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CAMPUS PETROLINA
LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA
PETROLINA
FEVEREIRO, 2024
A literatura acompanha a humanidade desde o período do surgimento da escrita. Não
se sabe ao certo quando começou, mas o fato é que a literatura é tão antiga quanto as
primeiras civilizações humanas. Ainda na Grécia, ela contava feitos de grandes heróis com
relatos míticos. Assim também na Mesopotâmia e no Antigo Egito. Durante o período
clássico, a filosofia utilizou dela para o desenvolvimento do pensamento metafísico. A
religiosidade tomou de conta da literatura durante boa parte da Idade Média, salvo em casos
como o Decameron e outros escritos da época. O século XIX também viu nascer a literatura
de diversos temas, como o existencialismo de Dostoievski e a melancolia de Edgar Allan
Poe.
Este trabalho, no entanto, discorre sobre uma obra que não bebe dessas fontes
eloquentes e marcantes da literatura mundial. O Quarto de Despejo, escrito pela autora
Carolina Maria de Jesus, trata-se, na verdade, de um relato autobiográfico que retrata, em
primeiro lugar, a vida cotidiana da autora, as mazelas da sociedade em que ela estava
inserida, seu ponto de vista de diversos acontecimentos políticos e sociais e por fim,
ressignifica a tradicional ideia de literatura que se costuma pensar.
Com isso, é possível dizer que Carolina foi pioneira no seu modo de escrever. A
literatura do seu livro deixa explicito a quase inexistente preocupação com as regras que
julgam um escrito ser considerado literatura. A linguagem coloquial, as expressões utilizadas
no dia-dia da favela, as considerações feitas por ela sobre os mais variados acontecimentos
corriqueiros e extraordinários fazem sua literatura quase um artigo de opinião. Suas
impressões emocionais nos lembram do relato biográfico que ela construiu.
Ela fala no seu livro sobre diversos temas passiveis de análise. No entanto, este trabalho
se restringiu a falar sobre a violência. Tema recorrente no livro, falar sobre a violência é
sobre algo que está em alta. As discussões sobre violência geram reflexão em que está lendo
este trabalho. Isso é um objetivo de carater subjetivo, mas também social. No livro, de modo
geral, a autora fala sobre os casos de violência que ocorrem no seu convívio social. Antes de
adentrar, propriamente, ao tema, nos cabe fazer uma contextualização.
Carolina Maria de Jesus nasceu em Minas Gerais. Teve contato com as letras ainda
jovem. Por ser mulher negra, a vida sempre foi carregada de dificuldades. Ela se mudou para
São Paulo e depois de algumas desavenças (tanto pessoais quanto sociais), acabou indo morar
na Favela do Canindé. O espaço é de extrema pobreza. Normalmente são encontradas
pessoas que vieram de outros estados, como os nordestinos. O contexto histórico é São Paulo
dos anos 1950 e 1960. É um momento de grande efervescência industrial e urbanística. O
espaço da favela como lugar de sub-humanidade é muito recorrente no livro. É um estado de
quase incivilidade, de barbárie.
Ainda, esses espaços sofreram com as inúmeras reformas eugenistas do início do
século XX, no Brasil. Os anos 1950/1960 carregavam os resquícios das ideias de
branqueamento e higienização da população. Os mais ricos, têm suas casas em locais com
bastantes privilégios. Estamos falando de melhores localização, oferta de serviços
(principalmente básicos e públicos). A favela, pelo contrário, não recebe a visita do poder
público, salvo pela Radio Patrulha1. A violência policial, a truculência, e o descaso é a
principal característica. A Igreja Católica se fazia mais presente, oferecendo sopas e roupas
que os moradores careciam. Essa teologia social católica foi bastante marcante naquelas
décadas.
O livro foi construído, como supracitado, em forma de um diário. A Carolina era uma
catadora de reciclagem, termo da época. Ela estava sempre em contato com a vida da cidade,
de modo mais intenso, no horário da manhã. Era uma tarefa de subsistência. Tudo que ela
conseguia acumular, trocava pelo dinheiro que comprava a comida daquele dia. No outro
dia, relata ela, não se sabia se iria ter comida. Ela também tinha 3 filhos. O livro só foi
formado quando o jornalista Audálio Dantas fez o processo para que os escritos se tornassem
um “códice”. O título do livro é muito sagaz. O Palácio do governador, na metáfora da autora,
se trata da grande sala de visitas de uma casa. A prefeitura é a grande cozinha dessa casa,
onde as pessoas estão reunidas. E a favela se trata do quarto da bagunça, a dispensa da casa,
onde se coloca tudo que não tem mais validade. Em suma, é o quarto de despejo, onde se
deposita as coisas sem utilidades. Foi exatamente isso que o Estado fez com as pessoas que
ficavam sem moradia pelo centro da cidade, despejou elas nas favelas.
Analisando a violência em sua origem, entenderemos que ela está ligada diretamente
à noção de desejo, pois este carrega o caráter mimético, ou seja, repetitivo, segundo a origem
grega, de fomentar a rivalidade entre os indivíduos. De forma sucinta, a violência surge como
uma “derivação” de caráter mimético2 do desejo. Sendo assim, qualquer objeto que resulta
do desejo pode gerar rivalidade entre pares, causando conflitos. Mais do que isso, em sua
forma extrema “A violência do homem é revelada pelo que se passa hoje, e, uma vez que
transcende as possibilidades humanas, coloca ao mesmo tempo a espécie em perigo”
(GIRARD, 2008, p. 5)2.
1
Rádio Patrulha ou polícia.
2
Ver a Violência e o Sagrado, Renè Girard. Pela mesma ótica, a hipótese mimética;
No livro da Carolina de Jesus são narrados vários momentos de violência que
acontecem dentro da favela na qual ela mora. Com agressões físicas, verbais, espancamentos
e até assassinatos, Carolina e seus três filhos convivem em meio a esses acontecimentos que
habitam, corriqueiramente, a favela do Canindé. Porém, com seu passatempo favorito3, ela
descreve as várias situações de brigas e agressões, tudo isso de forma franca, citando os
nomes dos envolvidos, os motivos aparentes e como se acabou aquele conflito. Por vezes,
ela, intervém na medida do seu alcance, ligando para a Rádio Patrulha ou aconselhando
àqueles indivíduos.
Nesse sentido, é preciso analisar esses conflitos e suas causas a partir da perspetiva de
um contexto espacial de aglomerados, onde residem pessoas com pouco grau de instrução
e, de certo modo, desamparadas pelas autoridades governamentais das décadas de 1950/60,
período em que o diário foi escrito e publicado. Um dos primeiros casos que ela relata é a briga
de um casal, onde o esposo espanca a sua esposa. Tudo isso é presenciado pelos filhos da
Carolina, e pela favela em geral, onde toda a trama é paramentada de palavrões. Porém, no
decorrer do livro, são inúmeros os casos de brigas entre casais, sobretudo da violência com
teor machista.
Um caso que merece ser destacado aconteceu entre a Carolina e um personagem que ela
chama de Alexandre. Em resumo, o homem discorre várias agressões verbais e a autora vai até
a delegacia. Ao chegar lá, não recebe a devida atenção e ao voltar para sua casa, o homem
continua as ofensas. Na continuidade da história, vamos observar que ela reage ao homem e
até joga água. Mas a realidade no geral é que as mulheres, tanto naquela época quanto na
atualidade, quando sofriam ou sofrem agressões, não eram/são ouvidas. São colocadas em
dúvidas e descredibilizadas. Isso é o reflexo de um sistema que enaltece a superioridade
masculina, bem como sua impunidade.
Dentre os inúmeros casos de agressões, no dia 17 de julho, ela relata que ao chegar na
sua casa, encontra uma mulher de nome Silvia e o esposo brigando na rua. Ela descreve como
um espancamento que a mulher está sendo vítima do seu marido. A preocupação da autora é
com os filhos. Ela diz que os meninos escutam palavras de baixo calão. É a maneira de dizer
que o ambiente não propicio para o desenvolvimento de uma infância com dignidade. No
entanto, o interessante nesse caso, é a impunidade de um homem estar espancando uma mulher
e não haver nenhuma mobilização para salvar a mulher.
3
Ela tinha o hábito corriqueiro de escrever ao amanhecer, durante o dia ou à noite.
O relato da autora chega a ser assustador. Quando se analisa a frequência e a intensidade
da ocorrência da violência, observa-se uma complexa relação de impunidade e indiferença. Ao
escrever sobre as noites dentro da favela, a autora discorre sobre os gritos de socorro que
mulheres clamavam. Carolina Maria de Jesus diz que enquanto isso, ela escuta “valsas
vienenses”, ouviam-se gritos de socorro do lado de fora da sua casa. Além disso, as casas, na
maioria das vezes, eram construídas de tabuas e madeira, o que facilitava a destruição na hora
da violência. Violência doméstica, violência patrimonial e perturbação do sossego, era a rotina
da favela do Canindé na década de 1955.
Duas ocorrências também são totalmente graves. Na primeira, a autora explica que dez
pernambucanos querem bater em um paraibano. O relato quase etnográfico mostra os
nordestinos como descendentes de Lampião e descreve os autores da briga como sendo homens
mal-encarados e bastante violentos. O segundo relato, narra a briga de um casal que segundo a
autora, rolava no assoalho brigando. Certo dia, deixam o filho recém-nascido cair no chão e
pisam a criança, em uma das brigas. Logo depois de poucos dias, a criança morreu pelas
consequências das pisoadas. Isso evidencia a gravidade das agressões e dos conflitos entre as
pessoas. O tema da violência, durante o livro é bastante recorrente.
Caso parecido, acontece na briga entre duas mulheres que ela chama de Nair e Meiry.
Uma briga considerada comum pela autora. Ela também diz que é um tipo de agressão que
anima a favela. Os filhos dela aplaudiam fervorosos a briga entre duas mulheres. De lâminas
cortantes e puxões de cabelo, tudo quanto for violento é utilizado. O mais cênico são as
mulheres brigando nuas, sem roupas nenhuma. Ela narra que uma plateia assistia atenta a briga
das duas, onde havia muita gargalhada. Em suma, estava acontecendo a naturalização da
violência, sobretudo entre duas mulheres. Nesses casos, não existia um filtro do que era moral
ou não moral dentro das condições de favela. O descaso do poder público não dá chance de as
pessoas questionarem o que é o moral ou imoral perante a opinião da sociedade geral.
Prova disso pode ser observado no relato que a autora traz sobre sua vizinha Leila e o
falecimento da filha dela. No próprio velório, houve bate-boca e violência. Logo depois,
estavam realizando uma pequena festa, ainda durante o velório. O fato é que não existe o
padrão de moralidade que outra localidade comumente seria construída. A Carolina Maria de
Jesus teve o olhar extremamente aguçado em observar que esses acontecimentos não partiam
de uma premissa de normalidade. Ela sabia que havia algo de errado nisso. Aquelas pessoas
estavam inseridas em uma realidade que para eles faziam bastante sentido. Era como elas
enxergavam o local.
Um dos inúmeros motivos que levam a emergência da violência naquela favela é o vício
do álcool que está ligado também à falta de oportunidade de trabalho, já que o desalento social
e moral levava os indivíduos a buscarem refúgio emocional e econômico em drogas, como
relata a autora: “a bebida aqui é o paliativo. Nas épocas funestas e nas alegrias” (JESUS, 1963,
p. 122). Mais do que isso, a falta de um serviço social fomentava famílias não planejadas nas
quais os filhos que conseguiam sobreviver a precariedade das condições sub-humanas dos
primeiros anos de vida, quando chegassem à fase adulta estariam mais propícios a encontrarem
o mundo da criminalidade e da violência.
Ainda assim, muitas das mulheres que hoje sofrem com a violência doméstica ou não
têm para onde ir, ou não querem sair daquela situação. Seja por questão econômicas ou
culturais. Muito embora, segundo dados do Instituto Brasileiros de Geografia e Estatística
(IBGE) de 2010, 40,9% das mulheres contribuam para a renda das famílias do país, os
homens ainda se acham no direito de oprimi-las pela questão da subsistência ou pela questão
cultural advinda da família, característico de uma sociedade ainda patriarcal, como a
brasileira.
Esse mesmo tipo de comportamento pode ser visto em um trecho do livro, quando
acontece uma briga entre um casal, os populares, um soldado e a Carolina tentam apaziguar
a situação, mas o marido responde: “Leve a minha mulher para você! Mulher depois que casa
é para suportar o marido e eu não admito soldado dentro da minha casa [...]” (JESUS,
1963, p. 86). Fica evidente, portanto, que a violência contra a mulher e o machismo, visto na
década de 50, ainda hoje é presente na sociedade e embora alguns homens não admitam,
explicitamente, frases desse tipo, é assim que muitos deles pensam e agem, perpetuando a
violência que a cada momento cria filhos sem mães e mães sem filhas.
Por fim, as pessoas que moravam na favela sempre chamavam a Rádio Patrulha para a
resolução de conflitos desse tipo. Mas nem sempre era de forma pacífica. Às vezes, os
impasses eram resolvidos de forma mais violenta. A favela parecia o “Velho Oeste”, onde os
mais fortes e violentes sobreviviam. Porém, quando a polícia ia à favela, podemos analisar
que enfim o sistema judiciário4 agia como mediador de conflitos.
Nesse sentido, é entendido hoje que a polícia deve agir como órgão intermediador para
o fim dos conflitos, pois a violência, por uma noção mimética, vai se propagar cada vez mais
forte como forma de vingança, o que vai gerar um ciclo sem fim e, consequentemente, a
desmoralização das instituições pacificadoras, podendo ir mais longe, pois, o ato de:
4
No conceito de Renè Girard (2008), o sistema judiciário é o órgão que intervém nos conflitos da sociedade
afim de cessá-los, por exemplo, a polícia.
e o espaço o que já lhe dá, de alguma maneira, qualquer coisa de religioso. Se, nas
sociedades, a vingança fosse tolerada, é bem evidente que a espécie humana se
destruiria rapidamente. (GIRARD, 2008, p. 5).
Desse modo, a violência, agora institucionalizada, seria algo sem fim e com objetivo
de cada vez mais se propagar até o momento em que os envolvidos não saberiam nem mais
qual teria sido o real motivo do início daquele conflito. Estariam, por noção cultural, apenas
reproduzindo de forma acrítica a violência. E no livro, a autora narra ser contrária à violência
exatamente por esse motivo cíclico da agressividade. Ainda no livro, ela narra o papel
repressivo que o Estado, às vezes, toma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GIRARD, René. O Bode Expiatório e Deus. Trad. Márcio Meruje. Covilhã, LusoSofia.
2008. GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São
Paulo, Editora UNESP, 1990.