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Geovana Siqueira Costa

Ensaio sobre a análise fílmica, de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété

Parte I

- A análise fílmica vem relativizar as imagens “espontaneístas” demais da criação e da


recepção cinematográficas. Estamos cercados por um dilúvio de imagens. Seu número é
tão grande, estão presentes tão “naturalmente”, são tão fáceis de consumir que nos
esquecemos de que são o produto de múltiplas manipulações, complexas, às vezes
muito elaboradas. O desafio da análise talvez seja reforçar o deslumbramento do
espectador, quando merece ficar maravilhado, mas tornando-o um deslumbramento
participante (p.13).

- Não é possível conduzir uma análise de filme apenas com base nas primeiras
impressões, *pois assim o filme é tomado como lazer e não como objeto de uma
reflexão/produção intelectual*. Mas seria errado separar radicalmente o produto da
atividade de espectador “comum” da análise. A bem dizer, esse material bruto,
resultando de um contato espontâneo, ou, pelo menos, menos controlado, com o filme,
pode constituir um fundo de hipóteses sobre a obra. Essas hipóteses deverão, é claro, ser
averiguadas concretamente por um verdadeiro processo de análise. Contudo, questões
do tipo “como o filme conseguiu produzir em mim este ou aquele efeito”? [...] “como o
filme gerou determinada ideia, determinada emoção, determinada associação em
mim?”, questões centradas no como e não no por que conduzem a considerar o filme
com maiores detalhes e integrar, em um ou outro momento, os “primeiros movimentos”
do espectador (p.13-14).

- O que é analisar um filme? A análise fílmica significa duas coisas (p.14-15):


1. A atividade de analisar. Decompor um filme em seus elementos constitutivos;
despedaçar, descosturar, desunir, separar, destacar e denominar materiais que não se
percebem isoladamente a olho-nu, e adquirir distanciamento, uma vez que o filme é
tomado pela totalidade. Essa parte equivale à descrição.
2. O resultado dessa atividade. Estabelecer elos entre os elementos isolados e
compreender como eles se associam; reconstruir o filme ou fragmento trazendo algo a
ele. Essa parte equivale à interpretação.

- Os problemas da análise do filme:


No entanto, é bem conhecida a sensação dolorosa do esforço obstinado e contudo vão,
infrutífero, estéril, que às vezes conduz ao desencorajamento e à terrível angústia do
vazio. Ousamos pensar que talvez seja aí que começa precisamente o verdadeiro
trabalho: aceitar esse vazio, esse hiato, não tentar lutar desesperadamente contra a
angústia com instrumentos de análise ou soluções alternativas, não, deixa-la seguir seu
curso e, sobretudo deixar o filme executar seu trabalho, pois parte do trabalho é
incumbência dele. Assim, propomos que o analista se instale às vezes, até regularmente,
diante do filme ou fragmento, sem tentar fazer um esforço intelectual particular. [...]E
assim modificar e flexibilizar uma metodologia que a angústia tende às vezes a tornar
rígida (p.19).

- Analisar um filme é também situá-lo num contexto, numa história. E, se


considerarmos o cinema como arte, é situar o filme em uma história das formas fílmicas
(correntes, tendências e escolas estéticas) (p.21). Algumas formas importantes para o
cinema:
1. O cinema dos primeiros tempos e a não continuidade. Os primeiros cinemas
possuem traços de descontinuidade narrativa devido aos modelos utilizados, que não era
o romance do século XIX e nem o teatro clássico, mas o music-hall, o vaudeville, a
história em quadrinhos, os espetáculos de lanterna mágica, de circo, e de teatro popular.
Os filmes eram construídos por quadros, separados por grandes elipses narrativas que as
legendas mal preenchem (não tendo um vínculo narrativo lógico muito rígido com as
imagens); o desempenho dos atores varia de acordo com as cenas; há erros de ligação
entre duas imagens e encavalamentos temporais de uma cena a outra (p.22).
2. A continuidade narrativa vai se elaborar aos poucos com base nos seguintes
princípios: homogeneização do significante visual (cenários, iluminação) e do
significado narrativo (relações legendas/imagens, desempenho dos atores, unidade do
roteiro, sincronismo da imagem e dos sons); e linearização, pelo modo como se vincula
um plano ao plano seguinte, fazendo com que o espectador esqueça o caráter
descontúnuo do significante fílmico constituído de imagens “coladas” (montadas) umas
às outras. É aqui que também surge a montagem alternada que dá origem a narrativa
hollywoodiana clássica, em que se alternam dois ou mais eventos que se desenvolvem
simultaneamente (p.23-24).
3. Narração fílmica clássica. As técnicas cinematográficas empregadas na narrativa
clássica serão, portanto, no conjunto, subordinadas à clareza, à homogeneidade, à
linearidade, à coerência da narrativa assim como, é claro, a seu impacto dramático. [...]
O encadeamento das cenas e das sequências se desenvolve de acordo com uma
dinâmica de causas e efeitos clara e progressiva. A narrativa centra-se em geral num
personagem principal ou casal (star system), confrontado com situações de conflito. O
desenvolvimento leva ao espectador as respostas às questões colocadas pelo filme
(p.25).
4. Tendências rebeldes ao classicismo: o cinema soviético da década de 1920
(montagem que toma posição, possibilidade de reflexão política, gênero documentário
para mostrar “realidade” e significações históricas, menos coerência e continuidade e
mais provocação de emoções). A primeira vanguarda francesa, ou o impressionismo da
década de 1920 (reação contra o imperialismo norte-americano, ou contra a submissão
ao teatro e ao romance, libertação do cinema da função de contar histórias, arte pela
arte, criar um universo de encantamento real). A segunda vanguarda francesa, ou o
dadaísmo e surrealismo (em consonância com os movimentos que levam o mesmo
nome, figurativo, se interessam pelo movimento, provocação, imagens de impacto,
montagem acelerada e abstrata, não obedece a lógica linear clássica e coloca como
central a subjetividade). O expressionismo alemão (opõe-se ao realismo e à
verossimilhança, exacerbação das formas, expressão extrema de sentimentos, cenários
irrealistas, oposições fortes entre sombras e luz, picturalização ou teatralização,
maquiagens inquietantes, uso do recurso ao sobrenatural). O neorrealismo italiano
(testemunhar e mostrar o mundo contemporâneo em sua “verdade”, menos intriga e
mais descrição da sociedade, gênero documentário, noção de autor). Os cinemas da
modernidade (narrativas mais frouxas, personagens desenhados de forma menos nítida,
as vezes em crise, procedimentos visuais ou sonoros que confundem as fronteiras entre
subjetividade e objetividade, forte presença do autor, propensão à reflexibilidade) (p.26
—34).

- Narrativa, narração e história-diegese. A história e a diegese dizem respeito à parte da


narrativa não especificamente fílmica. São o que a sinopse, o roteiro e o filme têm em
comum: um conteúdo, independente do meio que dele se encarrega. *a diegese também
pode ser definida como a realidade da história que está sendo contada, ao passo que a
extradiegese seria tudo aquilo que está fora do universo da história do filme*. A
contrapartida da diegese na montagem fílmica é, com certeza, tudo o que se refere à
expressão, o que é próprio do meio: um conjunto de imagens específicas, de palavras,
de ruídos, de música – a materialidade do filme. E o lugar de encontro e da associação
sutil entre conteúdo-expressão é evidentemente a narrativa: “o enunciado em sua
materialidade, o texto narrativo que se encarrega da história a ser contada”. É a narrativa
que permite que a história tome forma. [...] Da mesma maneira, só quando se articulam
a um conteúdo os componentes expressivos do filme adquirem uma razão de existir. Um
travelling por si só nada quer dizer. Adquire um sentido se acompanha determinado
personagem, ou se varre uma paisagem... O conteúdo e a expressão formam um todo.
Apenas sua combinação, sua associação íntima é capaz de gerar a significação. Ao
contar de maneira diferente, definitivamente se muda o sentido (p.37-38).

- As interpretações: interpretação e utilização, em que se tira informações parciais e


isoladas do filme para relacioná-las com informações extratextuais (biográficas,
sociológicas, históricas, estéticas); e interpretação semântica/crítica, que estabelece
conexões entre o que se exprime e o “como isso se exprime”, e interessa-se pelo sentido
e pela produção de sentido (p.48-49).
1. Análise e interpretação sócio-históricas. Um filme é um produto cultural inscrito
em um determinado contexto sócio-histórico. [...] Como Marc Ferro já apontou, o filme
pode oferecer um conjunto de representações que remetem direta ou indiretamente à
sociedade real em que se inscreve. A hipótese diretriz de uma interpretação sócio-
histórica é a de que um filme sempre “fala” do presente (ou sempre “diz” algo do
presente, do aqui e do agora de seu contexto de produção). [...] Mas em um filme,
qualquer seja seu projeto (descrever, distrair, criticar, denunciar, militar), a sociedade
não é propriamente mostrada, é encenada. Em outras palavras, o filme opera escolhas,
organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginário, constrói um mundo
possível que mantém relações complexas com o mundo real: pode ser em parte um
reflexo, mas também pode ser sua recusa (ocultando aspectos importantes do mundo
real, idealizando, amplificando certos defeitos, propondo um “contramundo”, etc).
Reflexo ou recusa, o filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do
mundo que lhe é contemporâneo. [...] O filme preenche uma função na sociedade que o
produz: testemunha o real, tenta agir nas representações e mentalidade, regula as tensões
ou faz com que sejam esquecidas. [...] *mas lembrando que mesmo um cinema mais
realista (documentário) possa parecer não-montável, ainda pode ser imitado, falseado ou
estar a serviço de uma determinada ideia que não se constitui como uma “totalidade” ou
como um ponto de vista “universal”. Desse modo é preciso sempre retornar ao filme e
sua materialidade e seu discurso representativo, para desvendar as suas formas de
construção e intenções* (p.51-55).
2. Analise e interpretação simbólica. Compreendamos por leitura simbólica uma
interpretação que não se detivesse no sentido literal, mas situa de imediato o que é dito e
mostrado em relação com um “outro” sentido (*associações*). Essa leitura simbólica
geralmente é solicitada pelo fato de o universo diegético, o “mundo possível”
construído pelo filme, ser fortemente afastado de qualquer mundo real passado, presente
ou imaginável, ou então, se aparece como um mundo “plausível”, ser atravessado por
elementos heterogêneos que vêm romper a coerência realista. [...] O sistema metafórico
próprio de certos filmes requer uma cultura específica para ser plenamente apreendido.
Trata-se, toda vez, de uma espécie de código, de um conjunto de signos situados em
contextos socioculturais particulares. Três classes de filmes poderiam ser distinguidas
quanto à produção de significações simbólicas: primeiro os filmes que exigem uma
“leitura” simbólica global ou parcial por se afastarem demasiadamente do universo
“realista”. A segunda classe de filmes são as obras que ao mesmo tempo que
permanecem em uma tonalidade “realista”, constroem um mundo plausível e tornam
possível uma leitura literal da história. Por seus desvios de uma estética plenamente
realista e clássica, convidam a uma leitura simbólica. Não são de imediato simbólicos,
antes tornam-se simbólicos, à medida que se desenvolvem. Aqui, ainda, o sentido
simbólico procede da intenção do autor e da do filme. A terceira classe de filmes são
todos que a priori não exigem leitura simbólica, mas oferecem-se, ao contrário, a uma
apreensão simples, literal. Nesse caso, seria a intenção do leitor, do analista, que geraria
significações simbólicas. [...] Ademais, é possível postular que qualquer arte da
representação (o cinema é uma arte da representação) gera produções simbólicas que
exprimem mais ou menos diretamente, mais ou menos explicitamente, mais ou menos
conscientemente, um (ou vários) pontos de vista sobre o mundo real. De que tipo e
como se manifestam são questões colocadas pelo analista. E como detectar o simbólico?
Através do estudo do roteiro e de metáforas pontuais e de redes metafóricas (p.56-63).

Parte II

- Análise na prática: Planos (unidade mínima de análise, que segundo Bergson é parte
móvel e de movimento do filme, enquanto que o quadro é imóvel e diz respeito ao
espaço, e o conjunto de planos diz respeito à montagem e ao todo do filme).

- Segundo Michel Marie o que é necessário descrever num primeiro momento:


numeração do plano, duração em segundos ou numero de fotogramas; elementos visuais
representados; escala dos planos; movimentos no campo, dos atores, etc.; movimentos
da câmera; raccords ou passagens de um plano a outro que confere continuidade ao
filme (*ou falso raccord, que quebra essa continuidade*); trilha sonora (diálogos,
ruídos, músicas, transições sonoras); relações entre sons e imagens (p.65-66).

- Os aspectos que, após observação e descrição, vão reter nossa atenção são: o cenário
(os elementos do cenário, o cenário com relação aos acontecimentos, a função do
cenário na cena); os personagens (física e implicitamente presentes, as relações que os
vinculam); a direção ou encenação; o ritmo (mais cinematográfico que teatral, assumido
pela montagem e pela música, ligado à intensidade emocional) (p.71).

- Exemplo de análise de um plano: Rebecca (1940)


Situação do plano: interna - dia
O plano situa-se na chegada do casal a Manderley, no inicio do ato II. É precisamente o
quarto plano do interior do solar. A jovem descobre, ao mesmo tempo, seu novo
contexto de vida e a personagem da senhora Danvers. É o segundo plano que desvenda
o espaço do saguão. O primeiro é um plano de semiconjunto, este é um plano de
conjunto, o único da cena que conta, ao contrário, com um grande numero de primeiros
planos. Este mostra bem que os personagens ocupam no contexto um espaço bem maior
que o espaço físico concreto.
É enquadrado por dois planos do casal: precedido por um plano imóvel que enquadro o
casal em plano aproximado, valorizando o olhar surpreso de Maxim e o olhar de pânico
da jovem à visão do grupo de criados, seguido de um plano americano do casal
avançando (a câmera descreve um travelling para trás), com a mesma expressão no
rosto.
Duração do plano: dois segundos.
Movimento da câmera: câmera fixa.
Profundidade do campo: o foco é nos personagens (o casal e os criados), o plano de
frente e o plano de fundo permanecendo flous.
Personagens no campo:
- Grupo de criados no fundo do cômodo, imóvel, três quartos de rosto.
– Maxim e sua jovem esposa avançam e descem alguns degraus, três quartos de costas
Som:
- Ausência de diálogo.
– Presença de uma música ilustrativa, tema musical no trompete, sobre fundo de
orquestra, que lembra as melodias da Idade Média, acompanhando a entrada do casal
Descrição do cenário: em primeiro plano à esquerda, grande buquê ou vaso de flores,
bastante flou, depois ao longo da esquerda, três cadeiras encostadas na parede, depois
uma imensa lareira formando uma massa escura, depois uma abertura muito alta que
praticamente atinge o teto, em forma de arco, fonte luminosa do cômodo. [...] (p.100).

- Análise de curtas metragens de ficção:


As obras fílmicas curtas exibem seus dispositivos (narrativos ou discursivos), sua
estrutura dramática e rítmica, a forma-sentido que produz seu impacto de maneira mais
evidente que os longas-metragens, isso provavelmente porque a apreensão desses
elementos não tem tempo de ser diluída nos meandros de uma história ou distraída pela
identificação com personagens ou pelas emoções que, se envolvem, fazem-no de
maneira rápida, aguda, como se “precipitassem” (p.110).

- Tabela de uma análise de plano de um curta de ficção:

PLANOS O QUE SE VÊ O QUE SE OUVE

- Elementos de análise de um filme inteiro (p.118-119).


Perguntas iniciais: quanto tempo o filme dura no total? É possível distinguir partes e
subpartes? Segundo quais critérios delimitá-las? Quanto tempo essas diversas partes
duram?
1. Resumo do filme
2. Segmentação do filme em grandes atos: espaço, tempo, marcas de pontuação
(cortes), coerência ou lógica narrativa.
Dispositivo narrativo: o narrador que conta, que pertence ao presente da enunciação; o
narrador-imagem, que mostra, enunciado pelo primeiro, diferente do primeiro, pois
pertence a um outro espaço-tempo (o do sonho).
Organização espacial: A disposição do espaço em que se desenvolve a história é
primordial e é tributário de um contexto, de uma filmagem, de uma montagem, que
constituem igualmente um espaço e guiam a visita do espectador.
Analisar uma adaptação: observar o grau de parentesco entre os títulos, os nomes dos
personagens, os contextos; escolher um eixo de análise (da mesma forma que para a
análise de um filme em geral); relações de certos aspectos; forma de estruturação de
cada obra.

- Para concluir: as questões apresentadas servem para dar atenção a materialidade do


filme, ao contexto no qual foi produzido e àquele ao qual o aproximamos atualmente, de
disponibilidade aos efeitos que o objeto de análise e a própria análise produzem no
analista, de abertura aos estratos de significação produzidos (p. 140).

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