TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras,
2020. 192 p.
N o seu reputado artigo “Luto e No seu romance O avesso da pele,
Melancolia”, Sigmund Freud (1996) o carioca Jeferson Tenório, radicado em tenta estabelecer a diferença entre Porto Alegre, encara e nos faz encarar os dois conceitos, reconhecendo uma situação de permanente presença que ambos tratam de situações em ou revezamento dos dois tipos de pesar. que perduram o desânimo penoso, E em muitos episódios na narrativa os a cessação de interesse pelo mundo dois tipos de pesar se retroalimentam, externo, a perda da capacidade de com o mundo exterior impondo uma amar e a inibição de qualquer ativi- melancolia que não é idiossincrática, dade. O que diferenciaria a melancolia mas socialmente estruturada, ou social- seria a “diminuição dos sentimentos mente estimulada. de auto-estima [sic] a ponto de encon- No romance, o jovem Pedro tenta trar expressão em autorrecriminação e rememorar o passado da família após o autoenvilecimento, culminando numa assassinato do pai, o professor Henrique expectativa delirante de punição”. Nunes, numa abordagem policial. Por fim, “No luto, é o mundo que se Nas memórias suscitadas por Pedro torna pobre e vazio; na melancolia, estão as dificuldades vividas por é o próprio ego”.1 Henrique como homem negro num país marcado pelo racismo, como marido 1 Sigmund Freud, “Luto e melancolia” in A história do movimento psicanalítico, em um casamento instável e explo- artigos sobre metapsicologia e outros traba- sivo, e como educador na deficiente lhos. Obras, vol. XIV (Rio de Janeiro: Imago, 1996), pp. 143, 144. rede pública de ensino. Também nesses
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dois âmbitos, o familiar e o profis- virou modelo. O Avesso é um memorial sional, se refletem as implicações do da precariedade, da não herança, da rara racismo, e são as precariedades dos fotografia guardada, do casal de noivos sistemas falidos que Tenório examina que começa a vida morando nos fundos mais amiúde. de um armazém do pai dela, na “casa Na procura do autor, configura-se pequena de madeira, com um fogão de muito relevante a sua opção de passar quatro bocas, um sofá de dois lugares todo o livro num diálogo com o pai e no quarto uma cama de casal. Era o morto, sempre evocando “Você”: “Hoje, suficiente” (p. 78). É o desenho desse prefiro pensar que você partiu para padrão que tem tudo para sucumbir, regressar a mim” (p. 13); “E ser confun- que sucumbe na maioria das vezes, dido com bandido vai fazer parte da sua independentemente de a falência ser história” (p. 19); ou, “Na primeira vez reconhecida, mas que é a única alterna- que ouviu falar em consciência negra, tiva para quem foge de situações igual- você não compreendia que a sociedade mente periclitantes no grupo familiar se importava mais com a sua cor do de origem. que com o seu caráter” (p. 29). Nesse Nesse itinerário, é normalizado passo, o leitor não só é imerso visual- o convívio com as mortes trágicas, mente na cena, mas é convocado a parti- violentas, ou devido a outros fatores cipar diretamente, a sentir-se vulnerável, sociais, como aquelas provocadas e a responder. Ressalte-se que Tenório pela falta de assistência em saúde, por constrói, ao longo do percurso narra- exemplo. Também o convívio com o tivo, diversas situações fáticas muito luto, que não se restringe ao desencanto concretas, com personagens bastante perante o falecimento de familiares e verossímeis, em situações que, como no amigos, mas também ao fim de projetos cotidiano, testam os limites dos ordena- e relacionamentos, lares desfeitos e as mentos prévios. mais diversas perdas materiais. Ao longo do romance, o autor No que se refere ao luto, o prota- se encarrega de fazer o percurso da gonista-narrador conta que a sua avó verdadeira família tradicional brasi- materna foi vítima de atropelo fatal leira, e não daquela que, sendo exceção, quando a mãe dele, Martha, era criança. morando em palácios e nas nuvens, O avô materno morreu meses depois de
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um ataque do coração. A avó paterna foi deslocamento para o trabalho, e mesmo abandonada pelo marido, que a deixou assim disposto a ser constantemente com três crianças, inclusive Henrique, averiguado e a aceitar todas as interdi- o professor que a polícia destruiu. ções e ordens discricionárias, por mais É uma sucessão de tragédias que tende- arbitrárias que sejam. O livro todo é riam a resvalar para o anonimato e, numeroso no registro de momentos juntas a outras citadas no romance, como estes, e nem sempre são os poli- dão a entender que existe uma configu- ciais que, na sociedade, apontam o dedo ração social propensa a repeti-las. Uma para o “suspeito”. configuração de perenes luto e melan- O narrador revela tentativas da parte colia que tanto é sentida pelos persona- do pai de superar o protocolo de orienta- gens, por mais que tentem fugir desse ções que recebeu desde a infância, que enquadramento, quanto é gritada pelo determinava: “Não chame a atenção ambiente social. Chegamos, de fato, dos brancos. Não fale alto em certos ao ponto de um luto e de uma melan- lugares, as pessoas se assustam quando colia estruturais. um rapaz negro fala alto. Não ande Não são poucos os momentos em por muito tempo atrás de uma pessoa que se registra este vínculo imposto branca, na rua. Não faça nenhum movi- entre os personagens e um lugar que mento brusco quando um policial te lhes cabe, e isso aparece também na abordar” (p. 88). O que o professor forma da fixação, por corolário, do Henrique diz ao seu filho narrador, lugar que não cabe, onde os homens já na infância deste, é, pelo contrário: negros são vistos como inconvenientes. “É necessário preservar o avesso, você Assim, no capítulo 4 da 3ª parte do livro me disse. Preservar aquilo que ninguém (“De volta a São Petesburgo”, a partir vê. Porque não demora muito e a cor da p. 142), o autor relata oito aborda- da pele atravessa nosso corpo e deter- gens policiais contra o pai, ao longo mina nosso modo de estar no mundo. da sua vida, que ratificam que ele não E por mais que sua vida seja medida pela deveria existir ou estar em trânsito pela cor […] você tem de preservar algo que cidade de Porto Alegre, ao menos não não se encaixa nisso, entendeu? […] E é em determinados locais, em determi- nesse lugar que estão os afetos. E são os nadas horas, devendo restringir-se ao afetos que nos mantêm vivos” (p. 61).
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É no avesso da pele que estão os irremediavelmente a interação íntima afetos, o que individualiza o sujeito dos casais. Relata-se um progressivo antes do conceito de raça, aplicado endurecimento e amargor dos persona- para estigmatizar toda uma coletivi- gens, pai, mãe e amantes com as suces- dade. Não à toa o narrador reflete: sivas falências afetivas. As desventuras “as pessoas que te mataram ainda estão vão se acumulando até infiltrarem, soltas. E não sei por quanto tempo elas no avesso da pele, o “autoenvileci- estarão livres. Mas elas nunca saberão mento” da melancolia. Assim, o corpo o que você tinha antes da pele. Jamais de que se fala, e em que tanto se toca, saberão o que você carregava para além tende à exaustão. da ameaça” (p. 184). Por outro lado, para permanecer Mas como percebemos que afetos vivo, este corpo define estratégias de foram esses, desprezados, subesti- resistência ao luto. É preciso rejeitar mados, estigmatizados, negligenciados o desânimo, a falta de interesse pelo e, por fim, fatalmente massacrados? mundo, a perda da capacidade de amar Como se insinuam e aparecem na trama? e a inibição de qualquer atividade. Em primeiro lugar, é preciso cons- Resta lutar contra as contingências tituir um locus, um corpo para eles. da melancolia, que, como sinalizado, O corpo do pai, cuja permanente fragi- não é aqui uma condição individual. lidade acompanhamos desde a infância, Ela está estruturalmente construída está exposto a violências na escola e opõe ao professor, a “Você”, o primária, na vizinhança onde cresceu e último desafio de superar os meca- em outras ruas, na família de origem e nismos de autorrecriminação e autoen- mesmo no casamento. Também é alvo vilecimento, os mecanismos de constante da vigilância, do controle diminuição da autoestima que são reifi- social e da insegurança alimentar. cados diariamente. Sua atividade sexual, bem como a Os exemplos de reconhecimento da mãe do narrador, é descrita minu- desse perigo abundam: “Você tinha ciosamente, desde a masturbação dezenove anos mas ainda não sabia na pré-adolescência, passando pela muita coisa sobre autoestima, nem abordagem aos parceiros, a quali- sobre se valorizar e essas coisas dade dos orgasmos e a forma como necessárias para manter a serenidade” os preconceitos comprometem (p. 20); “Minha mãe irá crescer e
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dentro dela um poço irá nascer. E, no Como viver em estado permanente fundo dele, a única coisa que realmente de melancolia, estado socialmente confi- a incomodará para sempre: a falta. gurado de melancolia, sem ser melan- A falta será companheira” (p. 43); cólico? Fazendo o caminho inverso do “Muito cedo você aprenderá que o que a estrutura impõe, indo de dentro seu pranto vai enfraquecer sua mãe. para fora, mostrando o avesso. E para Então você vai evitar. Vai chorar para fazê-lo é inevitável pagar-se o preço de dentro” (p. 69); “Vocês eram um casal se tornar ainda mais isolado e incom- de negros gritando pela rua. Isso causa preendido. “Juliana disse que estava um efeito no imaginário das pessoas, triste com seu jeito, que você tinha ou confirma aquilo que elas pensam mudado e que já não sabia brincar. das pessoas negras: são escandalosas, Agora você levava tudo muito a sério. barraqueiras e mal-educadas” (p. 90); Agora para você tudo era racismo” e “[Ela] Disse que o Oliveira era um (p. 35). Também o preço de se tornar desses poetas que nos lembram de onde mais vulnerável, como o pai, ao nós viemos, para não nos prendermos resolver caminhar altivo nas aborda- num passado, mas nos libertarmos no gens, verdadeiras ciladas, físicas e presente” (p. 113). morais, à sua volta. Nesse ponto, vale citar a escritora É bem simbólico o que disse justa- Toni Morrison que, numa passagem mente o pai do narrador, ao levá-lo do seu romance Amada, anota: “Uma a um funeral, quando o jovem tinha ex-escrava amar algo tanto assim era 12 anos: para não chorar exagerada- perigoso, especialmente se dedicava mente, porque “a morte é íntima um amor desses aos filhos. O melhor, demais para caber num espetáculo” ele sabia, era amar só um pouquinho; (p. 179). Ou seja, pelas lições do amar tudo, mas só um pouquinho, professor Henrique, o luto deve ser pois, no caso de a coisa sumir, talvez absorvido, silenciado internamente, ainda restasse um pouco de amor para mas a melancolia deve ser expulsa, a próxima.2 mesmo que seja necessário revirar de dentro para fora a vestimenta que a 2 Toni Morrison, Amada, São Paulo: Círculo do Livro, 1993, p. 60. pele significa.
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Tenório é autor de fala contun- sentimentos. Também, uma sempre dente sobre assuntos urgentes, sempre aventada possibilidade de escape, como colocando a família, a sua desestru- em Estela sem Deus: “Então um dia, turação ou falta, no centro de outras quando estava sozinha, juntei minhas narrativas. No livro O beijo na parede roupas e abandonei Francisco [namo- (Sulina, 2020), ele conta a história rado/amante]. O abandono era a única de um menino que perde mãe e pai forma de me proteger”.3 em situações trágicas, vai morar num À falta de soluções imediatas, cortiço e tenta criar laços com perso- retorna-se invariavelmente à arma- nagens em situações bastante precárias dilha da melancolia. Em O beijo na daquele ambiente e das ruas. Em Estela parede: “Eu já estava até preparado sem Deus (Zouk, 2018), Tenório narra para o pior, pois é assim que acontece a história de duas crianças, uma menina nas novelas e nos filmes: os médicos abandonada pelo pai e seu irmão órfão mandam chamar alguém para contar de pai. Eles são entregues pela mãe a a tragédia toda. Em seguida, começa uma tia de forte regramento religioso e uma música de violino muito triste. obrigados aos condicionamentos dela. E foi exatamente assim que acon- A história se consolida em volta da teceu”; e “Seu Ramiro ficou solu- garota, que também é a narradora, e çando um tempão, com um olhar de mostra os desafios da sua adolescência desespero. E isso é bom porque o e do seu crescimento. desespero ainda é um modo de não Assim como no livro O avesso da concordar com a vida”.4 Já em Estela pele, nestes dois primeiros romances sem Deus: “Tinha receio de estar estão presentes a decepção de crianças e condenada a uma vida única. Destinos jovens com o apoio que esperavam dos únicos são sempre violentos” (p. 87); adultos, a descoberta da sexualidade e “Administrar a tristeza era a herança por caminhos arriscados, violentos e da minha mãe”.5 traumáticos, várias menções à morte 3 Jeferson Tenório, Estela sem Deus, Porto de parentes e conhecidos, com refle- Alegre: Zouk, 2018, p. 205. 4 Jeferson Tenório, O beijo na parede, 6ª ed., xões sobre a morte, e sobre a medida Porto Alegre: Sulina, 2020, p. 16 e 87. exata e a validade da expressão de 5 Jeferson Tenório, Estela sem Deus, p. 98.
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Vale ainda ponderar que, em Estela seja lá que definição se vincule a sem Deus, à guisa de prefácio, Luiz esse conceito. Valeria mais, talvez, Maurício Azevedo, doutor em Teoria considerar a alma como elemento e História Literária pela Universidade que se constitui no mundo, na de Campinas, declara que aquele é um carne, nas disputas, nos enfrenta- “livro sem alma”. “E tomo alma aqui mentos diversos e no gozo, enfim. como sendo um elemento negativo, Daí a importância do personagem como o produto de um engano, um professor Henrique Nunes, que, em embuste cuidadosamente construído sua busca manifesta pela subjetividade, para distrair nossa própria incapaci- pretende “Preservar aquilo que ninguém dade de aceitarmos a força dolorosa dos vê” (p. 61). Já como homem maduro, fatos. Considero alma todo fragmento ele intenta romper os filtros de silêncio fantasioso presente nas literaturas de e autonegação da melancolia e dos lutos baixa qualidade, nas narrativas desti- impostos socialmente (reitere-se que nadas a afastar o leitor de seu encontro lutos nem sempre são relativos a fale- com a realidade”. Prosseguindo, cimentos, mas a perdas em geral). Sim, procura ratificar: “Este não é um livro ele sabe que deve experimentar, como de fantasias; e não o é simplesmente todo ser humano, estas aflições numa porque foi escrito por alguém não dimensão pessoal, mas recusa o papel fantasioso, que rejeitou com sangue e de melancólico impingido socialmente. voz, qualquer tentativa de simulação. Pois o melancólico, conforme Eis um autor real em um mundo cada consta no artigo de Freud citado, vez mais irreal”. E, sobre o “mundo “perdeu seu amor-próprio e deve ter irreal”, a modo de esclarecimento, tido boas razões para tanto”. Henrique escreveu que “Existem exemplares da dirige contra si mesmo a hostilidade vida humana que, dada a violência das relacionada aos objetos do mundo rotinas do real, tornaram-se irreais”.6 externo e precisa entender-se, como Ora, não se pode crer que Jeferson diria o psicanalista, com “Uma cons- Tenório tenha evitado pôr fantasia telação mental de revolta, que, por na sua obra, ou que seus persona- um certo processo, passou então para gens e narrativas não tenham alma, o estado esmagado de melancolia”.7
6 Luiz Maurício Azevedo apud Tenório, Estela
sem Deus, p. 6. 7 Freud, “Luto e melancolia”, p. 146.
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Desmontar este estigma, no caso Henrique, do seu filho narrador e do de fundo racial, é a luta do professor escritor Jeferson Tenório.