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Por Da Redação
Alessandro Greco
Gordinho, atarracado, com bigode e olhar sagaz, o americano Stephen Jay Gould
lembrava o personagem Hercule Poirot, o detetive belga criado por Agatha Christie, capaz
de solucionar os mistérios mais intrincados usando como única arma sua poderosa massa
cinzenta. Com espírito de Sherlock Holmes, apego apaixonado pela razão e raciocínio
elegantemente lógico, Gould desvendou enigmas que atormentavam seus colegas desde
que Charles Darwin criou a teoria da evolução das espécies, em 1859. Sua formação era de
paleontólogo, e ele se especializou como “biólogo evolucionista”. Mas o jeito mais
adequado de chamá-lo talvez fosse “naturalista”: um generalista, dedicado a entender
todos os aspectos da natureza. Isso ele tinha em comum com Darwin, afinal o inglês viveu
numa época anterior às especializações da ciência que existem hoje. Morto em maio de
2002, Gould era amado por milhares de leitores, que o conheciam por seus livros sobre
evolução para o público em geral. Mas despertava sentimentos contraditórios entre os
cientistas. Uns o respeitavam por suas idéias, outros o criticavam pela forma arrogante de
colocá-las. Gould, o mais conhecido pesquisador da evolução das espécies desde Darwin,
iniciou três debates científicos que levaram seus colegas a repensar as idéias do mestre
inglês.
O primeiro desses debates foi também o mais duro. Na década de 70, quando fazia
doutorado na Universidade de Colúmbia, Gould, juntamente com seu colega Niles
Eldredge, estudava fósseis para tentar entender como a evolução operou no passado. No
meio do estudo, os dois depararam com um problema aparentemente insolúvel. Não
conseguiam achar mudanças graduais nas espécies, como previa a teoria de Darwin.
Segundo ela, os organismos de uma mesma espécie competem entre si e o mais bem
adaptado ao ambiente sobrevive e passa para seus descendentes suas características. Tudo
isso ocorreria de forma lenta e gradual, sem sobressaltos, causando mudanças
imperceptíveis que só se tornam relevantes depois de muito tempo, à medida que as
gerações se acumulam. Mas, em vez disso, Gould e Eldredge encontraram longos períodos
de quase total estabilidade, sem mudança nenhuma, eventualmente interrompidos por
surtos de novas espécies aparecendo de uma hora para a outra.
Darwin, mais de um século antes, até já havia topado com o mesmo problema, mas
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convenceu a si mesmo e ao mundo que a falta de fósseis era devida à nossa dificuldade em
achá-los. Gould, numa demonstração do seu espírito detetivesco, usou as velhas evidências
para chegar a uma conclusão totalmente nova. Em 1972, ele e Eldredge criaram a
polêmica teoria do equilíbrio pontuado, segundo a qual as espécies realmente dão saltos
evolutivos, mudando profundamente de um momento para outro, após ficarem por muito
tempo estáveis (é claro que para nós, humanos, que vivemos tão pouco, mesmo esses
saltos se dão numa escala de tempo impossível de perceber). A idéia soou como sacrilégio
aos ouvidos dos mais fiéis seguidores do darwinismo, gente que não ousa colocar em
dúvida a tese da evolução lenta e gradual.
Efeito colateral
Detalhe ou não, as idéias ousadas – tanto quanto o jeito charmoso e agressivo de expô-las
– tornaram Gould uma estrela. E nenhum lugar é tão adequado para estrelas da ciência
quanto a Universidade Harvard, um dos maiores índices de Nobel por metro quadrado do
mundo. Gould foi trabalhar lá. Em 1978, seis anos após a idéia do equilíbrio pontuado, o
agora professor de Harvard abalou novamente os alicerces da evolução. Em conjunto com
um colega da universidade, o biólogo evolucionista Richard Lewontin, ele afirmou que as
características de alguns organismos são simplesmente conseqüência da forma como eles
evoluíram, e não necessariamente fruto da seleção natural, como querem os darwinistas
ortodoxos. Ou seja: nem tudo nos seres vivos existe porque traz alguma vantagem
evolutiva – algumas coisas são simplesmente efeitos colaterais da evolução.
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Para Gould, a evolução é muito similar à história. Não é possível prever como ela irá se
desenrolar – e merecimento conta muito pouco no resultado final. O futuro da evolução é
também fruto do seu passado, e não um caminho determinístico na direção da
sobrevivência das espécies mais bem adaptadas.
Filho rebelde
Por ter sido um autor prolífico e talentoso – e que portanto sempre fez muito sucesso –, as
pessoas geralmente assumem que a visão de Gould é a mais aceita entre os cientistas. Não
é. Pelo contrário, aliás: ele é a voz de uma minoria incômoda, crítico feroz da visão
predominante defendida por Dawkins e Maynard Smith. O único ponto em que os três
concordam é que Deus não criou o homem e as outras espécies. Falta saber se Gould será
lembrado por seu talento literário ou por ter sido um discípulo brilhante de Darwin.
Mas uma coisa é inegável: a importância dele na formação de novos leitores com gosto
para a ciência. Por 26 anos, de 1974 a 2001, ele escreveu a coluna “This View of Life”
(“Esta Visão da Vida”) para a revista americana Natural History – o título foi emprestado
de uma frase do clássico supremo A Origem das Espécies, de Darwin. Nela, manteve acesa
a chama dos ensaios, uma forma de texto em extinção da qual foi um mestre, combinando
o encanto do texto subjetivo com o rigor da argumentação científica. Os ensaios eram
editados na forma de coletânea a cada dois anos, perfazendo dez livros. O último,
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publicado três meses antes de sua morte, tinha o tristemente premonitório título de I Have
Landed (“Eu pousei”).
Além das dezenas de coletâneas de ensaios, Gould também foi autor de livros como A
Falsa Medida do Homem, no qual discute a subjetividade por trás do conceito de
inteligência. O livro demoliu os testes de QI e mostrou como eles reforçam preconceitos –
os testes foram elaborados por homens brancos, nada mais natural que eles favoreçam
homens brancos. Seus textos aliavam senso de humor – algo que não aparentava ao
conversar com jornalistas – e perspicácia. A um deles, sobre a evolução dos órgãos sexuais
humanos, deu o título “Clits and Tits” (“Clitóris e peitos”). Foi censurado pelo editor.
Gould nunca deixou de entregar sua coluna mensal para a Natural History, mesmo
quando, em 1982, ficou sabendo que tinha um câncer abdominal raro, um tumor
geralmente associado à exposição ao amianto. O prognóstico médico era pessimista: eles
lhe deram oito meses de vida, com base no fato de que essa era a média de sobrevivência
dos pacientes daquele tumor. O naturalista, que não era de se abater, resolveu atacar o
problema do jeito típico: com curiosidade de detetive. Internou-se na biblioteca da Escola
de Medicina de Harvard e descobriu que, embora o câncer fosse mesmo grave, havia um
grupo de pessoas que sobreviviam por anos a ele. E, pelo que descobriu nos livros, ele
tinha boas chances de pertencer a esse grupo. Escreveu um artigo hoje clássico sobre o
tema, “The Median Is not the Message” (“A Mediana não É a Mensagem”), ensinando a ler
números e mostrando como uma média estatística pode ser enganosa. No caso dele, foi
mesmo. Gould viveu mais 20 anos e só foi morrer em 2002, de um outro câncer, esse de
pulmão. Ou seja, ele estava certo.
Essa não foi a única vez em que acontecimentos dolorosos da vida pessoal do cientista
viraram temas para textos brilhantes. Um assunto de que ele tratava com freqüência, por
exemplo, era o fato de que algumas pessoas podiam ser geniais em alguns aspectos e
muito pouco capazes em outros – isso chega ao extremo em pessoas com autismo savant,
que podem ser gênios matemáticos ao mesmo tempo em que são incapazes de se
relacionar socialmente. Só nas últimas linhas do livro O Milênio em Questão o mundo
ficou sabendo da razão de tanto interesse por esse assunto. Lá, Gould conta que é fã de um
jovem autista savant, capaz de dizer de cabeça o dia da semana de qualquer data de
qualquer século em um piscar de olhos. “Seu nome é Jesse. Ele é meu filho mais velho e
tenho muito orgulho dele”, escreveu.
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Não há dúvidas de que ele cumpriu o compromisso, com prazer. Esse, aliás, foi o mote da
vida de Gould: fazer aquilo de que gostava. Adorava escrever, publicou dezenas de livros.
Adorava a polêmica, recebeu críticas ferozes e elogios derramados a seu trabalho, nunca o
silêncio da indiferença. Adorava dar aulas e até duas semanas antes de morrer era possível
vê-lo caminhando com dificuldade até a sala de aula em Harvard, parando a cada instante
para tomar fôlego. Adorava livros e morreu deitado em uma cama na biblioteca de sua
casa. Tinha 60 anos.
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Culpa do dinossauro
Stephen Jay Gould era um moleque de 5 anos quando foi visitar o Museu de História
Natural na sua cidade natal, Nova York. E lá se deu o encontro que o marcou para sempre.
Em pleno hall do museu, o garoto viu um tiranossauro rex. Era só a ossada do bicho,
claro. Mas a visão, de perto, dos ossos empoeirados de 70 milhões de anos, foi demais
para o garoto. A partir daquele dia, ele teria uma certeza na vida: seria um cientista. Sua
fé na ciência se manteve inabalada pela vida toda. Em 2001, numa entrevista concedida à
Super, ele disse que não existe pergunta complicada demais para a ciência. “Existem
algumas questões que poderiam ser respondidas, apenas não temos ainda a informação
para isso.”
Mas a ciência não era a única paixão do menino. Assim como seu pai e seu avô, Gould era
um fanático por beisebol. E ele carregaria essa paixão – assim como carregou o amor pela
ciência – pelo resto da vida. Prova disso são as inúmeras referências ao esporte
encontradas em seus livros. Num deles, Life’s Grandeur (“A Grandeza da Vida”, inédito
em português), ele usa o beisebol para tornar mais palpável a importância das estatísticas.
Em outro livro, Triumph and Tragedy in Mudville (“Triunfo e Tragédia em Mudville”,
também sem versão brasileira), publicado após sua morte, ele diz que o beisebol tem os
mesmos princípios de continuidade e mudança que a ciência, evoluindo conforme o tempo
passa, mas mantendo suas principais regras.
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