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EM BUSCA DE FANON

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução Ligia Fonseca Ferreira e


Regina Salgado Campos. São Paulo: Zahar, 2022. 374 p.

F oi-se o tempo em que a obra de como relações étnico-raciais, coloniali-


Fanon era conhecida apenas pelos dade, decolonialidade, violência sistê-
militantes anticolonialistas e ativistas mica, práxis psiquiátrica, insubmissão
dos movimentos negros. Em grande e ativismo cultural. A apresentação
parte pelo esforço destes, ela é hoje desta nova edição do livro, escrita por
uma referência obrigatória para todo Thula R. de O. Pires, Marcos Queiroz
estudante e professor(a) de ciências e Wanderson Flor do Nascimento traz
humanas e sociais. O que implica que uma reflexão interessante neste sentido,
se deva ter uma noção mínima de sua buscando aproximar o leitor contempo-
trajetória e aspectos elementares de sua râneo do que seria uma releitura brasi-
reflexão, tal qual se faz com outros inte- leira do autor.
lectuais do século XX, como Keynes, Do ponto de vista acadêmico,
Lukács, Marcuse, Sartre, Braudel ou trata-se também de uma difusão rele-
Foucault. Tendo isto em consideração, vante para o Brasil, pois a primeira
a republicação de Os condenados da edição do livro (1961) tem mais de
terra já é algo meritório. sessenta anos. Fanon é uma referência
Esta nova edição vai permitir que para o ativismo negro desde a década
um número maior e mais amplo de de 1970. No entanto, sua recepção
leitores possa conhecer esta obra clás- na academia foi sempre esporádica.
sica, tendo em conta que há hoje um É certo que este quadro vem mudando
público mais interessado do que outrora rapidamente, em decorrência da
em algumas temáticas centrais ao livro, expansão e democratização das

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universidades públicas, que permitiram exemplo, vale lembrar que muitos da
a entrada de uma maior quantidade de negritude francófona viam-no com
professores (as) e estudantes negros e/ desconfiança por conta de sua radica-
ou de baixa renda em tais instituições. lidade reflexiva e política. E havia um
Isso fez com que, nos últimos anos, porquê. Afinal, não foi ele quem disse
os trabalhos sobre Fanon tenham cres- publicamente frases como a seguinte:
cido em escala geométrica, com livros, “A descoberta da existência de uma
teses, dissertações, artigos e seminários; civilização negra no século XV não
e já se pode falar do nascimento de um me dá nenhum brevê de humanidade.
campo de estudos fanonianos no país. Quer se queira, quer não, o passado
Mas trata-se de algo recente. não pode, de modo algum, me guiar
Essa retomada de Fanon deve ser na atualidade”.1
vista em escala global. Ela é mais uma Fanon era assim: insubmisso.
peça do tabuleiro que se joga atual- Talvez por isso ele não se visse apenas
mente, visando o estabelecimento como uma pessoa intelectualizada,
de uma ciência menos eurocêntrica; que repete opiniões alheias. Ele queria
especialmente as ciências humanas e ser e se colocar como um intelectual
sociais. Uma tendência intelectual que pleno, ou seja, alguém que tem um
começa a ganhar autoconsciência de pensamento próprio e coerente. Pode-se
sua existência transnacional, refletindo aceitar ou não tal posicionamento, mas
a disposição de muitos para construir é importante tê-lo em consideração
um mundo mais multipolar no século para melhor entendê-lo. Esta é inclu-
XXI. Fanon não é uma peça secun- sive uma boa razão para conceder a
dária desse jogo. Não é um peão, é um Fanon o direito de ser lido a partir de
bispo, que tem a capacidade de avançar si mesmo, e não como continuador de
rapidamente para o campo inimigo e, correntes intelectuais, como o “existen-
por vezes, contra o seu próprio campo, cialismo”, “a psicanálise lacaniana”,
de forma transversal. o “terceiro-mundismo”, o “anticolo-
Essa agudeza do autor já era nialismo”, o “marxismo-leninismo”,
sentida à época, inclusive por seus
1 Frantz Fanon, Pele negra, máscaras
“correligionários”. Para citar só um brancas, Salvador: EDUFBA, 2008, p. 186.

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o “maoismo” ou, mais recentemente, o grau de sofisticação analítica. Especial-
“pós-colonialismo”, o “decolonialismo” mente para aqueles que seguem as
ou as “epistemologias do Sul”. vertentes derivadas da chamada “virada
Não por acaso, tal é o direcio- linguística” do Entreguerras. Mas, para
namento que muitos pesquisadores os pesquisadores que vêm construindo
recentes têm feito no campo interna- essa visão mais internalista de Fanon,
cional de estudos fanonianos: pensar trata-se de fugir deste ardil pós-mo-
desde Fanon.2 Em outras palavras, derno, refazendo o caminho clássico
desenvolver e atualizar o seu pensa- dos cientistas sociais e historiadores
mento a partir de suas próprias bases, ao interpretar as ideias: analisar a
como propuseram, entre outros, Jane veracidade da interpretação realizada.
Gordon, Alejandro Oto, Lewis Gordon, Ou seja, o quanto determinada inter-
Nigel Gibson, Silvia Wynter, Sonia pretação de determinadas ideias
Dayan-Hezbrun, Deivison M. Faustino, pode ser tida (ou não) como uma boa
Mireille Fanon-Mendés-France. aproximação da verdade, tendo em
Evidentemente, cabe uma per- conta o seu método, coerência e facti-
gunta: seria óbvio o que significa pensar cidade empírica.
desde Fanon? Aparentemente sim. Mas Enfim chegamos ao nosso ponto
indo mais a fundo: tal objetivo não específico: como ler Os condenados
implica certas premissas implícitas? da terra hoje? Há uma única inter-
Por exemplo: o que é pensar sobre um pretação correta? Evidentemente que
autor e a partir de um autor? Ainda não, mas há algumas mais corretas do
mais complexo: com um autor... Não que outras. Na busca por um Fanon
se estaria aí recaindo em certa lógica contemporâneo, nas próximas páginas,
de autenticidade e essencialismo: aponta-se para uma destas leituras
a busca do “verdadeiro” Fanon a ser possíveis, sem a preocupação de provar
identificado e analisado? Sabemos que inteiramente nosso ponto de vista,
tais perguntas não são absurdas. E no nem negar outras (e novas) possibili-
mundo acadêmico podem implicar alto dades interpretativas.
2 Sobre o assunto, ver Deivison M. Faustino, Escrito em 1961, o livro foi ditado
A disputa em torno de Frantz Fanon: no leito de morte, quando o autor estava
a teoria política dos fanonismos contem-
porâneos, São Paulo: Intermeios, 2020. acamado por conta do agravamento da

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leucemia que o levaria à morte prema- descolonizações, e só estas últimas
tura aos trinta e seis anos. Naquele é que teriam esta importância global.
período, Fanon era um autor conhe- O que diferenciava umas de outras?
cido no meio intelectual parisiense e Para ele, as falsas descolonizações
no norte da África. Desde 1957 traba- eram aquelas que estavam realizando
lhava como médico na Tunísia e por as independências nacionais dentro
vezes na França, após ter-se demi- de um marco neocolonial, em que as
tido da mesma função na Argélia. Era novas burguesias nativas (africanas)
também um militante da Frente de estabeleciam negociações que manti-
Libertação Nacional (FLN) da Argélia, nham uma relação de subalternidade
tendo se tornado editor do jornal antico- da jovem nação com as ex-metrópoles.
lonialista El Moudjahid e um porta-voz Ao contrário, as verdadeiras descoloni-
informal do Ministério da Informação zações seriam aquelas em que o povo e
da FLN no exterior. sua vanguarda seriam os reais protago-
Não resta dúvida de que o obje- nistas. Estes, ao realizar uma revolução
tivo primordial deste último livro de contra a ordem colonial e o neocolo-
Fanon era refletir sobre os dilemas nialismo, criariam as condições para
das descolonizações africanas, em um a construção de uma nova sociedade
momento crucial da história política socialista: original, autônoma, com
do continente. Afinal, após décadas justiça social e poder popular.
de luta anticolonial, os movimentos Para Fanon, inclusive, esta desco-
de libertação finalmente caminhavam lonização revolucionária seria a única
para conseguir suas independências possível nos casos em que não houvesse
nacionais, em particular, na África de abertura para negociações da indepen-
dominação inglesa e francesa. dência, como na África “lusófona” e
Tal fato histórico possuía certa em outros lugares (Argélia, Rodésia,
dubiedade para Fanon. Por um lado, Namíbia, África do Sul) nos anos 1950
ele celebrava a vitória histórica das e 60, por conta dos grandes interesses
descolonizações. Era uma oportunidade materiais metropolitanos e das popula-
para o mundo melhorar como um todo, ções brancas neles assentadas. Nestes,
humanizando-se. No entanto, dizia ele, a luta armada era a única saída. Algo
existiriam as falsas e as verdadeiras que ele busca esclarecer para a esquerda

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internacional e para certas elites afri- de reflexão profunda. Martinicano
canas, que ainda se recusavam a apoiar de origem, formado na França do
a violência como um meio legítimo pós-Guerra, médico psiquiatra no norte
de descolonização, como a que estava da África, militante da FLN, Fanon
ocorrendo na Argélia. tornou-se um arguto observador do
É certo que Os condenados foi tipo específico de relações sociais que
escrito e editado visando essa luta polí- se constroem e reproduzem em socie-
tico-ideológica da época. E entre as dades estruturadas pelo capitalismo
décadas de 1960 e 1970, na medida em colonialista eurocentrado, sejam elas
que esse contexto e objetivo primordial coloniais ou neocoloniais, como nas
continuaram existindo, esta aproxi- Américas. Vários trechos dos seus
mação da obra se tornou a forma clás- livros e artigos são úteis nessa recons-
sica de se ler o autor. Foi somente nos trução, como em Pele negras, máscaras
anos 1980, quando se criou o Fanon brancas e nos artigos de El Moudjahid
“pós-colonial” ou o Fanon “estudioso” (recentemente publicados no Brasil
das relações étnico-raciais, que o Fanon nos livros Escritos políticos e Por uma
“revolucionário” passou a ser visto por revolução africana), em que reapa-
muitos como alguém ultrapassado e rece, por exemplo, a questão do para-
anacrônico. Não por acaso, a partir daí lelismo entre sociedades coloniais e
se têm privilegiado as revisitações de sociedades racistas, como os EUA.
Pele negra, máscaras brancas (1951). Já tivemos a oportunidade de tratar
No entanto, mais uma vez, penso do assunto em outra ocasião, a partir
que uma visão mais interna do autor do conceito de configuração colonia-
e sua obra permite superar o suposto lista em Fanon.3 Adicionalmente, vale
antagonismo de tais posições. Afinal, destacar que a mesma temática – para-
não se trata de um militante revolucio- lelismo entre sociedades coloniais e
nário ou de um teórico. Ele foi ambas sociedades racistas – reaparece no curso
as coisas. Daí que uma visão fanoniana de “Psicopatologia social” que o autor
coerente seja necessariamente um lugar
3 Muryatan S. Barbosa, “A atualidade de
de práxis, ainda hoje. Frantz Fanon: acerca da configuração colo-
É verdade que Os condenados foi nialista” in Silvio de A. C. Filho e W. S.
Nascimento (orgs.), Intelectuais das Áfricas
um livro de combate. Mas foi também (Rio de Janeiro: Pontes, 2018), pp. 443-467.

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lecionou em 1959-60, como se pode ver destinados à burguesia ocidental. Essa
nos textos recém-publicados no Brasil.4 atividade adotará o nome de turismo
e será equiparada, nesse caso, a uma
Nesse sentido, penso que caberia indústria nacional. Se quisermos
revalorizar e reavaliar também Os uma prova dessa eventual transfor-
condenados. A título de exemplo, cito mação dos elementos da burguesia
ex-colonizada em organizadores de
as dicotomias ali levantadas pelo autor festas para a burguesia ocidental,
entre o mundo colonial e o mundo colo- vale a pena evocar o que aconteceu
nizado, como espaços diferentes de na América Latina. Os cassinos
de Havana, da Cidade do México,
ocupação e vivência nas cidades. Não
as praias do Rio, as garotas brasileiras,
soa como algo estranhamente pare- as garotas mexicanas, as mestiças de
cido aos espaços sociais segregados treze anos, Acapulco, Copacabana,
são estigmas dessa depravação da
das grandes cidades nas Américas?
burguesia nacional (p. 152).
E a correlação que ele estabelece entre
racismo sistêmico e violência – de colo- Ouso dizer que a própria organi-
nizadores e colonizados – será real- zação do livro revela que Fanon pode
mente uma exclusividade do mundo ser lido desde tal perspectiva, ou seja,
colonial? Ou ainda a sua análise da a partir de sua reflexão maior sobre
burguesia neocolonial africana; seria as consequências do colonialismo em
essa classe essencialmente diferente das sociedades coloniais ou neocoloniais.
classes dominantes latino-americanas? Há quatro capítulos primordiais em
E neste caso, vale lembrar, o próprio Os condenados: a) “Sobre a violência”,
autor fez a comparação em passagens acrescido de um curto ensaio sobre a
como a seguinte do livro citado: “Violência no contexto internacional”;
b) “Grandezas e fraquezas da espon-
Em seu aspecto decadente, a burguesia
nacional (africana) será considera- taneidade”; c) “Desventuras da cons-
velmente ajudada pelas burguesias ciência nacional”; d) “Sobre a cultura
ocidentais, que se apresentam como
nacional”. Estes formam um pouco
turistas amantes do exotismo, das
caçadas, dos cassinos. A burguesia mais que dois terços do livro. A parte
nacional organizará centros de menor são textos que Fanon e seu editor,
repouso e de lazer e terapias de prazer François Maspero, resolveram adicionar
4 Frantz Fanon, Alienação e liberdade: ao livro, a saber, o famoso prefácio
escritos psiquiátricos. São Paulo: Ubu
Editora, 2020, pp. 276-291. de Sartre ao texto (não reproduzido

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na edição aqui resenhada), além, do a inclusão de tais notas trariam ao
próprio Fanon, “Fundamentos recí- livro. Provavelmente, Fanon as queria
procos da cultura nacional e das lutas lá, mesmo sem ter tido tempo hábil
de libertação” (originalmente escrito para tirar dali todas as consequências
pelo autor como comunicação ao que gostaria. Daí que, prevendo as
II Congresso dos Escritores e Artistas objeções, ele tenha deixado escrito
Negros em 1958) e “Guerra colonial e em Os condenados: “Abordamos aqui
distúrbios mentais”, que surge como o o problema dos distúrbios mentais
capítulo V do livro. Este último, com originados da guerra de libertação
cerca de cinquenta páginas, são anota- conduzida pelo povo argelino. Poderão
ções do seu trabalho como médico parecer inoportunas e singularmente
psicanalista na Argélia e Tunísia, entre deslocadas em tal livro estas notas
1954 e 1959. de psiquiatria. Nada podemos fazer a
Se a comunicação mencionada respeito!” (p. 251).
(“Fundamentos recíprocos…”) ainda Mas por que Fanon as queria
guarda certa coesão com os demais lá? Aqui cabem algumas ilações.
capítulos, especialmente o IV (“Sobre A resposta mais óbvia é que elas servi-
a cultura nacional”), os que conhecem riam para mostrar os horrores do
o livro percebem que a inclusão das que estava acontecendo na Argélia.
notas citadas (capítulo V) soa um tanto Ou talvez para mostrar o lado desuma-
estranho a ele. Em especial, porque nizador da guerra, para ambos os lados.
são notas avulsas, que, apesar dos Mas ousa-se aqui outra hipótese: tais
comentários esparsos do autor, não notas foram ali incluídas porque eram
formam um texto coeso. Francamente, parte de um projeto de estudos maior
elas mais atrapalham uma primeira do autor, que ele sabia que não poderia
leitura do livro do que ajudam, pois concluir por estar com leucemia.
não se entende qual a importância que Do que se tratava este projeto inte-
elas teriam para o argumento central lectual? Vários elementos e trechos de
ali construído: em defesa das “verda- suas obras levam a crer que Fanon
deiras” descolonizações africanas. buscava construir uma teoria social
É pouco crível que Maspero, coerente, completa, em que o mundo
já famoso editor à época, não tenha capitalista, colonial e o neocolo-
notado a possível incompreensão que nial, seriam as duas partes de uma

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mesma totalidade, cuja gênese foram mostra que Fanon estava consciente
os processos de conquista europeia. de que seu livro colocava questões
Ele teve insights geniais do que esta que não poderiam ser ali resolvidas.
teoria implicava e do que ela deveria Mas que seriam repensadas por seus
englobar: a) o papel estrutural e estru- futuros leitores. E de fato o foram, como
turador do racismo; b) a violência sistê- mostra sua influência sobre autores tão
mica como forma de controle social; relevantes e diversos, como Amílcar
c) a tendência neocolonial das burgue- Cabral, Huey P. Newton, Bernard M.
sias nativas, após as independências Magubane, Angela Davis, Steve Biko,
nacionais. Mas não teve o tempo neces- Lélia Gonzalez, Homi Bhabha, Cedric
sário para desenvolver estas ideias em Robinson, Stuart Hall, Walter Mignolo
um todo coerente ou acrescentar outras ou Achille Mbembe. Evidentemente,
(se fosse o caso). pode-se aprender muito com todos estes
Em suma, a inclusão de tais notas, autores. Mas, em minha opinião, a tarefa
ainda que no final de Os condenados, dada por Fanon continua em aberto.

Muryatan S. Barbosa
Universidade Federal do ABC

doi: 10.9771/aa.v0i67.55008

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