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PESQUISA EM CIÊNCIAS HUMANAS: CAMINHOS TRILHADOS NA GRADUAÇÃO

PAPIROS MÁGICOS GREGOS: ENTRE DIVINDADES, SÍMBOLOS E


PRÁTICAS DE MAGIA
GREEK MAGICAL PAPYRI: BETWEEN GODS, SYMBOLS AND MAGICAL
PRACTICES
Giovana da Rosa Carlos
Graduanda em História pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - PIBIC/CNPq
Membro do Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM - GEMAM/UFSM

RESUMO
Os Papiros Mágicos Gregos contêm variados encantamentos e ensinamentos mágicos. A coleção foi
encontrada em diversas expedições arqueológicas durante os séculos XIX e XX nas regiões egípcias
de Tebas e do Fayum, principalmente. A maioria dos papiros dos PGM pertence aos séculos III e IV
d.C. Nesse período da história egípcia, parte do Império Romano, houve uma pluralidade religiosa
bastante expressiva e interessante de ser estudada. Atualmente, é possível acessar o conteúdo deles
por meio de obras de tradução. O Papiro IV, objeto de nosso estudo, contém encantamentos, como a
chamada “Liturgia de Mitra". Tal papiro apresenta temáticas mágicas que podem abordar da prática
de licnomancia ou hidromancia até um encantamento de amor ou de desejo erótico. Diante do
exposto, nosso estudo pretende elencar os primeiros apontamentos de uma pesquisa de Iniciação
Científica sobre os textos de magia presentes no Papiro IV. Estamos utilizando a tradução em língua
inglesa editada pelo professor Hans Dieter Betz para realizar tal estudo. Nossa metodologia envolve
a análise interna e e externa das fontes. Nesta comunicação, possuímos o objetivo de apontar os
elementos gerais e percepções sobre a documentação, além dos aspectos básicos sobre a coleção
supracitada. Portanto, pretendemos apresentar um panorama sobre a coleção de papiros e,
simultaneamente, elaborar algumas possibilidades de trabalho historiográfico com o Papiro IV.
Palavras-chave: Magia, Religião, Egito, Papiros, Cultura

ABSTRACT
The Greek Magical Papyri contain various enchantments and magical teachings. The collection was
found in various archaeological expeditions during the 19th and 20th centuries in the Egyptian regions
of Thebes and Fayum desert. Most of the PGM papyri belong to the 3rd and 4th centuries BC. This
period of Egyptian history, part of the Roman Empire, there was a religious plurality that was very
expressive and interesting to study. Currently, it is possible to access their content through translation
works, from Greek to another languages. Papyrus IV, the object of our study, contains incantations,
such as the so-called "Liturgy of Mithras." Such a papyrus presents magical themes that can approach
from the practice of hydromancy, an enchantment of love or erotic desire. The present study aims to
list the first notes of a research of Scientific Initiation on the magic texts present in the Papyrus IV,
using the English translation edited by professor Hans Dieter Betz to carry out such a study. Our
methodology involves the internal and external analysis of the sources. We have the objective of write
about general elements and perceptions about the documentation, as well as the basic aspects about
the collection, so we intend to present a panorama about the collection of papyri and simultaneously
to elaborate some possibilities of historiographic work with the Papyrus IV.
Key Words: Magic, Religion, Egypt, Papyri, Culture

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Na pesquisa de iniciação científica


Introdução utilizamos como fonte documental o livro
publicado pela Editora Gregos no ano de 1987
Antes de abordarmos a coleção de Papiros “Textos de Magia en Papiros Griegos”, com
Mágicos Gregos - propriamente dita – tradução, notas e introdução do professor Jose
gostaríamos de salientar que este estudo possui Luis Calvo Matinez e da professora Dolores
um caráter inicial. Por esse motivo, a pesquisa Sánchez Romero. A língua em que os papiros,
possui uma série de limitações e dificuldades originalmente, foram escritos foi o grego
propícias aos momentos de descoberta. antigo, houveram outras traduções para o
Possuímos mais perguntas do que respostas inglês e alemão, por exemplo. Uma dessas
diante de toda vastidão e complexidade da traduções foi a realizada por Hans Dieter Betz
fonte histórica abordada. no ano de 1991, denominada “Greek Magical
Outrossim, as perguntas tangenciam o Papyri in Translation: Including the Demotic
infinito, já as respostas –no sentido científico spells”, também utilizamos essa versão durante
do termo – voam na categoria de instâncias. o estudo, especialmente as notas introdutórias
Metaforicamente, a pesquisa científica se e explicativas elaboradas por Betz.
assemelha aos primeiros passos na vida de uma A partir da leitura atenta dos livros
criança, contudo, lembremo-nos de que até supracitados elencamos um panorama geral
quando ela aprende a andar jamais estará livre das características principais dos Papiros
da queda. Mágicos Gregos (podem ser abreviados a
Nessa lógica, consideramos estes partir da sigla PGM). Durante a obra os autores
momentos de comunicação e debate realizam uma extensa introdução a respeito dos
fundamentais para a melhoria das perspectivas papiros. Eles contextualizam o período de
de pesquisa. Sendo assim, um de nossos escrita das fontes históricas: um Egito Greco-
objetivos principais será estabelecer contatos Romano, caracterizam as diversificadas
interdisciplinares ao decorrer do texto, levando práticas mágicas presentes no corpus
em consideração as inúmeras contribuições das documental, descrevem cada um dos papiros,
demais áreas do saber, buscando articula-las – buscando mapear os locais egípcios de
apesar de nossas limitações – da melhor forma descoberta, datações arqueológicas e museus
possível. nos quais estão alocados hodiernamente, além
Ainda que seja distante e desafiador, de fornecerem noções gerais acerca do
parece-nos demasiado instigante um estudo conteúdo apresentado ao longo das traduções
que mescle o conhecimento teológico, das práticas mágico-religiosas.
artístico, antropológico e histórico. Resta-nos, Nessa perspectiva, este estudo comporta
por enquanto, o tempo histórico que tudo alguns apontamentos iniciais sobre os textos de
permeia e toca como ponto de partida nessa magia e religião presentes na coleção de
jornada. Papiros Mágicos Gregos, com ênfase no debate
Dando continuidade, trata-se de uma sobre as diversas divindades egípcias
articulação de estudo que pretende construir o mencionadas nos papiros, alguns dos símbolos
conhecimento socio-histórico por meio do mágico-religiosos utilizados pelos magos e as
diálogo e da troca de conhecimento mútuo. práticas mágicas encontradas no corpus
Partimos de uma abordagem mais geral sobre documental. Realizaremos este breve estudo
a documentação que culminará em temáticas por intermédio de leituras bibliográficas
mais especificas a respeito das práticas de diversificadas. Em última análise, buscamos
magia, os elementos que as circundam e seus elencar as informações a respeito da
significados no limiar do contexto histórico de religiosidade dos antigos egípcios, suas
um Egito Greco-Romano. divindades e símbolos.
Desse modo, consideramos as críticas e as
observações essenciais para a melhoria da Desenvolvimento
abordagem teórico-metodológica que estamos
desenvolvendo.

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Percebemos que a sociedade egípcia esteve história foi a arte e arquitetura criada e
durante quase três milênios incluída nas desenvolvida por essa sociedade. Um belo
diversas dinâmicas históricas que ocorreram às exemplo da arte ligada à arquitetura é o templo
margens do rio Nilo e do Mar Mediterrâneo, de Karnak:
especialmente às cidades que circundavam o
delta do rio. Tanto o Nilo, quanto o
Mediterrâneo compuseram importantes
espaços geopolíticos de trocas econômicas,
políticas, culturais e simbólicas entre romanos,
gregos, persas, egípcios, hebreus e diversas
outras sociedades que legaram ao tempo
presente inúmeras contribuições. Nesse
imenso espaço de contatos socioculturais, as
sociedades egípcias fizeram com que suas
deusas e deuses viajassem além das águas do
Nilo e desbravassem novos horizontes,
influenciando boa parte da Europa Ocidental e
Oriente Próximo.
Nessa lógica, esses encontros entre culturas
Figura 01: Colunas do templo de Karnak. Egito.
romanas, gregas e egípcias no Egito durante o
início do 1º milênio d.C. nos permite situar o Essa imagem representa bem a
estudo da magia e da religião egípcia dentro de monumentalidade que aspirava a arquitetura
uma complexa dinâmica histórica pautada dos egípcios. Nesse sentido, Mario Curtis
pelas confluências religiosas entre as Giordani nos concede uma teorização mais
sociedades supracitadas, o que faz deste estudo pontual a respeito de tal espaço sagrado,
algo importante para a reflexão sobre segundo o autor (GIORDANI, 1983, p. 90) “A
encontros culturais, algo tão presente em todo famosa sala hipostila de Karnak possuía 134
processo histórico, inclusive em nossa colunas, muitas das quais atingiam a altura de
contemporaneidade. 21 metros.”
A história do Egito possui uma longa Professor Giordani prossegue ao mencionar
trajetória dentro das ciências humanas, o que dissera o explorador francês Jean-
diversos estudiosos dedicaram anos de François Champollion (GIORDANI, 1983, p.
pesquisa sobre esse local tão fascinante e 90 apud F.T.D , p. 43):
misterioso, habitado por homens, mulheres,
múmias, crocodilos e divindades. Banhado por Vagueai por entre esse labirinto de edifícios e
um voluptuoso rio que tudo fertilizava a destroços na hora em que os raios oblíquos de um
sociedade egípcia desfrutou de toda glória e de sol de fogo iluminam com fulgor deslumbrante,
todo fracasso. Povos hicsos, persas, romanos, tudo quanto avistais, ou quando a lua, quase
cheia, passeia o seu clarão sobre as ruínas
islâmicos, entre outros “dominaram” a região imensas, quando pilones erguem, no silêncio da
por bons anos e lá deixaram marcas históricas noite do deserto, suas massas ou brancas ou
profundas. Desde a ascensão dos grandes pretas, e então sentireis uma impressão de
faraós egípcios – como Tutankhamon e Menés majestade, de tristeza, de grandeza, como penso
- até o triunfar de Alexandre Magno e seus não se pode experimentar na terra outra igual.
exércitos sob terras imensas muitas coisas
aconteceram em solo egípcio.
Champollion, um famoso explorador
Arquitetura e Arte no Egito francês que viveu durante o século XIX, foi
estudioso da cultura e sociedade egípcia,
Uma das características do Egito que deixando diversas contribuições para a
surpreendera inúmeras pessoas ao longo da egiptologia. Champollion foi um dos

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responsáveis pela decifração dos hieróglifos, afastava os inúmeros insetos que ali viviam.
por exemplo. Além disso, eles acreditavam que a utilização
Nesse sentido, a frase supracitada expressa da maquiagem denotava poderes mágicos e de
o quão maravilhado o francês se sentia diante cura, principalmente.
de toda imensidão de uma obra artística e Dentre todas as divindades egípcias quatro
arquitetônica do Egito Antigo, assim como ele, delas possuem destaque em nossa pesquisa:
muitos turistas, atualmente, visitam o país e Osíris, Ísis, Hórus e Seth. Osíris e Ísis eram
partilham desse sentimento. considerados o casal fundador do Egito. Osíris
viajava pela região ensinando técnicas de
Religiosidades e Divindades Egípcias plantio e colheita para todas as pessoas. Além
disso, era considerado pelos egípcios o grande
De modo geral, a religiosidade dos antigos juiz do mundo dos mortos.
egípcios era pautada pelas representações de É nesse sentido de interpretação da
caráter antropozoomórfico das entidades mitologia que aponta Isaque Pereira de
mitológicas. Alguns famosos exemplos dessa Carvalho Neto ao refletir sobre o mistério e a
característica tratam-se da esfinge de Gizé, o repetição no mito de Ísis e Osíris (PEREIRA,
devorador de almas: Ammit/Ahmat (seu corpo 2015, p, 54)
era composto por metade leão, hipopótamo e
crocodilo) e o deus egípcio Sobek: Osíris é um deus egípcio associado à vegetação
e, sobretudo, ao Além, portanto, intimamente
relacionado com as crenças e com os dramas
rituais referentes à morte e à ressurreição
celebrados em muitos locais na Antiguidade,
nomeadamente em Abido, onde ficava o seu
principal santuário.

Osíris possui muitas representações no


Egito. Uma delas está elencada na seguinte
imagem:

Figura 02: Deus Sobek. Ashmolean Museum, Oxford.

A imagem dessa divindade era associada ao


culto do rio Nilo e ao processo de divinização
das águas. Em muitos templos no Egito os
sacerdotes tinham uma criação de crocodilos
em tanques, pois, acreditavam que por Figura 03: Deus Osíris. British Museum, Londres.
intermédio de tal atividade controlariam a fúria
do temido crocodilo do Nilo. Ademais, Sobek, Já a deusa Ísis, por sua vez, possuía
em algumas representações, utilizava uma conhecimentos sobre magia, amor, inúmeros
coroa com plumas e serpentes. rituais de cura e encantamentos mágicos de
Outra característica marcante entre os grande poder. Um exemplo desse poder
antigos egípcios era a utilização da maquiagem mágico está descrito no mito de Isis e Osíris
– tanto por homens, quanto por mulheres – ao em que a deusa consegue trazer Osíris
se maquiarem estavam protegidos do sol forte novamente à vida, ainda que ele tivesse sido –
que irradiava em terras egípcias e também anteriormente - esquartejado por seu irmão, o

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deus associado à guerra, Seth. Sendo assim, a antigas nas sociedades contemporâneas. Nesse
divindade feminina realiza tal procedimento âmbito, o olho ferido de Hórus se tornou um
através de seus significativos conhecimentos famoso símbolo de proteção na cultura atual,
mágicos, bem como por meio do auxílio de inúmeras pessoas realizam tatuagens com a
Anúbis. figura de “Udyat”29 representada em seus
Ísis era muito popular entre os egípcios, corpos.
podemos considera-la o arquétipo da grande Abaixo a ilustração de uma figura que
mãe e de uma esposa fiel. Ainda segundo representa a divindade com ares de falcão,
Pereira Neto (PEREIRA, 2015, p. 54) Hórus:

Cultuada como encarnação dos aspectos da


mulher-modelo (filha, irmã, esposa, mãe,
sacerdotisa, mágica, amante, rainha8), Ísis
simboliza a mistérica e ubérrima matriz de onde
tudo emerge e para onde tudo regressa em
imersão universal para logo em seguida tornar a
ressurgir.

Nesse contexto, há indícios de que as


histórias contadas em torno das divindades de
Ísis, Osíris e Hórus influenciaram as
representações cristãs de Maria e do menino
Jesus, por exemplo. Abaixo há uma
representação de Ísis com seu filho no colo:

Figura 05: Hórus em representação de falcão. British


Museum. Londres.

Nessa lógica, a tríade formada por Hórus-


Ísis-Ossíris, três da das principais divindades
Figura 04: Ísis amamentando Hórus. (XXVI Dinastia/ do Egito Antigo, muito cultuadas e para as
664-525 a.C.). Brooklyn Museum. quais dedicaram-se vários templos:

Ao segurar seu filho nos braços Ísis suporta


o peso de um líder, pois Hórus acaba por
suceder o pai como uma liderança egípcia. Ele
travará intensos combates contra seu tio, Seth
e a favor de seu pai, Osíris. Em uma dessas
batalhas Hórus tem seu olho ferido por Seth.
Dentro da área de estudos em antiguidade
existem pesquisadores que se dedicam ao
estudo da recepção de elementos das culturas

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Nome egípcio dado ao amuleto. O olho de Hórus e eram usados como representação
era um dos amuletos mais importantes no Egito Antigo, de força, vigor, segurança e saúde.

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várias outras publicações viriam ao decorrer do


século XIX e XX.
Durante o século XX os trabalhos e debates
foram intensos, porém, foram freados pelas
inquietações das Grandes Guerras, foram
marcados por um momento histórico em que
ocorre uma mudança na perspectiva humana,
um período em que as perguntas e o olhar que
lançamos ao passado mudam bruscamente.
Uma segunda geração de estudiosos como
Albrecht Dieterich, Richard Wunch, K.
Preisedenz desenvolveram seus trabalhos de
tradução e edição dos PGM possibilitando que
essa documentação pudesse ser abordada no
meio acadêmico com maior segurança
metodológica. A fonte textual que utilizamos
seguiu fielmente o modelo de K. Preisedenz.
Deixemos de lado, momentaneamente, os
Figura 06: Representação de Isis, Osíris e Hórus. aspectos da historicidade das fontes históricas
Pendente de ouro e lápis-lazúli em nome do faraó para que possamos pensar em termos conteúdo
Osorkon II (XXII Dinastia - 945 a.C. até 712a.C). e possibilidades de estudo a partir da
Museu do Louvre, Paris. documentação. O conteúdo dos Papiros
Mágicos Gregos é variado e bastante
Nessa perspectiva, a partir da exposição complexo.
sobre algumas das principais divindades do Um bom exemplo dessa complexidade está
mundo egípcio poderemos mergulhar com no caso de magia descrito no PGM XXII em
mais profundidade no estudo relativo aos que durante “O Transe de Salomão” o mago e
Papiros Mágicos Gregos. um médium atuam juntos buscando a
osirização deste último, que seria a
Magia, Divindades e Símbolos nos Papiros “possessão” do médium pelo juiz do mundo
Mágicos Gregos dos mortos, Osíris, tal divindade foi debatida
neste artigo anteriormente.
Dito isso, podemos elencar as informações Além disso, existem os emblemáticos
sobre os PGM. Nessa lógica, a coleção de papiros cristãos em que há menções ao (PGM
papiros mágicos é composta por uma série de XXII, 27-32), “Grande Pai Osíris Miguel” tal
documentos que foram encontrados, citação une a ideia de um deus superior
originalmente, nas regiões egípcias nas judaico-cristão, a um arcanjo que liderou os
proximidades de Tebas, Fayum e em algumas exércitos de Deus: que estão conectados a uma
outras regiões. divindade milenar egípcia em uma mesma
A maioria desses documentos pertenceram, prática de magia.
em um primeiro momento de descoberta no
século XIX às coleções particulares daqueles
que os encontraram. Posteriormente, acabaram Resultados e Discussões
por ser vendidos aos grandes museus europeus. Depois desses breves exemplos voltemos
Por outro lado, a ideia de desenvolver um nosso olhar para a instigante coleção. Ela
projeto com a finalidade de traduzir, numerar e comporta uma série muito abrangente de tipos
editar os Papiros Mágicos surge em meados do de encantamentos e ensinamentos mágicos,
século XIX. Em 1851 Charles Wycliffe alguns papiros estão fragmentados e com
Goodwin publica o Papiro V, tratou-se da partes incompletas do texto, ocasionando
primeira publicação formal da coleção de lacunas para os pesquisadores. São receitas
Papiros, a partir desse momento em diante para curar dor de cabeça e benesses nos

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negócios por meio da invocação de Hermes, costumes e culturas distintas daquelas que
até pedidos de imortalização como na Liturgia partilhamos atualmente.
de Mitra e a prática mágica onírica do Transe Levando todo esse debate em consideração,
de Salomão. podemos brevemente caracterizar o Papiro IV
Para que possamos pensar a magia, a e elencar as percepções sobre o conteúdo. O
religião e todos os inúmeros aspectos que as Papiro Parisino Supplementum Graecus 574
circundam de uma forma mais sistemática pertence a Biblioteca Nacional de Paris, foi
utilizamos algumas concepções de autores da editado por Karl Wessely e a datação
antropologia cultural. Sendo assim, ao arqueológica aponta para o século 4 d.C.
pensarmos a História da Magia com o auxílio No corpus documental dos Papiros Mágicos
da Antropologia podemos estudar mais há uma série bem diversa de práticas mágico-
profundamente as temáticas que influem nas religiosas, segundo consta na nota introdutória
diferenças e semelhanças culturais, bem como do livro de tradução dos Papiros Mágicos
pensar as relações existentes nas fronteiras. Gregos de Romero e Sanchez (SANCHEZ;
Magia e religião são conceitos demasiados CALVO, 1987, p. 08-47).
complexos, diante deles já se erigiram centenas Os autores articulam o texto no sentido de
de teorizações e definições válidas. Portanto, que existem 4 grandes grupos de práticas de
pretendemos, nesse momento, apenas navegar mágico-religiosas na documentação, por
entre estes tantos termos, não por meio da intermédio dessa explicação foi possível que
pálida certeza, e sim a bordo da mais sublime erigíssemos breves apontamentos, de maneira
curiosidade diante do mundo. resumida destacamos:
Nesse sentido, conceituamos a magia
enquanto um fenômeno sociocultural. Mais A) Práticas Instrumentais: são práticas que
precisamente, entende-se por magia (CORSI, servem para todo tipo de finalidade, um
2014, p. 144) “Práticas diversas que possuem exemplo seria a consagração do mago, que
em comum a pretensão de mudar os eventos consiste na busca pelo encontro com o divino.
por meio da utilização correta de Outro exemplo seria submeter um daimone
procedimentos, objetos e forças para que ele aja em teu favor.
sobrenaturais”. A perspectiva do antropólogo B) Práticas Mânticas: consistem em diversas
Bronislaw Malinowski também é relevante ações para fins de obter conhecimentos.
para pensarmos as práticas mágico-religiosas Discorreremos melhor sobre elas na sequência
no contexto do Egito enquanto uma província do texto.
do Império Romano (MALINOWSKI, 1984, C) Práticas de Submissão: aquelas que
p. 78) buscavam submeter alguém a vontade daquele
que a realizava ou pedia para que um mago
A magia nunca “teve origem”, nunca foi realizasse. Nesse grupo, encontram-se magias
construída ou inventada. Toda magia sempre mais vinculadas ao sentimento amoroso e ao
“foi”, desde o começo, um auxiliar essencial de
todas as coisas e dos processos de interesse vital
desejo erótico.
para os homens. D) Práticas para Conseguir Bens Externos:
eram realizadas para que se obtivessem êxitos
A partir da teorização de Malinowski – sem nos negócios. Seu foco de ação mágica estava
nos limitar a ela e utilizando o conceito de no espectro material da vida, nos papiros que
maneira interpretativa ampla - percebemos a estudamos ocorrem invocações ao deus
magia como um complexo fenômeno de Hermes, por exemplo.
sistemas simbólicos que se imiscuem nas Nossa abordagem dará mais ênfase para as
práticas religiosas. Portanto, o pensar mágico práticas de caráter mântico, que consistem na
pode conviver com o pensar religioso de tal busca do mago pelo conhecimento em vários
modo que se torna difícil tentarmos mapear as aspectos do saber, um exemplo interessante
fronteiras entre eles, ainda mais ao falarmos de disso é a oniromancia, licnomancia e
sociedades antigas, que partilhavam de ideias, hidromancia.

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A onimorancia – tema caro a Sigmund Lo que hay en las almas de todos los hombres,
Freud – consiste na interpretação dos sonhos egipcios, sirios, helenos, etíopes (...) de los que
hablan y de los que guardan silencio, para que les
como sinais divinos. A professora e revele el passado, y el presente, y su futuro, y
pesquisadora Hariadne Soares disserta a conozca sus artes, sus vidas, sus costumbres, sus
respeito de tal temática (SOARES, 2017, p. trabajos y sus nombres, y los de sus muertos y los
152): de todos.

A revelação onírica, como forma de adivinhação


é muito antiga e não é uma prática exclusiva dos
magos dos PGM. No Egito, acreditava-se que As aspirações do mago invocam o passado,
durante o sonho as pessoas teriam acesso a um
universo diferente do habitual e que, enquanto o o presente e o futuro. O conhecimento sobre
corpo estava repousando, a alma despertava para esses três pilares da temporalidade proporciona
uma nova vida. O Antigo Testamento também ao mago um poder em suas comunidades e até
faz várias referências aos sonhos como uma mesmo fora delas.
maneira legítima de comunicação entre Deus e Considerando que o conhecimento obtido
seus escolhidos, como os sonhos de José, cujas
premonições provocavam a ira de seus irmãos. por meio dos rituais e magias é pretendido em
sentidos diversos lançaremos nosso olhar para
Por outro lado, a hidromancia e a um caso em especial: “Prática de Comunicação
licnomancia compõem-se na busca pelo com um Demônio Profético Utilizando um
conhecimento que poderia ser obtido através Escaravelho” que está descrito no PGM IV 1.
da contemplação e articulação vagarosa da O ensinamento mágico realizado no Papiro
água e do fogo, respectivamente. Dentre os IV 1 é um caso em que o mago solicita
papiros há um ótimo exemplar da magia de diretamente a presença de um daimôn para que
licnomancia, está desse modo descrito (PGM faça adivinhações a ele. Falta-nos o começo da
prática, mas provavelmente seja uma
IV, nº 7, p. 127):
invocação ao deus solar de Helios.
Te invoco a ti, el dios más grande, poderoso
Na primeira parte do ensinamento da prática
Horus-Harpócrates (...) el que todo lo ilumina y mágica o instrutor indica o momento e local
con su propio poder llena de claridad a todo el para realizar o procedimento. Nesse sentido, o
cosmos, dios de dioses, benefactor (...) tú que mago deverá ir durante o nascer do sol para
llevas las riendas y gobiernas el timón, el que uma área que tenha sido recentemente
tiene sujeto al dragón, el sagrado Demon Bueno, inundada e fertilizada pelo Nilo. Lá o mago
cuyo nombre es Arbatanops, iaoai, a quien los
ortos y ocasos cantan him- nos cuando aparece y deverá sacrificar um galo branco sob um altar
cuando se oculta; alabado entre to- dos los dioses, de adobe, beber o sangue dele e a bílis de um
ángeles y démones, ven y muéstrate a mí, dios de corvo.
dioses, Horus-Harpócrates. Com esse procedimento, busca-se a
solarização do mago por meio da utilização dos
A partir desse trecho do papiro IV podemos elementos simpáticos à divindade invocada.
perceber como as divindades mencionadas ao Além disso, durante o processo de purificação
decorrer do texto entram em ação. Hórus, o o mago deve comer apenas coisas leves, e de
deus falcão, é mencionado durante a prática tudo aquilo que ingerir deixar a metade para o
mágica, a divindade solar egípcia está sendo daimôn.
associada a Hárpocrates, que na mitologia Já em um segundo momento da prática
grega é considerado o deus do silêncio. mágica, o mago deve se dirigir ao lado oriental
No trecho do PGM V podemos perceber da cidade. Lá deve capturar um escaravelho -
melhor no que essa busca pelo conhecimento um tipo peculiar de besouro – prendê-lo com
consiste. O mago pretende descobrir crinas de cavalo macho na ponta de um galho
(MARTINEZ e ROMERO apud PGM V 6, p. fincado ao solo.
32): Na parte final do ritual, sob um céu imenso,
há o mago observando atentamente o besouro
preso enquanto a fumaça se perde na

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imensidão do universo. De outro lado, vê-se a Este estudo de iniciação científica está em
grama verde repleta de alimentos que foram sua fase inicial, portanto, até o presente
deixados para o daimôn. Durante este momento, fizemos um levantamento das fontes
momento o daimôn entraria em contato com o e realizamos leituras bibliográficas auxiliares à
mago e faria revelações para ele. Caso o pesquisa. Destarte, possuímos mais perguntas
daimôn não o fizesse ele manteria o besouroo do que respostas para a documentação. Ao
preso, caso ele realizasse o desejo do mago o longo do artigo elencamos os elementos gerais
escaravelho seria liberto imediatamente. sobre os papiros mágicos gregos, desfrutamos
Tendo isso em mente, podemos abordar a do universo religioso Greco-egípcio, de toda
captura do daimôn e por quais artifícios ela se sua arte, religiosidade, arquitetura e poesia e,
pauta. Tal captura ocorrerá mediante dois por fim, contemplamos a simbologia etérea
elementos de coação, no mínimo: que envolve o Escaravelho.
1) Sedução por meio da comida
2) A chantagem através do sequestro de REFERÊNCIAS
um escaravelho.
Nessa perspectiva, a interpretação desse [1] GIORDANI, Mario C. História da
ensinamento de magia chamou nossa atenção Antiguidade Oriental. Editora Vozes, 6ª ed,
pela utilização do elemento de coação em torno Petropólis, 1983, 90.
da figura do escaravelho. O escaravelho era
associado ao sol, a renovação e as coisas que [2] CARVALHO, Isaque P. Mistério e
renascem de si. Portanto, percebemos a Repetição no Mito de Osíris e Ísis. Impactum
possibilidade de estudo da simbologia mágico- Coimbra University Press, Centro de História
religiosa na qual estava inserido esse da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2015, 54.
importante símbolo solar egípcio. A seguir um
exemplar de amuleto egípcio em forma de [3] BETZ, H. D. (Ed.). The Greek magical
escaravelho: papyri in translation: Including the Demotic
spells. Chicago: The University of Chicago
Press, 1991.

[4] SILVA, Semíramis Corsi. A contribuição


da antropologia para a história da magia no
Principado romano. Revista Labirinto, Ano
XIV, v. 21, 2014, 145-146.
Figura 07: Símbolo de Escaravelho em ouro. Período
do Egito Ptolomaico/Grego (304-30 a.C.). Portland
[5] MALINOWSKI, Bronislaw. A Arte de
Museum. magia e o poder da fé. In: ______. Magia,
ciência e religião. Lisboa: Edições 70, 1984,
Outrossim, consideramos que imagens, 78-79.
mitos e símbolos não são criações
irresponsáveis da psique humana, eles [6] TEXTOS DE MAGIA EN PAPIROS
respondem a uma necessidade e tem uma GRIEGOS. Tradução, introdução e notas de
função de deixar aparente as modalidades mais J.L Calvo Martínez e Mª. D. Sanchez Romero.
secretas do ser. O amuleto egípcio em forma de Madrid: Gredos, 1987.
escaravelho e os anéis com inscrições dos
nomes de deuses eram muito comuns durante a [7] SOARES, Hariadne da Penha. A atuação
história do Egito. dos magos e adivinhos como theioi andres no
Egito tardo-antigo: práticas e rituais de
Conclusões parciais adivinhação nos Papiros Mágicos Gregos (séc.
III e IV), Romanitas – Revista de Estudos
Grecolatinos, n. 9, 2017, 152.

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