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2 O perigoso porém inevitável terreno do não


Ocidente
Robbie Shilliam

Introdução

Neste capítulo eu argumento que uma orientação – ou, talvez, reorientação – em


direção ao pensamento não Ocidental é um engajamento arriscado, porém inevitável se os
acadêmicos de Relações Internacionais desejam explorar o contexto global da modernidade.
Eu começo chamando atenção para as insuficiências que são reveladas nos entendimentos
canônicos sobre a subjetividade moderna apresentados pela Academia Ocidental quando
caminho(s) coloniais e imperiais para a modernidade são trazidos para o plano de frente da
investigação. Contudo, eu então exploro as significativas dificuldades epistemológicas que
acompanham o engajamento com um arquivo de pensamento não Ocidental que, pelo
menos em parte, foi construído por meio de formas colonialmente induzidas de representar
os “outros”. Em seguida, eu exploro algumas abordagens que podem escapar da tendência
de essencializar e/ou exoticizar o pensamento não Ocidental na modernidade,
especificamente a “teoria das viagens” (​travelling theory​) e “modernidade em tradução”
(​translating modernity​). O que é necessário, eu argumento, é um engajamento sério com o
pensamento não Ocidental que seja, não obstante, sensível ao modo como o imperialismo e
colonialismo esculpiram ​o terreno geocultural e geopolítico do Ocidente e do não-Ocidente.
Tendo feito esse “retorno” ao não-Ocidente eu sugiro como, a partir dessa perspectiva, o
ideal da modernidade ocidental pode ser criticamente (re)examinado de forma a fornecer
uma apreciação mais adequada do contexto global da modernidade, modernidade
globalizada por meio de – e enquanto – projetos coloniais e imperiais.

A inadequação do pensamento Ocidental

Nas ciências sociais, modernidade se refere a uma condição de existência social que é
radicalmente diferente de todas as formas passadas da experiência humana que são
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categorizadas como “tradicional” e/ou “primitiva”. Embora as RI seja amplamente uma


disciplina derivativa da sociologia e antropologia quando se trata dos debates sobre
modernidade, esses debates – e eles possuem raízes históricas que datam do pensamento
europeu do século XVII – forneceram em grande medida o contexto dentro do qual a teoria
das RI se desenvolveu (para uma visão geral sobre o assunto ver Shilliam 2010). É sobre a
questão da modernidade que os debates mais influentes foram realizados em relação a
questões de continuidade e mudança dentro de, e entre, sociedades e questões acerca de
sequências e formas contrastantes de mudança. Além disso, tais debates levantaram
questões epistemológicas sobre como explicar a ordem política formada no âmago da
anomia ou alienação do sujeito social, que tipo de produção de conhecimento esse sujeito
participa quando é impersonalizado, dessacralizado e individualizado, e qual forma de
produção de conhecimento é apropriada para entender essa forma moderna de subjetividade
(​subjecthood)​.1​
É difícil subestimar a influência que esses debates exerceram na Academia Ocidental.
Mas, para os propósitos deste capítulo, talvez o efeito mais chamativo tenha sido a
construção de um consenso que o conhecimento livre de contexto é universalmente válido
e, por isso, conhecimento completamente moderno, ao contrário de sistemas de pensamento
sensíveis ao contexto, que permanecem “tradicionais”, ou seja, personalizados,
comunalizados, sacralizados e, portanto, “preconceituosos”. Tal distinção introduz na
avaliação sobre a produção de conhecimento uma circunscrição temporal e geopolítica,
nomeadamente o Ocidente moderno versus o tradicional não-Ocidente.​2 Sobre essa
distinção, e através dessa clivagem geocultural, o cânone do pensamento sócio-científico
legítimo na Academia Ocidental é construído e policiado. Confrontado com essa distinção,
o pensamento não Ocidental pode até ser considerado um objeto legítimo da investigação
moderna, mas não uma fonte a partir da qual construir conhecimento legítimo sobre a
subjetividade moderna.
Um exemplo profético dessa divisão geocultural da produção de conhecimento pode
ser encontrado no recente renascimento dos questionamentos sobre os efeitos políticos das
crenças religiosas. A divisão entre maneiras espirituais e profanas de se conhecer o mundo
é em grande parte dependente de um imaginário geocultural colonial, bastante evidente na
tradicional comparação do “pensamento” espiritual indiano com a “filosofia” Ocidental
racional (Krishna 1988). Muito do pensamento sobre modernidade na Academia Ocidental
– tanto na canônica como na crítica – aborda a crença religiosa como já tendo internalizado
a expulsão kantiana da religião da razão pragmática (Hurd 2004). A ética do discurso de
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Jürgen Habermas talvez seja a reafirmação mais forte dessa dicotomia. Habermas assume
que ​o p​ roblema de perseguir uma vida ética moderna surge da perda da base religiosa das
tradições morais e da confrontação com a existência profana (Habermas 1998).​3
E, no entanto, muitos caminhos pelos quais as subjetividades modernas foram
formadas não exibem nenhum do “desencantamento” previsto pela filosofia moral de
Habermas. Por exemplo, um conjunto de acadêmicos explorou como o governo colonial
britânico negou o desenvolvimento de uma esfera pública secular indiana, o que
paradoxalmente levou à cultivação de uma identidade nacional indiana “moderna” dentro
de esferas pessoais profundamente impregnadas com visões de mundo religiosas
(Chatterjee 1986; Chakrabarty 2000, p. 4). Além do mais, em termos da base moral da
crítica da modernidade, muitos autores discutiram criticamente a partir de perspectivas
religiosas – por exemplo, do Islamismo – sobre as consequências nocivas da modernização
ocidental, especialmente em relação a sua secularização da esfera pública (veja, por
exemplo, Euben 1997). Do mesmo modo, bem no coração do chamado Ocidente – as
Américas – existe uma consolidada tradição de pensamento sobre a libertação negra que
forneceu críticas sociais radicais sobre a relação entre escravidão e a subjetividade
moderna, que, no entanto, foram feitas no léxico religioso da profecia e redenção (Cone
1970; Bogues 2003). Assim, quando o ponto de vista é transportado para fora da sombra
idealizada da história europeia, profanidade não é o único registro que facilita a examinação
crítica da subjetividade moderna.
Questões similares emergem se consideramos a formação racial da subjetividade
moderna produzida através de projetos imperiais e do regime colonial. Na época em que a
tradição clássica da economia política se enraizou na Escócia, todo um conjunto de culturas
não europeias, sistemas de valores e comunidades políticas começaram a se tornar
homogeneizadas em identidades meta-racializadas – especificamente, “nativo”,
“primitivo”, “selvagem”, “bárbaro”, “Negro” – a serem contrastadas com a civilização
europeia – superior, mais evoluída e, principalmente, branca (Quijano 2000; Garner 2007;
Blaney and Inayatullah 2010). Os autores ingleses e escoceses da economia política clássica
e da teoria do contrato social tornaram raça convenientemente ausente em sua identificação
dos sujeitos civilizadores (Mills 1999). Porém, intelectuais que foram interpolados como
sendo algo outro que não branco e não civilizado tenderam a não fazer o mesmo. Por
exemplo, no fim do século XIX, José Martí tentou legitimar uma Cuba independente
através da referência à miscigenação de sua população. Martí postulou a identidade ​mestiça
(da figura do ​mestizo) ​como o verdadeiro lugar emancipatório das Américas contra ideias
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homogeneizantes como ​raça (raza), ​que eram usadas por certas elites Crioulas para
justificar sua dominação fazendo referência a uma ascendência branca e europeia ​(Aching
2005). O sincretismo entre os modos de vida africano e ocidental nas economias de
plantation suscita a questão se é possível encontrar uma forma pura de subjetividade
moderna dentro desse hieróglifo da própria modernidade que é os Estados Unidos. Por
outro lado, no começo do século XX, Marcus Garvey e a sua filosofia política pan-africana
transformaram um coletivo impessoal e racializado, a diáspora negra, em agente de uma
autodeterminação transnacional (Shilliam 2006).
Obviamente, a formação imperial de identidades meta-racializadas sempre se
interseccionou com a dimensão genderizada da formação de sujeitos coloniais (ver McCall
2005). Colonizadores europeus possuíam a tendência de conceder ao “selvagem” sua
própria “nobreza” especial, contanto que este selvagem mimetizasse o valor marcial ao qual
os próprios os colonizadores se submetiam. Infelizmente, a prova de tal nobreza era a
necessidade suicida de se jogar sobre os mosquetes e armas europeias, e aqueles dentre os
colonizados que decidiam por um plano de ação mais prudente (e racional!) eram tidos
como pessoas mais afeminadas, passivas e fracas. A mentalidade colonial tinha que
subverter o fato de que nem toda as sociedades “nativas” exigiam que as mulheres fossem
simples propriedades passivas das homens; reconhecer isso seria admitir que os europeus
talvez devessem aprender com os selvagens e bárbaros como balancear a autodeterminação
dos sujeitos com uma complexa divisão do trabalho. Por exemplo, intelectuais britânicos
em Aoteroa, Nova Zelândia, mapearam as complexidades, nuances e fricções das relações
de gênero nas sociedades Maori dentro de um imaginário totalmente inapropriado de um
governo patriarcal cristão e vitoriano (no geral, ver Smith 1999). Mas talvez o argumento
chave a ser feito aqui seja o de que a suposta distinção entre a esfera pública moderna do
cidadão andrógeno e a vida genderizada e afetiva privada não poderiam coexistir em uma
fundação colonial. Em vez disso, como Priya Chacko demonstra em relação à Índia, a
nação pós-colonial já vem a ser reconhecida na sociedade internacional como um corpo
feminino, genderizado (Chacko 2008).

O propósito dessa seção foi lançar luz ao fato que no contexto do regime colonial e
imperial, subjetividades comuns, personalizadas e sacras não sucumbiram à tendência
modernista de despersonalizar, individualizar e tornar profano. Em vez disso, essas
subjetividades formaram o próprio terreno de contestação da promessa moderna de
liberdade e autodeterminação para a maioria da população mundial. Dessa forma, se
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estamos preocupados em investigar o contexto global da modernidade, isto é, da


modernidade globalizada através de – e enquanto – projetos coloniais e imperiais, nenhuma
análise que faça a distinção categórica entre características da subjetividade pré-moderna e
da moderna é adequada. Isso não significa que Marx, Weber e Habermas sejam de alguma
forma irrelevantes ao entendimento do contexto global da modernidade. Significa que nós
devemos ser cuidadosos para não assumir que categorizações e concepções não Ocidentais
sobre a subjetividade moderna são insofisticadas ou até mesmo errôneas simplesmente
porque elas colidem com o senso comum epistemológico da Academia Ocidental. Em vez
disso, tal embate revela a falácia da composição através da qual uma modernidade
Ocidental idealizada é confundida com a modernidade global.

Enrique Dussel fornece uma crítica útil dessa falácia da composição. Dividindo o
mundo em centro e periferia, Dussel realiza um argumento ​geral ​de que os sujeitos
periféricos – e aqui ele nota a existência histórica de uma mudança de periferia dentro da
própria Europa – tiveram que se definir em contraposição a imagens “civilizadas” da pessoa
humana já consolidadas, mas, na posição de recém-chegados ou estrangeiros, desfrutaram
de uma perspectiva crítica a partir da qual poderiam estar melhor posicionados para
interrogar a realidade de tais imagens (Dussel 1985, p. 4). No imaginário geocultural de
Dussel, o pensamento crítico tem a mesma tendência (senão maior) de surgir da periferia
como no centro. Esse modelo não somente sugere que o pensamento da periferia é mais do
que simplesmente “derivativo” de um “original”, como também sugere que o pensamento
crítico do centro nunca pode ser realmente crítico de sua própria experiência situada se
ignorar o pensamento da periferia (Connell 2007; Walsh 2007).

Os perigos de representar o não Ocidente

Mas, como discutirei agora, não há uma rota simples ou direta em direção ao
pensamento não Ocidental, entendido como um arquivo ​sui generis e​ transparente. Eu não
desejo minimizar os obstáculos bastante pragmáticos para os acadêmicos que desejam se
engajar com esse arquivo, sejam eles problemas “mundanos” de financiamento a questões
de linguagem, onde o Inglês – e claramente não, por exemplo, o Árabe – é a língua franca
das ciências sociais (ver Mignolo 2000, p. 71; Tickner 2003, p. 301). No entanto, o
pensamento não Ocidental nunca esteve realmente ausente da Academia Ocidental; e
tampouco devemos imaginar que esse arquivo está simplesmente esperando ser
inteiramente aberto, revelando assim um mundo de descobertas intocado. Em vez disso,
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para usar dos termos de Spivak (Spivak 1988), ele já está representado – ao invés de
re-presentado – e, mais frequentemente do que não, de formas que tendem a essencializar e
a exoticizar a cultura não Ocidental.
Por exemplo, debates dentro da Academia Ocidental contribuíram em muito para a
tese de que o sucesso dos Tigres Asiáticos Orientais nos anos 1980 era devido à
preservação do Confucionismo (Bell e Chaibong 2003): em suma, “valores asiáticos” são,
pelo menos até certa medida, valores inscritos sobre a “Ásia” por acadêmicos americanos
(especialmente). Não somente sistemas de valores não Ocidentais mas também identidades
foram – em partes (mas não inteiramente) – construídas pela Academia. Elizabeth
Povinelli, por exemplo, realiza o argumento que acadêmicos australianos não indígenas
inscreveram a identidade aborígene como parte de uma cultura atemporal digna de
preservação a fim de aliviar a culpa liberal fruto de ações históricas iliberais. Isso produziu
uma situação paradoxal na qual “australianos não aborígenes desfrutam de tradições antigas
ao mesmo tempo em que suspeitam da autenticidade do sujeito aborígene. Aborígenes
australianos desfrutam de suas tradições enquanto suspeitam de sua própria autenticidade”
(Povinelli 1999, p. 31). Esses exemplos demonstram que mesmo quando a Academia
Ocidental direciona sua atenção em direção ao que está de “fora”, muitas vezes está
documentando os frutos de seu próprio trabalho (idealizado) intelectual.
Por outro lado, não se pode assumir que acadêmicos vindos de fora da Academia
Ocidental representam tradições autênticas e intocadas do pensamento não Ocidental. De
um modo geral, um corpo de pensamento se torna inscrito como “tradicional” somente
quando é ameaçado ou perturbado por corpos de pensamento em conflito. Nesse sentido,
qualquer apelo para abraçar a tradição como recurso que pode se opor à, digamos,
ocidentalização, é em si pelo menos parte do efeito da ocidentalização.​4 Talvez o exemplo
mais famoso desse processo seja a adoção no fim do século XIX e começo do XX, por um
número de acadêmicos do leste asiático, da categorização eurocêntrica de suas próprias
culturas como o “outro” exótico. Esse “Orientalismo reverso” (Dallmayr 1994, p. 529) é
evidente, por exemplo, na escola de filosofia de Kyoto, na qual os intelectuais sempre
buscaram dar valor ao Oriente na ordem global em virtude de sua complementaridade
negativa (espiritual) aos valores iluministas (racionais) do Ocidente (Jones 2003, p. 143).
Além disso, os conceitos desenvolvidos por intelectuais não ocidentais para guiar na
criação de sociedades pós-coloniais foram comumente herdados dos projetos colonizadores
de sociedade e estado. Por exemplo, tem sido amplamente documentado como, através de
uma variedade de diferentes discursos históricos, o conceito europeu de estado moderno
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permaneceu no pensamento indiano como um conceito normativo essencial – apesar de


enigmático (Nandy 1988, p. xi; Chakrabarty 2000, p. 42; Kaviraj 2005). Nos dias de hoje,
abordagens norte-americanas das RI tendem a dominar academias nacionais ao redor do
mundo (ver Tickner and Waever 2009). E, claro, muitos acadêmicos que possuem filiações
com sociedades não Ocidentais, ou são oriundos de comunidades racializadas endógenas ao
Ocidente, são eles mesmos vigilantes na Academia Ocidental, especialmente, mas não
exclusivamente, por meio da construção de um nicho de estudos pós-coloniais.​5 Apesar
disso, é perturbador notar que esses intelectuais são comumente tanto exotizados como
curiosidades ou desmerecidos como faquires. A ferida da “dupla consciência” de Dubois
precisa ainda ser curada (Gilroy 1993).
Existe, portanto, uma séria miopia envolvida na representação do arquivo do
pensamento não Ocidental como autêntico e intocado, quando na verdade ele foi construído
ao longo de séculos de relações coloniais e imperiais. Mas talvez o maior efeito dessa
representação seja ela ignorar a complexidade e heterogeneidade dos mundos sociais e
visões de mundo que as forças imperiais encontraram, nas quais, e contra as quais, projetos
coloniais procederam. Além disso, como eu mencionei, a evolução das disciplinas na
Academia Ocidental dependeu em grande medida do colapso dessa heterogeneidade em
uma hierarquia grosseira da condição humana, mapeada, como sempre, em um imaginário
geocultural: o selvagem, bárbaro e civilizado. E se esse imaginário moldou a política
imperial e colonial, ele também determinou as expectativas de que tipo de capacidades de
autorreflexão poderiam ser encontradas entre certas populações no mundo.
Tome, como exemplo, a celebrada tese de Edward Said sobre o Orientalismo.
Orientalismo, para Said, é a forma de produção de conhecimento sobre o “outro” que
constrói um Oriente despótico, sensual e estagnado em oposição ao “eu” (s​elf) europeu, a
persona tipificada pela razão, iluminismo e progresso (Said 1994). O desenvolvimento do
método comparativo nas universidades europeias dos séculos XVIII e XIX, se baseou sobre
as distinções que o Orientalismo permitiu que fossem feitas entre áreas, ao mesmo tempo
em que permitia que tais distinções fossem classificadas por meio de uma narrativa
universal de progresso humano. De outra forma, a construção intelectual da África foi, de
longe, um processo bem mais extremo de “alterização”. Estudos comparativos fracassaram
em atribuir até mesmo a glória desbotada da civilização antiga à África, e todas as coisas
africanas foram forjadas como o outro absoluto – o domínio animalístico contraposto às
terras quintessencialmente humanas da Europa (Mudimbe 1988). Hegel, em seu momento
mais caridoso, atribuiu uma infância permanente aos africanos; 150 anos de aprendizado
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depois, Huntington, em seu momento mais caridoso, concedeu a “possibilidade” de algo


chamado civilização africana (Huntington 1996). O silêncio sobre a África na tradição
europeia de estudos comparativos, nesse sentido, fala por si, e conjuntos recentes de
estudos comparativos ainda, lamentavelmente, sub-representam o pensamento africano
sobre a modernidade (veja, por exemplo, a seleção em Parel and Keith 1992; Jung 2002).
Por outro lado, se várias regiões foram historicamente integradas no imaginário
geocultural europeu (e, consecutivamente, americano) de maneira diferente, da mesma
forma variaram os modos geopolíticos de integração, indo do domínio indireto através de
principados no Sul da Ásia, à colonização direta e toda venda e tráfico de africanos para as
Américas como parte da criação de uma “modernidade atlântica”. A fronteira colonial
esteve (e está) sempre mudando, sendo turva e composta de múltiplas divisões. É
importante desvendar essa variedade de processos integrativos quando se busca esclarecer o
situacionismo particular a partir do qual intelectuais não ocidentais encontraram de forma
crítica a modernidade global.
Para muitos intelectuais nas Américas, foi a ambiguidade em identificar as Américas
com a Europa que levou à investigação da modernidade. Walter Mignolo vai longe a ponto
de argumentar que a tese do Orientalismo de Said participa na oclusão da produção colonial
precedente do Ocidente europeu, que, a partir da expansão Ibérica pelo Atlântico, passou a
incluir as Américas como fronteira do “Ocidente” europeu (Mignolo 2000, pp. 55–60).
Para os seus conterrâneos europeus, os colonialistas do Novo Mundo eram rapidamente
considerados como contaminados pela selvageria do Novo Mundo (supostamente
encontrada tanto entre os ameríndios como importada com a escravidão atlântica) (ver
Pagden and Canny 1989; Garraway 2005). No entanto, Creolização (​Creolization), u​ m
conceito que aborda o processo de “tornar nativo” ao Novo Mundo e que foca nas
ambiguidades oriundas da identificação geocultural, foi desenvolvida como uma forma
emancipatória de formação do sujeito moderno por pensadores caribenhos (Glissant 1989;
Bernabé ​et al.​ 1990).
Por outro lado, bem distantes das economias coloniais da plantation estão aquelas
regiões que podem ser denominadas de “quase colonizadas”. Aqui, a ameaça da expansão
imperial Ocidental enquadrou os engajamentos intelectuais de uma forma específica,
notadamente via a identificação da modernidade europeia como recurso ​e ​como uma
ameaça. Do tempo de Alexander II em diante, parte da intelligentsia russa abraçou como
sendo o destino de seu desenvolvimento reproduzir a história recente da Europa Ocidental,
com o intuito de evitar o pântano “asiático”. No entanto, os ‘eslavófilos’, com sua
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afirmação da singularidade e superioridade do espírito comunitário eslavo, preferiam a


ideia de um caminho “separado” para a Rússia (Bassin 1991, p. 9). Após as Guerras do
Ópio com a Grã-Bretanha, os intelectuais chineses lutaram à sua maneira com a
necessidade de se enquadrar, mas sem ser assimilado, pelo imperialismo Ocidental. A
máxima ​Zhongxue weiti, Xixue weiyong ​(aprendizado chinês como essência, aprendizado
Ocidental como meio), ressoa até hoje na tentativa de construir uma teoria das RI com
“características chinesas” (Yeh 1998, Chan 1999, p. 173).
O objetivo dessa seção foi esboçar os perigos de representar o pensamento não
Ocidental quando seu arquivo foi construído tão intimamente por meio de diversos projetos
imperiais e do domínio colonial. Diante de tais desafios epistemológicos, qualquer tentativa
de engajar com o pensamento não Ocidental pode parecer tragicamente condenada a
meramente reproduzir a imagem do mundo dos colonizadores. E, contudo, mesmo com a
melhor das intenções, o pensamento não Ocidental não pode ser tão facilmente descartado.
A Academia Ocidental considera o arquivo como sendo, de modo geral, o repositório de
conhecimento derivativo, precário ou exótico, por mais que ele contenha um pensamento
originalmente situado sobre as experiências do imperialismo e colonialismo, e embora a
valorização da Academia de seu próprio arquivo seja em parte uma exigência dos mesmo
processos de imperialismo e colonialismo. Porém, o mais importante, essas experiências
continuam a reverberar ​nas experiências vividas por sujeitos de todo o mundo no presente
(em vários graus de intimidade, obviamente). Portanto, reconhecer a natureza perigosa da
jornada (de volta) ao não Ocidente não deve ser confundida com uma liminar para
permanecer em casa.
Para resumir o argumento até agora: mesmo tendo reconhecido a co-constituição dos
arquivos do pensamento Ocidental e não Ocidental através de (da ameaça de) relações de
dominação colonial, e mesmo depois de ter problematizado a autenticidade, a natureza
essencialista e o caráter intocado do próprio arquivo não Ocidental, é crucial que não
ignoremos o pensamento não Ocidental como uma coleção de perspectivas situadas sobre a
condição moderna. Uma vez que é sobre esse terreno ​desigual do não Ocidental
geo-intelectual – de forma alguma um mundo estranho, mas tampouco um bem comum
global – que muitos dos engajamentos e problematizações mais profundas sobre a
modernidade foram produzidos. Ao desmerecer o pensamento não Ocidental como um
arquivo epistemologicamente suspeito corre-se o risco de apagar a dimensão global e
colonial da formação da modernidade, voltando assim a um eurocentrismo falho. No que
agora se segue, Eu aponto para algumas estratégias que podem permitir uma navegação
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mais adequada dessa jornada perigosa, porém, inevitável.

Reorientação rumo ao não Ocidente

Para começar, os contextos históricos e situados do pensamento não Ocidental nunca


podem ser perdidos de vista. O pensamento não Ocidental deve ser abordado como partes
de uma relação de um processo de dominação. Para este fim, no entanto, dominação não
pode ser entendida como uma relação de mão única que compreende a exploração de uma
vítima passiva (Dunch 2002). Afinal, a relação colonial sempre teve um efeito negativo
sobre o colonizador – e sobre a cultura da “pátria mãe” – bem como sobre o colonizado
(Nandy 1988; Memmi 1990). Com diferentes impactos, e em graus diferentes, ambos
sujeitos da relação colonial podem ser considerados “vítimas”. E, se esse for o caso,
segue-se que tanto o colonizador quanto o colonizado – de novo, diferencialmente – podem
ser considerados agentes da transformação ou, pelo menos, detentores da habilidade de
raciocinar criativamente sobre o modo de transformação.

De fato, é simplesmente impossível explicar qualquer engajamento do não Ocidente


com o Ocidente como sendo uma dominação pura e simplesmente colonial. Por exemplo, e
para retornar ao domínio do “quase-colonizado”, o Japão não foi diretamente dominado
pelo Ocidente até o fim da Segunda Guerra Mundial, e não até tentar seu próprio projeto
colonial na Ásia, inspirado no projeto Ocidental – mesmo que substancialmente diferente
(Beasley 1987, Chapter 1) – ao mesmo tempo em que tentava adentrar, em pé de igualdade
racial, na “sociedade internacional” (através da Liga da Nações) dominada pelo Ocidente.
A “Escola de Kyoto” de filosofia no Japão, que se formou em torno de Nishida Kitarô na
primeira metade do século XX, tentou abordar de forma crítica o lugar – e missão
ético-política – do Japão num mundo dominado pelo Ocidente. Para entender “o estar no
mundo” japonês, os intelectuais da escola de Kyoto mostraram um interesse nos trabalhos
de Heidegger sobre fenomenologia (no geral, ver Parkes 1987). Porém, seria então difícil
alegar que a teoria alemã foi imposta sobre a Academia japonesa em um ato de dominação
cultural, tampouco é o caso que através desse engajamento a fenomenologia de Kyoto tenha
se tornado um derivativo “Heideggeriano”.

Embora o caso japonês possa ser bastante particular, ele, no entanto, nos alerta para o
fato de que o roteiro Ocidental da modernidade nunca foi simplesmente escrito em um papel
em branco para ser internalizado pela mente não Ocidental. Intelectuais não Ocidentais (e,
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claro, as populações em grande medida), em vez de assimilarem a mensagem, copiaram esse


roteiro – por comando, necessidade, prelação ou inventividade – em narrativas existentes
visando propósitos pragmáticos, políticos e/ou éticos diferentes daqueles para os quais o
roteiro foi planejado.
Portanto, quando engajando com o pensamento não Ocidental nós devemos não
somente reconhecer as relações concretas de dominação por meio das quais tal pensamento
foi tanto criado quanto recebido, mas também devemos reconhecer a agência criativa que
foi desenvolvida com o intuito de construir entendimentos de uma modernidade imperial e
colonialmente induzida.
Através, então, de quais enquadramentos conceituais pode ser possível para a
Academia Ocidental adentrar – ou, talvez, deixar e retornar ao – terreno do pensamento não
Ocidental? Dois possíveis enquadramentos emergiram nos últimos anos: “teoria viajante”
(​travelling theory)​ e “tradução” (​translation).

A ideia da teoria como uma viagem não é de nenhum modo algo novo. Na Grécia
antiga e no pensamento Islâmico, o ato de teorizar era intimamente associado com o ato de
viajar e de se deslocar de seu próprio contexto para ganhar uma perspectiva crítica sobre
aquele mesmo contexto (Euben 2004). Que a viagem deve ser um ato constitutivo na
produção de conhecimento se tornou algo especialmente importante à antropologia nos
últimos anos. Afinal, o conhecimento etnográfico não é apenas produzido na relação direta
entre observador e observado, mas como também é produzido pelas “viagens” – práticas e
conceituais – do interlocutor (Clifford 1992). Em suma, o “informante nativo”, para que
conseguisse se comunicar com os dois lados, tem sua própria história de encontro e
descoberta. Dessa forma, a produção de conhecimento sobre a diferença cultural e social
nunca é uma comparação entre entidades distintas; é em si, uma prática – uma produção –
de interrelações.

Como Said demonstrou, a origem e destinação de uma ideia viajante pode ocupar
contextos sociopolíticos bastante diferentes, e dependendo das condições de aceitação ou
tolerância de uma ideia “exterior”, o significado e uso da ideia pode ser transformado a
partir dessa incorporação (Said 1984, pp. 226–7). E se ideias viajam, então elas requerem
tradução. Tradução é também um ato gerador de produção de conhecimento, ao invés de
apenas um ato técnico de produção de uma fidelidade filológica de significado ao longo de
léxicos distintos. Ideias não “viajam” por conta própria, mas são sempre carregadas por
projetos políticos (Liu 2002, p. 324; Young 2002, pp. 408–9). ‘A questão’, Lydia Liu
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perspicazmente argumenta, ‘não é se a tradução entre culturas é possível – as pessoas


fazem isso de qualquer forma – ou se o outro é passível de ser conhecido, ou ainda se um
texto incompreensível é decifrável, mas quais propósitos ou necessidades práticos levam
um etnógrafo a perseguir a tradução cultural’ (Liu 2002, p. 306). Aqui, a própria questão
prática da natureza da dominação colonial e da criação do “terreno” do pensamento político
não Ocidental reemerge. Assim, em vez de assumir a tradução como sendo uma busca
predominantemente “cerebral” circunscrita ao estrato privilegiado de agentes intrometidos
(imigrantes, intelectuais e outros), nós devemos entender a tradução como funcionando de
forma mais constitutiva na reforma ou transformação estrutural das sociedades e
cultJuntando as vertentes do argumento realizado até o momento, eu afirmaria que a
modernidade não é somente um ato de assimilação de significados e práticas, tampouco
trata-se apenas de um ato de resistência. Em vez disso, dominação, resistência, apropriação
e transformação devem ser entendidas como congenitamente entrelaçadas nesse momento
de produção de conhecimento, e esse entrelaçamento como normalmente gerando novos
significados sobre categorias e conceitos “modernos”. A complexidade desse aspecto da
produção de conhecimento exclui qualquer descrição simplista e universal do pensamento
não Ocidental como sendo apenas uma tradição de resistência ou assimilação e, assim,
protege contra a exoticização do “outro”. O trabalho de Vincente Rafael sobre as tentativas
espanholas de converter os Tagalogue das Filipinas em cristãos é instrutivo nesse sentido
(Rafael 1988). Rafael documenta como as palavras Latinas formaram áreas de
intraduzibilidade nos vernáculos espanhóis de oração e mandamentos que eram ensinados
aos Tagalos, que então atribuíram significados indígenas “inapropriados” a essas palavras.
Submissão ao Deus espanhol podia ser então performada oralmente pelos Tagalos, mas
sem os significados de dominação que a ideia espanhola de conversão assumia. Nem
dominação, nem resistência, tampouco apropriação, definia o engajamento intelectual dos
Tagalos com o colonialismo espanhol ​in toto.​7
Assim posto, um engajamento anti ou pós-colonial da Academia Ocidental com o
pensamento não Ocidental requer o cultivo de um conjunto de sensibilidades interligadas.
Primeiro, devemos reconhecer a história determinante do impacto/dominação cultural e
política colonial/quase-colonial no pensamento moderno. Isso é dizer, de forma bastante
simples, que se o conhecimento é sempre produzido dentro de contextos particulares, então
(a ameaça do) o colonialismo é um meta-contexto no qual o conhecimento da modernidade
foi produzido. Porém, em segundo lugar, nós devemos ser, contudo, sensíveis à natureza
diferenciada das experiências do imperialismo e colonialismo. Isso significa dizer que o
13

pensamento não Ocidental tem sido situado em uma gama de experiências geopolíticas e
geoculturais variadas. No entanto, em terceiro lugar, devemos nos lembrar que essa
diferença nunca foi ilimitada, de tal maneira que o que se exige é listar um conjunto de
particularidades culturais abertas. Não podemos incorporar o arquivo do pensamento não
Ocidental na nossa Academia através de uma abordagem liberal. Ao invés disso, devemos
nos lembrar que os contextos variados nos quais o pensamento não Ocidental produziu
conhecimento sobre a modernidade, esteve sempre vinculado a constelações de poder que
impuseram uma ordem colonial e imperial ​global. ​Dessa forma, no imaginário
histórico-geográfico, o Ocidente e não Ocidente operam como posicionamentos já
produzidos por inúmeras tentativas intelectuais de mapear e cartografar uma passagem pela
experiência global e a variedade da modernidade colonial. O pensamento não Ocidental é,
portanto, constitutivo do pensamento global sobre a modernidade.

O Ocidente visto de outro lugar

Orientar-se em direção ao lado não Ocidental dessa relação pode até permitir uma
reflexão crítica mais adequada sobre a experiência Ocidental ideal da modernidade, embora
isso não deva ser considerado o propósito supremo de tal reorientação. Para este propósito,
no entanto, é conveniente considerar os engajamentos no pensamento moderno europeu
com o conceito de “outro” (Bernestein 1991, p. 3; Neumann 1999, p. 1). Dois filósofos
imediatamente se destacam, que construíram a partir da tradição fenomenológica do
pensamento continental (especialemente de Edmund Husserl e Martin Heidegger),
nomeadamente, Hans-Georg Gadamer e Emmanuel Lévinas. O trabalho de Gadamer sobre
a “hermenêutica filosófica” busca tornar explícito o situacionismo por meio do qual já se
recebe os significados dos objetos de investigação. O diálogo é a chave para tornar visível o
“horizonte” da experiência na medida em que permite uma expansão desse mesmo
horizonte a um ponto onde deve se “fundir” com horizontes de experiência diferentemente
situados (Gadamer 2004, pp. 301–5). Aqui reside a contribuição de Gadamer a uma ética da
diferença, isto é, que não deveria haver nenhum fechamento da compreensão de si para que
sempre exista espaço para compreender o ​self nos termos de uma relação ética com o outro
(por exemplo, Dallmayr 1996; pp. 41–8, Shapcott 2001). De outra forma, Lévinas coloca
uma alteridade bem mais radical entre o eu (​self)​ e o outro. Uma vez que o outro nunca
pode ser conhecido por e em si mesmo, não se pode fazer do outro um objeto de si. Dessa
forma, subjetividade é essencialmente ética: a construção do ​self é​ ao mesmo tempo uma
14

responsabilidade direcionada a manter a integridade do outro (Lévinas 1969).​8


Gadamer e Lévinas podem parecer estar fornecendo instruções importantes sobre
como situar a Academia Ocidental ​vis-à-vis o pensamento não Ocidental. E mesmo assim,
no entanto, parece que em ambos os casos o “outro” está efetivamente contido dentro da
história concreta da civilização europeia. De fato, há uma noção de que a alteridade
“radical” dos “outros” não europeus é tratada mais como uma ameaça do que uma
oportunidade de entender o ‘​self’ europeu. Esse preconceito pode ser encontrado nos
escritos de Gadamer sobre tradução. Sua fusão de horizontes é, na raiz, um engajamento
dialógico entre diferenças diacrônicas dentro de uma determinada sociedade, especialmente
entre os significados do passado e do presente das relações sociais. No entanto, Gadamer
parece se sentir bem mais desconfortável em lidar com a tarefa de traduzir entre sistemas de
significado existentes e diferenciados. Em última análise, ele contém a ameaça da diferença
sincrônica (ao invés de diacrônica) ao afirmar, um tanto improvisadamente, que a tarefa de
traduzir diferenças sincrônicas de significado ‘difere somente em grau e não em tipo, da
tarefa hermenêutica geral que todo texto representa’ (Gadamer 2004, pp. 387–99, 438–40).​9
De maneira similar, David Campbell delineou o problema que a existência de vários
“outros” apresenta para a ética de Lévinas (Campbell 1999, pp. 37–8). Ao ter que negociar
eticamente as relações entre um e ​muitos,​ Lévinas organiza essa tarefa perguntando “Quem
está mais próximo?”. Os mais próximos parecem ser aqueles que historicamente
compartilharam de uma experiência cultural comum...uma experiência europeia (colonial)?
O efetivo agrupamento, dentro da civilização europeia, da resposta ética ao problema
do “outro” leva a uma tendência de tratar do problema da diferença como interno ao sujeito
moderno, entendido universalmente como o “individuo soberano” da tradição sociológica e
econômica. Uma vez que isso é assumido, não há razão para que um engajamento com o
pensamento não Ocidental seja considerado um requisito orgânico para lidar analítica e
eticamente com o problema moderno da relação ​self/o​ utro. Pelo contrário, há uma tácita
suposição de que o arquivo ocidental sozinho é suficiente para a tarefa. Novamente, não é
preciso sair de casa para conhecer o mundo; o mundo surge quando já construímos uma
cosmovisão (europeia).
Essa tendência narcisista pode ser reunida no conjunto de intelectuais franceses que
foram rotulados, imperfeitamente, de “pós-estruturalistas”, e que construíram debates sobre
a modernidade majoritariamente em referência à questão distinta de um (idealizado)
pensamento e história europeu. Trata-se de uma tendência ainda mais peculiar quando se
considera a íntima relação histórica entre a ascensão do pensamento
15

estruturalista/pós-estruturalista na França e a busca da descolonização em suas colônias.


Pois, como Robert Young, Pal Ahluwalia e Alina Sajed notaram, a guerra de independência
da Argélia formou uma parte crucial do contexto político no qual o estruturalismo, e depois
o pós-estruturalismo, surgiram enquanto críticas na academia francesa. A Argélia, mais do
que qualquer outra coisa, revelou os limites do caráter assimilatório do sujeito singular e
soberano francês, o ​citoyen.​ Pode-se validamente questionar se as críticas da alteridade,
diferença, ironia, mimetismo, paródia e desconstrução de grandes narrativas são possíveis,
em grande medida, por causa desse contexto pós-colonial em evolução (Young 2002;
Ahluwalia 2005; Sajed 2011). Intelectuais seminais como Louis Althusser e Jacques
Derrida nasceram e passaram a infância na Algéria, e Michel Foucault em sua vida adulta
passou uma importante estadia na vizinha Tunísia.​10
O Pós-estruturalismo não pode ser julgado apenas com base em sua lacuna colonial.
E não se pode tampouco argumentar – trivialmente – que é impossível interrogar
criticamente o pensamento não Ocidental através da estruturas conceituais de autores
pós-estruturalistas, como por exemplo Foucault e Derrida.​11 Em vez disso, a questão é bem
simples: o pensamento crítico europeu, no geral, tende a ofuscar os contextos geopolíticos e
geoculturais fundacionais da própria produção de conhecimento moderna – que são o da
dominação colonial e do regime imperial. Eu argumentaria que, sem esse contexto, o uso
do pensamento crítico europeu para interrogar o “outro” no cenário global pode tender a
produzir uma agenda de pesquisa orientada por “conceito”, no lugar de uma agenda
orientada para o “problema”. A primeira leva a um engajamento abstrato com a condição
moderna universal (apesar de interrogada concretamente através da condição europeia)
onde experiências não Ocidentais podem ser tratadas como estudo de caso, mas não como
locais originários de produção legítima de conhecimento (ver Neumann 1999, p. 29; Diez
and Steans 2005, p. 138; Grosfoguel 2007). E isso, talvez, revela o quão insidiosamente a
epistemologia colonial trabalha na Academia Ocidental. Colocando de forma provocativa:
por que é que as recentes respostas críticas à “guerra ao terror” nas RI conseguem tão
facilmente, e curiosamente, evitar as perspectivas não Ocidentais sobre essa “guerra”, e ao
contrário utilizar de seus efeitos mortíferos para justificar os escritos de vários intelectuais
europeus como Schmitt, Foucault e Agamben?
No entanto, meu argumento não deve ser lido como uma injunção para deixar que a
subjetividade moderna ideal do Ocidente permaneça sem ser interrogada. Em vez disso,
armados com essa apreciação do contexto colonial da produção do “outro”, poderíamos
reconhecer melhor o impacto transformador – e contaminado – dos vários
16

empreendimentos coloniais europeus sobre a modernização da própria Europa. Por


exemplo, como Ashis Nandy ilustrou, assumir a identidade hiper-masculinizada do
colonizador no exterior também significava contaminar o caráter moderno, supostamente
puro, da esfera pública da pátria mãe com afetividades do masoquismo e do desejo (1988,
pp. xv, 2). Nós devemos ainda reconhecer que diferentes empreendimentos coloniais foram
efetuados no contexto de trajetórias diferentes de desenvolvimento entre as políticas
europeias, levando a diferentes formas de colonialismo no “exterior”, e a diferentes efeitos
decorrentes “dentro”.​12 Diversidade na interrelação não é uma prerrogativa apenas do não
Ocidente. E armados com esse conhecimento, podemos ser mais capazes de apreciar tanto o
progressismo quanto os limites do pensadores radicais de dentro da Europa, e a sua
negociação sobre as interligações entre classe, gênero e racismo. Nesse sentido, o
pensamento e prática de Sylvia Pankhurst se prova bastante informativo (ver Davis 1999).
Finalmente, podemos ser capazes de recuperar de uma melhor forma a história de
dominação colonial e de produção do “outro” de ​dentro da Europa. A Irlanda, é claro, foi o
primeiro domínio a ser colonizado pela Grã-Bretanha (ver, por exemplo, Carroll and King
2003). E, possivelmente, o “outro” mais permanente dentro da civilização europeia (cristã)
foi o Judeu. Muito do pensamento crítico moderno sobre a experiência moderna dentro do
pensamento europeu, devemos nos lembrar, foi desenvolvido por intelectuais
judaico-alemães (por exemplo, Mendelssohn, Hess, Heine, Marx) e, talvez, o que tornou
isso possível foi a natureza antagonista desse hífen.​13 De fato, foi a posição liminar de
Albert Memmi como um judeu “nativo” (e não muçulmano) no protetorado francês da
Tunísia que o permitiu, como ele acreditava, experienciar pessoalmente a identidade tanto
do colonizador quanto do colonizado (veja o prefácio de 1990).
O que eu tentei mostrar nessa seção é que um engajamento com o terreno do
pensamento não Ocidental não precisa ser um exercício de provincialismo, não menos do
que um engajamento com o pensamento europeu crítico precisa ser. Mas o fato de que tal
engajamento tenha, até o momento, recebido uma atenção lamentavelmente inadequada
deve ser entendido como parte do efeito do Eurocentrismo. Pois o Eurocentrismo é mais
evidente na suposição tácita de que não precisamos tentar viajar para os terrenos
intelectuais fora do Ocidente ideal, e que tudo o que é necessário para problematizar a
condição moderna pode ser encontrado dentro do arquivo Ocidental. A solução não é
adicionar o pensamento não Ocidental ao arquivo em expansão da Academia Ocidental,
uma vez que isso seria a continuação na esfera intelectual da expansão imperial e do regime
colonial. Em vez disso, o propósito é minar a segurança de uma cartografia epistemológica
17

que isola a produção legítima de conhecimento sobre a modernidade a um local geocultural


(idealizado).

Conclusão

Nesse capítulo eu argumentei que uma reorientação em direção ao pensamento não


Ocidental trata-se de um empreendimento perigoso, porém inevitável se estamos a cultivar
uma apreciação mais adequada do contexto global da modernidade, isto é, de uma
modernidade globalizada através de – e enquanto – projeto colonial e imperial. Para
concluir, eu gostaria de apontar os conceitos e categorias que devem ser problematizados na
teoria das RI especificamente, e aos quais muitos dos capítulos subsequentes se referem.
Primeiro, e no coração da teoria das RI, está a natureza e exercício do poder político.
Nesse sentido, o pensamento não Ocidental pode fornecer novas perspectivas sobre a
formas interrelacionadas, embora múltiplas, de soberania moderna, de governo pela lei, de
governo hegemônico e, em geral, da relação (se houver) entre ​potentia ​e ​potestas.​ Por
exemplo, muito da teoria das RI é dedicada a explicar a forma – e intenção por trás – do
poder exercido através de instituições Ocidentais, seja isso explicado em termos de poder
imperial, de ​soft power, b​ iopolítica, governamentalidade, governança neoliberal, etc. Ainda
assim, a teoria de RI é excepcionalmente ruim em abordar as formas pelas quais essas
influências foram incorporadas, apropriadas, resistidas e/ou transformadas em suas
sociedades “alvo”. De muitas formas, a teoria das RI depende de uma falácia da
composição a ser realizadas entre formas e tecnologias globais e Ocidentais de governo. Por
exemplo, o fato de que algumas sociedades Ocidentais possam ser governadas por meio de
tecnologias de governamentalidade, isso não significa que exista uma ordem mundial
Foucaultiana (Joseph 2009).
Em Segundo lugar, o pensamento não Ocidental pode fornecer novas perspectivas
sobre as construções espaciais da ordem mundial moderna, seja isso entendido em termos de
império, sociedade internacional, centro/periferia, ou sistema de estados. Nos anos 1970,
Hedley Bull discutiu a possibilidade de substituição da sociedade europeia de estados por
uma colcha de retalhos neo-medieval de autoridades sobrepostas. Estudiosos recentemente
recuperaram essa ideia a fim de compreender as transformações que estão ocorrendo na
União Europeia e na governança global, no geral (Friedrichs 2001; Zielonka 2006). E, no
entanto, o tipo de pluralidade interconectada de formas (hierárquicas) de governança que a
frase “neo-medieval” entona não se trata de uma ordem mundial futura emergindo, mas,
18

mais precisamente, de uma descrição histórica e duradoura do mundo colonial!


Isso leva ao terceiro ponto, que o pensamento não Ocidental problematiza – ao
mesmo tempo em que não ignora – a proclamada especificidade histórica que é predicada em
um conjunto de dicotomias temporais: tradicional-moderno, religioso-secular,
nacional-pós-nacional, internacional-global.​14 Não é exagero algum dizer que é o nosso
senso de época, eras e conjunturas que determina o tipo de violência que performamos na
abstração teórica ao movimento das coisas. Se essas dicotomias forem problematizadas,
juntamente com suas meta-narrativas implícitas, as filosofias políticas do internacionalismo,
cosmopolitismo e humanismo podem assumir características diferentes e, com isso, também
a nossa noção do que é passado, o que é possível e o que é desejável.
Finalmente, eu diria que o maior desafio para a teoria das RI é um permanente e
endêmico à Academia Ocidental como um todo, e do qual todos participam. Não se trata de
um desafio que nasce da guerra global ao terror, nem da ascensão do G20. Para as ciências
sociais ele delineia o horizonte da própria modernidade. Trata-se do pressuposto, melhor
articulado por Hegel, que a produção de conhecimento da modernidade é, necessariamente,
uma produção autorreflexiva de conhecimento sobre nossos ​selves​, e vice-versa. É difícil
subestimar o quão central é essa suposição para a razão de ser d​ a Academia Ocidental:
teorizar sobre a modernidade ​é ​a produção de nós mesmos como sujeitos Ocidentais sendo
sujeitos da história humana. Eu sugeriria que, como um todo, a teoria das RI também está
presa nesse círculo hermenêutico colonialmente induzido. Nesse sentido, o guia de
Jean-Paul Sartre aos leitores europeus de ​Os Condenados da Terra d​ e Fanon permanece
como sendo a mais presciente – e ainda sem resposta – provocação:

Depois de alguns passos durante a noite, você verá estranhos reunidos ao


redor de uma fogueira, se aproxime, escute: eles estão discutindo o destino
que reservam às suas feitorias, para os mercenários que os defendem.
Talvez eles te verão, mas continuarão a conversar entre si sem nem mesmo
abaixar suas vozes. A indiferença deles atinge nossos
corações…Permanecendo em uma distância respeitosa, você se sentirá
furtivo, noturno, arrepiado até os ossos; todo mundo tem sua vez; na
escuridão da qual virá um novo amanhecer, vocês são os zumbis.
(Sartre 2001, p. 141)
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Notas
1 Aqui devemos pensar apenas no tipo ideal instrumental-racional de Max Weber de autoridade política
moderna e na explicação de Karl Marx da alienação na relação social capitalista. Ver Sayer (1991).
2 Sobre os termos ‘livre de contexto’ (‘context-free’) e ‘sensível ao contexto’ (‘context-sensitive’) ver
Ramanujan (1990) e a simpática crítica oferecida por Dallmayr (1994).
3 Até mesmo Habermas recentemente qualificou – se não rejeitou totalmente – sua própria tese de
secularização (Habermas 2008). Linklater (2005) mostra os efeitos do pressuposto habermasiano na teoria
de RI quanto afirma que, embora comunidades não Ocidentais tenham, em princípio, os recursos para
embarcar no estilo habermasiano de política dialógica, é a civilização Ocidental que fornece as condições
ideais. Para uma resposta efetiva, ver Shani (2007).
4 Sobre a invenção das tradições na filosofia chinesa ver Defoort (2001).
5 Para uma crítica desse nicho ver Dirlik (1997). Para uma recuperação crítica do projeto pós-colonial ver
Young (2002).
6 Clifford é bastante consciente sobre esse ponto, ver, por exemplo, Clifford (1992, p. 103).
7 Sobre questões de tradução envolvendo a Bíblia e o colonialismo ver Sugirtharajah (2001).
8 Para exemplos de como Lévinas costumava problematizar, produtivamente, os discuros da geopolítica ver
Campbell (1999) e Howitt (2002).
9 Ver, porém, Dallmayr (1996, pp. 41–6) para comentários sobre o desenvolvimento decorrente de um
entendimento mais antagonista da relação self-outro feito por Gadamer.
10 Sobre isso deve ser adicionada a influência do Maoísmo sobre a esquerda francesa. Em relação a
Althusser, ver Elliot (2006).
11 Ver, respectivamente, o trabalho pós-colonial Said e Spivak.
12 O colonialism alemão é, aqui, uma consideração importante na medida em que foi empreendido como
uma reação ao sentimento da elite alemã de ‘atraso’ e ‘falta de vanguarda’ com relação à própria
civilização europeia. Sobre a especificidade do discurso colonial alemão, ver Berman (1998).
13 Ver capítulo 5.
14 Meu próprio trabalho esteve, pelo menos parcialmente, enredado nessas dicotomias. Ver, por exemplo,
Shilliam (2009, p. 201).

Observação da tradutora: Este capítulo é parte do livro ​International Relations and


Non-Western Thought: Imperialism, colonialism and investigations of global modernity​,
editado por Robbie Shilliam. A bibliografia de todos capítulos está elencada em conjunto -
isto é, sem separação por capítulo - ao final do livro. Esta é uma tradução não-oficial. Favor
checar bibliografia de interesse nas últimas páginas do livro original.

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