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Resumo
A epistemologia decolonial, tomada como o estudo do conjunto de práticas teóricas que
pensam a descolonização, vem se firmando com bastante vitalidade nos ambientes
acadêmico-culturais e político-sociais progressistas. Quais são os desafios que isso
impõe aos intelectuais indígenas e camponeses? Nosso intento é debater sobre o
assunto, indicando o caminho da interculturalidade crítica como uma saída bastante
fecunda para se pensar uma nova geopolítica do conhecimento, calcada na valorização
dos conhecimentos que vem sendo, devido a relações de poder, silenciados/negados
pelo colonialismo/colonialidade. As análises são feitas a partir do lócus epistemológico
da Faculdade Intercultural Indígena (FAIND), da Universidade Federal da Grande
Dourados. A conclusão a que se chega é de que há indícios de avanços teórico-
metodológicos no tratamento da questão, restando, entretanto, ainda um longo caminho
no sentido da descolonização epistemológica tanto de intelectuais quanto da
universidade.
Palavras-chave
Epistemologia decolonial; intelectuais indígenas e camponeses; interculturalidade
crítica.
Introdução
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Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação e Territorialidade (PPGET), no Programa de
Antropologia (PPGAnt), na Licenciatura Intercultural Indígena, Diretor da Faculdade Intercultural
Indígena (FAIND) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
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Por mais que seja difícil mapear os caminhos que levaram ao surgimento da
epistemologia decolonial, embora isso não se constitua em objetivo nesse texto, é
possível afirmar que ela vem se construída no ocidente há séculos, nas fendas da própria
racionalidade hegemônica. Seguramente que esse mesmo processo aconteceu também
no oriente onde, para além de colonialismos internos, aconteceu a colonização ocidental
a partir do século XV, tendo havido diversas rebeliões anticolonialistas na Índia e
China, por exemplo. As rebeliões, independentemente das motivações, são embasadas
em ideias, em teorias e em leituras da realidade.
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A (de)colonialidade do saber
Boaventura dos Santos Souza propõe a ecologia dos saberes, esse processo de
buscar a igualdade nas relações entre os diferentes conhecimentos, como forma de a
universidade abrir-se aos saberes das comunidades.
A retirada dos saberes da invisibilidade e/ou a sua revitalização não pode ser
fruto, entretanto, de uma decisão alheia às comunidades detentoras desses saberes.
Preconizada pelos tratados internacionais, a autodeterminação dos povos supõe escolhas
conscientes do que se quer preservar ou abandonar. O problema que surge é o fato de
que os processos coloniais, ao desvalorizar esses saberes e colonizar o ser das pessoas,
tem levado muitos a sentirem vergonha dos saberes que possuem. Nesses casos, a
pesquisa feita por seus intelectuais pode significar o devido reconhecimento da
importância dos saberes tanto para a solução aos problemas causados pela modernidade
colonial, quanto indicar outras possibilidades de novas relações sociais nas quais a
dignidade humana seja a tônica. De fato, muitos conhecimentos de indígenas e de
camponeses podem consertar os rumos tortuosos da vida humana construídos sob os
alicerces do colonialismo. Demonstrar esses tristes caminhos pode ser uma maneira de
levar as pessoas simples a valorizarem seus conhecimentos.
Quando há a intenção de intelectuais indígenas ou camponeses de se
debruçarem sobre os conhecimentos de suas comunidades, a primeira questão que
devem se colocar é acerca das motivações para querer tirá-los da invisibilidade. Não
raras vezes, a intenção é a autocontemplação, isto é, o pesquisador está mais preocupado
com a vaidade acadêmica, com o título acadêmico do que com os frutos sociais que sua
pesquisa possa trazer às comunidades investigadas. Adiante veremos que não há sentido
em os intelectuais indígenas e camponeses desenvolverem pesquisar se não estiverem
fortemente imbuídos das causas indígenas e camponesas, da construção mesma da
dignidade humana.
Quando não se tem objetivos sociais envolvidos, até mesmo as investigações
desenvolvidas com a finalidade de revitalização de saberes podem descambar para a
folclorização das práticas sociais das comunidades (deixamos evidente aqui que a
produção e uso de conhecimentos são também práticas sociais e políticas). Toda
sociedade é viva, ela se recria, se adapta, se molda às circunstâncias espaço-temporais
nas quais está imbricada. A folclorização acontece quando as práticas se desconectam
do presente e, estacionadas num passado mágico, se engessam, isto é, viram cultura
morta.
Quanto a esses aspectos, é importante considerarmos o que dizem Castro-
Gómes e Grosfoguel acerca de cuidar para que a busca de visibilidade não se transforme
numa missão de resgate fundamentalista ou essencialista para a autenticidade cultural,
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mas que se apresente como uma resistência semiótica capaz de ressignificar as formas
hegemônicas de conhecimento do ponto de vista da racionalidade pós-cêntrica de
subjetividades subordinadas. (CASTRO-GÓMEZ e GROSFOGUEL, 2007: 20)
Outro problema grave que ronda os intelectuais comprometidos com o presente
de suas comunidades e com o fortalecimento dos seus conhecimentos é o anacronismo.
O anacronismo é a atitude de inserir elementos de um tempo em outro, causando um
descompasso histórico. Por mais que as narrativas tradicionais misturem os tempos
históricos e míticos, e isso tenha um valor narrativo muito grande quando se busca o
sentido para o presente e para o futuro, entender os processos históricos pelos quais seus
antepassados passaram, inserindo-os na devida temporalidade, deve ser uma das
preocupações dos intelectuais conectados com suas comunidades e suas causas. O
intelectual é um personagem que está lá e aqui, está ao mesmo dentro do universo
simbólico de sua comunidade, mas também é um embaixador dela na sociedade do
entorno, um posto avançado na defesa dos seus direitos. O direito à memória é um
desses direitos com os quais o pesquisador pode e deve se envolver. O anacronismo
ofusca e limita a memória, diminuindo-lhe o potencial crítico-criativo.
Que canais os intelectuais indígenas e camponeses usariam para tirar da
invisibilidade os conhecimentos silenciados pelo colonialismo? As possibilidades são
múltiplas, mas destacamos a pesquisa acadêmica. Nas duas primeiras décadas do século
XXI tem havido um grande movimento de acesso de acadêmicos indígenas e
camponeses no ensino superior. Mesmo que muitos indígenas e camponeses pretendam
utilizar a universidade como forma de acesso à sociedade de consumo ao receberem
licenças para o exercício de profissões, por duas décadas os movimentos sociais foram
bastante felizes ao conseguirem que o Governo Brasileiro criasse políticas de acesso e
permanência dessas populações na universidade. Ao mesmo tempo, cursos específicos
voltados a esse público foram criados em todo o País. Hoje, em 2020, muitos desses
intelectuais estão ou estiveram nos cursos de pós-graduação em nível de mestrado,
doutorado e pós-doutorado. Inegavelmente, a presença deles na universidade tem
gerado, por um lado, desconforto e questionamento a muitos pesquisadores
comprometidos com os valores colonialistas, mas tem levado a um grande número de
outros pesquisadores a realinharem suas pesquisas ou redirecionarem seus olhares sobre
as causas indígenas e camponesas. É possível dizer que muitos saberes indígenas e
camponeses chegam à universidade, entidade que passou a validar, através de seus
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processos acadêmicos, tais saberes. Lembro, no entanto, que são alguns setores
universitários que têm essa visão epistemológica, havendo em muitos espaços
universitários uma espécie de ‘racismo epistemológico’ arraigado que continua a negar
e a silenciar os conhecimentos que desbordam da racionalidade moderno/colonialista.
Entretanto, há que se reconhecer o importante papel da academia para retirar da
invisibilidade e, ao mesmo tempo revitalizar, os conhecimentos indígenas e
camponeses. Os intelectuais populares têm o desafio, diante disso, de realizar militância
acadêmica com qualidade teórica, mas também social.
Desafio à parte é pensar que os intelectuais camponeses e indígenas, muitas
vezes imersos em culturas orais, encontram na academia uma cultura escrita altamente
formalizada e ritualizada. A passagem de uma forma a outra, além de desafiadora, é
plena de armadilhas e perigos. O maior deles é a distorção de sentido. Mais do que
simplesmente descrever, é função dos pesquisadores interpretar a realidade. O
ferramental acadêmico e sua interminável lista de exigências e normativas pretendem
levar à dissecação das experiências vivas trazidas do mundo da oralidade,
transformando-as em modelos matemáticos objetivos. O problema é que nem tudo cabe
na formalização sem que seja deturpado. Como pesquisar é sempre um ato ético e
político, outro caminho seria forçar a academia a reconhecer outras lógicas de
conhecimentos, reordenando, com isso, seus currículos formativos e seus protocolos de
pesquisa.
Em tese, quando a investigação é realizada com as ferramentas teórico-
metodológicas corretas e com o devido rigor, os resultados obtidos podem ser
considerados científicos. No entanto, quando se pensa na proximidade do investigador
com o espaço da investigação, há que se ter o cuidado disso não se transformar em um
problema justamente pela dificuldade em tomar o devido distanciamento crítico daquilo
que se está pesquisando. Como afirmamos acima, o pesquisador precisa mais do que
descrever, analisar os fenômenos que investiga. A dificuldade em distanciar-se
criticamente das informações recebidas, não criando nexos de sentido através do
cotejamento de uma informação com outra, da contraposição com outras informações e
da sua problematização, leva ao problema da reificação das fontes, isto é, à aceitação
tácita de opiniões com o sentido de verdades inquestionáveis, aliás, uma atitude pouco
recomendada quando se pensa em intelectuais compromissados com um olhar holístico
sobre a realidade.
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retirados do seu espaço de produção. Exemplificamos com algum ritual que somente
deve ser realizado em algum momento específico, como o de morte, não podendo ser
realizado apenas para teatralizar alguma informação. Se essa regra não for respeitada,
possivelmente o pesquisador colocará o mestre tradicional e a comunidade em perigo
por criar desequilíbrio das relações espirituais.
Por fim, a desinvisibilização somente faz sentido se for favorável à
comunidade ou ao povo pesquisado. Aliás, o intelectual indígena ou camponês que
desenvolver pesquisa contrária ao seu povo ou comunidade se transforma em agente da
(re)colonização de seus pares, personagem muito comum no transcorrer da história, mas
detestável do ponto de vista de decolonialidade.
c. A interculturalidade crítica
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Dado que em boa parte do universo indígena, a exemplo dos Guarani e dos
Kaiowá, e dos camponeses, o ensino se dá pelo exemplo e não pela fala, pela vivência
da teoria, o desafio dos intelectuais organicamente ligados a essas realidades é não
subirem no pedestal da vaidade acadêmica, das políticas de produtivismo, e se
distanciarem da realidade de suas comunidades. Têm esses intelectuais a necessidade de
teorizarem a sua prática e qualificar a prática através do domínio teórico. Assim, de
forma reflexiva, poderão interferir na ciência ocidental e nos seus agentes avançados, a
universidade, mudando-a através da práxis.
Já afirmamos em vários outros lugares e voltamos a frisar que não se pode ficar
dependente somente dos conhecimentos de fora, de suas respostas, sendo necessário
valorizar os conhecimentos milenarmente elaborados pelas comunidades, pondo a nu os
conhecimentos ocidentais que classificaram e hierarquizaram os povos e seus saberes.
Isso levará a novos modos de perceber a realidade.
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Considerações Finais
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