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ANTROPOLOGIA

DA RELIGIÃO
A evolução do
ser humano: do
pensamento religioso
ao pensamento
científico
Valter Borges dos Santos

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Sintetizar o processo evolutivo do ser humano e das sociedades.


>> Reconhecer a presença e a ausência da noção da transcendência no pensa-
mento religioso e no pensamento científico.
>> Identificar as diversas fases da evolução: da colheita de frutas ao mundo
moderno.

Introdução
A passos lentos, mas contínuos, o ser humano e as sociedades caminham em
direção à dessacralização e à laicização, respectivamente. Os encontros e desen-
contros desses polos opostos, primitivos e modernos, não significa, exatamente,
uma ruptura, pois o processo ocorre pela assimilação do homo religiosus, que,
por meio de experimentos, vai se reconstruindo e adaptando aos novos tempos,
dessacralizados.
2 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

Como todo processo, ele não ocorre de forma abrupta, cartesiana: há vestígios
antigos na modernidade que, na intersecção de mudanças, vão se preservando
sob novas interpretações. Por isso, apesar do advento das novas tecnologias e
da tentativa de substituir a divindade, o homem moderno ainda carrega aspectos
do homo religiosus, que, latente, encontra dificuldades de se manifestar, pois há
carência do impulso externo, das hierofanias, que é a ausência da percepção da
divindade no cosmos, agora dessacralizado, opaco, vazio.
Neste capítulo, falaremos do processo evolutivo do ser humano e das so-
ciedades a partir do enfoque antropológico. Especificamente, explicaremos a
presença e a ausência da noção de transcendência no pensamento religioso e no
pensamento científico, bem como analisaremos as diversas fases da evolução:
da colheita de frutas ao mundo moderno, em períodos étnicos.

Da religião à ciência: caminhada evolutiva


O pensamento evolucionista, que trata da evolução como explicação para a
diversidade cultural, não está ancorado na célebre obra de Charles Darwin
(1809–1882), A origem das espécies por meio da seleção natural, isto é, na
evolução biológica. Essa ideia de Darwin, grandemente disseminada entre os
europeus cultos, era, na verdade, pouco compreendida. A ideia de progresso
evolutivo que pululava entre eles tinha como “[...] imagem mais comum uma
‘escada’ cujos degraus estão dispostos numa hierarquia linear” (CASTRO,
2005, p. 12).
Esse pensamento linear progressivo era a ideia corrente, em meados
de 1870, e, somado às descobertas arqueológicas na Inglaterra e na França,
levou ao “[...] enorme alargamento do tempo histórico da espécie humana,
para muito além dos cerca de cinco mil anos apontados pela tradição bíblica”
(CASTRO, 2005, p. 12), e fez pensar que os seres humanos descendiam de uma
espécie inferior, extinta há muito tempo.
Evidentemente, Darwin influenciou teólogos, filósofos, políticos e antro-
pólogos; porém, foi Herbert Spencer (1820–1903), filósofo inglês, que pro-
vocou mais impacto entre os autores que estudavam o progresso humano,
como Lewis Henry Morgan e Edward Burnett Tylor. Foi Spencer, de fato, quem
popularizou o termo evolução, que Darwin somente usaria na 6ª edição de
sua obra. Dessa forma, foi sob a influência de Spencer que uma única escala
evolutiva ascendente, por meio de vários estágios, tornou-se a ideia central
do evolucionismo na antropologia (ao contrário de Darwin, que não propu-
nha qualquer direção em sua teoria, muito menos “progressos unilineares”)
(CASTRO, 2005).
A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 3

Longe de servir de base para ideias hierarquizadas, nas quais os


antigos eram considerados inferiores, e os modernos, superiores,
o evolucionismo não transforma a gigantesca diversidade cultural humana em
uma lógica permeada pela sobrevivência dos mais fortes, mas na ideia de “[...]
reduzir as diferenças culturais a estágios históricos de um mesmo caminho
evolutivo” (CASTRO, 2005, p. 13).

A ideia evolucionista, na antropologia, baseava-se no entendimento de


que o desenvolvimento das sociedades humanas ocorreu em estágios su-
cessivos. Segundo Castro, “[...] o postulado básico do evolucionismo em sua
fase clássica era, portanto, que, em todas as partes do mundo, a sociedade
humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa
trajetória basicamente unilinear e ascendente” (CASTRO, 2005, p. 14). Assim,
a humanidade toda, obrigatoriamente, passava pelos mesmos estágios, se-
guindo uma direção do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado
ao mais diferenciado.
Morgan afirmava que a evolução era natural e necessária, argumentando
que a humanidade teve um único início, que seus caminhos também foram
únicos, por meios diferentes, mas uniformes, em todos os continentes, e muito
semelhantes em todas as tribos e nações da humanidade, que se encontram
no mesmo status de desenvolvimento (CASTRO, 2005). Nas palavras de Castro,
uma “[...] unidade psíquica de toda a espécie humana, a uniformidade de seu
pensamento” (CASTRO, 2005, p. 14). Essa definição era um contraponto a uma
ideia anterior da antropologia, a de que havia origens diferentes e, portanto,
uma hierarquia entre os humanos.
Tylor refutava a ideia poligenista das múltiplas origens e a hierarquização
entre as sociedades humanas e entendia ser “[...] tanto possível, quanto dese-
jável, eliminar considerações de variedades hereditárias, ou raças humanas,
e tratar a humanidade como homogênea em natureza, embora situada em
diferentes graus de civilização” (CASTRO, 2005, p. 14). Apesar disso, quanto
ao monogenismo, os autores tinham dificuldades de tratar sobre questões
das múltiplas diferenças entre os humanos, e acabavam se contradizendo.

Poligenismo é a concepção antropológica que entende que o ser


humano tem sua origem em várias linhagens. Monogenismo, por sua
vez, defende a ideia de que a origem do ser humano descende de um ancestral
comum. Houve debates intensos sobre esses conceitos entre os antropólogos
clássicos.
4 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

O caminho evolutivo adotado pela antropologia clássica de Morgan, Tylor


e Frazer oferecia uma visão museológica dos povos considerados exóticos,
ou não ocidentais. Eles seriam “[...] representantes de etapas anteriores da
trajetória universal do homem rumo à condição dos povos mais ‘avançados’;
como exemplos vivos daquilo ‘que já fomos um dia’” (CASTRO, 2005, p. 14).
Frazer, metaforicamente, entendia o selvagem como um tipo de “documento
humano”, enquanto Morgan entendia que o cerne dos comportamentos hu-
manos dos selvagens, especialmente da família humana, ainda se encontrava
nos humanos considerados evoluídos, apesar dos estágios de evolução pelas
quais a humanidade atravessou (CASTRO, 2005).
Com a carência do desenvolvimento da arqueologia para elucidar dúvidas
ou confirmar pressupostos, nessa época os estudos das sociedades avan-
çavam de modo a permitir reconstruir a trajetória evolutiva da humanidade,
por etapas, com base no estudo das sociedades menos desenvolvidas, como
a dos aborígenes australianos. Isso permitia associar o comportamento
dessas sociedades exóticas com as antigas, de modo a complementar os
relatos greco-romanos.
Frazer sintetizou esse pensamento quando relacionou as sociedades
primitivas às contemporâneas, como em uma comparação entre crianças e
adultos. Assim, nas palavras de Frazer, “[...] exatamente como o crescimento
gradual da inteligência de uma criança corresponde ao crescimento gradual
da inteligência da espécie [...] assim também um estudo da sociedade sel-
vagem em vários estágios de evolução” (CASTRO, 2005, p. 15). Frazer admite
a possibilidade de compreender o homem primitivo ao analisar o homem
exótico de hoje. Dessa forma, para Frazer, a selvageria é a condição primitiva
da humanidade (CASTRO, 2005).
A antropologia evolucionista, portanto, apropria-se do método compara-
tivo (já empregado na anatomia e na linguística) para contrastar as sociedades
exóticas atuais e preencher as lacunas evolutivas da cultura humana, a fim
de compreender as sociedades primitivas. Usando o método comparativo,
portanto, foi possível considerar a variedade dos grupos humanos a partir
das condições externas que fizeram o ritmo de evolução dos grupos humanos
ser diferente (CASTRO, 2005).
Para Tylor, nessa análise comparativa, primeiramente é necessário de-
talhar e classificar as civilizações estudadas e estabelecer sua distribuição
geográfica e histórica, verificando a relação entre elas. A ideia de progresso
está profundamente enraizada em nossas mentes, a ponto de Tylor considerar
A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 5

que “[...] reconstruímos, sem escrúpulos, a história perdida, confiando no


conhecimento geral dos princípios do pensamento e da ação humana como
um guia para pôr os fatos em sua ordem apropriada” (CASTRO, 2005, p. 15).
Castro nos informa que há, ainda, outro elemento importante na concepção
do evolucionismo das culturas: trata-se do conceito de sobrevivência. Tylor
entende esse conceito como aspectos mentais que sobrevivem em novos
formatos nas sociedades atuais em relação às sociedades antigas, ou seja,
aspectos que evoluíram. São “[...] processos, costumes, opiniões, e assim
por diante, que, por força do hábito, continuaram a existir” (CASTRO, 2005, p.
15). Frazer diz que são lembranças de práticas materiais e mentais que ficam
como fósseis nas culturas atuais:

O estudo científico das “sobrevivências” autorizava o antropólogo a recorrer,


portanto, não apenas às sociedades “selvagens”, como também à sua própria
sociedade. Tal procedimento ampliava enormemente o campo de investigação,
permitindo que se incorporasse à antropologia aquilo que se costumava designar
como “folclore” (CASTRO, 2005, p. 16).

De forma universalista, a antropologia evolucionista se pautava no


chamado teste de recorrência, no qual, segundo Tylor, não se poderia
atribuir ao acaso diversos relatos encontrados em várias sociedades geográfica
e historicamente diferentes (CASTRO, 2005).

Academicamente, havia críticas sobre as pesquisas feitas, quase exclusi-


vamente em gabinetes, embora Morgan fizesse viagens etnográficas. A an-
tropologia evolucionista acabou estigmatizada como armchair anthropology.
Sem o mesmo prestígio que alcançou na segunda metade do século XVII, a
antropologia evolucionista, nas letras de Morgan, ainda aparece, embora
reformulada e adotando interpretações multilineares, com base das ideias
de Marx, Engels, Leslie White, Julian Steward e do brasileiro Darcy Ribeiro.
Embora reconhecendo sua importância para a compreensão da evolução
do pensamento, tratando-se de uma natureza psicológica (portanto, também
do imaginário), para Morgan, a religião traz dificuldades imensas. Para ele,
“[...] as religiões primitivas são grotescas e, numa certa medida, ininteligíveis”
(CASTRO, 2005, p. 24). Eliade fornece elementos esclarecedores sobre isso no
livro O sagrado e o profano: a essência das religiões.
6 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

Segundo Mircea Eliade, para o homem moderno, é difícil compreender o


pensamento do homo religiosus, por conta de sua limitada compreensão das
religiões exóticas, primitivas, mitológicas, antigas. A compreensão religiosa do
homem moderno se restringe ao cristianismo, às conhecidas religiões mun-
diais como hinduísmo, judaísmo, budismo e islamismo, em suas concepções
contemporâneas. Essa restrição o impede de compreender as recorrências
e sobrevivências do universo mental do homo religiosus.
Embora a percepção existencial do homo religiosus não se restrinja
aos livros sagrados, a pesquisa etnográfica permite conhecer o folclore de
comportamentos de situações variadas de regiões europeias diferentes,
recuperando a compreensão, ainda hoje, que denotaria “[...] um estado de
cultura mais arcaico do que aquele testemunhado pela mitologia da Grécia
clássica” (ELIADE, 1992, p. 79). É necessário compreender a situação existencial
do mundo primitivo “[...] dos caçadores totemistas, das populações ainda no
estágio da caça miúda e da colheita” (ELIADE, 1992, p. 80), ou seja, do homem
imerso na sociedade primitiva, que caracteriza o homo religiosus.
Vejamos, portanto, como Eliade percebe as sobrevivências e recorrências
entre o homem primitivo e o homem contemporâneo, a partir da evolução
do pensamento religioso ao pensamento científico. Eliade (1992) demonstra
que essas duas cosmovisões estão presentes no homem contemporâneo,
em que sagrado e profano se articulam como elemento psíquico que traz
lembranças transcendentais, mesmo na modernidade da sociedade laica e
do pensamento dessacralizado.

As recorrências e sobrevivências entre o ser humano primitivo (reli-


gioso) e o ser humano moderno (a-religioso) se entrecruzam, tendo o
pensamento religioso como característica marcante das sociedades primitivas
e como o pensamento inicial, que evolui para o pensamento científico. Essa
evolução não substitui o pensamento religioso, mas o adapta conforme avança
o processo de dessacralização na história. Assim, o caráter do pensamento
científico está repleto de sugestões que revelam princípios, pistas, éticas e
lógicas religiosas, em uma combinação não excludente, mas complementar,
adaptativa. Embora se entenda que, no homem contemporâneo, haja choque
entre as duas formas de pensar, há mais aproximações do que distanciamentos.

Na próxima seção, veremos como a experiência religiosa demarcou o


pensamento e o comportamento dos primitivos, imersos na cosmovisão
do sagrado, isto é, na sacralização, a fim de entender sua evolução e sua
adequação ao homem contemporâneo, dessacralizado. Nosso fio condutor
serão os conceitos de recorrências e sobrevivências.
A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 7

Transcendência: entre o religioso


e o científico
A experiência religiosa, tema tratado por Rudolf Otto na obra Das Heilige
(1917), é o escopo da análise de Mircea Eliade, da qual emprestamos o debate
sobre a presença e a ausência da noção de transcendência no pensamento
religioso e no pensamento científico.
Eliade esclarece que o sagrado “[...] não era o Deus dos filósofos, o Deus
de Erasmo, por exemplo; não era uma ideia, uma noção abstrata, uma simples
alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestado na ‘cólera’
divina” (ELIADE, 1992, p. 12). O mysterium tremendum gera um sentimento
de pavor e de temor diante do mysterium fascinans. Essas experiências são
consideradas numinosas, porque são provocadas pela revelação de um as-
pecto do poder divino. Diante do “totalmente outro”, o ser humano vê sua
limitação, ao ponto da nulidade, em razão da grandiosidade da experiência
da relação com o sagrado. Eliade identifica que a “[...] primeira definição que
se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano” (ELIADE, 1992, p. 13).
Dessa forma, a ideia de sagrado será sempre apresentada, como fez Eliade,
em dualidade oposta com o profano.
Para ilustrar a ideia de como o sagrado se mostra e manifesta, Eliade (1992)
propõe o termo hierofania, que exprime que algo de sagrado se revela. Os
múltiplos fenômenos religiosos, portanto, revelam as múltiplas hierofanias que
ocorreram, e ocorrem, na história humana. Essas hierofanias, segundo Eliade
(1992), podem ser interpretadas, pelos seres humanos primitivos, diferente-
mente de como o ser humano moderno as interpreta, e de modo distinto, ainda,
entre os primitivos e modernos de regiões diferentes de uma mesma época.
Dessa forma, “[...] a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma
pedra ou uma árvore — e até a hierofania suprema, que é, para um cristão,
a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade”
(ELIADE, 1992, p. 13). Quando os primitivos percebiam a manifestação do
sagrado em pedras, por exemplo, não significava uma adoração/veneração
à pedra: “[...] são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra,
nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere” (ELIADE, 1992, p. 13).

Eliade (1992) esclarece que a manifestação do sagrado em objetos


os sacraliza, de forma que se tornam um meio de contato com o
sagrado, não o próprio, sem, contudo, mudar sua substância. Assim, para quem
tem uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como
sacralidade cósmica.
8 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

Nesse sentido, diante do desejo de estar no cosmos em oposição ao


caos, os primitivos buscavam viver o mais próximo possível do sagrado e
dos objetos sagrados. Assim, sagrado e profano podem ser identificados
como real e irreal para o primitivo, respectivamente. A busca, portanto, do
primitivo está em “[...] participar da realidade, saturar-se de poder” (ELIADE,
1992, p. 14). Para ele, a realidade é transcendental.
Analisar o pensamento do homem primitivo (homo religiosus) é compre-
ender como ele se esforça para se manter o máximo de tempo possível em
um universo sagrado. Mas não só. A comparação com seu contrário, o homem
dessacralizado, permite identificar “[...] como se apresenta sua experiência
total da vida em relação à experiência do homem privado de sentimento
religioso, do homem que vive, ou deseja viver, num mundo dessacralizado”
(ELIADE, 1992, p. 14). Dessa forma, é possível reconhecer a presença e a ausên-
cia da noção da transcendência no pensamento religioso e no pensamento
científico.
Mircea Eliade (1992) apresenta dois mundos de pensamentos distintos:

1. o pensamento religioso, que se pauta naquele mundo cujo princípio


se circunscreve na completude, na perfeição, conduzindo o homo
religiosus a comportamentos que suprem a necessidade de voltar
àquele tempo mítico;
2. o pensamento científico, que considera que a perfeição não está nos
mitos, nas arquês, mas no futuro, e que a evolução se encontra nessa
direção específica.

A relação do ser humano com o cosmo, em sua totalidade, sempre foi o


espaço privilegiado do sagrado, na maior parte da história humana, enquanto
“[...] o mundo profano na sua totalidade, o cosmos totalmente dessacralizado,
é uma descoberta recente na história do espírito humano” (ELIADE, 1992,
p. 14, grifo nosso). Assim, no contraste, percebemos como o pensamento
religioso evolui para o pensamento científico: a partir da dessacralização, ou
afastamento do sagrado do cotidiano e do pensamento humano.
Eliade (1992) caracteriza que o “fosso” oposto entre as dimensões do
sagrado e do profano é enorme. Isso é perceptível em várias dimensões: no
espaço sagrado, na construção ritual das casas, nas experiências no templo,
nas relações do homem primitivo com a natureza, no universo dos utensílios,
na consagração da vida e na própria sacralidade, que se desdobra em atribui-
ções da própria vida como o trabalho, a alimentação e a sexualidade. Tudo
isso, para o homem religioso, reveste-se de sacralidade, um sacramento, uma
A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 9

forma de comunhão com o sagrado. Para o homem contemporâneo, trata-se


de “um ato fisiológico — a alimentação, a sexualidade etc. — não é, em suma,
mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus
que ainda o envolva” (ELIADE, 1992, p. 14).

Percebe-se, sensivelmente, que há dois “centros” que denunciam


formas diferentes de se relacionar com a realidade. O conhecimento
de cada um deles capacita o ser humano, conectado nessa trama, a lidar com a
realidade, de modo que gravitam, em torno desses centros, modos específicos
de pensar, agir, falar, etc., com todos os aspectos da vida que interagem com
o ambiente envolvente. Nas palavras de Eliade (1992, p. 15), “[...] o sagrado e
o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações
existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história”. Dessa forma,
as dimensões existenciais do ser humano, isto é, o modo de pensar, o modo
de ser — seja sagrado ou profano — dependem das diferentes posições que o
homem conquistou no cosmos.

Embora o homo religiosus tenha, como centro, o sagrado, seus compor-


tamentos estão na mesma base do homem contemporâneo dessacralizado
— ou seja, há um padrão de comportamento do ser humano que se aproxima,
independentemente do tempo e do espaço em que vivem/viveram. Mesmo
diante de suas condicionantes culturais, de obstáculos e de tabus, criam-se
os pensamentos que lhe são verdadeiros: sagrado ou profano (ELIADE, 1992).
Objetivando diferenciar a dimensão religiosa da profana, Eliade (1992) pro-
põe renunciar, momentaneamente, às condicionantes culturais, econômicas
e de organização social, para focar em uma dimensão de aproximações entre
essas duas cosmovisões. “[E]ntre os caçadores nômades e os agricultores
sedentários, há uma similitude de comportamento que nos parece infinita-
mente mais importante do que suas diferenças” (ELIADE, 1992, p. 16), uma vez
que vivem em uma mesma dimensão: o mundo sacralizado. Assim, segundo
Eliade (1992, p. 16), “[...] do mesmo modo, damo-nos conta da validade das
comparações entre fatos religiosos pertencentes a diferentes culturas: todos
esses fatos partem de um mesmo comportamento, que é o do homo religiosus”.
O entendimento dos primitivos era de que o mundo fora criado pelos
deuses e de que “[...] a própria vida do cosmos é uma prova de sua santidade,
pois ele foi criado pelos deuses e os deuses mostram-se aos homens por
meio da vida cósmica” (ELIADE, 1992, p. 80). O homem, ao se ver como micro-
cosmos, reencontra, em si, a santidade que reconhece no cosmos, e sua vida
se pauta por essa realidade cósmica. Eliade (1992) denota essa experiência
como transumana, portanto, cósmica, ou, ainda, “existência aberta”. O homo
10 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

religiosus, então, tem sua existência “aberta” ao mundo, que percebe parte
do cosmo vivendo nele, em seu interior. Essa vida aberta não se dá de forma
inconsciente, mas “[...] permite ao homem religioso conhecer-se, conhecendo o
mundo — e esse conhecimento é precioso para ele porque é um conhecimento
religioso, refere se ao ser” (ELIADE, 1992, p. 81).
Uma vez que a vida, para o primitivo, é uma vida santificada, ela se des-
dobra de forma dupla: “[...] como existência humana e, ao mesmo tempo,
participa de uma vida transumana, a do cosmos ou dos deuses” (ELIADE,
1992, p. 81). Dessa forma, tudo que o homem faz tem conotação religiosa,
inclusive as principais funções fisiológicas. Ao homem dessacralizado, por
sua vez, “[...] todas as experiências vitais — tanto a sexualidade como a ali-
mentação, o trabalho como o jogo — foram [...] desprovidas de significado
espiritual” (ELIADE, 1992, p. 81). Para o homo religiosus, porém, não só aos atos
fisiológicos, mas também a regiões e a fenômenos cósmicos são atribuídos
significados religiosos. O ato de comer se torna um sacramento e a prática
sexual é ritualizada, assimilada aos fenômenos cósmicos (chuvas, semeadura)
e aos atos divinos (hierogamia, Céu, Terra).
Essas correspondências antropocósmicas são encontradas, também,
nas religiões mais evoluídas, demonstrando a sacramentalização da vida
fisiológica. Viver em dois planos, para o homo religiosus, significa transpor
a vida da experiência humana para o transcendente, cósmico, transumano.
Igualmente, a habitação, para o homo religiosus, é um microcosmos, mas não
só: seu corpo é um microcosmos.
Essas ideias são reinterpretadas pelas religiões e pelas filosofias evoluídas
no decorrer da história, chegando à modernidade, a exemplo do pensamento
religioso indiano, cujo religioso “cosmiza” o universo, bem como sua casa,
que são tratados como corpo humano. Nessa compreensão, há um canal
de trânsito para o outro mundo, o dos deuses, na parte superior, onde, por
ocasião da morte, há correspondências de que a “[...] a alma do morto sai pela
chaminé” (ELIADE, 1992, p. 84). Essas ideias religiosas são inconcebíveis ao
homem dessacralizado por dois motivos: não vive em um mundo sacralizado,
e, portanto, a morte foi dessacralizada. Ele já não se dá conta de que ter um
corpo e instalar-se em uma casa equivale a assumir uma situação existencial.
Para o homem a-religioso, nada disso tem significado. Seus valores não
correspondem àqueles da cultura primitiva no que concerne “[...] a seu corpo, sua
casa e seu universo” (ELIADE, 1992, p. 86). A casa e o corpo do homem moderno
perderam os valores religiosos, cosmológicos. Eliade (1992, p. 86) é taxativo:
“[...] para os modernos desprovidos de religiosidade, o cosmos se tornou opaco,
inerte, mudo: não transmite nenhuma mensagem, não carrega nenhuma ‘cifra’”.
A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 11

Na Contemporaneidade, há, entretanto, sentimentos religiosos, no ho-


mem a-religioso, que ainda persistem, exclusivamente na zona rural. Ali,
as populações ainda “respiram” uma religiosidade pautada no sentimento
de santidade. Na sociedade urbana, industrializada, o cristianismo perdeu
seus valores cósmicos. Sua experiência religiosa agora aflora no âmbito es-
tritamente privado, não mais acessível ao cosmos. O mundo já não é sentido
como obra de Deus. Ao contrário, ele é o caos, não deve ser habitado por não
ser mais cosmizado.
A relação corpo-casa, vista como imago mundi, tem papel importante nas
mitologias e nos ritos arcaicos. Os formatos das urnas funerárias de cultu-
ras arcaicas se assemelham a casas e possuem uma abertura superior que
permite, à alma, entrar e sair. Esse pensamento encontra correspondência
na estrutura cósmica, na ideia de passagem: das trevas para a luz, da vida
para a morte. Assim, torna-se, por correspondência, a passagem para outro
mundo, do devir, da renovação, e repetição da cosmogonia.
Essa ideia de passagem se antropocosmiza fisiologicamente na exis-
tência humana. Exprime que, uma vez nascido, deve renascer, dessa vez
espiritualmente. Nesse processo, chega à plenitude, pelos ritos de passagem,
ou iniciações consecutivas. O simbolismo de passagem também é visto na
configuração dos caminhos das casas e dos locais de trabalho, nos caminhos,
nas pontes, nas ruas estreitas, na passagem perigosa e de difícil travessia. A
dificuldade dessas passagens assume, na mitologia e nos rituais, a ideia de
dificuldade de transição e, portanto, o rito de passagem se reveste de uma
importância religiosa de grande significância para o homo religiosus. Seja a
“porta estreita” de acesso ao Pai, no cristianismo, seja nas lendas medievais
ou, ainda, nos escritos místicos árabes, a dificuldade de transição se acentua.
Nessa mesma lógica, elementos, que, no mundo dessacralizados, revestem-se
de pouca significância, para o homo religiosus, têm caráter cósmico, religioso.
Sendo uma representação antropocósmica, os ritos de passagem possibi-
litam a integração do recém-nascido à comunidade e ajudam o jovem, quando
da puberdade, a superar a fase infantil e o solteiro (celibatário) a passar para
o grupo dos casados (chefes de famílias). Essas passagens são difíceis, geram
crise e, portanto, exigem ritos. Na morte, os ritos são ainda mais complexos,
pois sua passagem exige abandono do corpo e aceitação de sua alma no
mundo dos mortos. Por sua vez, no mundo profano, há uma dessacralização
completa, tanto da morte quanto do nascimento e do casamento. Mas, em
tudo isso, o homo religiosus identifica sua incompletude, sendo necessário
morrer e renascer em outro nível, religioso e cultural (ELIADE, 1992).
12 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

Nesse sentido, os conceitos de completude e de ritos estabelecem o ideal


de humanidade em seu nível mais elevado, cósmico, religioso: “O homem
primitivo esforça-se por atingir um ideal religioso de humanidade, e nesse
esforço encontram-se já os germes de todas as éticas elaboradas mais tarde
nas sociedades evoluídas” (ELIADE, 1992, p. 90).

Eliade (1992) observa que, dessacralizados, os padrões de iniciação e de


passagem permanecem sendo a raiz da ideia oriunda da cosmovisão do
homo religiosus, que se reproduz, de forma dessacralizada, pelo homem a-religioso,
no mundo contemporâneo. A vida existencial dos primitivos, envelhecidos pela
história, com sua correspondente dessacralização, não desaparece por completo,
sem deixar rastros. Ao contrário, está presente, em formatos e interpretações
diferenciadas, e foi aperfeiçoada ao padrão do mundo a-religioso. Somos seres
humanos religiosos cuja dessacralização foi incompleta, por isso há vestígios do
pensamento religioso no pensamento científico. Do transcendente no imanente.

O homem a-religioso nega a transcendência, aceita a relatividade da “re-


alidade” e chega, até, a duvidar do sentido da existência. O dessacralizado se
torna autossuficiente, reconhece-se como único sujeito e agente da história
e rejeita todo apelo à transcendência, toda forma de vida fora da existência
histórica. Ao contrário do homo religiosus, “[...] o homem faz-se a si próprio,
e só consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza e
dessacraliza o mundo” (ELIADE, 1992, p. 98). Ao se desmitificar, ele se torna
ele próprio, liberto dos deuses, em última instância quando matar Deus, que
é visto como obstáculo por excelência à sua liberdade.
O homem profano, segundo Eliade (1992), conserva os vestígios do com-
portamento do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos.
Sendo produto do passado, não o pode abolir, pois é herdeiro do homo
religiosus primitivo, tem natureza religiosa, mesmo esvaziado de sentido
cósmico. No esforço de dessacralizar, os impulsos religiosos permanecem
e buscam reatualizar ao estado religioso: “[...] a maioria dos ‘semrreligião’
ainda se comporta religiosamente” (ELIADE, 1992, p. 98). Comemorações re-
ligiosas, como a passagem de ano novo, mesmo dessacralizada, são um
ritual de iniciação; os casamentos continuam. Nos espetáculos, nos livros,
nos cinemas, há a reprodução dos mitos, das mitologias e das religiosidades,
que promovem êxtase.
É certo que os “semrreligião” ainda reproduzem comportamentos religio-
sos, tanto dos mitos quanto das teologias, e “[...] estão às vezes entulhados
por todo um amontoado mágico religioso, mas degradado até a caricatura e,
A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 13

por esta razão, dificilmente reconhecível” (ELIADE, 1992, p. 99). Exemplos são
abundantes. A estrutura da constituição da concepção do comunismo cientí-
fico tem-na em uma base mitológica e escatológica. O homem a-religioso, de
acordo com Marx, faz valer “[...] um dos grandes mitos escatológicos do mundo
asiático mediterrânico, a saber, o papel redentor do justo [...] cujos sofrimentos
são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo” (ELIADE, 1992, p. 99).
Marx, ao resgatar a esperança escatológica, a vincula ao proletariado, que
é chamado para sua própria salvação, mudando as estruturas do mundo, e
esse político-econômico vê-se, no desejo, de volta ao estado puro do paraíso
edênico, manifestado nos movimentos de nudismo e de liberdade sexual.
A própria ciência da antropologia da religião, por sua base científica,
é dessacralizada. Mesmo objetivando conhecer o fenômeno religioso, usa
termos e utiliza teorias científicas para explicar o cosmos sacralizado. Será
que dá conta?
Comportamentos religiosos são verificados nas ações e nos gestos do
homem dessacralizado, como na iniciação do soldado com “provas” para o
combate. No trato do paciente, pela psicologia, quando da reflexão sobre si
na volta às origens, temos reflexos às descidas iniciáticas aos locais habitados
por seres espirituais. Termos como “luta pela vida”, “sofrimentos” e “torturas
morais” são associados aos ritos de passagem para a vida adulta.
“É por isso que, num horizonte religioso, a existência é fundada pela
iniciação; quase se poderia dizer que, na medida em que se realiza, a pró-
pria existência humana é uma iniciação” (ELIADE, 1992, p. 100). Dessa forma,
entende-se que o homem profano, sendo descendente do homo religiosus,
traz, em seu bojo, elementos comportamentais de seus antepassados reli-
giosos, que o constituíram como ele é hoje. As crises existenciais acionam a
aura religiosa do inconsciente, indagam sobre o sentido da vida, do passado,
do futuro e da existência, pois esta, vazia de sacralidade, da percepção do
cosmos e de si, cria um vácuo existencial, que, ao final, é uma crise religiosa.
Nas palavras de Eliade (1992, p. 101):

[...] na medida em que o inconsciente é o resultado de inúmeras experiências


existenciais, não pode deixar de assemelhar-se aos diversos universos religiosos.
Pois a religião é a solução exemplar de toda crise existencial, não apenas porque
é indefinidamente repetível, mas também porque é considerada de origem trans-
cendental e, portanto, valorizada como revelação recebida de um outro mundo,
trans humano. A solução religiosa não somente resolve a crise, mas, ao mesmo
tempo, torna a existência “aberta” a valores que já não são contingentes nem
particulares, permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e,
no fim das contas, alcançar o mundo do espírito.
14 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

A tentativa de demonstrar como o homem dessacralizado ainda possui


comportamento religioso, porém, está na psiquê mais profunda, que se
perde na miscelânea própria do cosmos dessacralizado e industrial, pois o
homem contemporâneo dissocia essa pulsão do comportamento sacralizado,
visto que não vive mais no mundo pautado pela sacralidade, como o faziam
os primitivos. Porém, está latente, pulsante, como que aguardando para se
manifestar. Percebe-se isso quando a “[...] atividade inconsciente do homem
moderno não cessa de lhe apresentar inúmeros símbolos, e cada um tem uma
certa mensagem a transmitir, uma certa missão a desempenhar, tendo em
vista assegurar o equilíbrio da psique ou restabelecê-lo” (ELIADE, 1992, p. 102).

Por meio dos símbolos, o ser humano a-religioso se conecta ao uni-


versal, tornando-se acessível, aberto, de forma que uma experiência
pessoal, a despeito da dessacralização do cosmo de sua época vivida, transmuda-
-se em ato espiritual, em compreensão metafísica do mundo. É na compreensão
dos símbolos mitológicos que o homem primitivo consegue viver o universal,
seja esse símbolo uma pedra ou uma árvore. O homem a-religioso moderno, da
mesma forma, guarda arquivos do passado em sua mente, de forma que, diante
das crises, recorre a esses arquivos de memória, inconscientes, mas que povoam
o imaginário, que lhe despertam para a conexão com o universal. Porém, quando,
diante da simbologia, essa não lhe desperta os arquivos de conexão ao sagrado, o
símbolo não faz efervescer à elevação a espiritualidade; “[...] ou seja, não conseguiu
revelar-lhe uma das estruturas do real” (ELIADE, 1992, p. 102).

Em suma, mesmo sem auxílio do cosmo, sacralizado, que inexiste nas


sociedades modernas laicizadas, o homem a-religioso é auxiliado por seus
arquivos inconscientes, e por isso tem possibilidade de abrir-se ao cosmos,
mesmo que parcialmente. Assim, “[...] o inconsciente oferece-lhe soluções
para as dificuldades de sua própria existência e, neste sentido, desempenha
o papel da religião, pois, antes de tornar uma existência criadora de valores,
a religião assegura-lhe a integridade” (ELIADE, 1992, p. 102). Desse modo, a
latência da religião encontra-se em seu inconsciente, pronta a despertar diante
das crises que lhe afligirem, o “[...] que significa também que as possibilidades
de reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem, nesses seres, muito
profundamente neles próprios” (ELIADE, 1992, p. 102).
Partindo do pressuposto de que, no século XXI, o mundo se encontra, há
tempos, em constante crise, a busca pelo sagrado, mesmo que parcial, é de
cunho particularista, manifestada em conceito de espiritualidade, e promove,
no mundo dessacralizado, a busca pelo sagrado em vários nuances e formas,
mundo afora. O crescimento das inúmeras religiões mundiais demonstra essa
A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 15

forma rascunhada de tentativas de voltar às origens, à criação, ao tempo


sagrado. É o homo religiosus que pulsa no interior do homem a-religioso.
Essas são as aproximações propostas aqui: do primitivo ao primitivo reinter-
pretado, ou seja, a-religioso, mas nunca em um estado puro, mas sincretizado
na relação religião-ciência.

Fases do desenvolvimento do pensamento


científico
Uma vez demonstradas as ausências e as permanências da transcendência
no pensamento religioso e no pensamento a-religioso, avancemos para as
fases que permitiram o desenvolvimento do pensamento científico.
Para Morgan (CASTRO, 2005), a humanidade existe desde épocas imemo-
riais, às quais o homem contemporâneo não tem acesso; estende-se pelo
passado imensurável e se perde em uma vasta e profunda antiguidade. Assim,
segundo Morgan, na compreensão da evolução da humanidade, pode-se
afirmar que “[...] a selvageria precedeu a barbárie em todas as tribos da huma-
nidade, assim como se sabe que a barbárie precedeu a civilização” (CASTRO,
2005, p. 21). Esse processo se deu de forma lenta, progressiva e evolutiva,
em estágios sucessivos, e permitiu acumular conhecimento experimental
(ainda que algumas tribos e nações, por conta das limitações geográficas,
não tenham se desenvolvido como as demais).
Mesmo que as invenções e as descobertas evoluam progressivamente,
para Castro (2005, p. 21), “[...] as instituições sociais e civis, em virtude de
sua conexão com perpétuos desejos humanos, desenvolvem-se a partir de
uns poucos germes primários de pensamento”, o que demonstra, segundo
Morgan, uma origem única para o ser humano. Considera-se que, “[...] ao longo
da última parte do período de selvageria e por todo o período de barbárie, a
humanidade estava organizada, em geral, em gens, fratrias e tribos” (CASTRO,
2005, p. 21). Essa organização social era encontrada na Antiguidade, em todos os
continentes. Para Castro, “[...] sua estrutura e suas relações como membros de
uma série orgânica bem como os direitos, privilégios e obrigações [...] ilustram
o crescimento da ideia de governo na mente humana” (CASTRO, 2005, p. 21).
A família também passou pelo processo evolutivo na mesma lógica pro-
gressiva e evolutiva selvageria-barbárie-civilização. Segundo Morgan (CASTRO,
2005, p. 21), “[...] a família passou por formas sucessivas, e criou grandes
sistemas de consanguinidade e afinidade que duram até os dias de hoje”.
Acompanhando Morgan, encontra-se essa mesma lógica evolucionista no que
16 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

diz respeito à propriedade: “[...] começando do zero, na selvageria, a paixão


pela propriedade, como representando a subsistência acumulada, tornou-se
agora dominante na mente humana nas raças civilizadas” (CASTRO, 2005, p. 22).
Assim, a organização social e a ideia de governo de família e de propriedade
atravessaram eras e demarcam, de maneira peremptória, certa regularidade
desde os tempos imemoriais de selvageria até a civilização. Portanto, a ex-
periência e a luta contra obstáculos emergem como fatores determinantes
no processo evolutivo, que denuncia as razões pelas quais uma sociedade
evoluiu ininterruptamente e outras sofreram interrupções no processo. Para
Morgan, diferentemente das invenções e das descobertas, “[...] as instituições
se desenvolveram a partir de uns poucos germes primários de pensamento
[...] Os fatos indicam a formação gradual e o desenvolvimento subsequente
de certas ideias, paixões e aspirações” (CASTRO, 2005, p. 23, grifo nosso). As
ideias são:

„„ subsistência;
„„ governo;
„„ linguagem;
„„ família;
„„ religião;
„„ vida doméstica e arquitetura;
„„ propriedade.

Especificando, Morgan detalha que a subsistência “[...] foi aumentada e


aperfeiçoada por uma série de artes sucessivas, introduzidas no decorrer de
longos intervalos de tempo e conectadas mais ou menos diretamente com
invenções e descobertas” (CASTRO, 2005, p. 24). Sobre governo, Morgan afirma
que o germe dessa ideia “[...] deve ser buscado na organização por gentes no
status de selvageria, e seguido, através de formas cada vez mais avançadas,
até o estabelecimento da sociedade política” (CASTRO, 2005, p. 24).
No que diz respeito à linguagem, Morgan informa que ela foi desenvolvida
“[...] a partir das formas mais rudes e simples de expressão” (CASTRO, 2005, p.
24), e concorda com Lucrécio em relação ao fato de a comunicação ter se dado,
primeiramente, pelos gestos, depois pela fala articulada. Segundo ele, “[...]
a inteligência humana, inconsciente de propósito, desenvolveu a linguagem
articulada utilizando os sons vocais” (CASTRO, 2005, p. 24).
Consanguinidade, costumes comuns e casamento foram os aspectos que,
segundo Morgan, predominaram na evolução das famílias, e por meio dos
A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico 17

quais a história da família pode ser, seguramente, traçada pelas diversas


formas sucessivamente assumidas (CASTRO, 2005).
Da cabana à casa da família contemporânea, o tema sobre arquiteturas
das habitações humanas “[...] está ligado à forma da família e ao plano de vida
doméstica, [e] permite uma ilustração razoavelmente completa do progresso
desde a selvageria até a civilização” (CASTRO, 2005, p. 24, grifo nosso).
Sobre a ideia de propriedade, Morgan afirma que, de forma lenta, ela
foi sendo construída na mentalidade humana da selvageria, passando por
adaptações até sua dominância: “[...] como uma paixão acima de todas as
outras, marca o começo da civilização” (CASTRO, 2005, p. 24).
As ideias de governo, família e propriedade foram elementos pelos quais
Morgan apresentou as evidências do progresso humano em sucessivos perí-
odos étnicos. Sobre o governo, ele detalha os dois seguintes planos.

1. Societas (sociedade), que passou de gens para fratria, depois, de forma


crescente e abrangente, para tribo, confederação de tribos, povo e
nação. Essa forma de organização antiga “[...] perdurou entre os gregos
e romanos após o surgimento da civilização” (CASTRO, 2005, p. 25).
2. Civitas (estado), baseado no território e na propriedade, com estágios
de integração entre as propriedades em vilas e em condados cujo povo
está organizado em um corpo político (CASTRO, 2005).

Há preservação dos progressos humanos nas famílias, em que sexo,


parentesco e território formam a base de sua organização. Assim,
casamento, consanguinidade, cotidiano, arquitetura e herança promoveram a
evolução e permanências nas sociedades contemporâneas.

As próprias demandas da vida humana também demonstram evidências


de progresso evolutivo. Segundo Morgan (CASTRO, 2005, p. 26), “[...] pode
ser observado, finalmente, que a experiência da humanidade tem seguido
por canais quase uniformes; que as necessidades humanas, em condições
similares, têm sido substancialmente as mesmas”.
Morgan, apresenta, ainda, outra divisão dos períodos para facilitar a
compreensão evolutiva do progresso do conhecimento, que denomina pe-
ríodos étnicos (CASTRO, 2005), superando a demarcação proposta pelos
arqueólogos dinamarqueses, que instituíram os conhecidos períodos como
Períodos da Pedra, do Bronze e do Ouro. Os períodos étnicos propostos são
18 A evolução do ser humano: do pensamento religioso ao pensamento científico

da selvageria e da barbárie, ambos subdivididos em subperíodos inicial,


intermediário e final, e cada um desses períodos pode ser considerado com
status inferior, intermediário e superior da evolução humana. Assim, temos,
progressivamente:

1. da fase da infância da humanidade até a fase da dieta de subsistência


(selvageria inferior);
2. da dieta de subsistência até a invenção de arco e flecha (selvageria
intermediária);
3. da invenção de arco e flecha até a invenção das artes cerâmicas (sel-
vageria superior).

A invenção das artes cerâmicas demarca a divisão entre selvagens e


bárbaros:

1. até a domesticação de animais no hemisfério oriental e, no ocidental,


com a agricultura de irrigação (barbárie inferior);
2. da domesticação de animais, no hemisfério oriental, e, no ocidental,
com a agricultura de irrigação, até a invenção do processo de forjar o
minério de ferro (barbárie intermediária);
3. da invenção do processo de forjar o minério de ferro até a invenção
do alfabeto (barbárie superior).

A partir daqui, inicia-se a civilização.


Cada um desses períodos tem características peculiares, e os períodos
étnicos permitem identificar tribos isoladas, que mantiveram sua forma de
vida e não sofreram influências externas. Esses períodos ajudam a compre-
ender que a evolução do conhecimento se deu “[...] a partir de uns poucos
germes primários de pensamento” (CASTRO, 2005, p. 30).

Referências
CASTRO, C. Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
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Leituras recomendadas
CASTRO, C. Textos básicos de antropologia: cem anos de tradição. Editora Zahar, 2016.
FRAZER, J. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982.
MARCONI, M. A; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 8. ed. São Paulo:
Atlas, 2019.

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