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Introdução
Nas ciências sociais, modernidade se refere a uma condição de existência social que é
radicalmente diferente de todas as formas passadas da experiência humana que são
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Jürgen Habermas talvez seja a reafirmação mais forte dessa dicotomia. Habermas assume
que o p roblema de perseguir uma vida ética moderna surge da perda da base religiosa das
tradições morais e da confrontação com a existência profana (Habermas 1998).3
E, no entanto, muitos caminhos pelos quais as subjetividades modernas foram
formadas não exibem nenhum do “desencantamento” previsto pela filosofia moral de
Habermas. Por exemplo, um conjunto de acadêmicos explorou como o governo colonial
britânico negou o desenvolvimento de uma esfera pública secular indiana, o que
paradoxalmente levou à cultivação de uma identidade nacional indiana “moderna” dentro
de esferas pessoais profundamente impregnadas com visões de mundo religiosas
(Chatterjee 1986; Chakrabarty 2000, p. 4). Além do mais, em termos da base moral da
crítica da modernidade, muitos autores discutiram criticamente a partir de perspectivas
religiosas – por exemplo, do Islamismo – sobre as consequências nocivas da modernização
ocidental, especialmente em relação a sua secularização da esfera pública (veja, por
exemplo, Euben 1997). Do mesmo modo, bem no coração do chamado Ocidente – as
Américas – existe uma consolidada tradição de pensamento sobre a libertação negra que
forneceu críticas sociais radicais sobre a relação entre escravidão e a subjetividade
moderna, que, no entanto, foram feitas no léxico religioso da profecia e redenção (Cone
1970; Bogues 2003). Assim, quando o ponto de vista é transportado para fora da sombra
idealizada da história europeia, profanidade não é o único registro que facilita a examinação
crítica da subjetividade moderna.
Questões similares emergem se consideramos a formação racial da subjetividade
moderna produzida através de projetos imperiais e do regime colonial. Na época em que a
tradição clássica da economia política se enraizou na Escócia, todo um conjunto de culturas
não europeias, sistemas de valores e comunidades políticas começaram a se tornar
homogeneizadas em identidades meta-racializadas – especificamente, “nativo”,
“primitivo”, “selvagem”, “bárbaro”, “Negro” – a serem contrastadas com a civilização
europeia – superior, mais evoluída e, principalmente, branca (Quijano 2000; Garner 2007;
Blaney and Inayatullah 2010). Os autores ingleses e escoceses da economia política clássica
e da teoria do contrato social tornaram raça convenientemente ausente em sua identificação
dos sujeitos civilizadores (Mills 1999). Porém, intelectuais que foram interpolados como
sendo algo outro que não branco e não civilizado tenderam a não fazer o mesmo. Por
exemplo, no fim do século XIX, José Martí tentou legitimar uma Cuba independente
através da referência à miscigenação de sua população. Martí postulou a identidade mestiça
(da figura do mestizo) como o verdadeiro lugar emancipatório das Américas contra ideias
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homogeneizantes como raça (raza), que eram usadas por certas elites Crioulas para
justificar sua dominação fazendo referência a uma ascendência branca e europeia (Aching
2005). O sincretismo entre os modos de vida africano e ocidental nas economias de
plantation suscita a questão se é possível encontrar uma forma pura de subjetividade
moderna dentro desse hieróglifo da própria modernidade que é os Estados Unidos. Por
outro lado, no começo do século XX, Marcus Garvey e a sua filosofia política pan-africana
transformaram um coletivo impessoal e racializado, a diáspora negra, em agente de uma
autodeterminação transnacional (Shilliam 2006).
Obviamente, a formação imperial de identidades meta-racializadas sempre se
interseccionou com a dimensão genderizada da formação de sujeitos coloniais (ver McCall
2005). Colonizadores europeus possuíam a tendência de conceder ao “selvagem” sua
própria “nobreza” especial, contanto que este selvagem mimetizasse o valor marcial ao qual
os próprios os colonizadores se submetiam. Infelizmente, a prova de tal nobreza era a
necessidade suicida de se jogar sobre os mosquetes e armas europeias, e aqueles dentre os
colonizados que decidiam por um plano de ação mais prudente (e racional!) eram tidos
como pessoas mais afeminadas, passivas e fracas. A mentalidade colonial tinha que
subverter o fato de que nem toda as sociedades “nativas” exigiam que as mulheres fossem
simples propriedades passivas das homens; reconhecer isso seria admitir que os europeus
talvez devessem aprender com os selvagens e bárbaros como balancear a autodeterminação
dos sujeitos com uma complexa divisão do trabalho. Por exemplo, intelectuais britânicos
em Aoteroa, Nova Zelândia, mapearam as complexidades, nuances e fricções das relações
de gênero nas sociedades Maori dentro de um imaginário totalmente inapropriado de um
governo patriarcal cristão e vitoriano (no geral, ver Smith 1999). Mas talvez o argumento
chave a ser feito aqui seja o de que a suposta distinção entre a esfera pública moderna do
cidadão andrógeno e a vida genderizada e afetiva privada não poderiam coexistir em uma
fundação colonial. Em vez disso, como Priya Chacko demonstra em relação à Índia, a
nação pós-colonial já vem a ser reconhecida na sociedade internacional como um corpo
feminino, genderizado (Chacko 2008).
O propósito dessa seção foi lançar luz ao fato que no contexto do regime colonial e
imperial, subjetividades comuns, personalizadas e sacras não sucumbiram à tendência
modernista de despersonalizar, individualizar e tornar profano. Em vez disso, essas
subjetividades formaram o próprio terreno de contestação da promessa moderna de
liberdade e autodeterminação para a maioria da população mundial. Dessa forma, se
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Enrique Dussel fornece uma crítica útil dessa falácia da composição. Dividindo o
mundo em centro e periferia, Dussel realiza um argumento geral de que os sujeitos
periféricos – e aqui ele nota a existência histórica de uma mudança de periferia dentro da
própria Europa – tiveram que se definir em contraposição a imagens “civilizadas” da pessoa
humana já consolidadas, mas, na posição de recém-chegados ou estrangeiros, desfrutaram
de uma perspectiva crítica a partir da qual poderiam estar melhor posicionados para
interrogar a realidade de tais imagens (Dussel 1985, p. 4). No imaginário geocultural de
Dussel, o pensamento crítico tem a mesma tendência (senão maior) de surgir da periferia
como no centro. Esse modelo não somente sugere que o pensamento da periferia é mais do
que simplesmente “derivativo” de um “original”, como também sugere que o pensamento
crítico do centro nunca pode ser realmente crítico de sua própria experiência situada se
ignorar o pensamento da periferia (Connell 2007; Walsh 2007).
Mas, como discutirei agora, não há uma rota simples ou direta em direção ao
pensamento não Ocidental, entendido como um arquivo sui generis e transparente. Eu não
desejo minimizar os obstáculos bastante pragmáticos para os acadêmicos que desejam se
engajar com esse arquivo, sejam eles problemas “mundanos” de financiamento a questões
de linguagem, onde o Inglês – e claramente não, por exemplo, o Árabe – é a língua franca
das ciências sociais (ver Mignolo 2000, p. 71; Tickner 2003, p. 301). No entanto, o
pensamento não Ocidental nunca esteve realmente ausente da Academia Ocidental; e
tampouco devemos imaginar que esse arquivo está simplesmente esperando ser
inteiramente aberto, revelando assim um mundo de descobertas intocado. Em vez disso,
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para usar dos termos de Spivak (Spivak 1988), ele já está representado – ao invés de
re-presentado – e, mais frequentemente do que não, de formas que tendem a essencializar e
a exoticizar a cultura não Ocidental.
Por exemplo, debates dentro da Academia Ocidental contribuíram em muito para a
tese de que o sucesso dos Tigres Asiáticos Orientais nos anos 1980 era devido à
preservação do Confucionismo (Bell e Chaibong 2003): em suma, “valores asiáticos” são,
pelo menos até certa medida, valores inscritos sobre a “Ásia” por acadêmicos americanos
(especialmente). Não somente sistemas de valores não Ocidentais mas também identidades
foram – em partes (mas não inteiramente) – construídas pela Academia. Elizabeth
Povinelli, por exemplo, realiza o argumento que acadêmicos australianos não indígenas
inscreveram a identidade aborígene como parte de uma cultura atemporal digna de
preservação a fim de aliviar a culpa liberal fruto de ações históricas iliberais. Isso produziu
uma situação paradoxal na qual “australianos não aborígenes desfrutam de tradições antigas
ao mesmo tempo em que suspeitam da autenticidade do sujeito aborígene. Aborígenes
australianos desfrutam de suas tradições enquanto suspeitam de sua própria autenticidade”
(Povinelli 1999, p. 31). Esses exemplos demonstram que mesmo quando a Academia
Ocidental direciona sua atenção em direção ao que está de “fora”, muitas vezes está
documentando os frutos de seu próprio trabalho (idealizado) intelectual.
Por outro lado, não se pode assumir que acadêmicos vindos de fora da Academia
Ocidental representam tradições autênticas e intocadas do pensamento não Ocidental. De
um modo geral, um corpo de pensamento se torna inscrito como “tradicional” somente
quando é ameaçado ou perturbado por corpos de pensamento em conflito. Nesse sentido,
qualquer apelo para abraçar a tradição como recurso que pode se opor à, digamos,
ocidentalização, é em si pelo menos parte do efeito da ocidentalização.4 Talvez o exemplo
mais famoso desse processo seja a adoção no fim do século XIX e começo do XX, por um
número de acadêmicos do leste asiático, da categorização eurocêntrica de suas próprias
culturas como o “outro” exótico. Esse “Orientalismo reverso” (Dallmayr 1994, p. 529) é
evidente, por exemplo, na escola de filosofia de Kyoto, na qual os intelectuais sempre
buscaram dar valor ao Oriente na ordem global em virtude de sua complementaridade
negativa (espiritual) aos valores iluministas (racionais) do Ocidente (Jones 2003, p. 143).
Além disso, os conceitos desenvolvidos por intelectuais não ocidentais para guiar na
criação de sociedades pós-coloniais foram comumente herdados dos projetos colonizadores
de sociedade e estado. Por exemplo, tem sido amplamente documentado como, através de
uma variedade de diferentes discursos históricos, o conceito europeu de estado moderno
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Embora o caso japonês possa ser bastante particular, ele, no entanto, nos alerta para o
fato de que o roteiro Ocidental da modernidade nunca foi simplesmente escrito em um papel
em branco para ser internalizado pela mente não Ocidental. Intelectuais não Ocidentais (e,
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A ideia da teoria como uma viagem não é de nenhum modo algo novo. Na Grécia
antiga e no pensamento Islâmico, o ato de teorizar era intimamente associado com o ato de
viajar e de se deslocar de seu próprio contexto para ganhar uma perspectiva crítica sobre
aquele mesmo contexto (Euben 2004). Que a viagem deve ser um ato constitutivo na
produção de conhecimento se tornou algo especialmente importante à antropologia nos
últimos anos. Afinal, o conhecimento etnográfico não é apenas produzido na relação direta
entre observador e observado, mas como também é produzido pelas “viagens” – práticas e
conceituais – do interlocutor (Clifford 1992). Em suma, o “informante nativo”, para que
conseguisse se comunicar com os dois lados, tem sua própria história de encontro e
descoberta. Dessa forma, a produção de conhecimento sobre a diferença cultural e social
nunca é uma comparação entre entidades distintas; é em si, uma prática – uma produção –
de interrelações.
Como Said demonstrou, a origem e destinação de uma ideia viajante pode ocupar
contextos sociopolíticos bastante diferentes, e dependendo das condições de aceitação ou
tolerância de uma ideia “exterior”, o significado e uso da ideia pode ser transformado a
partir dessa incorporação (Said 1984, pp. 226–7). E se ideias viajam, então elas requerem
tradução. Tradução é também um ato gerador de produção de conhecimento, ao invés de
apenas um ato técnico de produção de uma fidelidade filológica de significado ao longo de
léxicos distintos. Ideias não “viajam” por conta própria, mas são sempre carregadas por
projetos políticos (Liu 2002, p. 324; Young 2002, pp. 408–9). ‘A questão’, Lydia Liu
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pensamento não Ocidental tem sido situado em uma gama de experiências geopolíticas e
geoculturais variadas. No entanto, em terceiro lugar, devemos nos lembrar que essa
diferença nunca foi ilimitada, de tal maneira que o que se exige é listar um conjunto de
particularidades culturais abertas. Não podemos incorporar o arquivo do pensamento não
Ocidental na nossa Academia através de uma abordagem liberal. Ao invés disso, devemos
nos lembrar que os contextos variados nos quais o pensamento não Ocidental produziu
conhecimento sobre a modernidade, esteve sempre vinculado a constelações de poder que
impuseram uma ordem colonial e imperial global. Dessa forma, no imaginário
histórico-geográfico, o Ocidente e não Ocidente operam como posicionamentos já
produzidos por inúmeras tentativas intelectuais de mapear e cartografar uma passagem pela
experiência global e a variedade da modernidade colonial. O pensamento não Ocidental é,
portanto, constitutivo do pensamento global sobre a modernidade.
Orientar-se em direção ao lado não Ocidental dessa relação pode até permitir uma
reflexão crítica mais adequada sobre a experiência Ocidental ideal da modernidade, embora
isso não deva ser considerado o propósito supremo de tal reorientação. Para este propósito,
no entanto, é conveniente considerar os engajamentos no pensamento moderno europeu
com o conceito de “outro” (Bernestein 1991, p. 3; Neumann 1999, p. 1). Dois filósofos
imediatamente se destacam, que construíram a partir da tradição fenomenológica do
pensamento continental (especialemente de Edmund Husserl e Martin Heidegger),
nomeadamente, Hans-Georg Gadamer e Emmanuel Lévinas. O trabalho de Gadamer sobre
a “hermenêutica filosófica” busca tornar explícito o situacionismo por meio do qual já se
recebe os significados dos objetos de investigação. O diálogo é a chave para tornar visível o
“horizonte” da experiência na medida em que permite uma expansão desse mesmo
horizonte a um ponto onde deve se “fundir” com horizontes de experiência diferentemente
situados (Gadamer 2004, pp. 301–5). Aqui reside a contribuição de Gadamer a uma ética da
diferença, isto é, que não deveria haver nenhum fechamento da compreensão de si para que
sempre exista espaço para compreender o self nos termos de uma relação ética com o outro
(por exemplo, Dallmayr 1996; pp. 41–8, Shapcott 2001). De outra forma, Lévinas coloca
uma alteridade bem mais radical entre o eu (self) e o outro. Uma vez que o outro nunca
pode ser conhecido por e em si mesmo, não se pode fazer do outro um objeto de si. Dessa
forma, subjetividade é essencialmente ética: a construção do self é ao mesmo tempo uma
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Conclusão
Notas
1 Aqui devemos pensar apenas no tipo ideal instrumental-racional de Max Weber de autoridade política
moderna e na explicação de Karl Marx da alienação na relação social capitalista. Ver Sayer (1991).
2 Sobre os termos ‘livre de contexto’ (‘context-free’) e ‘sensível ao contexto’ (‘context-sensitive’) ver
Ramanujan (1990) e a simpática crítica oferecida por Dallmayr (1994).
3 Até mesmo Habermas recentemente qualificou – se não rejeitou totalmente – sua própria tese de
secularização (Habermas 2008). Linklater (2005) mostra os efeitos do pressuposto habermasiano na teoria
de RI quanto afirma que, embora comunidades não Ocidentais tenham, em princípio, os recursos para
embarcar no estilo habermasiano de política dialógica, é a civilização Ocidental que fornece as condições
ideais. Para uma resposta efetiva, ver Shani (2007).
4 Sobre a invenção das tradições na filosofia chinesa ver Defoort (2001).
5 Para uma crítica desse nicho ver Dirlik (1997). Para uma recuperação crítica do projeto pós-colonial ver
Young (2002).
6 Clifford é bastante consciente sobre esse ponto, ver, por exemplo, Clifford (1992, p. 103).
7 Sobre questões de tradução envolvendo a Bíblia e o colonialismo ver Sugirtharajah (2001).
8 Para exemplos de como Lévinas costumava problematizar, produtivamente, os discuros da geopolítica ver
Campbell (1999) e Howitt (2002).
9 Ver, porém, Dallmayr (1996, pp. 41–6) para comentários sobre o desenvolvimento decorrente de um
entendimento mais antagonista da relação self-outro feito por Gadamer.
10 Sobre isso deve ser adicionada a influência do Maoísmo sobre a esquerda francesa. Em relação a
Althusser, ver Elliot (2006).
11 Ver, respectivamente, o trabalho pós-colonial Said e Spivak.
12 O colonialism alemão é, aqui, uma consideração importante na medida em que foi empreendido como
uma reação ao sentimento da elite alemã de ‘atraso’ e ‘falta de vanguarda’ com relação à própria
civilização europeia. Sobre a especificidade do discurso colonial alemão, ver Berman (1998).
13 Ver capítulo 5.
14 Meu próprio trabalho esteve, pelo menos parcialmente, enredado nessas dicotomias. Ver, por exemplo,
Shilliam (2009, p. 201).