecha seu filme mais pessoal, no qual mais se
acessa sua vida privada, soa como um manifesto pelo recolhimento e pela solidão.
O corpo e a voz de Tonacci já haviam ganhado visibilidade em "Serras da
Desordem" (2006), reencenação da trágica história de Carapiru, índio Awa-Guajá
tido como único sobrevivente do massacre de sua comunidade em 1978.

Ao final daquele filme, em uma inversão radical de uma cena comum em


documentários, quando a equipe de filmagem aproxima-se daqueles que serão
filmados, vemos o cineasta dirigindo o protagonista e o fotógrafo, Aloysio Raulino.
Inicialmente fora do quadro e da vista, Tonacci é encontrado no meio na floresta
pela câmera, que segue a trajetória de Carapiru.

Temos –é claro que construída e encenada– a aparição do diretor a nos lembrar


que aquela é a história de Carapiru tal qual entendida e desejada por um homem
que o espera e o observa, mas não tem a pretensão de entendê-lo ou reduzi-lo em
uma tradução.
Em "Já Visto", em um movimento contrário e complementar, o diretor se retira
num quarto para falar de cinema, ou ao menos de um certo trabalho de cinema do
qual fez uma profissão de fé: o da modéstia, do recolhimento seletiva e
afetivamente povoado.

Afirmar-se como cineasta é também reconhecer a contingência das experiências


compartilhadas, é retrair-se para se deixar revelar nas clareiras de uma floresta
densa e nos interstícios de uma trama de cortes e fotogramas.

***

Se em "Serras" Tonacci escolhe não traduzir Carapiru –radicalização de algo que já


havia feito em "Conversas do Maranhão" (1977-1983), seu primeiro filme sobre
um povo indígena, no qual também opta por não legendar as falas dos Canela–,
em "Já Visto" ele renuncia à narração over para costurar as imagens de sua vida
às de seus filmes.

Fragmentos filmados por Tonacci ao longo de 40 anos, e por muito tempo


inacessíveis a ele próprio, são arranjados ali em uma narrativa autobiográfica
lacunar, composta por registros de amigos, família e amores passados colhidos em
formatos variados e com distintas finalidades. Até então guardado sem poder ser
visionado, o material permitiu, ao ser recuperado, um contato com imagens de que
ele não se lembrava mais, ou se lembrava fabulando, inventando.

O filme reproduz e incorpora o encontro com aquilo que se tornou estranho pela
ação do tempo e assemelha-se a um sonho no qual memórias e imagens sempre
fragmentadas deslizam por diferentes corpos e lugares sem se fixar.
Acompanhamos esse desfile iconográfico como a um fluxo de pensamento sem
guia verbal: nenhum comentário vem apossar-se das lembranças.

É como se Tonacci se recolhesse, recusando qualquer identificação ou intimidade


artificial entre si próprio e as imagens de sua vida. O princípio de construção
parece ser a manutenção do estranhamento diante do familiar, o reconhecimento
do enigma de si mesmo como um outro.

"Já Visto" cobre pequena parte de uma imensa produção de filmes inacabados, não
montados, descartados. Antes e depois de sua morte, falou-se de sua produção
"bissexta", "marginal", "escassa" e invocou-se o longo período que separa seus
dois filmes mais conhecidos, "Bang Bang" (1971) e "Serras da Desordem" (2006),
atribuindo a rarefação de uma obra tão inventiva e explosiva à integridade de um
cineasta que não aceita fazer concessões.

Sem discordar, notemos que tal integridade não se resume à recusa de um


sistema de financiamento e dependência com o qual ele não queria compactuar,
mas é também, e sobretudo, um princípio ético e estético de recolhimento diante
do mistério do tempo, que organiza a experiência, decanta os processos, separa o
sujeito de suas memórias e imagens.

Tal gesto, nos filmes e entre eles, exprime uma modéstia do cinema que ele deseja
e pratica, mesmo quando não finaliza filmes.

Em 40 anos de cinema, Tonacci não fez apenas cinco longas e alguns curtas. Entre
os filmes, e mesmo durante sua gestação, ele filmava seu cotidiano, shows de
música, povos indígenas, pequenas ficções nunca finalizadas.

A falta de financiamento era apenas um dos motivos, e nem sempre o decisivo,


para que essas imagens não viessem a público. Muitas vezes elas precisavam
esperar, ou Tonacci tinha que esperar por elas, ciente das exigências do tempo.

Um material inédito, recentemente recuperado –e a história de sua invisibilidade


por mais de 20 anos–, talvez jogue nova luz para entender a figura de Tonacci
nessa linha tênue entre o desejo de cinema e seu recolhimento. Em 1979-1980,
com uma bolsa da Fundação Guggenheim, o cineasta percorreu Estados Unidos,
Canadá, México, Peru e Guatemala, terminando o périplo no Brasil, registrando
líderes e encontros indígenas com uma câmera Sony meia polegada.

A ideia era se aproveitar da mobilidade permitida pelo vídeo para levar, de um


povo a outro, depoimentos e imagens de experiências de conflitos que pudessem
contribuir para a percepção da violação física, cultural e territorial sofrida por todos
eles.

O projeto foi interrompido por falta de recursos e também, segundo Tonacci, por
sua percepção de que a imagem da resistência dos povos indígenas deveria ser
construída a partir da perspectiva deles, e não da sua. Não cabia ao cineasta
manipular falas, transformando-as em um produto que, por mais respeitoso que
fosse, inevitavelmente imporia um outro discurso, um outro olhar, sobre aquelas
imagens.

Somente em 2014 o material foi recuperado e transferido para um formato de


vídeo compatível. Compreende quase 20 horas, a maioria com longos testemunhos
de lideranças indígenas sobre o estado de suas lutas, ora mais articulados, ora
num tom mais pessoal. Tonacci ouve e filma; não interrompe, praticamente não
pergunta. Cada fita existe como unidade autônoma, testemunho bruto e
documento de um aprendizado que se dá pela escuta e pela espera.

Não por acaso, ao rebatizar o projeto no momento de sua recuperação, ele


escolheu trocar o título inicial, "A Visão dos Vencidos", por um outro sugerido pelo
artista norte-americano Jimmie Durham: "Voices to Be Heard: Struggle of
Indigenous People" (vozes a serem ouvidas: a luta do povo indígena). Essa viagem
foi feita entre a filmagem e a montagem de "Conversas no Maranhão", e é possível
imaginar que ela tenha ajudado Tonacci a montá-lo.

Nos longos intervalos entre captação e finalização, entre o desejo do filme e sua
concretização, o cineasta foi amadurecendo uma intuição já presente em suas
obras de juventude: a consciência de que a figura do autor é, por assim dizer, um
mal necessário do cinema, de que todo filme tanto carece quanto padece. Ele, que
sabia que a experiência do tempo extrapola as possibilidades da linguagem, nos
deixa um imenso material por descobrir, à espera de novos sentidos.

Patrícia Mourão, Lúcia Monteiro, Mateus Araújo

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