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Reflexões sobre a representação do povo no cinema em


Cineastas e imagens do povo1

por Soleni Fressato∗

O filme documentário, para o público em geral, conserva o estatuto de


reprodutor da realidade: suas imagens, suas personagens, as situações
apresentadas “realmente aconteceram”. O que ali se mostra está muito distante das
produções ficcionais. Mas, não é tão simples assim, o documentário, como qualquer
produção fílmica, está intrinsecamente ligado ao pensamento do diretor, e mesmo a
realidade, é adaptada ao seu posicionamento. Essa é uma das questões discutidas
por Jean-Claude Bernardet em Cineastas e imagens do povo.
O livro foi editado pela primeira vez em 1985 e, recentemente, em 2003 foi
relançado em forma ampliada, contendo um apêndice com a análise de outros filmes
que não constavam na primeira edição. A partir de mais de 30 documentários de
curta-metragem brasileiros dos anos 1960 a 1980, Bernardet tem como objetivo
analisar os conflitos ideológicos e estéticos dos cineastas em sua relação com o
tema popular.
Desde os anos de 1950 os documentários de curta-metragem, notadamente
do Cinema Novo, deixaram de ser a “sala de espera” das produções de longa
metragem, assumindo um posicionamento mais crítico, intercalando os problemas
da sociedade brasileira com a linguagem cinematográfica, contribuindo, inclusive,
para uma transformação social. Outra alteração, também nos anos de 1950, surgiu
com a introdução de novos equipamentos que, possibilitaram a captação do som em
sincronia com a da imagem, transformando a linguagem do documentário. A
sonoridade deixava, assim, de ser um apêndice do visual, tornando-se parte
integrante e importante dela. Com essa alteração foi possível perceber a

1
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. 2 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.


Soleni T. B. Fressato é graduada (1999) e mestre (2003) em História pela
Universidade Federal do Paraná e doutoranda em Sociologia no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, com Projeto sobre o
tema da representação da cultura popular rural no cinema de Mazzaropi.
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multiplicidade de sotaques, vocabulários, prosódias, sintaxes que compõem a


linguagem do povo brasileiro.
É sobre esse gênero, o documentário, que Bernardet se debruça por meio do
que denomina de “método” ou “modelo sociológico”, que consiste em analisar o olhar
do cineasta sobre as classes populares, resultando no delineamento de um perfil
dessa classe. Mas, Bernardet tem a sensibilidade para perceber quando esse
método é “perturbado” ao analisar um filme que possui como personagem a classe
média, onde o cineasta, ao ter que traçar um perfil da própria classe e a qual
também pertence o seu público, acaba por identificar-se.
As temáticas desses filmes são variadas: as experiências da classe popular, a
situação da classe operária e as greves, a situação rural e a reforma agrária, a
cultura popular, os efeitos do cinema hollywoodiano no imaginário popular, aspectos
do candomblé em Salvador, a classe média, ou ainda, a relação dos artistas e
intelectuais com a ditadura militar.
De forma geral, como em Viramundo e Subterrâneos do futebol, a imagem
construída da classe popular é de alienada e histérica, que só se resolve no
misticismo religioso ou utilizando os jogos de futebol como “válvula de escape”, após
uma semana de trabalho e até de fome. Em A opinião pública o cineasta se defronta
com a própria classe, a média, construindo uma visão tão negativa como da classe
popular. A classe média é inerte e submissa, se deixa manipular e se entrega à
alienação. Já o trabalho é apresentado de forma descritiva, sem considerá-lo em sua
relação subjetiva com o trabalhador, não sendo visto como fonte de dignidade e de
realização pessoal, o que prevalece é uma imagem negativa. Bernardet explica que
essa tendência é compreensível e coerente, uma vez que, o trabalho é alienado e o
trabalhador espoliado, tanto do próprio trabalho, como de sua produção.
Devido ao seu limite temporal (1960 a 1980) foi impossível para Bernardet
não considerar o efeito do golpe de 31 de março de 1964 nessas produções. E a
grande questão é: por que o golpe ocorreu sem nenhuma resistência popular? O
documentário Viramundo responde que, a classe operária, a principal do país, “não
tem como se afirmar, se mobilizar, só se revolve na alienação” (p. 33), ou seja, o
golpe de 64 é explicado e justificado pela alienação da classe popular brasileira. Em
A opinião pública, apesar de enfocar na classe média, a explicação não é muito
distante. O golpe aconteceu porque a classe média, por ser alienada, se deixou
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manipular. Nos primeiros anos de 1960 o ISEB (Instituto Superior de Estudos


Brasileiros), o CPC (Centro Popular de Cultura) e o Cinema Novo detiveram-se na
questão da alienação / consciência. Os intelectuais, e entre eles os cineastas,
deveriam captar as aspirações do povo, elaborá-las sob a forma de conhecimento da
situação do país e reconhecimento de suas próprias aspirações devolvendo-as ao
povo, resultando assim na consciência. Mas, o golpe colocou a intelectualidade em
crise: politicamente, porque a transformação revolucionária da sociedade, que
acreditava estar próxima, não aconteceu e ideologicamente, ao revelar que o povo
não tinha a força e a organização como se supunha.
Bernardet explora e problematiza o significado de cada imagem construída,
não apenas o local onde a cena foi filmada (no interior ou exterior da casa, no portão
da fábrica, em frente ao cinema, etc.), ou ainda, qual o posicionamento das
personagens, mas, também, o seu ângulo (câmera alta ou baixa, por exemplo), que,
sendo componente da linguagem cinematográfica, reforça a idéia que o diretor quer
transmitir. Investigar as imagens significa explorar a multiplicidade de impressões,
sensações, idéias e metáforas que, com elas, o espectador se defronta.
Além de uma análise criteriosa das imagens e diálogos que compõem cada
filme, Bernardet deteve-se no papel do locutor. Na maior parte das vezes essa
atuação é em off, entrevistando as personagens, delineando suas respostas e
inserindo as experiências individuais narradas num contexto mais geral. Esse
sistema particular / geral é seguido num grande número de filmes, é o momento em
que a fala das personagens é adequada ao aparelho conceitual e científico, mesmo
que para isso, implique uma alteração do real: “essa limpeza do real condicionado
pela fala da ciência permite que o geral expresse o particular, que o particular
sustente o geral, que o geral saia de sua abstração e se encarne, ou melhor, seja
ilustrado por uma vivência.”(p. 19) Ou seja, entre o particular e o geral existe uma
relação de dependência e sustentação. A voz do locutor é a do saber, possuindo,
também, uma função de poder, mesmo quando sua fala é mais amável e familiar,
não perde essa dupla função (saber / poder). Ele se configura, assim, como o
sujeito, a voz e o detentor do saber, tornando os entrevistados em objeto de sua
fala. Nota-se, contudo que, em Iaô e Mito e metamorfoses das mães nagô existe
uma alteração na relação entre o locutor e seu “objeto”, a voz não é mais
antropológica ou sociológica, existindo um envolvimento pessoal nos rituais, como
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também, a religiosidade não é tratada como fonte de alienação (como foi em


Viramundo, por exemplo), mas de resistência cultural. A locução off, que
tradicionalmente acompanha um grande número de documentários, muitas vezes
diminui o potencial das imagens e orienta o espectador em sua compreensão,
delimitando as significações.
Bernardet considera a atuação do diretor como fator decisivo nessas
produções. Num primeiro momento ele dá voz aos seus personagens, permite que
se apropriem das cenas, o que dá a sensação de realidade do documentário. No
entanto, transcorrido esse primeiro instante, ele passa a interagir, chegando a
interferir com as personagens, o seu “objeto”, e as situações, adaptando-as e
moldando-as, mesmo que de forma inconsciente, segundo sua própria visão. Nesses
filmes percebe-se o interesse dos cineastas pelos excluídos socialmente e que
vivem praticamente na miséria. Mas, o que os aproxima dessa classe é a emoção e
a compaixão. Fica claro que, a relação do diretor com seu “objeto” não é apenas
racional, envolvendo-se, principalmente, emocionalmente com as situações
vivenciadas e expostas por seus personagens. Nisso consiste o “modelo sociológico”
delineado por Bernardet, apresentando o documentário como um discurso que
merece ser compreendido pela razão e emoção.
Bernardet está consciente de que, a forma como escolheu para analisar
esses filmes não tem fim, sempre tem algo a acrescentar, estando sempre
incompletas. Essas análises fílmicas consistem em descobrir os mecanismos de
composição, de organização, de significação e de ambigüidade, estabelecendo as
coerências e as contradições entre tais mecanismos. Com Cineastas e imagens do
povo, Bernardet desconstrói o conceito de documentário (percurso delineado pelo
autor em outras de suas obras2), como representação do real: “Indiscutivelmente, o
documentário não é reflexo da realidade, mas interpretação, seleção, discurso”. (p.
278). Afirma que as imagens do povo, não são a sua expressão, mas sim a relação
que se estabelece nos filmes entre os cineastas e o povo. Os documentários, assim,
são uma interpretação do real e não a realidade em si. Mesmo nas produções em
que o cineasta passou a câmera para a personagem (caso de Jardim Nova Bahia,

2
Entre essas obras pode ser citada: Cinema e história do Brasil. São Paulo:
Contexto, 1994.
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em que um terço das imagens montadas foram filmadas pelo protagonista), não foi a
personagem quem selecionou e ordenou as cenas, nem determinou seu tempo de
duração, nem escolheu a música e o seu volume, apenas filmou as imagens, que
passaram pelo filtro do diretor. Foi ele quem finalizou o filme e organizou as cenas
de acordo com suas idéias e sua visão da classe popular.
Assim, nesses documentários, conclui Bernardet, não é a imagem do povo
que é expressa e sim a imagem que o cineasta tem do povo.

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