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DA RELIGIÃO
Mito, rito, magia,
sacrifício e narrativa
Bruno Uhlick D'ambros
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Introdução
O mito, o rito, a magia e o sacrifício são componentes da religião que apresen-
tam importantes distinções entre si. Por exemplo, o mito e o rito podem ser
complementares, ou mesmo excludentes, e nem sempre os rituais mágicos e de
sacrifício recorrem a uma mitologia para se justificarem. Ainda, o mito carrega
quase sempre um aspecto explicativo do mundo, e os rituais às vezes encontram
justificativas nos mitos.
Esses e outros entendimentos relacionados aos conceitos de mito, rito, magia
e sacrifício permitem uma melhor compreensão do fenômeno religioso. Assim,
neste capítulo, você vai estudar esses conceitos e compreender as diferenças
entre eles. Você também vai verificar as contribuições de alguns antropólogos e
pensadores sobre o tema, notadamente os da escola funcionalista. Por fim, você
vai compreender a importância dos ritos para a coesão social.
2 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa
na mitologia grega, Prometeu rouba o fogo dos deuses para dá-lo aos
homens e levá-los à civilização;
na mitologia semítica, no livro de Enoque, os anjos caídos e Azazel
ensinam os homens a usar o fogo;
na mitologia védica, Rigveda fala de um herói chamado Matarisvan que
descobriu o fogo, que havia sido escondido da humanidade.
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 5
Eliade (2019) não interpreta os mitos simbolicamente nem muda sua função
aparente. Para ele, o mito é uma explicação sobre a origem de um fenômeno,
e não apenas uma explicação de seu acontecimento pontual. Eliade (2019)
crê que a ciência moderna também tem seus mitos, e os mitos, assim como a
ciência, têm função explicativa do mundo. O mito fala sobre como em épocas
longínquas os deuses criaram coisas, sociais ou naturais, que ainda existem. O
mito, assim, tenta justificar o presente com histórias genealógicas passadas.
Além desse aspecto “histórico-teórico” do mito, ele tem um aspecto prático
— a saber, convencer o povo presente a aceitar dada tradição, reencená-la,
teatralizá-la, para atualizá-la e voltar magicamente nesse tempo mítico de
quando ela ocorreu, por meio de um rito acessório. Assim, o prêmio do mito
é o reencontro com a própria divindade, com seu tempo primordial, e disso
advém uma regeneração presente, em que se confirma que as ações presentes
de dado povo estão corretas. O mito serve para não ser contestado, para
ser obedecido, para servir de ligação com esse passado mítico da história.
A ciência, ao contrário, não tem essa função. A ciência só explica; o mito
explica e regenera. A ciência funciona por contestação constante de si mesma,
o que leva a uma dúvida eterna sobre ela mesma e a um constante ruir de suas
próprias bases. O mito, ao contrário, não admite revisão, ceticismo, dúvida — é
essa certeza mítica que é a sua força. Os modernos creem na ciência, contudo,
ela mesma precisa de seus próprios mitos constantemente — caso contrário,
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Tylor (1920) defende uma completa separação entre mito e ciência. Ele
inclui o mito na religião e a religião e a ciência na filosofia, dividida, por sua
vez, em primitiva e moderna. A filosofia primitiva é igual à religião. Não existe
ciência primitiva. A filosofia moderna tem duas divisões: religião e ciência. A
religião moderna é composta de metafísica e ética, que não estão presentes
na religião primitiva. A metafísica lida com entidades não físicas, das quais
os primitivos não possuem a noção, já que toda entidade é física; e a ética
lida com entidades morais que também não existem para os primitivos.
Para ele, o mito se originou da mente infantil dos homens primitivos. Tylor
(1920, p. 282, tradução nossa) foi um dos primeiros a defender a mitologia
comparativa como modo de descobrir padrões mentais culturais relevados
nos mitos; ele diz que:
pode ser feito, que as coisas são como são, e assim tende a justificar uma
moral resignada sobre os fenômenos sociais e naturais presentes. Já o rito
seria seu oposto: seria a crença na possibilidade de que alguma mudança é
possível, de que é possível alterar o curso da realidade; assim, um de seus
pressupostos é a crença em alguma liberdade humana.
Lévi-Strauss (2007), por sua vez, resgata uma visão intelectualista dos
mitos. O mito também é uma tentativa de compreender o mundo, uma ex-
plicação de algo, um procedimento intelectual. Lévi-Strauss considera que
o pensamento primitivo é concreto, e o moderno, abstrato, e isso se reflete
na mitologia. O pensamento primitivo é qualitativo, enquanto o moderno,
quantitativo. O pensamento primitivo foca em aspectos sensíveis e visíveis da
realidade — os minerais, as plantas, os barulhos, os sons, as cores, as texturas,
os sabores, os odores e os mitos manipulam essas qualidades dos sentidos,
enquanto o pensamento lógico moderno os exorciza da ciência. Lévi-Strauss
(2007, p. 21) considera os mitos como parte da “[...] ciência do concreto”. Ainda,
ele diz que todos os homens e povos pensam de modo classificatório, em
pares de oposições, e as projetam no mundo. Os fenômenos culturais e os
mitos, especialmente, mostram esses binarismos estruturantes da realidade
e tenta solucioná-los. O próprio Lévi-Strauss nos diz qual era seu objetivo
quanto aos mitos, quando escreve que:
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Figura 1. Ritual Hetohoky, ou festa da casa grande, dos Karajás, no Tocantins, que marca a
passagem da infância para a idade adulta.
Fonte: Araújo (2016, documento on-line).
Para nós, devem ser ditas mágicas apenas as coisas que forem realmente
tais para toda uma sociedade, e não as que foram assim qualificadas apenas
para uma fração de sociedade. Mas sabemos que as sociedade nem sempre
tiveram de sua magia uma consciência muito clara, e que, quando a tiveram,
só chegaram a isso lentamente [...] A magia compreende agentes, atos e re-
presentações: chamamos mágico o indivíduo que efetua atos mágicos, mesmo
quando não é um profissional; chamamos representações mágicas as ideias e
as crenças que correspondem aos atos mágicos; quanto aos atos, em relação
aos quais definimos os outros elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos
(MAUSS, 2009, p. 55).
Talvez o pensador que mais falou sobre o sacrifício foi René Girard (1923-
2015). Sua tese fundamental é a de que os desejos são cópias, e não originais.
O desejo é mimético do desejo alheio. Desejamos porque o outro deseja.
Queremos porque o outro quer. O bode expiatório, o sacrifício ritual, seria uma
tentativa de pôr um fim nesse conflito entre o desejo original e o desejo imita-
ção. Essa violência mimética é a origem da cultura. O conflito de desejos gera
uma violência direcionada para um bode expiatório. Quando muitas pessoas
imitam o desejo umas das outras, elas entrarão em conflito mútuo pelo mesmo
objeto de desejo. Agora, elas não desejam apenas a mesma coisa, mas desejam
destruírem-se umas às outras para se apossar do mesmo objeto de desejo.
Toda essa violência e agressividade tende a ser direcionada para a mesma
vítima, que, antes modelo de desejo, agora é modelo de antipatia geral. O
sacrifício brutal e violento dessa vítima vai gerar uma sensação de satisfação
e pacificar o grupo agressivo. A vítima morta deixa de ser fonte da violência,
mas salvação da própria violência. Sacrificada essa vítima, há a pacificação
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sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão
Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão
Abel, e o matou. E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não
sei; sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do
teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra, que abriu
a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra,
não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra. Então disse Caim
ao Senhor: É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada. Eis que hoje me
lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na
terra, e será que todo aquele que me achar, me matará. O Senhor, porém, disse-lhe:
Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um
sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse. E saiu Caim de diante
da face do Senhor, e habitou na terra de Node, do lado oriental do Éden. E conheceu
Caim a sua mulher, e ela concebeu, e deu à luz a Enoque; e ele edificou uma cidade,
e chamou o nome da cidade conforme o nome de seu filho Enoque.
O funcionalismo e a religião
A escola funcionalista em ciências sociais foi uma reação às escolas de ten-
dência evolucionista e difusionistas. Seu “pai” foi Émile Durkheim. Em suas
três principais obras, é possível ver a aplicação do seu funcionalismo: A
divisão do trabalho social (1893), Regras do método sociológico (1895) e Formas
elementares da vida religiosa (1912).
Na Divisão do trabalho social (DTS), há duas tipificações de sociedade
possíveis, as simples e as complexas, cada qual com suas características e
uma antitética à outra. As sociedades simples são sociedades com pouca
diferenciação social, em que predomina a coletividade, há menos liberdade
individual e, por isso, o direito deve ser repressivo. As sociedades complexas
se caracterizam como sociedades com muita diferenciação social, em que
predominam o indivíduo e os direitos individuais, e o direito é restitutivo.
Até aqui, na DTS, Durkheim (2010) somente repete algumas generalizações
antropológicas de seu tempo sobre sociedades primitivas e modernas. No
entanto, há uma inovação. Durkheim (2010) diz que o que mantém essas
duas sociedades unidas em seu interior são, respectivamente, dois tipos de
solidariedade: a mecânica e a orgânica. Em sociedades simples, a unidade e
a coesão social são conseguidas por meio do direito repressivo e da baixa
diferenciação entre os indivíduos, e não há espaço para a liberdade individual.
Esse tipo de solidariedade entre os membros é chamada de solidariedade
mecânica. Nelas, ainda não há divisão social do trabalho, e, justamente
por isso, a solidariedade é mecânica. Já em sociedades complexas, há uma
enorme divisão social do trabalho e é esta que faz seus membros se unirem
em solidariedade orgânica. Assim, a primeira inovação, ao comparar socie-
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[...] são forças apenas coletivas hipostasiadas, isto é, forças morais; são feitas de
ideias e dos sentimentos que o espetáculo da sociedade desperta em nós, não
das sensações que nos vêm do mundo físico. Elas são, portando, heterogêneas às
coisas sensíveis nas quais nos situamos. Podem perfeitamente tomar dessas coisas
as formas exteriores e materiais sob as quais são representadas; mas nada lhes
advém daquilo que faz sua eficácia. Elas não estão presas por laços internos aos
suportes diversos sobre os quais vêm se colocar; não têm raízes neles; de acordo
com uma expressão que já empregamos e que pode servir para caracterizá-las
melhor, elas se acrescentam a eles.
o mágico, aquele que faz a magia, que deve ser um iniciado e saber
lidar com essa técnica;
os rituais propriamente ditos, ou seja, a sequência de ações e palavras
corretas para que a magia funcione; e
as representações impessoais ou pessoais.
[...] nós somos racionais, eles são povos pré-lógicos vivendo em um mundo de
sonhos, de mistérios e temor; nós somos capitalistas, eles comunistas; nós somos
monogâmicos, eles promíscuos; nós monoteístas, eles fetichistas e animistas, pré-
-animistas ou coisa do gênero e etc. O homem selvagem assim era representado
como infantil, rude, comparável a animais e imbecis (EVANS-PRITCHARD, 1965, p.
105, tradução nossa).
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Referências
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Leituras recomendadas
SEGAL, R. Myth: a very short introduction. Oxford University Press, 2004.
VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 2013.