Você está na página 1de 40

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

O personagem outsider gótico – Uma análise com base nas obras do


cineasta americano Tim Burton

Mariana da Costa Antunes


0320454-1

Monografia apresentada ao curso


de Publicidade e Propaganda do
Departamento de Comunicação Social da
PUC-RIO.

Professor orientador: Alfredo Griecco

Dia 26 de novembro de 2007.


Sumário
1. Introdução ..............................................................................................................Pág.3

2. A ficção como meio de entender o mundo.............................................................Pág.6

3. A fórmula American Way of Life de se fazer cinema...........................................Pág.9

4. O que é e quem são os outsiders?........................................................................Pág.13

5. O universo dark....................................................................................................Pág.14

5.1. A origem do gótico e suas representações nas artes................................Pág.14

5.1.1 O gótico na literatura..................................................................Pág.15

5.2. A subcultura gótica.................................................................................Pág.18

5.3. Desvendando as simbologias góticas..................................................... Pág.20

6. O primeiro outsider gótico.................................................................................Pág.20

7. O universo outsider gótico no cinema de Hollywood........................................Pág.23

8. O universo outsider gótico nos filmes de Tim Burton........................................Pág.25

9. A representação do outsider gótico nos filmes de Tim Burton

9.1. Edward do filme “Edward - Mãos de Tesoura”........................................Pág.28

9.2. Ichabod Crane do filme “A lenda do cavaleiro sem cabeça”.....................Pág.33

10. Conclusão..........................................................................................................Pág.36

2
1. Introdução

De acordo com Jean Mitry, poeta, professor, realizador e teórico francês do

cinema contemporâneo, o universo fílmico difere da realidade porque as imagens

projetadas não revelam a natureza em si, mas uma parte dessa natureza, enquadrada de

modo especifico pela visão de uma pessoa. Segundo Mitry:

“(...) importante é o fato de as imagens terem sido colocadas por alguém. Não
é nossa atenção que traz esta ou aquela imagem visual à vista, mas alguém
que permanece dizendo “voilá!” pelo simples fato de ter tirado, revelado e
projetado essas imagens para nós.” (ANDREW, 2002: 155)

O cinema é o espelho distorcido da vida real. Não há como transmitir na tela o

real de maneira fiel, pois o diretor sempre mostra sua percepção individual sobre o

mundo. Ao mesmo tempo, este mundo também é construído a partir das lembranças,

experiências, vivências, mitos, histórias que o diretor absorveu da própria sociedade que

retrata. Cada filme tem uma lente específica, ou seja, a identidade do seu autor (ou

autores) marcada como uma impressão digital. Ainda, segundo Jean Mitry,

“A realidade existe como fonte inexaurível de significado para os humanos.


Nós a investimos de significado escolhendo trabalhar com ela deste ou
daquele modo. (...) Embora, em um certo sentido, seja o mundo que ainda
está falando conosco de sua maneira usual, o fato de alguém autorizar essa
significação é suficiente para nos dizer que não estamos na realidade, mas na
versão do mundo de outra pessoa”.(ANDREW, 2002: 155)

Qualquer individuo que já foi ao cinema um dia, já se identificou com algum

personagem ou reconhece alguém através dele. O cinema trabalha com tipos, figuras

que convivem na sociedade, mas que são caricaturados para que a audiência possa

rapidamente reconhecê-los.

Um personagem intrigante e que é pouco estudado é o personagem outsider.

Este termo é bastante genérico, pode denotar muitos significados. Existem diversos

tipos de personagens outsiders e vários contextos em que estes se inserem. O outsider

pode ser o turista, aquele que está de passagem por uma cultura e é apenas um olhar
3
novo sobre uma cultura que é enxergada sempre da mesma maneira pelos olhares dos

nativos deste universo. Pode ser representado também pelo imigrante, aquele que está

imerso a uma cultura que não é a dele, e por isso, é interpretado como sendo uma

espécie de intruso. Alguns personagens são enquadrados nesta denominação porque

vivem à margem de uma cultura especifica por escolha própria, outros porque foram

excluídos pelos demais. Por sua vez, existe também aquele que vive na sociedade, mas

foge à normalidade, é tido como esquisito ou excêntrico, vive apenas em seu mundo

particular e geralmente desenvolve um grande talento em uma área especifica de um

assunto de seu interesse. Todos eles, assim como os mocinhos, são rotulados pela

sociedade.

Os rótulos existentes são, por exemplo, os nerds (aqueles que usam óculos

enormes, são desajeitados e extremamente inteligentes, mas feios pela sua aparência

descoordenada e desarmônica), os freaks (aqueles que são metade monstro, metade

humano), os geeks (aqueles que são fascinados pela informática, games e filmes de

ficção científica), entre outros. Existe uma imensa catalogação de todos esses

estereótipos em qualquer cultura, e isto é enfatizado não apenas no cinema, mas também

em outros meios de comunicação, como quadrinhos, novelas e peças de teatro.

Uma categoria interessante de outsider no cinema norte-americano é o

personagem outsider gótico. O objetivo deste estudo é caracterizar este personagem e

sua representação através de duas obras do diretor Tim Burton: “Edward Mãos de

Tesoura” e “A lenda do cavaleiro sem cabeça”. O cineasta, em sua vida particular e no

estilo de seus filmes, tem uma admiração pela estética dark e sombria, que transparece

em seus personagens principais, nos cenários e em outros recursos do cinema produzido

por ele. Não apenas como diretor, mas também como produtor, Burton criou uma

narrativa fantástica através do estilo gótico e, em sua jornada em Hollywood, tem

4
produzido obras que exaltam esta subcultura, com uma visão bastante peculiar sobre

este universo. Por conta desse estilo único, as obras do cineasta são facilmente

identificadas pelos espectadores que acompanham sua filmografia.

Além disso, como Burton está inserido na cultura outsider, ele constrói seus

filmes a partir de sua própria interpretação especifica desse mundo particular. O mesmo

cria um mosaico de referências desta cultura “marginal” em seus personagens e na

estrutura visual e narrativa de seu cinema. Comumente, o cineasta inverte os papéis e

questiona qual seria o conceito de normalidade. Ele coloca na tela um debate de quem

seria realmente o esquisito: se os seus personagens estranhos ou a própria sociedade,

criando não apenas um filme que encanta pelo visual, que é a sua mais celebrada

característica estilística, mas que também aborda questões sérias, como a identificação

do individuo em uma cultura, sua aceitação pelos outros e críticas em relação à

sociedade contemporânea.

Este estudo vai mostrar também como foi concebido o personagem outsider

gótico na literatura européia e como outros diretores de Hollywood dão vida em seus

roteiros aos personagens outsiders góticos. Geralmente, eles transportam a visão deles

do que seja aquele personagem, sem o conhecer a fundo. Assim, fabricam estereótipos

que simplificam, além de criarem personagens que não têm individualidade e que têm

uma imagem negativa.

Estes dois tipos de olhares são importantes para entender a construção dessa

figura clichê nos filmes: um deles tem a proposta de levar uma leitura diferente do

personagem outsider gótico e seu universo para as telas, tentando desmistifica-lo,

enquanto o outro reforça a imagem de preconceito e do estereótipo que foi criado pelo

cinema. Sendo analisado de modo particular no cinema norte-americano, esta visão

mostra como existiu um molde para caracterizar personagens e situações que são
5
parâmetros do certo e do errado. O cinema era e é uma reunião de arquétipos e figuras,

que mostram à sociedade as regras do mundo. É um jogo de contrastes que é transmitida

à platéia, da maneira mais fácil possível, para que todos entendam como devem agir.

Alguns filmes são verdadeiros manuais de etiqueta, para a vida feliz, o romance

feliz e a família perfeita, entre outros aspectos. No mundo perfeito não há espaço para

perdedores, mas Tim Burton abriu uma brecha para que eles pudessem entrar nesse

mundo e não se sentissem tão excluídos no mainstream hollywoodiano. No mundo real

e no cinema, não há apenas luz, mas também escuridão e trevas.

2. A ficção como meio de entender o mundo

Os primeiros esboços de como a arte reproduz o real surgiram na Antiguidade,

com os filósofos Platão e Aristóteles. Segundo Selma Calasans, no livro intitulado “O

fantástico, estes dois últimos ”(...) falaram do processo de recriação real na arte

(mimese) e também de uma convenção cara à sua época (a verossimilhança).”

(CALASANS, 1988: 19) Ou seja, um texto que é próximo ao real e assim, o leitor pode

se introjetar nele.

Platão, em suas teorias, percebeu em suas observações que existe um mundo das

essências (idéias) e um mundo das aparências. “Esse segundo não seria senão a projeção

do das idéias – e é o que concretamente nós vivenciamos. Seria, portanto, um

“phantasma”, uma projeção da verdade contida no mundo das idéias.” O artista produz

um simulacro do mundo das idéias, “já que apenas conhece a aparência das coisas”.

(CALASANS, 1988: 19).

Apesar do artista simular uma realidade em seu texto, seja ele de que natureza

for, segundo Aristóteles, ele deve seguir uma coerência dentro da narrativa. Mesmo que

esta coerência, se colocada em comparação com a realidade, seja fantástica. Ou seja,

6
“ainda que o personagem a apresentar não seja coerente nas suas ações, é necessário,

todavia, que [no drama] ele seja incoerente, coerentemente”. (CALASANS, 1988:20).

Na Idade Média, a verossimilhança foi substituída pelo alegorismo. É um

período rico da literatura sagrada, mas também da profana. De um lado, os textos eram

guiados e orientados por seus escritores, não mais livre como antes. A Igreja controlava

a literatura como controlava também seu rebanho. Por outro lado, a literatura popular

também encontrava seu espaço, fugindo deste padrão de repressão, tentando se libertar

do que era escrito na época e ainda zombando das alegorias sagradas.

Outros períodos oscilaram em relação ao conceito do real e imitação do real. O

romantismo retoma a liberdade da verossimilhança e nesse período são realizadas

muitas obras de caráter exótico e fantástico. Já o realismo queria resgatar a verdade de

modo mais cru e real. No inicio da Modernidade, o poeta Baudelaire criticava a

representação que os naturalistas queriam fazer da realidade como sendo “inútil e

entediante representar o que existe, uma vez que nada do que existe satisfaz”.

(CALASANS, 1988: 24).

Na modernidade, o conceito de semiologia nasce pelos estudos de Ferdinand de

Saussure e C. S. Peirce, que coloca a literatura no patamar de participante do esquema

geral de comunicação, como sendo um veículo que transmite uma mensagem a alguém.

Segundo Roman Jakobson, em uma característica de nossa época, que é a

intertextualidade, o leitor também participa da autoria do texto. Ainda, segundo Sandra

Calasans,

“ Com todas essas mediações entre a literatura e a realidade e mais a


consciência que temos hoje da impossibilidade da linguagem de falar
diretamente o real ( Freud e Lacan nos mostraram isso), estamos longe de
exigir da arte e do artista o mesmo tipo de acordo que os antigos pretendiam
fixar. Temos de reconhecer que o real é mutável, historicamente relativo (...),
difícil de ser apreendido pelo discurso humano. Mas sempre desejado...”
(CALASANS, 1988: 25)
7
Se o real não pode ser apreendido, os veículos de comunicação utilizam-se de

meios para envolver o espectador nas histórias que são contadas, para que o mesmo

possa pensar que aquilo é real, mesmo não sendo. Apenas pensando que a narrativa

pode acontecer é que o homem embarca nela e se espelha nas aventuras do personagem.

Um dos instrumentos que o cinema se utiliza para transportar o espectador para dentro

da história é o recurso da identificação. Segundo o húngaro Béla Balázs, escritor, poeta

e crítico de filme:

“Nosso olho, e com ele nossa consciência, identifica-se com os


personagens no filme; olhamos para o mundo com os olhos deles e, por isso,
não temos nenhum ângulo de visão próprio. (...) Nossos olhos estão na
câmera e tornam-se idênticos aos olhares dos personagens. Os personagens
vêem com os nossos olhos. É neste fato que consiste o ato psicológico de
“identificação.” (XAVIER, 1983: 85)

Essa identificação se realiza através de um estereótipo conhecido pela

consciência coletiva. A palavra estereótipo designa uma idéia ou personagem que é

representado de maneira convencional, generalizada, sem individualidade. O objetivo é

simplificar e categorizar um determinado indivíduo. Essa é a maneira que o filme se

utiliza para que a audiência reconheça de primeira quem é aquele personagem, sem mais

delongas. O cinema lida com a reprodução da conduta social do homem, e essa imagem

depende do background do diretor. O personagem é visto sob o ponto de visto do autor

da história, é um espelho de sua visão.

“Certain human characteristics are recognizable by physical apperance. (...)


The reader evokes a message out of the stereotypical image (...) The
stereotype of a strong man reinforces romantic believability while an
incongruity that provokes humor is conveyed by using a stereotype of a nerd.
“ (EISNER, 2006:17)

A narrativa de ficção construiu, ao longo dos filmes, comportamentos que

retratavam parte da realidade e que com o tempo, se tornaram a realidade em si.

Qualquer individuo reconhece o papel dos personagens na trama e pode até adivinhar

qual o caminho que eles vão trilhar no filme, pois estes caminhos já são conhecidos e se

tornaram clichês. A mocinha de um filme romântico é politicamente correta, bonita,


8
muitas vezes atrapalhada e apenas no final, consegue seu objetivo, de conquistar seu

amor, e é correspondida. Nos filmes de terror, quando um personagem se afasta dos

outros, acha que não tem perigo nenhum rondando e está em um lugar silencioso e

pergunta a célebre frase “Quem está aí?”, o espectador já sabe que este será a próxima

vítima. A partir do que é representado no cinema, o espectador decodifica estes

elementos para entender o mundo real.

3. A fórmula American Way of Life de se fazer cinema

Segundo o sociólogo alemão Theodor W. Adorno, em relação à indústria

cultural, os advogados da coisa “pretendem (...) que se trata de algo como uma cultura

surgindo espontaneamente das próprias massas (...)”. Porém, a massa não é o sujeito que

move a máquina da produção cultural contemporânea, mas sim seu objeto. Ainda,

segundo Adorno, “As massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural,

ainda que esta última não possa existir sem a elas se adaptar”.(COHN, 1978: 287).

A magia do cinema começa a tomar forma com a Revolução Industrial. Este

período trouxe consigo novas relações de trabalho e transformou a sociedade. Junto a

uma nascente economia, baseada no consumo de bens, nasce a cultura de massa, uma

cultura que deveria ser comprada, que deveria ser consumida como um objeto ou uma

propriedade. Além disso, o ritmo alucinante de trabalho e a ausência de direitos neste

campo acabavam transformando o homem em um indivíduo alienado de seus projetos

de vida, que pareciam cada vez mais distantes de suas mãos.

A partir daí, o cinema entra como um analgésico. É um “tipo de pré-confecção

feito para atender necessidades e gostos médios de um público que não tem tempo de

questionar o que consome”. (COELHO, 1980: 11). O homem procura o cinema com o

9
objetivo de relaxar, de sonhar e não para pensar criticamente sobre qualquer assunto

cotidiano e real.

O cinema clássico dá o tom perfeito para transportar o espectador direto para o

modo de vida americano. Apesar desta denominação ser a fórmula oficial dos filmes de

Hollywood no inicio do século XX, alguns diretores rejeitavam este tipo de cinema. De

acordo com François Truffaut, “nos filmes habituais de Hollywood, o roteiro é um

material literário que se lê como uma peça de teatro e que só espera a chegada de um

diretor para se tornar um filme”. (BAZIN, 2005: 22). Já na opinião de Alfred Hitchcock,

esse tipo de cinema é apenas uma “fotografia de pessoas falando”. (BAZIN, 2005: 22).

Apesar do desdém de alguns diretores, o cinema clássico estabeleceu uma série

de normas e padronizações que persistem nos filmes até hoje. Os filmes tinham duração

de 80 a 120 minutos, eram produzidos de forma padronizada e despersonalizada. Todos

os temas eram tratados da mesma maneira, a linguagem era superficial e as histórias

baseadas em clássicos da literatura mundial eram cortadas, perdendo seu sentido

original, para que se encaixassem em roteiros banais. Estes roteiros embalavam 50 a 70

milhões de pessoas por semana, transformando o cinema em uma espécie de templo da

estética e da cultura.

O modo de vida americano é um estilo de vida com base na moral e nos bons

costumes que os Estados Unidos difundiram, principalmente, no período da Guerra Fria.

Era simbolizado pela idéia do “Sonho Americano”, que caracterizava uma vida de

estímulo ao consumo, à prosperidade dos subúrbios, ao trabalho masculino e à dona de

casa, que zelavam pela família. Estes ideais eram conservadores e não abriam debates

para questões polêmicas: como o feminismo, racismo, xenofobia, entre outros.

10
Esta fórmula de vida teve grande difusão através das mídias existentes na época,

principalmente a televisão e o cinema. A televisão era o aparelho que reunia toda a

família no aconchego do lar. Os jovens passavam mais horas em frente à televisão do

que na escola e esta mídia ditava os padrões de comportamento na sociedade:

“What was portrayed on television became accepted as normal. The ideal


family, the ideal schools and neighborhoods, the world, were all seen in a
way which had only partial basis in reality. People began to accept what was
heard and seen on television because they were "eye witnesses" to events as
never before (live TV).” (Fonte: http://kclibrary.nhmccd.edu/decade50.html.
Visualizado em 13/09/2007).

O cinema, por sua vez, “serviu a uma indústria do entretenimento e foi por ela

promovido” (ANDREW, 2002:141) A grande tela se tornou um dos grandes difusores

da ideologia da classe média. O espectador não precisava usar a cabeça para pensar

sobre aspectos externos ao filme como a política e a economia, por exemplo. Apenas

precisava usar a mente para viajar na ilusão de que tudo era luxo, prosperidade e happy

end. O cinema é a “(...) apresentação de um espetáculo para uma platéia passiva

hipnotizada pela mágica da técnica cinematográfica”.(ANDREW, 2002:143).

Nos filmes, os problemas do cotidiano existem, mas são facilmente resolvidos.

Existe uma mocinha, um galã-herói e o vilão, que não tem um final muito agradável. A

personalidade é unilateral, o homem é bom ou ruim, não tem espaço para o meio-termo,

nem para ambigüidade e desconstrução dos filmes contemporâneos. Os personagens são

bem definidos na trama, a narrativa é linear. O final é explícito e facilmente entendido,

não há lugar para polêmicas e muito menos para reflexões reacionárias. Além disso, foi

difundido o jeito americano de ser: o homem politicamente correto, pai de família, com

um emprego estável. Junto a ele uma mulher que zelava pela casa e pelos filhos. Estes,

por sua vez, eram educados, bonitos e espertos. A família perfeita, que morava no lugar

perfeito e tinha poder para consumir o que quisesse.

11
Segundo François Truffaut, em um ensaio sobre Orson Welles e André Bazin, as

leis de Hollywood não permitiam distúrbios de adolescentes nem familiares na década

de 30, “cujas frases de diálogo favoritas pareciam ser: “Meu filho, você é um bom

garoto” e “Daddy, você é o melhor papai do mundo”. (BAZIN, 2005: 19). Essa fórmula

de organização da sociedade foi amplamente difundida dentro e fora do país e

repercutiu na própria sociedade, tornando o cinema um instrumento de coesão social.

O comportamento regrado e padronizado produzido pelo cinema era totalmente

paradoxal com a liberdade que os americanos tanto prezavam. Mas a sociedade era mais

fácil de ser controlada desta maneira, impondo a maneira ideal de família tradicional e

que deveria ser seguida a qualquer custo. O medo da exclusão fazia com que os

americanos vivessem de aparência, pelo menos do lado de fora da porta de casa.

O estereótipo no cinema reforça essas posições maniqueístas. O mocinho,

modelo a ser seguido, é alto, forte, impõe-se, enfrenta tudo e todos e tem uma família

exemplar. Este estereótipo é visto como algo positivo e é o espelho do que a maioria da

sociedade quer alcançar. Os excluídos são os vilões, feios, desajustados, rebeldes, entre

outras características negativas, que todos querem fugir para não ficar à margem da

sociedade.

Segundo André Bazin, francês, teórico de cinema e um dos fundadores da

revista Cahiers du cinéma, claro que “sempre existiram filmes que resistiram ao

impulso do cinema clássico”. (ANDREW, 2002:143). Um deles foi o do diretor outsider

Orson Welles, que concebeu Cidadão Kane. Da mesma maneira que Tim Burton, Orson

Welles também conta histórias familiares, mas que tem um viés diferente daquelas que

são pregadas nos circuitos de Hollywood.

12
Uma característica ousada dos filmes de Orson Welles, segundo François

Truffaut é:

“(...) os pais, os filhos, os tios, as tias, em Welles, fazem o gênero


exarcebado, e os personagens principais quase sempre sofrem de um trauma
afetivo (...) se vêem famílias se dilacerarem por amor sem que o espectador
consiga tomar partido por este ou aquele personagem, todos eles agindo com
nobreza”.(BAZIN, 2005: 19).

Porém, ainda na contemporaneidade, a maioria dos filmes americanos tem

narrativas lineares e previsíveis, que contêm uma lição de moral superficial e se

contentam em satisfazer a sociedade com um estilo e mensagens convencionais. O

próprio público vê o cinema como uma válvula de escape, e prefere ver aquilo que não

pode viver, por uma série de circunstâncias da vida real. Da mesma maneira que no

período da Revolução Industrial, o significado da ida ao cinema não mudou. Cinema

ainda é sinônimo de diversão despretensiosa.

4. O que é e quem são os outsiders?

Outsider, palavra inglesa que define “aquele que está de fora”, “externo”,

“estranho” e “forasteiro”. A expressão conceitua o sujeito que quer se libertar das

amarras da sociedade, que tem consciência do seu papel nela, mas que não pode exercê-

lo de maneira livre, pois ninguém o aceita. Geralmente, pessoas que se auto-denominam

outsiders tem um mesmo estilo de comportamento: Constroem o seu próprio mundo

interior através de referências existentes neles próprios como estratégia de

sobrevivência, criam regras próprias, não tem muitos amigos (ou nenhum), vivem de

maneira isolada e solitária, e principalmente, desenvolvem grandes habilidades em uma

determinada área de seu interesse.

Geralmente, são vistos pelos olhos dos outros como mal-humorados, malucos,

esquisitos, anti-sociais, entre outros estigmas nada agradáveis. Por isso, foram

apropriados pelo cinema como modelos do que não deve ser seguido. O lado negativo

13
do outsider foi bastante explorado no cinema para estes fins. Algumas características

destes tipos são: tímidos, feios, altos, magrelos, corcundas, branquelos, com espinhas,

óculos, ingênuos, anti-sociais, invejosos, tristes, depressivos, desajeitados, sujos,

robustos. A sociedade norte-americana não queria ser identificada com nenhum desses

“atributos” pelo mundo afora.

Por isso, o outsider é aquele que ameaça o modo de vida americano: famílias

com as roupas brancas e impecáveis, cabelos loiros e sedosos, sorriso branquíssimo e

um grande senso de boas-vindas. Um personagem que também é bastante utilizado em

filmes americanos para caracterizar forasteiros que não são bem vindos são os

extraterrestres, que sempre representam a ameaça à paz e à liberdade do país.

Porém, existe outro lado. O lado daqueles que convivem com pessoas outsiders

ou o são, podendo traduzir esse universo de maneira rica e interessante e não pontual e

superficial. Segundo o escritor e dramaturgo Mário Bortolotto, que trabalha com esse

tipo de personagem e com tudo que seja fora do “produto cultural” existente, diz o que o

motiva a construir em cima desses tipos:

“Esses personagens excluídos, chamados outsiders, são muito mais


interessantes para se fazer boa ficção, tanto no cinema como no teatro ou
literatura. São mais interessantes do que personagens comuns que levam uma
vidarotineira,cotidiana.”(http://www.revistaetcetera.com.br/15/bortoloto/
bortoloto2.htm. Visualizado em Setembro de 2007.)

A relação do cinema com esta cultura é de mão dupla. As simbologias na tela alimentam

a vida e a imagem que a sociedade tem deles – de maneira positiva ou negativa – e a

memória afetiva dos cineastas na sociedade, como espectadores e com sua visão

específica também constroem essa imagem simbólica.

5. Universo Dark

5.1. A origem do gótico e suas representações nas artes

14
Gótico é um termo originado no séc XVI, na Itália, e desde este período vem

carregado de uma carga pejorativa. O termo foi cunhado por Giorgio Vasari, pintor e

arquiteto italiano, considerado o fundador da História da Arte. Segundo Vasari e seus

contemporâneos,

“ (...) a arte da Idade Média, especialmente no campo da arquitetura, é o


oposto da perfeição, é o obscuro e o negativo, relacionando-a neste ponto
com os Godos, povo que semeou a destruição na Roma antiga em 410. Vasari
cria assim o termo gótico com fortes conotações pejorativas, designando um
estilo somente digno de bárbaros e vândalos.”
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Estilo_gotico. Visualizado em 01/10/2007).

Ou seja, esta definição já atesta que, desde muitos anos, o termo gótico é associado a

palavras negativas. Segundo os artistas renascentistas, o estilo gótico era uma afronta ao

bom gosto, que existia, para eles, no estilo clássico. Toda a arte gótica era feia e

imperfeita. Por isso, gótico vem de Godos, tribo germânica conhecida como bárbara,

pelo seu comportamento não civilizado e rude. A arte nunca poderia ser feita por

bárbaros, segundo os renascentistas.

Apesar das críticas dos artistas clássicos, essa arte foi perfeita para decodificar o

mundo misterioso, frio e escuro que representou a Idade Média. Só mais tarde, durante

o Romantismo, com seus poetas deprimidos e desesperançados que versavam sobre a

morte e a amada, a arte gótica vai ser valorizada.

5.1.1 O gótico na literatura

Segundo a enciclopédia virtual Wikipedia, a literatura gótica emergiu em

meados do século XVIII, na Inglaterra, e é caracterizada por abordar o horror a

elementos do desconhecido, ligada ao terror e ao medo. Algumas das características

literárias deste gênero são: polarização entre o bem e o mal, a existência de uma

atmosfera misteriosa, o uso da psicologia do terror, as discussões sociais e políticas, o

15
imaginário sobrenatural, os cenários escuros e com a aparência de abandono, os

aspectos religiosos, o drama melodramático, entre outros.

A literatura gótica criou uma espécie de iconografia única que é utilizada até

hoje no cinema. Segundo Lucía Solaz Frasquet, que fez uma tese de doutorado

intitulada “Tim Burton e a construção do universo fantástico”, as imagens de “ húmedas

criptas, paisajes escarpados y castillos prohibidos habitados por heroínas perseguidas,

villanos satánicos, hombres locos, mujeres fatales, vampiros (...) y hombres lobo”

(FRASQUET, 2003: 274) ficaram no imaginário dos cineastas e dos espectadores como

símbolos de filmes de terror.

Grande parte dos escritores da literatura gótica utiliza-se de elementos oníricos

para a construção de suas obras, isto porque o gótico tem uma relação intrínseca com o

fantástico. Segundo a escritora Anne Williams, que publicou o livro Art of Darkness: A

Poetics of Gothic,

The prominence of the dream in Gothic is understandable, not only as an


appropriate source of authoral inspiration, but as itself the most characteristic
gothic text”. As a peculiar kind of “language”, the dream occupies an
ambiguous position along the border between the conscious mind with its
symbolic resources and the unconscious or subliminal significations of the
“semiotic”, where works may be nonsense and images meaningful. (...)
Gothic texts are not merely “dream-like” as a whole; rather, specific gothic
conventions express violations of “reality”, as it is constituted and organizaed
by the Symbolic, in much the same way that dreams do. (WILLIAMS,
1995: 71)

Ou seja, a literatura gótica não é apenas um delírio que vem dos sonhos, mas se utiliza

deles para violar a realidade existente e trazer a tona um debate real sobre a sociedade.

Por exemplo, na narrativa de Mary Shelley, o homem transgride as regras da criação,

que só é cabível a um ser superior, e no livro é revelada a punição para tal abuso de

poder do homem. Da mesma maneira, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que mostram ao homem

como ele pode ter duas personalidades: uma na luz e outra na escuridão, mas que

16
existem regras na sociedade que não permitem o homem exercer plenamente seu lado

obscuro.

A literatura gótica foi iniciada através da imaginação de Horace Walpole, que

escreveu o romance “O castelo de Otranto” em 1765, considerado o primeiro romance

gótico da história. A publicação foi o estopim para outros escritores, dentre eles

mulheres que se destacaram nesse tipo de gênero literário como Ann Radcliffe (1764-

1823) e Mary Shelley (1797-1851). A primeira tornou-se uma das novelistas mais

populares na Europa com histórias como “The Mysteries of Udolpho” e “A Sicilian

Romance”. Suas obras davam autonomia as mulheres e tirava as mesmas de seu refúgio,

que era o lar e a família, para viver aventuras desconhecidas. Segundo o site do

Brooklyn College, na literatura de Radcliffe,

“the heroine is forced to flee her home or her refuge; her flight allows her to
experience exciting adventures. Her traveling also occurs within doors, where
she explores corridors, vaults, abandoned wings, locked rooms in the castle
or abbey or the caves under them.”
(http://academic.brooklyn.cuny.edu/english/melani/novel_18c/radcliffe/
index.html. Visualizado em 15/11/2007).

Já a segunda, criou um dos personagens mais celebrados e inesquecíveis da literatura

gótica: Frankenstein. Depois de escrever um curto conto na qual um homem dava vida a

um monstro, seu marido Percy Bysshe Shelley a encorajou a escreveu um livro sobre a

tal história. A obra foi massacrada pela crítica, mas teve um imenso sucesso popular,

que se estende até a contemporaneidade.

No continente americano, um dos maiores escritores de contos e poesias

misteriosas e macabras é o escritor Edgar Allan Poe (1809-1849), que é um dos

precursores da narrativa policial e fantástica modernas. Segundo Walt Whitman, poeta

americano, contemporâneo de Poe,

" Poe’s verses illustrate an intense faculty for technical and abstract beauty,
with the rhyming art to excess, an incorrigible propensity toward nocturnal

17
themes, a demoniac undertone behind every page—and, by final judgment,
probably belong among the electric lights of imaginative literature, brilliant
and dazzling, but with no heat. There is an indescribable magnetism about the
poet’s life and reminiscences, as well as the poems.”
(http://www.bartleby.com/229/1205.html. Visualizado no dia 11/10/2007)

Os pequenos contos e poemas de Poe contem em suas páginas elementos de terror

gótico e psicológico, que tornam suas narrativas intrigantes e surpreendentes, que dão

margem a filmes ou representações de qualquer outra mídia. Por isso, o escritor foi e é

influência para diversos artistas como Roger Corman, Lou Reed do Velvet

Underground, o próprio Tim Burton e Alfred Hitchcock que declarou em um artigo nos

anos 60:

"...it's because I liked Edgar Allan Poe's stories so much that I began to make
suspense films. Without wanting to seem immodest, I can't help but compare
what I try to put in my films with what Poe put in his stories; a perfectly
unbelievable story recounted to readers with such a hallucinatory logic that
one has the impression that this same story can happen to you tomorrow."
(http://www.imagesjournal.com/issue03/features/hitchnabnotes.htm#20.
Visualizado em 12/10/2007).

5.2. A subcultura gótica

Segundo o SpectrumGothic, que é um site com bastantes explicações sobre a

cultura gótica como um todo, o termo gótico aliado à uma subcultura surgiu no final da

década de 70 e tinha “sinônimo de irracional, imaginativo, ou o que ousa penetrar nas

trevas da mente e terrível condição humana".

A figura do gótico, pensada com base no seu estereotipo, é de uma pessoa muita

branca como um cadáver, com feições andróginas, roupas pretas, comportamento anti-

social e com gostos e rituais sinistros como idas a cemitérios à noite e rituais de bruxaria

e ocultismo. Desta maneira, no máximo, consegue-se definir o gótico de maneira

superficial. Apenas existe o estereotipo, sem a individualidade do ser. Mas, se estudado

a fundo, as crenças e simbologias desta subcultura são bastante ricas e interessantes. Só

através de um aprofundamento maior é possível compreender e entender o universo do

outsider gótico.
18
Para o gótico, assuntos como morte, desconhecido, sobrenatural são inerentes ao

homem. A sociedade ocidental tenta repelir estes temas de sua vida cotidiana, por isso,

rejeita os góticos, pois estes mostram para o mundo que existem estes elementos

assombrando a existência do homem. Segundo Deize Fonseca, em sua tese sobre o

escritor Edgar Allan Poe, um romancista inglês que leva elementos do gótico para suas

narrativas: “O que o gótico reconhece, é exatamente isso: o estranho e angustiante não

são externos, mas sim, internos ao homem, confirmam claramente que o homem é o

inferno de si mesmo. Ele traz o inferno dentro de si”.(FONSECA, 2006:27) Ou seja, são

assuntos naturais que deveriam ser expostos na sociedade, mas que a sociedade em si

prefere deixar a margem de sua vida.

O gótico é outsider por natureza, tem um caráter underground. Geralmente tem

uma atitude contestadora em relação à sociedade e, por isso, permanece sozinho ou em

grupos específicos, de pessoas que compartilham as mesmas visões de mundo, gostos e

comportamentos. Através da descrição de pessoas inseridas nesta subcultura, o gótico é

um individuo ligado à arte, que gosta de pensar sobre a dualidade da existência, tem

geralmente posturas incomuns e são pessoas que são criticas em relação à sociedade

contemporânea. Por isso, vivem solitárias ou em tribos. Além disso, os góticos

desenvolvem o talento e a criatividade através dessa postura introspectiva e, por isso,

muitos góticos são poetas ou músicos.

Os góticos têm um humor negro apurado, que é incompreendido pela sociedade,

e vêem beleza em elementos que a maioria repudia: como lápides, ruínas, castelos

medievais, filmes de terror, seres sobrenaturais, entre outros. Também são muito

relacionados ao ocultismo e rituais de bruxaria. O gótico tem ampla curiosidade pelo

desconhecido e isto faz com que esta subcultura seja diferente do status quo.

19
5.3. Desvendando as simbologias góticas

Se há um lugar onde a maioria das pessoas não quer pisar, pois é um local de

tristeza e perda, é em um cemitério. Este local de repouso eterno, que tem uma

conotação negativa muito grande na cultura ocidental, tem uma conotação oposta para

os góticos. Para eles, este local possui uma quietude e paz, que proporciona a eles o

lugar ideal para a introspecção e contemplação da existência humana. Além disso, é

uma maneira também do gótico se refugiar do mundo moderno agitado e caótico. O

clima de mistério, beleza e espiritualidade também são elementos que fazem dos

cemitérios lugares atrativos para esta subcultura. Segundo o site Umbraum, estes locais

são ótimas fontes de inspiração para os artistas góticos, pois, “As esculturas, mausoléus,

locais sombrios são elaborados e freqüentemente ornamentados. Eles são como um

museu gótico, um lugar favorito para obter retratos artísticos”.(

http://www.umbraum.com/goticos.htm. Visualizado no dia 07/10/2007)

A morte é outro tema relacionado à cultura gótica. Segundo a autora do blog

Gotika, “Ser gótico é ter um romance com a morte” (http://gotikka.blogspot.com -

Visualizado 10/10/2007). Analisando esta frase, podemos deduzir que o gótico é uma

pessoa que aceita a morte como algo inevitável da vida e a vê como uma sombra que

persegue a todos. Mas isso não quer dizer que essa consciência dos góticos sobre a

morte torna os mesmos suicidas ou assassinos. O que os fascinam não é cometer atos

que causem a morte deles ou de outros, mas sim o mistério da existência, da vida após a

morte. Existe um grande tabu, na maioria das culturas ocidentais em relação à morte. A

visão da morte, para os góticos é bem definida no poema “Morte dos pobres” do poeta

francês Charles Baudelaire:

20
MORTE DOS POBRES

Vivemos pela morte e só ela é que afaga;


É a única esperança, e o mais alto prazer,
Que como um elixir nos transporta e embriaga,
E nos faz caminhar até o anoitecer.

E através da tormenta, e da neve e da vaga,


É o vibrante clarão de nosso obscuro ser,
Albergue inscrito em Livro e que nunca se apaga,
Feito para jantar e para adormecer.

É um anjo que segura em seus dedos magnéticos


O sono e mais o dom dos êxtases mais poéticos,
Que sempre o leito arruma aos pobres, como aos rotos;
Ela é a glória de Deus e a bolsa do mendigo,
É o místico celeiro e mais o lar antigo,
Pórtico que se abriu para os céus mais ignotos.

O ocultismo e a bruxaria também são comumente associados aos góticos. A

subcultura gótica tem uma grande curiosidade relacionada ao sobrenatural e seus

membros procuram religiões que não reprimam seus seguidores, como as religiões

pagãs e o ocultismo, que prezam pelo livre arbítrio do individuo. Segundo o site

GothicSpectrum, atualmente existem um grande número de góticos adeptos a Wicca e

ao Neopaganismo.

A religião pagã, ou paganismo tem como preceito o homem em comunhão com

a natureza. Enquanto a religião católica é ligada ao pai, a religião pagã é voltada para

laços matriarcais, da Grande mãe, que protege tudo e todos. Além disso, segundo a

Wikipédia, há uma relação mágica do individuo com a natureza e é uma prática que

induz ao florescimento da sexualidade. A partir do paganismo que se desenvolveu a

medicina natural, que usa elementos da natureza para a cura. Na Idade Média, quem

praticava o paganismo, sendo a Igreja Católica, era acusado de fazer pacto com o

demônio e feitiçarias e, por isso, muitos adeptos do paganismo foram perseguidos pela

Inquisição com a alcunha de bruxos e feiticeiros.

Já a religião Wicca, segundo a Wikipédia, é uma religião neopagã baseada na crença da

magia e filosofia da Europa antiga. É tida como uma bruxaria moderna, que foi
21
readaptada da bruxaria pagã secular. Diferentemente do que se pensa, os adeptos da

religião Wicca não acreditam e nem adoram o demônio, não incentivam o uso de drogas

e orgias sexuais. Estas ações, que são associadas aos bruxos, são traços do estigma

negativo que a Igreja Católica criou e que tem reflexos até hoje. Ao contrário, o que a

Wicca considera é que o universo precisa de um equilíbrio, entre a energia boa e a ruim.

Além disso, os mesmos respeitam a diversidade e também as outras religiões, pois

acreditam que o ser humano tem livre arbítrio para traçar suas escolhas.

5.4. O primeiro outsider gótico

O primeiro personagem outsider gótico da literatura foi criado 1818, pela inglesa

Mary Shelley, em uma viagem com amigos que apreciavam as histórias sobrenaturais.

O desafio do grupo era criar uma história interessante e horripilante sobre este gênero.

Segundo a autora, sua inspiração veio através de um pesadelo,

“My imagination, unbidden, possessed and guided me, gifting the successive
images that arose in my mind with a vividness far beyond the usual bounds of
reverie…I saw the pale student of unhallowed arts kneeling beside the thing
he had put together—I saw the hideous phantasm of a man stretched out, and
then, on the working of some powerful engine, show signs of life, and stir
with an uneasy, half-vital motion…What terrified me will terrify others; and I
need only describe the spectre which had haunted my midnight pillow.”
(http://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Shelley. Visualizado em 20/09/2007).

A criatura, conhecida hoje pela massa de Frankenstein, na verdade não tinha este

nome. Frankenstein é o sobrenome do estudante Victor, que deu vida ao monstro-

humano. Fascinado pelas ciências naturais, o personagem descobre a “fórmula” para

gerar uma vida. Assim, depois de incessantes tentativas e isolamento do mundo exterior,

Victor consegue criar uma criatura monstruosa, com partes humanas orgânicas e simula

o funcionamento do sistema humano nela. A intenção de Victor era criar uma criatura

bela, mas isto não acontece. Por causa deste acontecimento, o estudante abandona sua

invenção e começa uma jornada na vida do personagem de declínio e morte.

22
Frankenstein, o monstro retratado no livro de Mary Shelley, é um ser que, ao

mesmo tempo é monstruoso, mas também articulado e culto. A criatura não age por

instintos assassinos e nem de maneira irracional, como poderia se esperar de um ser

animalesco. Todas as ações de Frankenstein têm uma explicação. Isto o coloca na

categoria de outsider gótico. Ele age por causa e conseqüência. Como foi abandonado

por seu criador, e é escorraçado pela sociedade, por causa de sua aparência, o mesmo se

rebela e sente rancor pela humanidade. E, por isso, o primeiro da lista de seus desafetos

é o próprio Victor. O monstro tenta aprender os códigos de linguagem dos humanos,

para poder ter o afeto dos mesmos pela compaixão e amor, mas nem assim ele obtém

êxito. Por ser diferente, ele é renegado e banido. Vive em lugares onde o homem não

ousa pisar ou na escuridão, escondido de possíveis ataques.

O romance é um terror gótico que tem como cenário as regiões da Suíça,

Alemanha e Inglaterra. O pano de fundo dos acontecimentos são regiões bucólicas e

frias, com lagos e nevoeiros, que dão um clima de mistério e calma mortal. No cinema,

mais cenários dignos de contos de terror foram transportados para a narrativa: como

castelos assombrados e moinhos abandonados. A narrativa do livro diverge um pouco

do romance gótico, pois apesar de ter um herói e uma “princesa”, que seriam Victor e

Elizabeth, ambos sucumbem à ira da criatura. Não há um final feliz, mas sim uma lição

de moral em relação à curiosidade do homem com a ciência e como este último não

pode ultrapassar determinados limites. Segundo o livro, só a Deus cabe a criação e se o

homem se atrever a realizar este feito, sobre ele cairá sua própria destruição.

6. O universo outsider gótico em Hollywood

Os filmes de terror e fantasia são palcos para os personagens góticos outsiders

de Hollywood. A adaptação para o cinema da obra de Mary Shelley foi muito ampla,

diversas vezes com modificações significativas no roteiro. Foi através do cinema que se
23
criou a imagem definitiva e estereotipada do monstro Frankenstein: um ser muito alto,

pálido, com grandes testa e olheiras, parafusos e cicatrizes na cabeça e nuca,

movimentos desajeitados e pesados.

Segundo o site da Washington State University, há 59 longa-metragens com o

personagem. O primeiro deles, dirigido por James Whale, em 1931, foi influenciado

pelo expressionismo alemão e pela peça de Peggy Webling de 1927. Produzido pela

Universal Pictures, o filme não era fiel ao texto de Mary Shelley e cometia várias

liberdades como nomear a criatura como Frankenstein, supondo que o personagem seria

uma extensão da família de Victor. Além disso, no filme, o criador não rejeita a criatura,

mas conclui que a experiência foi um sucesso. Outro aspecto é que Victor é

representado como um inventor maluco e não um estudante de medicina, imagem que

vai ser difundida por outros filmes sobre o monstro.

Em 1935, há uma continuação, que vai criar um filão de outros filmes sobre o

personagem pela Universal Pictures. O título do filme, “A noiva de Frankenstein”,

dirigido também por Whale, traz outra liberdade do roteiro. No original de Mary

Shelley, o monstro quer que seu inventor crie uma fêmea igual a ele, para que ele possa

deixar Victor e a humanidade em paz. Porém, o criador não sede a vontade de sua

criatura. No filme, Victor cria uma noiva para Frankenstein, porém ela o rejeita. Outros

filmes da Universal Pictures que precederam este dois foram: O filho de Frankenstein

(1939), O fantasma de Frankenstein (1942), Frankenstein encontra Lobisomem (1943),

A casa de Frankenstein (1944). A industria cultural transformou a novela gótica de

Mary Shelley em uma obra popular para a massa, porém bastante tolhida da obra

original da autora.

O último filme mais expressivo de Frankenstein no cinema de Hollywood foi

realizado em 1994, dirigido por Kenneth Branagh com o mesmo no papel de Victor
24
Frankenstein, Robert De Niro como a criatura e Helena Bonham Carter como Elizabeth.

Este último longa subverte totalmente a obra de Mary Shelley, pois modifica bastante a

origem dos personagem e a trama em si (o amigo de infância de Victor, Clerval, vira um

estudante de medicina que o primeiro conhece na faculdade, os irmãos que vivem na

casa em que Frankenstein aprende a ler viram marido e mulher com filhos e no final,

Victor ressuscita Elizabeth, transformando-a em um monstro como o primeiro que foi

criado).

Os principais expoentes da literatura gótica que foram transportados para o

cinema, foram, além de Frankenstein, The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde

(1886) de Robert Louis Stevenson, The Island of Dr. Moreau (1896), de H. G. Wells ,

Dracula (1897) de Bram Stocker entre outros.

6. O universo outsider gótico nos filmes de Tim Burton

Lucía Frasquet identificou, em sua tese de doutorado sobre o diretor Tim Burton,

que suas obras continham elementos típicos da narrativa literária gótica.

“Veremos que los films de Tim Burton recogen elementos como la


tradición romántica de oposición al estilo y mentalidad clásicos, la atmósfera
misteriosa y cargada de sombras, así como el exceso y la tendencia
melodramática característicos de la novela gótica, el espíritu de rebelíon
contra la sociedad, la amplitud mental, la valoración de la belleza de lo
diferente y el sentido del humor propios del movimiento gótico actual y que
antes alimentaron la rebelión expresionista.” (FRASQUET, 2003: 274)

Um aspecto interessante para analisar a direção cinematográfica de Tim Burton,

em específico, foi como ele criou em seus trabalhos sua própria comunidade outsider

gótica. Na grande maioria de seus filmes, o diretor trabalha com atores fora dos padrões

universais de beleza e comportamento politicamente correto. Além disso, determinados

atores estão constantemente em seus filmes, como Johnny Depp, Helena Bohan Carter,

Christopher Walker, Michael Keaton, Christopher Lee, Michael Gough. O grupo

escolhido para seus filmes são pessoas que conseguem passar a emoção exigida pelo
25
roteiro apenas pela expressão de seus rostos. O diretor enfatiza em todos os seus filmes,

que ele usa muitas referências do cinema mudo, por isso, a imagem é mais importante

do que a palavra. Alguns comentários do diretor durante seus filmes são que tal ator tem

a característica de um ator de filme mudo, que consegue em poucas palavras passar o

que está sentindo na cena. Os atores que participam de seus filmes são unânimes em

dizer que foram escolhidos por causa de sua excentricidade. Alguns, como Vicent Price

e Christopher Lee, foram homenageados pelo diretor com pontas em longas do diretor,

pois são atores que ficaram consagrados por seus personagens em filmes antigos de

terror, que é uma das referências do cineasta na estética de suas películas.

Além disso, a fotografia trabalha com os contrastes: preto versus branco, preto

versus colorido, sombras e reflexos como influências do expressionismo alemão. O

diretor trabalha bastante com o conflito do personagem principal com os outros

personagens. E o recurso utilizado para mostrar esse duelo é apresentado visualmente

pelos contrastes: na fotografia, figurino, recursos da câmera (como enquadramento, foco

etc), música, cenário entre outros recursos.

A atmosfera é elemento essencial para a trama gótica. O cenário, em especial, é

apresentado de maneira extremista e fantástica, como um dos personagens da história. O

diretor faz questão de ressaltar, em todos os seus comentários nos filmes, que o cenário

tem a função de dar o tom do filme, fazer o espectador entrar no clima da narrativa. Se o

espectador não entrar no filme de cabeça, ele não consegue penetrar na trama que vai

ser desenvolvida posteriormente. Entre as características góticas dos cenários de Burton

estão estrategicamente colocados a neve, o nevoeiro, o céu cinzento, as árvores

retorcidas, os castelos abandonados, as ruínas, florestas sombrias entre outros. No filme

Edward Mãos de Tesoura, vê-se além da atmosfera de influência gótica, também um

cenário com cores fortes, casas perfeitamente arquitetadas, céu azul, grama verde, um

26
centro urbano planejado, que dá o tom de sátira social do filme, que reproduz uma típica

cidade pequena dos Estados Unidos. Segundo o diretor, esta cenografia representa a sua

cidade Natal, Burbank, na Califórnia.

Tim Burton faz questão de mostrar o passado do personagem considerado

estranho através de flashbacks. O diretor se utiliza deste recurso para quebrar o conceito

frio do estereótipo, e afirmar que o personagem outsider tem uma história relevante, tem

um porquê da sua personalidade presente e afirma que ele possui uma individualidade.

Esta memória resgatada traz à tona, geralmente, o relacionamento do personagem

principal com seus pais. Por este meio, o espectador entende o contexto do personagem

na história e a causa de seu comportamento solitário, isolado ou estranho. Uma metáfora

visual deste objetivo de se aprofundar no passado do personagem é que, nos créditos

iniciais do filme, o diretor utiliza a técnica cinematográfica tracking shot, que é um

movimento em que a câmera procura algo, entra dentro de alguém ou alguma coisa,

procurando sua essência, suas raízes.

Outra característica da literatura gótica é a sátira social que o diretor aborda em

relação à sociedade contemporânea. Os personagens são representados de maneira

caricata e algumas situações são criticadas como a fofoca, a “falsa” boa recepção dos

americanos em relação a estranhos (para depois falarem mal pelas costas), o uso

excessivo de terapia, da tecnologia por parte das crianças, entre outros.

A trilha sonora é outro instrumento utilizado pelo diretor para dar o tom sombrio

em seus filmes. Na história do cinema, parcerias entre um diretor e um compositor

geram trilhas sonoras inesquecíveis, pois os dois podem trabalhar com uma melhor

sintonia. Exemplos disso são as músicas dos filmes de Giuseppe Tornatore por Ennio

Morricone, Alfred Hitchcock por Bernard Herrmann e Federico Fellini por Nino Rota.

27
Tim Burton elegeu Danny Elfman como seu parceiro e consegue passar o sentimento do

filme nas canções que rodeiam seus longas. Segundo o compositor,

“ Tim have a great imagination and we seems to share the similar aproches to
things, the way we looked things. (...) Its easy for me to put music to his
images, when I see stuff that he does I hear music hide away.” (Filme
Edward Mãos de Tesoura – informações especiais – entrevista com Danny
Elfman. Visualizado em 20/10/2007)

Um último aspecto é que a relação do feminino e masculino em seus filmes

segue um padrão. O masculino, sempre colocado como personagem principal, é

outsider, pálido, com cabelos negros, tímido e desajeitado. Estes personagens são seu

auto-retrato, ou seja, é a forma com que Burton possa revelar seus pensamentos e atos

nos personagens. A aparência de Tim Burton é semelhante a de seus personagens

masculinos. Em relação às personagens femininas, a maioria delas, são mulheres que

não estão conformadas com seu papel na sociedade e o “mocinho” dos filmes, no caso o

outsider gótico, vem para tirá-las dessa situação. Assim, as personagens tomam outro

rumo, como se libertassem de um estado que as aprisiona. Exatamente como os contos

da literatura gótica, que tem este tom melodramático.

8. A representação do outsider gótico nos filmes de Tim Burton

8.1 – Edward – “Edward Mãos de Tesoura”

28
A sociedade americana sempre vigilante em relação ao outsider
gótico

O filme Edward - Mãos de Tesoura, de 1990, é um dos filmes de maior

expressão na carreira de Tim Burton. Primeiro, pois foi a sua primeira obra em que teve

mais liberdade como diretor. Segundo, porque o longa-metragem inaugura o estilo

gótico que o diretor iria tomar desde então na sua filmografia.

A película é um conto de fadas moderno gótico, que narra a história de um robô

– humano outsider gótico, interpretado por Johnny Depp, que tenta se adaptar à

sociedade moderna americana. O personagem habita um castelo gótico sombrio, no topo

de uma montanha e não tem contato com o mundo externo, desde a morte do seu

inventor. O criador de Edward falece antes de terminá-lo, o que faz com que o mesmo

ficasse inacabado. A última parte do corpo que o faria um humano completo, as mãos, e

que poderiam proporcionar seu contato com o mundo, não foram implantadas e por isso,

o que existe no lugar delas são tesouras afiadas e perigosas.

A ausência de mãos humanas no personagem é uma metáfora para um

personagem que quer se comunicar, mas não consegue. Tocar alguém, abraçar, apertar

as mãos são sinais de intimidade e de aproximação, ações que Edward não pode

realizar. Por ser diferente dos outros e não saber lidar com o mundo externo, o

personagem se isola em seu castelo melancólico até ser encontrado por Peg Boggs,

interpretada por Dianne Wiest, uma dona de casa representante da Avon. No decorrer da

trama, Edward tenta se adaptar à vida do subúrbio americano sem sucesso. Apaixona-se

por Kim, filha de Peg, mas esse amor não pode ser concretizado pela natureza diferente

dos dois.

Um aspecto interessante da personagem Kim, interpretada por Winona Ryder, é

que a personagem é a única que vê Edward como ele realmente é, pois ela se assusta na

29
primeira vez que o vê, ao contrário dos outros. Por isso, segundo Lucía Frasquet, Kim

“parece tener uma vida perfecta, pero hay algo em Ella que es como Edward. En cierto

modo, ella es una outsider incluso estando tan integrada. Esa es la razón por La que se

enamoran, y tambiém es la razón por la que El la asusta tanto al principio.”

(FRASQUET 2003:493). Uma amostra inserida no filme, que representa a satisfação

que a liberdade de expor seus sentimentos lhe proporciona, depois de libertar-se de seu

namorado e percebendo a pureza e o amor por Edward, é a cena em que Kim dança na

neve, enquanto Edward esculpe uma estátua de gelo. Aquele momento foi o único que a

personagem pode finalmente ser ela mesma, através de Edward.

A personagem Kim dança na neve enquanto Edward esculpe uma estátua de gelo.

Os traços góticos na trama são claros. No sentido visual, a aparência de Edward

é visivelmente a descrição de um individuo gótico: utiliza roupas pretas, botas estilo

coturno, tem a face pálida e cheia de cicatrizes, seus olhos tem profundas olheiras e seus

cabelos são desgrenhados. O mesmo é introspectivo e desajeitado. Apesar da carga

negativa que carrega em relação as suas “mãos-tesouras”, Edward tem grandes

habilidades com elas, pois esculpe gramados e jardins, corta os cabelos das donas de

casa do subúrbio, ajuda na cozinha cortando legumes e até apara os pêlos dos cães.

30
O abrigo do robô-humano é um castelo medieval, que remonta aos filmes de

terror do Conde Drácula: existência de portas pesadas e sombrias, grandes escadarias,

janelas altas, pouca luz e estátuas de pedra assustadoras. Além disso, a mansão fica no

topo de uma montanha escura e envolta de nevoeiro. Este cenário contrasta com o

jardim do castelo, que é um pátio verde interno com arbustos em forma de pessoas,

objetos e animais. Este elemento mostra que não há só um “monstro” dentro daquele

castelo, mas também um artista. É uma metáfora também do personagem, que por fora

tem a aparência inacabada e monstruosa, mas por dentro é frágil e belo. Já o subúrbio

em que vive Peg Boggs é mostrado de maneira colorida, plana e planejada – com a

grama cortada corretamente e as casas iguais e pintadas de cores berrantes para que

possam ser superficialmente diferenciadas umas das outras.

O contraste entre o subúrbio colorido e ordenado e o castelo medieval negro de Edward

A Morte é um dos aspectos que dá direção à vida do personagem. No início, a

morte de seu inventor possibilita o isolamento do personagem por ele não estar

terminado. Por conseguinte, a ausência de suas mãos e a aparência frágil e desprotegida


31
de Edward leva a personagem Peg Boggs a adotá-lo. No final, no clímax da trama, o

personagem mata o ex-namorado de Kim Boggs, e este motivo o leva novamente para

seu isolamento, senão o mesmo teria que enfrentar as leis dos homens. Edward percebe

que um ser como ele não se adapta ao caos e a confusão que existem na sociedade

“normal”.

Pela forma como os moradores do subúrbio chamam Edward, fica implícito o

preconceito escondido em relação ao personagem. De inicio, todos são amáveis com o

outsider gótico. Porém, o chamam de nomes nada agradáveis como o gillete, aleijado,

retardado, bobo, freak, coisa, aquilo. Perto do fim da trama, os habitantes da região

começam a espalhar fofocas hostis em relação ao personagem, transformando-o de um

individuo especial, no começo, para o título de demônio, no fim.

O personagem título do filme se assemelha ao criado por Mary Shelley, que

ficou conhecido pelo grande público pelo nome de Frankenstein. Curiosamente, no livro

original, quem se chama Frankenstein é o inventor e não o monstro. A popularidade do

personagem monstro-humano fez com que ele ficasse mais famoso que seu próprio

criador fictício. Da mesma maneira que na narrativa de Shelley, o monstro não tem um

final feliz na história. Edward termina isolado e vendo o mundo externo apenas de uma

pequena janela através do castelo.

32
8.2– Ichabod Crane – “A lenda do cavaleiro sem cabeça”

O personagem Ichabod Crane, interpretado por Johnny Depp

A lenda do cavaleiro sem cabeça, lançado em 1999, faz uma livre adaptação do

conto gótico americano de Washington Irving, de 1819. Segundo a enciclopédia

mundial Wikipedia, no conto original, Ichabod Crane é um Tutor de uma escola em

Sleepy Hollow, localizada em Nova York. O personagem disputa o amor da bela

Katrina Van Tassel, filha de um fazendeiro rico da cidade, com Abraham “Brom

Bones” Van Brunt. Em uma noite de outono, quando Crane sai de uma festa na casa dos

Van Tassel, o mesmo é perseguido por um cavaleiro sem cabeça, supostamente um

fantasma de um soldado alemão da região de Hesse, que perdeu sua cabeça durante a

guerra civil americana. A lenda conta que o soldado cavalga todas as noites em busca de

sua cabeça. Por conta desta visão, Crane desaparece da cidade, deixando Katrina casar

com Brom. O personagem é caracterizado como feio, medroso e desajeitado.

No longa-metragem de Tim Burton, o personagem é um detetive nova –

iorquino, excêntrico, medroso e extremamente racional. O mesmo é interpretado

novamente pelo ator Johnny Depp. Por causa de um trauma de infância, a morte da mãe

acusada de bruxaria pela Inquisição, o personagem se torna extremamente racional e

33
crente de que só através da ciência pode-se desvendar crimes. Porém, ao longo do

filme, Ichabod percebe que essa visão não pode solucionar todos os problemas

mundanos. Assim, o mesmo adquire características do pensamento gótico, que é bem

apresentando no site Duplipensar,

“O racionalismo e o cientificismo não solucionam os conflitos da


alma nem os da mente. As inquietudes humanas são analisadas pelos
românticos não apenas na realidade vivida, mas num universo paralelo
produzido pela mente, onde o “fantástico” habita no inconsciente humano e
utiliza-se do simbólico para se contrapor ao racional.”
(http://www.duplipensar.net/artigos/2005-Q2/literatura-fantastica-seculo-
xix.html. Visto em 13/10/2007)

O personagem é outsider, pois ele é um forasteiro que se instala em Sleepy

Hollow, uma vila campestre de Nova York, causando uma série de constrangimentos

para os moradores do local, que estão assustados pelos crimes brutais que ocorreram.

Além disso, o personagem utiliza métodos de investigação que eram tabus na época,

como instrumentos estranhos construído pelo próprio e autópsia.

Outro personagem gótico se apresenta na história com destaque. É a mocinha,

Katrina Van Tassel, que é a filha do comerciante mais importante de Sleppy Hollow,

interpretada por Christina Ricci. A atriz, que ficou marcada como a personagem

Vandinha Addams (do filme de comédia “A Família Addams), não tem uma beleza

clássica, mas excêntrica. Por isso, a aparência da interprete de Katrina nos cinemas não

se assemelha muito aos relatos do conto de Irving, já que se imagina uma figura

delicada e com uma beleza angelical. Esta beleza estranha fez com que a Katrina Van

Tassel ficasse com um aspecto mais gótico. Além de sua aparência e de seu figurino,

alguns sinais da cultura gótica são percebidos durante o filme, como seu interesse em

bruxaria e nas horas de contemplação da personagem.

34
A personagem Katrina Van Tassel, interpretada por Christina Ricci

Katrina, como a personagem feminina de Edward - Mãos de Tesoura, é uma

outsider que está dentro do sistema, mas quer se libertar, porque não compartilha das

mesmas visões e vontades da cultura em que vive. Outsider no sentido em que não

segue as regras da sociedade, como, por exemplo, beija um forasteiro sem ao menos ver

seu rosto e passeia com o mesmo durante a madrugada sozinha. Numa cidade pequena

como Sleppy Hollow, estas ações não poderiam ter acontecido, pois é impróprio para

uma mocinha, segundo os códigos comportamentais de sua sociedade.

Os cenários do filme são inspirados nos quadros pintados pelo artista alemão

Caspar David Friedrich, que trazem ao filme uma atmosfera de mistério, medo em

relação ao desconhecido, nevoeiro e escuridão. Suas pinturas demonstram o poder da

natureza e como esta é divina e bela. O pintor é caracterizado como romântico e segue

um estilo gótico em suas obras. Suas paisagens não são apenas mera reproduções da

realidade, mas interpretações da natureza de modo subjetivo, como algo que vai além da

vida. Segundo o Wikipédia, “His landscapes seek not just the blissful enjoyment of a

beautiful view, as in the Classic conception, but an instant of sublimity, a reunion with

the spiritual self through the lonely contemplation of an overwhelming Nature.”

(en.wikipedia.org/wiki/Caspar_David_Friedrich. Visualizado em 29/10/2007).


35
Quadros do pintor alemão Caspar David Friedrich
que que

9. Conclusão

Cenários do filme “A lenda do cavaleiro sem cabeça”

O cinema é um jogo de composições que um ou mais atores constroem para

mostrar o mundo como ele é. Porém, como o mundo é vasto e incompreensível até no

plano real, o que é transportado para a tela é um mosaico particular de referências,

lembranças, discursos, e outros aspectos que perpassaram a vida de um diretor de

maneira específica. O background imaginativo de Tim Burton criou um universo único

e singular no cinema de Hollywood e o mesmo trouxe um novo personagem que discute

e se insere na sociedade de maneira peculiar: o outsider gótico. Este estudo conclui que,

o personagem outsider gótico é um estereótipo que existe no cinema hollywoodiano e

36
sua categoria é bem representada pelos filmes de Burton. O diretor conseguiu trazer um

novo olhar para esse personagem, concebido pela literatura e criou traços que o

caracterizam de maneira fiel. O estilo do diretor gira em torno do personagem outsider

gótico, um lado sombrio e inquieto do individuo do mundo real, que quer ser

reconhecido e respeitado como todos os outros. Burton construiu uma nova categoria de

personagem para refletir aquele homem que não encontra seu lugar no mundo, que acha

que não se encaixa em nenhuma comunidade. A ênfase que o diretor revela em seus

filmes é que o diferente é caracterizado assim pela própria sociedade e que a diferença

deve ser celebrada como interessante, não sendo excluída do todo e principalmente, que

o individuo outsider gótico pode ser compreendido e tem seu espaço no mundo. Pelo

menos no cinema, agora, este indivíduo solitário pode identificar seu lugar e se projetar

como total na sua própria realidade.

Bibliografia:

ANDRADE, Luiz José Machado de. The themes of beauty and death in the work of

Edgar Allan Poe. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1966.


37
ANDREW, James D. As Principais teorias do cinema: Uma Introdução. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2002.

BAZIN, André. Orson Welles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2006.

COELHO, Teixeira. O que é industria cultural. 4ª edição. São Paulo: Editora

Brasiliense, 1981.

COHN, Gabriel (org.) (1978). Comunicação e indústria cultural. São Paulo:

Companhia Editora Nacional

EISNER, Will. Graphic Storytelling and visual narrative. Tamarac, FL: :Poorhouse

Press.

NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e história: As práticas mágicas no

ocidente cristão. São Paulo: Editora Àtica, 1991.

POE, Edgar Allan. Selected short stories of Edgar Allan Poe. Cleveland: Fine Editions

Press, 1952.

RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Editora Àtica, 1998.

SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Martin Claret, 2005.

WILLIAMS, Anne. Art of Darkness: A Poetics of Gothic. Chicago and London: Univ.

Of Chicago Press, 1995. (pg 71)

XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal,1983

Artigo eletrônico:

The article, "Why I Am Afraid of the Dark" was originally published in Arts: Lettres,
Spectacles, number 777, June 1-7, 1960 and is reproduced in Sidney Gotleib's
Hitchcock on Hitchcock (University of California Press, 1995), pp. 142-145. Site com a
citação: http://www.imagesjournal.com/issue03/features/hitchnabnotes.htm#20)
38
Tese de doutorado:

FRASQUET, Lucía Solaz. Tim Burton y la construcción del universo fantástico. 2003.
Dissertação (Doutorado) - Universidade de Valencia, Departamento de Teoría de los
Lenguajes. Disponível em:
<http://www.tesisenxarxa.net/TESIS_UV/AVAILABLE/TDX-0527104-
41749/solaz.pdf> Acesso a partir de: 01 de agosto de 2007.

Tese de mestrado:

ESPÍRITO SANTO, Rodrigo de Souza; PEREIRA, Miguel Serpa. Departamento de


Comunicação Social. Criaturas e invasores: representações do antagonismo no cinema
de ficção científica. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social)-Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

FONSECA, Deize Mara Ferreira; LINS, Vera Lucia de Oliveira. UNIVERSIDADE


FEDERAL DO RIO DE JANEIRO.Departamento de Letras. Sentir com a imaginação:
Edgar Allan Poe, Augusto dos Anjos e um Gótico Moderno. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

Sites:

http://www.wsu.edu/~delahoyd/frankenstein.films.html

http:// wikipedia.org/

http://www.spectrumgothic.com.br/

http://gotikka.blogspot.com

http://www.umbraum.com/

http://www.tim-burton.net/

http://www.adorocinema.com.br

http://minadream.com/timburton/

http://lemondedetimburton.com/

http://www.revistaetcetera.com.br/15/bortoloto/bortoloto2.htm

http://www.duplipensar.net
39
http://kclibrary.nhmccd.edu/decade50.html

http://www.bartleby.com/229/1205.html

http://www.imagesjournal.com

http://www.gothiccastle.net/

http://www.elp.it/bygothic/immagini/arte/friedrich/index.html

Filmes:

Edward Scissorhands (Edward - Mãos de Tesoura). Direção Tim Burton. Produção:

Tim Burton e Denise Di Novi. Intérpretes: Johnny Depp, Winona Ryder, Dianne Wiest,

Anthony Michael Hall, Kathy Baker. Roteiro: Caroline Thompson, baseado em estória

de Caroline Thompson e Tim Burton. Estados Unidos: 20th Century Fox, 1990. 1 dvd

(105 minutos).

Sleppy Hollow (A lenda do cavaleiro sem cabeça). Direção Tim Burton. Produção:

Scott Rudin e Alan Schroeder. Intérpretes: Johnny Depp, Christina Ricci, Miranda

Richardson, Michael Gambon, Casper Van Dien, Jeffrey Jones, Christopher Lee,

Christopher Walken, Martin Landau. Roteiro: Andrew Kevin Walker, baseado em conto

de Washington Irving. Estados Unidos: Paramount Pictures / Mandalay Pictures, 1999.

1 dvd (111 minutos).

40

Você também pode gostar