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ANTROPOLOGIA

DA RELIGIÃO
Mito, rito, magia,
sacrifício e narrativa
Bruno Uhlick D'ambros

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Definir mito, rito, magia e sacrifício no contexto religioso.


>> Reconhecer a contribuição dos antropólogos Durkheim, Mauss e Evans-
-Pritchard na definição de sacrifício, magia e rito.
>> Identificar o papel do rito na preservação da religião e das relações comu-
nitárias.

Introdução
O mito, o rito, a magia e o sacrifício são componentes da religião que apresen-
tam importantes distinções entre si. Por exemplo, o mito e o rito podem ser
complementares, ou mesmo excludentes, e nem sempre os rituais mágicos e de
sacrifício recorrem a uma mitologia para se justificarem. Ainda, o mito carrega
quase sempre um aspecto explicativo do mundo, e os rituais às vezes encontram
justificativas nos mitos.
Esses e outros entendimentos relacionados aos conceitos de mito, rito, magia
e sacrifício permitem uma melhor compreensão do fenômeno religioso. Assim,
neste capítulo, você vai estudar esses conceitos e compreender as diferenças
entre eles. Você também vai verificar as contribuições de alguns antropólogos e
pensadores sobre o tema, notadamente os da escola funcionalista. Por fim, você
vai compreender a importância dos ritos para a coesão social.
2 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

Mitos: mentira, drama, ilusão e morte


Para iniciar o estudo dos fenômenos religiosos, é importante compreender o
que se entende por mitos. Os mitos são narrativas orais populares fantásticas
sobre personagens humanos, divinos ou animais. Tais narrativas retratam o
passado e tentam explicar algum aspecto da realidade presente, estando
conectados com um aspecto religioso do povo que as narra. O principal ele-
mento dos mitos é o elemento fantástico. Certamente há elementos religiosos
nos mitos, bem como morais e epistêmicos, mas eles não são exclusivos.
Burkert (1979, p. 1, tradução nossa) adota a definição de que o mito é “[...]
pertencente a uma classe mais geral de contos tradicionais”. Assim, para
Burkert (1979), o mito é um fenômeno linguístico como outros e é uma criação
literária como outras. E, como ele é uma criação, surgem sempre as questões
sobre quem criou e como, quando e por que foi criado. Em parte, essa é a
função do estudioso dos mitos: descobrir quem, como, quando e por que se
criou determinado mito.
O sofista Aelius Theon, em sua obra Progymnasmata, diferenciava mito e
narração dizendo que o mito é “[...] uma exposição falsa retratando a verdade”
e que narração é “[...] uma exposição sobre eventos que aconteceram ou que
poderiam ter ocorrido” (ELIADE, 2019, p. 111). Lang (1887), por sua vez, sustenta
que há um conflito entre religião e mito. Para ele, “[...] religião é a crença em
um ser original, um criador, imortal, sem negar a crença em seres espirituais,
ainda que imorais” e que esse conflito está presente “nas crenças de antigos
povos civilizados” (LANG, 1887, p. 3, tradução nossa).
A mitologia é apenas um aspecto da religião. As histórias fantásticas dos
mitos se conectam e, por vezes, fundam um sistema religioso, como é o caso
do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Contudo, nem todas as religiões
se reduzem à mitologia. A mitologia frequentemente fornece os elementos
teóricos para a religião, o seu conjunto de conceitos, a sua teologia, a sua
moral, mas nem toda a religião se reduz à mitologia. Por exemplo, a mitologia
grega fornecia as histórias populares dos gregos, cantadas pelos rapsodos
e narradas por Homero. Contudo, a religião grega não dependia apenas
dessas mitologias, porque ela continha aspectos práticos e mágicos, que
não dependiam das narrativas.
Nas religiões ditas “do livro”, como as monoteístas, as mitologias quase
sempre são a base da religião, e suas práticas são ritualísticas. Por exemplo,
as histórias fantásticas narradas nos evangelhos são a base para muitas prá-
ticas ritualísticas cristãs, como a cerimônia do lava-pés no Natal, a eucaristia
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 3

nas missas ou o próprio batismo por imersão ou aspersão. Já no paganismo


grego, não há registros de práticas fundadas na mitologia grega, por exemplo,
e nenhum grego tinha um rol de rituais a fazer com base nas ações míticas
de Aquiles ou Odisseu, por exemplo. Havia, antes, uma moral heroica a se
seguir, mas nem ela mesma dependia totalmente da fidelidade à narração
mítica da Ilíada ou da Odisseia.
A mitologia, além de fornecer em alguns casos uma ritualística, oferece
também uma moral, por meio dos exemplos nas histórias narradas. Nos mitos,
não importa tanto a veracidade ou não do acontecimento, mas sua lição, sua
essência, por assim dizer. Nos mitos, suspende-se o juízo sobre verdade ou
falsidade, e liga-se o juízo sobre o bom e o belo. A mitologia fornece aspectos
estéticos e éticos muito mais do que aspectos epistêmicos. Ou seja, quando
alguém ou um povo conta um mito, está muito mais preocupado em transmitir
uma tradição, em entreter com uma história, em passar algum ensinamento
arquetípico moral ou estético, do que falar a verdade cientificamente para
alguém.
É certo que há, segundo muitos teóricos, um aspecto explicativo dos mitos.
As histórias fantásticas em geral tentavam explicar a origem de algum cos-
tume, moral, valor, coisa, acontecimento, tradição etc. Eram, assim, tentativas
pré-científicas de fornecer respostas para muitas dúvidas humanas. Porém,
pergunta-se frequentemente no estudo dos mitos se eles são anteriores ou
posteriores à coisa explicada. Por exemplo, no mito da ressurreição de Cristo:
teria sido ele o criador da crença na ressurreição e, portanto, anterior a ela,
ou teria sido ele decorrência da crença na ressurreição e veio para explicá-la?
Ou, ainda, o mito da criação do homem a partir da argila foi a causa da crença
da criação do homem a partir do barro ou foi uma tentativa de explicar essa
crença? Em todos os casos, o mito sempre tenta explicar algo, ou a coisa em
si, ou a crença nessa coisa.
O estudo acadêmico dos mitos, ou mitologia, iniciou-se com os estudos
filológicos na Alemanha do fim do século XVIII e início do século XIX. Assim,
ele se desenvolveu dentro da área da linguística e posteriormente foi dissemi-
nado para outras áreas das ciências humanas, como história, antropologia e
ciências da religião. O interesse nesse estudo teve início junto com o interesse
no estudo das línguas antigas, como grego, latim, hebraico e sânscrito, e está
profundamente ligado também aos estudos do folclore. Por esse motivo, o
estudo da mitologia floresceu concomitantemente com o estudo das línguas
indo-europeias e das teorias ligadas a elas.
4 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

Uma das teorias ligadas às línguas indo-europeias é a da existência


de uma raça ariana. Essa teoria sustenta que uma leva migratória
de falantes de línguas proto-indo-iranianas, os arianos (do sânscrito ārya,
, nobre; etimologia sobrevivente no termo “irã” moderno), em direção ao
ocidente, teria formado os povos caucasianos, as suas línguas e, consequen-
temente, os seus mitos. Esses mitos teriam elementos comuns entre eles e,
decantadas as devidas diferenças mútuas, suas estruturas podem ser traçadas
até hoje. Tal fato originou a disciplina da mitologia comparativa, em que vários
mitos de vários lugares são comparados para encontrar uma estrutura narrativa
comum.
Uma prova da origem comum dos mitos e das línguas europeias com os povos
falantes de línguas arianas é a expressão “Zeus pai”: em grego, Zeus Pater, em
latim, Jupiter Pater, em védico, Dyáuṣ Pitṛ́ . Essa semelhança sugere que gregos,
romanos e indianos se originaram de uma mesma cultura ancestral e seria uma
prova para a teoria da raça ariana e sua migração para o ocidente. A línguas e
os mitos, assim, são objetos de estudos genealógicos para se traçar as origens
comuns de línguas, culturas e mitos.

Na mitologia, é possível encontrar muitos temas recorrentes entre vários


mitos de vários lugares. Por exemplo, a criação do homem da argila é um
tema comum em inúmeras mitologias:

„ na epopeia suméria de Gilgamesh, a deusa Aruru molda Enkidu a partir


da argila;
„ na mitologia grega, Prometeu molda os homens a partir da argila;
„ na mitologia hebraica, o deus Elohim molda o homem da argila;
„ na mitologia hindu, Parvati molda Ganesh na argila;
„ na mitologia chinesa, Nüwa molda humanos a partir da argila amarela.

Outro exemplo de um tema recorrente em vários mitos de vários lugares


é o tema do domínio do fogo:

„ na mitologia grega, Prometeu rouba o fogo dos deuses para dá-lo aos
homens e levá-los à civilização;
„ na mitologia semítica, no livro de Enoque, os anjos caídos e Azazel
ensinam os homens a usar o fogo;
„ na mitologia védica, Rigveda fala de um herói chamado Matarisvan que
descobriu o fogo, que havia sido escondido da humanidade.
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Um último exemplo: a titanomaquia. Muitas culturas têm um mito de cria-


ção, em que deuses mais jovens e civilizados combatem e derrotam deuses
mais velhos e selvagens, que representam as forças do caos. Por exemplo:

„„ na mitologia hindu, os devas guerreiam com os asuras;


„„ na mitologia grega, os deuses olímpicos guerreiam com os titãs;
„„ na mitologia celta, os deuses da vida e da luz guerreiam com os fomo-
rianos, deuses da morte e das trevas.

Alguns especialistas interpretam esses mitos comuns como um reflexo das


conquistas dos povos indo-arianos em sua expansão para o ocidente, onde
eles se viam como nobres e portadores da civilização. Esses são somente
alguns exemplos de inúmeros temas mitológicos comuns espalhados por
várias culturas. Existem muitos outros, como os temas dos gigantes, dos
dragões e das serpentes, da luta contra o caos, do ouroboros, do herói, das
metamorfoses, dos deuses que visitam os homens, dos homens que visitam
os deuses, da virgem que concebe, das aparições celestes etc. Em todos eles,
temos a narração de uma história fantástica.
Essa primeira abordagem das mitologias era essencialmente diacrônica,
ou seja, focava no estudo dos mitos e em seu desenvolvimento no tempo e no
espaço. Portanto, utilizava largamente as teorias evolucionistas e difusionis-
tas para elaborar as suas próprias teorias sobre a mitologia. Nessa primeira
fase do estudo dos mitos, surgiram alguns nomes muito importantes, como
Jacob Ludwig Karl Grimm (1785-1863), Andrew Lang (1844-1912), Franz Bopp
(1791-1867), Friedrich Max Müller (1823-1900) e James George Frazer (1854-1941).
Os trabalhos dessa primeira leva de mitólogos eram profundamente
históricos e filológicos, tentando traçar hipóteses evolutivas dos mitos e
encontrar origens comuns e processos migratórios comuns pelos quais os
mitos tenham passado e se desenvolvido juntamente com a língua e o povo.
Contudo, o excessivo foco no aspecto diacrônico pecava em explicar muitas
coisas sobre os mitos, como sua função social, seu significado particular,
seu aspecto prático e seu caráter religioso ou político dentro do sistema e
da cultura em questão, bem como sua utilidade.
Houve também uma abordagem estrutural-funcionalista da religião. Nessa
perspectiva, deixava-se de considerar tão preponderantes os aspectos dia-
crônicos nos mitos e levava-se em consideração seus aspectos sincrônicos,
ou seja, sua função aqui e agora dentro da cultura e do sistema religioso
em questão. São expoentes dessa abordagem: Émile Durkheim (1858-1917),
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Marcel Mauss (1872-1950), E. E. Evans-Pritchard (1902-1973), Claude Lévi-Strauss


(1908-2009), Georges Dumézil (1898-1986) e Joseph John Campbell (1904-1987).
Uma interpretação frequente dos mitos é o chamado evemerismo. O
evemerismo é uma teoria hermenêutica de interpretação dos mitos criada no
século IV a.C. por Evêmero (330-220 a.C.), mas defendida já muito antes pelo
sofista Pródico de Ceos (465-395 a.C.). Evêmero dizia que todos os persona-
gens mitológicos, heróis ou deuses, teriam tido uma existência real e comum
no passado, mas, ao longo do tempo, foram divinizados. Assim, histórias
fantásticas foram sendo inventadas, e seus feitos foram amplificados por
medo, ignorância ou admiração dos povos. Ou seja, não há nenhum sentido
oculto nos mitos — apenas hipérboles e exageros de pessoas comuns reais
do passado. David Hume e Voltaire, na modernidade, adotaram essa posição
sobre os mitos cristãos.
Já para Platão, os mitos tinham uma importante função política na pólis.
Como o rei-filósofo é o único habilitado a mentir, então é importante criar
bons mitos para o bom funcionamento da pólis. Assim, a função do filósofo
não se oporia à do poeta: ambos criam e disseminam mitos, mas o primeiro
cria mitos bons para o funcionamento social, e o segundo, não. Na sua obra
A república, Platão censura os mitos tradicionais, contudo, não condena os
mitos em si, mas sua função, porque seriam prejudiciais para a educação dos
jovens na pólis. O mito deve estar à serviço da verdade, e não o contrário. As
histórias fantásticas devem ser usadas de modo a incutir bons valores nos
jovens. Isso se dá porque “[...] Platão, através dos mitos, trata de estruturas
complexas constitutivas desse homem” (BOCAYUVA, 2014, p. 13).
Bultmann (2000) também trouxe considerações importantes sobre os mitos
com o seu conceito hermenêutico de demitologização. Ele argumenta que não
é mais viável no mundo moderno crer nos mitos do novo testamento, porque
a ciência moderna é irreconciliável com a mitologia cristã antiga. Portanto, é
preciso desmitologizar o mito, o que significa que se deve ver a mensagem
central por trás do mito, seu sentido simbólico. Assim, é importante depurar o
cristianismo mítico da essência do próprio cristianismo, o chamado kerigma.
O kerigma é a essência do cristianismo, a moral cristã nas palavras de
Jesus no Sermão da Montanha, a mensagem por trás dos mitos cristãos. Assim,
os milagres, a morte e a ressurreição, os exorcismos, as curas e as histórias
fantásticas no Evangelho não são histórias reais, mas encobrem simbolica-
mente o sentido real. Por exemplo, a história mitológica da ressurreição de
Jesus esconde seu verdadeiro sentido — a saber, que a morte não é o fim, que
há continuidade da vida, que o espírito prossegue sua jornada etc.
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Mito, para Bultmannn (2000), é o que era para o antropólogo britânico


Edward Tylor (1832-1917): uma explicação primitiva e fantástica do mundo,
incompatível com a explicação científica, e sua interpretação literal deve ser
rejeitada para dar lugar a uma interpretação simbólica. A real intenção do
mito é contar sobre o entendimento do próprio homem — por isso, o mito
deve ser interpretado não cosmologicamente, mas antropologicamente e
existencialmente. Bultmann (2000, p. 13-14) afirma que:

Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como a


do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por exemplo, a concepção
do mundo como estruturado em três planos: céu, terra e inferno; o conceito da
intervenção de poderes sobrenaturais no curso dos acontecimentos; e a concepção
dos milagres, especialmente a ideia da intervenção de poderes sobrenaturais na
vida interior da alma, a ideia de que os homens podem ser tentados e corrompi-
dos pelo demônio e possuídos por maus espíritos. A esta concepção de mundo
qualificamos de mitológica porque difere da que tem sido formada e desenvolvida
pela ciência, desde que esta se iniciou na antiga Grécia, e que logo foi aceita por
todos os homens modernos. Nesta concepção moderna do mundo, é fundamental
a relação entre causa e efeito.

Eliade (2019) não interpreta os mitos simbolicamente nem muda sua função
aparente. Para ele, o mito é uma explicação sobre a origem de um fenômeno,
e não apenas uma explicação de seu acontecimento pontual. Eliade (2019)
crê que a ciência moderna também tem seus mitos, e os mitos, assim como a
ciência, têm função explicativa do mundo. O mito fala sobre como em épocas
longínquas os deuses criaram coisas, sociais ou naturais, que ainda existem. O
mito, assim, tenta justificar o presente com histórias genealógicas passadas.
Além desse aspecto “histórico-teórico” do mito, ele tem um aspecto prático
— a saber, convencer o povo presente a aceitar dada tradição, reencená-la,
teatralizá-la, para atualizá-la e voltar magicamente nesse tempo mítico de
quando ela ocorreu, por meio de um rito acessório. Assim, o prêmio do mito
é o reencontro com a própria divindade, com seu tempo primordial, e disso
advém uma regeneração presente, em que se confirma que as ações presentes
de dado povo estão corretas. O mito serve para não ser contestado, para
ser obedecido, para servir de ligação com esse passado mítico da história.
A ciência, ao contrário, não tem essa função. A ciência só explica; o mito
explica e regenera. A ciência funciona por contestação constante de si mesma,
o que leva a uma dúvida eterna sobre ela mesma e a um constante ruir de suas
próprias bases. O mito, ao contrário, não admite revisão, ceticismo, dúvida — é
essa certeza mítica que é a sua força. Os modernos creem na ciência, contudo,
ela mesma precisa de seus próprios mitos constantemente — caso contrário,
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deve justificar-se. Tylor, Frazer e Max Weber (1864–1920) argumentavam que o


mito é vítima da secularização moderna. Eliade (2019) argumenta que o mito
não morreu, mas permanece camuflado no meio da ciência.
Eliade (2019, p. 122) crê que alguns "comportamentos míticos" sobrevivem
no mundo moderno, como o mito do retorno às origens. O autor aponta que:

[...] quando se empreendia uma inovação, esta era concebida, ou apresentada,


como um retorno à origem. A Reforma inaugurou o retêm à Bíblia e ambicionava
reviver a experiência da Igreja primitiva, ou mesmo das primeiras comunidades
cristãs. A Revolução Francesa tomou como paradigmas os romanos e os espartanos.
Os inspiradores e os chefes da primeira revolução europeia radical e vitoriosa,
que assinalou não somente o fim de um regime, mas o fim de um ciclo histórico,
consideravam-se os restauradores das antigas virtudes exaltadas por Tito Lívio e
Plutarco. Na aurora do mundo moderno, a "origem" gozava de um prestígio quase
mágico. Ter uma "origem" bem estabelecida significava, em suma, prevalecer-se
de uma origem nobre. "Temos nossa origem em Roma!", repetiam com orgulho os
intelectuais romenos dos séculos XVIII e XIX. A consciência de uma descendência
latina era acompanhada, para eles, de uma espécie de participação mística na
grandeza de Roma.

Tylor (1920) defende uma completa separação entre mito e ciência. Ele
inclui o mito na religião e a religião e a ciência na filosofia, dividida, por sua
vez, em primitiva e moderna. A filosofia primitiva é igual à religião. Não existe
ciência primitiva. A filosofia moderna tem duas divisões: religião e ciência. A
religião moderna é composta de metafísica e ética, que não estão presentes
na religião primitiva. A metafísica lida com entidades não físicas, das quais
os primitivos não possuem a noção, já que toda entidade é física; e a ética
lida com entidades morais que também não existem para os primitivos.
Para ele, o mito se originou da mente infantil dos homens primitivos. Tylor
(1920, p. 282, tradução nossa) foi um dos primeiros a defender a mitologia
comparativa como modo de descobrir padrões mentais culturais relevados
nos mitos; ele diz que:

[...] tratar mitos semelhantes de regiões diferentes organizados em grandes grupos


comparados torna possível rastrear na mitologia o funcionamento de processos
imaginativos recorrentes com a regularidade evidente de um padrão mental; e, as-
sim, histórias das quais uma única instância teria sido uma mera curiosidade isolada
tomam seu lugar entre estruturas bem marcadas e consistentes da mente humana.

Tylor (1920) entende a religião como animista, tanto a primitiva quanto a


moderna, porque a crença em deuses é derivada da crença em almas, e as
almas são entidades físicas nas religiões primitivas. A religião primitiva era
análoga à ciência, porque tinha pretensões explicativas do mundo. A expli-
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cação religiosa é personalista: as decisões arbitrárias dos deuses explicam


as coisas. A explicação científica é impessoal: as leis naturais explicam as
coisas. Como hoje a ciência explica mais e melhor do que a religião, os mitos
perderam qualquer utilidade explicativa. Tylor interpreta os mitos literalmente
e se opõe a qualquer hermenêutica mitológica alegórica, poética, metafórica,
simbólica ou evemérica.
O alemão Max Müller pensava que os próprios antigos haviam interpretado
mal seus próprios mitos, considerando-os literais. Histórias originalmente
simbólicas de fenômenos naturais passaram a ser lidas como descrições lite-
rais dos atributos dos deuses. Por exemplo, um mar “furioso” foi interpretado
como uma pessoa realmente irada, e então o mito foi criado para explicar
essa antropomorfização. Isso acontecia porque, segundo Müller, as línguas
antigas não possuíam substantivos abstratos ou de gênero neutro. Sempre
se pensava e se falava personalisticamente e antropomorfizadamente. Os
mitos foram inventados devido a uma lacuna de expressão nessas línguas
antigas proto-indo-arianas (MÜLLER, 1901).
Frazer (1982) considerava o mito parte da religião primitiva, e esta, por
sua vez, parte da filosofia universal. A religião primitiva é contraparte da
ciência natural. Mito e ciência ou verdade são exclusivos. A religião primitiva
funciona como contraparte da tecnologia. O mito serve para criar eventos
magicamente, como o bom rendimento da safra. O ritual é encenação do mito.
Um mito querido a Frazer era o de Adônis. Adônis era filho do rei Ciníras
de Chipre com sua filha Mirra. Pérsefone e Afrodite eram apaixonadas por
ele. Contudo, Adônis preferia Afrodite e passava mais tempo com ela. Ares,
amante de Afrodite, enciumado, mandou um javali matar Adônis. O javali
atingiu fatalmente Adônis na anca, que jorrou sangue. O sangue, ao cair na
terra, fez nascer uma anêmona. Afrodite, que corria para salvá-lo, feriu-se
em uma rosa — as rosas até então eram todas brancas — e a transformou
em rosa vermelha com seu sangue. Adônis morto desceu ao submundo e lá
encontrou Perséfone. Zeus, compadecido de Afrodite, decidiu que Adônis
passaria quatro meses com Afrodite, quatro com Perséfone e quatro livre.
Segundo Frazer, o mito explica as estações do ano, a safra e as colheitas.
O antropólogo polonês Bronisław Malinowski (1884–1942) afirma que os
primitivos procuram controlar a natureza pelos ritos, em vez de explicá-la
pelos mitos. Malinowski (1988) argumenta que os primitivos estão muito
ocupados correndo atrás da sobrevivência para se dar ao luxo de refletir
sobre isso. Para Malinowski, os primitivos usam o mito como uma reserva
para a ciência. Onde a ciência para, volta-se para a mágica. Outro aspecto
do mito é que ele, por narrar eventos passados sobre a origem, diz que nada
10 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

pode ser feito, que as coisas são como são, e assim tende a justificar uma
moral resignada sobre os fenômenos sociais e naturais presentes. Já o rito
seria seu oposto: seria a crença na possibilidade de que alguma mudança é
possível, de que é possível alterar o curso da realidade; assim, um de seus
pressupostos é a crença em alguma liberdade humana.

A mitologia grega é muito rica e muito bem documentada. Ao longo do


tempo, muitas coletâneas e versões dos mitos gregos apareceram. A
Biblioteca Mitológica, de Pseudo-Apolodoro, os poemas épicos Ilíada e Odisseia,
de Homero, a Teogonia, de Hesíodo, as tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles e
Eurípides, as Histórias, de Heródoto, a Biblioteca Histórica, de Diodoro Sículo,
a Descrição da Grécia, de Pausânias, as Metamorfoses, de Ovídio, e a Eneida, de
Virgílio, são algumas das obras que recontam os mitos gregos.
Talvez um dos mitos mais famosos e populares na Antiguidade tenha sido
o de Hércules. Hércules era filho de Zeus e Alcmena, filha do rei de Argos. Ele
era odiado por Hera, esposa de Zeus e sua madrasta. Hércules ficou conhecido
por sua extrema força, mas também por ter matado sua própria esposa Mégara
e seus filhos em um acesso de raiva. Para obter a expiação desse erro, o rei
Euristeu o incumbiu de 12 trabalhos, que fez com maestria. Contudo, ele morreu
devido a uma poção mágica mortal, que sua esposa, enganada pelo centauro
Nesso, passou em seu manto, que queimou sua carne. Zeus concedeu-lhe a
imortalidade junto ao Olimpo. Em torno de Hércules desenvolveu-se um culto
que foi muito popular na Península Ibérica. O estreito de Gibraltar era chamado
na Antiguidade de Colunas de Hércules, e em Cádis haviam algumas torres em
sua homenagem.

Lévi-Strauss (2007), por sua vez, resgata uma visão intelectualista dos
mitos. O mito também é uma tentativa de compreender o mundo, uma ex-
plicação de algo, um procedimento intelectual. Lévi-Strauss considera que
o pensamento primitivo é concreto, e o moderno, abstrato, e isso se reflete
na mitologia. O pensamento primitivo é qualitativo, enquanto o moderno,
quantitativo. O pensamento primitivo foca em aspectos sensíveis e visíveis da
realidade — os minerais, as plantas, os barulhos, os sons, as cores, as texturas,
os sabores, os odores e os mitos manipulam essas qualidades dos sentidos,
enquanto o pensamento lógico moderno os exorciza da ciência. Lévi-Strauss
(2007, p. 21) considera os mitos como parte da “[...] ciência do concreto”. Ainda,
ele diz que todos os homens e povos pensam de modo classificatório, em
pares de oposições, e as projetam no mundo. Os fenômenos culturais e os
mitos, especialmente, mostram esses binarismos estruturantes da realidade
e tenta solucioná-los. O próprio Lévi-Strauss nos diz qual era seu objetivo
quanto aos mitos, quando escreve que:
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 11

As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado,


absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte.
Uma criação «fantasiosa» da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente
única — não se esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente
diferente. O meu problema era tentar descobrir se havia algum tipo de ordem por
detrás desta desordem aparente — e era tudo (LÉVI-STRAUSS, 2007, p. 23).

Para quem se interessar mais pelo tema do mito, existem algumas


obras básicas, tanto coletâneas de mitos quanto teoria mitológica.
Abaixo listamos os principais títulos e seus respectivos autores:
„„ Jacob Grimm — Mitologia alemã
„„ Pierre Commelin — Mitologia grega e romana
„„ Jenny March — Mitos clássicos
„„ Andrew Lang — Mito, religião e ritual
„„ James Frazer — O ramo de ouro
„„ Robert Graves — Os mitos gregos
„„ Reginaldo Prandi — Mitologia dos orixás
„„ Junito de Souza Brandão — Dicionário mítico-etimológico
„„ Thomas Bulfinch — O livro da mitologia
„„ Ovídio — Metamorfoses
„„ Claude Lévi-Strauss — Mitológicas; Mito e significado
„„ Georges Dumézil — O festim da imortalidade: estudo de mitologia comparada
indo-europeia
„„ Joseph Campbell — O herói de mil faces
„„ Rudolf Bultmann — Novo Testamento e Mitologia
„„ Robert Segal — Mito: uma breve introdução
„„ Jordan Peterson — Mapas do significado: arquitetura da crença
„„ Ernst Cassirer — Linguagem e mito
„„ Mircea Eliade — Mito e realidade
„„ K. K. Ruthven — O mito

Rito: teatro e drama


O rito, junto com o mito, é um dos principais componentes da religião.
É quase difícil, para não dizer impossível, achar uma religião sem um
conjunto de mitologias próprias e de ritos específicos. Mesmo aquelas
12 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

vertentes mais “racionalizadas” do cristianismo e depuradas de aparatos


ritualísticos barrocos, como o luteranismo e o presbiterianismo, têm sua
ritualística mínima. Mas o que é o rito?
Um ritual é uma sequência de ações, pessoas, gestos, objetos e palavras
específicas feitas em um local específico com uma finalidade específica, diri-
gidas a uma entidade específica, para modificar alguma realidade específica.
Assim, um ritual se caracteriza como profundamente concreto, performático,
prático e ordenado. Enquanto o mito é essencialmente oral e narrativo, o rito
é essencialmente performático. Por vezes, os ritos podem ser a atualização de
um evento mítico passado. É o caso do rito eucarístico católico, que pretende
ser a constante reatualização da noite da santa ceia e da morte de Jesus.
Nesse caso, mito e rito caminham juntos. Todo rito depende um mito, mas
nem todo mito depende de um rito.
Nessa definição, estão incluídas toda a liturgia católica, ortodoxa e pro-
testante, as liturgias judaicas, islâmicas e pagãs, os cultos, os louvores, os
sacramentos, os ritos de passagens, os batismos, os casamentos, as cerimô-
nias orientais e também os ritos não religiosos, como juramentos, coroações,
posses presidenciais, inaugurações, casamentos, funerais, colações de grau,
condecorações honoríficas, formaturas etc. Basicamente toda ação perfor-
mática pode ser um rito. Rito, em sentido restrito, é um conceito religioso.
Contudo, em uma sociedade laicizada que tomou emprestadas ritualísticas
religiosas do cristianismo, pode-se perfeitamente falar em rito no sentido
amplo. Contudo, à título de delimitação, sempre que falarmos de rito aqui,
falaremos no sentido religioso.
O termo “rito” vem do latim ritus, um conceito jurídico e religioso romano
usado para significar a performance correta do direito, análoga ao nosso
moderno direito processual — literalmente “o reto”, o jeito certo de fazer
algo. Este, por sua vez, é derivado do sânscrito ṛtá, que significa “ordem
visível” nos Vedas — ou seja, a ordem regular do normal, o modo apropriado,
justo e natural da estrutura cósmica e das ações humanas. Nota-se, já na sua
etimologia, que o termo “rito” tinha uma conotação ética, a saber, o modo
correto de agir, que devia ser uma mimese da natureza. A natureza, para os
antigos, tinha uma racionalidade intrínseca, uma lógica, um propósito — não
era puro caos, mas essencialmente ordenada. Portanto, a vida humana tam-
bém deveria ser assim. Os ritos, portanto, mimetizavam essa ordem natural
no mundo humano.
Existe um aspecto mágico nos ritos religiosos. A correta manipulação de
objetos, o correto uso e proferimento de palavras secretas ou encantamentos,
dada entonação de voz, o correto uso de ingredientes ou elementos, o correto
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 13

uso de roupas específicas e gestos específicos — tudo isso aproxima os rituais


de um aspecto mágico. A magia, como veremos a seguir, é a manipulação e
a performance de coisas com vista a alterar uma realidade natural. Os ritos
se aproximam desse aspecto mágico, na medida em que exigem uma correta
manipulação ou performance.
William Robertson Smith (1846–1894), orientalista escocês, argumenta que
a crença, ou o convencimento, só é importante para as religiões modernas,
mas não era nas religiões antigas, que focavam muito mais nos rituais, ou seja,
em aspectos práticos da religião. Em vez de as religiões antigas possuírem
um credo, um rol de dogmas fixos, elas possuíam uma história mitológica
que explicava ou justificava os ritos estabelecidos por alguma instituição
direta dos deuses ou por seu exemplo. Mas esse mito explicativo não era
obrigatório. Desse modo, o mito era secundário ao rito. O rito não dependia
de um mito para ser performado (SMITH; SUTHERLAND, 1912). O problema da
teoria de Smith é que ela somente explica o mito, mas não o rito, e, ademais,
restringe o mito ao rito, de modo que só se pode compreender um mito
posteriormente ao próprio rito.
Para Tylor (1920), o mito é uma explicação do mundo físico, e não do ritual,
e funciona independentemente do rito; é uma declaração, uma narrativa
equivalente a um credo, mas na forma de uma história fantástica. O ritual
pressupõe um mito para Tylor, diferentemente do que diz Smith, porque o mito
é a explicação, a fundação do rito, a fonte de onde a performance se origina.
Frazer dedica o cerne de seu clássico O ramo de ouro para tratar do estágio
intermediário entre a religião e a ciência, um estágio em que magia e religião
estão combinadas. É nessa fase do desenvolvimento evolutivo da religião que
está o ritualismo mítico, porque nele o mito e o rito se fundem. Frazer (1982)
mostra um exemplo de ritual mágico, em que o deus da vegetação morre e
renasce. O ritual é feito quando se quer que o inverno acabe logo. O ritual
funciona pela lei da similaridade, em que a imitação de um acontecimento
natural faz com que ele realmente ocorra — como ocorre no vodu. Para Fra-
zer, a explicação mítica é só um meio de controle, e o ritual é sua aplicação;
contudo, o mito ainda está subordinado ao rito.
Burkert (1979) defende a completa separação e independência entre mito
e rito — contudo, ambos se reforçam mutuamente. O mito confere ao rito
justificativas: deve-se dramatizar o mito porque os deuses assim o fizeram.
O rito reforça o mito, transformando uma simples história fantástica em um
comportamento. Burkert (1979) funda o mito no sacrifício e na violência e
agressão, que tem sua origem no sacrifício da caça, expressão primitiva da
agressão. O ritual do sacrifício é a caça dramatizada.
14 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

A Figura 1 exemplifica um ritual dos Karajás, no Tocantins, que marca a


passagem da infância para a idade adulta.

Figura 1. Ritual Hetohoky, ou festa da casa grande, dos Karajás, no Tocantins, que marca a
passagem da infância para a idade adulta.
Fonte: Araújo (2016, documento on-line).

Para Durkheim (1996), o rito, a aglomeração de indivíduos em torno da


mesma crença, faz surgir uma efervescência social que leva, por sua vez, ao
sentimento religioso. Sobre isso, ele escreve que “[...] só o fato da aglomeração
já age como excitante excepcionalmente poderoso. Uma vez que os indivíduos
estão reunidos, emana da sua aproximação uma espécie de eletricidade que
os conduz rapidamente a grau extraordinário de exaltação” e “[...] portanto, é
nesses meios sociais efervescentes e dessa própria efervescência que parece
ter nascido a ideia religiosa” (DURKHEIM, 1996, p. 274).

Magia: ilusão e encantamento


Um aspecto indissociável do rito é a magia. É difícil separá-los, porque ge-
ralmente o rito é um processo mágico, e a magia é um ritual. Quase todos os
ritos têm um aspecto mágico, e quase toda magia tem um aspecto ritual. A
magia primitiva, dos povos selvagens, a magia de tradição ocultista, a magia
nas religiões africanas, a magia na cabala, a magia nas religiões antigas de
mistério gregas e até mesmo a magia nos ritos do cristianismo (batismo,
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 15

eucaristia, crisma etc.) são indissociáveis de rituais. A magia quase sempre


acontece dentro de um ritual, de um rito, de uma liturgia, de uma cerimônia,
de uma ordem religiosa, porque sua eficácia depende de sua correta perfor-
mance: palavras corretas, gestos corretos, ingredientes corretos, sacerdote
correto, tempo e espaços corretos, preparação correta etc. A falta de qualquer
desses elementos pode acarretar sua ineficácia.
No entanto, há quem oponha magia e publicidade ritual, alegando que
a magia é um ritual privado, secreto, misterioso, e não parte de um culto
organizado, e que, geralmente, ela visa a algo proibido. Essa é a definição de
Marcel Mauss (2000), por exemplo. Assim, a magia se opõe à religião.
O que define a magia? É um conjunto de procedimentos, ingredientes,
palavras, gestos, pessoas, sons, lugares e datas feitos para se alterar algum
aspecto da realidade. A magia é essencialmente prática e utilitária e funda-se
na crença de que o homem é capaz de alterar as coisas, se souber a magia
correta. A própria etimologia da palavra nos revela isso. O termo “magia” vem
o latim magia, que, por sua vez, veio do grego μάγος, que veio do proto-indo-
-europeu magh, que significa “ser capaz”. A raiz do termo gerou inúmeras
palavras que, para os hermeneutas mais criativos, é rico em interpretações:
imagem, imaginário, magistério etc.
Frazer (1982) diz que há dois tipos de magia: a homeopática e a simpática.
A magia homeopática se baseia no princípio da similaridade, em que o mago
imita atos que se deseja que ocorram: aspergir água na terra para fazer cho-
ver, espetar o braço de um boneco para infligir dor em alguém etc. A magia
simpática se baseia no princípio da simpatia, em que o objeto e o contato
com dado objeto afetam a própria pessoa por contágio: cabelo, sangue e pele
seriam perigosos, pois têm ligação direta com o possuidor.
Por trás da crença mágica, há a crença na causalidade, o que faz com que
Frazer a aproxime, nesse quesito, da ciência, visto que a ciência também opera
por causalidade. Contudo, a magia, diferentemente da ciência, não pode ser
guia de comportamento. A magia, para Frazer, é como uma ciência infantil —
seria como uma protociência. Tanto a magia quanto a ciência também não se
identificariam com a religião, porque em ambas há a crença na liberdade e
no poder humanos de mudar coisas naturais. Para Frazer, a magia é anterior
à religião, e a passagem daquela para esta ocorreu quando seus praticantes
notaram que o rito mágico nem sempre funcionava e concluíram que havia
forças maiores do que eles.
Para Durkheim (1996), tanto a mágica quanto a religião pertencem ao
sagrado — a diferença está na organização social. Magia descreve coisas
inerentemente antissociais, contrastando com a religião, que é essencial-
16 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

mente social. Na magia, existe uma espécie de antirreligião, porque a crença


mágica não pretende juntar seus adeptos e uni-los em um grupo para uma
vida comum. Durkheim afirma que:

[...] a religião é coisa eminentemente social. As representações religiosas são repre-


sentações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir
que surgem unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a
manter, ou a refazer certos estados mentais desses grupos” (DURKHEIM, 1996, p. 38).

Durkheim não parece, no entanto, distinguir claramente magia e religião.


Parece, nesse caso, que a divisão importante é entre o sagrado e o profano, e
não entre religião e magia. Onde há esse sistema classificatório entre coisas
sagradas e coisas profanas, há religião e magia. Contudo, a religião parece
estar muito mais ligada à sociedade e ao caráter público e social, enquanto a
magia é uma técnica utilitária individual e, por isso mesmo, desinteressante
como tema sociológico.
Malinowski (1988) rejeita a versão evolutiva de Frazer de que a magia se
encontra no primeiro estágio evolutivo. Ele defende, ao contrário, que os três
estágios estão presentes concomitantemente em cada sociedade. Segundo
ele, tanto a magia quanto a religião emergem e funcionam em situações de
tensão emocional; contudo, a religião é primeiramente expressiva, e a mágica
é prática. Malinowski (1988) define magia como uma arte prática de atos que
são somente meios para uma finalidade definida e esperada. Além do mais,
na magia, as ações são feitas com vistas para um fim, enquanto, na religião,
as ações são um fim em si mesmo. A magia não é irracional, mas racional
dentro do sistema social onde é praticada, porque tem uma utilidade.
Mauss (2009) contesta dois critérios de magia de Frazer: o da simpatia e o
da coação. Frazer aponta que toda magia é simpática, ou seja, opera por seme-
lhança: o semelhante produz semelhante. Contudo, para Mauss, há magias não
simpáticas, há simpatia na religião, e a religião também tem força de coação.
A magia é uma das muitas categorias de ritos: religiosos, solenes, públicos,
obrigatórios, regulares e mágicos. Mauss traça uma distinção muito forte entre
magia e religião: a religião é pública e aberta, e a magia, privada e fechada, de
modo que a magia exprime uma irreligiosidade, porque não forma um culto or-
ganizado, rito privado, secreto, misterioso e que tende no limite ao rito proibido.
Mauss (2009) argumenta que a magia tem três elementos essenciais: o
mágico, os rituais e as representações. O mágico deve ter qualidades distin-
tivas das demais pessoas e passa por uma iniciação. Os rituais podem ser
mais manuais ou orais, e as representações podem ser impessoais abstratas
ou concretas e pessoais. Mauss diz que:
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 17

Para nós, devem ser ditas mágicas apenas as coisas que forem realmente
tais para toda uma sociedade, e não as que foram assim qualificadas apenas
para uma fração de sociedade. Mas sabemos que as sociedade nem sempre
tiveram de sua magia uma consciência muito clara, e que, quando a tiveram,
só chegaram a isso lentamente [...] A magia compreende agentes, atos e re-
presentações: chamamos mágico o indivíduo que efetua atos mágicos, mesmo
quando não é um profissional; chamamos representações mágicas as ideias e
as crenças que correspondem aos atos mágicos; quanto aos atos, em relação
aos quais definimos os outros elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos
(MAUSS, 2009, p. 55).

Sacrifício: morte e vida


Assim como é difícil pensar em uma religião sem mito, rito e magia, é igual-
mente difícil pensar uma religião sem o sacrifício. O sacrifício é uma constante
universal em quase todas as religiões, seja o sacrifício propriamente dito,
seja o moral. O termo sacrifício vem do latim sacrificium e significa “ofício
sagrado”. Ofício, por sua vez, vem de officium e significa “dever”, “obrigação
moral”. Assim, sacrifício significa “obrigação sagrada”.
Há vários sinônimos para sacrifício: imolação, oferta, oblação etc. Em
todos ele remete à morte de algo, ao assassinato de alguma coisa ou alguém.
É a prática de oferecer aos deuses uma vítima (animal, pessoa, planta,
colheita) como ato de propiciação e expiação. No judaísmo há o korban e
o holocausto, no islã há o Udhiyah e o Dhabĥ, no candomblé, o Axogun, no
catolicismo, a missa.
Os sacrifícios religiosos começaram com sacrifícios animais (Figura
2). Existem inúmeros registros arqueológicos de sítios de sacrifícios ani-
mais espalhados pelo mundo, mas hoje temos registros mais seguros
sobre Egito, Grécia, Jerusalém e Roma Antiga. Os animais próprios para o
sacrifício eram bois, vacas, ovelhas, touros, porcos e aves, o que indica
que o homem começou essa prática quando aprendeu a domesticá-los.
Os sacrifícios de animais consistem basicamente na degola do animal, na
separação de suas gorduras, na leitura da sorte pelo fígado, no banho de
sangue, na repartição das outras partes entre os sacerdotes, na confecção
de utensílios litúrgicos com suas partes restantes, como as peles, e na
queima de suas partes para os deuses em altares. Os altares gregos mais
famosos eram o de Hieron e o de Pérgamo. O sacrifício serve tanto como
agradecimento como penitência.
18 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

Figura 2. Sacrifício de um porco na Grécia Antiga. Técnica de pintura em cerâmica vermelha


em tondo, atribuída a Apolodoro, hoje exposta no Louvre.
Fonte: Épidromos (2007, documento on-line).

Talvez o pensador que mais falou sobre o sacrifício foi René Girard (1923-
2015). Sua tese fundamental é a de que os desejos são cópias, e não originais.
O desejo é mimético do desejo alheio. Desejamos porque o outro deseja.
Queremos porque o outro quer. O bode expiatório, o sacrifício ritual, seria uma
tentativa de pôr um fim nesse conflito entre o desejo original e o desejo imita-
ção. Essa violência mimética é a origem da cultura. O conflito de desejos gera
uma violência direcionada para um bode expiatório. Quando muitas pessoas
imitam o desejo umas das outras, elas entrarão em conflito mútuo pelo mesmo
objeto de desejo. Agora, elas não desejam apenas a mesma coisa, mas desejam
destruírem-se umas às outras para se apossar do mesmo objeto de desejo.
Toda essa violência e agressividade tende a ser direcionada para a mesma
vítima, que, antes modelo de desejo, agora é modelo de antipatia geral. O
sacrifício brutal e violento dessa vítima vai gerar uma sensação de satisfação
e pacificar o grupo agressivo. A vítima morta deixa de ser fonte da violência,
mas salvação da própria violência. Sacrificada essa vítima, há a pacificação
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 19

e a reconciliação do grupo. Essa seria a origem da religião. O sacrifício ritual


seria uma reconstituição inconsciente desse evento originário. Essa é a origem
da religião e da sociedade para Girard: o sacrifício.
A perseguição e o sacrifício do bode expiatório é um processo social dolo-
roso, em que culpados aleatórios (mas não na perspectiva dos perseguidores
e sacrificadores) são escolhidos para aplacar a ira dos deuses e saciar a sede
de vingança da sociedade. Sobre isso, Girard (2004, p. 23) escreve que:

Os perseguidores acabam sempre por se convencer de que um pequeno número de


indivíduos ou até mesmo um só pode tornar-se extremamente nocivo para toda a
sociedade, apesar de sua relativa fraqueza. É a acusação estereotipada que facilita
e autoriza esta crença, desempenhando com toda evidência um papel mediador.

Mauss, em seu Ensaio sobre o sacrifício (1899), entende o sacrifício como


um procedimento de comunicação com o mundo sagrado e o profano pela
vítima. Os sacrifícios podem ser pessoais ou objetivos e contêm um sacrifi-
cante e um sacrifício. A vítima deve ser separada do mundo profano e levada
ao mundo sagrado. Há dois tipos de sacrifícios: o de sacralização, como os
ritos de entrada, e o de dessacralização, como os ritos de saída. Nos sacri-
fícios agrários, deve-se dessacralizar a vítima para liberar o espírito divino
da planta e sacralizar os novos campos de cultivo. Nesse caso, a origem dos
sacrifícios está no mundo agrário, e não no pecuário.
O mesmo ocorre com a noção de um sacrifício de deus, quando inicialmente
só havia sacrifícios a deus. Os sacrifícios a deus são relações de trocas do
mundo profano com o mundo sagrado por meio da vítima. O sacrifício de
deus é a total abnegação sem barganhas. O exemplo de abnegação divina
pede abnegação humana. O sacrifício mostra que os indivíduos podem se
servir das forças sociais para seus objetivos. Demonstra-se que as noções
religiosas existem, objetivamente, como fatos sociais.

Sobre o conflito entre sacrifícios agrários e sacrifícios pecuários,


leia o mito bíblico de Caim e Abel (Gênesis 4:1-7), que explica, dentre
outras coisas, porque Deus prefere animais sacrificados do que colheitas:
E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim, e disse: Alcancei
do Senhor um homem. E deu à luz mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas,
e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da
terra uma oferta ao Senhor. E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas,
e da sua gordura; e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e
para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante.
E o Senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem
fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e
20 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão
Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão
Abel, e o matou. E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não
sei; sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do
teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra, que abriu
a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra,
não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra. Então disse Caim
ao Senhor: É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada. Eis que hoje me
lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na
terra, e será que todo aquele que me achar, me matará. O Senhor, porém, disse-lhe:
Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um
sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse. E saiu Caim de diante
da face do Senhor, e habitou na terra de Node, do lado oriental do Éden. E conheceu
Caim a sua mulher, e ela concebeu, e deu à luz a Enoque; e ele edificou uma cidade,
e chamou o nome da cidade conforme o nome de seu filho Enoque.

O funcionalismo e a religião
A escola funcionalista em ciências sociais foi uma reação às escolas de ten-
dência evolucionista e difusionistas. Seu “pai” foi Émile Durkheim. Em suas
três principais obras, é possível ver a aplicação do seu funcionalismo: A
divisão do trabalho social (1893), Regras do método sociológico (1895) e Formas
elementares da vida religiosa (1912).
Na Divisão do trabalho social (DTS), há duas tipificações de sociedade
possíveis, as simples e as complexas, cada qual com suas características e
uma antitética à outra. As sociedades simples são sociedades com pouca
diferenciação social, em que predomina a coletividade, há menos liberdade
individual e, por isso, o direito deve ser repressivo. As sociedades complexas
se caracterizam como sociedades com muita diferenciação social, em que
predominam o indivíduo e os direitos individuais, e o direito é restitutivo.
Até aqui, na DTS, Durkheim (2010) somente repete algumas generalizações
antropológicas de seu tempo sobre sociedades primitivas e modernas. No
entanto, há uma inovação. Durkheim (2010) diz que o que mantém essas
duas sociedades unidas em seu interior são, respectivamente, dois tipos de
solidariedade: a mecânica e a orgânica. Em sociedades simples, a unidade e
a coesão social são conseguidas por meio do direito repressivo e da baixa
diferenciação entre os indivíduos, e não há espaço para a liberdade individual.
Esse tipo de solidariedade entre os membros é chamada de solidariedade
mecânica. Nelas, ainda não há divisão social do trabalho, e, justamente
por isso, a solidariedade é mecânica. Já em sociedades complexas, há uma
enorme divisão social do trabalho e é esta que faz seus membros se unirem
em solidariedade orgânica. Assim, a primeira inovação, ao comparar socie-
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 21

dade primitivas e modernas, está no vínculo de solidariedade proporcionado


pela divisão social do trabalho. A divisão social do trabalho, assim, não é
necessariamente um mal do capitalismo, mas tem uma função específica no
interior dessas sociedades. Aqui está a inovação metodológica de Durkheim:
a ideia de função.
Em sua segunda obra, Regras do método sociológico (RMSs), a ideia de
função já aparece bem formulada. Nessa obra, há cinco noções metodológicas
importantes para as ciências sociais. A primeira é a noção de fato social.
O objeto próprio da sociologia são os fatos sociais. Nisso, as RMSs estão
acompanhando o naturalismo metodológico de Comte. O naturalismo diz que
toda realidade é subsumida pela natureza e que, portanto, a natureza é a
única fonte das explicações possíveis. A própria palavra “fato” é buscada na
distinção naturalista entre fato e valor. Fato é aquilo que pertence à natureza,
e não ao mundo humano (DURKHEIM, 2019).
Portanto, ao dizer que a sociedade deve ser estudada com um fato, Durkheim
(2019) está dizendo que a sociedade deve ser estudada como um objeto natural,
mesmo sabendo que não o é. A primeira regra é considerar um fato social como
uma coisa. Portanto, a noção de fato social durkheimiana decorre, antes, de
seu naturalismo metodológico, herança claramente positivista. Um fato social,
assim como um fenômeno natural, é exterior, geral e constringente.
Então, temos que o naturalismo metodológico desliza para a noção de fato
social, e esta, por sua vez, implica que mesmo as exceções na natureza, as
anomalias, as diferenças, estão englobadas e não são, propriamente, aber-
rações dentro do sistema, mas exercem uma função. Portanto, o naturalismo
metodológico durkheimiano implica em seu funcionalismo metodológico. Em
miúdos, isso quer dizer que, dentro da sociedade, as exceções e diferenças são
abarcadas e englobadas, a fim de que o organismo chegue a uma homeostase
social, um equilíbrio, uma resolução de conflitos. Ideia muito diferente, por
exemplo, a título de comparação, daquela de Marx.
Outra noção metodológica presente nas RMSs é a de holismo metodo-
lógico. Na verdade, é uma consequência da noção de fato social. O holismo
metodológico afirma que a sociedade precede o indivíduo, a sociedade é
um todo orgânico. A generalidade do fato social implica que ela, a própria
sociedade, é maior que o indivíduo. O todo precede as partes. Se as coisas
que sucedem na sociedade devem ser encaradas como fato social, e se o fato
social se caracteriza como exterior, geral e constringente, então o fato social
é maior que o indivíduo e tem capacidade de englobá-lo. Portanto, o todo, a
sociedade, é maior que suas partes, os indivíduos. Isso implica em um certo
antivoluntarismo, por certo. Durkheim (2019) observa que, mesmo em uma
22 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

sociedade livre como a moderna capitalista França, ainda assim o indivíduo


não pode se desvincular de inúmeras coisas ou fatos sociais: a linguagem,
o direito, as instituições sociais, os padrões morais gerais. Há sempre algo
maior que constringe os indivíduos.
A terceira noção metodológica é a da morfologização social: substituir a
multiplicidade de indivíduos por um número restrito de tipos sociais. Visto
que é impossível estudar todos os indivíduos e as relações entre eles, deve-
-se tipificar agrupamentos e criar morfologias sociais explicativas do mundo
social. Por fim, o quarto princípio metodológico nas RMSs é o do método
comparativo. O método comparativo é o único que convém à sociologia.
Deve-se comparar variações seriadas, regulares, ligadas entre si, graduadas e
contínuas. Por meio dessas comparações, pode-se chegar a alguma lei social.
O que Durkheim (2019) está apontando aqui não é a comparação diacrônica
entre fenômenos sociais iguais em sociedades diferentes, à moda dos evolu-
cionistas culturais ingleses. Trata-se de comparações sincrônicas entre fatos
sociais iguais em sociedades contemporâneas, sem buscar a origem ou casa
de tal fato social no passado. Assim, a noção do método comparativo pode
ser expressa como sincronia, em vez de diacronia.
Outra obra evidente do funcionalismo de Durkheim é Formas Elementares
de Vida Religiosa (FEVR). A ideia de função perpassa toda ela. Não é somente
uma teoria social, mas um princípio metodológico: as diferenças, as anomalias,
as clivagens e mesmo os próprios indivíduos devem ser vistos, por princípio
metodológico, como funções neste organismo vivo chamado sociedade. Em
FEVR, a noção de função está plenamente desenvolvida. A religião é definida
como um sistema social, ou seja, uma funcionalidade social. Mesmo no auge
do capitalismo do fin de siècle, quando a religião era vista com desprezo,
sombra de um mundo passado primitivo, Durkheim (2001) afirma que ainda
há funcionalidade da religião no interior da sociedade moderna.
Durkheim (2001), ao analisar o totemismo australiano, conclui que os
componentes elementares da religião são as crenças e os ritos. As crenças
são sistemas filosóficos explicativos, tão funcionais como a ciência para os
modernos, e os ritos são sistemas práticos, igualmente tão funcionais como
a medicina ou o direito. Há rituais positivos, que são os deveres, e negati-
vos, que são os tabus. A religião é um sistema cognitivo-classificatório. O
conhecimento tem origem na vida social. Sem a vida social seria impossível
conhecer o mundo. É em sociedade que as pessoas constroem suas ideias,
seus conhecimentos, suas palavras classificatórias das coisas. Assim, a religião
funciona como o primeiro sistema classificatório e cognitivo humano. Para
Durkheim (1996, p. 344), as forças religiosas:
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 23

[...] são forças apenas coletivas hipostasiadas, isto é, forças morais; são feitas de
ideias e dos sentimentos que o espetáculo da sociedade desperta em nós, não
das sensações que nos vêm do mundo físico. Elas são, portando, heterogêneas às
coisas sensíveis nas quais nos situamos. Podem perfeitamente tomar dessas coisas
as formas exteriores e materiais sob as quais são representadas; mas nada lhes
advém daquilo que faz sua eficácia. Elas não estão presas por laços internos aos
suportes diversos sobre os quais vêm se colocar; não têm raízes neles; de acordo
com uma expressão que já empregamos e que pode servir para caracterizá-las
melhor, elas se acrescentam a eles.

Marcel Mauss, ele também um funcionalista e sobrinho de Durkheim, aplica


seu funcionalismo como uma chave de leitura social, em especial para os fenô-
menos religiosos, em seus ensaios Esboço para uma teoria geral da magia (1904)
e Ensaio sobre a dádiva (1924). Mauss faz uma interpretação funcionalista da
religião, em particular dos fenômenos da magia e do sacrifício. Quanto à magia,
Mauss (2000) a insere em uma espécie de rito, no entanto, de caráter privado,
fechado, misterioso, secreto, por tender a ações mal vistas socialmente. Esse
tipo específico de ritual precisa de no mínimo três elementos essenciais, a saber:

„„ o mágico, aquele que faz a magia, que deve ser um iniciado e saber
lidar com essa técnica;
„„ os rituais propriamente ditos, ou seja, a sequência de ações e palavras
corretas para que a magia funcione; e
„„ as representações impessoais ou pessoais.

Quanto ao sacrifício, Mauss (2008) o tratou sob a forma de dádiva. Dife-


rentemente do sacrifício animal, a dádiva é outra forma de sacrifício. Mauss
começa seu famoso ensaio tratando de um poema escandinavo sobre a
obrigação de dar e receber presentes. O texto é uma grande reflexão sobre
formas arcaicas de contrato e trocas protoeconômicas, comparando-as entre
sociedades da Polinésia, da Melanésia e do noroeste americano. Nessas
formas arcaicas, nota-se a obrigação de dar, receber e retribuir, que existem
também nas sociedades ocidentais.
Nas sociedades primitivas, os contratos são feitos entre clãs e tribos por
meio de trocas coletivas de presentes, de modo a formar um sistema de
dádivas. Esse sistema é não apenas econômico, mas moral; são prestações e
contraprestações de presentes, alianças e amizades. Ele os chama de sistemas
de prestações totais. Neles, circulam amabilidades, banquetes, ritos, serviços,
mulheres, crianças, festas, danças e objetos também. Tudo é objeto de troca.
A finalidade é a comunhão entre as partes. As coisas trocadas têm uma alma
própria ligada ao doador, o chamado hau. Assim, dar um objeto é dar-se.
24 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

As noções de honra, prestígio e vaidade estão presentes nessas trocas.


Quando alguém doa, doa-se e estabelece uma dívida com que recebe. A dádiva
é sempre uma dívida. Para pagá-la, ele também deve doar. O donatário deve
oferecer uma dádiva à altura da que recebeu. Quanto mais grandiosas as
doações, maior prestígio concedido a seus doadores. Um exemplo notável
é o ritual do Potlatch norte-ameríndio, em que há uma forma agonística da
troca, marcada pelo sacrifício.
Outro funcionalista importante no tema foi Evans-Pritchard. Ele fez um
trabalho de campo entre os Azande, um povo selvagem primitivo africano. A
noção de bruxaria entre esse povo é como uma filosofia natural, ou ao menos
tem tal função análoga. Por ela se explicam acontecimentos cotidianos e tam-
bém aqueles considerados sobrenaturais. Além de aspectos protoepistêmicos,
a bruxaria tem aspectos morais, pois regula o comportamento desse povo. A
hipótese de bruxaria nos eventos lúgubres é rejeitada quando há possibilida-
des outras, como o oráculo e a quebra de um tabu (EVANS-PRITCHARD, 1965).
Nesse sistema, qualquer um pode ser considerado bruxo ou alvo de bru-
xarias. Entre eles, a magia e os oráculos são usados como modo de identificar
os bruxos. As relações de causalidade feitas entre os Azandes não admitem
a coincidência ou o acaso — tudo tem uma causa, por mais remota que seja,
e a bruxaria tenta suprir as lacunas causais quando não se sabe ou não
se tem outra possibilidade. Contudo, mesmo tendo outras hipóteses, eles
sempre recorrem à bruxaria como explicação de infortúnios, chamando-a de
umbaga, ou “segunda lança”. A primeira lança é a primeira causa de morte de
um animal, a segunda lança contribui para a morte. Assim, analogamente, ao
usar a palavra umbaga, segunda lança, para se referir à bruxaria, os Azande
creem que, de um modo ou de outro, a bruxaria sempre está presente nos
infortúnios (EVANS-PRITCHARD, 1965).
Evans-Pritchard é um grande crítico tanto das teorias psicológicas sobre a
religião como das sociológicas de viés evolucionista e difusionista. Ele critica
a pretensão dos antropólogos dessas duas correntes em comparar culturas
diferentes. Em sua opinião, essas correntes tendem a ver o mundo dividido
entre “nós” e “eles”, em que:

[...] nós somos racionais, eles são povos pré-lógicos vivendo em um mundo de
sonhos, de mistérios e temor; nós somos capitalistas, eles comunistas; nós somos
monogâmicos, eles promíscuos; nós monoteístas, eles fetichistas e animistas, pré-
-animistas ou coisa do gênero e etc. O homem selvagem assim era representado
como infantil, rude, comparável a animais e imbecis (EVANS-PRITCHARD, 1965, p.
105, tradução nossa).
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 25

O caráter conservador do rito


Na manutenção da religião, o rito tem um papel fundamental. Como o rito tem um
caráter, quase sempre, de dramatização do mito, e como o mito é uma narrativa
fantástica sobre as origens de uma tradição, um costume, uma moral, uma pessoa,
um herói, um deus ou um fenômeno natural, então o rito preserva as tradições.
Por meio do rito, o passado é constantemente reatualizado no presente. Esse é o
caso da missa cristã, por exemplo. Um ritual de sacrifício se perpetua no tempo
ininterruptamente, por meio da memória de uma história fantástica.
O rito, além de preservar a religião e as tradições morais, preserva as
relações comunitárias. É importante ter em mente que a maior parte das
religiões surgiu e se desenvolveu intimamente ligada à política, ao governo,
aos reis, aos governantes, de modo que a separação entre os conceitos mo-
dernos de Estado e de religião é muitíssimo recente, remontando à Revolução
Francesa. Na grande maioria das religiões primitivas de que a antropologia
trata, a religião ainda é intimamente ligada à vida social e política. Desse
modo, é quase impossível separar ritos religiosos de ritos políticos, porque
toda a vida social dos primitivos é profundamente imersa em ritos.

As antigas cerimônias de coroação dos reis eram ritos políticos, mas


também religiosos. As cerimônias rituais de sacrifício no antigo templo
judaico de Salomão eram ritos religiosos, mas profundamente políticos. E, mesmo
na Roma Antiga, onde nasceu a ideia de república, os rituais oblativos e as cerimô-
nias de preparação à guerra eram ritos tanto religiosos como políticos. A religião
permeava toda a vida social na Antiguidade e ainda permeia nos povos arcaicos.

Alguns pensadores refletiram muito sobre o papel da religião e de seus


elementos míticos e ritualísticos no mundo moderno, como Max Weber e Jean-
-Marie Guyau (1854-1888). Cassirer (1946, p. 44, tradução nossa) aponta que “[...]
consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e da moralidade,
as formas básicas de comunidade e estado estão todas originalmente ligadas
com concepções mítico-religiosas”. Se assim for, todos os aspectos sociais
estão intimamente ligados com aspectos profundamente religiosos e míticos,
mesmo em um mundo supostamente racional e tecnológico como o nosso.
Weber (2013) falou que o mundo moderno do século XIX estava passando
por um grande desencantamento do mundo — literalmente, em alemão,
uma entzauberung der welt —, uma “desmagicalização”. Nele, o mundo, em
um crescente de racionalidade, pragmatismo, utilitarismo e capitalismo,
vai perdendo suas origens religiosas, esquecendo sua herança religiosa,
26 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

perdendo o encanto e o mistério sobre as coisas da vida, de modo a levar a


consequências trágicas do ponto de vista social e psicológico.
Guyau (2014) falava que o futuro da religião não seria propriamente seu
desaparecimento, como advogavam os positivistas, em que a religião seria
apenas um estágio passado na evolução humana, mas, sim, que a religião
seria transmutada em uma espécie de irreligião, uma mistura sincrética
de credos, de tradições religiosas conflitantes e de ciência, de modo a ser
mais palatável para o público. Guyau influenciou muitos pensadores como
Nietzsche, Bergson, Jankelévitch e Kropotkin.
Já Durkheim (2001) viu nas religiões primitivas a expressão de uma coesão
social perdida na modernidade. Nas sociedades simples, onde há pouca
diferenciação social e pouco valor à liberdade individual, com predomínio da
coletividade e do direito repressivo, a coesão social se obtém por solidariedade
mecânica. Ou seja, mecanicamente, como em uma engrenagem fabril, tudo
nessas sociedades simples é feito para funcionar bem, sem percalços, e os
mínimos sinais de caos e liberdade individual são solapados para preservar a
unidade. A religião e seus ritos nessas sociedades são fatos sociais funcionais
para a manutenção da ordem, da homogeneidade e da coesão.
O rito, para Durkheim, é um dos componentes dos fatos religiosos, junto
com as crenças, e exprime condutas chanceladas pelas crenças. Tanto os ritos
como as crenças organizam o mundo entre coisas sagradas e coisas profanas.
Os ritos coletivos têm as funções de pôr o povo que os pratica em movimento
para sua celebração e, assim, aproximar os indivíduos, reforçar seus laços de
proximidade e coesão, criar inimigos e amigos comuns e criar uma identidade
comum. A sociedade molda e envolve os indivíduos nos fatos religiosos; por
meio dos ritos, esses indivíduos praticam tais fatos mais despertos e ligados.
Deixamos uma questão: como o mundo republicano, democrático, liberal
e laico moderno consegue criar coesão social sem os ritos religiosos e sem
uma mitologia comum? Essa pergunta ecoa desde a Revolução Francesa.
Dado que hoje a religião e os seus ritos não são mais fundamentos para a
unidade política, como a sociedade contemporânea consegue alguma uni-
dade e coesão social sem mitos fundacionais e sem ritos próprios? Pode o
mundo social sobreviver sem uma mitologia e sem rituais? Pensemos sobre
os símbolos nacionais, sobre o hino nacional, sobre a bandeira, sobre os
processos de independência dos países latino-americanos durante o século
XIX, sobre a tentativa de criação de uma identidade nacional nos primeiros
anos de proclamação da República no Brasil. A república e a democracia
modernas não criaram seus próprios mitos e ritos para ter unidade e coesão
social? Seria a política moderna uma nova forma de religião?
Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa 27

Referências
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Portal Tocantins, 16 mar. 2018. Disponível em: https://portal.to.gov.br/noticia/2018/3/16/
festa-hetohoky-da-etnia-karaja-representa-identidade-cultural-do-estado/. Acesso
em: 16 nov. 2020.
BOCAYUVA, I. A atualidade dos mitos presentes na obra de Platão. Archai, n. 13, p.
115-120, 2014. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/archai/article/
view/8491. Acesso em: 16 nov. 2020.
BULTMANN, R. Jesus Cristo e mitologia. São Paulo: Fonte Viva, 2000.
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DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
DURKHEIM. E. Formas elementares da vida religiosa. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2001.
DURKHEIM. E. A divisão do trabalho social. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DURKHEIM. E. Regras do método sociológico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2019.
ÉPIDROMOS, P. Sacrifice boar. 2007. In: Wikipédia. Disponível em: https://en.wikipedia.
org/wiki/File:Sacrifice_boar_Louvre_G112.jpg. Acesso em: 16 nov. 2020.
EVANS-PRITCHARD, E. Theories of primitive religion. Oxford: Oxford University Press, 1965.
FRAZER, G. J. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
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LÉVI-STRAUSS, C. Mito e significado. Lisboa: Edicões 70, 2007.
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MAUSS, M. Esboço para uma teoria geral da magia. São Paulo: Edições 70, 2000.
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WEBER, M. Ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2013.
28 Mito, rito, magia, sacrifício e narrativa

Leituras recomendadas
SEGAL, R. Myth: a very short introduction. Oxford University Press, 2004.
VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 2013.

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