Você está na página 1de 16

ANTROPOLOGIA

DA RELIGIÃO
Antropólogos
clássicos
Mayara Dionizio

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Analisar o caminho trilhado pelos antropólogos clássicos no contexto da


análise da religião.
>> Descrever as teorias sobre as sociedades e as visões do mundo dos mais
importantes antropólogos clássicos.
>> Relacionar as teorias dos antropólogos clássicos com as teorias de outros
antropólogos de sua época.

Introdução
A antropologia clássica, desde seu ensejo inicial, no século XIX, se defrontou
com grandes problemáticas em torno da relação entre natureza e meio social.
Nesse contexto, a corrente evolucionista se tornou predominante, uma vez que
a história e a antropologia, de uma só vez, podiam ser pensadas de forma linear.
Considerava-se que quanto mais conhecimento uma sociedade, uma comunidade
ou uma tribo tinha, mais evoluída ela era. Mais tarde, Franz Boas e sua seguidora,
Ruth Benedict, estabeleceram, a partir de estudos etnográficos, a relação entre
determinismo mental e determinismo do meio, para pensar a anormalidade como
resultado de uma sociedade.
Já no século XX, com Claude Lévi-Strauss, surgiu uma perspectiva multicul-
turalista. O antropólogo francês revolucionou a forma como a antropologia era
pensada até então quando uniu o determinismo natural ao social e cultural, sob
a alegação de que o sujeito é constituído de modo múltiplo. Posteriormente, após
2 Antropólogos clássicos

uma possível superação da antropologia modernista, surgiram correntes diversas


que pensavam a figura do antropólogo, bem como a importância do relato das
experiências dos estudados.
Neste capítulo, você vai compreender a leitura antropológica da religião em
relação à cultura e à natureza. Você também vai verificar como os antropólogos
mais consagrados compreenderam as sociedades e quais eram as suas respectivas
visões de mundo. Por fim, você vai estudar as diferenças entre a antropologia
clássica moderna e as teorias antropológicas pós-moderna e contemporânea.

A análise antropológica clássica sobre


a religião
Quando pensamos as sociedades ocidentais em suas estruturas fundantes,
inevitavelmente encontramos fronteiras que não só dividem os saberes e as
instituições, mas também os unem. É nesse hiato correlacionado que a filosofia,
a história e a religião se cruzam. Mais tarde, acrescidas dos saberes sociológi-
cos e antropológicos, as ciências humanas se voltaram para o indivíduo, não
somente em sua individualidade, mas, antes, em sua manifestação coletiva.
Nesse contexto, antes de nos aprofundarmos nos aspectos mais transdisci-
plinares, cabe compreender com maior atenção a relação entre a antropologia
e a história, para então delimitarmos a análise religiosa dos antropólogos clás-
sicos. Se podemos pensar as sociedades ocidentais por meio de uma cronologia
marcada, que nos remete ao conceito de historicidade, isso se dá também pela
possibilidade de uma etnografia singular das sociedades, dos povos.
Ao contrário de uma concepção evolutiva da história, a antropologia nos
permite pensar a história não só como um sistema progressivo das ideias e
dos sistemas filosóficos, mas antes a partir da essencialidade singular etno-
gráfica de cada povo. Assim, dignifica-se a experiência comum da passagem
temporal e da passagem individual do tempo. O que nos leva àquilo que nos
disse Émile Durkheim sobre a sociedade: todas as sociedades constroem
uma noção de tempo, contudo, elas se realizam empiricamente de acordo
com a sua cultura própria.
De acordo com Lévi-Strauss (1975), a diferença entre as sociedades se
mostra a partir daquelas que têm história e daquelas que não tem. Isto é, há
aquelas sociedades que reivindicam a mudança, e há aquelas que buscam
a reiteração. Assim, essas distinções servem tão só para classificar as dife-
renças culturais, ressaltando a unidade da história em suas diferenciações,
segundo o antropólogo.
Antropólogos clássicos 3

Voltando para a antropologia e seu amplo arcabouço contextual, podemos


dizer que a antropologia clássica, a partir do evolucionismo, se volta ao pen-
samento diacrônico. Ou seja, nos primórdios do pensamento antropológico,
encontrava-se uma busca fundante por apenas uma história. Nela, estariam
compreendidas as distinções: na história entendida linearmente de modo
comparativo, aquelas sociedades ainda ligadas ao passado ocidental em sua
estruturação seriam pensadas como menos evoluídas, se comparadas às so-
ciedades que evoluíram dado o acúmulo de conhecimento e desenvolvimento
tecnológico. Essas sociedades tidas como menos evoluídas passavam a ser
classificadas como primitivas e infantis, logo, desinteressantes ao estudo
das ciências humanas de modo geral.
Tal modo segregacionista de pensar a história dos povos primitivos a
partir do evolucionismo passou a ser rejeitado por escolas antropológicas
insurgentes. É nesse contexto que encontramos os primeiros embates acerca
da disciplina de antropologia. Já no século XVIII, a partir da distinção acerca
das noções de cultura — ou seja, aquela entendida como civilização, ligado
ao iluminismo, ou aquela pensada de acordo com o romantismo alemão,
kultur — surgiram as primeiras associações entre os conceitos de civilização
e história. Se, de um lado, a cultura é aquilo que é progressivo, acumulativo
e atribuído à essencialidade humana, ou ainda à sua especialidade, por
outro lado, a civilização em sua abordagem também “cultural” é resultado
de um processo racional atribuído somente ao ser humano. Em ambas as
compreensões, encontramos o ser humano como um ser privilegiado em
relação a outras espécies, e as sociedades modernas como superiores às
sociedades “primitivas”.
Por esse motivo, a cultura passou a ser objeto da antropologia clássica
como uma via de acesso à reconstituição das origens e dos níveis de evolu-
ção entre as sociedades “selvagens” e as sociedades “civilizadas”. Isso nos
permite observar que a cultura pensada de forma evolucionista decorre em
um etnocentrismo, em uma imposição universalista do que é o indivíduo e,
por fim, lança as bases para o colonialismo. Essa retórica, ao final do século
XIX, levou ao embate construtivista entre a corrente da kultur (aquela ligada à
formação do espírito) e o evolucionismo, que ganhava uma enorme projeção
no continente europeu. De um lado, o etnocentrismo/evolucionismo/univer-
salismo, e de outro, o relativismo, que defendia o não universal.
Nesse contexto se deu o marco para o surgimento da antropologia estadu-
nidense, com a publicação do antropólogo Boas (2014): As limitações do método
comparativo em antropologia social. No texto, Boas (2014) argumenta que a
cultura deve ser pensada em sua particularidade, o que o liga diretamente
4 Antropólogos clássicos

à corrente da kultur. Boas (2014) entende, a partir de seus estudos acerca da


distribuição espacial dos mitos do povos ameríndios da América do Norte, que
a cultura é composta por elementos que são frutos de um processo histórico
em que se relaciona o intercâmbio entre os povos e, por isso, trata-se de um
processo de constante transformação cultural.
Isso implica também na análise sobre o fenômeno religioso: uma vez que
a cultura é composta também a partir da difusão cultural, ela não tem uma
origem comum, como argumentavam os evolucionistas. As instituições, a
organização social e espacial e, acentuadamente, a religião são resultados
de diversos processos históricos. Para tanto, Boas exemplifica sua teoria a
partir da reflexão sobre tribos primitivas organizadas em clãs totêmicos,
que têm formulações totalmente distintas entre si, portanto, não advêm
de uma origem idêntica psíquica de tribos distintas. Isto é, apesar de uma
predisposição psíquica, cada tribo se desenvolve de forma singular, de acordo
com o seu processo histórico.
Nesse contexto, a partir da obra de Benedict (2013) — seguidora da
antropologia boasiana — intitulada Padrões de cultura, publicada origi-
nalmente em 1934, sobre a cultura do Novo México, os Dobu da Nova Guiné
e os Kwatiutl da Columbia Britânica, podemos compreender os padrões
culturais em sua relação com a sociedade. Para Benedict (2013), é a socie-
dade mesma que acaba legitimando a integração social e a validade de
suas instituições. É por esse motivo que Benedict (2013) argumenta que os
desviantes são reprimidos socialmente e institucionalmente e usa como
exemplo a experiência com o uso de entorpecentes. Em muitas sociedades,
são aceitos rituais em que é feito o uso de substâncias entorpecentes, a
fim de se atingir um estado transcendente; contudo, em grande parte da
sociedade ocidental, o uso dessas substâncias não é aceito, mesmo em
condições culturais e religiosas.
Em 1944, Benedict realizou um estudo antropológico, a pedido do
governo norte-americano, sobre os padrões culturais japoneses es-
tabelecido após a Segunda Guerra Mundial. Isso se deu muito pelo
interesse sobre a lógica do comportamento dos soldados japoneses
durante a guerra: demonstravam orientação, determinação e disciplina
mesmo quando se encontravam em desvantagem. Benedict concluiu que
o comportamento dos japoneses estava ligado aos padrões culturais
peneirados socialmente e reforçados institucionalmente. Curiosamente,
nesse sentido, comparados culturalmente ao exército norte-americano,
Antropólogos clássicos 5

os japoneses estavam em busca da afirmar seu lugar como superiores


aos demais, enquanto os norte-americanos lutavam por valores como
liberdade e democracia. Por esse motivo, Benedict chegou à constatação
de que há relação entre a cultura e a estrutura psíquica: “[...] esta relação
é recíproca e tão íntima que não se pode tratar de padrões culturais
sem considerar especificamente as relações destes com a psicologia do
indivíduo [...]” (BENEDICT, 1988, p. 12).
Portanto, é a partir desses padrões culturais selecionados e reforçados
institucionalmente que podemos compreender a cultura também pelo que
dela difere. Assim, as condutas tidas como “desviantes” são o que possibilita
o olhar sobre o que padroniza. Para Benedict (1988), essa padronização revela
que a sociedade é tão predominante e busca se manter dentro de sua própria
estrutura que aqueles que são considerados “anormais” não são admitidos.
É nesse hiato entre a cultura e a disposição psíquica que encontramos a
noção de louco. Isto é, os conceitos de louco e normal, ou, no sentido foucaul-
tiano, razoado e desarrazoado, são pensados como uma construção cultural.
Por exemplo, Benedict (1988) trata sobre a questão de como as sociedades
ocidentais entendem a homossexualidade: nas sociedades capitalistas, os
homossexuais são considerados como anormais; já em outras sociedades, a
homossexualidade é valorizada. Nesse contexto, podemos citar a compreensão
platônica acerca da sexualidade na República (PLATÃO, 2000), em que o amor
sexual entre homens é valorizado, pois é entendido como o amor entre iguais
superiores hierarquicamente.
Conclui-se que as relações entre cultura e predisposição psíquica
são inter-relacionadas. Assim, a sociedade, desde o surgimento da an-
tropologia, vem sendo pensada a partir dessas relações. Franz Boas foi
o responsável por inaugurar essa forma “neoevolucionista” de pensar a
antropologia, que, por conseguinte, foi aprofundada por Ruth Benedict,
sua seguidora. Essas noções sobre a cultura e a psiquiatria que levaram
ao reconhecimento de uma cultura dos desviantes possibilitou a reflexão
acerca das questões de gênero e da cultura de forma ampla. Fruto desses
estudos antropológicos e etnográficos, em 1960, surgiu o movimento
pós-moderno, que também influenciou diversos movimentos insurgentes
das minorias (Figura 1), considerados como rupturas culturais e psíquicas,
nas quais se insere a crítica aos discursos religiosos considerados como
conservadores da ordem até então vigente.
6 Antropólogos clássicos

Figura 1. Jornadas estudantis em maio de 1968, na França — um movimento de contraluta,


que lutava contra o conservadorismo e os padrões culturais da sociedade francesa.
Fonte: Cros (2000? apud COGGIOLA, 2018, documento on-line).

As sociedades e as visões do mundo dos


mais importantes antropólogos clássicos
A obra do antropólogo Claude Lévi-Strauss se tornou fundamentalmente
norteadora na esfera antropológica. Entre os pensadores mais caros a essa
tradição, Lévi-Strauss revolucionou a forma de pensar a sociedade a partir
da relação entre natureza e cultura. Nesse sentido, mais do que uma sepa-
ração ou junção entre esses campos, a antropologia straussiana de dedicou
a refletir sobre o que vincula esses campos no contexto social e formativo.
Desde o final do século XIX, a antropologia se manteve às voltas com a
pressuposição de uma unidade humana em que não se consideravam as teorias
e diversidades culturais, muito menos os dados empíricos ou dialéticos ou
ainda as identidades e diferenciações. A questão que se colocou à antropologia
nesse sentido é: de que forma as diferenciações vinculantes ou irruptivas se
transformam no campo da cultura e da psique? Lévi-Strauss (1973) entende que
essa vinculação, além de fundamentar o problema estrutural da antropologia,
também caracteriza e define o que ele entende como campo da etnologia.
Segundo o filósofo contemporâneo Descola (2011, p. 35), “[...] ninguém
duvida que o século XX, em antropologia, ficará como o século de Lévi-Strauss,
a tal ponto suas ideias, mesmo quando rejeitadas, marcaram vigorosamente
Antropólogos clássicos 7

o conceito que se tem dessa ciência, de seu objeto e de seus métodos [...]”.
Nesse contexto, convém ressaltar por quais vias a antropologia straussiana
marcou fortemente o pensamento antropológico:

1. a relação entre continuidade e descontinuidade no que compete à


natureza e à cultura;
2. as relações estruturais entre cultura e natureza, ou, ainda, entre espírito
e determinações ecológicas.

Analisaremos o que nos diz Lévi-Strauss sobre essas estruturas a partir


de sua conferência intitulada Structuralism and ecology, que ocorreu em 1972,
nos Estados Unidos. Nessa conferência, o antropólogo explicitou o papel da
junção entre o espírito e a ecologia na operação estrutural do sistema social
e psíquico. Ou seja, Lévi-Strauss defendia que a seleção feita socialmente em
torno de um significante não é um processo puramente natural.
A partir da obra O pensamento selvagem, também de Lévi-Strauss (1989),
podemos compreender como as culturas, tanto animais quanto vegetais,
demonstram aleatoriedade simbólica entre si: trata-se, portanto, de carac-
terísticas distintas presentes nas mesmas espécies ou reinos em sua função
simbólica. Assim, a arbitrariedade fundamental que define os traços dessas
espécies se organiza em decorrência das transformações das regras que até
outrora eram predominantes. Esse percurso percorrido pelo antropólogo tem
em vista compreender como os mitos oriundos de tribos, em especial aquelas
mais próximas, são utilizados e têm suas funções simbólicas distintas no que
compete às suas relações com a natureza. Dito de outro modo, Lévi-Strauss
(1989) compreende que, nas tribos, os mitos são os mesmos, por muitas vezes,
mas se estruturam em relação à natureza de formas distintas entre as tribos.
Tais afirmações de Lévi-Strauss (1989) geraram conflitos com os materia-
listas norte-americanos. No caso em questão, a controvérsia se deu com o
professor de ecologia cultural Marvin Harris. Para Harris (1966), a antropologia
estrutural se encontrava fundamentada em um naturalismo radical, isto é,
em um determinismo geográfico. Ao pensar as transformações culturais, Lévi-
-Strauss (1989) teria vinculado a ecologia e a cultura a partir das disposições
geográficas das tribos e das espécies. O que traz à luz o caráter condicionante
da leitura straussiana: a cultura seria resultado também das relações empí-
ricas estabelecidas a partir de uma estrutura orgânica. Descola (2011, p. 37)
vê nessa querela entre os estudiosos a disputa entre um programa científico
de caráter dualista e uma epistemologia monista, dizendo respeito:
8 Antropólogos clássicos

[...] à etnografia, assistida pela história e pela tecnologia, o estudo da base material
das sociedades; à antropologia estrutural, o estudo das ideologias — e uma teoria
do conhecimento decididamente monista, visto que ela considera o espírito dando
sentido ao mundo como parte e produto desse mesmo mundo.

De acordo com Lévi-Strauss (1989), não poderíamos compreender o sujeito


a partir de uma separação desvinculante entre cultura e psique, matéria e
espírito, mas tão só a partir da vida social pensada por determinismos com-
plementares. O que nos leva a pensar a sociedade como uma junção entre o
determinismo econômico — aquele que se coloca de forma coercitiva na vida
do sujeito, exigindo dele uma ação tecnoeconômica — e o determinismo de
funcionamento, que exige formas de ação inerentes ao sujeito. Esses deter-
minismos exigem do antropólogo o conhecimento tanto sobre propriedades
objetivas em relação aos objetos naturais quanto sobre a ecologia de uma
sociedade. Isso implica os seguintes aspectos:

„„ primeiro, conhecendo os objetos naturais, pode-se compreender melhor


a seleção social em torno de um significante (seja o mito, a religião,
entre outros significantes);
„„ em segundo lugar, conhecendo a ecologia social, pode-se compreender
a produção ideológica de uma sociedade, ou seja, a forma como ela
dispõe e organiza os seus pensamentos.

Assim, segundo Lévi-Strauss (1989), existe uma simetria entre os deter-


minismos, o mental e o do meio. Contudo, o determinismo do meio é consi-
derado pelo antropólogo como inferior hierarquicamente; isso porque é no
material da realidade que encontramos a matéria-prima para aquilo que vai
se tornar miticamente um significante. O que significa que Lévi-Strauss não
rejeita totalmente o materialismo, mas não o considera tão determinante
para além de meramente produto da atividade simbólica. Trata-se, assim,
de uma afinidade que é capaz de unir o mental e o meio. Portanto, os dados
imediatos não são:

[...] uma espécie de cópia autêntica dos objetos apreendidos, mas consistem em
propriedades distintivas, abstraídas do real por mecanismos de codificação e de
decodificação inscritos no sistema nervoso e que funcionam por meio de oposições
binárias: contraste entre movimento e imobilidade, presença ou ausência de cor,
diferenças de contorno dos objetos (LÉVI-STRAUSS, 1976 apud DESCOLA, 2011, p. 39).
Antropólogos clássicos 9

Para além da obra straussiana, outro pensador que se dedicou a pensar


sobre a sociedade e a sua vinculação com a cultura e a natureza foi Marshall
Sahlins, participante e fundador da Escola de Cultura e Personalidade, que
surgiu em meados da década de 1940 e tinha como principal característica
a oposição ao particularismo histórico alemão. Sahlins, nesse contexto,
foi responsável por retomar o conceito de evolucionismo aliado à questão
cultural, juntamente com Leslie White. A obra de Sahlins é dividida em dois
grandes marcos: primeiramente, têm-se a fase de juventude de viés estrita-
mente neoevolucionista; posteriormente, tal noção é associada às relações
de produção no contexto tecnológico insurgente (SAHLINS, 1976).
Entre os anos de 1954 e 1955, Sahlins realizou uma pesquisa de campo
em algumas comunidades do Pacífico e pôde, a partir de então, analisar
suas hipóteses evolucionistas de caráter marxista. Assim, a evolução das
comunidades era analisada de acordo com as suas hierarquias, que, por sua
vez, se dividiam em dois eixos de análise (SAHLINS, 1976):

„„ a matéria da qual a sociedade/comunidade dispõe (incluindo o avanço


tecnológico);
„„ como o poder é distribuído entre os membros.

Portanto, a ênfase do estudo foi dada à questão econômica e à organização


política. Sahlins chegou à conclusão de que o fator mais determinante nessa co-
munidade estava ligado à questão material. Ou seja, o desenvolvimento político
se encontrava pautado, ritmado pelo progresso tecnológico. Ao se desenvolver
uma tecnologia, a economia se desenvolvia com vistas a esse progresso, o que
acabava por determinar a distribuição de poderes políticos (SAHLINS, 1976).
Já em 1960, Sahlins reelaborou seus posicionamentos em razão do evo-
lucionismo e acabou por adotar uma visão mais perspectivista e, portanto,
culturalista. Isso decorreu dos diálogos insurgentes no cenário acadêmico
entre o estruturalismo francês e o materialismo histórico. Em 1976, Sahlins
publicou Cultura e razão prática; nessa obra, o autor apresenta uma análise
cultural do Ocidente e o processo de produção capitalista enquanto simbólico.
Concluiu-se que os objetos produzidos pelas sociedades ocidentais não têm
apenas uma utilidade prática, mas também uma função simbólica, o que levou
Sahlins a entender que o esquema simbólico é a real finalidade dos objetos
produzidos. De acordo com Gonçalves (2010), os produtos vendidos, antes de
determinarem os seus valores em si, determinam o valor econômico daquele
10 Antropólogos clássicos

que compra, daquela relação de compra. Por fim, Sahlins (1976) concluiu
que a produção capitalista só se realiza a partir dos objetos produzidos por
meio de uma mediação simbólica — trata-se, antes de tudo, de um projeto
cultural determinante.

Os antropólogos clássicos e os antropólogos


contemporâneos
Ao tratarmos das teorias antropológicas clássicas e das teorias contemporâ-
neas, tratamos também de uma série de tendências metodológicas e teóricas
que marcam constantes mudanças na disciplina de antropologia desde seu
surgimento, no século XX. Contudo, foi a crítica americana sobre os modelos
de pesquisa e abordagem antropológica que acarretou um deslocamento no
modo como se pensava a disciplina até então. Existem duas abordagens mais
referidas a esse período: a abordagem interpretativa, representada forte-
mente por Clifford Geertz nos anos 1970, e as perspectivas pós-modernas,
que partem da abordagem etnográfica. Ambas as formas de pensar e aplicar
a antropologia, em um sentido metodológico, se desenvolveram e possibili-
taram a antropologia tal como vemos hoje, por um viés mais perspectivista.
A abordagem de Geertz (1989) argumentava em função da interpretação
das culturas como um conjunto de textos. Para tanto, a metodologia se
fundamentava em um modelo de leitura contextual, o que trazia para a
antropologia uma possibilidade diferente daquela da vivência sob argu-
mento de autoridade. Ou seja, sendo a antropologia um estudo científico,
era necessário que os estudos apresentassem mais dados do que aqueles
somente autorreferenciados pela experiência — o que se traduz na contem-
poraneidade (a partir do identitarismo) como a autoridade do “lugar de fala”.
A antropologia interpretativa conseguia, assim, analisar as culturas como
texto em detrimento da autoridade etnográfica, o que tornou possível a
desmistificação e o questionamento acerca das descrições etnográficas e,
por outro lado, o estabelecimento de um rigor maior. Dessa forma, ao mesmo
tempo que Geertz (1989) rompe com o modelo clássico, também questiona o
processo de interpretação, pois entende que a cultura observada é separada
do antropólogo que a interpreta.
Nos anos 1980, influenciadas pela antropologia interpretativa, várias
perspectivas pós-modernas surgiram e passaram a apresentar formas me-
todológicas de pesquisa e texto. Metodologias baseadas na produção de
textos dialógicos, testemunhais e polifônicos ganharam espaço nas discus-
Antropólogos clássicos 11

sões acadêmicas. Ao mesmo tempo, os críticos ao positivismo científico, ao


empirismo e ao reducionismo passaram a insinuar que a antropologia deveria
abandonar essas abordagens e assumir uma postura humanista e parcial no
que se refere às análises culturais.
Nesse contexto, a antropologia se abriu totalmente ao empreendimento
geertziano de uma análise que considera a cultura como texto e começou a
reconhecer a autoridade científica e etnográfica a partir da crise da repre-
sentação. Cabe ressaltar que esse movimento de crise da representação
consiste no reconhecimento dos limites da linguagem, no sentido de uma
apreensão do ser pela palavra. Essa foi a temática central para os movimentos
estruturalistas e pós-estruturalistas franceses.
Assim, os teóricos da segunda metade do século XX passaram a analisar
o texto a partir de seu contexto estrutural, o que compreende o importante
conceito derridiano de desconstrução. Ou seja, decompõe-se a estrutura para
melhor compreendê-la. Tal movimento filosófico estabeleceu relações com
todas as áreas das ciências humanas, em especial a antropologia. Isso levou
a antropologia a experimentar estilos distintos que passavam por dialetos
e, até mesmo, interpretações idiossincráticas.

Você sabe o que significa o termo “desconstrução”, cunhado primeira-


mente pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida? Trata-se de um
conceito elaborado como uma crítica aos conceitos filosóficos que apresentam
uma pressuposição sem levar em consideração a estrutura. Dito de outro modo,
Derrida era associado ao movimento francês pós-estruturalista, o que significa
que o seu pensamento filosófico se debruçava sobre a investigação das estruturas.
Nesse sentido, o conceito de desconstrução leva em consideração a estrutura
que compõe o objeto de análise. Assim, mais do que uma crítica expressa à ideia
de objetos não analisados em sua estrutura, a desconstrução derridiana busca
desmontar, decompor, desconstruir os elementos de um texto, da escrita.

Podemos dizer que a crise da representação possibilitou a abertura in-


clusive para abordagens tidas como mais moderadas e que buscavam uma
“verdade etnográfica”, ou aquelas que estipulavam a impossibilidade de
estabelecer uma objetividade a partir de um contato subjetivo. Tais tendências
transparecem como a antropologia assumiu, a partir de Geertz (1989), uma
abordagem mais crítica, dialógica e polissêmica, uma vez que foi com o pós-
-modernismo que a desconstrução dos textos etnográficos se fez possível,
contrariando a abordagem mais clássica, em que as etnografias dos cânones
da antropologia eram indiscutíveis.
12 Antropólogos clássicos

Resta-nos delimitar mais precisamente o modernismo antropológico,


para, de fato, entendermos com maior propriedade a ressignificação da
disciplina. Ao contrário de outras disciplinas das ciências humanas — a título
de ilustração, as ciências sociais em que faz parte da análise a ausência do
pesquisador da “cena”, no sentido freudiano do termo —, na antropologia,
é fundamental a presença do antropólogo no trabalho de campo — ou seja,
também no texto etnográfico. Portanto, o antropólogo é aquele que mede
os universos culturais, fazendo-os se conhecerem, ainda que seja por meio
de seus olhos.
De acordo com Caldeira (1988), o antropólogo em cena exige uma ambi-
guidade, pois ele é tanto quem revela uma realidade quanto aquele que se
ausenta, tentando garantir a objetividade do estudo. Para Geertz (1989, p. 94),
a presença do antropólogo, sobretudo nos textos, deve ser compreendida a
partir das “[...] peculiaridades de uma curiosa estratégia de construção textual
[...]”, o que pode ser verificado, segundo Geertz (1989), nas heterogeneidades
presentes nas discursividades de Bronisław Malinowski, E. E. Evans-Pritchard
e Claude Lévi-Strauss, por exemplo.
Nesse contexto, podemos identificar em Malinowski, ilustrativamente, a
legitimação da figura profissional do antropólogo, que se dá por meio de uma
abordagem antropológica que propõe a observação participante. Cabe res-
saltar que foi essa abordagem que garantiu à antropologia o status científico
e causou a ruptura com o pensamento preponderantemente evolucionista
do século XIX. Até esta feita, os antropólogos eram aqueles que, fechados em
suas salas, colecionavam tesouros etnográficos do mundo todo e, com isso,
construíam narrativas acerca da história da humanidade. Foi com Malinowski
que a etnografia se fez presente na antropologia enquanto metodologia que
possibilitava a descrição e a tradução dos costumes de um povo. A produção
de conhecimento antropológico passou a ter como objeto de estudo, se
podemos assim dizer, o estudo dos povos coloniais. De acordo com Geertz
(1989), tratava-se de um processo em que se colocava tudo para dentro, e a
etnografia possibilitava que o antropólogo colocasse para fora, para a prosa.
Contudo, o século XX trouxe outras contextualizações do mundo ocidental.
Ocorreu de forma mais aprofundada o processo de descolonização dos paí-
ses colonizados, muito pela mundialização da cultura e da economia e pela
ascensão de campos de estudos das ciências humanas, que possibilitaram
outras condições de produção do conhecimento. Assim, o antropólogo não
era mais aquele que tinha um acesso exclusivo às comunidades, às tribos
e aos povos “distintos”. Nesse sentido, Marcus e Fisher (1986) cunharam o
termo “visão do mundo de ourives” para descrever a crise da representação
Antropólogos clássicos 13

e os efeitos que ela causou na antropologia, uma vez que, agora, a disciplina
necessitava mais do que nunca entender os processos culturais de perto.
Foi aí que a antropologia, que até então tinha seu foco estritamente no
estudo das sociedades primitivas, voltou-se às sociedades mais complexas
e às nações-Estado. Isso resultou em inovações no texto etnográfico e na
forma como a diversidade cultural passou a ser pensada e tratada. Assim,
as mudanças consideradas contemporâneas na etnografia consistem em
aplicar uma metodologia que seja capaz de ter uma função estratégica nesse
contexto; detalhadamente, elas abrangem repensar a figura do antropólogo/
autor, a produção de conhecimento textual, o objeto, o leitor, a legibilidade
e a legitimidade do texto. Isso ocorre principalmente por se considerar
o processo de autocrítica antropológica (atual na disciplina), assim como
outros aspectos da prática metodológica, o que recentemente vem sendo
questionado e descontruído das mais diversas formas.
Conclui-se que a mudança gradual no campo metodológico da antropo-
logia acabou, na contemporaneidade, por colocar paralelamente o nativo e
os cidadãos, ao passo que os nativos revelam a diversidade irredutível entre
ambos. Por outro lado, ao contrário da antropologia moderna, que recons-
truía o todo para dar sentido à heterogeneidade cultural, a antropologia
contemporânea coloca para si a tarefa de considerar o ponto de vista dos
nativos e as suas experiências, a fim de o antropólogo poder representá-los.
É nesse ponto que os modos de vida trocam influências, encontram suas
semelhanças e também as criam, lutam por superioridade, por dominação,
traduzem-se e subvertem-se.

Referências
BENEDICT, R. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 1988.BENEDICT, R. Padrões
de cultura. Petrópolis: Vozes, 2013. Originalmente publicado em 1934.
BOAS, F. As limitações do método comparativo da antropologia. Rio de Janeiro: Zahar,
2014.
CALDEIRA, T. P. R. A presença do autor e a pós-modernidade em antropologia. Novos
Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 21, p. 133–157, 1988.
COGGIOLA, O. 1968 no mundo, além da lenda. 2018. Disponível em: https://jornal.usp.
br/artigos/1968-no-mundo-alem-da-lenda/. Acesso em: 28 out. 2020.
DESCOLA, P. As duas naturezas de Lévi-Strauss. Sociologia & antropologia, Rio de
Janeiro, v. 1, n. 2, p. 35–51, 2011.
GEERTZ, C. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC,1989.
GONÇALVES, A. Sobre o conceito de cultura na antropologia. Cadernos de Estudos
Sociais, Recife, v. 25, n. 1, p. 61–74, 2010.
14 Antropólogos clássicos

HARRIS, M. The cultural ecology of India's sacred cattle. Current Anthropology, [s. l.],
v. 7, n. 1, p. 261–276, 1966.
LÉVI-STRAUSS, C. Anthropologie structurale deux. Paris: Plon, 1973.
LÉVI-STRAUSS, C. Introdução à obra de Marcel Mauss. São Paulo: Edusp, 1975. v. 2.
LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
LÉVI-STRAUSS, C. Structuralism and ecology. Paris: Plon, 1972.
MARCUS, G. E.; FISCHER, M. M. J. Anthropology as cultural critique: an experimental
moment in the human sciences. Chicago: University of Chicago, 1986.
PLATÃO. A república. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.
SAHLINS, M. Culture and practical reason. Chicago: The University of Chicago, 1976.

Leituras recomendadas
BOAS, F. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
LÉVI-STRAUSS, C. Le triangle culinaire. Paris: L’Arc, 1965.
LÉVI-STRAUSS, C. Les structures élementaires de la parenté. Paris: Mouton et Co., 1967.
LÉVI-STRAUSS, C. Mythologiques. Paris: Plon, 1964 (Le Cru et le Cruit, v. 1).
LÉVI-STRAUSS, C. Structuralisme et empirisme. L’Homme, Paris, v. 16, n. 2–3, p. 23–38, 1976.

Você também pode gostar