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Antropologia da Religião: introdução

e principais autores
A Antropologia da Religião, na sua fase iniciai, dedicou-se ao estudo da
mitologia dos “povos primitivos”. Este início se deu através do ponto de
vista do “homem civilizado”, que entendia a si mesmo como integrante de
uma cultura mais evoluída — estando os demais povos em estado de
infantilidade cultural e espiritual. 

A própria designação “primitivo” já indicava esta visão depreciativa.


Entretanto, com o passar do tempo, todos os povos e religiões passaram
a ser analisados e comparados pelos antropólogos.

A palavra “mito”, então, pelo menos para os antropólogos modernos,


perdeu o sentido de “crenças dos povos antigos” e assumiu a ideia de
que todas as religiões, em certa medida, possuem elementos
mitológicos.

Existe até uma anedota sobre mitologia quando comparada com a crença
pessoal: “mitologia é a religião dos outros”. Com o tempo, a Antropologia
da Religião passou a evitar esse tipo de interpretação, pois distorcia a
realidade dos povos estudados.

Apesar disso, o fenômeno religioso não deve ser entendido como algo
superficial ou mera superstição. Muito menos como crenças de um povo
menos desenvolvido, afinal, trata-se de um fenômeno universal que
acompanhou todos os povos e ajudou a organizar comunidades desde o
surgimento do homem no planeta.
A civilização, como a entendemos hoje, ainda é bastante recente se
compararmos com os povos ancestrais que sobreviveram por milhares de
anos com o apoio dos mitos e dos vários ritos de nascimento, colheitas,
iniciação, morte e muitos outros.

Devido a isso, o estudo das religiões atrai antropólogos, filósofos e


cientistas que buscam compreender o comportamento humano e as
sociedades como um todo. 

O surgimento espontâneo das religiões em absolutamente todos os


povos indica, para muitos desses pesquisadores, uma necessidade de
dar sentido ao mundo, à comunidade, à realidade aterradora e à própria
morte.

E mesmo hoje não existe nação que não tenha nas religiões (ou nos
mitos) um dos pilares culturais de sua formação. Então, de forma alguma
as religiões são um objeto de estudo superficial.
Sobre isso, a autora Maria Lúcia Aranha diz:

O mito é uma intuição compreensiva da realidade, uma forma espontânea de o homem


situar-se no mundo. As raízes do mito não se acham nas explicações racionais, mas na
realidade vivida, portanto, pré-reflexiva, das emoções e da afetividade. (…) A função do
mito não é, primordialmente, explicar a realidade, mas acomodar e tranquilizar o
homem num mundo assustador. (ARANHA & MARTINS, 2002)
Um dos mais conhecidos estudiosos dos mitos e das religiões, o filósofo
romeno Mircea Eliade, afirma que uma das principais funções dos mitos é
estabelecer modelos para as atividades mais importantes de qualquer
comunidade, como os nascimentos e casamentos, inclusive dando um
sentido existencial à morte. Vejamos o que diz Eliade sobre isso: 
A forma sobrenatural de descrever a realidade é coerente com a maneira mágica pela
qual o homem age sobre o mundo, como, por exemplo, com os inúmeros ritos de
passagem do nascimento, do casamento, da morte, da infância para a idade adulta. (…)
Quando acaba de nascer, a criança só dispõe de uma existência física; não é ainda
reconhecida pela família nem recebida pela comunidade. São os ritos que se efetuam
imediatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de ‘vivo’
propriamente dito; é somente graças a estes ritos que ele fica integrado na comunidade
dos vivos. (…) No que diz respeito à morte, os ritos são tanto mais complexos quanto se
trata não somente de um ‘fenómeno natural’ , mas também de uma mudança social: o
morto deve enfrentar certas provas post-mortem e ser reconhecido pela comunidade dos
mortos e aceite entre eles (ELIADE, 1999).

Origem da Antropologia da Religião

Os povos nativos da Austrália foram a principal fonte de pesquisa do


antropólogo francês Émile Durkheim, considerado o pioneiro da Antropologia
da Religião.

A Antropologia da Religião é um ramo da Antropologia, que é o estudo


que busca o conhecimento do ser humano na sua totalidade (do grego
anthropos=homem e logos=estudo). 

O que significa dizer que a Antropologia procura entender a relação entre


os indivíduos e culturas, suas histórias, linguagens, valores, crenças ou
costumes; incluindo a origem, a evolução e as acções da humanidade.

Os primeiros filósofos já faziam perguntas a respeito do impacto das


relações sociais sobre o comportamento humano. Neste período é que
se começa a falar que tudo o que existe possui uma “medida
humana”, quer dizer, o ser humano é o centro da discussão acerca do
mundo. 

Os antigos escritores gregos relataram passagens a respeito das culturas


com as quais mantinham contato pela vizinhança ou pela guerra, que
eram diferentes das suas tradições. 
Podemos dizer que nesses textos, encontramos os primeiros vestígios daquilo
que hoje chamamos de Antropologia, porque eram relatados costumes e
tradições que pertenciam a um determinado povo.

No que tange a nossa história brasileira, podemos tomar como exemplos


a carta de Pero Vaz de Caminha e os retratos de Jean-Baptiste
Debret como valiosos registos antropológicos.

Entretanto, o antropólogo François Laplantine afirma que “o homem


nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as sociedades
existiram homens que observavam homens (…) Mas o projecto de fundar
uma ciência do homem – uma Antropologia – é recente”. 

Todos os campos do conhecimento se interessam pelo homem, por isso


foram surgindo, ao longo da história da humanidade, uma série de
subdivisões que se propuseram a esta investigação. 

Na Antropologia, isso gerou várias ramificações, dentre as quais se situa a


Antropologia da Religião. Algumas delas são:

Antropologia Filosófica – é a disciplina da Filosofia que tem a tarefa de


responder à seguinte pergunta: “O que é o homem?” Seu enfoque se faz
pelo seu objeto formal, ou seja, o estudo da essência do homem. 

Antropologia Teológica – No cristianismo, é a parte da teologia que trata


dos vários aspectos do acto criador de Deus em Jesus Cristo. Para o
cristianismo, o homem é o centro da criação e foi salvo em Jesus, por
isso deve responder com o seu comportamento cristão ao amor e aos
benefícios de Deus na esperança da plenitude futura.

Antropologia Física – enfatiza as abordagens descritivas e tipológicas dos


povos, baseadas na morfologia, como a coleta de medidas
antropométricas da face, crânio, tronco e membros das populações
pesquisadas. 

Antropologia Ecológica – nova disciplina que dá enfoques ecológicos à


Antropologia, abrindo-se para o terreno dos valores éticos, dos
conhecimentos práticos e dos saberes tradicionais. 

Antropologia Médica – é parte da Antropologia que considera que a


saúde e o que se relaciona a ela (conhecimento do risco, idéias sobre
prevenção, noções sobre causalidade, ideias sobre tratamentos
apropriados etc.) são fenômenos culturalmente construídos e
culturalmente interpretados. 
Antropologia da alimentação – analisa a produção antropológica referente
às práticas, hábitos e concepções de consumo alimentar de segmentos
de trabalhadores rurais e urbanos. 

Antropologia Cultural ou Social – é a área da Antropologia que estuda a


cultura e a sociedade. Estuda-se aqui o comportamento do homem,
sobretudo, aqueles que dizem respeito às atitudes padronizadas e
rotineiras. A cultura é vista aqui, não como uma erudição ou sofisticação,
mas como a forma de vida de um grupo de pessoas. 

Antropologia da Religião – é considerada por alguns como uma parte dos


estudos realizados pela Antropologia Cultural ou Social, que
pretende fazer uma análise sobre o mundo simbólico da religião. 

Émile Durkheim e Marcel Mauss: da magia à religião

Arte aborígene contemporânea representando a ave Australian Magpie como um animal


de poder (ou animal totêmico) , conforme a tradição dos povos nativos da Austrália.

Émile Durkheim (1858-1917), antropólogo francês, procurou imprimir


uma abordagem racional à investigação da religião primitiva, vendo na
religião uma divinização da sociedade e das suas estruturas. 

Muitos pesquisadores apontam como origem da Antropologia da Religião


a obra  As formas elementares da vida religiosa, de Émile Durkheim, na qual
o autor busca os primórdios da religião no Totemismo das tribos aborígenes
australianas, partindo do pressuposto de que esta seria a forma mais
primitiva de religiosidade, que teria evoluído, ao longo dos séculos, para
a forma conhecida pela sociedade europeia de sua época. 

Para ele, os símbolos da religião levantam-se como “representações coletivas” da


esfera social, e os rituais funcionam para unir o indivíduo com a sociedade.

No final do século XIX, juntamente com Marcel Mauss (1872-1950),


Durkheim se debruça sobre as representações primitivas, um estudo que
culminará na obra Algumas formas primitivas de classificação (1901). 

Inaugurava-se assim a denominada “linhagem francesa” da Antropologia.


Em 1912, publica a obra As formas elementares da vida religiosa: o sistema
totêmico na Austrália (1912), na qual, ainda preso ao debate evolucionista,
discute a temática da religião.

Seu sobrinho, Marcel Mauss (1872-1950), publica com Henri


Hubert (1872-1927) a obra Esboço de uma teoria geral da magia (1903).
Vinte anos depois, seu livro, Ensaio sobre a dádiva irá conceder maior
fundamentação teóricas às ideias de seu tio.
Baseando em autores anteriores, Durkheim repropõe nas Formas
Elementares da Vida Religiosa, o Totemismo. “Aí se identifica a origem das
ideias religiosas destinadas a tomar, mais tarde (como efetivamente tomaram),
um imenso desenvolvimento, ideias de Espírito e de Deus”

O Totemismo australiano, estudado por ele, admite que cada corpo


humano abriga um ser interior, um Espírito. Toda morte faz com que a
alma de um antepassado reapareça num corpo novo. 

Após a morte, o indivíduo entra na região das almas, voltando, depois, a


encarnar-se. As pesquisas vêm demonstrando que o Totemismo (fenômeno
que ocorreu em todos os povos antigos) desempenhou expressivo papel na
história espiritual da humanidade, segundo alguns antropólogos
modernos.

O pensamento mágico e o surgimento das religiões


Nos autores citados acima, a importância do “pensamento mágico” é
fundamental. Considera-se “pensamento mágico” a ideia expressa,
desde a pré-história, de que existe uma relação de causa e efeito entre
gestos simbólicos e ocorrências futuras. Desta forma de pensar teriam
nascido as religiões.

Por exemplo: hoje especula-se que as pinturas rupestres encontradas nas


cavernas não são apenas um registro da comunidade, mas uma
representação (ou intenção) do que era desejado para o futuro — como
sucesso na caça e fartura, conforme surge frequentemente nas
gravuras. 

Da mesma forma, vários outros rituais de muitas sociedades antigas


tinham a intenção de estabelecer uma conexão com os deuses como modo de
favorecer a colheita, ajudar na guerra e na caça, prever desastres naturais e
criar uma relação o entre o mundo dos vivos e dos mortos.

Essa forma de pensar, conforme acredita a Antropologia da Religião, é


muito comum mesmo no dia de hoje. 

Isso pode ser constatado em muitas religiões quando é realizada uma


oferta, oração ou gesto ritual buscando algum benefício futuro. Ou
mesmo quando se acredita que um êxito foi resultado das atividades
religiosas. 

O sagrado e o profano em Durkheim


Imagem de um xamã norte-americano, considerado pela tribo como
intermediador entre o mundo físico e o espiritual. A noção de uma
realidade tangível e outra intangível é universal em todas as
culturas. A figura do xamã remete também à civilizações pré-
históricas.

Era grande a curiosidade dos europeus sobre os povos ditos “primitivos”,


e havia muitos relatos de missionários cristãos na África, Ásia, América e
Oceania. 

Comparando as diversas religiões conhecidas em sua época e


examinando as teorias correntes sobre a origem da religião, Durkheim
conclui que o único elemento essencial, presente em todas as religiões
conhecidas, é a radical distinção entre e o sagrado e o profano. Durkheim,
então, afirma a existência de uma dualidade essencial: 

“O sagrado e o profano foram sempre e por toda parte concebidos pelo espírito humano
como gêneros separados, como dois mundos entre os quais não há nada em comum”.
(DURKHEIM – 1989). 

Segundo o autor, todas as crenças religiosas têm em comum a


classificação dos fenômenos em dois tipos opostos, ou seja: ou são
sagrados, ou são profanos. 

“A divisão do mundo em dois domínios, compreendendo um sagrado e outro profano,


tal é o traço distintivo do pensamento religioso”. (DURKHEIM – 1989).

Esta noção de “sagrado e profano” será posteriormente desenvolvida por Rudof


Otto e Mircea Eliade, como veremos logo mais. 

Ensaio sobre a Dádiva: o sentido da oferta


Para Marcel Mauss, doar e receber implicam múltiplos significados,
tanto culturais quanto espirituais, sendo também (assim como as
religiões) um fenômeno universal em todas as tradições, tanto
ancestrais quanto modernas.

O Ensaio sobre a dádiva, obra fundamental de Marcel Mauss (1872-1950), é um


marco no desenvolvimento da Antropologia da Religião. Mauss avançou, em
relação a Durkheim, para a criação da Antropologia como ciência,
abrindo-se para todas as sociedades não-ocidentais e assumindo cada
vez mais a comparação entre as culturas do mundo. 

Mauss interessava-se pelas manifestações dos fenômenos humanos em


quaisquer tempo e espaço do planeta e sua obra abordou uma variedade
de temas, tendo recebido a mais favorável aceitação entre os
antropólogos contemporâneos de todas as inclinações teóricas. 

O seu livro Ensaio sobre a dádiva reflete de modo evidente esses temas,
iniciando estudos sobre a língua norueguesa antiga e, posteriormente,
abordando formas de organização social, grupos e regiões diversas –
celtas, Índia, China, Oceania, índios do noroeste americano.

Mauss propõe a dádiva como uma aliança, e também como fio condutor de
sua obra, e afirma que a ela produz os seguintes tipos de alianças:

Matrimoniais, como as políticas que podem ser observadas nas trocas


entre chefes ou diferentes camadas sociais; 

Religiosas, repetidas nos sacrifícios e entendidas como um modo de


relacionamento com os deuses; 

Económicas, jurídicas e diplomáticas, incluindo-se aqui as relações


pessoais de hospitalidade.

A aliança é um fato social total, mais ampla ainda, que inclui presentes,
visitas, festas, comunhões, esmolas e heranças. Os impostos e tributos
também podem ser considerados como uma forma de dádiva.

Mauss está convencido de que toda a nossa vida social é constituída por um
constante dar-e-receber. 

Você pode perceber isso quando vai a um aniversário, ou quando você


dá uma festa. Tudo está baseado na troca, na retribuição, no ser agradável
e agradecido. 

Ao dar, dou sempre algo de mim mesmo. Ao aceitar, o receptor aceita algo
do doador. Ele deixa, ainda que momentaneamente, de ser um Outro; a
dádiva aproxima-os, torna-os semelhantes.

Isto ocorre porque “dar e receber” implica não só uma troca material, mas
também uma troca espiritual, uma comunicação entre almas. A troca
pressupõe esse sentido mais profundo.

Esta troca, em muitas tradições antigas, também diz respeito às relações com
deuses, espíritos da natureza, espírito dos mortos e guias espirituais.

Mauss tenta mostrar como, universalmente, dar e retribuir são


obrigações, e estão organizadas de modo particular em cada caso. 

Daí a importância de entendermos como as trocas são concebidas e


praticadas nos diferentes tempos e lugares, como elas podem tomar
formas variadas, da retribuição pessoal à redistribuição de impostos e
tributos. 

Mauss dedicou especial atenção ao fato de que algumas trocas são


prerrogativas de chefias: receber impostos e tributos, por exemplo. Essas
prerrogativas podem ser socialmente construídas de modo diferente,
como privilégios, obrigações etc. 

A isso Mauss associava o facto de que, frequentemente, da chefia


emanavam valores que se estendem à sociedade como um todo.

Evans-Pritchard: dos gabinetes à pesquisa de


campo
A maioria dos antropólogos citados tinha um grave problema na sua
análise: contavam com as informações trazidas por missionários e viajantes. 

Num mundo onde a dificuldade de transporte era crítica, o trabalho de


missionários e viajantes era a principal base de pesquisa desses antropólogos. 

Por isso, posteriormente, esses primeiros antropólogos eram chamados


“Antropólogos de Gabinete”.

O problema desta perspectiva era que, no caso das informações trazidas


por missionários, eram em sua maioria depreciativas e distorcidas. 

A Europa — na sua antiga relação com a África, Ásia e desde o


descobrimento das Américas — historicamente entendia outros povos
como inferiores em seus costumes, cultura e religiões.

As “religiões dos povos primitivos” eram assim classificadas


simplesmente por diferirem da religião do visitante europeu
“civilizado”, que no seu entender era a única coerente e verdadeiramente divina,
sendo as demais erradas, idólatras, ignorantes, pecaminosas, etc.

Ademais, os missionários estavam ali por um motivo bem específico de


conversão religiosa, ou seja, estavam ali principalmente para tentar “salvar” e
secundariamente para compreender a cultura do povo visitado. 

Isto acabava contaminando os dados recebidos, que em sua grande


maioria eliminavam, generalizavam e distorciam a realidade vivida. Não
eram, portanto, dados confiáveis para uma pesquisa antropológica.

Edward Evans-Pritchard foi uma figura significativa no desenvolvimento da


Antropologia na Grã-Bretanha e teve um papel importante na estrutura
das teorias sobre a religião no século XX, principalmente por acreditar
que na necessidade do próprio antropólogo estar entre os povos estudados. 

A maioria de suas obras foi escrita entre as tribos dos Azandes e


dos Nuer, no Sudão. Neste caso, o próprio Pritchard esteve entre eles.

Evans-Pritchard discutiu o problema antropológico fazendo a si mesmo


estas perguntas: como entrar em contato com o mundo mental de um
estrangeiro e numa cultura estranha? Como fazer esse mundo
compreensível a um estrangeiro, comparando as duas culturas? Como
acomodar as experiências alheias em uma outra cultura diferente?

Eram estas as suas preocupações ao realizar um trabalho de campo,


levando-o a dedicar-se inteiramente neste processo de interação com os
seus informantes e também com os membros da sociedade estudada.

Como consideração à religião comparativa, ele publicou o livro As teorias


da religião primitiva. 

No livro, ele resumiu as várias teorias que teriam sido construídas pelos
antropólogos até então, porém, baseou sua posição nas dificuldades que
uma civilização tem em incorporar na mente e na cultura da outra.

Antropologia Funcionalista: vivendo e aprendendo entre os “povos


primitivos”

Para os antropólogos funcionalistas, todas as sociedades são como um organismo vivo


onde instituições mantêm o sistema funcionando. Casamentos (enquanto alianças),
famílias e religiões seriam algumas dessas instituições. 

A saída dos antropólogos dos gabinetes evidenciou um fato óbvio: ninguém


conhece melhor dos povos “primitivos” do que aqueles que viveram entre
eles. 

O termo “primitivo” ainda é uma palavra constante entre os antropólogos


desse período (a saber, do início do século XX). 

Apesar disso, os antropólogos funcionalistas dão outro passo


significativo: além de viverem entre os povos estudados, procuram não
fazer juízo de valor (que muitas vezes são julgamentos distorcidos) acerca
dos ritos e costumes pesquisados.

Com isso constatou-se que os povos primitivos possuem rituais, superstições


e hábitos que não diferem muito dos povos ditos civilizados. 
O que existe é uma grande diferença tecnológica, porém, no que diz
respeito aos costumes religiosos, as semelhanças são muitas (como já
foi sugerido no Ensaio sobre a Dávida, de Gauss). 

Tal como as sociedades primitivas, as sociedades civilizadas também se


organizam ao redor de crenças religiosas, rituais e superstições.

Os países do mundo civilizado acreditam, claro, que seus costumes


religiosos são mais racionais e esclarecidos. A Antropologia da Religião,
contudo, acabou revelando que suas bases são semelhantes.

Para a Antropologia Funcionalista isto ocorre porque as sociedades


(todas elas) funcionam como um organismo vivo, tal como nosso próprio
corpo. 

A função de cada órgão de nosso corpo é manter o sistema todo


funcionando, assim como cada instituição da comunidade (como escolas,
família, governo, comunidades, etc) mantem o povo de um país
organizado. E as instâncias religiosas são também instituições. 

As sociedades primitivas ou isoladas têm esta mesma estrutura, só que de


forma mais evidente. Nas grandes cidades urbanizadas essa relação entre as
crenças religiosas e demais instituições são mais diluídas, mas não menos
fundamentais.

Bronislaw Kasper Malinowski e Alfred Reginald Radcliffe-Brown são os


representantes mais conhecidos do funcionalismo. Suas obras foram
uma reação positiva às teorias evolucionistas, sobretudo ao conceito
abrangente de “sobrevivência de uma cultura” através dos tempos.

No livro Argonautas do Pacífico Ocidental, Malinowski faz uma análise


original e aprofundada do sistema de trocas chamado de “kula”, que era
muito peculiar aos povos trobriandeses. 

Malinowski percebeu nos seus gestos ritualísticos não apenas uma troca de
natureza comercial, mas algo também ligado à religiosidade que traz satisfação
para suas necessidades emocionais — como também ocorre nas civilizações
europeias em suas religiões.

Radcliffe-Brown, por sua vez, analisou os casamentos exogâmicos nas


sociedades aborígines da Austrália, Melanésia e América. 

Esses casamentos são um costume da população, que é repartida em


duas divisões sociais, sendo que um homem de um grupo deve casar
com uma mulher de outro grupo para fortalecer relações sociais. 
Estas três sociedades estudadas não tiveram quase nenhum contacto ao longo da
história, por isso é surpreendente que compartilhem do mesmo costume de
casamentos.

Claude Lévi-Strauss: linguagem primitiva versus a linguagem moderna

Em 1934, após alguns anos sendo professor em escolas secundárias na


França, Claude Lévi-Strauss veio ao Brasil para dar aulas na Universidade
de São Paulo (USP), onde ficou até 1938. 

Ele fazia parte de uma missão cultural, que incluía também professores,
e que fora convidada por Getúlio Vargas. Ainda hoje a influência dessa
comitiva é marcante na USP. 

Lévi-Strauss conduziu aqui as suas primeiras pesquisas de campo, realizando


pesquisas no Mato Grosso do Sul e na Floresta Amazônica entre os índios
Guaycuru, Bororo, Nambikwara e Tupi-Kawahib. Em 1955, publicou Tristes
Trópicos, livro auto-biográfico que relatava as suas experiências no Brasil.

Como expoente da Antropologia Estrutural, Levi-Strauss afirmou


que todas as culturas do mundo se caracterizavam como um sistema de signos
(ou símbolos), que são partilhados e estruturados por princípios que estão
presentes no próprio funcionamento da mente humana.

Levi-Strauss foi além de Durkheim na tentativa de explicar a maneira como as


estruturas da sociedade estão presentes nos mitos e nos símbolos.

Partindo das ideias estruturais da linguística contemporânea, ele propôs


a existência de uma diferença entre o pensar dos povos primitivos e o
pensar dos povos modernos, não baseada em análise ou lógica, mas nas
diferenças contrastantes que surgem na realidade.

Na obra o pensamento selvagem, Lévi-Strauss demonstra que o


pensamento mítico se apoia em símbolos, enquanto que o pensamento
científico está baseado em conceitos. 

Há portanto, duas maneiras distintas de pensar: uma, que é a nossa, por


meio de conceitos, e a outra, a do “pensamento selvagem”, mais próxima do
concreto e da percepção sensível.

Podemos dizer que o pensamento selvagem “pensa com coisas” e não


por meio de conceitos. É assim que as coisas encontradas na natureza,
no caso do pensamento mítico, podem ser utilizados num outro contexto
para definir seres ou realidades sociais. 
A partir daqui surge uma das maiores contribuições de Levi-Strauss: os
“povos primitivos” não são menos evoluídos ou atrasados. Apenas pensam
de forma distinta das nações ocidentais. 

O mito, por exemplo, é uma construção intelectual que opera com partes
de uma linguagem básica que nasce do meio-ambiente: leopardo,
pássaro-mosca, gafanhoto, lagarto, etc.

Não apenas os mitos, mas também toda a linguagem dos povos


primitivos segue uma lógica interna que funcionou perfeitamente (em
muitos casos por milhares de anos) para estruturar suas sociedades sem
a necessidade da ajuda dos europeus, que, durante as colonizações,
utilizarem esse “argumento do atraso” e da “verdadeira religião” para
dominar e explorar povos nativos. Esta mentalidade, como herança
colonial, existe até hoje.

Nesse sentido, as contribuições de Lévi-Strauss foram importantes para


desconstruir ideias racistas, xenofóbicas e eurocêntricas sobre os povos
nativos. Além fornecer uma nova perspectiva para a Antropologia da
Religião.

Mircea Eliade e Rudolf Otto: o Sagrado e o Profano como experiências


existenciais

Mircea Eliade um notável estudioso romeno das religiões, faz uma


divisão da vida simbólica em dois grandes campos opostos entre si: o
Sagrado e o Profano. É considerado um dos mais importantes
pesquisadores da Antropologia da Religião.
Eliade afirma ainda que “o sagrado e o profano constituem duas modalidades
de ser no mundo, ou seja, duas situações existenciais diferentes assumidas pelo
homem ao longo da sua história”.

Nas sociedades tribais estão estabelecidos de modo mais rígido o campo


do que é sagrado e do que é profano. 

O sagrado envolve coisas da natureza ou da fabricação humana dando-


lhes um caráter de extraordinário — fascinante ou atemorizante — da
ordem do mistério, da transcendência. 

É o caso dos vários objetos ritualísticos, amuletos, obras de arte, árvores,


regiões consideradas santuários, etc. Esses objetos e lugares, muito mais do
que mera superstição, marcam de forma clara uma relação entre o mundo
visível e o mundo invisível e espiritual.

Vejamos o que afirma Eliade sobre isso na obra O Sagrado e o Profano:


“O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra, como
algo absolutamente diferente do profano. O homem ocidental moderno experimenta
certo mal-estar diante de inúmeras formas de manifestação do sagrado: é difícil para
ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras
ou árvores, por exemplo. Mas não se trata da veneração da pedra como pedra, de um
culto da árvore como árvore.”
Conforme o autor deixa claro, a veneração de itens e paisagens é a
veneração daquilo que é sagrado, ali representado simbolicamente. 

É o Sagrado o verdadeiro objeto de veneração, e não as árvores ou as


pedras, que podem ser destruídas a qualquer momento sem prejuízo
algum ao Sagrado, que pode se expressar de forma infinita.

O homem vive sua vida em ambiente profano, mas sua vida não é completa (ou
não faz sentido) sem a dualidade entre o Sagrado e Profano. 
Assim, entre os povos chamados primitivos ou selvagens está demarcado de
forma contrastante o mistério existencial enfrentado por todos os seres
humanos. 

O entendimento da religiosidade desses povos acaba por revelar muito


sobre alguns comportamentos dos povos ditos modernos e civilizados,
que muitas vezes, apesar de estranhar os costumes primitivos,
“veneram” objetos como objetos (como carros, roupas, etc) como
resultado de certa angústia existencial. 

Essa angústia, que gera no homem moderno uma veneração vazia, seria uma
negação (ou medo) do mistério do mundo e da finitude da vida, que entre os
povos “primitivos” é enfrentada de forma mais natural, como um fato
inerente à toda existência.
Rudolf Otto, citado por Eliade, explica que a experiência diante do
Sagrado provoca pavor, pois coloca o ser humano em relação com o
mistério aterrador, mas ao mesmo tempo o lança em direção ao mistério
fascinante, dando-lhe um sentimento de plenitude.

Sobre o Sagrado, Rudolf Otto afirma:

“Uma coisa é ter ideias sobre o sagrado; outra perceber e dar-se conta do sagrado
como algo atuante, vigente, a se manifestar em sua atuação. É convicção fundamental
de todas as religiões que não só a voz interior, a consciência religiosa, o discreto
sussurro do espírito no coração, o palpite e o anseio prestem testemunho a respeito do
sagrado, mas que seja possível encontrá-lo em eventos, fatos, pessoas, em atos de auto-
revelação, ou seja, que além da revelação interior no espírito também haja revelação
exterior do divino”

O mistério situa-se no âmbito da transcendência, portanto numa ordem


que ultrapassa o natural. O mistério remete o ser humano ao
sobrenatural, ao campo que atuam divindades, entes, espíritos e forças
além do humano, mas simultaneamente em estreita relação com ele.
O temor diante do sagrado não é medo que paralisa, pelo contrário, é
sentimento que mobiliza, que encanta e direciona o humano a experimentar
o encontro com divindades e outras expressões simbólicas inerentes ao
Sagrado. 

Esse encontro se dá e ao mesmo tempo produz atitudes, valores,


representações de diversas ordens (mitos, ritos, hierarquias sagradas),
de modo que toda a cultura dos povos primitivos — com pouquíssimos
espaços profanos — encontra-se revestida pelo Sagrado, dando sentido
existencial pleno à todos os habitantes da comunidade.

Os desafios da Antropologia da Religião

Quando o antropólogo se debruça sobre a religião de um povo ou se


dedica a estudar aspectos religiosos presentes em determinada cultura,
ele de fato está se aproximando de uma pequena parcela da experiência
humana com o sagrado. 

“Sagrado”, neste texto, refere-se àqueles aspectos de todas as culturas


que tentam lidar com o temor existencial provocado pelo desconhecido,
nos moldes definidos por Mircea Eliade e Rudolf Otto e talvez percebido
por todos os seres humanos.

Efetivamente é imenso o campo das coisas sagradas, e isso torna


impraticável para a Antropologia da Religião abarcar todas as situações e
processos culturais contidos nesse âmbito. 

Por isso, é preciso para fins analíticos “fragmentar’ o sagrado para que
os estudos de campo sejam feitos; para que seja possível construir
conhecimento. 

É importante destacar que os trabalhos no campo da Antropologia da


Religião lidam efetivamente com manifestações concretas da experiência
religiosa, observáveis e acessíveis à análise.

Este modo analítico de investigação, contudo, representa a própria


limitação do antropólogo, que é, ele mesmo, fruto de uma sociedade
baseada no modo racional e científico de pensar. 

Portanto, por mais que o antropólogo se esforce, e por tudo que foi dito
aqui, suas vivências e intuições mais profundas sobre o tema são de
difícil comunicação.

Se por um lado o sagrado pode ser analisado mediante investigação


científica, por outro ele pode ser apenas vivido individualmente, desafiando
qualquer análise racional.
Talvez uma das principais contribuições da Antropologia da Religião seja
o fato de, ao analisar os costumes de outros povos, passarmos a observar
nossos próprios costumes. 

Nesse sentido, esta análise corrobora o pensamento do filósofo francês


René Descartes que, em suas viagens, já havia percebido a importância
de conhecer outros povos com o intuito de conhecer melhor nossos
próprios costumes, conforme ele deixou registrado em sua obra Discurso
do Método:

Devemos conhecer algo de outros povos para que seus costumes e


crenças não nos pareçam estranhos e ridículos, como fazem aqueles
que nada viram. ( René Descartes).

Bibliografia
1. ARANHA, M.; MARTINS, M. Filosofando: introdução à filosofia. 2 ed.
São Paulo: Moderna, 2002. 

2. AUZIAS, Jean-Marie. A antropologia contemporânea. São Paulo:


Cultrix, 1978.

3. DA MATTA, Roberto. Relativizando: Uma Introdução à Antropologia


Social. Petrópolis: Vozes, 1989.

4. DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa (o


sistema totêmico na Austrália). São Paulo: Paulinas, 1989. 

5. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São


Paulo: Martins Fontes, 1999.

6. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1989. 

7. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar,


1979.

8. _____________. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar,


2001.
 
9. GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978. 

10. EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os


Azande. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

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