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FRANTZ FANON E PAULO FREIRE

José Eustáquio Romão1


Natatcha Priscilla Romão2

FRANTZ OMAR FANON


(1925-1961)

1. Introdução

Ao longo de sua vida intelectual, uma pessoa acaba sofrendo muitas


influências e, se é um escritor ou escritora, acaba se referenciando em outros
pensadores e pensadoras. Seja por uma escolha consciente, seja por uma atração
resultante de uma convergência ditada pelo contexto do influenciado, alguns autores e
autoras lhe marcam mais profundamente.
Este parece ter sido o caso de Frantz Fanon na primeira fase de Paulo Freire
enquanto escritor. Curiosamente, como ele, outros pensadores ligado à Psicologia e à
Psiquiatria o influenciariam nessa primeira fase (final da década de ‘50 e início da de
’60 do século XX), como é o caso do psicólogo social Zevedei Barbu e do psicólogo
da Escola de Frankfurt, Erich Fromm.

1
Doutor em Educação, pela Universidade de São Paulo (USP), diretor-fundador do Instituto Paulo
Freire, Secretário Geral do Fórum Mundial dos Institutos Paulo Freire e Diretor do Programa de Pós-
Graduação em Educação, da Universidade Nove de Julho, em São Paulo. E-mail: jer@terra.com.br.
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Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora e doutoranda em Educação na
Universidade Nove de Julho (Uninove). E-mail: natatcha.priscilla@gmail.com.
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Mas, o que se quer, neste artigo, é demonstrar como Fanon foi importante
inspirador do que se transformaria em um dos eixos axiais da ação e do pensamento
freiriano: a defesa incondicional dos direitos e dos interesses do oprimido, dos
“esfarrapados da terra”, como escreveria na epígrafe da Pedagogia do oprimido, ou
dos Condenados da terra, como os chamaria Frantz Fanon no título de sua obra
máxima.

1. Traços Biográficos

Filho de uma família relativamente abastada para os padrões da terra natal,


Frantz Fanon nasceu em 20 de julho de 1925, em Fort-de-France, na Martinica,
colônia da França desde 1635. O pai, Casimir Fanon, era inspetor de alfândega, e a
mãe, Eléonore Médélice, proprietária de uma loja de hardware. Frantz Fanon cresceu
nesse ambiente da “black bourgeoisie” (“burguesia negra”) – apesar de um biógrafo
ter afirmado que a família estava longe do estrato social que conhecemos como
“classe média” (http://www.casafrica.es/detalle-who-is-who.jsp, consultado em 14 de
março de 2017).
Fanon realizou os primeiros estudos na terra natal e, até a conclusão do
secundário, aprendeu a História da França como se fosse a da Martinica. Portanto,
bebeu da atmosfera cultural das camadas sociais martinicanas cuja tendência
majoritária era para a assimilação e a para a integração na cultura francesa.
Foi então que conheceu Aimé Césaire, renomado crítico da colonização
europeia e criador do conceito de “negritude”. Dividido entre o “assimilacionismo” e

a busca da própria identidade negra, em 1943, Fanon deixou a Martinica para lutar, ao
lado dos franceses contra os alemães. Esse movimento, demonstra a hesitação do
jovem martinicano entre combater os colonizadores e lutar pela libertação dos
colonizadores.
Diferentemente dele, outro líder do movimento anticolonialista africano,
Amílcar Cabral, não teve dúvidas sobre ser a luta anticolonial mais importante do que
a luta pelas liberdades na metrópole (v. ROMÃO, 2012, p. 26 e segs.).
A partir da ocupação nazista da França, pelo armistício de 22 de junho de
1940, nasceu a Résistance (Resistência). Essa iniciativa foi progressivamente se
estruturando em uma rede de movimentos nacionalistas franceses clandestinos,
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coordenados pelo General Charles de Gaulle que, do exterior – inicialmente de


Londres e, depois, da Argélia – comandava tanto as ações militares quanto as civis
não violentas contra as forças de ocupação alemãs e contra os “colaboracionistas” da
chamada “República de Vichy”, “governada” pelo General Pétain.
Aos dezoito anos de idade, Fanon alistou-se nas “Forças Livres Francesas”,
que operavam na vizinha ilha de Dominica, engajando-se nos quadros gaullistas da
Resistência, no grupo dos “Voluntários do Caribe”. Aí lutou até o fim da II Guerra
Mundial, destacando-se nos combates contra as ditaduras nazifascistas, chegando a
ser condecorado com a Cruz de Guerra, em 1944, por seu empenho na Batalha da
Alsácia. Mesmo assim, percebeu o racismo que percebera, quando as forças navais da
República de Vichy ocuparam a Martinica, durante a II Guerra. Como naquela época,
a discriminação dos negros se visibilizava, agora, com a separação das tropas negras
das brancas para a “colheita” dos louros das vitórias contra os nazistas.
Retornou, então, à Martinica para completar os estudos secundários.
Aí, juntou-se ao Partido Comunista Francês, fazendo campanha para a eleição
do amigo Aimé Fernand David Césaire, o “eterno prefeito” de Fort-de-France, que
governou a capital da Martinica por 56 anos consecutivos. Agora, eleito deputado, o
criador do conceito de “negritude” foi se distanciando dos princípios anticolonialistas.
Embora Fanon tenha sido muito influenciado por esse conterrâneo político e poeta,
dele se afastou por suas posições a favor da manutenção da Martinica como
Departamento Ultramarino Francês. Nesse afastamento, acabou por revelar uma
posição anticolonialista mais radical, como se verá na militância e na obra escrita. Em
19 de março de 1946, a Martinica foi transformada, de fato, em Departamento
Ultramarino Francês, certamente contra o desejo de Fanon e de acordo com os
interesses de Césaire.
Em seguida, Fanon foi para a França (Lyon) para cursar Medicina,
especializando-se em Psiquiatria. Trabalhou no hospital psiquiátrico de Saint-Alban
por mais de um ano, onde conheceu o colega de profissão catalão, marxista e
antifranquista, Francesc Tosquelles Llauradó, por quem foi, também, muito
influenciado, tanto profissional quanto politicamente. Tosquelles (1912-1994), que
escreveu L'enseignement de la folie (O ensino da loucura), foi um dos mais
importantes representantes da reforma de que resultou a Psiquiatria Institucional.
Aí, Fanon se viu diante do recorrente racismo que o inspirou para escrever
"Um ensaio para a desalienação dos negros". Esse trabalho é, certamente, o embrião
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de sua tese Peau noire, masques blancs (Pele negra, máscaras brancas), rejeitada
pela banca examinadora, por atribuir a origem de várias patologias mentais ao
colonialismo. Tese rejeitada, teve de substituí-la por outro trabalho: Troubles mentaux
et syndromes psychiatriques dans l’hérédep-dégénération-spino-cérébelleuse - Un cas
de maladie de Friereich avec délire de possession (Transtornos mentais e síndromes
psiquiátricas em degeneração espinocerebelar hereditária – Um caso de doença de
Friereich com delírio de posse). É bom lembrar que, mais tarde, em 1952, Fanon
publicou Peau noire et masques blancs, que se tornou uma das mais importantes
obras referenciais da luta contra o racismo no século XX.
Em 1953, casou-se com Marie-Josèphe Dublé, chamada simplesmente de
“Josie”, mulher branca, nascida na França, para quem Fanon ditou, para que ela o
datilografasse, o livro que acabara de publicar.
Nomeado para o hospital militar de Blida, na Argélia, ainda em 1953, aí
permaneceu por cerca de dois anos. Com o início da Guerra da Argélia, em 1955,
engajou-se na luta da Frente de Libertação Nacional (FLN) e passou a lutar pela
independência daquela nação africana, por meio do movimento “Amizades
Argelinas”, que buscava apoiar as famílias dos prisioneiros políticos com problemas
psíquicos.
Com apoio da FLN, instalou-se na capital da Tunísia, mas continuou
participando ativamente da luta anticolonialista. Nomeado “embaixador itinerante da
África Negra” pelo governo provisório da Argélia, Fanon viajou por toda a África
Sahariana e, por essa época, em Ghana, foi-lhe diagnosticada a leucemia.
Lutando contra a doença, tratou-se nos dois lados da bipolaridade política do
mundo do pós-guerra: na “Cortina de Ferro” e na “Cortina de Dólar”. Buscou,
inicialmente, ajuda médica em Moscou, mas foi aconselhado a ir para os Estados
Unidos, onde haveria mais recursos. Segundo entrevista concedida pela viúva de
Fanon, ele foi para o hospital de Maryland a contragosto.
Com a vitória das forças argelinas e o cessar fogo de março de 1962, depois de
longas negociações, a França acabou por reconhecer a independência da Argélia, em 3
de julho do mesmo ano. Infelizmente, Frantz Omar Fanon não assistiu à vitória que
ajudara a conquistar, pois falecera em 6 de dezembro de 1961, em Bethesda,
Maryland, EUA. Porém, ainda conseguiu ver editada a obra-prima que escrevera
rapidamente antes que a doença o consumisse, Les damnés de la terre (Os
condenados da terra), publicada no mesmo ano de sua morte, aos 36 anos de idade.
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Frantz Fanon descansa, hoje, na Tunísia, cujos líderes da Frente Nacional de


Libertação conseguiram resgatar o corpo dos Estados Unidos.
A viúva, Josie Fanon, que teve um filho com Frantz Fanon, lamentavelmente,
suicidou-se em Argel no dia 13 de julho de 1989, depois assistir aterrorizada a polícia
metralhar jovens manifestantes numa repressão a um movimento social. Na ocasião,
teria dito à amiga Assia Djebar: – “Oh Frantz, os colonizados… Isso está
recomeçando!”.

2. A Obra

Influenciado pela Dialética Materialista de Karl Marx e pelo Existencialismo


de Jean-Paul Sartre, Fanon desenvolveria teses anti-racistas e anti-colonialistas que
seriam referência no campo da psiquiatria e da educação.
No entanto, como todos os grandes líderes, foi na política que ele mais se
destacou, seja por sua militância, seja pelas reflexões que deixou como legado. Suas
teses tanto influenciariam autores importantes, como Paulo Freire, como marcariam
indelevelmente os movimentos pró-independência de nações que ainda estavam
mergulhadas nas trevas da colonização mais brutal que a humanidade já conheceu, em
pleno século XX.
Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon praticamente inaugurou a radical
ruptura das “políticas de assimilação” forjadas pelas nações colonizadoras. O discurso
“civilizatório” explicitado nessas políticas se transformava na mais brutal violência ao
menor sinal de resistência dos colonizados. Fanon pôde testemunhar seus efeitos
quando tratou das sequelas mentais e físicas dos soldados argelinos presos e
torturados pelas forças francesas da colonização, na Guerra da Argélia. Essa
verdadeira selvageria francesa foi melhor retratada em Les damnés de la terre (Os
condenados da terra), onde Fanon expõe todas as fraturas expostas da camuflada
violência colonial.
Em 1959, publicou L’An Cinq, de la Révolution Algérienne (O ano cinco da
Revolução Argelina). Esta obra foi publicada mais tarde como Sociologia de uma
revolução e, mais tarde ainda, como Um colonialismo moribundo. O título original
que lhe dera Fanon "Realidade de uma Nação", que o editor François Maspero
rejeitou.
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Na Tunísia, formou enfermeiras para a Frente de Libertação da Argélia, editou


um jornal, el Moujahid, além de ter colaborado para outras publicações simpatizantes,
como a famosa revista Les Temps Modernes editada por Jean-Paul Sartre.
Algumas das obras que escreveu nessa época, foram publicadas
postumamente, como La Révolution Africaine (A Revolução Africana), editada em
1964 e traduzia e publicada em Portugal como Em defesa da revolução africana.
Fanon foi o verdadeiro criador do que se poderia chamar de “psicopatologia da
colonização” e a expressão mais radical dessa posição, foi quando, convicto de que
“... o autóctone, alienado permanente no seu próprio país, vive num estado de
despersonalização absoluta” (FANON, 2002, p. 10), escreveu uma carta pública ao
Ministro , pedindo demissão do cargo de médico psiquiatra, em fins de 1956. Em
decorrência da iniciativa, foi expulso da Argélia no ano subsequente.

3. Influência em Paulo Freire

Para melhor se detectar a influência de Frantz Fano em Paulo Freire, foram


levantadas, em todos os livros publicados de Paulo Freire as citações do psiquiatra
martinicano.
Em Ação cultural para a liberdade (1981), Freire sugere a leitura de Fanon e
de Albert Memmi, autor de O retrato do colonizado precedido pelo retrato do
colonizador (1977) para que se compreenda melhor a introjeção da cultura do
opressor pelo oprimido. Freire traduziria esta operação alienada de “hospedagem” do
opressor pelo oprimido em Pedagogia do oprimido.
Em Cartas a Guiné-Bissau: registro de uma experiência em processo (1978),
Freire lembra que o processo de colonização cultural opera, por meio da educação,
incutindo nas crianças e nos jovens colonizados pretos a ideia de que eles são seres
inferiores e que “seres inferiores, incapazes, cuja única salvação estaria em tornar-se
"brancos” ou ‘pretos de alma branca’” (p. 15).
Mas é em Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do
oprimido (1992) que Paulo Freire mais recorre a Frantz Fanon. Primeiramente,
lembra-se dos tempos em que trabalhou no Sesi, onde teria vivido um “tempo
fundante” de sua compreensão crítica do mundo, porque foi aí que tomou contato com
a obra de vários pensadores que tornariam referências para ele, destacando-se dentre
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eles “Marx, Lukács, Fromm, Gramsci, Fanon, Memmi, Sartre, Kosik, Agnes Heller,
M. Ponty, Simone Weill, Arendt, Marcuse...”
Na segunda citação, conta a anedótica experiência que viveu com camponeses
chilenos, na qual debateu com eles porque ele era doutor e os camponeses, não.
Completa o ocorrido, citando Fanon:

Possivelmente aqueles camponeses estavam, pela primeira vez, tentando o


esforço de superar a relação que chamei Pedagogia do oprimido de
"aderência" do oprimido ao opressor para, "tomando distância dele",
localizá-lo fora e si, como diria Fanon (p. 26).

Esta passagem é uma das mais importantes da obra de Freire sobre o processo
de desalienação, que ele credita a Fanon. Na citação imediatamente subsequente,
acrescenta que, sobre o mesmo tema, deve-se consultar ainda Memmi e Sartre, dentre
outros, para se verificar o fenómeno da “‘aderência’ deste àquele, a dificuldade que
tem o(a) oprimido(a) de localizar o(a) opressor(a) fora de si, oprimido(a)” (p. 54). Dez
páginas adiante, da mesma obra, de novo destacando Fanon e Memmi que antes dele
teriam tratado do mesmo assunto, afirma a “aderência” do oprimido e da oprimida ao
opressor transforma-se, em geral, em medo concreto, inibindo a luta pela libertação
das garras da opressão.
Nas citações subsequentes da mesma obra e página, Freire lembra-se
novamente dos dois autores mencionados na citação anterior, quando analisa os
efeitos da leitura dos originais da Pedagogia do oprimido para um grupo de sul-
africanos, chegando à conclusão de que, em seu processo de desalienação, muitas
intuições se organizavam e se consolidavam, da mesma maneira que ocorrera com ele,
quando lera Fanon e Memmi. Contudo, adverte que a assunção de “uma nova
inteligência do mundo” não significa “porém que, por estar sendo percebido de forma
diferente, já tivesse sido o mundo transformado”, mas “que, por causa da nova
inteligência do mundo seria possível criar-se a disposição para mudá-lo” p. 72).
Em Pedagogia do oprimido (1987), volta a discutir a questão da “aderência do
oprimido ao opressor (p. 94), mencionando Fanon como fonte para essa discussão.
Finalmente, em Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar (1997),
fala das administrações dos sistemas educacionais autoritários nas professoras o
“medo à liberdade”, acrescentando:
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Quando se consegue isso, a professora guarda dentro de si, hospedada em


seu corpo, a sombra do dominador, a ideologia autoritária da
administração. Não está apenas com seus alunos porque entre ela e eles,
vivo e forte, punitivo e ameaçador, o arbítrio que nela habita (p. 12 e 13).

Sugere a leitura de Fanon e Memmi e de suas duas “pedagogias” do Oprimido


e da Esperança, para maior aprofundamento da compreensão do fenômeno da
alienação das professoras.
Em conclusão, fica evidente que Fanon foi uma das mais importantes
inspirações para Paulo Freire, na medida em que ele emerge sempre como referência
nas principais obras e nas principais teses do Patrono da Educação Brasileira.

Referências Bibliográficas

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 5. ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1981.

______. Cartas a Guiné-Bissau: Registro de uma experiência em processo. 5. ed.,


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

______. Pedagogia da esperança: Um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

______. Pedagogia da indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo:


Ed. Unesp, 2000.

______. Pedagogia do oprimido. 17. ed., 22. reimp., Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.

______. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’Água, 1997.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. 2. ed. ,


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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