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Ecos da violência no livro Quarto de Despejo

Nos escritos registrados no livro “Quarto de despejo” de Carolina de Jesus, a


autora denuncia as “violências” sofridas por ela e seus filhos na favela do Canindé/SP.
Dentre todos os tipos de violência, seja física ou psicológica, talvez, a maior de todas as
violências sofridas por esta família seja a fome.
A violência sempre caminhou junto ao homem desde os períodos mais primitivos
e continua a caminhar. Para se entender sua natureza, é preciso, em primeiro lugar,
entender seu contexto de criação e propagação. A partir disso, poderemos relacioná-la à
situação atual da nossa sociedade. Além disso, este projeto planeja relacionar, ainda, o
conceito de violência e sua relação com a pobreza, bem como a presença da violência
nas periferias. Estando além, o livro da Carolina Maria de Jesus intitulado como
“Quarto de Despejo”, um escrito biográfico, nos ajudará a entender melhor esse
fenômeno.
Acordam todos os dias, sem perspectiva nenhuma, tinha dias que acordam sem
terem o que comer, sem um gole de café, e doia em Carolina de Jesus, maltratava,
massacrava, essa emfim, metaforicamente, era a maior violência sofrida por ela e os
seus.
E Carolina de Jesus sofria e cantava, e sofria e escrevia, mesmo nessa dor ela
encontrava poesia no seu sofrimento.
Analisando a violência em sua origem, entenderemos que ela está ligada
diretamente à noção de desejo, pois este carrega o caráter mimético, ou seja, repetitivo,
segundo a origem grega, de fomentar a rivalidade entre os indivíduos. De forma sucinta,
a violência surge como uma “derivação” de caráter mimético2 do desejo. Sendo assim,
qualquer objeto que resulta do desejo pode gerar rivalidade entre pares, causando
conflitos. Mais do que isso, em sua forma extrema “A violência do homem é revelada
pelo que se passa hoje, e, uma vez que transcende as possibilidades humanas, coloca
ao mesmo tempo a espécie em perigo” (GIRARD, 2008, p. 5).
No livro da Carolina de Jesus são narrados vários momentos de violência que
acontecem dentro da favela na qual ela mora. Com agressões físicas, verbais,
espancamentos e até assassinatos, Carolina e seus três filhos convivem em meio a esses
acontecimentos que habitam, corriqueiramente, a favela do Canindé, em São Paulo.
Porém, com seu hobby, ela descreve as várias situações de brigas e agressões, tudo isso
de forma franca, citando os nomes dos envolvidos, os motivos aparentes e como se
acabou aquele conflito. Por vezes, ela, ainda, intervém na medida do seu alcance,
ligando para a Rádio Patrulha ou aconselhando àqueles indivíduos.
Nesse sentido, é preciso analisar esses conflitos e suas causas a partir da perspectiva de
um contexto espacial de aglomerados subnormais, onde residem pessoas com pouco
grau de instrução e, de certo modo, desamparadas pelas autoridades governamentais das
décadas de 1950/60, período em que o diário foi escrito e publicado. Um dos primeiros
casos que ela relata é a briga de um casal, onde o esposo espanca a sua esposa. Tudo
isso é presenciado pelos filhos da Carolina, e pela favela em geral, onde toda a trama
é paramentada de palavrões. Porém, no decorrer do livro, são inúmeros os casos de
brigas entre casais, sobretudo da violência com teor machista.
Um dos inúmeros motivos que levam a emergência da violência naquela favela é
o vício do álcool que está ligado também à falta de oportunidade de trabalho, já que o
desalento social e moral levava os indivíduos a buscarem refúgio emocional e
econômico em drogas, como relata a autora: “a bebida aqui é o paliativo. Nas épocas
funestas e nas alegrias” (JESUS, 1963, p. 122). Mais do que isso, a falta de um serviço
social fomentava famílias não planejadas nas quais os filhos que conseguiam sobreviver
a precariedade das condições sub-humanas dos primeiros anos de vida, quando
chegassem à fase adulta estariam mais propícios a encontrarem o mundo da
criminalidade e da violência. vai se propagar cada vez mais forte como forma de
vingança, o que vai gerar um ciclo sem fim e, consequentemente, a desmoralização das
instituições pacificadoras, podendo ir mais longe, pois, o ato de: Vingar-se é devolver
ao adversário a violência que ele já nos prodigalizou. É, portanto, o assassinato. A
vingança transcende os indivíduos uma vez que os parentes, os familiares a retomam.
De certo modo, a vingança transcende o tempo e o espaço o que já lhe dá, de alguma
maneira, qualquer coisa de religioso. Se, nas sociedades, a vingança fosse tolerada, é
bem evidente que a espécie humana se destruiria rapidamente. (GIRARD, 2008, p. 5).
As relações extraconjugais, os convívios familiares conflituosos e o machismo
também podem ser vistos, no livro da Carolina Maria, como expoentes da violência,
sobretudo no âmbito familiar e doméstico. No caso do machismo, o sentimento de
superioridade dos homens em relação às mulheres é perceptível quando a violência
contra elas acontece de forma gratuita pois: “Contra toda afronta, contra toda tentativa
de reduzi-lo a objeto, tem o homem o recurso de bater, de se expor aos golpes [...]”
(BEAUVOIR, 1967, p. 69). Nos escritos é possível, ainda, encontrar situações desse
tipo de comportamento, quando, por exemplo, é narrado o caso de uma mulher que se
encontrava em uma festa e se recusa a dançar com um pernambucano e ele tenta lhe
matar à facada dizendo: “hoje eu mato, hoje corre sangue na favela” (JESUS, 1963, p.
68).
Ainda assim, muitas das mulheres que hoje sofrem com a violência doméstica ou
não têm para onde ir, ou não querem sair daquela situação. Seja por questão econômicas
ou culturais. Muito embora, segundo dados do Instituto Brasileiros de Geografia e
Estatística (IBGE) de 2010, 40,9% das mulheres contribuam para a renda das famílias
do país, os homens ainda se acham no direito de oprimi-las pela questão da subsistência
ou pela questão cultural advinda da família, característico de uma sociedade ainda
patriarcal, como a brasileira.
Esse mesmo tipo de comportamento pode ser visto em um trecho do livro, quando
acontece uma briga entre um casal e onde os populares, um soldado e a Carolina tentam
apaziguar a situação, mas o marido responde: “Leve a minha mulher para você! Mulher
depois que casa é para suportar o marido e eu não admito soldado dentro da minha
casa [...]” (JESUS, 1963, p. 86). Fica evidente, portanto, que a violência contra a
mulher e o machismo, visto na década de 50, ainda hoje é presente na sociedade e
embora alguns homens não admitam, explicitamente, frases desse tipo, é assim que
muitos deles pensam e agem, perpetuando a violência que a cada momento cria filhos
sem mães e mães sem filhas.
Por fim, as pessoas que moravam na favela sempre chamavam a Rádio Patrulha
para a resolução de conflitos desse tipo. Mas nem sempre era de forma pacífica. Às
vezes, os impasses eram resolvidos de forma mais violenta. A favela parecia o “Velho
Oeste”, onde os mais fortes e violentes sobreviviam. Porém, quando a polícia ia à
favela, podemos analisar que enfim o sistema judiciário agia como mediador de
conflitos. Nesse sentido, é entendido hoje que a polícia deve agir como órgão
intermediador para o fim dos conflitos, pois a violência, por uma noção mimética
Desse modo, a violência, agora institucionalizada, seria algo sem fim e com
objetivo de cada vez mais se propagar até o momento em que os envolvidos não
saberiam nem mais qual teria sido o real motivo do início daquele conflito. Estariam,
por noção cultural, apenas reproduzindo de forma acrítica a violência. E no livro, a
autora narra ser contrária à violência exatamente por esse motivo cíclico da
agressividade.
Ainda no livro, ela narra o papel repressivo que o Estado, às vezes, toma. Ao
escrever sobre o dia 11 de agosto, diz: “Eu estava pagando o sapateiro e conversando
com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil
que espancou um preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco.” (JESUS,
1963, p. 96). Nesse trecho, percebe-se a presença da força bruta do Estado com seus
instrumentos repressivos e em algumas vezes até racista, algo visto até hoje, onde,
Nesse sentido, ainda, podemos estabelecer um paralelo entre a pobreza e a
emergência da violência. Não que a violência está ligada diretamente à pobreza, mas
que é na pobreza e na miséria que os instintos humanos de subsistência entram em ação
e obriga, quase que biologicamente, o indivíduo a procurar meios de sobrevivência, nem
que para isso ele tenha que roubar ou matar. Há, no entanto, aqueles que são exceções a
essa regra da instintividade humana, mas estes servem tão somente para confirmar a
regra de que a fome e a miséria são mais fortes do que o senso moral. Matar ou morrer
de fome não parece ser uma escolha difícil para quem não tem outro caminho a não ser
viver.
No livro, são inúmeras as vezes em que a Carolina acorda indisposta e sem
perspectiva, causas visíveis da fome e da falta de oportunidade. O pensamento de
suicídio também é relatado no seu diário e nos dá a dimensão de extrema pobreza em
que ela vivia com seus filhos. O desejo de sair da favela e ter, ao menos, uma casa de
alvenaria faz parte do pensar e do falar da Carolina de Jesus. Não apenas dela, mas de
todos aqueles que moravam ali. O desejo de ter a dignidade humana para viver é o
objeto que pode suscitar a violência, pois, como supracitado, ele pode fomentar a
violência na medida em que se faz de tudo para alcançar determinado objeto. Carolina
Maria de Jesus não tinha o interesse em discutir política, pois suas “prioridades” e
“preocupações” eram pela sua sobrevivência.
Analisamos e ao fim dessa resenhpor fim é possível constatar que a violência está
ligada à pobreza e à miséria. Sabendo disso, os indivíduos que mais sofrem são os mais
pobres. É verdade, ainda, que não são todos os casos de pobreza nos quais a violência
vai ser encontrada. Mas é fato que a favela hospeda esse “vírus mortífero” chamada
violência que só no Brasil mata 175 pessoas por dia, ou 7 por hora, segundo dados do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A Carolina, como muitos brasileiros, acordava
todos os dias cercada pelo medo de ser a próxima vítima. E como resolver esse
impasse? Só a educação poderá nos responder!

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