Você está na página 1de 10

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


Faculdade de Letras
Variação em Língua Portuguesa
Professor: Afranio Gonçalves Barbosa

A GENTE X NÓS
UMA LEITURA DO MEMORIAL DE MARIA MOURA

Alunos: Carlos Eduardo Schmitt


David Costa Freitas
Rodrigo Blois
Valéria Saturnino de Oliveira

Rio de Janeiro
2015
2

INTRODUÇÃO

A autora

Rachel de Queiroz (1910-2003) nasceu em Fortaleza. Aos sete anos,


mudou-se para o Rio de Janeiro com os pais, por causa de seca de 1915. Sofreu
um acidente vascular cerebral no dia 28 de outubro e veio a falecer no dia 4 de
novembro. Seu corpo foi velado na Academia Brasileira de Letras (ABL).

Destacou-se por ser uma das mulheres brasileiras de maior renome no


século XX. Das escritoras, talvez seja a mais lembrada, não somente pelo fato de
ter sido a primeira mulher a entrar para a ABL, no dia 4 de agosto de 1977, mas
também, e, sobretudo, pela sua prolífica obra como tradutora, romancista,
escritora, jornalista, entre outros. Destacou-se na ficção social nordestina, tema
do livro a ser apresentado no trabalho.

De todas as suas obras, as mais conhecidas são: "O Quinze" (1930),


"João Miguel" (1932), "Caminho de Pedras" (1937), "As Três Marias" (1939),
"A Donzela e a Moura Torta" (1948), "O Galo de Ouro" (1950),
"Lampião" (1953), "A Beata Maria do Egito" (1958), "100 Crônicas
Escolhidas" (1958), "O Brasileiro Perplexo" (1964), "O Caçador de
Tatu" (1967), "O Menino Mágico" (1969), "As Menininhas e Outras
Crônicas" (1976), "O Jogador de Sinuca e Mais Historinhas" (1980), "Cafute e
Pena-de-Prata" (1986), "Memorial de Maria Moura" (1992). Além das obras
reunidas de ficção: "Três Romances" (1948), "Quatro Romances" (1960),
"Seleta", seleção de Paulo Rónai; notas e estudos de Renato Cordeiro Gomes
(1973).

O Memorial

O romance Memorial de Maria Moura foi publicado originalmente em


1992 e adaptado para a televisão em forma de minissérie em 1994. A trama se
3

situa no sertão nordestino, por volta da segunda metade do século XIX. O


romance inicia com três focos: o Padre José Maria (Beato Romano), Maria
Moura, e os primos dela, seus inimigos. Três histórias diversas que pouco a
pouco vão se entrelaçando e formam um enredo harmonioso. Com o decorrer da
história, aparece Marialva e Valentim, com seus parentes e a vivência no circo.
Assim, cada capítulo constitui a narração de um personagem em primeira
pessoa. O final, dramático e misterioso, é levado a cabo pela narração
intercalada do Beato Romano e de Maria Moura.

O recorte adotado

Dos vários recortes a serem adotados, se optou pela análise da fala de três
personagens, cada um provindo de um diferente nível sociocultural: Beato
Romano (alto), Maria Moura (médio) e Marialva (baixo). O trabalho busca
descrever a primeira pessoal do plural, enquanto ao uso de “nós” ou “a gente” e
a correspondente conjugação do verbo (concordância ou não concordância). Para
isso, foram escolhidos os capítulos em que cada um dos três aparece pela
primeira vez narrando a história.
4

JUSTIFICATIVA

A escolha das personagens e o recorte enquanto nível sociocultural

O Pe. José Maria constitui uma figura de contradição na história. Levado


por uma paixão adúltera, arruinou o repouso de sua vida tranquila como pároco
de um pequeno povoado do sertão. Obrigado a largar tudo, até mesmo a própria
identidade, vagou sertão adentro em fuga dos habitantes do povoado e do
próprio passado. Este último foi seu verdadeiro carrasco, e lhe atormentou
diariamente, até o último dia:

O homem feliz é o que não tem passado. O maior dos castigos, para o qual só há
pior no inferno, é a gente recordar. Lembrança que vem de repente e ataca como
uma pontada debaixo das costelas, ali onde se diz que fica o coração. Alguém
pode ter tudo, mocidade, dinheiro no bolso, um bom cavalo debaixo das pernas,
o mundo todo ao seu dispor. Mas não pode usufruir nada disso, por quê? Porque
tem as lembranças perturbando. O passado te persegue, como um cão perverso
nos teus calcanhares. Não há dia claro, nem céu azul, nem esperança de futuro,
que resista ao assalto das lembranças1.

Não representa mera coincidência o fato de que duas, das três


personagens, sejam mulheres. Busca-se com isso ressaltar a importância que
Rachel de Queiroz deu à figura da mulher neste romance. Suas personagens
femininas possuem caráter forte e personalidade influente. O máximo expoente é
a própria Maria Moura, protagonista da obra e ponto de união e desenvoltura do
enredo.

Maria Moura ficou órfã desde jovem. Abusada pelo padrasto e em briga
de herança com os primos, lança-se a uma aventura sem precedentes em busca
de riqueza, poder e respeito. Busca ser temida, e de fato o é. Na infância,
aprendeu a ler com o seu pai. Dali saiu sua formação mediana. Era raro que
mulheres daquele tempo (e naquela região) tivessem alguma instrução. Maria
Moura foi uma exceção. Era uma pessoa que sabia ler e escrever razoavelmente
bem, como se pode subentender na obra.

1
QUEIROZ, R. Memorial de Maria Moura, pg. 188.
5

Marialva, irmã de Irineu e Tonho e meia-irmã de Duarte, está cansada da


vida apoucada que leva ao lado dos irmãos. Espera ansiosamente conhecer
alguém que possa mudar sua realidade. E esse alguém, que possui os olhos
verdes como o dela, aparece para lhe “roubar”. É assim que ela foge com
Valentim, um talentoso saltimbanco.

O recorte adotado toma como modelo de alto nível sociocultural ao


Beato2. Assim, partindo dele, se buscou um nível intermediário (Maria Moura) e
um mais baixo (Marialva) para formar três categorias de níveis socioculturais.

Maria Moura aparece claramente em toda a obra como o nível


sociocultural intermediário entre o Beato e as demais personagens. Mesmo entre
as personagens de baixo nível, se pode fazer outra divisão: médio-baixo e baixo,
para diferenciar assim aqueles que não tiveram nada de formação, como os
jagunços de Maria Moura e Rubina, daqueles que tiveram pelo menos um
pequeno contato com o processo de letramento, como é o caso dos primos de
Maria Moura (e é aqui que se encaixa Marialva). Em outras palavras,
poderíamos distinguir quatro níveis conforme as habilidades de leitura e escrita.
O Beato, com um alto letramento recebido em sua vida eclesiástica; Maria
Moura, letrada com certo cuidado pelo pai; os primos dela, que possivelmente
não foram completamente alfabetizados (semianalfabetos); e, por fim, aqueles
que possivelmente fossem iletrados e não escrevessem nem lessem: os jagunços
de Maria Moura e os escravos da época. Os pertencentes deste último grupo
seriam então classificados como analfabetos.

O recorte da primeira pessoal do plural (nós e a gente)

Das diversas possibilidades de avaliação e comparação dos três níveis


socioculturais propostos, optou-se pelo uso da primeira pessoa do plural, em

2
Entenda-se por “alto nível sociocultural” a formação acadêmica. Na época, os padres eram, junto
com a alta sociedade, praticamente os únicos a ter acesso a uma boa educação acadêmica. Isso se
subentende também pelas diversas frases em latim, pronunciadas pelo padre. O latim, naquele
tempo, era característico de uma pessoa considerada “culta” (bem instruída).
6

concreto a variação entre “nós” (ainda que oculto) e “a gente”. Além disso, será
analisado se há concordância verbal na fala das três personagens ao conjugar os
verbos.

Parte-se do pressuposto de que é a visão comum dos brasileiros que as


pessoas que falam “nós” (ainda que seja oculto) ao referir-se à primeira pessoa
do plural e conjugam o verbo com concordância, possuem um nível
sociocultural mais elevado que aquelas que utilizam “a gente” para a mesma
situação. A turma foi questionada sobre essa impressão da “visão comum
brasileira” e obteve-se, por unanimidade, de que pessoas que utilizam “nós”
tendem a possuir um nível mais elevado, ainda que não necessariamente. Atente-
se que não se avaliou o fato de que o nível sociocultural seja mais elevado ou
não, mas sim a “impressão” de que seja mais elevado. Parte-se, portanto, não de
um dado empírico, mas de uma espécie de “subconsciente coletivo”.

Tal visão será posta em análise nesta obra de Rachel de Queiroz, para
verificar se a autora teve presente (ou se deixou levar) por essa tendência
comum percebida nos brasileiros. Assim, se espera que o uso de “nós” seja
decrescente, ao ir do Beato Romano, passando por Maria Moura, até chegar em
Marialva. Espera-se logicamente, que o mesmo ocorra na proporção inversa,
quanto ao uso de “a gente”.
7

A GENTE X NÓS E OS NÍVEIS SOCIOCULTURAIS

Abaixo estão os dados levantados referentes à pesquisa. Foram coletadas


informações de seis capítulos. Destes, foram escolhidos os dois primeiros em que cada
personagem narrava a história, de forma que se pudesse fazer um levantamento mais
equitativo. O ideal, entretanto, seria uma análise completa do livro e a inclusão até de
outros personagens, de tal modo que se pudesse incrementar outro nível sociocultural,
conforme mencionado no capítulo anterior.

Por questões, sobretudo de tempo, foram recolhidas informações de seis


capítulos, o que totalizou 26 coletas (2 do Beato Romano, 15 de Maria Moura e 9 de
Marialva). Ainda que sejam poucos, deixam de forma clara a divisão que Rachel de
Queiroz pensou referente ao uso de “a gente” e “nós” e sua relação sociocultural. Para
facilitar a compreensão e evitar maiores margens de erro, optou-se por uma análise não
somente quantitativa, mas também percentual. Na última coluna das tabelas está a soma
total de cada nível e na última linha de cada tabela, o total das exposições (variações)
independentemente do nível sociocultural ao qual provinha.

Exposição à primeira pessoa Total por


A gente Nós
do plural nível
SOCIOCULTURAIS

Alto
1 (50%) 1 (50%) 2 (100%)
(Beato Romano)
NÍVEIS

Médio
(Maria Moura) 9 (60%) 6 (40%) 15 (100%)

Baixo
8 (88,9%) 1 (11,1%) 9 (100%)
(Marialva)
Total por exposição 18 (69,3%) 8 (30,7%) 26 (100%)
8

(Não concorda)

(Não concorda)
Exposição à Total Concordância (C)

(Concorda)

(Concorda)
A gente

A gente
primeira pessoa X

Nós

Nós
CONCORDÂNCIA VERBAL

do plural Não Concordância (NC)

Alto
1 (50%) 1 (50%) 0 0 1 (100%) C X 0 NC
(Beato Romano)
Médio
(Maria Moura) 9 (60%) 6 (40%) 0 0 15 (100%) C X 0 NC

Baixo 8 1
0 0 9 (100%) C X 0 NC
(Marialva) (88,9%) (11,1%)

Total por 18 8 26 (100%) C X 0 NC = 26


0 0
exposição (69,3%) (30,7%) (100%)
9

CONCLUSÃO

Das várias conclusões que se poderiam tomar ao analisar as tabelas, o grupo


pensou em três, consideradas as mais importantes. Em primeiro lugar, fica claro que o
mito referente às equações nível sociocultural alto = 0 “a gente” e nível sociocultural
baixo = 0 “nós” é totalmente falso. Tal resultado pode ser analisado em duas
perspectivas: uma do ponto de vista do nível alto e outra do baixo.

Do ponto de vista do nível sociocultural alto (Beato Romano), vemos que não há
o propósito por parte da autora de marcar todas as falas do Beato com a variação “nós”.
Em dois inteiros capítulos, ele se referiu apenas duas vezes para expressar a primeira
pessoa do plural. Em geral, prefere falar na primeira do singular ou utiliza a terceira do
plural, dando a entender que não se imiscui nos problemas alheios. Tal avaliação,
porém, foge ao recorte adotado para a elaboração deste trabalho, mas constitui, sem
dúvida, uma oportunidade de análise para uma ulterior pesquisa.

Do ponto de vista do nível sociocultural baixo (Marialva) contraposto com o


médio (Maria Moura) vê-se que sim houve um incremento no uso de “a gente”. Tal
variação, nestes dois capítulos narrados por cada personagem, constituiu 60% da fala de
Maria Moura e quase 90% da de Marialva.

Como último dado digno de consideração é o fato de que não houve por parte de
nenhum dos narradores, nos seis capítulos coletados, nem sequer uma falta de
concordância, como se pode ver na segunda tabela. Em todos os casos a variação “nós”
sempre era seguida de verbo na primeira pessoal do plural e “a gente” sempre na
terceira do singular. Conclui-se, portanto, que Rachel de Queiroz, na variação escolhida
para o trabalho, não utilizou a falta de concordância para caracterizar um nível
sociocultural e tampouco o uso isolado de “nós”. Optou, como se pode ver na tabela, no
uso gradativo das duas variações “nós” e “a gente”. Quanto maior o uso desta, mais
baixo o nível sociocultural e vice-versa.
10

BIBLIOGRAFIA

QUEIROZ, Raquel de, Memorial de Maria Moura. São Paulo: Siciliano, 1992

ÍNDICE

INTRODUÇÃO...............................................................................................................02
A autora..........................................................................................................02
O Memorial....................................................................................................02
O recorte adotado...........................................................................................03
JUSTIFICATIVA............................................................................................................04
A escolha das personagens e o recorte enquanto nível sociocultural............04
O recorte da primeira pessoal do plural (nós e a gente)................................05
A GENTE X NÓS E OS NÍVEIS SOCIOCULTURAIS..................................................07
CONCLUSÃO.................................................................................................................09
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................10

Você também pode gostar