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PENSADORES AFRICANOS E DA DIÁSPORA: NEGRITUDE, PAN-

AFRICANISMO E PÓS-COLONIALISMO.

WALTER GÜNTHER RODRIGUES LIPPOLD


Professor do Curso de História e de Letras da FAPA.
w.lippold@gmail.com

“Interroguemos o próprio colonizado: quais


são seus heróis populares? Seus grandes
líderes populares? Seus sábios? Mal pode
dar-nos alguns nomes, em completa
desordem, e cada vez menos à medida em
que descemos de gerações. O colonizado
parece condenado a perder
progressivamente a memória”.
Albert Memmi

O presente artigo está fundamentado em minha prática como educador e


pesquisador que busca superar o eurocentrismo na pesquisa e formação de professores.
1
Desde 2002 participando do Coletivo Fanon, grupo de estudos sobre pensadores
africanos e da diáspora, aprofundando e sistematizando as teorias e conceitos destes
intelectuais em minha especialização e mestrado continuei nesta tentativa de utilizar
conceitos de Frantz Fanon, Albert Memmi, Kwame N´Krumah, Leopold Senghor, Aimé
Cesáire, Stuart Hall e Edouard Glissant para compreender as relações étnico-raciais
construídas no Brasil. Há poucas décadas atrás, os estudos da história e do pensamento
africanos eram fortemente marginalizados, quase inexistentes na historiografia
brasileira. Recentemente estes estudos começam a florescer no Brasil, incentivados
pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, mas ainda temos que avançar principalmente na
crítica ao conteúdo e a forma eurocêntrica de muitas pesquisas que buscam
compreender o nosso País. Digo conteúdo e forma pois mesmo pesquisas que visam
criticar o eurocentrismo acabam utilizando somente – ou majoritariamente - autores
europeus para compreender as realidades africanas e afro-diaspóricas. Não estamos
propondo a não utilização de autores europeus, mas sim valorizar e conhecer o
pensamento africano e da diáspora na América.
Existiu um pensamento africano e afro-diásporico descolonizador coerente em
suas ideias? Que contradições se manifestam entre os movimentos da Negritude, Pan-
africanismo e os recentes estudos pós-coloniais, há continuidade entre eles? Ao
contrário das teses eurocêntricas que afirmam não haver reflexão interna sobre os
problemas africanos e dos negros na América, existiram pensadores que se dedicaram a
análise de seu continente de origem e do movimento dos povos africanos pelo
continente americano, o que chamamos de Diáspora Africana. Podemos citar alguns
como Leopold Sedar Senghor, Aimé Cesáire, Albert Memmi e Kwame N´Krumah,
além de Frantz Fanon, que formaram um pensamento interligado que pode ser chamado
de pensamento africano anticolonial. A influência destes nomes, principalmente de
Fanon nos chamados estudos pós-coloniais é crucial, sendo explícita a sua teoria na
questão da identidade, da linguagem e da crítica ao que se conveniou chamar de
colonialidade do saber.
Leopold Sedar Senghor foi presidente do Senegal, e além de ser professor e
escritor, foi um dos defensores e teóricos da negritude, juntamente com o martiniquense
2
Aimé Cesáire. Este movimento caracterizava-se pela busca da valorização da cultura
africana, suas civilizações, seus feitos, sua essência. Defendiam que o “comunitarismo
inerente” aos povos da África seria a base do socialismo africano. Acreditavam que a
“sociedade africana tradicional [...] é por natureza coletivista; o socialismo é, portanto,
já presente dentro da sociedade africana, onde o capitalismo é o elemento estranho
trazido pela colonização1” (BÉNOT, 1969, p.174, tradução minha). Era uma tentativa
de rebater a ideologia racista-eurocêntrica que ditava que os negros eram eternos
submissos e não possuíam história. Os poetas da negritude exaltavam o ser-negro, sua
emoção e sua sensibilidade, seu ritmo. Para Senghor “a emoção é negra, como a razão é
grega” (apud FANON, 1967, p.127). Esta visão levou a uma tese essencialista do ser-
negro, mas, apesar de seus limites, configurou-se em uma tentativa de resgate da cultura
negra contra o universalismo assimilador da ideologia metropolitana e influenciou os
pensadores anticoloniais africanos. Fanon que antes defendia a negritude, mais tarde
passou a criticá-la, mesmo com a influência que Cesáire e Senghor tiveram no seu
pensamento. Quanto a isso Fanon (1968, p. 196) diz que:

1
“[...]la société africaine traditionnelle [...] est par nature collectiviste; le socialisme est donc déjá présent
dans la société africaine, où le capitalisme est l´élément étranger apporté par la colonisiation.”
“[...]Senghor, que também é membro da Sociedade Africana de
Cultura e que trabalhou conosco na questão da cultura africana, não
receou, tampouco, dar ordem à sua delegação de apoiar as teses
francesas sobre a Argélia. A adesão à cultura negro-africana, à
unidade cultural da África, passa primeiramente pelo apoio
incondicional à luta de libertação dos povos. Não se pode querer o
esplendor da cultura africana se não se contribui concretamente para a
existência das condições dessa cultura, isto é, para a libertação do
continente.

A face contraditória da negritude foi criticada também por Adotevi (apud


MANCE, 1995) que defendia:
[...]uma concepção do negro que articula de maneira indissociável a
identidade e a história dos povos negros.[...] Não há como tratar de
nenhuma particularidade negra fora desta particularidade histórica.
Sendo a história e a identidade do homem intrinsecamente vinculadas,
a identidade negra constrói-se historicamente e historicamente deve
ser compreendida.

O africano Kwame N’Krumah foi o líder da Independência de Gana e o primeiro


presidente do país, além da atividade política, desenvolveu uma teoria sobre as novas 3
formas em que colonialismo moribundo metamorfoseava-se para se perpetuar. Foi
também, um dos defensores do pan-africanismo que visava unir a África para libertar-se
do jugo neocolonialista e dos restos do colonialismo ainda resistentes. Em sua obra
Necolonialismo – último estágio do Imperialismo (N’Krumah, 1967a) ele focaliza que
além da dependência econômica – e consequentemente política – a ex-colônia continua
a ser vítima da alienação cultural. N’Krumah era um crítico da metafísica da negritude,
principalmente do socialismo africano proposto por Senghor. Em um discurso proferido
no Cairo, Nkrumah (1967b, tradução minha) deixa clara sua visão de que o socialismo
não pode ter como base qualquer racialismo, tribalismo, que podem levar ao
chauvinismo:

Senghor tem realmente dado uma explicação da natureza do retorno


para África. Sua conta é iluminada por declarações usando algumas de
suas palavras próprias: que o Africano é “um campo de sensação pura
“ ; que ele não mede ou observa, mas “vive” uma situação; e que este
caminho de adquirir “conhecimento” por confrontação e intuição é
negro-Africana ; a aquisição de conhecimento pela razão, " Helênica "
. [... ] Está claro que socialismo não pode ser fundado neste tipo de
metafísica do conhecimento.2

Nascido na Martinica, o pensador Frantz Fanon (1925-1961) foi para a França


lutar contra o nazismo. Após se destacar como combatente, estudou medicina em Lyon,
tornando-se psiquiatra. Concomitantemente estudava filosofia em cursos de Jean
Lacroix e Merlau-Ponty aprofundando-se nas obras de Hegel, Marx, Lênin,
Kierkegaard, Husserl, Heidegger e Sartre.
Logo após seus estudos, Fanon vai trabalhar na Argélia como médico-
chefe da Clínica de Blida-Joinville, onde, a partir do seu contato com
a realidade colonial, se engaja na luta pela independência argelina,
tornando-se argelino. Após sua entrada na Frente de Libertação
Nacional argelina, ele torna-se representante do Governo Provisório
em vários encontros entre países africanos e do Terceiro-Mundo em
geral. Em 1961 Fanon descobre que está com leucemia e escreve em
10 meses Os Condenados da Terra,, vindo a morrer no mesmo ano. A
obra de Fanon está inserida no contexto das independências africanas
e no chamado terceiro-mundismo, exercendo bastante influência em
movimentos negros radicais nos Estados Unidos, como os Panteras
Negras e principalmente nos movimentos anticoloniais. (LIPPOLD, 4
2005, p.10)

O tunisiano Albert Memmi era de origem judaica. Judeu de língua árabe que
estudou em escolas francesas, vivenciou a situação do intelectual fendido culturalmente.
“Albert Memmi vivenciava três culturas diferentes, como judeu que fala árabe e que foi
educado pelos franceses.” (LIPPOLD, 2005, p.10). Escritor e professor na Carnot High
School em Tunis, absorveu esta condição de intelectual fendido: “[...]judeu criado no
modo ocidental no interior de uma cultura magrebina, postulou um modo de ser que
permitisse uma negação do aniquilamento sócio-econômico e cultural do colonizado.”
(LIPPOLD, 2005, p.10)
Antes de partir para a análise dos estudos pós-coloniais vamos adentrar em
alguns aspectos da teoria de Fanon. Em Pele Negra, Máscaras Brancas(FANON, 1967)
é analisado o mundo da alienação cultural em que se encontra o colonizado, que
negando sua própria identidade, absorve os ideais europeus de cultura, vivendo um

2
“Senghor has, indeed, given an account of the nature of the return to Africa. His account is highlighted
by statements using some of his own words: that the African is “a field of pure sensation”; that he does
not measure or observe, but “lives” a situation; and that this way of acquiring “knowledge” by
confrontation and intuition is “negro-African”; the acquisition of knowledge by reason, “Hellenic”.[...] It
is clear that socialism cannot be founded on this kind of metaphysics of knowledge.”
verdadeiro processo de embranquecimento. O colonizado é obrigado a aprender a língua
do opressor e desse modo, segundo Fanon, nasce um verdadeiro complexo de
inferioridade cultural, já que “falar uma língua é apropriar-se de um mundo, uma
cultura. O negro antilhano que deseja ser branco vai ser mais branco quanto mais ele
ganha maestria no instrumento cultural que a língua é3” (FANON, 1967, p.38, tradução
minha). O negro colonizado ao assumir o francês como língua internaliza também parte
da consciência coletiva do francês que relaciona o negro com o mal e o sujo. Memmi
(1977, p.96-97) está em concordância com o pensamento de Fanon quanto à questão
língua, quando afirma que:
O colonizado não se salva do analfabetismo para cair no dualismo
lingüístico.[...]Munido apenas de sua língua o colonizado é um
estrangeiro dentro de seu próprio país.[...] A posse de duas línguas não
é apenas a de dois instrumentos, é a participação em dois reinos
psíquicos e culturais. Ora aqui, os dois universos simbolizados,
carregados pelas duas línguas, estão em conflito: são os do
colonizador e do colonizado.

Fanon completa este pensamento sobre a língua e a cultura dizendo que:


5
Todo povo colonizado - em outras palavras, todo povo em que em sua
alma um complexo de inferioridade foi criado pela morte e enterro de
sua originalidade cultural local – acha-se face a face com a linguagem
da nação civilizadora, ou seja, da cultura da metrópole. O colonizado é
elevado acima de seu status selvagem na proporção que ele adota os
valores culturais da metrópole. Ele será tanto mais branco quanto mais
tiver rejeitado sua negrura[...]4. (FANON, 1967, p.18, tradução minha)

Um sonho de um negro, contado a Fanon(1967, p.99), levou o psiquiatra a uma


interpretação, que de certo modo é a ideia central de sua obra Pele Negra Máscaras
Brancas:
Eu estava caminhando a um longo tempo, eu estava extremamente
exausto, eu tinha a impressão que algo estava esperando por mim, eu
escalei barricadas e muros, eu fui até um salão vazio e, atrás de uma
porta, eu ouvi barulho. Eu hesitei antes de entrar lá, mas finalmente

3
“To speak a language is to take on a world, a culture. The Antilles Negro who wants to be white will be
the whiter as he gains mastery of the cultural tool that language is.”
4
Every colonized people – in other words, every people in whose soul an inferiority complex has been
created by the death and burial of its local cultural originality – find itself face to face with the language
of the civilizing nation; that is, with the culture of the mother country. The colonized is elevated above his
jungle status in proportion to his adoption of the mother country´s cultural standards. He becomes whiter
as he renounces his blackness[...]
eu[...] abri a porta. Nesta segunda sala haviam homens brancos, e eu
achei que também era branco5. (tradução minha)

Para Fanon este sonho representa um desejo inconsciente, que por sua vez é
produto de um complexo de inferioridade sofrido pelo negro e que perigosamente pode
desintegrar a sua estrutura psíquica. Se ele tem o desejo de ser branco é porque ele vive
numa sociedade que faz seu complexo de inferioridade possível, “numa sociedade que
deriva sua estabilidade da perpetuação de seu complexo, numa sociedade que proclama
a superioridade de uma raça6[...]”(FANON, 1967, p.100, tradução minha). Neste terreno
de imagens é que Fanon se detém com maior profundidade, ele busca o inconsciente
coletivo europeu, que em grande parte é absorvido pelo negro, e que desde épocas
medievais faz a analogia da cor preta com o pecado, o mal e o feio. (MACEDO, 2001)

Pretidão, escuridão, sombras, noite, os labirintos da Terra,


profundezas abismais, pretear a reputação de alguém; e do outro lado,
o olhar brilhante da inocência, a pomba branca da paz, mágica, luz
celestial. Uma magnífica criança loira – quanta paz há nesta , quanta
alegria, e acima de tudo quanta esperança! Não há comparação com
uma magnífica criança preta[...] Na Europa, e isto deve ser dito, em
6
todo país civilizado e civilizador, o Negro é o símbolo do pecado. O
arquétipo dos valores mais baixos é representado pelo Negro7.
(FANON, 1967, p.189, tradução minha)

Ele continua sua exposição explicitando também sua visão de que o inconsciente
coletivo não é fruto do biológico, mas sim da cultura. Assim o pensador explica o
mecanismo que impõe a visão eurocêntrica e racista no próprio colonizado:

No inconsciente coletivo do homo occidetalis, o Negro – ou, se


preferir, a cor preta – simboliza o mal, pecado, maldição, morte,
guerra, fome. Todos os pássaros predatórios são pretos. Na Martinica,
onde o inconsciente coletivo faz desta um país europeu, quando um

5
“I had been walking for a long time, I was extremely exhausted, I had the impression that something
was waiting for me, I climbed barricades and walls, I came into an empty hall, and from nehind a door I
heard noise. I hesitated before I went in, but finally I[...]opened teh door. In this second room there were
white man, and I found that I too was white”.
6
“[...]in a society that makes his inferiority complex possible, in a society that derives its stability from
the perpetuation of his complex, in a society that proclaims the superiority of one race[...]”.
7
“Blackness, darkness, shadow, shades, night, the labyrinths of the earth, abysmal depths, blacken
someone´s reputation; and, on the other side, the bright look of innocence, the white dove of peace,
magical, heavenly light. A magnificent blond child –how much peace there is in that phrase, how much
joy, and above all how much hope! There is no comparison with a magnificient black child[...]In Europe,
that is to say, in every civilized and civilizing country, the Negro is the symbol of sin. The archetype of
the lowest values is represented by the Negro.”
Negro “azul” – um preto-carvão – vem visitar, alguém reage no
momento: ‘Que má sorte ele está trazendo?’ O inconsciente coletivo
não é dependente da hereditariedade cerebral; ele é resultado do que
eu chamarei de imposição irrefletida da cultura8.(FANON, 1967,
p.190-191, tradução minha)

Eis que deste emaranhado de imagens que ligam o negro ao mal, à feiúra e a
preguiça, surge no próprio negro a vontade de fugir desta analogia imposta pelo
racismo. A ideologia do colonizador acaba por penetrar na consciência do colonizado
que, alienado, identifica-se com as imagens míticas criadas:
“Não terá um pouco de razão? – murmura ele. Não somos, de certo
modo, um pouco culpados? Preguiçosos, já que temos tantos ociosos?
Medrosos, já que nos deixamos oprimir?” Desejado, divulgado pelo
colonizador, este retrato mítico e degradante acaba, em certa medida,
por ser aceito e vivido pelo colonizado. (MEMMI, 1977, p.83)

O tunisiano Memmi continua a explorar esta despersonalização, este


estranhamento-de-si:
“Em nome daquilo que deseja vir a ser, empenha-se em empobrecer-
se, em arrancar-se de si mesmo. [...] O esmagamento do colonizado
7
está incluído nos valores dos colonizadores. Quando o colonizado
adota esses valores, adota inclusive sua própria condenação. Para
libertar-se, ao menos é o que pensa, aceita destruir-se. O fenômeno é
comparável à negrofobia do negro, ou ao anti-semitismo do judeu. As
negras se desesperam alisando os cabelos, que anelam sempre, e
torturam a pele a fim de embranquecê-la um pouco. (MEMMI, 1977,
p. 107)

Temos muitos outros exemplos de pensadores africanos e afro-diáspóricos mas


vamos trazer mais dois nomes ligados a crítica ao essencialismo universalista
inaugurada por Fanon. Para o jamaicano Stuart Hall as identidades estão sendo
descentradas e fragmentadas e deste processo emerge o sujeito pós-moderno. Para Hall,

[...] O sujeito pós-moderno[é] conceptualizado como não tendo uma


identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma
‘celebração móvel’[...]O sujeito assume identidades diferentes em
diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de

8
In the collective unconscious of homo occidentalis, the Negro – or, if one prefers, the color black –
symbolizes evil, sin, wretchedness, death, war, famine. All birds of prey are black. In Martinique, whose
collective unconscious makes it a European country, when a ‘blue’ Negro – a coal-black one –comes to
visit, one reacts at once: ‘Waht bad luck is he bringing?’ the collective unconscious is not dependent on
cerebral heredity; it is the result of what Ishall call the unreflected imposition of a culture”.
um ‘eu’ coerente.[...]A identidade plenamente unificada, completa,
segura e coerente é uma fantasia.” (HALL, 1999, p.12-13)

A afirmação da identidade – segundo alguns anti-essencialistas que absolutizam


a afirmação de Hall - torna-se um jogo de cartas, onde o indivíduo utiliza-se de suas
múltiplas identidades/coringas conforme o lugar onde está. Se a identidade é uma
escolha meramente individual, sem determinações e condicionantes externos ao
indivíduo, que os internaliza, a questão racial seria igual a diferença de gostos, por
exemplo, entre os admiradores de Mozart e de Charlie Parker.
E, a partir de sua argumentação, Hall chega a conclusão que

Nenhuma identidade singular – por exemplo, de classe social- podia


alinhar todas as diferentes identidades com uma “identidade mestra”
única, abrangente, na qual se pudesse, de forma segura, basear uma
política. As pessoas não identificam mais seus interesses sociais
exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como
um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da

8
qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das
pessoas possam ser reconciliadas e representadas” (HALL,1999, p.20-
21)

Edouard Glissant cria o conceito de Poética da Relação e de antilhinidade


criticando também o essencialismo universalista da posição adotada pela negritude de
Cesáire. Nascido na Martinica, vê na poética da relação uma
[...]abertura para a complexidade do diverso, em ruptura com
qualquer essencialismo, com qualquer pensamento de sistema porque
dá conta da fragilidade das construções identitárias, sempre em
constante mutação, numa multiplicidade de possibilidades
combinatórias[...] (FIGUEIREDO, 1998, p.79)

A obra de Fanon tem sido analisada, comentada e criticada por alguns


pensadores atuais ligados aos estudos pós-coloniais. Estes pensadores – como o
palestino Edward Said e o indo-britânico Hommi Bhabha – foram influenciados pelo
pensamento de Fanon e vêem neste um dos teóricos mais importantes, senão pioneiros,
na desconstrução do universalismo eurocêntrico, desta visão de Homem, que nunca
condisse com a realidade nas colônias. Estes pensadores pós-coloniais são influenciados
pela teoria de Foucault, mas Said (1995, p. 343) critica o pensador francês por este ter
se emaranhado na microfísica do poder sem dar atenção para o colonialismo, pois para
ele “a experiência colonial não tem quase nenhuma pertinência, numa omissão teórica
que constitui norma nas disciplinas cientificas e culturais do ocidente[...]” (SAID, 1995,
p.77).
Tanto Said como Hommi Bhabha, se aproximam de Fanon porque assim como
ele vivenciaram um mundo cultural fendido, contraditório, pois estavam transitando
entre suas origens não-européias e a sua educação ocidentalizada. São intelectuais que
conheceram a despersonalização do Outro não-europeu e sua constante negação como
ser humano.
Bhabha (1998, p.72) pergunta:
Qual é a força específica da visão de Fanon? Ela vem, creio, da
tradição do oprimido, da linguagem de uma consciência
revolucionária de que, como sugere Walter Benjamin, “o estado de
emergência em que vivemos não é a exceção, mas a regra”.

Continuando em seu capítulo específico sobre Fanon, Bhabha (1998, p.98)


afirma que:

Em seu modo analítico, Fanon explora questões afins da ambivalência

9
da inscrição e da identificação coloniais. o estado de emergência a
partir do qual ele fala demanda respostas insurgentes, identificações
mais imediatas. Fanon freqüentemente tenta estabelecer uma
correspondência próxima entre a mise-em-scènce da fantasia
inconsciente e os fantasmas do medo e ódio racistas que rondam a
cena colonial; ele parte das ambivalências da identificação para as
identidades antagônicas da alienação política e da discriminação
cultural. (BHABHA, 1998, p.98)

Said cita muito a obra de Fanon em seu livro Cultura e Imperialismo, onde ele
desenvolve o seu conceito de orientalismo (SAID, 1990), ou seja, este discurso
ocidental criado para representar o oriente médio, para o restante da Ásia e para África.
Este pensador tenta compreender o discurso imperialista na literatura metropolitana,
como são construídas pelos europeus as visões mistificadas dos não-ocidentais.

Se venho citando Fanon com tanta freqüência, é porque, ao meu ver, é


ele quem expressa da forma mais intensa e decisiva a imensa guinada
cultural do terreno da independência nacionalista para o domínio da
libertação. Essa guinada ocorre sobretudo nos países onde o
imperialismo subsiste, depois que a maioria dos outros Estados
coloniais já conquistou a independência: por exemplo, Argélia e
Guiné-Bissau. Em todo caso, só é possível entender Fanon se
compreendermos que sua obra é uma resposta a elaborações teóricas
produzidas pela cultura do capitalismo ocidental tardio, recebida pelo
intelectual nativo do Terceiro Mundo como uma cultura de opressão e
escravização colonial. (SAID, 1995, p.332)

Persistindo no mundo atual mazelas decorrentes do colonialismo, devemos


estudá-las e para este objetivo é necessário buscar em pensadores como Fanon e
Memmi uma visão que negue o Homem abstrato do universalismo liberal-burguês e o
eurocentrismo decorrente desta. Fanon lança, naquela época, questões bastante
pertinentes aos dias de hoje como a análise do cinema e da literatura em busca do
racismo, “é preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os
níveis de sociabilidade” diz Fanon (1980, p.40) em sua intervenção no I Congresso de
Escritores e Artistas Negros em Paris, em setembro de 1956. Said acatou o pedido de
Fanon, pois Orientalismo (1990) e Cultura e Imperialismo (1995) são obras que buscam
o racismo, nos discursos que o ocidente cria para representar os árabes, os negros, os
orientais na literatura ocidental.
Comparando a teoria de Fanon e Memmi podemos averiguar que suas teorias
aproximam-se bastante, são realmente coerentes entre si. Mas ao compararmos estas 10
teorias com o pensamento de Senghor vimos que estas possuem discordâncias, Fanon e
Memmi não se baseiam numa metafísica que afirma uma essência ahistórica no negro,
eles estão interligados com Senghor porque sofreram a influência da negritude, mas
Fanon, critica o socialismo africano de Senghor, que para este último era inerente aos
povos africanos. Fanon não quer que os novos países se baseiem, para a construção
nacional, nos modelos europeus, mas também em exemplos passados, muitas vezes
mistificados. É o que defende também N’Krumah, veemente crítico do socialismo
africano senghoriano.
Com tudo isso, posso afirmar que existiu um pensamento anticolonial africano,
mas a hipótese de que este era coerente, cai por terra, dadas as diferenças entre a
negritude de Senghor e as teorias de Fanon, Memmi e N’Krumah. Podemos falar de um
pensamento anticolonial africano interligado, mas não coerente, coeso. Mesmo assim
estes pensadores são um prova irrefutável que os africanos refletiram com profundidade
sobre a situação colonial, desbancado o pensamento eurocêntrico que afirma ser a
África um continente onde não houve reflexão teórica, onde não existiam pensadores
que buscassem compreender a realidade africana. Esta visão é fruto do desconhecimento
e do desprezo relegado aos povos negros; “me diga o nome de um pensador africano”
perguntou-me um dia um professor de filosofia totalmente eurocêntrico, eu pude
responder com vários nomes!
A condição colonial era marcada por duas chagas que se completavam: a
alienação/estranhamento e a violência. Fanon teve uma importância crucial para os
povos colonizados em luta pela libertação nacional: ele analisou como o colonialismo
cria a suposta inferioridade do colonizado, que enfraquecido e derrotado, acaba por
aceitar esta ideologia degradante. O racismo é o pilar ideológico do colonizador, é a
justificativa que ele criou para poder efetuar a colonização, vendo-a não como uma
violência, mas sim como um benefício aos colonizados. Hoje o racismo vai além dos
seus aspectos ideológicos, é uma estrutura objetiva e já abarca o subjetivo e o objetivo,
se é que podemos cair nestas armadilhas binárias e divisões cartesianas. Fanon e
Memmi ajudaram o negro, o árabe e os colonizados em geral, a compreender que a
construção da máscara branca era um sintoma grave da despersonalização fomentada
pelo colonialismo: o processo de embranquecimento que vivencia o colonizado, que não
11
quer ser negro/árabe, mas também não pode ser branco, ser assimilado totalmente, fende
o indivíduo, aniquilando-o. Nisto está o significado maior de Pele Negra, Máscaras
Brancas, este indivíduo que absorveu a língua do colonizador e com ela, como esta é
um instrumento cultural, muito das ideologias racistas vigentes na Europa, este
colonizado que foi aniquilado em sua identidade .
A Guerra de Independência na Argélia foi extremamente violenta, devido ao
grande número de colonos franceses que viviam no território argelino. O colonizador
sempre utilizou a violência para submeter o povo argelino, já que via este como sub-
humano, como pertencente ao reino da Natureza e não da Cultura, e como diz uma frase
do senso comum, “violência gera violência”. Fanon absorveu muito da realidade
argelina, foi na Clínica Psiquiátrica de Blinda-Joinville que ele presenciou
primeiramente a violência a qual os argelinos eram submetidos. Ele sofreu a influência
da realidade argelina na medida em que começou a defender o uso da violência contra o
colonizador: os nacionalistas argelinos que tentaram com métodos democráticos se
emancipar foram sempre barrados pela intolerância francesa, que defendia a Liberdade,
Igualdade, Fraternidade somente para a metrópole e nunca para a Argélia, apesar desta
ser considerada parte da França. Isto marcou Fanon profundamente. Ele, ao desenvolver
sua sociologia da violência, ajudou teoricamente o colonizado a compreender que para
destruir uma violência era necessária uma violência maior; aquelas colônias que se
emancipavam pacificamente puderam fazê-lo porque as metrópoles, principalmente a
inglesa, apavoravam-se com os conflitos que ocorriam nas colônias em que os europeus
não quiseram se retirar, a descolonização pacífica era fruto da violência vizinha.
Fanon foi muito criticado em sua concepção da violência, para a crítica ele
superestimou o papel da violência, esta por si só não podia levar à uma consciência
social, era necessária uma ideologia coesa, que segundo Chaliand (1977) , só podia ser
espraiada no povo por um vanguarda nos moldes leninistas, como ocorreu no Vietnã.
Mas Fanon nunca defendeu um espontaneismo cego, ele afirmava a importância de uma
liderança interligada com o povo, que assumisse seus erros e que não se colocasse
acima daqueles que representava. Fanon avisava em sua obra sobre a possibilidade da
independência não levar a consciência nacional ao patamar de consciência social, isto
devido principalmente às atitudes da burguesia “nacional”. Fanon desse modo anteviu o
neocolonialismo, com suas novas formas de dominação econômicas e culturais.
12
Notem que todos estes intelectuais eram indivíduos fendidos culturalmente, nascidos
colonizados se educaram nas metrópoles, estavam em um limbo de não-pertencimento e
talvez por isso tiveram a oportunidade de analisar de modo tão profundo o colonialismo
e suas continuidades no mundo atual. Glissant, Hall, Bhabba e Said se aproximavam de
Fanon em sua crítica ao universalismo essencialista do eurocentrismo, se unindo muitas
vezes ao pós-estruturalismo e ao desconstrucionismo derridiano.
Assim este estudo sobre o pensamento de Fanon e dos pensadores africanos e
afro-diáspóricos trouxe a tona uma série de questões pertinentes sobre o racismo e sobre
a alienação, inclusive nestes tempos pós-coloniais, pois passados anos da conjuntura em
que o pensador escreveu, o preconceito racial continua impregnando a sociedade atual,
inclusive a brasileira, que se esconde sob o véu mítico da “democracia racial”. Estudar
Fanon no Brasil é imprescindível para compreendermos melhor o racismo
assimilacionista que vigora aqui, buscando alternativas para aniquila-lo. Escutemos
Edward Said e Hommi Bhabha: é hora de trazer Fanon para a atualidade.

Referências Bibliográficas:
BÉNOT, Yves. Idéologies des indépendances africaines. Cahiers Libres 139-140. Paris:
François Maspero, 1969.

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