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SUMÁRIO

PREFÁCIO ......................................................................................... 3
PARA INÍCIO DE CONVERSA ....................................................... 6
A FAMÍLIA MUDA DE SANTA MARIA PARA GIRUÁ ............ 10
MORANDO EM TERRA ALHEIA................................................. 27
TRABALHO E GÊNERO ................................................................ 32
IR À ESCOLA, TRABALHAR REMUNERADO E CASAR ........ 51
SEGUE A VIDA DE FAMÍLIA AGREGADA ............................... 56
TORNAR-SE MÃE .......................................................................... 64
O SUSTENTO MATERIAL DA FAMÍLIA .................................... 73
A VIDA SOCIAL E O COMPADRIO............................................. 82
O PREPARO DE ALIMENTOS, A COSTURA DE ROUPA E O
ARTESANATO ............................................................................... 90
A EDUCAÇÃO DOS FILHOS ........................................................ 94
A VIDA RELIGIOSA ...................................................................... 99
A VIDA DE CASADA .................................................................. 107
HISTÓRIAS FABULOSAS ........................................................... 112
APOSENTADORIA E VIUVEZ ................................................... 116
NETOS E NORAS ......................................................................... 119
O REENCONTRO COM O PASSADO ........................................ 123
E O SISTEMA DE AGREGADOS? .............................................. 126
EXPECTATIVAS .......................................................................... 129
PREFÁCIO

Prefaciar esse livro tem para mim um significado muito


especial e particular. Falar sobre a trajetória, a história e o
sentido do vivido de Dona Malvina, mãe de meu grande amigo
e compadre Antônio Dari Ramos é de uma responsabilidade
ímpar. Uma narrativa de re-existências, de silêncios, de
trabalho, de persistências e empoderamento.
Durante muito tempo, as mulheres, suas narrativas e
histórias de vida foram objeto de um relato histórico que as
relegou ao silêncio e à invisibilidade. Eram invisíveis, pois sua
atuação se passava quase que exclusivamente no ambiente
privado da família e do lar. O espaço público, pertencente aos
homens, poucas mulheres se aventuravam nele.
Escrever e visibilizar as trajetórias femininas é romper
aos poucos com o silêncio deixado pela história tradicional
sobre esses sujeitos. Mulheres comuns, mulheres que (re)
existiram. Dona Malvina em sua trajetória de vida não deixou
pouco vestígios, sejam materiais ou imateriais. Esses vestígios
sacados à luz, trazem para a cena o des-silenciamento do relato,
e a existência muitas vezes apagada, destruída, desprezada pela
história desses sujeitos.
Dona Malvina, filha de migrantes, mulher negra,
camponesa, traz consigo a história de um corpo feminino,
marcada por situações e fatos em seu cotidiano que se
desenrolou no interior das matas, no “rancho” coberto de palha,
roçando, capinando, colhendo, lavando, tecendo, andando
quilômetros a pé, em busca de assistência médica para os filhos
ou para ela mesma.
Certas perguntas, marcadas por inquietudes teóricas
sempre me acompanham quando tomo conhecimento de
histórias de vida dessas mulheres - a preocupação como
representam o coletivo, a vida, o corpo, a memória, o
imaginário, as representações, as identidades - e que merecem
serem registradas e visibilizadas.
O Antônio Dari ao escrever a trajetória de Dona
Malvina e ao observar os vários enredos usados na elaboração
de um discurso sobre a experiência passada e presente, mais do
que indagar sobre a memória de sua mãe, ele apresenta o
“esquecido”, o “silêncio”, aquele trajeto, fato, ação
performativa, capaz de formar e subverter o relato, emergindo
assim a história de uma vida.
Dona Malvina é filha do seu tempo, do seu espaço, de
sua paisagem. Ao me lembrar da topografia da comunidade de
Mato Grande – Giruá, na região das missões no RS, vejo essa
senhora de 82 anos acostumada a essas planícies que fez brotar
nela uma acuidade visual e gestual, acompanhada por um
sentimento de pertencimento ao chão no qual continua ainda
sob seus pés.
Ao dialogar com sua própria história, sua vida
pretérita, como se fosse um “causo”, ela vai ao encontro com
aquilo que o poeta Manoel de Barros chamou das coisas
miúdas: “poderoso é aquele que descobre as insignificâncias
do mundo e as nossas”. Uma memória do corpo, sobre o corpo,
que tem com a história da região onde vive uma performance,
que se manifesta na metáfora do gesto de tecer o chapéu com
palha de trigo, uma biografia, que tem na pele, nos ossos, no
olhar a justificativa para narrar sua própria história.
Talvez, em lugar algum do mundo, existam mulheres
tão valorosas como Dona Malvina, uma trabalhadora rural
precocemente envelhecida pelo sol escaldante do verão
missioneiro e pelo vento minuano das noites de inverno.
Essa belíssima obra conta a história de uma mulher
missioneira, trabalhadora rural que se mistura com outras
tantas histórias de mulheres pelo Brasil afora. Como
historiador respeitado e competente, Antônio Dari Ramos nos
apresenta a história de Dona Malvina, com muita competência,
sensibilidade e emoção.

Prof. Dr. Losandro Antonio Tedeschi


FCH-UFGD
PARA INÍCIO DE CONVERSA

Este é um livro de história. Melhor, um livro de


histórias. Para sermos mais precisos, um livro de memórias.
Nele, registramos as memórias de uma trabalhadora rural do
Rio Grande do Sul que carrega em si as marcas sociais de
mestiça, pobre, sem-terra e agregada; esposa e mãe de quatro
filhos, todos eles homens.
A perspectiva que seguimos é a memorialista,
utilizando uma linguagem menos hermética que a histórica
convencional. Optamos por utilizar uma forma romanceada de
escrita com a finalidade de aproximá-la dos relatos colhidos
através da história oral, mas também como forma de produzir
uma fonte histórica para pesquisas posteriores que não
desvirtue a musicalidade da fala da personagem central. Este
não é um livro acadêmico no sentido estrito do termo, embora
seu autor seja historiador de formação e ofício.
Ao mesmo tempo em que trabalha sobre as memórias
de Malvina Sortica Ramos, colhidas ao longo de anos de
registros orais, os quais se encontram condensados em uma
dezena de horas de depoimentos em vídeo, o texto ora
apresentado tem também um caráter biográfico, já que o autor
é também filho de Malvina. Optamos, no entanto, por inserir-
nos no texto na terceira pessoa. Aliás, todas as personagens que
são referidas recebem esse tratamento, inclusive Malvina, de
modo que o narrador e autor, por opção de escrita, parecem
observar a cena de fora. De alguma forma, as memórias de
filho se cruzam também com as da mãe.
O método de coleta de dados utilizado é a história oral
de vida, como preconizada por José Carlos Sebe Bom Meihy
(2005), cotejado com pesquisas arquivísticas. O método de
análise é o hermenêutico, que insere o fato no seu contexto
sócio-histórico. Mas, como o contexto não é um dado
apriorístico, ele foi por nós construído enquanto uma operação
direcionada por uma escolha teórica. Nossa opção, embora que
de forma implícita – a fim de tornar o texto mais leve, não
divagando em teorias já dominadas pela comunidade
acadêmica –, foi pelo cruzamento dos estudos de gênero com
os de classe.
Acompanhou-nos, na produção deste texto, entretanto,
uma questão teórica que é a relação entre a memória e a
história, já tantas vezes tematizada por historiadores. Se a
história (operação intelectual) é diferente da memória (ato
afetivo de lembrar), existe sempre o desafio para o historiador
que se encontra imerso no espaço e tempo do narrado em
conseguir o distanciamento necessário a fim de registrar a
história com o máximo de isenção possível. Sabe-se que isso
está, entretanto, mais no plano ideal do que da prática, pois
todo o distanciamento pode ser sempre questionado já que
sempre resta alguma subjetividade nesse processo. Aliás, essa é
sempre a questão que surge, por exemplo, nos trabalhos
realizados pelos historiadores ou antropólogos indígenas ou
intelectuais camponeses ou urbanos quando estudam suas
comunidades. E é justamente a carga subjetiva presente nos
trabalhos de memorialistas que leva os historiadores
acadêmicos a lançarem dúvidas sobre a cientificidade do
trabalho daqueles. Diríamos, no entanto, que esse não é um
problema teórico que nos afeta, já que o texto apresentado
segue uma preocupação mais social do que acadêmica. Por
isso, optamos pela perspectiva ensaística, diminuindo
propositadamente o número de referências bibliográficas.
A relevância social de um estudo como este reside no
fato de debruçar-se sobre uma pessoa comum, que viveu e vive
num lugarejo desconhecido e desimportante (utilizando um
neologismo presente no pensamento do poeta Manoel de
Barros). Uma mulher mestiça, pobre e trabalhadora que teve de
elaborar estratégias de sobrevivência como mulher mestiça,
pobre e trabalhadora. Sua condição de mulher simples, inserida
em relações patriarcais de poder, numa ruralidade misógina e
excludente, é compartilhada por outras mulheres de sua
condição social. Nesse sentido, o trabalho tem a pretensão de
contribuir para tirar da invisibilidade a situação feminina no
mundo do campesinato. Como diria seu filho Lori Luiz,
quando da leitura de prova do texto, “ela é uma guerreira!
Mesmo como filho não sabia da maioria das histórias contadas
no livro”. A história de vida de Malvina deixa de ser invisível
também para a família!
A vida de Malvina só não foi mais dura porque ela
pôde contar com a solidariedade presente no espaço camponês.
O sistema de agregados era a um só tempo uma forma de
estabelecimento de relações laborais, que poderia descambar
para o estabelecimento da exploração de mão-de-obra barata ou
não, mas também era constituído por laços afetivos e por um
compromisso pela proteção social entre os envolvidos.
Desejamos a todos(as) uma boa leitura do livro, na
intenção de estabelecer um diálogo profícuo com mulheres e
homens que militem pela igualdade de gênero. Críticas e
sugestões, as quais esperamos, podem ser feitas através dos
contatos eletrônicos antoniodariramos@yahoo.com.br e
antonioramos@ufgd.edu.br.
A FAMÍLIA MUDA DE SANTA MARIA PARA
GIRUÁ

Era 1938, Antonio Manoel Sortica, à época com 45


anos, sai de Santa Maria, Rio Grande do Sul, e vai em busca de
um novo lugar onde pudesse viver com sua esposa Maria
Eponina de Lima Sortica, a ‘Punica’, de 33 anos, e com seus
sete filhos: Maria Idalvina (Vica), à época com 16 anos,
Alvarino, com 12 anos, Alcidino, com 10 anos, Doralina e
Doraldina (gêmeas), com oito anos, Dejanira, com cinco anos,
Malvina, com três anos, e Marina, com um ano de idade. A
causa da mudança continua sendo uma incógnita, mas pode
estar relacionada à busca de novas possibilidades, em local
distante de sua família de origem, principalmente pelas
condições de precariedade que vivia. Ninguém faria uma
mudança dessas, distanciando-se de seus parentes e amigos, se
não procurasse um lugar mais aprazível para si e para sua
família!
Umas das dificuldades que Antonio Manoel
encontrara junto de sua família desde quando decidiu casar-se
com Punica foi convencer sua mãe, Maria Geralda, a aceitar
sua esposa. Malvina recorda que Maria Eponina dissera uma
vez que sua sogra não gostava dela: “a mamãe dizia que a vovó
não aceitava que seu filho, um moço branco, se casasse com
uma negra” (Entrevista concedida ao autor em outubro de
2016). No início do século XX, as raízes escravocratas eram
ainda muito fortes em Cachoeira, atualmente Cachoeira do Sul,
RS, lugar onde as famílias dos noivos residiam, e Maria
Eponina possuía forte ascendência africana.

Maria Eponina de Lima Sortica. Arquivo familiar.

Maria Geralda foi criada numa sociedade em que, na


segunda metade do século XIX, conviviam portugueses,
açorianos, descendentes de outros imigrantes europeus, como
os alemães, além de ela mesma ser casada com um descendente
de imigrante norte-americano. Em Cachoeira existiam também
grupos de escravizados, de cativos alforriados e de indígenas
(Oliveira e Santos, 2013). Uma análise dos Documentos da
Escravidão no Rio Grande do Sul, publicados pelo Arquivo
Público do Estado do RS (Rio Grande do Sul, 2010), permite
perceber que os escravizados, na sociedade cachoeirense, não
estavam restritos às charqueadas, mas também eram
encontrados em casas de famílias, trabalhando como
domésticos para seus donos ou alugados por eles a outrem, nos
campos de criação de animais, nas plantações. Alguns
proprietários possuíam mais de cinquenta cativos, outros bem
menos, chegando-se inclusive a alguns casos em que senhores
ou senhoras possuíam apenas um cativo. As relações entre os
diversos grupos humanos eram tensas, restando, principalmente
aos negros e aos pardos, as alcunhas de ladrões e bêbados,
como se percebe nos processos-crimes da época. Maria
Eponina era parda, descendente de um grupo social malvisto
pela sociedade cachoeirense, já que ‘inferior’, e possivelmente
isso impactava no olhar que sua sogra lançava sobre si.
Antonio Manoel nasceu no dia 22 de outubro de 1891,
apenas três anos após a abolição da escravidão no Brasil;
Punica nasceu em Santa Maria no dia 13 de março de 1903,
quinze anos após a assinatura da Lei Áurea. Não se tem notícia
se a família dele fora ou não um dia proprietária de cativos.
Possivelmente, Maria Eponina tivesse familiares, mesmo que
distantes, que haviam tido contato com a escravidão, no
entanto ela silenciava sobre o assunto.
Uma avaliação dos registros de óbito de Cachoeira
permite encontrar nomes de primos de Antonio Manoel, como
o de Teotônio Sortica de Paula, filho de seu tio Theodoro,
sendo jornaleiros, isto é, diaristas, de modo que viviam do
trabalho prestado a outras pessoas.1 De toda forma, mesmo que
outros parentes seus possuíssem alguma propriedade, boa parte
dos familiares de ambos os cônjuges, na segunda metade do
século XIX, eram prestadores de serviços, portanto,
trabalhadores pobres. Depois de casados, o casal fixou
residência na zona rural de Santa Maria, RS.

Antonio Manoel Sortica. Arquivo familiar.

1 Disponível em <<https://familysearch.org/ark:/61903/3:1:3QSQ-G944-
FBZF?i=84&wc=QZS2-
L1C%3A264201201%2C1588926247%3Fcc%3D1985805&cc=1985805>>.
Acesso em 06/11/2016.
Cópia da Certidão de Casamento de Antonio Manoel e Maria Eponina.
Arquivo familiar.

A família Sortica era uma família tradicional que se


estabelecera inicialmente na região de Santo Amaro do Sul,
RS. Embora haja dúvidas com relação à origem não brasileira
da família, o que se sabe é que o primeiro Sortica a fixar
residência no Rio Grande do Sul foi Ignácio Sortica, nascido
em Nova Iorque, Estados Unidos, e morto em Santo Amaro do
Sul. Seus pais eram David Sortica e Anna Buncker. Casado
com Belarmina Maria Francisca de Souza Sortica, que nasceu
em São Francisco de Paula, RS, Ignácio foi pai de José Ignácio,
Francisca, Manoel Ignácio, Felisberta Maria, Fabiano Ignácio,
Theodoro Ignácio, Lucia Amanda, João Ignácio, Antonio
Ignácio e Ignácio Francisco. Antonio Manoel era filho de
Manoel Ignácio Sortica, o qual nasceu em 09 de agosto de
18502, em Taquari, RS.
Antonio Manoel sempre se identificava como sendo
‘ilhéu’, designativo dos descendentes de açorianos, grupo
humano que estava no atual Rio Grande do Sul desde a década
de 1750, após a assinatura do Tratado de Madrid. Pelo
sobrenome de suas ancestrais brasileiras, elas eram açorianas,
já que a região possuía uma grande quantidade de imigrantes
da Ilha de Açores que foram assentados na região. Pela parte
materna, seguramente os Sortica brasileiros eram açorianos.
Outra fala de Antonio Manoel referia-se ao
aportuguesamento que seu sobrenome teria sofrido. De fato, é
possível encontrar muita variação na grafia do designativo
familiar: Szortika, Szortica, Szortik, Serduic, Sertich, Sourtica,
Surtica. Disso resulta uma hipótese plausível de que a família
Sortica possa ser originária dos Cristãos Novos, judeus
convertidos ao cristianismo de maneira forçada, em território

2Há dúvidas acerca do ano de nascimento de Manoel Ignácio, pois seu registro
de batismo indica o ano de 1950, mas na certidão de casamento de Antonio
Manoel e de Punica consta que, em 1920, ele estaria com 71 anos, tendo
nascido, por isso, em 1949.
português, a partir da última década do século XV, que teriam
migrado para diversas partes do mundo.
Maria Eponina casou-se com Antonio Manoel no dia
16 de outubro de 1920, em Santa Maria. Na época Antonio
Manoel Sortica estava com 28 anos de idade. Maria Eponina de
Lima tinha 16 anos.
Antonio Manoel era agricultor, filho mais jovem de
Manoel Ignácio Sortica, à época do casamento com 71 anos de
idade, e de Maria Geralda Sortica, com 70 anos, segundo
indica sua certidão de casamento. Seus outros irmãos eram
Favorino, Almedorino e Francisca. Por não saber assinar, no
dia da união matrimonial Maria Eponina teve de contar com a
assinatura de testemunhas. Tanto os pais do noivo quanto os da
noiva residiam no Quarto Distrito de Cachoeira.
Punica era filha de Manoel João de Lima, com feições
bem africanizadas, e de Maria Constância de Lima, mestiça, ou
de cor ‘mista’ como era costume registrar nos documentos de
nascimento e óbito da época. Das quatro irmãs, Maria Eponina
era a mais velha. Suas outras irmãs eram Vicentina, Minervina
e Coraldina. Os irmãos eram Orlandino, Manoel Antonio
(Neco) e Pedro. Logo após a mudança de Antonio Manoel e
Maria Eponina para Giruá, também os seguiram os irmãos de
Punica Orlandino e, mais tarde, Neco. Alguns anos depois,
ambos retornaram para a região de Santa Maria, estabelecendo
residência em Júlio de Castilhos.
Outro motivo da mudança da família Sortica para
Giruá está relacionado à própria ocupação territorial do Rio
Grande do Sul e à colonização tardia de algumas regiões, como
da região das Missões. E ela tem a ver, também, com a
construção da Linha Férrea. Definitivamente, a Viação Férrea
foi um dos principais fatores de ocupação não indígena da
região, pois interligava comercial e comunicativamente
espaços antes considerados inóspitos. É possível afirmar que a
linha férrea foi o principal instrumento de interiorização do
estado do Rio Grande do Sul no século XIX e na primeira
metade do século XX.

Adaptado de << http://vfco.brazilia.jor.br/livros/preserfe-RFFSA-Centro-


Preservacao-Historia-Ferroviaria-Rio-Grande-Sul.shtml>>. Acesso em
21/10/2016.

Santa Maria ficava no entroncamento central do


sistema ferroviário gaúcho da época. Pelos trilhos do trem
chegavam informações de outras partes do Rio Grande do Sul.
Chegavam notícias, por exemplo, das terras disponíveis para a
colonização. Como a colonização de Santa Maria já estava
consolidada, na década de 1930 chegavam notícias de que a
região do Quinto Distrito de Santo Ângelo, Giruá, mais
precisamente a região conhecida por Mato Grande, era um
lugar de grandes oportunidades econômicas.
O nome Mato Grande referia-se à existência no local
de uma floresta de milhares de hectares (acredita-se que
possuísse bem mais de 20.000 hectares), situada entre as vilas
de Giruá e de Mato Grande. Nessa localidade, havia a
possibilidade de abrir novas terras, vendendo-se a madeira para
alimentar a “Maria Fumaça”, o trem a vapor da época, e para
reparar os dormentes dos trilhos. Muita gente ganhava a vida
derrubando a mata e vendendo a madeira para a Viação Férrea.
Da época do desmatamento, o que mais chama a
atenção de Malvina foi a rapidez com que a ‘Maria Fumaça’
consumiu a floresta. Se as terras de campo já estavam
ocupadas, as terras da mata tiveram, então, uma colonização
ainda mais tardia, e a construção da ferrovia, inicialmente, e a
máquina a vapor, num segundo momento, foram os argumentos
históricos para derrubar as árvores e utilizar as terras para o
cultivo.
A construção da linha férrea consumiu boa parte das
“madeiras de lei” da região, pelo menos de cinco quilômetros
de cada lado da ferrovia. Essas madeiras eram utilizadas para
fazer a base dos trilhos, os chamados dormentes.
Posteriormente, o processo de desmatamento se acentuou com
a retirada de madeira para servir de combustível para o trem a
vapor e para a substituição dos dormentes apodrecidos.
O árduo trabalho empregado para a retirada das
grandes árvores existentes na mata não faria sentido se a venda
da madeira não fosse motivada pela estrada de ferro, desde a
década de 1920. Sem ela, dificilmente alguém se aventuraria a
abrir roças derrubando a densa floresta, que possuía árvores
com mais de vinte metros de altura.
A estrada de ferro trazia, segundo o imaginário da
época, o desenvolvimento às regiões, que significava,
inicialmente, o afluxo de povoadores. Malvina dirá que ela
trouxe, de fato, muita gente para a região de Mato Grande, uns
para trabalhar nas lenheiras, outros para trabalhar diretamente
na linha férrea, tanto que a maioria das casas da vila era
ocupada por ferroviários. Em Mato Grande existia, inclusive,
uma estação de embarque de passageiros, desativada e
destruída no final da década de 1970.
Na região de Mato Grande, o principal meio de
transporte para ir à cidade fazer compras ou para passear era o
trem. As pequenas viagens eram feitas de carroça ou no lombo
de equinos ou de muares, mas as maiores eram feitas através do
trem. Da estação de embarque de Mato Grande podia-se ir
facilmente a qualquer parte do Rio Grande do Sul, inclusive à
capital, Porto Alegre, à Santa Catarina, à Argentina ou ao
Uruguai, por exemplo.
A construção da estrada de ferro que ligava Santo
Ângelo a Giruá foi concluída em 1928. Ela chegara em 1915
em Catuípe, em Santo Ângelo em 1921 e em Santa Rosa
chegaria somente em 1940.
A construção do ramal ferroviário é um dos destaques
da história do Brasil por ter sido ali que Luiz Carlos Prestes,
militar responsável por ela, conspirou em definitivo para a
tomada do poder central do País, no episódio que ficou
conhecido como Coluna Prestes. Inclusive, há uma mata entre
as localidades de Mato Grande e de Comandaí, chamada de
‘Capão da Guarda’, presente na memória social compartilhada
pelos idosos da região como sendo um lugar onde as tropas
comandadas por Prestes se reuniam. Há muitas histórias de
‘assombração’ relacionadas a essa mata, constituindo-se ela
num dos lugares ‘misteriosos’ de Mato Grande. Nesse local,
seguidamente são encontradas cápsulas deflagradas de armas
de fogo, sinal de que houve ali algum treinamento militar no
passado.
Antes da mudança da família Sortica de Santa Maria
para Giruá, a família de José Copeti já havia antecipado o
mesmo deslocamento. Na viagem de mudança, um grupo de
famílias acompanhou os Sortica: as famílias de Cesário
Fracário, de Rosalino dos Santos, de Joaquim Lemes (Quinca),
de Henrique Zimmermann e de João Perneira, a única família
com matizes bem africanizados.
A família Sortica utilizou o trem para chegar até
Giruá. Da viagem, a única coisa que Malvina recorda é de ter
ouvido, em uma estação em que o trem fez escala, uma música
muito bonita, que ela não conseguiu distinguir a fonte.
Possivelmente viesse de alguma vitrola ou gramofone. Malvina
sempre gostou de música, e ainda hoje é possível ouvi-la
cotidianamente cantarolar músicas do tipo “as mocinhas da
cidade” e outras do gênero.
Os bens trazidos no trem consistiam basicamente em
roupas e utensílios de cozinha. Os demais móveis seriam
elaborados pela família na chegada. As camas, chamadas de
tarimbas, por exemplo, eram esteiras feitas de taquaras
amarradas com cipó, as quais eram colocadas sobre pequenos
esteios cravados no solo. O colchão era geralmente de palha de
milho e seria confeccionado no novo lugar de morada,
bastando que fosse carregado somente o tecido a ser
preenchido. Já em Giruá, passaram a usar, com o passar do
tempo, o colchão de crina e lã.
Assim como em Tapes, RS, local de imensos
butiazais, em Giruá havia uma ‘crineira’ (em alusão à crina dos
cavalos) que produzia crina vegetal, usada para o
preenchimento de colchões e de estofados de móveis. A crina
vegetal era feita com as folhas de butiá, uma palmeira típica do
município.
A forma de produzir os colchões de crina e lã é assim
descrita por Malvina: primeiramente desfiavam-se as folhas de
butiá na crineira. Produziam-se, assim, grossas cordas de
fibras, as quais eram compradas para montar os colchões.
Estendia-se num tecido a corda de crina, começando-se pelas
extremidades até chegar-se ao centro. Ia-se costurando a corda
nesse tecido, cuidando-se para que as voltas ficassem bem
próximas umas das outras. Após preencher toda a superfície,
faziam-se outras camadas, sempre costurando uma volta na
outra. Ao final, punha-se uma camada de lã na parte superior
do colchão para que ficasse macio. Duas pessoas tinham
grande dificuldade para carregar o colchão, pois ao final ele
ficava pesadíssimo.
Antonio Manoel possuía muitas habilidades, seja
como agricultor, artesão ou marceneiro. A produção de móveis,
a começar pelo fogão de chão, não lhe era problema.
Inicialmente, a família utilizava o fogo no chão, sem nenhuma
estrutura, para cozinhar os alimentos, usando apenas ganchos
para pendurar panelas e chaleiras. Depois, passou a utilizar o
‘fogão de chapa’, composto por uma estrutura de tijolos
entremeados por barro, encimado por uma chapa de ferro. Num
terceiro momento, já na década de 1980, é que Punica passou a
utilizar o fogão a lenha industrializado. Antonio Manoel e
Punica não chegaram a utilizar o fogão a gás.
Malvina conserva ainda hoje o banco adiante
apresentado, esculpido por seu pai na década de 1940, usando a
madeira conhecida como timbaúva. Ele utilizou o banco por
praticamente quatro décadas. Antonio Manoel fez outro banco
similar para a esposa. De estatura baixa (em torno de 30 cm),
esses bancos são muito confortáveis para sentar próximo ao
fogo de chão.

Banco produzido e usado por Antonio Manoel. Arquivo familiar.

Quando chegaram em Giruá, os Sortica encontraram


poucos moradores no núcleo urbano. Malvina recorda inclusive
que tinha muito medo, quando ia com sua madrinha à cidade,
de passar num campo onde atualmente está localizada a Rádio
Giruá, por conta de ter de cruzar por entre um rebanho bovino
nem sempre amistoso.
No entanto, como Santa Rosa havia se emancipado de
Santo Ângelo em 1931, isso alimentava o desejo dos poucos
moradores de Giruá emanciparem a localidade com a
finalidade de também desenvolvê-la. Giruá se tornará
município somente em 1955, desmembrando-se do município
de Santo Ângelo, dezessete anos após a chegada da família ao
local, no momento em que morava nas terras de Alcides Fiorin,
próximo à vila de Mato Grande.
Desde a chegada em Giruá, a família Sortica foi
agregada de diversos proprietários de terra. O sistema de
agregados existiu em todo o país. Ele é fruto da organização
fundiária estabelecida principalmente pela Lei de Terras de
1850, mas também pode ser encontrado anteriormente a essa
data, principalmente nos casos em que os donos de cativos
mantinham nos fundos de suas propriedades alguma amásia,
geralmente preta alforriada, com filhos seus. Uma vez que as
famílias pobres, sejam de descendentes de colonizadores, de
mestiços ou de escravos forros, não tinham condições de
adquirir terras, passavam a morar de favor nas propriedades de
outros, agregando-se a eles como trabalhadores jornaleiros,
mas também estabelecendo laços de compadrio e de
entreajuda.
Em Giruá, a família Sortica recebeu novos membros,
pois nasceram Angelina, Remi Conceição (falecido por conta
de hidrocefalia) e Manoel Garibaldino. Quando Malvina estava
com dezoito anos, a família ainda adotou uma menina recém-
nascida, Maria Oliva, filha de uma mulher que, com problemas
mentais, reincidentemente engravidava. Quando isso acontecia,
a mãe de Maria Oliva, Alice, era despedida das casas onde
prestava serviço como doméstica e ia morar precariamente em
uma casa abandonada. Angelina e Marina insistiram com a
mãe, Maria Eponina, para que adotasse a criança. Oliva faleceu
ainda bebê, com seis meses de idade, de pneumonia.
Uma análise realizada nos registros de óbitos da época
indica a existência de altos índices de mortalidade infantil,
geralmente causada por pneumonia. Outra causa de óbitos
infantis eram os abortos. Somados esses casos registrados
como sendo de crianças ‘nascidas mortas’ com os casos de
morte de crianças de pouca idade, na passagem do século XIX
para o XX, incluindo as primeiras décadas do século XX,
seguramente as mortes de infantes respondiam por
praticamente dez por cento dos óbitos registrados oficialmente.
Esses dados são encontrados nos documentos digitalizados
(registros paroquiais e cartoriais) que constam no portal da
Igreja Adventista “www.familysearch.org”. Malvina atribui a
grande quantidade de mortes de crianças aos únicos tipos de
tratamento de saúde que as pessoas pobres acessavam: o
benzimento e o uso de chás, ineficazes para combater os vírus
causadores de muitas doenças.
Em Santa Maria, o casal Antonio Manoel e Punica já
havia perdido Almedorino, morto com sete anos por paralisia
infantil. Na nova terra também faleceu Dejanira, igualmente
com sete anos de idade, e também de pneumonia. Antonio
Manoel morreu em 1980, com 88 anos, de tétano, em
decorrência de uma fratura numa perna causada por uma queda
em um pequeno pontilhão que existia ao lado de sua residência.
Maria Eponina faleceu de infarto do miocárdio em 1990, com
87 anos.
Malvina lembra que Antonio Manoel, por dar crédito
ao presságio de uma cigana, descuidou-se do tratamento de
saúde, pois acreditava que morreria antes de completar 89 anos
de vida, como de fato acabou acontecendo. De Maria Eponina,
lembra que jamais se queixava de alguma doença. Mesmo na
velhice, após 37 anos de cegueira, causada por uma cirurgia
malsucedida de catarata, não se ouvia da boca de sua mãe que
estivesse doente ou precisando de algo.
Já idosa, Maria Eponina confessou para a filha um
costume que guardava quando mais nova: ela gostava muito de
comer terra. Por isso, quando o tempo anunciava chuva,
recolhia vários torrões para ir consumindo aos poucos,
enquanto esperava que o solo secasse para poder colhê-los
novamente. Tal era o seu gosto por comer terra que ela se
escondia das pessoas para poder saciá-lo.
O casamento de Punica com Antonio Manoel durou
praticamente 60 anos. Durante esse tempo, Maria Eponina
tratava o esposo como “seu Antonio”, não se sabe se pela
diferença de idade existente entre ambos ou se por motivações
morais de gênero ou étnico-raciais. Malvina não recorda de
nenhuma situação em que o casal tenha trocado qualquer má
palavra.
Nos dez anos que Punica viveu a mais que seu marido,
ela foi cuidada pelo filho Alvarino e, por fim, pela filha
Angelina. Mesmo cega, devido a Alvarino trabalhar como
diarista nos arredores, não podendo acompanhá-la o dia todo,
era possível vê-la cozinhando no fogão a lenha: ela abria a
panela, retirava parte do alimento com uma colher e o apertava
com os dedos para certificar-se de que estava cozido.
Um costume que Maria Eponina conservou até
meados da década de 1980 foi o de assar o pão numa panela
posta em frente ao fogão de chão, coberta com uma tampa
cheia de brasas. Ela ia girando a panela até que o pão ficava
completamente assado. O gosto do pão é inesquecível.
Outra lembrança guardada de Maria Eponina era a
forma como ela se conduzia ao banheiro, a chamada patente ou
latrina, que ficava localizada a alguns metros da casa. Por já
estar cega, havia um fio de arame estendido entre o banheiro e
a casa para que ela se guiasse por ele para poder ir e voltar com
segurança. Havia também um fio similar que ligava a cozinha
ao poço artesanal de onde a família retirava a água para o
consumo doméstico.
Punica costumava contar muitas histórias sobre
episódios vivenciados por ela. Nas histórias contadas para os
filhos e netos, sempre eram abundantes elementos fantásticos
de assombrações e de personagens do folclore gaúcho, como o
lobisomem. Contava ela que, numa noite de lua cheia, quando
ainda enxergava, fora buscar água no poço que ficava próximo
da casa e viu que sobre ele estava sentado um grande cachorro
peludo, com aparência humana: era um lobisomem. Ela
garantia tê-lo visto e que ficara com muito medo de buscar
água daquela noite em diante.
MORANDO EM TERRA ALHEIA

Os novos moradores, ao chegar em Giruá, geralmente


adquiriam um pedaço de terra, e o pagavam com a retirada da
lenha vendida para a Viação Férrea. Antonio Manoel, mesmo
sob forte insistência de Maria Eponina, não se dispunha a isso
por entender que ficaria velho e que não conseguiria pagar a
dívida, além do que a terra eventualmente adquirida poderia se
tornar a razão de desavenças futuras entre os filhos, por conta
de brigas por herança. Talvez tenha sido este o motivo dos
desentendimentos anteriores com sua família, segundo pensa
Malvina. Mesmo contrariado, Antonio Manoel adquiriu uma
propriedade em outro extremo do município, na região do
Rincão Nossa Senhora Aparecida, vindo a vendê-la por
desgosto, já que teve roubada toda a madeira da casa que
construiria no local. Ele fora à propriedade preparar a madeira,
numa semana, e quando retornou para construir a casa, na outra
semana, ela havia desaparecido. Sem demora, vendeu a terra.
A vida toda Antonio Manoel residiu nas terras de
outros colonos como agregado, morando com sua família nos
fundos das propriedades. Como se fosse um membro da família
do proprietário da terra, prestava-lhe serviços, geralmente
como diarista ou empreiteiro, mas nos momentos em que o
trabalho escasseava, também trabalhava em outras
propriedades, além de cultivar uma pequena roça e de trabalhar
nas lenheiras.

Malvina com 18 anos. Arquivo familiar.

Inicialmente, a família morou, como agregada, nas


terras de José Copeti, no Rincão dos Beltrame, o santa-
mariense já conhecido de Antonio Manoel que viera a Giruá
antes dos Sortica; depois, morou nas terras de Edegar Pinheiro,
na localidade chamada de Comandaizinho; após, nas de José
Maria, na mesma localidade; nas de Clarimundo Pedroso,
conhecido como Moreira, no Rincão dos Beck; de lá, foram
morar nas de Evaristo de Paula, no Passo do Faustino. Quando
Malvina já estava com dezoito anos, a família mudou-se para a
localidade de Mato Grande, e foi morar nas terras de Miguel
Szostkiewicz, o Miguelão. Por fim, a família morou nas terras
de Alcides Fiorin, em três locais diferentes. Nos dois últimos
locais, na Vila de Mato Grande, Antonio Manoel e Maria
Eponina encontravam-se já idosos, e Malvina já era casada.
Veja-se que em quinze anos a família mudou de residência seis
vezes, numa média de permanência inferior a três anos em cada
local. Todas as mudanças aconteceram num raio de 15 km.
As intensas mudanças de residência tinham a ver com
pequenos desentendimentos que Antonio Manoel
eventualmente tinha com os donos das terras, com alguma
tratativa verbal não cumprida ou com alguma desconfiança de
ambas as partes, mas também quando se extinguiam as
lenheiras nas propriedades próximas, com o avanço do
desmatamento, e o campo de trabalho começava a ficar
distante. Ao longo dos anos, os serviços com os quais a família
se envolvia estavam primordialmente ligados ao cultivo de
alimentos, à produção de dormentes para os trilhos do trem
serrados manualmente na mata e à entrega de lenha para
abastecer a “Maria Fumaça”.
Com relação à produção de alimentos, geralmente a
família derrubava a mata, retirava a madeira, queimava os
galhos, no sistema de coivara, plantava feijão e milho,
arrancava os tocos e as raízes das árvores. Quando a terra
estava limpa, hortada como se dizia, ela retornava para o dono
e a família iniciava a abertura de uma nova área de roça,
chamada de roça nova. Toda a produção era dividida com o
dono da terra na proporção de um terço para o proprietário e
dois terços para a família Sortica.
Maria Eponina era muito conhecida na região por
atender como parteira. Por conta disso, e pela quantidade de
braços que a família possuía, os Sortica eram bastante
requisitados pelos moradores do entorno, exercendo os mais
diversos trabalhos, com predominância dos trabalhos manuais
que necessitavam de muita força física. Entretanto, prevalecia
sempre a informalidade nas relações laborais. Trabalho com
carteira assinada somente viria a existir no espaço camponês a
partir do final da década de 1980. Antes, a única forma de
acessar a Previdência Social e os direitos trabalhistas era
através do Sindicato de Trabalhadores Rurais, que cumpria
função mais assistencial do que de representatividade classista.

Punica e Antonio Manoel na velhice. Arquivo familiar.


Maria Eponina teve de deixar de exercer a função de
parteira em torno dos cinquenta anos por ter ficado cega. O pai
de Punica ficara igualmente cego na velhice. Problemas de
baixa visão são encontrados também nos filhos e netos de
Maria Eponina.
TRABALHO E GÊNERO

Com exceção de Maria Eponina, e das filhas Marina e


Angelina, a primeira pela fragilidade e a segunda pela idade e
por estudar, as demais mulheres da família executavam todos
os trabalhos diários. Quando o trabalho era na mata, o produto
era pago pela metragem de madeira beneficiada, e as mulheres
participavam dele cortando as árvores com machado ou serrote.
Os homens ficavam responsáveis pelo empilhamento. Malvina
conserva ainda hoje uma cicatriz no vão dos dedos do pé,
resultado de um ferimento causado por um machado que, por
estar muito afiado, rompeu a madeira e lhe atingiu o membro.
A parte mais grossa da árvore, chamada de ‘boda’, não
era vendida para a Viação Férrea, e ficava por vezes no meio
da lavoura apodrecendo. Raramente essa madeira era cortada
para lenha ou utilizada para fazer tábuas. Quando isso
acontecia, era levada para os engenhos de serra, e com as
tábuas construíam-se casas e galpões.
Quando o trabalho realizado era na produção de
alimentos, a matriarca Maria Eponina cuidava dos trabalhos
domésticos na parte da manhã e na parte da tarde acompanhava
as atividades de capina, plantio e colheita. As meninas
acompanhavam os irmãos mais velhos no trabalho desde a
idade de cinco anos. Como a família trabalhava tanto na roça
‘própria’ quanto nas roças dos proprietários, quando Malvina
estava com sete anos, seu pai, Antonio Manoel, exigia que o
pagamento feito por Clarimundo Beck por seu trabalho fosse
equivalente ao dos irmãos e das irmãs maiores. Ele
argumentava que a filha ‘trabalhava parelho aos demais’, sinal
de que as obrigações laborais de uma criança de sete anos não
eram menores do que as de um adulto. Os únicos dois trabalhos
que Malvina refere não terem sido realizados por ela foi serrar
tábuas no estaleiro com seu pai e lavrar com arado de bois.

Da esquerda para a direita: Doralina, Doraldina e Malvina (com dezoito


anos). Arquivo familiar.
Das filhas, ao chegarem aos quinze anos, Maria
Eponina exigia que assumissem as lides da casa. Cada dia uma
das filhas era responsabilizada por preparar o alimento para a
família. No entanto, cada menina lavava sua própria roupa. A
roupa dos homens era lavada por Maria Eponina. Com o passar
do tempo, quando a visão lhe foi escasseando, ela passou esse
trabalho para as filhas.
A matriarca era também costureira. Além de costurar
as roupas para si, para o marido e para os filhos e filhas, ela
também fazia roupas para os vizinhos. As roupas costuradas
por ela seguiam o padrão da época, como se vê nas fotos
apresentadas.
Com relação à fotografia anterior, chama nela a
atenção o fato de encontrar-se recortada. O motivo, segundo
Malvina, foi uma briga que ela teve com as duas irmãs mais
velhas. Como Doralina e Doraldina não a queriam por perto,
Malvina quis castigá-las retirando-as do registro. No entanto,
Malvina guardou a parte da foto que recortou, sendo possível
remontá-la no presente! O tecido floreado que Malvina ostenta
na foto foi presente de seu irmão Alcidino.
O corte das roupas feitas por Maria Eponina seguia
um desenho comum. Na foto abaixo, as irmãs usam vestido que
variam somente nas estampas e no tipo de colarinho. As roupas
(vestidos), sem decote, com as mangas curtas, mas fechadas, e
em tamanho suficiente para tapar os joelhos, mostra a
preocupação da mãe com o recato corporal das filhas. O corpo
era levemente salientado somente por um cinto que, amarrado à
cintura, modelava a roupa a ele.
O tamanho das roupas era adequado ao tamanho das
pessoas, o que mostra o domínio da técnica da costura por
Punica. Chama a atenção o fato de Maria Eponina ter
aprendido em casa a arte do corte e costura, já que casou
bastante jovem, e que tenha passado os conhecimentos também
para as filhas. A fotografia foi feita em torno de 1955, em
frente à Escola São Miguel Arcanjo, à época de madeira,
situada onde hoje está localizada a Igreja Católica de Mato
Grande, numa festa comunitária. As missas e os cultos
dominicais eram celebrados nessa escola.

Da esquerda para a direita: Marina, Angelina, Malvina e Doralina. Arquivo


familiar.

O tecido para a elaboração das roupas geralmente era


comprado com o dinheiro alcançado com a venda de feijão.
Malvina se recorda da estratégia que criou, antes dos dez anos
de idade, para conseguir mais dinheiro a fim de comprar o
tecido para sua roupa e quiçá alguma sandália, já que o calçado
ordinário, após lavar os pés à noite, era o desconfortável
tamanco de madeira.
Quanto ao uso de calçados durante o dia, esse não era
um costume da família, com exceção de Antonio Manoel que
usava uma ‘pracata’, espécie de alpargata feita por ele com
couro cru e amarrado no pé e tornozelo com tiras do mesmo
material. Numa ocasião Alcidino quis imitá-lo, mas não se
adaptou ao calçado, pois se enroscou com ele num toco de
árvore.
Voltemos à colheita do feijão. Como os grãos de
feijão que restavam espalhados ao redor da ‘eira’ e debaixo dos
montes onde ficavam colocadas as plantas colhidas antes de
serem trilhadas eram destinados às irmãs Malvina e Marina, ela
teve a ideia de, disfarçadamente, pisotear ou apertar os montes
de feijão para debulhar as vagens. Com isso, muitos grãos
caíam no solo e as irmãs, juntando-os, aumentavam para si a
quantidade de dinheiro após a venda da leguminosa.
As ‘eiras’ eram compostas por uma lona de ‘algodão
caboclo’, de porte mais denso, onde o feijão era trilhado, isto é,
debulhado, a ‘casco de cavalo’ ou através de ‘manguá’. No
beneficiamento com o uso de cavalos, as mulheres montavam
os animais (Malvina, Doralina ou Doraldina), andando em
círculo, e alguém cuidava para que eles não defecassem sobre o
alimento. Quando o cavalo se preparava para fazer suas
necessidades, a pessoa que estava no solo avisava a mulher que
o montava para que rapidamente o parasse. Após ter defecado,
as fezes (esterco) eram retiradas junto com a palha que estava
em sua proximidade. Essa mesma pessoa ia recostando,
aproximando, a palha para que os cavalos não pisassem
diretamente nos grãos de feijão a fim de não os estragar, mas
também para evitar de cortar a lona com a pisada do animal.
O ‘manguá’ era um instrumento feito com duas
madeiras, uma amarrada à outra, pelas extremidades, com uma
corda de aproximadamente quarenta centímetros. Uma das
madeiras era mais longa, de aproximadamente dois metros, e a
outra, mais pesada, de um metro. A pessoa tomava a parte mais
longa e girava no ar a mais curta, arremessando-a ao cultivar a
ser debulhado. Ao redor da lona, forrava-se a terra com esterco
bovino para não misturar com terra o feijão que se deslocasse
para fora, ficando mais fácil o trabalho de juntá-lo.
O feijão tanto podia ser plantado nas roças novas
quanto nos locais de capoeira. Quando era plantado nas terras
de capoeira, bastava roçar a vegetação, queimar os arbustos e
plantar a semente, sem necessidade de capina. Quando a terra
já havia recebido outros plantios, era capinada, rastelada para
limpar o terreno e para não atrapalhar o crescimento das
plantas, e somente depois recebia as sementes de feijão. A roça
era mantida limpa, pois uma plantação com ‘sujeira’ era
sinônimo de preguiça e desleixo do dono.
A terra produzia organicamente muito feijão, sem a
necessidade do uso de adubagem auxiliar ou veneno. Com o
passar do tempo começaram a aparecer pragas (cascudos
verdes), sendo controladas por Antonio Manoel através do
benzimento da roça. Ele benzia três cantos e deixava um
‘aberto’ para que os bichos saíssem livremente da lavoura.
Malvina garante que os bichos saíam de fato sem estragar a
plantação. Outra técnica de manejo de pragas era realizada
através de outra simpatia. Antonio Manoel capturava nove
bichos, colocava-os em uma caixa de fósforos e a amarrava
sobre a fumaça do fogo de chão que existia na cozinha. Essa
simpatia também resultava em bons resultados, segundo
Malvina.
Veneno ninguém utilizava, exceto para as formigas e
para os gafanhotos. No caso das formigas, eram utilizados
fumegadores que aplicavam o formicida nas suas casas,
tapando-se eventuais lugares em que a fumaça pudesse escapar.
A praga de gafanhotos aconteceu quando Malvina já
era adolescente, pois estava com onze e doze anos. Ela conta
que estavam sentados à tardinha e viram uma nuvem, como se
fosse de chuva, aproximar-se da plantação. Foram muitas as
levas de gafanhotos que chegaram em forma de nuvens. Os
gafanhotos devoravam tudo o que encontravam. Nos dois anos
seguintes, a praga continuava dando prejuízo porque havia o
nascimento de filhotes através da desova. Para matar os
gafanhotos adultos era utilizado um inseticida, o ‘pó para
gafanhoto’. Os filhotes eram mortos por aterramento. Quando
descascavam, após abrir valas, os vizinhos faziam mutirão para
espantar os pequenos animais até elas. Depois, aterravam esses
buracos, matando-os sufocados.
Outro cultivar plantado pela família era o trigo. As
sementes eram lançadas à terra com a mão e tapadas
capinando-se profundamente o terreno. Quando maduro, o
trigo era colhido com o uso da foice. Homens e mulheres
trabalhavam indistintamente no plantio e na colheita do trigo.
Dele, Antonio Manoel tirava as palhas para produzir chapéus.
Ele ensinou o trançado para as filhas. Malvina ressente-se que
não tenha aprendido a ‘trança de bico’, uma das tranças
dominadas pelo pai que resultava em tiras com pontas para
ambos os lados, que depois eram costuradas para formar o
chapéu.
Se em Santa Maria o plantio do milho era feito em
terras de morrarias, em Giruá o terreno era levemente ondulado
e facilitava em grande medida os trabalhos de plantio e de
colheita do cereal. Em Santa Maria, a forma como se carregava
o milho para casa, por exemplo, era esticando-se um fio de
arame no cerro e deslizando-se as espigas amarradas umas as
outras por ele até o paiol. Em ambos os lugares, porém, o
plantio do milho era feito com o uso da máquina ‘pica-pau’ e
dele participavam igualmente homens e mulheres.

Chapéu de palha de trigo trançado e costurado por Malvina em 2016.


Arquivo familiar.

Malvina recorda que, na capina da lavoura de milho,


quando as espigas estavam em formação, ela se deliciava
comendo os pequenos sabugos diretamente na roça. Já, quando
as espigas se encontravam formadas, como havia muitos tocos
de árvores no meio da plantação, costumava, junto de seu pai,
irmãos e irmãs, assar neles espigas que eram consumidas como
lanche. Malvina recorda do gosto maravilhoso do milho assim
preparado.

Angelina e Malvina, na comunidade de Mato Grande, no final da década de


1950. Arquivo familiar

Em Giruá, a terra fértil produzia muito milho e demais


plantas. Problemas ocorriam, no entanto, quando aconteciam
estiagens que prejudicavam seu desenvolvimento. As secas
eram bastante frequentes na época. Aliás, mesmo com a mata
intacta, há notícias de que a região padeceu de uma grande seca
durante a Guerra Guaranítica, na segunda metade do século
XVIII, chegando-se à morte de árvores naquele momento.
Muitos são os casos contados pelos missionários jesuítas do
período colonial em que presenciaram momentos de miséria
nas reduções por conta de grandes estiagens (MCA IV, 1970,
pp. 254; 296; 299; 365; 384). Disso resulta a certeza de que a
região conta com grandes secas desde os tempos antigos.
Eram trabalhos masculinos dar comida aos porcos e
cavalos. As galinhas tanto podiam ser tratadas por homens
quanto por mulheres. Cortar lenha para o consumo doméstico
era um trabalho mais voltado para as mulheres, embora os
homens pudessem ‘ajudá-las’. Já a serra de madeiras para a
construção das casas feitas nas terras de Evaristo e de Moreira
era tarefa masculina, encabeçada por Antonio Manoel, o qual a
realizava manualmente. Ele utilizava a mesma forma para
serrar os dormentes que vendia para embasar os trilhos de trem.
A técnica utilizada por Antonio Manoel era a seguinte: ele
punha a tora num estaleiro, subia sobre ela e embaixo se
posicionava um auxiliar. Após serrar a ‘costaneira’ da tora,
transformando-a em uma grande madeira quadrada, ele
marcava com um carvão a espessura das tábuas de modo que
depois de prontas era impossível encontrar uma mais espessa
do que a outra. As madeiras utilizadas para fazer tábuas eram
aquelas menos duras, como a timbaúva e a canela de porco
(canela com cheiro forte).
As tábuas serradas por Antonio Manoel eram
utilizadas para compor as paredes das casas, mas não o
assoalho. Malvina lembra que dificilmente era encontrada
alguma casa com assoalho de madeira, inclusive nas famílias
mais abastadas. Costumeiramente, o piso era de chão-batido,
bem compactado e aplainado, impermeabilizado com esterco
bovino dissolvido em água e aplicado com o uso de vassoura.
Quando seco, sua cor ficava esbranquiçada, e sem cheiro.
Algumas pessoas misturavam cinza ao esterco para clareá-lo
mais. Quando o piso começava a descascar, recebia uma nova
camada da mistura. Com esse tipo de impermeabilização era
possível manter a casa limpa, isto é, bem varrida.
Com relação às casas em que morou com seus pais,
Malvina recorda-se que elas eram sempre compostas por duas
construções. Numa ficava a cozinha, noutra os quartos e a sala,
usada para receber visitantes. O local de convivência familiar
era a cozinha, que recebia um telhado de pequenas tábuas, do
tamanho de telhas convencionais. Cada pequena tábua, serrada
ou lascada, recebia um prego que era encaixado no ripamento
de madeira. Uma tábua era encaixada na outra. A outra parte da
residência era coberta com capim santa-fé. O motivo da
separação dos ambientes e o uso de telhados diferenciados era
a segurança, pois como o fogão era de chão, alguma faísca
poderia atear fogo na casa toda.
Quando chegaram às terras de Evaristo, já havia lá
uma casa com paredes de barro. A forma de construir essas
casas era a seguinte: colocavam-se varas de madeiras com
diâmetro em torno de 5-6 centímetros, verticalmente, a uma
distância de 50 centímetros uma da outra, presas numa
estrutura de esteios, vigas e barrotes (alicerce, base) também de
madeira. Após, amarravam-se nelas taquaras lascadas, na
posição horizontal, a uma distância em torno de 10
centímetros, uma por dentro e outra por fora. Depois,
preenchiam-se os vãos com barro bem amassado com os pés. O
telhado era coberto com capim. A parte superior da casa era
ripada e o capim, arrancado dos banhados (pântanos), tanto
podia conservar as raízes para fora quanto para dentro. O uso
de capim com raízes acontecia porque vedava melhor o
telhado. As raízes para fora fechavam ainda mais a cobertura.
Taquaras eram colocadas por cima para amarrar nelas o capim
com arame. Antonio Manoel e a família construíram uma casa
de madeira nas terras de Evaristo, mas a deixaram para ele
quando foram morar em outro local, fato que Malvina sentiu
bastante.
Quando a família Sortica foi morar nas terras de José
Maria, usou a sua casa, uma vez que este havia mudado
residência para a cidade de Santo Ângelo. Lá, Antonio Manoel
proibia os filhos de comer as frutas do grande pomar existente
na propriedade, argumentando que havia tratado com seu
compadre que as levaria até a cidade para que ele e sua família
as vendessem para suprir suas necessidades. Com isso,
Malvina, então com onze anos, criou uma estratégia para burlar
as regras estabelecidas: ela subia no pé de bergamota
(mexerica), furava a fruta e chupava o líquido, deixando a
casca grudada na árvore. Com o tempo, a casca caía e todos
creditavam o fato à ação dos pássaros. Na verdade, ela
aprendeu a técnica observando as aves.
Outra proibição que Antonio Manoel impunha aos
filhos era a de chupar a cana-de-açúcar, argumentando que era
necessário deixá-la amadurecer para transformá-la
eventualmente em melado ou para alimentar os animais.
Malvina entrava, então, no canavial, escolhia uma cana que
fosse fina, retirava as folhas e a mascava, da parte mais baixa
até a mais alta, sem arrancá-la do pé, enganando seu pai, que
achava se tratar de uma ação dos morcegos.
Outro fato que ilustra a severidade com que Antonio
Manoel tratava seus filhos era quando iam acampar em locais
mais distantes para poder trabalhar. A fim de evitar peso às
éguas que puxavam a carroça, de nomes Boneca e Custosa,
somente ele e as ferramentas eram carregados pelo meio de
transporte. Os filhos e as filhas seguiam a pé atrás da carroça
por até dez quilômetros. A família ficava uma semana
acampada e retornava da mesma forma para a sua casa.
Na visão de Malvina, sua irmã mais velha, Vica,
demonstrava sentir demasiadamente o rigor da educação
recebida. Ela presenciou muitas vezes a irmã brigando com o
pai (mais o pai brigando com ela do que o contrário). Uma das
lembranças que guarda da irmã é que ela era bastante rebelde,
‘medonha’ como diz Malvina.

Maria Idalvina Sortica (Vica). Arquivo familiar.


Maria Idalvina namorava um rapaz, Domingos, que
também viera de Santa Maria, e dele engravidara. O filho,
Olindo, nasceu quando ela tinha 18 anos. Como não chegou a
casar com Domingos, o menino acabou sendo criado pelos
avós, tornando-se meio irmão de Malvina, que é somente cinco
anos mais velha do que ele. Ele chamava Punica de mãe e
Antonio Manoel de pai.
Malvina recorda que ouvira de sua irmã uma
expressão dita por ela ao pai: “então é melhor matar o guri”.
Ela tenta entender a expressão até o momento presente. Talvez
significasse alguma sugestão do pai para que ela entregasse o
filho para adoção ou para o ex-namorado.
A relação entre pai e filha tornou-se insustentável
quando Vica roubou um ‘corte de vestido’ de uma vizinha,
dizendo tratar-se de um presente de Domingos. Descoberta a
mentira, Antonio Manoel deu uma surra na filha, naquele
momento já adulta e mãe. Aliás, Malvina presenciou diversas
vezes seu pai batendo na irmã.
Quando Olindo estava com três anos, Vica foi
trabalhar numa cidade vizinha, Guarani das Missões. A mãe,
Maria Eponina, sugeriu-lhe que primeiro se estabelecesse na
cidade para depois levar o filho para morar consigo. Vica saiu
de casa e nunca mais retornou. Soube-se que, posteriormente,
teria ido para a cidade de Londrina, no estado do Paraná.
Alguns anos mais tarde, ela foi vista chegando de ônibus em
Giruá, desembarcando e tornando a embarcar nele logo em
seguida. O motivo de não ter ido ver o filho e a família, não se
sabe. O amigo da família que a viu suspeitou que estivesse
sofrendo de algum problema mental pela forma como se
portava. Ela demonstrava, claramente, estar abalada
emocionalmente, como se procurasse algo na sacola que
carregava consigo.

Olindo Sortica quando jovem. Arquivo familiar.

Olindo nunca chegou a estabelecer família. O mesmo


aconteceu com seu tio-irmão Alvarino. De espírito solitário e
taciturno, Olindo morreu estranhamente em 2011, em uma casa
próxima, na vila em Mato Grande. Como sempre sofreu de
epilepsia, não se sabe ao certo a causa de sua morte. Sabe-se
apenas que saíra de sua residência próximo ao meio dia numa
sexta-feira para fazer pequenas compras e, num período
chuvoso de inverno, foi encontrado morto na segunda-feira
após o meio dia caído ao lado da casa, junto às compras, sob a
água que caía do telhado. Acredita-se que tenha passado mal,
caído e, por dificuldade de levantar-se, morrido de frio durante
a noite. No seu atestado de óbito consta morte ‘sem motivo
definido’.
No mesmo sentido de sofrimento, outra pessoa que
também passou por uma situação que lhe custou a vida foi a
irmã de Malvina, Doraldina. Quando seu filho Vilmar nasceu,
ela adoeceu e morreu devido a complicações do parto, outra
causa de morte muito comum à época. O menino, então, foi
criado pela madrinha, a professora Adiles. Quando o fato
ocorreu, Vilmar dividiu o peito de Selvina, esposa de Alcidino,
com Terezinha Sortica. Já adulto, casado e com um filho,
Vilmar sofreu um acidente que lhe fraturou a coluna, tendo
ficado paraplégico. Malvina foi visitá-lo em 2016 em Santo
Ângelo, após distanciamento de mais de quarenta anos.

Alcidino e Alvarino Sortica. Arquivo familiar.


Dos irmãos homens, Malvina guarda boas
recordações. De Alcidino recorda do acordeon que tocava, e
que ela, escondida, aprendeu nele a “florear” algumas músicas
quando ficava em casa para preparar o alimento para a família.
De Alvarino, seu compadre, pois batizou seu filho mais velho,
lembra do alcoolismo que lhe encurtou a vida, mas também da
maneira pouco gentil como tratava sua mãe quando passou a
cuidá-la. Alcidino e Alvarino são falecidos.

Manoel Garibaldino Sortica. Arquivo familiar.

O irmão mais jovem de Malvina, Manoel Garibaldino,


nascido em 1945, saiu de casa com dezoito anos para servir o
Exército Brasileiro, na cidade de Santo Ângelo. Logo depois,
arranjou emprego na mesma cidade, onde continua residindo
até o presente, motivo pelo qual os contatos que Malvina teve
com ele foram bem menos duradouros do que o contato que
teve com os irmãos mais velhos. Manoel Garibaldino acabou
formando família com Tereza e com ela teve uma única filha,
Luciana.
Das irmãs lembra ainda do casamento de Marina que,
embora dois anos mais nova do que ela, casou-se com Salvador
Chaves de Oliveira seis anos antes de si. Mesmo assim, Marina
casou-se com 22 anos de idade. Nesse sentido, as mulheres da
família não seguiram sua mãe, pois todas constituíram família
tardiamente, lembrando que Maria Eponina casou-se com 16
anos e teve sua primeira filha com 17 anos. Doralina, por
exemplo, teve uma filha, Zenaide, aos 39 anos, e se casou com
João Machado somente após os quarenta anos. Angelina casou-
se com João Loss quando estava com 29 anos. Angelina, viúva,
e Doralina, separada, vivem atualmente na cidade de Giruá.

Marina e Salvador. Arquivo familiar.


Angelina, nascida em 1942, saiu de casa para trabalhar
na cidade como empregada doméstica quando tinha dezoito
anos. Mais tarde, com as economias que conseguiu juntar com
seu esposo João Loss, comprou uma chácara na vila de Mato
Grande e construiu uma casa para acolher a mãe, Maria
Eponina, já bastante idosa.
IR À ESCOLA, TRABALHAR REMUNERADO
E CASAR

Antonio Manoel era alfabetizado; Maria Eponina,


como dissemos, era analfabeta. Dentre seus filhos e filhas,
Malvina foi quem menos estudou. Mesmo que os demais
tenham estudado bem mais do que ela, nenhum deles passou do
quinto livro (o primeiro ano equivalia ao primeiro livro, o
segundo ano ao segundo livro, e assim por diante). Os mais
novos, Angelina e Manoel Garibaldino, estudaram até o quinto
ano.
Malvina, quando completou sete anos, por morar
distante da escola, na terra de Edegar Pinheiro, foi proibida de
residir na casa de sua tia e madrinha Maria de Lima, que
também viera de Santa Maria, a fim de estudar na escola
próxima de sua casa. O motivo aventado foi uma questão de
gênero: não podia ficar próxima de um menino, José Fracário,
tido como “medonho”, arteiro, que morava nas imediações.
Dessa forma, somente foi à escola com doze anos (ingressou
após as férias de julho), saindo dela aos treze, um ano e meio
depois, tendo concluído somente a ‘leitura’ do primeiro e do
segundo livros. Sua professora, da qual guarda boas
lembranças, foi Carlota Almeida Marafiga, uma mulher de
estatura baixa, gordinha e muito calma. Seus colegas eram
praticamente todos acima dos doze anos.
Os primeiros seis meses das aulas de Malvina
aconteceram na casa de Moreira. Depois, foi construída uma
pequena escola, de uma só sala, que comportava do primeiro ao
quarto ano, com uma só professora.
Malvina foi retirada da escola por seu pai por ser
considerada ‘muito velha e grande’ para permanecer nela. O
motivo foi, em sua visão atual, para somar nos trabalhos de
sustento da família.
Solteira, Malvina residiu com os pais até os 27 anos,
sempre envolvida nos afazeres da roça, alternando trabalhos de
doméstica nas famílias do entorno. Em 1962, no entanto, ela
rompeu o namoro com Marcos Squinzani, a quem não
agradava a ideia de que trabalhasse fora, e foi empregar-se
como doméstica na casa de Leopoldo e Blanca Fett, na cidade
de Santo Ângelo, onde permaneceu por dois anos e meio. A
vida toda Malvina trabalhou sem ter a carteira de trabalho
assinada.

Diadema (tiara) que Malvina ganhou de Lília Fett em 1962, e que guarda
como relíquia. Arquivo familiar.
Seu pretendente, Marcos, logo depois de Malvina tê-lo
contrariado, acabou se casando com outra mulher. No entanto,
nas palavras de Malvina, teve pouca sorte no relacionamento,
pois a perdeu logo após o parto do primeiro filho. Como a
esposa deu à luz a seu filho na cidade, no retorno para casa,
quando esperava carona, tomou chuva e acabou tendo
‘recolhida’ e morrendo. Malvina conserva a foto de Marcos até
o presente, embora João Carlos nunca tenha sabido dela.

Marcos Squinzani. Arquivo familiar.

Malvina tinha outros pretendentes. Um deles era João


França, conhecido como João Pescoço, quem ela dispensou por
não lhe nutrir afeição. A estratégia utilizada para dispensá-lo é
ainda lembrada por Malvina. João França a havia convidado,
juntamente com a família, para irem a um baile que aconteceria
na casa de um vizinho. Todos se prepararam para a festa,
tomando banho, perfumando-se e colocando as melhores
roupas, inclusive Malvina. Na hora da saída, ela simplesmente
foi dormir em vez de acompanhar seu pai, irmãos e irmãs. Na
ocasião, João França ‘dançou de par’ com Maria Chaves, irmã
de seu cunhado Salvador, com quem acabou casando. Mais
tarde, Maria a acusou de ter-lhe ‘cravado um estrepe [espinho]
no pé’!
Com 28 anos, Malvina começou o namoro com João
Carlos Ramos, com quem se casou civilmente em 24 de
setembro de 1965, quando tinha trinta e ele vinte e cinco anos
de idade. A cerimônia religiosa somente viria a acontecer uma
década e meia mais tarde, na Comunidade São Miguel Arcanjo,
em Mato Grande, quando todos os filhos do casal já eram
crescidos. O casamento religioso foi assumido pela Legião de
Maria e dele participaram vários casais da comunidade que
possuíam apenas união civil.
Quando do ‘pedido de casamento de Malvina’, João
Carlos se fez acompanhar de seu pai, Ricardo. Ricardo foi
quem pediu para Antonio Manoel, em nome de João Carlos, a
‘mão de Malvina’. Mesmo que já se conhecessem há 10 anos, e
que já tivessem combinado em namorar, a conversa entre os
pais dos pretendentes é que oficializou o namoro. Ela ficara
sabendo do interesse de João Carlos por sua pessoa através das
futuras cunhadas Elenir e Santa. João Carlos costumava
mandar recados por elas para Malvina.
No dia do casamento chovia torrencialmente. Como a
cerimônia aconteceu na cidade de Giruá, os noivos foram
levados de Mato Grande, inicialmente, de caminhão, por
Alcides Fiorin, testemunha de casamento por parte de Malvina.
Porém, o carro caiu em um atoleiro e todos tiveram de tomar
carona com outro morador de Mato Grande, Carlinhos
Marques, para chegar até a cidade. No retorno, tomaram outra
carona por oito quilômetros e caminharam no barro os quatro
quilômetros restantes até a nova residência. Vestida de noiva,
Malvina teve de segurar o vestido para não o sujar. Os
convidados acompanharam os noivos caminhando pelo barro
vermelho da estrada de terra que ia do Rincão dos Beltrame até
a fazenda de Cláudio Pícoli, onde o novo casal iria residir.
Por conta da irmã de João Carlos, Elenir, estar em
período de luto, pois havia falecido um filho seu, Malvina não
pode gozar de festa no seu casamento. Serviu-se apenas um
almoço para as testemunhas, que eram também os donos de
terras onde as famílias de ambos os noivos trabalhavam,
Alcides Fiorin e Vilson Stasiak. No almoço, participaram
também seus cunhados e cunhadas, também seus irmãos e o
pai, mas não a mãe, por já encontrar-se cega à época. Os pratos
servidos foram bastante simples, mas Malvina fez questão de
deixar prontos, um dia antes, na casa da sogra, cinco pudins
para a sobremesa, os quais foram muito concorridos,
principalmente por Alcides Fiorin, que queria servir-se
novamente, mas não foi atendido por medo de que a sobremesa
fosse insuficiente. Na época, as famílias pobres não
costumavam servir a famosa ‘torta de casamento’. Outra
iguaria servida foi a ‘salada de batatas’, chamada por João
Carlos de ‘salada de casamento’, uma leitura da conhecida
maionese gaúcha.
SEGUE A VIDA DE FAMÍLIA AGREGADA

Depois de casada, Malvina foi morar com o marido na


casa dos sogros, Ricardo e Rosália, que eram agregados do
fazendeiro Cláudio Pícoli.
João Carlos, o filho mais velho de Ricardo e Rosália,
era um rapaz muito trabalhador. Desde muito cedo auxiliava no
sustento de sua família, tendo inclusive passado fome já que
nem sempre o dinheiro conquistado com o trabalho era
suficiente para manterem-se. Quando não havia trabalho na
fazenda, a família de João Carlos, incluindo suas irmãs,
trabalhava como diarista ou em empreitada na capina de
lavouras ou no corte de lenha para a venda para a Viação
Férrea. Aliás, a família viera de Santa Bárbara, região de Cruz
Alta, RS, por conta dos trabalhos de desmatamento que
existiam na localidade. Malvina conheceu o futuro marido
quando viera morar em Mato Grande, na terra de Alcides
Fiorin. À época, João Carlos estava com 13 anos e trabalhava
com seu pai nas lenheiras.
João Carlos, depois de casado, trabalhava na fazenda e
nas propriedades próximas como diarista, nos serviços de
plantio de grama, construção de cercas, domas e cuidado de
animais, e Malvina passou a cuidar da pequena roça de milho e
feijão, cultivada para suprir as necessidades de alimentação, e
da criação de galinhas e porcos da família.
Na casa dos sogros, a nora e a sogra dividiam o
mesmo fogão, mas não a mesma panela. Rosália cozinhava
para si, para seu marido, para suas filhas Elenir, Tereza,
Carmelinda e para sua neta Angelina, filha de Santa. Malvina
cozinhava para si mesma e para seu marido. Após as refeições,
cada uma lavava a sua louça. Dividiam, no entanto, a mesma
cuia de chimarrão.
Em 1966, na casa dos sogros, nasceu seu filho mais
velho, Valdir José, no dia 22 de junho, dois dias antes de
Malvina completar nove meses de casada. Valdir José fora
concebido, possivelmente, na semana das núpcias.

Rosália Barbosa dos Santos Ramos e Ricardo Ramos. Arquivo familiar.


Logo depois, Malvina e João Carlos foram morar nas
terras de João Cândido; após, nas terras de Ramão Wontroba,
onde nascem Lori Luiz, em 1968, e Antonio Dari, em 1971.
Em 1972 foram morar nas terras de Zeferino Antunes; no
mesmo ano foram morar novamente com os pais de João
Carlos, Ricardo e Rosália Ramos, agora numa pequena área de
terra de propriedade da Viação Férrea, situada entre os trilhos
do trem e a estrada geral que liga o distrito de Mato Grande à
cidade de Giruá, no Rincão dos Beltrame. Em seguida, a
família se deslocou para as terras de Avelino Machado, no
Rincão Cascavel, onde, em 1973, nasceu o quarto filho, Carlos
Alberto. Em 1974 foram morar nas terras de Ladislau
Kwiatkowski, no Rincão Santa Cruz. Poucos meses depois,
retornaram para a casa de Ricardo e Rosália Ramos. No mesmo
ano de 1974, no dia 08 de dezembro, João Carlos sofreu um
grave acidente quando amansava (domava) um cavalo, e
permaneceu adoentado, por conta disso, até sua morte em 24 de
maio de 2005. Foram 31 anos nos quais João Carlos alternava
períodos de melhora na saúde com períodos de grande
enfermidade.
Muito religiosa, Malvina acredita que a data de 08 de
dezembro, um feriado religioso, não era propícia para o
trabalho, mas João Carlos e seu pai Ricardo não deram
importância para ela. Com isso encontra alguma explicação
para a desgraça do marido. Ademais, nos momentos de grande
dificuldade financeira, para aumentar os rendimentos da
família, João Carlos costumava trabalhar em dias de guarda.
Malvina sempre se opunha a essa prática.
Por conta da falta de espaço e dos desentendimentos
com a família de João Carlos, em 1975 Malvina levou sua
família para residir no galpão da casa de seus pais, Antonio
Manoel e Maria Eponina, então agregados de Alcides Fiorin.
Em 1977, mudou-se com a família para uma casa de
propriedade de Miguelão, na Vila de Mato Grande. Em 1978,
mudou a residência para o fundo da mesma propriedade. João
Carlos queria mudar-se para Santo Ângelo ou para São Miguel
das Missões, mas Malvina se indispôs com a ideia e ele desistiu
do intento. Em 1984, com a venda da terra para outro
proprietário, Miguelão doou à família Sortica Ramos um
terreno na Avenida Giruá, na mesma vila de Mato Grande.
Com a doação da madeira feita pela família de Amauri
Squinzani, uma pequena casa foi construída, e a família
mudou-se para o novo local em 1985, lugar aonde Malvina
ainda reside, porém numa outra casa, mais confortável,
construída em 2003. A primeira casa erguida no local era
inicialmente toda de chão batido. Com o tempo, por conta da
umidade do terreno, Malvina conseguiu tábuas na Secretaria de
Promoção Humana do município de Giruá, vindo a colocar
assoalho nela.
De todos os locais onde morou, Malvina fala com
muito sentimento da casa de seus sogros, entre a estrada de
ferro e a estrada geral de terra. Além da poeira constante, do
perigo do trem, havia o incômodo dos filhos não poderem
brincar à vontade, pois sua sogra e cunhadas não o deixavam.
O pouco que conseguia comprar com o fruto de seu trabalho
era consumido pelos moradores da casa, ficando seus filhos
sem o necessário para alimentarem-se. A situação de
sofrimento fora agravada pelo acidente do marido que,
internado por um longo período nos hospitais da região, passou
por um coma profundo e ficou impossibilitado de trabalhar por
um longuíssimo período, tendo inclusive sido aposentado por
invalidez por conta do acidente.
No momento do acidente, Malvina atendia os filhos
em casa e o marido no hospital. Sem recursos, amamentava seu
filho mais novo, Carlos Alberto, na madrugada de um dia,
caminhava seis quilômetros até a cidade de Giruá, tomava o
ônibus até Santo Ângelo, cuidava de João Carlos até o próximo
dia, retornava à Giruá no entardecer, caminhava de volta os
seis quilômetros, e somente aí amamentava novamente seu
filho. Teve de fazer o trajeto algumas vezes na escuridão da
noite, sem qualquer instrumento de iluminação ou de
orientação. A fé a movia.
No hospital, ficava dependente do alimento dado aos
convalescentes, pois não tinha dinheiro para fazer refeição
completa. O único recurso que Malvina dispunha era duzentos
cruzeiros que foram doados a ela por Alcides Fiorin, a quem
ela é bastante grata, e que usou para pagar as passagens do
ônibus e as pequenas compras de alimentos para os filhos.
Quando João Carlos retornou para casa, por um bom tempo
Malvina tinha de segurá-lo para que ele pudesse caminhar.
O símbolo que sintetizava todo o sofrimento de
Malvina no momento da convalescência de João Carlos era o
barulho de um avião utilizado para aplicar inseticida numa
lavoura de soja que ficava localizada ao lado da casa. O avião
dava a volta por sobre seu lar quando em atividade. Malvina
refere a tristeza que sentia por se ver impotente, sem trabalho e
com o marido doente. Percebendo o sofrimento da filha é que
Antonio Manoel a chamou para morar consigo.
Outra lembrança que Malvina guarda das repetidas
mudanças de residência era o abandono das pequenas roças.
Por ser ela a principal responsável por cultivá-las, quando o
marido resolvia buscar outro sítio, sentia que seu trabalho havia
sido em vão. Lembra que quando se mudaram das terras de
Avelino Machado, teve de abandonar uma lavoura de
amendoim ainda verde. Esse incômodo a fez, quando os filhos
já estavam crescidos e estudando na escola pública de Mato
Grande, a contrapor-se ao marido em ir morar na cidade. Com
isso, a família fincou raízes em definitivo na vila de Mato
Grande.
Foram doze as mudanças de residência em 20 anos de
casada! Malvina não consegue explicar os motivos para muitas
delas, pois geralmente era João Carlos quem decidia sobre a
abandonar os lugares. Diz ela: “teu pai virava a cabeça e a
gente tinha de se mudar”. Isso quer dizer que, em 40 anos, ela
mudou de residência dezoito vezes, somando-se as mudanças
que fez junto de seus pais! Outras famílias do lugar também
procediam a esta intensa mobilidade, constituindo-se ela num
ethos das famílias mestiças pobres.
Com exceção de três locais nos quais residiram, nos
outros já havia alguma casa pronta que era disponibilizada para
a família. Nas terras de Ramão Wontroba e nos dois últimos
locais de morada, João Carlos construiu casas simples de
madeira, com esteios cravados diretamente na terra, cobertas
com telhas de barro e com piso de chão-batido, sem energia
elétrica. A última casa, construída em 2003, é de todas a mais
confortável, pois possui banheiro interno, água tratada, energia
elétrica, eletrodomésticos. Enfim, é um espaço conquistado por
Malvina através do auxílio dos filhos, do recurso da
aposentadoria, da pensão deixada pelo marido e das políticas
públicas de inclusão da última década no Brasil.
Comparando a atual casa com as outras nas quais
morou, Malvina pensa nas precárias condições de muitas delas.
Como eram casas nas quais residiam por pouco tempo, e
muitas delas já estavam construídas e eram de propriedade do
dono da terra, não havia nem tempo e nem dinheiro para
melhorá-las.
Numa ocasião, quando moravam nas terras de
Zeferino Antunes, numa pequeníssima casa, sem assoalho,
próxima a uma mata e a um pântano, à noite, Malvina foi fazer
a costumeira revisão embaixo das camas, usando como fonte
de iluminação um pequeno lampião de óleo diesel, já que os
gatos costumavam fazer suas necessidades nesses lugares. Ao
agachar-se, Malvina avistou uma cobra coral rastejando
embaixo dos móveis. Como o quarto era extremamente
pequeno, e nele estavam duas camas separadas por um vão de
aproximadamente meio metro, e como os filhos já estavam
dormindo, Malvina passou-os para sua cama, posicionando-se
com um pé em cada uma delas. Ela jogou alho embaixo dos
leitos com a finalidade de espantar a cobra e, com uma pequena
madeira, um cabo de machado, quando a serpente passou pelo
vão entre as camas, esmagou-lhe a cabeça. Malvina diz que
tinha de buscar coragem para poder enfrentar o dia-a-dia,
mesmo não a tendo.
Outra lembrança incômoda que Malvina guarda é a de
ter de cobrir os móveis para protegê-los da chuva. Como as
casas, com exceção da última, não possuíam forração, quando
chovia, sempre acontecia de molhar os móveis, de cama a
fogão, pois dentro dela formava-se uma espécie de neblina. Por
isso, Malvina sempre conservava plásticos à mão para usar
nessas ocasiões.
Outros momentos difíceis aconteciam no inverno
rigoroso do Sul do País. Como as casas não eram bem vedadas,
o vento frio, conhecido como minuano, invadia seu interior e
congelava seus moradores. Malvina metia pano nas frestas das
paredes para diminuir o frio no interior das casas.
A precariedade das moradias se fazia perceber ainda
nos momentos de tempestade. Para sentir-se segura, e com a
finalidade de acalmar o tempo, Malvina conservava folhas de
palmas benzidas na Igreja no Domingo de Ramos, as quais
eram queimadas nesses momentos. Nessas ocasiões, ela reunia
perto de si os filhos e juntos rezavam alguma oração pedindo a
proteção divina.
TORNAR-SE MÃE

Quando o assunto é a maternidade, Malvina lembra de


várias histórias ligadas aos seus quatro filhos, todos nascidos
em casa e sem acompanhamento pré-natal. A única vez que
procurou um médico durante a gravidez foi quando, aos sete
meses da gestação de Antonio Dari, levantou meia saca de
trigo (30 quilogramas) e teve ameaça de parto. Durante a
gravidez, Malvina não diminuía o ritmo de trabalho pesado,
como carregar água, já que geralmente o líquido consumido
pela família era retirado de poço artesanal ou de vertente
(nascente, mina). Mesmo grávida, tinha também de cortar
lenha com machado.
De Valdir José, nascido em 1966, Malvina recorda
que quem lhe assistiu no parto foi sua sogra Rosália, já que
residia na casa dela. Algo que Malvina não esquece é de um
episódio acontecido no período da gravidez. Sua cunhada
Elenir estava fritando bolos e, como as cozinhas eram juntas,
mas separadas, como dissemos, esta não lhe ofereceu o
alimento. Mesmo desejando muito comer algum dos bonitos
bolos que estavam sendo fritos, Malvina não o pediu para a
cunhada. O fato de Valdir José ter nascido com uma marca na
testa é atribuído por Malvina ao desejo não realizado.
Valdir José com quatro anos e Lori Luiz com um ano e meio de idade.
Arquivo familiar
Do nascimento de Lori Luiz, em 1969, recorda do
sufoco que passou por encontrar-se sozinha. Como João Carlos
havia saído de casa no início da manhã para trabalhar na capina
da roça, Malvina, grávida de nove meses, ficou tomando café
para logo em seguida juntar-se a ele no trabalho. No entanto,
ela sentiu as dores do parto, deitou-se na cama e o filho nasceu.
Seu marido não voltou para ver o que acontecia. Por
desconhecer a forma de romper o cordão umbilical, Lori Luiz
ficou ligado à placenta até o meio dia, por mais de três horas,
quando João Carlos retornou da roça. Malvina enrolou Lori
Luiz num pano, vestiu nele uma camisa e uma toca na cabeça
para ‘não tomar frio na moleira’ e lhe deu uma chupeta. A
criança parecia muito tranquila, segundo Malvina.
Quando João Carlos chegou em casa, foi chamar sua
mãe para atender a esposa. Foi nesse momento em que Rosália
ensinou à nora a como proceder para cortar o cordão umbilical:
colocando-o por entre os dedos, aparando-o a uma distância de
quatro dedos e amarrando-lhe a ponta. Após o atendimento,
Malvina e o filho permaneceram em casa, não tendo ido
procurar qualquer assistência médica.
De Lori Luiz, Malvina lembra também que parecia
não ‘possuir osso na cabeça’. Por a ‘moleira ser muito aberta e
demorar muito a fechar’, ela punha uma meia preta na cabeça
do filho como simpatia para resolver o problema e para que o
menino não ficasse com a ‘cabeça chata’.
Quando nasceu o terceiro filho, Antonio Dari, dois
anos e dois meses depois do nascimento de Lori Luiz (Valdir
José estava com quatro anos e sete meses), em 1971, a surpresa
se deu em relação ao tamanho e peso do recém-nascido. Muito
pequeno, pesava apenas 1,5 quilograma. No parto, quando
Malvina começou a sentir as dores características, o marido foi
logo chamar a parteira Vidalvina dos Santos, sogra de sua
cunhada Elenir. Quando ela chegou, o menino já havia nascido.
Em conversa com sua mãe, Maria Eponina, Malvina
expressou preocupação com o não desenvolvimento do filho.
Como ele ‘dormia e mamava bem’, planejou levá-lo ao médico
quando completasse um mês de idade. Uma vez que ‘começou’
a crescer rapidamente após os trinta dias, acabou desistindo de
levá-lo ao posto de saúde. Para provar o tamanho minúsculo do
filho, ela guarda a roupa, mostrada adiante, que utilizou no
recém-nascido.
Quando do nascimento do último filho, Carlos
Alberto, dois anos e cinco meses depois, Malvina, então com
trinta e oito anos, foi atendida por Delmíria Machado, que não
tinha nenhuma experiência no acompanhamento de partos. Por
isso, Malvina a orientou a como proceder para cortar o cordão
umbilical.

Roupa de recém-nascido de Carlos Alberto (E) e de Antonio Dari (D).


Arquivo familiar.
Embora a intensidade de todos os relatos, uma das
maiores lembranças de Malvina se voltam, no entanto, para o
período da gravidez de Carlos Alberto. Por estar com desejo de
comer sardinha com polenta (nas quatro gestações pelas quais
passou, este é o segundo e último desejo que teve), solicitou
que o marido comprasse o peixe enlatado na cidade, já que ele
iria fazer as compras para o mês. Enquanto esperava o marido
chegar, Malvina adiantou-se cozinhando a polenta. Quando ele
chegou, à noite, não trouxe consigo as compras, dizendo que as
havia deixado no caminhão do vizinho com o qual havia
tomado carona. João Carlos disse à esposa que fosse buscar os
alimentos no dia seguinte. Ainda com o desejo de comer a
sardinha, no outro dia ela foi à casa do vizinho e não os
encontrou, pois haviam sido roubados possivelmente ainda na
cidade, se é que o marido os havia de fato adquirido. Por vezes,
ele gastava o dinheiro divertindo-se.
Após o nascimento de Carlos Alberto, Malvina optou
por tomar anticoncepcional, pois estava satisfeita com o
número de filhos que havia concebido. No entanto, após dois
meses, devido às complicações causadas pelo medicamento,
decidiu por interromper o uso, pensando que “se fosse para
engravidar, então que engravidasse”. Logo desenvolveu
problemas no aparelho reprodutor, sofrendo com constantes
dores e sangramentos por cinco anos. Quando da celebração da
Primeira Eucaristia de Antonio Dari, ela participou da
cerimônia acometida de um severo sangramento. A seguir, ela
foi hospitalizada e, com 43 anos de idade, teve o útero e os
ovários extirpados. Como não havia posto de saúde na vila de
Mato Grande para aplicar-lhe curativos na cirurgia, tinha de ir
à cidade para ser atendida, geralmente de carona.
Antonio Dari com quatro anos e Carlos Alberto com um ano e meio de
idade. Arquivo familiar.
Malvina conservava o costume de levar consigo os
filhos pequenos quando visitava alguém, ou quando ia
trabalhar na roça. Na roça, quando eles já conseguiam parar em
pé, Malvina os colocava em um pequeno cercado de madeira,
em forma de caixa, à sombra, para que pudesse trabalhar. No
caso do filho mais velho, Valdir José, tinha de levar também
um pedaço de tecido para forrar a caixa para evitar que ele
comesse terra. Malvina trabalhava tranquila porque os
cachorros os cuidavam. Ela fala de um cachorro policial, o
Patrulha, e de uma pequena cachorra, a Elite, que eram muito
atenciosos com as duas crianças mais velhas, não permitindo
que nenhum outro bicho ou pessoa se aproximassem delas. Os
filhos mais novos foram cuidados pelo filho mais velho.
A educação dos filhos incluía longas conversas com
eles, mas também a dedicação para lhes agradar com afagos e
também com a elaboração de pequenos mimos com os quais
marcava os momentos importantes de suas vidas, como os
aniversários e as festas religiosas. Como a família não tinha
condições de adquirir doces para presentear as crianças no
tempo da Páscoa, Malvina produzia pequenas cestas para os
filhos, composta por balas e cascas de ovo de galinha que ela
mesma enfeitava e enchia com ‘carapinha’ (amendoim com
açúcar). Era o que os filhos chamavam de ‘casquinhas de
Páscoa’. Com bastante antecedência, Malvina guardava as
cascas dos ovos que utilizava na cozinha, fazendo apenas um
furo em uma das pontas para tirar de dentro deles a clara e a
gema. Depois, comprava uma pequena porção de tela (tipo
véu) e tintas para tingir tecido. Ela tomava da natureza flores e
folhas e as comprimia contra a casca de ovo com o tecido,
amarrando-o para que não houvesse deslocamento. A seguir,
mergulhava a casca na tintura e deixava secar. Depois de secas,
as cascas ficavam pintadas com folhas e flores. Para
surpreender os filhos, ela fazia todo o trabalho secretamente.
Na virada do sábado para o domingo de Páscoa, colocava o
presente sob as camas dos meninos. A simplicidade e a carga
de sentimentos com as quais compunha as singelas cestas eram
emocionantes.
Por falar no tempo pascal, Malvina era bastante rígida
no cumprimento dos preceitos religiosos, de forma que proibia
todo e qualquer trabalho nos três últimos dias da Semana
Santa, os quais eram dedicados às atividades que aconteciam
na Igreja Católica. O único trabalho que era permitido realizar
era o de alimentar os animais e o de carregar água da fonte.
Cortar lenha ou trabalhar na roça eram tarefas que deviam de
ser feitas até a Quarta-Feira Santa. Elas voltavam a ser
realizadas somente na segunda-feira após a Páscoa. Exceção
acontecia no amanhecer da Sexta-Feira Santa, antes de o sol
nascer, quando se saía para colher a macela que seria utilizada
como chá durante o ano todo. A guarda da Semana Santa era
tão respeitada que inclusive as traquinagens dos filhos não
eram punidas nesse período. Algum eventual deslize somente
teria o acerto de contas no Sábado de Aleluia, tanto é que se
utilizava a expressão ‘tirar a aleluia’ no sentido de punição, de
surra.
Ainda ligada à maternidade, os filhos recordam-se
(com isso cruzando suas memórias com as memórias da mãe)
das brincadeiras que ela realizava com eles. Além das sempre
presentes “charadas”, do “purungo” ou sabugo e palha de
milho que viravam brinquedos, quando ia à roça com o filho
mais novo, Carlos Alberto, competia corrida com ele. Malvina
garante que o filho não conseguia vencê-la na corrida até os
doze anos, quando ela já tinha cinquenta anos. Isso demonstra,
também, o vigor físico que Malvina mantém ao longo da vida.
Para atender os filhos nas doenças, Malvina
conservava um verdadeiro complexo de plantas medicinais e
aromáticas, com as quais elaborava chás e infusões. Se um
estava com febre, lá vinha Malvina com chá de aipo,
acompanhado do cuidado para que não se molhasse ou tomasse
frio por ele ser ‘chá quente’; se doía um dente, Malvina usava
malva para tratar da infecção; se doía a cabeça, entrava em
cena a arruda, tomada como chá ou colocada, num pequeno
ramo, atrás da orelha; para combater os sintomas da gripe,
usava guaco, agrião, mel, alho e limão. Enfim, dificilmente
Malvina não sabia que remédio utilizar quando alguém da
família adoecia.
O tratamento da saúde familiar envolvia também a
consulta aos benzedores da região. Em último caso, ou
dependendo do tipo de doença, ela procurava atendimento
médico, inicialmente através do Sindicato de Trabalhadores
Rurais, órgão que chancelava a participação dos trabalhadores
pobres do campo no INAMPS, e depois diretamente no posto
de saúde, com o Sistema Único de Saúde, o SUS.
O SUSTENTO MATERIAL DA FAMÍLIA

Ao longo de toda a vida, Malvina participou


ativamente da produção do sustento material da família.
Quando as pequenas roças para a produção de comida (milho,
feijão, arroz, batata, mandioca, abóbora) e a horta ficavam
próximas da residência, Malvina trabalhava nelas algumas
horas na manhã, retornava para preparar o alimento, lavar e
passar as roupas do marido e dos quatro filhos, lavar as louças,
arrumar a casa, e à tarde novamente voltava ao trabalho fora de
casa.
As roças utilizadas pela família eram localizadas nas
encostas de matas, em terrenos pedregosos e em pântanos onde
as máquinas agrícolas não acessavam, e por isso eram cedidas
à família por seus donos para o cultivo de plantas alimentares.
No entanto, quando a terra cedida já era cultivada pelos
proprietários, geralmente eles autorizavam o plantio mediante a
limpeza do espaço, cobrando a terça parte da produção.
Outro espaço de cultivo eram as curvas de nível das
lavouras, onde eram plantados milho pipoca e batata. Devido à
mudança na forma de nivelamento do terreno, com a inserção
das ‘base-largas’ para a maximização do aproveitamento da
terra, no final da década de 1980, esse costume teve de ser
abandonado.
Outra maneira de conseguir o sustento da família era
através do plantio de soja, uma febre regional nos anos de
1980, só que em meio à plantação de milho dos vizinhos. O
milho era de propriedade do dono da terra, mas a soja era
dividida com a família meeira. Nesses casos, o processo de
cultivo era o seguinte: o dono da terra plantava o milho.
Quando o milho já estava nascido, se o terreno desenvolvesse o
crescimento de ervas daninhas, utilizava-se a capina com arado
de tração equina para limpá-lo. Após, plantava-se a soja com
máquina manual tipo ‘pica-pau’. Dava-se de uma a duas
capinas com enxada para limpar a plantação e colhia-se a soja
com o uso de foice. Juntava-se a soja em grandes montes e
trilhava-se com a máquina do dono da terra.
Malvina participava de todo o processo de cultivo da
soja, menos da venda, que era feita diretamente por João
Carlos. Malvina não ficava sabendo do valor aferido, tampouco
da sobra ou não de recursos anuais. Ela se calava por longos
períodos sobre o assunto, porém, quando se sentia lesada em
demasia, enfrentava João Carlos, dizendo-lhe que tinha de
trabalhar para comprar ‘suas coisas’, além de gastar-se na roça
para produzir bens dos quais nem sempre disfrutava. Seu
marido calava e, por vezes, com a intenção de desculpar-se,
trazia-lhe algum presente posteriormente.
Abrimos um parêntese para mostrar que a família
comprava os gêneros alimentícios na venda da Vila, chamada
de bolicho, e que seu dono ia anotando numa caderneta as
compras ao longo do mês. Como nem sempre era possível
quitá-la mensalmente, o acerto final era feito ou através da
venda da soja ainda verde, ou após a colheita. Ademais, João
Carlos, embora a doença causada pelo acidente antes referido,
usava parte dos recursos conseguidos com o seu trabalho e com
o trabalho da família para tomar sua costumeira cerveja,
quando ia à cidade, e para comprar cigarros. Ele fumava uma
carteira de cigarros por dia. Pairava ainda sobre a conduta de
João Carlos a desconfiança de que gastava os recursos da
família com pessoas de fora do seu círculo.
Outra forma de os Sortica Ramos conseguirem
recursos para seu sustento era através do contrato de trabalho
por diárias ou por empreitada nas propriedades agrícolas da
região, principalmente na construção de cercas ou na capina.
Trabalhos manuais de capina para a limpeza da lavoura foram
uma constante até o início da década de 1990, quando a
mecanização da agricultura e o uso de agrotóxicos foram
universalizados e a enxada abandonada. Malvina igualmente
participava desses trabalhos, alternando-os com as lides da
casa, com eventuais trabalhos de empregada doméstica e com a
produção de alimentos.
Por fim, há que se salientar o esforço que Malvina
fazia para que seus filhos estudassem. Como a família vivia
constantemente em mudança, e por inexistir educandários
próximos dos locais de morada, o filho mais velho, Valdir José,
somente ingressou na escola com nove anos, permanecendo
nela até os treze anos, tendo concluído somente a antiga quarta
série do primeiro grau.
Mesmo com a insistência de Malvina e dos
professores, Valdir negou-se a continuar os estudos para fugir
dos constantes problemas que enfrentava por estar fora da faixa
etária de sua classe e para poder auxiliar nos trabalhos de casa.
João Carlos, analfabeto, não nutria grande estima pela
escolarização e insistia que o filho lhe acompanhasse no
trabalho desde a tenra idade. Quando pequeno, com sete anos,
o menino acompanhava o pai nos acampamentos que mantinha
longe de casa para o cultivo de roças e para o trabalho de
empreitada, ficando ‘hospedado’ dentro de uma carroça, sujeito
aos rigores do tempo do Sul do País. Valdir José, já
adolescente, era quem levava, de bicicleta, laranjas à cidade
para que João Carlos as vendesse.
Mais tarde, quando Valdir José estava com quinze
anos, acabou fugindo de casa e indo morar com sua tia Rosa,
no município de Santo Ângelo, por dois anos, por discordar das
posturas de seu pai. Esse fato, por ser traumático, Malvina o
apagou completamente da memória por um tempo, tendo sido
relembrado no momento da escrita deste livro.
O segundo filho, Lori Luiz, ingressou na escola com
seis anos, antes mesmo de seu irmão mais velho, pois foi morar
na casa dos avós Antonio Manoel e Maria Eponina para poder
ficar mais próximo da escola. Ele cursou até a sétima série do
antigo Ensino Fundamental, tendo, depois de adulto, finalizado
o Ensino Médio.
Similar ao irmão mais velho, Lori Luiz deixou a
escola para trabalhar. Ele estava com quinze anos à época. No
entanto, saiu por vontade própria, pensando em ganhar seu
próprio dinheiro. Para isso, foi trabalhar de empregado em uma
grande ‘granja’ (fazenda), manuseando máquinas e
equipamentos, um sonho seu na época. Como passou a morar
no trabalho, a roupa suja trazia nos finais de semana para que
Malvina a lavasse.
O filho mais novo, Carlos Alberto, por a família
residir na vila de Mato Grande, estudou até a oitava série. Para
que continuasse os estudos, no entanto, devia mudar-se para a
cidade, ideia que não agradava a João Carlos. Carlos Alberto
acabou desistindo de continuar os estudos por conta disso.
O terceiro filho, Antonio Dari, por ter se tornado
seminarista, foi o que mais estudou, tendo sido o primeiro e
único, até o momento, dos vinte e quatro netos de Antonio
Manoel e de Maria Eponina, como também de Ricardo e de
Rosália, a chegar ao Ensino Superior. Como candidato ao
sacerdócio, cursou, em sistema de internato, o Ensino Médio, a
Licenciatura em Filosofia e parte do curso de Teologia. Após
desistir da carreira eclesiástica, cursou História, alcançando o
Mestrado e o Doutorado nessa área do conhecimento. Até
então, Malvina desconhecia a existência de ‘doutorado’ fora da
área médica ou do direito.
Para a formação dos filhos, embora nem todos tenham
frequentado a escola na medida do esperado por Malvina, que
sempre os incentivou ao estudo, a progenitora desdobrava-se
em outro trabalho remunerado, o de doméstica nas casas de
famílias que quiçá necessitassem de seus trabalhos ou na
limpeza da capela de Mato Grande. O pouco de recurso que
conseguia com esses trabalhos era utilizado para comprar
material escolar, calçados e roupas para os filhos estudarem.
Com relação ao trabalho de doméstica, o sonho de
Malvina, expresso em muitas ocasiões, era o de limpar, um dia,
sua própria casa. Dizia ela: “um dia hei de limpar a minha
própria casa e não somente a casa dos outros”. Com isso,
queria dizer que as casas que morava não eram
verdadeiramente casas, mas habitações precárias com as quais
não estava satisfeita, e que limpava tantas vezes as casas dos
outros, mas que não tinha o direito de limpar sua própria casa,
por não a possuir.
Malvina também auxiliava no sustento da família
cuidando de pequenos animais e da horta e pomar que sempre
cultivou. Era ela quem cuidava mais diretamente dos animais
domésticos, como de gatos, cachorros, galinhas e porcos,
alimentando-os.
Com relação à criação de galinhas, desde sempre ela
controla a época certa para colocá-las a ‘chocar’, pois, se puser
na lua errada, os pintos terão dificuldade de sair de dentro do
ovo, tendo de auxiliá-los a romper a membrana interna
localizada próxima à casca. Ela escolhe as galinhas maiores e
mais mansas para colocá-las em choco. O mesmo nível de
cuidado tem também com os ovos que são utilizados. Ela os
marca com carvão, traçando sobre eles um ‘x’, com duas
finalidades: para saber se alguma outra galinha põe seus ovos
no ninho, causando confusão no período de 22 dias necessários
para descascar os pintinhos; e para protegê-los da ação nociva
dos trovões, considerados por ela como uma das causas do
‘goro’ dos ovos (quando o pinto não se forma e o ovo é
perdido).
Para evitar a diminuição da qualidade do plantel de
galinhas, ela escolhe sempre o melhor galo para o terreiro,
trocando-o de tempos em tempos, negociando algum animal
com os vizinhos ou separando o frango maior e mais bonito
para cumprir a função de progenitor.
Com relação aos porcos, Malvina sempre se ocupava
deles. No entanto, deixou de criá-los há mais de quinze anos
por conta de ter abandonado o plantio do milho em escala
maior do que a da horticultura, algo necessário para a sua
alimentação. O motivo de continuar criando galinhas tem a ver
com a praticidade de colher ovos frescos e de boa qualidade
todos os dias, de poder contar com a carne de aves no momento
que deseja, além de a carne das galinhas que cria ser de melhor
qualidade se comparada com a que compra no mercado, por ser
mais ‘firme e gostosa’, como diz.
O modo de Malvina abater a galinha, dito por ela
‘carnear a galinha’, é bastante diferente do convencional. Ela
puxa-lhe o pescoço, pendurando-a em seguida para que o
sangue possa acumular-se próximo à cabeça da ave e ser
transformado, posteriormente, numa pequena ‘morcilha’. Após
depená-la com água quente, queimar as penugens, abrindo
parte da chapa do fogão a lenha ou fazendo um fogo com palha
de milho, abre a ave nas costas, martelando sobre ela uma faca
para romper os ossos, e retira-lhes as vísceras. Os filhos,
quando crianças, acompanhavam atentamente todo o processo.
Quando todos ainda moravam em casa, Malvina
dividia o animal em 18 pedaços, três para cada pessoa. O seu
pedaço corriqueiro era a costela da galinha, segundo ela porque
possui carne mais saborosa. O pedaço de João Carlos era o
peito.
Quando ‘carneava’ porcos, era João Carlos,
inicialmente, e depois o filho mais novo, Carlos Alberto, quem
sangrava o animal. Malvina sempre aparava o sangue para
fazer morcilha (chouriço). Nela eram misturados os miúdos do
porco, a carne da cabeça e parte do couro do animal. Com
muito tempero verde, ela fazia também morcilha branca, sem
sangue. Por não ter geladeira, parte da morcilha, junto com
parte da carne, era doada aos vizinhos e compadres como
forma de manter as boas relações e de garantir o retorno de
algum pedaço de carne fresca futuramente.
Nos momentos de ‘carneada’ de porco, Malvina
também assumia a função de limpar as tripas do animal para
servir de recipiente para encher a morcilha e, quiçá, algum
salame. Esse mesmo trabalho ela assumia também quando era
chamada por sua comadre Sueli Squinzani para ajudar no abate
de algum animal. Era função de Malvina, também, o cozimento
da banha.
Chama a atenção também o lugar onde Malvina
sempre conservava (e ainda conserva) o couro de porco e o
salame: pendurados a uma boa distância do fogão a lenha. Ali a
defumação acontece sem pressa e naturalmente. O couro,
depois de bem seco, é usado como tempero no feijão.
Adepta da educação pelo diálogo, Malvina sempre
tinha uma história para ilustrar o que ensinava para os filhos.
Para que não cortassem o pão ainda quente, por exemplo,
contava a história de alguém que comera pão sem esfriar e que
o alimento, por isso, lhe ‘fizera mal’. Na verdade, não queria
que os filhos comessem todo o pão fora do momento do café
ou do lanche da tarde. Somente depois de idosa é que ela
admitiu ter utilizado a estratégia para coibir qualquer tentativa
dos filhos em cortar e comer todo o pão ainda quente. Isso
ilustra o cuidado que sempre teve na administração do alimento
para que não faltasse à mesa. Ademais, essa era a preocupação
presente em cada refeição, pois o alimento, embora nunca
tenha faltado, em grande parte devido ao seu empenho e
criatividade, era sempre escasso.
Ainda com relação ao pão, na década de 1980, comê-
lo ‘misturado’ era o símbolo das dificuldades financeiras pelas
quais passava a família. Para baratear o custo do alimento,
Malvina misturava farinha de milho à farinha de trigo,
resultando no pão misturado.
Tanto o milho quanto o trigo consumidos pela família,
da mesma forma que o arroz, eram plantados nas terras cedidas
pelos proprietários locais, e beneficiados no moinho de
propriedade de Miguelão que existia em Mato Grande. Havia
duas formas de pagar o trabalho de moagem ou descascamento
dos grãos: deixando para o administrador do moinho um
percentual do alimento ou pagando o serviço em dinheiro.
Geralmente, optava-se pela primeira possibilidade já que nem
sempre a família possuía dinheiro em espécie para pagá-lo.
Para conservar de um ano para outro os alimentos
colhidos, Malvina utilizava algumas técnicas naturais. O feijão,
por exemplo, era guardado numa tulha com o pó característico,
chamado de ‘munha’, formado pela moagem das vagens e
folhas após ser debulhado a manguá. Com isso, ele não
carunchava. A tulha era necessária para evitar a ação de
roedores; a cebola e o alho eram guardados dependurados em
forma de tranças, as chamadas réstias. Malvina os colhia
quando maduros (quando o caule secava) e depois trançava as
palhas. Com essa técnica, o alho e a cebola conservavam-se por
meses depois de colhidos.
A VIDA SOCIAL E O COMPADRIO

Como agregada, a família buscava estabelecer boas


relações com os donos da terra e com as pessoas que moravam
próximas, e o compadrio era uma das maneiras de
reconhecimento dessas boas relações. Ser chamado para
apadrinhar alguma criança era motivo de grande prestígio. Da
mesma forma, convidar vizinhos ou parentes para batizar ou
crismar os filhos era uma forma de valorizar a amizade e a
confiança existente. Por exemplo, Angelina, irmã de Malvina,
foi batizada pelo casal José Maria e Francelina, donos da terra
onde a família residira.
Os filhos de Malvina, por sua vez, foram batizados por
pessoas bastante próximas, inclusive da própria família. Valdir
José foi batizado em casa pelos avós paternos Ricardo e
Rosália, donos da casa onde moravam, e pela tia Elenir, irmã
de João Carlos; na igreja, foi batizado pelos tios maternos
Angelina e Alvarino. Lori Luís foi batizado em casa pelo avô
materno, Antonio Manoel, e pela tia paterna Tereza; na igreja,
seus padrinhos foram o dono da terra onde a família residia no
momento, Ramão Wontroba, e novamente a tia paterna Tereza.
Antonio Dari, por sua vez, foi batizado em casa pela tia paterna
Tereza e por seu esposo Adolfo; na Igreja, foi batizado por
Alcides e Maria Fiorin, na época donos da terra onde tinham
residência Antonio Manoel e Maria Eponina. Eles eram
também patrões esporádicos de Malvina. Carlos Alberto foi
batizado em casa por Otávio e Belmíria Machado, e na igreja
por Neri e Odila Machado, filhos de Avelino Machado, dono
da terra onde, à época, a família residia, no Rincão Cascavel.
Dois aspectos se salientam no batismo das crianças.
Primeiro, o costume de batizar em casa, através de cerimônia
simples acontecida logo após o nascimento, geralmente por
alguém da família. A grande incidência de morte de recém-
nascidos levava à pressa no batismo de crianças. O segundo
aspecto é o convite feito aos donos da terra de quem a família
era agregada para que fossem padrinhos dos filhos. Interessante
notar que, nesses casos, a família menos abastada convidava
padrinhos com melhores condições financeiras. O contrário não
acontecia. Em todo caso, o batizado das crianças levava a que
boa parte dos irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas de Malvina
fosse tratada por compadre, comadre, embora isso não
acontecesse com seu pai, Antonio Manoel, que até a velhice era
chamado por Malvina carinhosamente de papai. Maria Eponina
também era chamada de mamãe por Malvina.
A mesma regra do bom relacionamento era válida para
o apadrinhamento por motivos do Crisma. No entanto, eram os
filhos, já adolescentes, que escolhiam os padrinhos. Os
meninos já prestavam trabalhos aos futuros padrinhos no
momento do convite ou frequentavam suas casas por conta da
amizade com seus filhos. Valdir José foi crismado por Amauri
Squinzani, filho de José Squinzani. Pai e filho
disponibilizavam terras para a família de Malvina plantar suas
pequenas roças e os milharais para o cultivo da soja. Amauri
Squinzani também doou a madeira para a construção da casa
no terreno doado por Miguelão, como já dito; Lori Luiz foi
crismado por José Lídio Cadore, outro colono com o qual a
família mantinha intensas relações, principalmente com o
empréstimo de trator para trazer lenha para o consumo
doméstico. Lori Luiz era amicíssimo dos filhos de Lídio;
Antonio Dari foi crismado por Neri Fontana, colono e dono de
um açougue no qual João Carlos auxiliava nos finais de
semana; Carlos Alberto foi crismado por Antonio Fiorin, filho
de Alcides Fiorin. Era costume o padrinho, além de
acompanhar o crismando, fornecer a roupa que o afilhado
usaria na cerimônia do Crisma, daí o destaque para a escolha
de pessoas com as quais existissem boas relações de amizade,
que fossem religiosamente exemplares, mas que também
pudessem viabilizar materialmente a participação no
sacramento católico.
Após o Batismo ou o Crisma, os afilhados passavam a
pedir ‘bênção’ (dito benção e não bênção) aos padrinhos. O
mesmo costume de pedir e dar ‘benção’ havia entre filhos e
pais, sobrinhos e tios, netos e avós. Pedir ‘benção’ era chamado
de ‘dar louvado’. Às vezes os pais mandavam os filhos ‘dar
louvado’ para os parentes que chegavam ou se despediam.
Destaque se dá à proximidade que Malvina Sortica
mantinha com a família Fiorin. Alcides Fiorin, quando se
acertou com Antonio Manoel para trabalharem juntos em suas
terras, em 1953, construiu um galpão para onde a família
mudou-se. O próprio Alcides Fiorin e sua família moraram um
tempo no referido galpão, junto da família Sortica, enquanto
construíam sua casa. Antonio Manoel e Maria Eponina
residiram nas terras de Alcides Fiorin por 35 anos, mesmo
depois de idosos. Inclusive Maria Eponina auxiliou Maria
Fiorin no parto da maioria de seus filhos, motivo pelo qual esta
expressava grande gratidão por Punica em diversos momentos.
Foi na casa da família Fiorin que Malvina prestou serviço em
diversas ocasiões, seja como doméstica, cuidadora das crianças
ou da residência quando esta viajava.
A presença da família Fiorin foi igualmente marcante
quando Antonio Dari, com quatorze anos, decidiu ingressar no
Seminário, por influência do então seminarista Léo Paulo
Fiorin, filho de Alcides e Maria Fiorin, o qual viria a ordenar-
se sacerdote. Como a família não apresentava condições para a
montagem do enxoval para o ingresso na casa de formação
católica, Alcides e Maria adquiriram as roupas necessárias, seja
as de uso pessoal ou de cama, além de pagarem dois salários
mínimos referentes à pensão seminarística anual no primeiro
ano de formação do novo seminarista. Nos demais anos do
Ensino Médio, Antonio Dari trabalhava parte das férias
escolares na fazenda do Seminário para pagar a pensão. No
restante das férias, trabalhava na lavoura de seu padrinho
Alcides Fiorin para auxiliar na compra de roupas e materiais
escolares a serem utilizados no ano vindouro no Seminário.
Malvina também economizava seu pouco recurso para passar
para o filho poder estudar.
Para além das relações estabelecidas com os donos das
terras utilizadas para a moradia ou plantio, existiam outras
relações que perpassavam o cotidiano de Malvina, sejam no
passado ou no presente. Quando jovem, os espaços para as
relações sociais que não estavam ligados ao mundo do
trabalho, no entanto, eram poucos para as moças pobres do
campo. O principal espaço de sociabilidade era a igreja, com as
festas comunitárias e com seus encontros semanais acontecidos
primordialmente para a reza do terço. Outros espaços eram os
bailes que aconteciam nos salões particulares, mas também os
que aconteciam nas casas de família.
Quanto a esse último tipo de festejo, eles aconteciam
na região de Mato Grande, entre as décadas de 1940 e 1970,
como forma de surpreender os amigos, tanto é que era
chamado de ‘surpresa’. O único preparativo que se necessitava
para que acontecesse era conseguir um músico (gaiteiro) e
dirigir-se com um grupo até a casa da família que sediaria o
evento. Caso houvesse aceitação da surpresa, o baile,
iluminado por lampião de querosene, podia tanto acontecer
dentro da casa quanto no terreiro. No terreiro, construía-se uma
ramada ou uma barraca coberta de lona e dançava-se até o
amanhecer. Os donos da casa eram obrigados a alimentar os
convivas, geralmente com uma galinhada feita com aves
retiradas de sua propriedade. Malvina não se recorda de ter
presenciado o consumo de bebidas alcoólicas nesse tipo de
encontro, de modo que essa era uma diferença marcante entre
aquelas reuniões e as festas comunitárias.
Antonio Manoel apreciava muito a participação nas
festas de família, para as quais levava suas filhas. Muitos pais
participavam desses momentos justamente com a intenção de
arranjar casamento para as filhas. Malvina não tinha muito
gosto em participar desse tipo de festa, preferindo ficar em casa
com sua mãe, Maria Eponina. Ela participou apenas de duas
delas. A segunda e última vez que teria participado desgostou-a
porque os envolvidos excederam-se moralmente, segundo sua
percepção, em dois momentos. Como a surpresa havia sido
combinada para acontecer na casa de Gentil Bairros, por ele já
estar dormindo, os festeiros derrubaram a porta da moradia
batendo nela com socos e pontapés na tentativa de acordá-lo.
Gentil, contrariado, não autorizou o uso da casa para o baile,
argumentando que sua esposa estava doente. O grupo dirigiu-
se, então, para a casa de Veríssimo Alegre. Lá mataram duas
galinhas para preparar a refeição, mas uma das panelas foi
roubada por dois dos visitantes, por Ambrosino e pelo
sobrinho-irmão de Malvina, Olindo Sortica, que foram jantar
na mata próxima. Malvina também achou a atitude pouco digna
de aprovação e resolveu nunca mais participar daquele tipo de
reunião, embora seu pai e seus irmãos e irmãs continuassem
participando. Para mostrar o desagrado com esse tipo de
conduta, ela chamava pejorativamente as surpresas de
bochincho.
Nos dias de chuva e nos finais de semana aconteciam
outros momentos de congraçamento entre os vizinhos. Malvina
e suas irmãs costumavam visitar nesses dias as famílias
próximas para tomar chimarrão e comer bolo frito,
principalmente a casa de Júlia Cardoso. Depois de casada, as
visitas foram direcionadas à família de seu marido ou de seus
pais e irmãs.
Importante espaço de sociabilidade e entreajuda entre
as famílias eram também os mutirões, chamados de puxirões,
principalmente na capina e na colheita, prática existente até o
final da década de 1980. O fim dos puxirões está relacionado à
diminuição do número das pessoas no campo e à mecanização
e ao uso de agrotóxicos na agricultura.
Outro importante costume que também se extinguiu,
no entanto no início da década de 1990, foi o envio de carne
aos vizinhos mais chegados e aos compadres quando se matava
uma res ou um porco. Nesses casos, os melhores pedaços eram
enviados para as pessoas que houvessem enviado também os
melhores pedaços de seus animais para a família. O costume
deve ser pensado no âmbito da solidariedade humana, mas
também da conservação dos alimentos. Por isso, quando houve
a popularização da energia elétrica e a consequente compra de
eletrodomésticos que permitiam conservar os alimentos,
principalmente a carne, gradativamente o costume foi sendo
abandonado. Antes, as únicas formas de conservar a carne era
guardando-a frita na banha, embutida (salame) ou defumada, se
suína, e como charque, se bovina.
Quanto ao status que a carne possuía na alimentação
cotidiana, há que se dizer que as famílias pobres não a
consumiam diariamente, pois era considerada uma ‘mistura’
cara e rara. Inclusive, as ‘carneadas’ eram tomadas como
eventos familiares bastante importantes. Participar deles sem
ser convidado se constituía numa gafe social imperdoável.
Quando criança, Malvina presenciou uma situação
inusitada da qual tem lembrança até o presente e que ilustra o
status que a carne tinha na alimentação das pessoas. Quando
morava com seus pais nas terras de Edegar Pinheiro, havia uma
família vizinha que costumava pedir de verdura a banha e
torresmo. Malvina, por receio de que as filhas dessa família
pedissem a carne do porco que os Sortica haviam abatido,
afirmou para elas, quando perguntada acerca do que haviam
‘feito com o porco que estava no chiqueiro’, que ele havia
morrido por ter comido mandioca murcha. Mal sabia que sua
mãe havia enviado um pedaço da carne do porco para sua
comadre França. Maria Eponina ficou sabendo da mentira de
Malvina por Marina e teria ficado furiosa com ela, pensando na
repercussão negativa de sua fala. Maria Eponina teria dito: “o
que a comadre França vai pensar disso, que o porco morreu
intoxicado e eu mandei um pedaço para ela?” Malvina não
entende, pela gravidade de sua mentira, como não apanhou de
Punica no episódio. Ela garante que nunca mais mentiu depois
daquele dia.
O PREPARO DE ALIMENTOS, A COSTURA DE
ROUPA E O ARTESANATO

Como a grande maioria das meninas de sua época,


Malvina foi preparada para dar conta da manutenção material
da casa mesmo com recursos financeiros escassos. Quando
casada, além de trabalhar em ofícios externos, ela tinha de
executar a economia doméstica, muitas vezes sem a
participação de seu marido, o qual sempre costumava
‘economizar’ nas compras do necessário para abastecer de
víveres a família.
Quando constituiu a sua família, a carne continuava
não fazendo parte de sua dieta alimentar diária. Quando estava
presente, era geralmente nos finais de semana e era constituída
de carne de frango retirado do terreiro, de porco criado com
restos de alimentos, milho e abóbora, de caça ou eventualmente
de peixe pescado nos pequenos rios próximos da casa ou de
cabeças e miúdos de suínos ou bovinos dados em pagamento
quando alguém auxiliava os vizinhos no abate de algum
animal, ou quando recebia um pedaço de carne em
reciprocidade à doação anterior. Para balancear as refeições
com alimentos que garantissem a energia necessária para a
realização das desgastantes atividades físicas presentes no
cotidiano familiar, Malvina punha sempre sua criatividade em
movimento. Pratos com o uso de ovos, de hortaliças as mais
diversas colhidas na horta familiar, de legumes e frutas
produzidos por ela, eram cotidianamente postos à mesa.
Alimentos à base de abóbora, mandioca, batata e milho eram
corriqueiros em sua cozinha. Eles eram preparados
primordialmente no fogão a lenha. Aliás, o primeiro fogão a
gás somente foi adquirido em 1996, e permanece até o presente
com uso restrito, sendo o fogão a lenha o mais utilizado no
preparo dos alimentos.
Bolos, pudins e sobremesas sempre foram
criativamente elaborados por Malvina, utilizando também
ingredientes por ela produzidos. Nesse sentido, a necessidade
lhe era a mãe da criatividade. O seu talento na cozinha é
reconhecido por toda a família. Pães e bolos, massas caseiras,
compotas, quibebe, galinhada, e tantos outros pratos, são
alimentos que os filhos, netos e sobrinhos sempre lhes pedem
que prepare.
A falta de recursos para a compra de roupas era
amenizada por Malvina que costurava as vestimentas da
família e as remendava quando necessário. As roupas de
trabalho eram geralmente carregadas de remendos. Ela
aprendeu com sua mãe a arte da produção de roupas.
Inicialmente, quando os filhos eram pequenos, por não
poder adquirir uma máquina de costura, ela cortava o tecido e o
costurava com o uso de agulha, cuidando para que os pontos
ficassem bastante pequenos. Com o passar do tempo, passou a
utilizar uma máquina de costura manual, adquirida já usada na
década de 1980, similar a que sua mãe utilizava, com a qual
ainda hoje faz pequenas costuras.
As roupas utilizadas pelos filhos, e que constam
registradas através das fotografias seguintes, foram
praticamente todas costuradas por Malvina. Ela costurava
camisas e calças masculinas, blusas e saias femininas, com
tecidos adquiridos com o dinheiro conseguido com os trabalhos
que realizava na limpeza de casas de outras famílias ou da
Igreja Católica da Comunidade de Mato Grande.

Máquina de costura utilizada por Malvina. Arquivo familiar.

Malvina sempre gostou muito de artesanato. A


elaboração de enfeites para a casa, a trança e a costura de
chapéus de palha de trigo, os trançados com os mais diversos
materiais, o tricô, a produção de recipientes de uso cotidiano,
como de cestas e porta-objetos, feitos com purungo (cabaça) e
papel reciclado, a preparação de cascas de ovos utilizadas na
Páscoa, eram atividades artesanais que ela desenvolvia
principalmente nos períodos chuvosos, quando era impossível a
realização de trabalhos na agricultura, e também nos finais de
semana.
Para aprimorar a técnica de produção de artesanato, ela
realizou diversos cursos locais, já depois de aposentada.
Quando viaja, Malvina adquire peças artesanais com as quais
enfeita a casa, de modo que possui uma grande quantidade
delas espalhadas pela sala, cozinha e quartos. Não raras vezes
essas peças servem de modelo para a produção de outras
similares ou para releituras que faz utilizando outros materiais.
O artesanato é um passatempo que ela tem utilizado para
manter-se ativa na velhice.
A EDUCAÇÃO DOS FILHOS

Malvina sempre foi muito atenciosa e paciente com os


filhos. Desde cedo, ensinava-lhes de religião às lides na
cozinha, de modo que os quatro filhos aprenderam a cozinhar
com ela. João Carlos, por sua vez, utilizava o método do
castigo para sujeitar os filhos, para fazê-los ‘ter medo’, como
dizia. Adepta da educação pelo diálogo e pelo exemplo, conta
um episódio em que seu filho Antonio Dari, quando ainda
bastante pequeno, recém aprendendo a falar, na roça tomou um
pé de feijão e lhe disse: “vô dá uns jaxaxo (vou lhe dar uns
laçaços)”. Pacientemente, ela tomou outro pé de feijão e, a
cada batida do filho, batia nele com um pouco mais de força,
como se estivesse brincando. Quando o filho sentiu a dor do
‘laçaço’, após um “ui mãe”, desistiu para sempre da atitude,
não sem antes receber uma boa reprimenda por seu mau
comportamento.
Os cuidados que Malvina dispensava, e ainda
dispensa, a cada um dos filhos era e continua sendo muito
grande. Embora o carinho que recebe de todos eles, Malvina
recorda que, quando adolescentes, o mais caseiro, que ficava
junto de si praticamente todo o tempo, era Antonio Dari. Uma
vez, quando perguntado pela mãe sobre o motivo de não ir
brincar como os outros irmãos, teria dito que tinha medo de
que ela saísse e não o levasse consigo. Quando ele ingressou no
Seminário, em 1986, a mãe conta que sentiu imensamente a sua
falta e que deixava sempre um prato a mais na mesa,
parecendo-lhe que retornaria para alimentar-se com os demais.
Nesses momentos pensava: “ele está bem, e eu devo parar de
me preocupar à toa!”
Algumas vezes, no entanto, Malvina perdia a
paciência com as traquinagens dos filhos. Numa vez, por não
suportar que os filhos mais velhos, Valdir José e Lori Luiz,
brigassem entre si, fez os dois abraçarem-se e beijarem-se
como ‘castigo’. Diz ela que eles nunca mais brigaram depois
disso. Pese-se, no exemplo, o machismo que existe no meio
rural.
Dos filhos mais novos, Antonio Dari e Carlos Alberto,
lembra de uma situação em que teve de usar de mais firmeza
com eles para que não viessem a repetir um malfeito. Malvina
sempre mantinha várias galinhas em seu terreiro para a
produção de ovos para a família, mas também para gerar algum
dinheiro extra com sua venda para os vizinhos. Num momento
de muito aperto financeiro, ela pediu que Carlos Alberto e
Antonio Dari levassem duas dúzias de ovos até o bolicho, o
mercado local, pois ela havia combinado de entregá-los
naquele dia. Os ovos foram postos cuidadosamente em um saco
plástico e os dois meninos saíram em direção ao bolicho. Por
preguiça, ambos se desentenderam sobre quem carregaria os
ovos. Como não chegaram a um consenso, Carlos Alberto
jogou em Antonio Dari o saco de ovos, que restaram todos
quebrados. Ambos retornam para casa com muito medo do que
lhes podia acontecer. Malvina percebeu que havia algo de
errado já na chegada dos filhos e perguntou-lhes sobre o
dinheiro da venda. Quando soube do acontecido, deu uma surra
de vara nos meninos, dizendo-lhes que o dano que haviam
causado era duplo: para ela e para a dona do bolicho. Para ela
porque precisava muito daqueles trocados; para a dona do
bolicho porque era uma época de muita escassez de ovos e ela
necessitava deles para preparar alimentos.
Malvina também ensinava seus filhos a comportarem-
se adequadamente em público, seja cuidando do que falavam,
seja não fazendo refeições nas casas dos vizinhos, por achar
um costume inapropriado. Quanto ao primeiro cuidado, no
entanto, nem sempre podia contar com a colaboração dos
filhos, que a faziam passar vergonha diante de conhecidos ou
de estranhos. Numa ocasião, fora visitar parentes na cidade de
Santo Ângelo e levou consigo Antonio Dari e Carlos Alberto.
Era época de butiá, um fruto saboroso típico da região, colhido
da mesma palmeira utilizada para fazer os já ditos colchões de
crina e lã. Malvina quis presentear seus parentes com butiás,
colhendo-os e os colocando em um saco plástico (ela chama
saco plástico de matéria). No transporte coletivo da cidade de
Santo Ângelo, por o ônibus estar muito lotado, os butiás foram
amassados e soltaram a calda que lhe é característica,
molhando Carlos Alberto. O menino chamou sua mãe e disse
em tom alto algo que a envergonhou muito: “mãe, tem uma
coisa me mijando na perna”. As pessoas ficaram ‘reparando’
na língua solta de Carlos Alberto, segundo Malvina.
Noutra situação, o filho mais velho, Valdir José,
estava brincando na casa de um vizinho. Chegou a hora do
almoço e todos insistiam para que ele descesse de uma árvore
onde havia subido e fosse almoçar com a família. Após muita
insistência, Valdir José, embora com muita vontade de
almoçar, mas lembrando-se do conselho da mãe de que ‘não
comesse nas casas’, teve uma resposta inusitada: “não vou
almoçar porque deixei de comer”.
Ainda com relação à educação dos filhos, era de
responsabilidade deles cuidar do horário da aula. Desde
bastante pequenos, Malvina ensinava-lhes o horário de levantar
para dirigirem-se à escola. Quando já moravam na vila de Mato
Grande, os filhos levantavam-se com a batida do sino
comunitário, às seis horas da manhã (o sino marcava também o
meio dia e as seis horas da tarde, além dos momentos de culto e
a morte das pessoas, quando era tocado ‘de um só lado’,
badalando a idade da pessoa morta). Os filhos levantavam-se,
faziam fogo no fogão a lenha, preparavam seu café e dirigiam-
se à escola. Ela levantava-se próximo das sete horas, uma vez
que era sempre a última a ir dormir, depois de ter lavado a
louça usada no jantar e de arrumar a cozinha.
As crianças estudavam num turno e trabalhavam no
outro com a família. À noite, faziam as tarefas escolares à luz
de lamparina ou de vela. A família ia dormir em torno das 21
horas e trinta minutos, depois de escutar algum programa
radiofônico no grande rádio a pilha.
Quanto ao costume de ouvir rádio, ele se constituía em
um momento de reunião familiar. Os pais e os filhos sentavam
para ouvir programas musicais, geralmente de música gaúcha,
sertaneja de raiz ou de bandas alemãs, programas de humor,
com destaque para a “Turma da Maré Mansa”, de notícias ou
religiosos. As únicas informações que a família acessava, além
daquelas disponibilizadas pela escola e pela igreja, era através
do rádio. Por ele ficava-se sabendo sobre quem nascia ou
morria no município, sobre assuntos políticos e policiais. Na
noite de domingo, às vezes, ia-se até a casa de algum vizinho
para assistir a programas de televisão.
Malvina costumava escrever cartas para as rádios. Ela
pedia para rodar músicas e as oferecia para os familiares e para
os amigos, como forma de homenageá-los. Esse costume
passou também para os filhos mais velhos. Inclusive, Valdir
José alimentou por anos o sonho de trabalhar em Rádio. Nos
domingos, ele caminhava doze quilômetros, de madrugada,
para acompanhar ao vivo um programa matinal do qual gostava
e que era apresentado por Antonio Carlos Funke, o Duda, na
Rádio Giruá.
A VIDA RELIGIOSA

Malvina sempre foi muito religiosa, seja participando


da vida da comunidade, motivando a família à piedade cristã
ou ensinando aos filhos as orações católicas e lendo com eles a
Bíblia. Desde cedo, ela acompanhava seus irmãos e irmãs até
as comunidades religiosas que ficavam localizadas próximo
dos locais de morada. Seus pais, Manoel Antonio e Maria
Eponina, ao contrário dos filhos, não eram assíduos
participantes das cerimônias religiosas.
Malvina aprendeu desde jovem a coordenar a reza do
terço. Quando casada, inúmeras vezes incentivava a família
para momentos de oração, tanto aqueles que aconteciam
somente com seus integrantes, quanto as costumeiras novenas
de Natal e de Páscoa, nas quais grupos familiares se
encontravam com a finalidade de prepararem-se para as festas
religiosas. Por um longo período, Malvina foi membro do
grupo de oração e caridade chamado de Legião de Maria.
Nesse período, além dos encontros semanais de oração, o
grupo visitava os doentes da comunidade de Mato Grande. As
legionárias tratavam-se como irmãs. Na Legião de Maria, ela
era a irmã Malvina.
O cuidado que tinha com a religião fez com que
motivasse os filhos aos sacramentos católicos. A participação
deles nos sacramentos eram momentos fortes do cotidiano
familiar, como se percebe nas imagens, quando eram usadas as
melhores roupas que se dispunha.

Primeira Eucaristia de Valdir José e de Lori Luiz. Da esquerda para a


direita, atrás: Valdir José, João Carlos, Malvina, Lori Luiz; a frente:
Antonio Dari e Carlos Alberto. Arquivo familiar.

Na foto acima, registro da Primeira Eucaristia de


Valdir José e de Lori Luiz, acontecida em 1978, alguns
elementos se salientam. O primeiro deles são as roupas dos
filhos e a camisa do marido que foram costuradas por Malvina.
O segundo é a vestimenta de João Carlos. Ele se encontra
vestido com as roupas tradicionais gaúchas. João Carlos
conservou esse costume por toda a vida, tendo sido inclusive
sepultado, em 2005, com as roupas típicas. Na foto, entretanto,
João Carlos encontra-se sem o usual lenço vermelho que
sempre utilizou. O motivo era o luto que vivia por ter perdido,
naquele ano, a mãe e o pai, por AVC e infarto,
respectivamente, e o irmão Valdomiro, que se suicidou. Além
de não usar a cor vermelha, ele também usava uma tarja preta
no bolso da camisa como sinal externo de luto.

Crisma de Valdir José. Da esquerda para a direita, atrás: Valdir José, João
Carlos, Malvina, Lori Luiz; a frente: Antonio Dari e Carlos Alberto.
Arquivo familiar

Nem sempre, no entanto, por conta da pobreza, a


família dispunha de roupas adequadas para participar das
cerimônias religiosas, como é possível perceber na foto acima,
referente ao ano de 1980. Nela, Valdir José apresenta-se bem
vestido, com a roupa presenteada por Amauri Squinzani, seu
padrinho. O mesmo pode-se dizer de Antonio Dari, que usa
roupas, com exceção do paletó, feitas por Malvina. No entanto,
calça chinelos tipo havaiana, pois não possuía outro calçado
para a ocasião. Carlos Alberto e Lori Luiz usam casacos
flagrantemente menores do que seria o tamanho ideal. Para
completar o quadro, João Carlos usa o pala que sempre lhe
acompanhava, mas com uma dobra sobre o ombro, e Malvina
encontra-se com um dos botões de seu casaco aberto.

Crisma de Lori Luiz. Arquivo familiar.


O início da década de 1980 foi um dos momentos
mais difíceis para a sobrevivência material da família. O
aumento dos gastos com a alimentação, a inflação em níveis
inimagináveis e a manutenção dos filhos na escola acarretavam
grandes dificuldades financeiras para a família. A imagem
acima retrata, pelas roupas utilizadas e pelas expressões
corporais, essas dificuldades. Ela foi tirada em 1983, na
cerimônia de Crisma de Lori Luiz, no salão paroquial de
Rincão dos Beltrame, no mesmo dia em que Malvina se tornou
madrinha de Crisma da então esposa de seu sobrinho Antonio
Sortica, Neli Siqueira.

Primeira Eucaristia de Carlos Alberto. Arquivo familiar.


Malvina sempre fez questão de registrar em fotografia
os momentos fortes da vida religiosa da família. Quando recebe
visitas, tem o costume de mostrar essas fotografias. Esse é um
dos motivos pelos quais optamos por apresentar algumas delas
neste texto, as quais guarda carinhosamente. Para cada uma das
fotografias, Malvina possui uma história que entretém a visita.
Essas histórias vão desde a roupa usada, até situações de
doença, casos pitorescos, enfim, ela cria um enredo para
apresentar cada momento fotografado.

Casamento religioso de Lori Luiz. Arquivo familiar.


Lori Luiz casou-se em Giruá com Cleci Alves da
Rosa, pouco antes de completar vinte e um anos, em 1989. O
novo casal decidiu casar-se para poder morar em São Sepé,
município próximo a Santa Maria, a fim de trabalhar numa
fazenda.

Casamento religioso de Antonio Dari. Arquivo familiar.

Antonio Dari casou-se com Marisa Klein e Lima, em


Santo Ângelo, RS, em 1997, quando estava com 26 anos, três
anos após desistir do Seminário.
Um dos motivos que levaram Antonio Dari a seguir a
carreira eclesiástica foi o incentivo de sua mãe. João Carlos,
por sua vez, não fazia inicialmente muito gosto que o filho
estudasse para ser padre, argumentando não ter condições de
mantê-lo estudando fora de casa. Com o passar do tempo,
passou também a incentivá-lo. Antonio Dari permaneceu no
seminário por nove anos, entre os quinze e os vinte e três anos
de idade.

Casamento de Carlos Alberto. Arquivo Familiar.

Carlos Alberto, o filho mais novo, casou-se em Giruá


com Simone Clara Nenning, em 2015, quando estava com 42
anos. Valdir José, o filho mais velho, já com cinquenta anos,
não dá mostras de que pretenda casar-se tão cedo, tampouco
que queira manter-se solteiro.
A VIDA DE CASADA

Malvina dividiu o mesmo teto com João Carlos por 39


anos. João Carlos e Malvina, quando casaram, eram ‘bem
apessoados’, como se dizia na época.

Malvina com 29 anos de idade. Arquivo familiar.


Com o passar do tempo, João Carlos mostrou-se,
entretanto, um marido bastante ciumento. Mesmo que jamais
tenha agredido fisicamente Malvina, pelo menos em uma
ocasião brigou com ela por conta de enciumar-se pelo
tratamento dado pela esposa ao sobrinho-irmão dela, Olindo
Sortica. O episódio aconteceu em uma visita que Olindo fizera
ao casal. Como Malvina assava o pão no fogão a lenha, e
Olindo lhe acompanhava na cozinha, devido ao vento ela
fechou a porta para que o cozimento do pão não fosse
prejudicado. João Carlos trabalhava no exterior da casa e
imaginou que a esposa o estivesse traindo. Após a saída de
Olindo, ele brigou muito com a mulher. Malvina ficou muito
magoada com a atitude do marido por um longo período, tendo
sido vista pelos filhos chorando. Perguntada sobre o motivo,
apenas disse que estava triste, mas que não se preocupassem
com ela. Malvina somente falou do ocorrido passados mais de
trinta anos.
Outro episódio de demonstração de ciúme aconteceu
quando o casal já se encontrava sozinho, com os filhos
crescidos e residindo fora de casa. Aos 60 anos, por o marido
encontrar-se bastante adoentado, e não conseguir dar conta das
pequenas roças que o casal mantinha em terras de encosta de
mato, com a ocorrência de rocha ou pantanosa, como dito
anteriormente, enquanto ele ficara em casa acamado, Malvina
se deslocou caminhando quatro quilômetros para cuidar de uma
lavoura de milho, feijão, abóbora e amendoim. João Carlos, no
entanto, levantou-se da cama e seguiu secretamente a esposa
com a intenção de vigiá-la. Malvina ficou sabendo do ocorrido
através de uma benzedeira e confidente da família – a crença
em benzimento sempre esteve presente na vida de Malvina,
tanto é que sua mãe, Maria Eponina, e sua sogra, Rosália,
eram, além de parteiras, benzedeiras. Na velhice, Malvina
costuma visitar frequentemente uma benzedeira de Santo
Ângelo, chamada de Evanir, a qual cuida de sua saúde física e
espiritual. Interessante notar que ela chama de benzedeira tanto
as tradicionais rezadoras que buscam, pela bênção, a saúde,
quanto as videntes e as pessoas sensitivas.

João Carlos com trinta anos. Arquivo familiar.


João Carlos havia confessado sua atitude à benzedeira.
Com isso, Malvina sentiu-se ofendida e deixou de manter as
roças, resultando o evento no abandono da prática de plantio
nas terras dos vizinhos, já que João Carlos não possuía mais as
condições físicas para cultivá-las. Conservou, no entanto, o
cultivo de hortaliças, de frutas, de flores e de plantas
medicinais nas proximidades da casa, situada na vila de Mato
Grande.
As lembranças que Malvina guarda do marido era de
um homem trabalhador, muito severo com os filhos, mas
também com a fama de namorador. Já antes de casar-se com
Malvina, quando eram noivos, João Carlos teve um
envolvimento com outra moça que resultou numa filha,
Marizete Lima. Embora os rumores de que tinha uma filha fora
do casamento, nunca confirmava ou desmentia a história. No
entanto, quando estava já bastante doente, com a visita da filha
em sua casa, teve de assumi-la publicamente. Ela encontrava-
se, no momento, com mais de quarenta anos.
Outro caso que alimentava a má fama do marido
aconteceu quando ele foi surpreendido por familiares em um
romance com uma parenta próxima de Malvina em uma roça.
Esse fato rendeu-lhe o apelido de ‘cambão’, que é uma peça de
madeira que liga o arado à ‘canga’, instrumento que une dois
bois quando em serviço de tração. O apelido do marido era
considerado uma ofensa por Malvina, pois a machucava
moralmente.
Noutra ocasião, Malvina havia presenciado o marido
junto de sua parenta numa estrada. O fato aconteceu quando
foram fazer uma visita a outra família, e a parenta os
acompanhou. No retorno para casa, já à noite, ao passar por
uma ‘picada’, estrada que cruzava uma mata, ele disse à
Malvina que iria ao bolicho comprar cigarros, e que ela se
dirigisse com os filhos para casa. A parenta já havia tomado
outra estrada que levava a sua casa. Desconfiada, Malvina
deixou os filhos pequenos escondidos na mata e seguiu o
marido, tendo avistado ele próximo da mulher. Quando chegou
em casa, João Carlos fingiu-se de ofendido com o que
caracterizou como invenção de Malvina.
HISTÓRIAS FABULOSAS

Malvina sempre teve predileção por contar histórias


fabulosas (causos) para seus filhos e para os visitantes. Muitos
desses causos se referem a assombrações e ao enterramento de
dinheiro, geralmente tendo como referência picadas ou pés de
butiá. Malvina sempre começa os causos com a expressão ‘diz
que’.
Diz que um pegou uma corda grande para se
transformar em cobra para cuidar do cabedal e fez um
nó na ponta. O nó era para se transformar na cabeça
da cobra. Só que outro viu ele fazendo o nó, e
escondeu-se para ver onde ele iria enterrar a panela de
dinheiro. Diz que o dono do dinheiro saiu e ele foi lá
desenterrar. E diz que aquela corda estava se mexendo
e ele sofreu muito para tirar o dinheiro, mas ele sabia
que era uma corda. Esse causo foi muito falado. Não sei
se era verdade ou não (Entrevista concedida ao autor
em janeiro de 2013).

Existiam pessoas que, motivadas por essas histórias,


dedicavam-se a procurar enterramentos de dinheiro, como um
vizinho de Malvina, chamado Antonio Pazini, que era
conhecido nas redondezas por manter a prática por longos anos
e em diversos locais.
Malvina narra também uma história contada para ela
em duas ocasiões, e noutra para Sueli Squinzani, pelo
sobrinho-irmão Olindo Sortica. Olindo, quando prestava
serviço a Aquiles Bruti, abrindo um buraco para uma fossa
séptica, teria encontrado um estribo de ouro. Por estar na
propriedade de Aquiles, entregou a ele o estribo. Malvina diz
que a morte precoce de Aquiles e de sua mulher pode ter tido
relação com a maldição do referido presente, como ‘diz que’
foi falado por Olindo.
Outra história contada por ela refere-se a um fato
acontecido quando tinha dezoitos anos. Junto de seus irmãos
Alcidino e Marina, ela foi caçar um tatu que entrou em um toco
de uma árvore, numa picada em uma mata próxima da casa. Os
três cavaram e não encontraram nenhum buraco, mas apenas
carvão. Malvina diz que talvez fosse um aviso de que ali
pudesse haver um enterramento de ouro.
O fato ocorreu no mesmo local onde Salvador Chaves
de Oliveira, casado com sua falecida irmã Marina, na época
namorado de Negra, filha de Arminda, havia sido tocado por
um fenômeno estranho que lhe fez abandonar o namoro. Como
voltava à noite, a cavalo, e devia passar pela referida picada,
deixava próximo dela uma tocha feita com taquara e palha, a
qual acendia para iluminar o caminho. Eis que,
surpreendentemente, começou a ventar muito forte, o que fez
Salvador assustar-se ao ponto de desandar numa carreira pela
estrada e de perder inclusive o chapéu no episódio. Ao chegar
em casa, por medo, meteu-se debaixo das cobertas por achar
que tivera tido um ataque de alguma assombração.
Malvina pensa que boa parte das histórias de
assombração talvez nem tivessem acontecido, e podiam ser
contadas com a intenção de causar medo na juventude a fim de
que permanecesse em suas casas.
Ainda quanto a assombrações, Malvina conta que
vivenciou apenas poucos episódios que pensa tratarem-se de
eventos sobrenaturais. Num desses momentos, ela era bem
criança e fora ao banheiro que ficava localizado fora de casa.
Era uma noite de garoa e ela viu nitidamente que a égua
branca, a Boneca, estava pastando em frente da casa. Ela teria
avisado seu pai sobre o que vira, mas ele constatou, entretanto,
que a égua estava amarrada, como de costume, em outro lugar.
Outra história que conta é de uma vez que foi deitar-se
mais cedo, e a família continuou, como de praxe, conversando
na cozinha, ao redor do fogo de chão. De repente, Malvina viu
que alguém abriu a porta, entrou no quarto e, no escuro, deitou-
se na cama de Doralina. As irmãs foram deitar-se logo em
seguida e Malvina percebeu que não havia ninguém na cama d
e Doralina. Ela guardou, contudo, silêncio sobre o fato até o dia
amanhecer.
Numa outra ocasião, refere que vira algo inexplicável
no velório de uma menina recém-nascida, filha de um
sobrinho-neto, Rodrigo Sortica, quando já era idosa. Malvina
conta que estava, à noite, chegando à Igreja, no local onde
acontecem os velórios dos moradores da Vila de Mato Grande.
Ela teria visto uma imagem paradisíaca encimando a casa de
uma vizinha que fica localizada ao lado do salão paroquial da
comunidade. A imagem era composta por uma nuvem branca e
sobre ela estavam dois pequenos anjos, um sentado e outro em
pé. Desconfiada do que vira, não contou nada a ninguém. Ficou
pensando tratar-se de alguma árvore que pudesse ter a forma da
imagem que enxergara. Para sair da dúvida, no outro dia foi
procurar pela árvore branca que vira na noite anterior, mas não
a encontrou, julgando tratar-se de uma situação bastante
‘esquisita’ e inexplicável.
As histórias contadas por Malvina incutiam muito
medo nos filhos. Em certa ocasião, quando Antonio Dari estava
com seis e Lori Luiz com nove anos, em uma brincadeira entre
ambos, Lori feriu o irmão com um corte de faca no braço.
Vendo o ferimento do filho, por insistência de um vizinho
próximo, Assis Xavier, que o menino fosse levado ao médico,
Malvina tomou uma carona e foi à cidade solicitar o
atendimento gratuito em um consultório particular, num
horário em que o posto de saúde já havia fechado. Como já
estava anoitecendo, no retorno, e por ser sexta-feira, um dia
muito utilizado nas histórias de assombração, Antonio Dari
demonstrou grande medo por ser ‘dia de lobisomem’.
Perguntando à mãe como era um lobisomem, ela lhe respondeu
que era um homem de cabelo comprido e muito barbudo. Já
entrada a noite, mãe e filho conseguiram uma carona com um
granjeiro (proprietário de terras), Vilmar Adiers, cabeludo e
barbudo. No caminho, Malvina percebeu o medo do filho, mas
ambos permaneceram calados. Chegando em casa, Antonio
Dari contou, com muita admiração, para seus irmãos, que
conhecera um lobisomem e que ele lhes dera carona da cidade
à vila de Mato Grande.
O fato narrado mostra um hábito de transporte
bastante arraigado até o presente em Mato Grande. Mesmo que
desde o fim do transporte ferroviário, na década de 1980, exista
um ônibus que faz a linha Mato Grande-Giruá, uma vez por
dia, e Mato Grande-Santo Ângelo, três vezes por semana, por
estrada de terra, os moradores pobres da redondeza costumam
ir e voltar da cidade de carona.
APOSENTADORIA E VIUVEZ

Com a aposentadoria, aos 65 anos de idade, Malvina


conseguiu independência financeira e passou a adquirir bens
que há muito tempo desejava, como eletrodomésticos. A
energia elétrica chegou em sua casa em 1994, mas os
eletrodomésticos foram comprados somente a partir do ano de
2000. Com a morte de João Carlos, em 2005, ela passou a
somar a aposentadoria de trabalhadora rural com a pensão do
marido e, pela primeira vez, assumiu a administração
financeira da casa. Com isso, decidiu viajar e conhecer locais
que somente ouvia falar e via pela televisão, embora tenha
permanecido um ano em casa, enlutada, quando da morte de
João Carlos.
João Carlos não gostava que Malvina viajasse,
inclusive para a casa dos filhos. Quando Malvina foi
acompanhar o nascimento do neto, Daniel, filho de Antonio
Dari, e se dispôs a cuidar da nora, ou quando foi atender o
irmão adoentado, Alvarino, João Carlos ficou muito bravo com
ela cobrando-lhe o compromisso de cuidar mais dele e de suas
roupas (Malvina sempre cuidou com esmero das roupas do
marido, mas não de seus calçados, por pensar que isso
denotaria indignidade e desaforo). Geralmente, João Carlos
saía sozinho quando ia à cidade de Giruá, quando realizava
pequenas viagens a Santo Ângelo ou quando visitava seus
parentes que residiam na região de Santa Bárbara, RS.
Desde que ficou viúva, Malvina já viajou quatro vezes
para Aparecida do Norte, visitando o Santuário Religioso,
acompanhando excursões da Igreja Católica, como também
conheceu as cidades de São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro.
No Rio de Janeiro conheceu o Cristo Redentor, a Praia de
Ipanema e a Ponte Rio-Niterói. Foi também duas vezes ao
Parque Beto Carreiro, em Santa Catarina, onde também foi às
praias. Com o grupo de saúde visitou Canela, Gramado, as
vinícolas de Bento Gonçalves, a October Fest de Blumenau,
em Santa Catarina, e a de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do
Sul.

Malvina na October Fest de Santa Cruz do Sul, RS, em 2012. Arquivo


familiar.
Com relação a conhecer a praia, isso aconteceu em
2006, quando ela acompanhou a família de Antonio Dari até
Mariluz e Capão da Canoa, no Rio Grande do Sul. Na ocasião,
conheceu também o famoso zoológico de Sapucaia do Sul e a
região de Gramado e Canela, também no Rio Grande do Sul.
Malvina tem participado, também, de muitos
encontros de formação sindical, junto do núcleo de mulheres
do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Giruá, além de buscar
o aprimoramento de suas habilidades artesanais, através de
cursos utilizando produtos recicláveis e da terra.
Pensando em manter-se ativa, aos 70 anos retornou
para a escola, numa turma especial de Educação de Jovens e
Adultos. Ficou no projeto por apenas um ano, pois esperava
aprender ‘outras coisas’ para além do que já sabia... Da
experiência do retorno à escola, guarda boas lembranças das
atividades físicas que a Escola São Miguel Arcanjo
possibilitava aos idosos da comunidade.
A velhice de Malvina trouxe-lhe alguma segurança
econômica. Acostumada a viver toda a vida com quase nada, os
dois salários que recebe mensalmente têm sido suficientes para
financiar sua vida simples. Tem sido possível com eles adquirir
os alimentos que lhe apetecem, fazer suas viagens, comprar
eletrodomésticos, mas também pagar alguma consulta
particular quando há demora de atendimento pelo Sistema
Único de Saúde. Não deixa, contudo, de produzir suas próprias
frutas, legumes e verduras, mas de maneira agroecológica. As
galinhas: elas mandam no seu calendário, pois muitas vezes
deixa de sair para atendê-las.
NETOS E NORAS

Malvina formou uma família pequena. Atualmente,


seu núcleo familiar é composto por onze pessoas: Malvina,
quatro filhos, três noras e três netos. Ela se dedica a agradar a
todos, tendo inclusive o costume de sempre guardar uma
lembrança para dar às noras e aos netos quando estes lhe
visitam.

Malvina e a neta Malu em 2012. Arquivo familiar.


Se, por um lado, Malvina demonstra grande carinho
pelas noras, as três – Simone Clara Nenning, esposa de Carlos
Alberto, Cleci Oliveira da Rosa, esposa de Lori Luiz, e Marisa
Klein e Lima, esposa de Antonio Dari – têm verdadeira
adoração pela sogra, numa relação de muito respeito e de
reciprocidade. Carinhosamente, Marisa a chama de vó e não de
sogra.
Não somente Malvina é afetuosa com as noras, como
as noras o são na mesma medida com Malvina. O mesmo pode
ser dito dos netos – Emerson Carlos, filho de Lori Luiz e Cleci,
e Daniel e Malu, filhos de Antonio Dari e Marisa. Malu
recebeu esse nome para homenagear a avó paterna, Malvina, e
a avó materna, Lúcia!
O sorriso de Malvina é cativante. Seus netos se
divertem muito com as histórias engraçadas que conta.
Segundo ela são histórias verídicas. No entanto, sabe-se que
gosta de enfeitá-las com detalhes para prender a atenção dos
ouvintes.
Malvina é conhecida por sua imensa calma e
tranquilidade para resolver os problemas. Ela acalma o
ambiente e quem convive com ela. Calmamente e com muitas
histórias e exemplos, ela passa sua sabedoria alcançada ao
longo da vida para seus netos, os quais a ouvem com muito
respeito e admiração.
Outro elemento curtido pelos netos são as aulas de
culinária e de aproveitamento de alimentos que a avó lhes
ministra quando a visitam. Ela não somente faz a vontade dos
netos e noras, preparando-lhes os pratos que gostam, como
também os ensina a misturar os ingredientes, a manusear a
panela, a trabalhar no fogão. Com eles cria bolos e sobremesas,
deixa-os escolher os sabores, amassar a massa do pão. Com
eles canta e faz brincadeiras.

Da esquerda para a direita: Lori Luiz, Cleci e Emerson Carlos. Arquivo


familiar.

Da esquerda para a direita: Daniel, Malu, Marisa e Malvina. Arquivo


familiar.
Carlos Alberto e Simone. Arquivo familiar.
O REENCONTRO COM O PASSADO

Como a família Lima Sortica literalmente separou-se


dos demais parentes da região de Santa Maria, pois o único
contato que Malvina possuía era com alguns primos e tios do
lado materno, e ainda assim de maneira precária, não foi
possível acompanhá-los em seu cotidiano por um período de 76
anos. No entanto, em 2014 fez-se um esforço para mapear e
juntar os descendentes de Ignácio Sortica num primeiro
encontro de Família. O encontro aconteceu no Parque da
Expointer, em Esteio, RS, e contou com a presença de mais de
quatrocentas pessoas. Ao todo foram mapeados e catalogados,
numa grande árvore genealógica, em torno de dois mil
parentes, das mais diferentes matizes étnico-raciais e culturais.
Foi na reunião familiar que Malvina encontrou a filha
de sua prima Almerinda, já idosa. Seu nome é Hilda, e ela é
neta de sua tia Francisca Sortica. Com ela pôde recordar um
pouco do cotidiano da família quando deixou Santa Maria em
direção a Giruá. Hilda brincava com os irmãos mais velhos de
Malvina nascidos em Santa Maria.
Como Malvina saiu de Santa Maria com três anos,
poucas são as lembranças da antiga terra. A única lembrança
que guarda de lá é que morava com seus pais num lado de um
riacho e sua madrinha, de nome Ernestina, morava noutro.
Lembra que ela tinha um filho chamado Mesquita.

I Encontro dos descendentes de Ignácio Sortica. Julho de 2014. Arquivo


familiar.

O I Encontro da Família mostrou que existem


parentes, descendentes de Ignácio Sortica, espalhados pelo
Brasil e pela Argentina. O grupo maior permanece residindo,
entretanto, no Rio Grande do Sul. Boa parte da família
continua morando na região da Antiga Cachoeira, próximo do
local de chegada do primeiro Sortica, no atual município de
Formigueiro.
Num processo típico de busca do mito fundador foi
inclusive criado um brasão da família, com símbolos que
remetem tanto aos Estados Unidos quanto ao Rio Grande do
Sul. As narrativas ouvidas no Encontro demonstram que os
descendentes de Ignácio e Belarmina possuem pouca coisa em
comum para além dos ancestrais. No caso dos descendentes de
Antonio Manoel e de Maria Eponina, como a família ficou
isolada dos demais parentes por mais de 70 anos, a sensação
era de que haviam encontrado uma multidão de desconhecidos.

Brasão criado por Eduardo Almansa Sortica e Jorge Sortica. Arquivo


familiar.
E O SISTEMA DE AGREGADOS?

Na década de 1930, momento da chegada da família


Sortica em Giruá, a região de Mato Grande possuía, além da
mata referida, outros espaços destinados ao plantio, mas
também terras de campo, geralmente pouco disputadas pelos
colonos descendentes de europeus devido à imagem que
possuíam de terra infértil, percepção ligada à presença nesses
lugares do capim ‘barba de bode’, por ele ser sinônimo de
‘terra fraca’. Na época não havia problemas em os colonos
ceder espaço de moradia aos camponeses sem terra,
principalmente porque os proprietários da terra usufruíam de
seu trabalho.
Naquele momento, o baixo valor da terra, no geral,
possibilitava que os colonos pobres a pagassem com a retirada
da madeira, de modo que manter-se agregado foi uma opção
que Antonio Manoel fez. O mesmo não pode ser dito de João
Carlos e Malvina, pois com o passar do tempo a terra foi sendo
gradativamente valorizada, e isso distanciou a família do sonho
de adquirir um pedaço de chão. Não fosse o sistema de
agregados, a família teria sido empurrada para a periferia das
cidades.
No final da década de 1970 e, principalmente, na
década de 1980, a monocultura da soja chegou com grande
força na região das Missões do Rio Grande do Sul.
Acompanhando a universalização do cultivar, chegou também
a mecanização da agricultura, e o plantio de alimentos foi
dando lugar para a monocultura de exportação. Com isso, os
campos de criação de gado bovino, equino e muar foram sendo
abertos, a pecuária perdeu terreno para a agricultura e,
rapidamente, todos os espaços em que era possível o plantio
foram requisitados pelos proprietários de terra. As fazendas
foram se extinguindo, de modo que, atualmente, na região de
Mato Grande, não existe nenhuma fazenda de criação de gado,
a única pecuária existente é a leiteira, ainda de forma bastante
reduzida. O território da antiga mata é hoje terra nua de plantio.
As mudanças nas relações de produção têm levado,
inclusive, a que o ‘gauchismo’ popular, como o vivido pela
família de Malvina, passe para os CTGs, para os rodeios e se
restrinja, principalmente, à música e à poesia. O agronegócio
tomou conta do território, das relações sociais e culturais da
região.
No mesmo período, a Lei do Usucapião Especial
Rural (Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981) amedrontou
os proprietários que possuíam agregados em suas terras. A
partir daquele momento, quando alguém pedia ‘uma colocação’
para algum proprietário, tinha o pedido recusado com o
argumento de que havia muita insegurança para os donos de
terra, os quais temiam que os agregados requeressem,
futuramente, a terra cedida para a morada.
Um terceiro elemento decisivo para o fim do sistema
de agregados foi o uso cada vez mais crescente de agrotóxicos
para controlar as plantas indesejadas nas lavouras de soja, trigo
e milho. A desnecessidade de mão-de-obra manual, somada à
falta de perspectiva de futuro, fez com que a juventude
migrasse para a cidade ou para outras localidades, e os velhos
fixassem residência nas vilas existentes no interior dos
municípios ou mesmo nas pequenas cidades. Para se ter uma
ideia, em 1960 a população urbana de Giruá era de 3.565
habitantes; a rural de 20.672 habitantes. Em 1970, moravam
5.040 pessoas na cidade e 20.453 no campo. Em 1980, a cidade
continha 11.197 habitantes e o campo 17.412 habitantes. Já em
1990, a cidade aumentou para 13.381 pessoas e o campo
diminuiu para 13.445 habitantes (Rith, 2012, p. 18).
Atualmente, vive-se em Mato Grande um processo de
concentração das terras nas mãos de alguns colonos que têm
investido na compra das pequenas propriedades dos herdeiros
dos colonizadores falecidos, principalmente na década de 1990.
Alguns dos filhos dos antigos agregados tornaram-se
funcionários do agronegócio, mas a maioria mudou-se para a
cidade ou para outras regiões do país, de modo que a vila de
Mato Grande é hoje composta primordialmente por idosos
aposentados, por algumas famílias com crianças, por conta da
escola que existe no local, e por alguns proprietários das terras
do entorno. Esses proprietários ressentem-se da falta de
trabalhadores quando deles necessitam.
O sistema de agregados deve ser visto como reserva
de mão-de-obra, que alia relações familiares e econômicas. Ele
era desejado tanto pelos donos das terras quanto pelos
necessitados de local para morada. No momento em que deixou
de ser vantajoso para um dos lados, deixou de existir.
EXPECTATIVAS

Malvina reside sozinha e cuida da horta, da casa, dos


pequenos animais. Três filhos moram distante de Giruá: Lori
Luiz reside em Urussanga, SC; Carlos Alberto reside em
Erechim, RS; Antonio Dari, em Dourados, MS. O filho mais
velho, Valdir José, conserva uma casa próximo da casa da mãe,
no entanto reside nela esporadicamente, pois trabalha
sazonalmente na colheita da maçã, em Vacaria, RS, e no
plantio e colheita de soja e trigo em Bagé, RS. Malvina resiste
em deixar seu espaço, arduamente conquistado, para ir morar
com os filhos. Para postergar a saída de seu lar, tem o auxílio
de uma ajudante que realiza limpeza semanal em sua casa e
lava-lhe as roupas.
Vaidades? Vaidades corporais Malvina não as possui.
Ela não aprendeu a enfeitar-se, seja com o uso de adereços ou
de pinturas. Os adereços atrapalhariam o trabalho pesado que
sempre desenvolveu. Malvina não adquiriu o hábito de usar
pulseiras, anéis ou mesmo brincos. As pinturas, seja o uso de
batom ou de pós corretivos, nunca fez parte de seu cotidiano,
tanto que teve dificuldade em deixar-se maquiar levemente
para a cerimônia de casamento dos filhos. Inclusive, as pessoas
que usam muita perfumaria e pinturas são vistas por Malvina
como ‘rebocadas’. O cabelo, branqueado pela idade, nunca
recebeu tintura.
Malvina nunca foi ligada aos modismos,
principalmente quanto às vestimentas. Sua maneira de vestir-se
sempre foi muito simples, com peças básicas, muitas vezes
costuradas por ela mesma, e com a presença de muitas flores.
Desencantada com a política, aos 81 anos se dá ao
luxo de gozar do direito de não mais votar. Para ela, os
políticos “não fazem o que a gente diz, espera e precisa”. Sua
vida de participação na vida política, como votante, começou
em 1958, aos vinte e três anos, quando Miguelão incentivou
Antonio Manoel a fazer com que as filhas tirassem o título de
eleitor a fim de votar nas pessoas que apoiava, Brizola,
candidato a Governador do RS, e Guido Mondin, candidato a
Senador, que estariam em visita a Santo Ângelo. Malvina e a
família foram até Santo Ângelo na carroceria do caminhão de
Miguelão, junto de outros eleitores de Brizola. Perguntada se
votou nos candidatos de Miguelão, respondeu que sim. Miguel
Szostkiewicz era um político influente em Giruá, tendo sido
eleito vereador na primeira legislatura do município quando de
sua emancipação, em 1955. Malvina disse também que nem
sabia quem era o oposicionista de Brizola nas eleições, e que
seu nome não fora mencionado por Miguelão. Na verdade, o
adversário de Brizola, do PTB, era Walter Peracchi Barcelos,
da UDN. Depois, quando casada, viu seu marido apoiar os
candidatos da ARENA durante a ditadura militar.
Enquanto tiver forças, Malvina pretende continuar a
vida no seu ritmo, no seu canto, sem depender dos outros,
‘mandando no seu nariz’! Preocupa-lhe, no entanto, a memória
do presente que se esvai com muita facilidade, acompanhada
da presença da memória cada vez mais cristalina e detalhada do
passado. Enquanto isso, com seus dedos curvados pelo
reumatismo, Malvina segue trançando as palhas de trigo para
fazer chapéu e tramando as teias da memória que lhe dão o
sentido da existência. De certa forma, ao trançar a palha,
também trança a memória. Como as palhas que cruza umas
sobre as outras para resultar no trançado, as memórias cruzam-
se umas com as outras, e o passado embaralha-se com o
presente; agradecida, mas não conformada, encara o passado de
frente, sem mágoas. Memórias cruzadas tem esse sentido!

Malvina trançando palha de trigo, em outubro de 2016. Arquivo familiar.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MANUSCRITOS DA COLEÇÃO DE ANGELIS. Introdução e


notas Jaime Cortesão. Tomo IV (Jesuítas e Bandeirantes no
Uruguai [1611-1758]). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,
Divisão de Obras Raras e Publicações, 1970. (MCA IV)
MEIHY, J. C. S. B. Manual de história oral. São Paulo:
Loyola, 2005.
OLIVEIRA, Renata Saldanha e SANTOS, Júlio Ricardo
Quevedo. O “Tiro que saiu pela culatra”: Comportamentos e
expectativas de escravos, libertos e imigrantes europeus nas
proximidades da abolição (Charqueada do Paredão -
Cachoeira/RS). Revista Latino-Americana de História, Vol.
2, nº. 9, Dezembro de 2013.
Rio Grande do Sul. Secretaria da Administração e dos
Recursos Humanos. Departamento de Arquivo Público.
Documentos da escravidão: inventários, o escravo deixado
como herança. Coordenação Bruno Stelmach Pessi. Porto
Alegre, RS: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas
(CORAG), 2010.
RITH, Rosângela Godói. A agricultura em Giruá: a evolução
do trabalho. Monografia de Final do Curso de História,
Departamento Humanidades e Educação (DHE) da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul (Unijuí), 2012.

Sites consultados:
<<www.familysearch.org>>. Acesso em 21/10/2016.
<<https://familysearch.org/ark:/61903/3:1:3QSQ-G944-
FBZF?i=84&wc=QZS2-
L1C%3A264201201%2C1588926247%3Fcc%3D1985805&cc
=1985805 >>. Acesso em 06/11/2016.
<<http://vfco.brazilia.jor.br/livros/preserfe-RFFSA-Centro-
Preservacao-Historia-Ferroviaria-Rio-Grande-Sul.shtml>>.
Acesso em 21/10/2016.

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