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Entre a violência e a esperança12 - Úrsula Hauser

Trabalho psicodramático e sociométrico em contexto de violência social: traumatismos


produzidos pela guerra, pela migração, pela violência doméstica à mulheres de de Gaza,
(Palestina), El Salvador, Cuba, Rússia, Costa Rica e Suíça.

A conferência trata sobre minhas experiências profissionais com o psicodrama em diferentes


países, com ênfase na temática de gênero. Dado o estado de crise no Oriente Médio,
destacarei o trabalho psicodramático em Gaza.

Introdução

A política neoliberal e patriarcal gerada pelos interesses econômicos hegemônicos das grandes
potências imperialistas tem como objetivo e como consequência fomentar a inconsciência
histórica e eliminar a pergunta “quem sou eu e o que eu quero?”. A pergunta sobre a
identidade própria em seu contexto social tem que ser evitada e substituída pela imposição
das normas instituídas, do estabelecimento de um ideal do eu que coincida com os meios de
comunicação de massa. Esta manipulação ganha concretude por meio de mecanismos
psicológicos sutis e sedutores e também pela oferta de consumo de substâncias. Para além
disso, as campanhas de terror contra o “terrorismo” querem intimidar e submeter os povos a
novas leis “antiterroristas” que formam parte do terrorismo de estado promovido pelos
Estados Unidos.

A conscientização no contexto de Terceiro Mundo necessariamente implica o desenvolvimento


da consciência política, o que precisa ser evitado a todo momento. Tudo o que vai em direção
à individuação e à contradição, qualquer manifestação de autonomia e autodefinição pode
significar um perigo para o sistema, que tem como objetivo a massificação e a aniquilação dos
desejos subjetivos para que assim realize suas leis de produção e consumo. A capacidade
humana de pensar criativamente precisa então ser substituída pelas mensagens das mídias
massivas controladas, com o intuito que esses substituam o cérebro dos indivíduos, isso quer
dizer, que predominem os mecanismos psíquicos de identificação projetiva e da adaptação
inconsciente ao entorno. As consequências fatais dessa manipulação se tornam conhecidas
nos regimes autoritários e fascistas: a perseguição e eliminação de qualquer pessoa que se
atreva a pensar diferente. Enfim, a intenção é aniquilar a subjetividade.

A falta de uma linguagem comum, o silêncio e a inconsciência histórica seriam, então, o


terreno ideal para uma sociedade manipulada com tecnologia genética. E é por isso
justamente que a psicanálise ainda mantém sua função crítica e subversiva – ainda que seja
um pequeno grão de areia na maquinaria social – no sentido de estimular desobediências e
buscar a verdade.

Hoje quero analisar com vocês as possibilidades do psicodrama psicanalítico, o qual considero
um útil instrumento para a resistência contra os interesses dominantes, sobretudo no caso das

1
Conferência pronunciada no Centro de Investigaciones Interdisciplinarias em Ciencias y Humanidades
(CEIICH) da UNAM, México, no ano de 2006. Foram eliminados fragmentos sobre Palestina e os referidos
aos demais países se mencionam, porque, em sua essência, as experiências são descritas nos artigos
anteriores desse presente volume (Notas des Editores)
2
Tradução: Isadora Machado.
mulheres. Por outro lado, vejo neste método uma possibilidade de desenvolver a consciência
histórica sobre a inserção social e cultural próprias e, como consequência, de fortalecer a
autonomia e a rebeldia contra os mandatos sociais e culturais injustos – especialmente, de
novo, no caso das mulheres – ao se conscientizarem sobre os conflitos entre os gêneros, as
gerações, o Norte e o Sul.

Psicodrama em Gaza/Palestina

Para as mulheres a luta nestes tempos é múltipla: é primeiramente a luta pela sobrevivência
em meio à guerra e contra o inimigo comum: o governo de Israel e seu exército, que coordena
de modo sádico a ocupação. Mas, ao mesmo tempo, é também a luta por uma mudança
sociocultural e pelos direitos das mulheres. As mesmas mulheres que exigem com greves de
gome a liberação de seus pais, filhos, maridos presos nas prisões israelenses, lutam contra a
ordem social patriarcal, contra o sistema de clãs hierárquicos em que os homem tem poder
absoluto, por exemplo, se tocando a questão de defender a “honra” da família. Ainda existem
também na Faixa de Gaza os feminicídios, mesmo que por sorte quase tenham desaparecido.
Nestes casos, se trata do poder do irmão mais velho, que exerce o controle sobre as irmãs. O
fato que os pais escolham o marido das mulheres jovens e que o casamento seja a única
possibilidade para uma vida sexual ativa são também temáticas das mulheres palestinas. O
GCMHP dedica uma parte importante de seu trabalho a esta luta, no âmbito do WEP
(Women’s Empowerment Program), e, no nosso grupo, quatro mulheres trabalham como
psicólogas ou trabalhadoras sociais desse programa. Nos campos de refugiados as leis sociais
são ainda mais rígidas e as mulheres não apenas cobrem seus cabelos, mas todo seu rosto. Se
pode fazer psicodrama assim? Para nossa própria surpresa, sim, se pode.

Cenas Psicodramáticas3

1. Campo de refugiados Khan Yunis

O tema de protagonista foi “Minha esterilidade”. Se trata de uma jovem mulher, de 23 anos de
idade, que um ano depois de se casar ainda não está grávida. Por essa razão, seu marido
poderia escolher uma outra mulher, mas os jovens casados se amam e ela está desesperada.
Mostra nas cenas suas visitas aos médicos, o medo à reação de sua sogra, a humilhação que
sofre no seu bairro. Em uma cena surrealista teve um diálogo com seu bebê não nascido, que
nos emocionou demais. Mesmo quando não entendemos o árabe, a língua árabe, a expressão
física da mulher era tão impressionante (só víamos seus olhos), que não precisamos tradução.
A ternura, o desejo, a construção do amor puderam levá-la até uma cena de conversa íntima
com seu marido (o auxiliar de nosso grupo era homem e também estava muito comovido), e a
expressar sua raiva, seu asco com os médicos que a declararam estéril e “lixo” inútil. Tudo isso
demonstrava a força dessa mulher. Ao fim de seu psicodrama disse que nunca tinha imaginado
que poderia falar com seu esposo de seus sentimentos, quem dirá com sua sogra. Concordou

3
Para informação geral sobre o trabalho realizado pela autora em Gaza, ver, neste volume “O
psicodrama psicanalítico em situações de violência social e traumatismo psicológico. O Caso de Gaza/
Palestina”. (Nota des Editores)
em tentar provar isso na realidade, e no seguinte encontro soubemos que agora, um ano mais
tarde, está grávida.

2. WEP na cidade de Gaza

Esta protagonista tinha coberto apenas o cabelo, então pudemos ver a expressão de seu rosto,
e foi impressionante a força e a criatividade com que atuou no seu cenário. Seu tema foi
“Rebelião contra meu pai”, a quem ama muito, mas que também lhe inspira pavor. Nunca
tinha lhe contradito, nunca tinha resistido a alguma ordem dele. Sua família é um modelo da
família patriarcal palestina. Na cena, durante um longo tempo não conseguiu escolher um ego
auxiliar para o papel de seu pai, então falou com a “cadeira vazia”. Timidamente expressou sua
resistência contra a decisão de seu pai sobre com quem deveria casar. Por fim, escolheu um
companheiro de nosso grupo como pai e na cena se desencadeou um encontro surrealista. A
protagonista tinha medo que o pai batesse nela, a excluísse da família, até mesmo que a
matasse. Representamos essas cenas temidas e a mulher demonstrou cada vez mais força e
resistência. Por fim disse: “Eu sei que meu pai não é tão violento, que ele me ama. É o meu
próprio medo!”. O grupo de mulheres do WEP entrou em cena e a converteu em um
sociodrama: todas gritavam a seus irmãos mais velhos e a seus pais que querem ser livres para
tomar suas próprias decisões, que necessitam que respeitem suas autodeterminações! No
compartilhamento (sharing) se multiplicaram as experiências de medo, temor, violência. As
mulheres falaram de como é importante não estar sozinha em tais momentos, de se
organizarem e atuarem em coletivo.

3. No nosso grupo de formação:

A protagonista queria trabalhar em Realidade Suplementar (surplus reality) sobre seu desejo
de participar no congresso da International Association of Group Psychotherapy (IAGPI) NO
Brasil em julho. Seu tema foi “Nunca saí de Gaza”. Isso demonstrou a maravilhosa
possibilidade que o psicodrama oferece de colocar em uma encenação surrealista uma
situação do futuro, neste caso, se imaginar viajando ao Brasil. A protagonista representou com
egos auxiliares seu medo, sua timidez, sua vergonha. Formou um muro com esses personagens
e, depois, em outra cena, trouxe o muro real, onde tem que passar o check-point4 para o Egito.
Se despediu de sua família, e o grupo desempenhou os papeis familiares de modo fantástico:
foi uma análise sociocultural. Expressaram todos os preconceitos e emoções da família
extensa: Como ela, uma mulher, quer viajar para tão longe? Foi um psicodrama muito criativo,
em que a espontaneidade dos egos auxiliares ajudou muito na compreensão da protagonista
de que, no fundo, tem interiorizados os medos e as leis sociais. Na realidade, sua família a

4
Em toda a Palestina existem mais de 500 checkpoints (barreiras de controle de documentos) equipados
com aparelhos de raio X e detectores de metais. Para que os palestinos possam entrar nas cidades e depois
deixar as localidades, é preciso que apresentem documentos (permits) nesses postos. A exigência vale
para crianças em idade escolar, idosos, gestantes e aos que estão doentes. Diariamente, as pessoas chegam
a perder até cinco horas só para atravessar as barreiras de segurança. Segundo a Organização Mundial da
Saúde (OMS), em 2008, 69 partos foram feitos nos checkpoints. – Notícia de 2005, Missão humanitária
brasileira não consegue acesso à Faixa de Gaza | Agência Brasil (ebc.com.br) (Nota minha (da isa) porque
conheço muito pouco sobre a questão palestina)

Existe uma cota anual de permits emitidos e os empregadores por vezes são os donos da documentação.
Assim, eles possuem autorizações que podem ser usadas durante o ano todo e cancelam o documento
quando não precisam mais dos empregados. Por isso, é comum palestinos terem a passagem negada em
checkpoints porque não foram avisados do término do vínculo com o empregador. A vulnerabilidade a
que esses trabalhadores estão sujeitos facilita a exploração e recebimento de baixos salários. – Notícia de
2017 Especial Palestina: As jornadas exaustivas de quem quer apenas trabalhar - Ponte Jornalismo
apoiou nesse projeto: eram seus próprios temores e identificações com leis culturais
centenárias que estavam bloqueando sua liberdade, como as de muitas mulheres.

Como já era de se esperar, depois desse psicodrama também se de um compartilhamento


(sharing) muito intenso, e os homens, que desempenharam papeis feminismos como lhes
ajudou a inversão de papéis – técnica fundamental no psicodrama – para que se identificassem
com a situação das mulheres e, assim, serem mais solidários.

Por último, quero falar um pouco de algumas considerações sobre as técnicas do psicodrama
com um grupo misto em Gaza.

As mulheres não devem olhar a homens desconhecidos diretamente nos olhos, e as pessoas
de gênero distinto não podem ser tocadas. Então, como fazer psicodrama? Os participantes
inventaram uma solução: em vez de se tocarem, pegavam um pedacinho do tecido da roupa
entre os dedos, e o olhar podia ser direto, porque se tratava de “cenas surrealistas”.

Durante os quatro anos de nosso projeto, as relações entre mulheres e homens se


“normalizaram” de tal maneira que todas e todos expressaram que foi a única situação social
em que puderam se comunicar assim, de maneira “normal”.

A inversão de papeis entre os gêneros foi muito impressionante: de primeira, um homem disse
que não podia ser mulher, e as mulheres sentiram muito pudor em desempenhar papeis de
homens, mais adiante, todas e todos desfrutavam muito a inversão de papeis com o outro
gênero. Um protagonista homem me pediu que o ajudasse a controlar suas lágrimas, porque
culturalmente aos homens está proibido chorar em público, já que se considera mostra de
uma terrível debilidade. No momento da catarse, me olhou com angústia e eu pedi que
escolhesse um duplo/dublê. Escolheu uma mulher como seu alter-ego e essa desatou a chorar
nesse papel, enquanto ele se sentiu muito comovido e aliviado. Se tratava do enterro de sua
querida avó, ao que não pode estar porque o check-point estava fechado e não pode viajar a
Nablu, onde vive grande parte de sua família. Agora, na cena, encontrou uma forma emocional
para enterrá-la e dizer a ela o como lhe amava.

De modo parecido funcionou de início um duplo masculino para uma protagonista, a respeito
das manifestações de agressão e ódio contra um membro de sua família. Essas expressões são
altamente censuradas nas mulheres, cuja atitude precisa ser de submissão e obediência. É
impressionante ver com que rapidez desaparecem essas limitações uma vez que a mulher
perde o medo.

Primero se encena, depois segue a luta na realidade, muito mais lenta e difícil, mas a atitude
pessoal das mulheres é outra. No caso de nossa colega de grupo, ela não pode viajar para o
Brasil, mas não porque estivesse com medo ou inibida, mas porque irrompeu a guerra e as
fronteiras se fecharam.

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