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DA RELIGIÃO
A evolução do
ser humano: do
pensamento religioso
ao pensamento
científico
Valter Borges dos Santos
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Introdução
A passos lentos, mas contínuos, o ser humano e as sociedades caminham em
direção à dessacralização e à laicização, respectivamente. Os encontros e desen-
contros desses polos opostos, primitivos e modernos, não significa, exatamente,
uma ruptura, pois o processo ocorre pela assimilação do homo religiosus, que,
por meio de experimentos, vai se reconstruindo e adaptando aos novos tempos,
dessacralizados.
2 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico
Como todo processo, ele não ocorre de forma abrupta, cartesiana: há vestígios
antigos na modernidade que, na intersecção de mudanças, vão se preservando
sob novas interpretações. Por isso, apesar do advento das novas tecnologias e
da tentativa de substituir a divindade, o homem moderno ainda carrega aspectos
do homo religiosus, que, latente, encontra dificuldades de se manifestar, pois há
carência do impulso externo, das hierofanias, que é a ausência da percepção da
divindade no cosmos, agora dessacralizado, opaco, vazio.
Neste capítulo, falaremos do processo evolutivo do ser humano e das so-
ciedades a partir do enfoque antropológico. Especificamente, explicaremos a
presença e a ausência da noção de transcendência no pensamento religioso e no
pensamento científico, bem como analisaremos as diversas fases da evolução:
da colheita de frutas ao mundo moderno, em períodos étnicos.
religiosus, então, tem sua existência “aberta” ao mundo, que percebe parte
do cosmo vivendo nele, em seu interior. Essa vida aberta não se dá de forma
inconsciente, mas “[...] permite ao homem religioso conhecer-se, conhecendo o
mundo — e esse conhecimento é precioso para ele porque é um conhecimento
religioso, refere se ao ser” (ELIADE, 1992, p. 81).
Uma vez que a vida, para o primitivo, é uma vida santificada, ela se des-
dobra de forma dupla: “[...] como existência humana e, ao mesmo tempo,
participa de uma vida transumana, a do cosmos ou dos deuses” (ELIADE,
1992, p. 81). Dessa forma, tudo que o homem faz tem conotação religiosa,
inclusive as principais funções fisiológicas. Ao homem dessacralizado, por
sua vez, “[...] todas as experiências vitais — tanto a sexualidade como a ali-
mentação, o trabalho como o jogo — foram [...] desprovidas de significado
espiritual” (ELIADE, 1992, p. 81). Para o homo religiosus, porém, não só aos atos
fisiológicos, mas também a regiões e a fenômenos cósmicos são atribuídos
significados religiosos. O ato de comer se torna um sacramento e a prática
sexual é ritualizada, assimilada aos fenômenos cósmicos (chuvas, semeadura)
e aos atos divinos (hierogamia, Céu, Terra).
Essas correspondências antropocósmicas são encontradas, também,
nas religiões mais evoluídas, demonstrando a sacramentalização da vida
fisiológica. Viver em dois planos, para o homo religiosus, significa transpor
a vida da experiência humana para o transcendente, cósmico, transumano.
Igualmente, a habitação, para o homo religiosus, é um microcosmos, mas não
só: seu corpo é um microcosmos.
Essas ideias são reinterpretadas pelas religiões e pelas filosofias evoluídas
no decorrer da história, chegando à modernidade, a exemplo do pensamento
religioso indiano, cujo religioso “cosmiza” o universo, bem como sua casa,
que são tratados como corpo humano. Nessa compreensão, há um canal
de trânsito para o outro mundo, o dos deuses, na parte superior, onde, por
ocasião da morte, há correspondências de que a “[...] a alma do morto sai pela
chaminé” (ELIADE, 1992, p. 84). Essas ideias religiosas são inconcebíveis ao
homem dessacralizado por dois motivos: não vive em um mundo sacralizado,
e, portanto, a morte foi dessacralizada. Ele já não se dá conta de que ter um
corpo e instalar-se em uma casa equivale a assumir uma situação existencial.
Para o homem a-religioso, nada disso tem significado. Seus valores não
correspondem àqueles da cultura primitiva no que concerne “[...] a seu corpo, sua
casa e seu universo” (ELIADE, 1992, p. 86). A casa e o corpo do homem moderno
perderam os valores religiosos, cosmológicos. Eliade (1992, p. 86) é taxativo:
“[...] para os modernos desprovidos de religiosidade, o cosmos se tornou opaco,
inerte, mudo: não transmite nenhuma mensagem, não carrega nenhuma ‘cifra’”.
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por esta razão, dificilmente reconhecível” (ELIADE, 1992, p. 99). Exemplos são
abundantes. A estrutura da constituição da concepção do comunismo cientí-
fico tem-na em uma base mitológica e escatológica. O homem a-religioso, de
acordo com Marx, faz valer “[...] um dos grandes mitos escatológicos do mundo
asiático mediterrânico, a saber, o papel redentor do justo [...] cujos sofrimentos
são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo” (ELIADE, 1992, p. 99).
Marx, ao resgatar a esperança escatológica, a vincula ao proletariado, que
é chamado para sua própria salvação, mudando as estruturas do mundo, e
esse político-econômico vê-se, no desejo, de volta ao estado puro do paraíso
edênico, manifestado nos movimentos de nudismo e de liberdade sexual.
A própria ciência da antropologia da religião, por sua base científica,
é dessacralizada. Mesmo objetivando conhecer o fenômeno religioso, usa
termos e utiliza teorias científicas para explicar o cosmos sacralizado. Será
que dá conta?
Comportamentos religiosos são verificados nas ações e nos gestos do
homem dessacralizado, como na iniciação do soldado com “provas” para o
combate. No trato do paciente, pela psicologia, quando da reflexão sobre si
na volta às origens, temos reflexos às descidas iniciáticas aos locais habitados
por seres espirituais. Termos como “luta pela vida”, “sofrimentos” e “torturas
morais” são associados aos ritos de passagem para a vida adulta.
“É por isso que, num horizonte religioso, a existência é fundada pela
iniciação; quase se poderia dizer que, na medida em que se realiza, a pró-
pria existência humana é uma iniciação” (ELIADE, 1992, p. 100). Dessa forma,
entende-se que o homem profano, sendo descendente do homo religiosus,
traz, em seu bojo, elementos comportamentais de seus antepassados reli-
giosos, que o constituíram como ele é hoje. As crises existenciais acionam a
aura religiosa do inconsciente, indagam sobre o sentido da vida, do passado,
do futuro e da existência, pois esta, vazia de sacralidade, da percepção do
cosmos e de si, cria um vácuo existencial, que, ao final, é uma crise religiosa.
Nas palavras de Eliade (1992, p. 101):
subsistência;
governo;
linguagem;
família;
religião;
vida doméstica e arquitetura;
propriedade.
Referências
CASTRO, C. Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
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Leituras recomendadas
CASTRO, C. Textos básicos de antropologia: cem anos de tradição. Editora Zahar, 2016.
FRAZER, J. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982.
MARCONI, M. A; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 8. ed. São Paulo:
Atlas, 2019.