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AULA 3

IDENTIDADE E COMUNIDADE
AFRICANA NO BRASIL

Prof.ª Edimara Gonçalves Soares


INDIVÍDUOS NEGROS EM ÁFRICA: DIFERENTES PERSPECTIVAS

Esta aula tem como objetivo apresentar alguns elementos materiais e


simbólicos relacionados ao modo de vida dos indivíduos negros em África e de
sua organização social, política, cultural e econômica.
Nesse sentido, iremos discutir sobre a importância/influência do
afrocentrismo nas sociedades africanas; refletir sobre o pan-africanismo, como
projeto de libertação e integração dos povos africanos; compreender a relação
dos africanos com religião, como uma força vital ligada à ancestralidade; refletir e
compreender a importância da tradição oral, sem negar a existência dos sistemas
de escrita; e, por fim, refletir sobre os conceitos de “descolonização” e
“independência” no contexto dos povos africanos.

TEMA 1 – INDIVÍDUOS AFRICANOS E O AFROCENTRISMO

Sabemos que a maioria dos estudos, pesquisas e reflexões sobre os


africanos advém de origem externa à África, principalmente da Europa no período
da colonização, visto que havia interesse em conhecer para dominar. Assim, há
uma crítica de intelectuais africanos acerca de alguns termos utilizados para
analisar e/ou propor reflexões críticas sobre o continente africano e seus povos.
Assim, para o intelectual congolês Valentin Mudimbe (2013) o “africanismo”
é um sistema de ideias “inventado” pelo Ocidente, e que alguns autores africanos
foram formados nos pressupostos do pensamento ocidental, o que ele denominou
de “biblioteca colonial”, com obras e conceitos orientados para desconstrução de
uma “razão etnológica”.
Ainda nessa perspectiva, o camaronês Jean–Marc Ela (2013) chama
atenção para o compromisso ideológico das Ciências Sociais com o colonialismo,
que se apropriava dos conhecimentos e experiências locais e os promovia para
patamares da ciência europeia.
Infere nessa discussão o antropólogo Fábio Leite (2008, p. xviii),
destacando que é possível identificar a existência de pelo menos duas
interpretações gerais na maneira de perceber e registrar a realidade relacionada
a história dos africanos e da África. Conforme ele, a primeira é a “visão ocidental,
que percebe e registra a África-objeto” e é produto de olhar externo, já a segunda
“vai de dentro para fora e releva a África-sujeito, ou seja, a África da identidade
originária, ancestral, mal conhecida, [...] distantes das banalidades”.

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Rompendo com o olhar externo que paulatinamente moldou nossa
concepção em relação ao continente africano, temos atualmente autores africanos
que sinalizam perspectivas teóricas/epistemológicas tomando como base a África,
isto é, de dentro. Trata-se de uma tentativa de contrabalancear, de nivelar o peso
do eurocentrismo em nossa compreensão histórica, evidenciando outras
possibilidades de perceber a história dos povos africanos, invisibilizada ou
contada de maneira equivocada/desqualificada; portanto, ampliando nossa
própria consciência histórica.
Nesse sentido, intelectuais africanos elaboram a Teoria da
Afrocentricidade. Cabe destacar entre os intelectuais o senegalês Cheik Anta
Diop, o congolês Théophile Obenga e o ganês Malefi Kete Asante. A Teoria da
Afrocentricidade busca inverter a lógica naturalizada da superioridade europeia,
mostrando fatores e situações históricas que atestam a centralidade do continente
africano.
Conforme Asante (2009, p. 93), a Teoria da Afrocentricidade se constitui
numa proposta epistêmica que incorpora quaisquer fenômenos por meio de uma
devida localização, e com isso promove o protagonismo dos povos africanos em
prol da emancipação humana. Para o autor a “afrocentricidade é um tipo de
pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e
agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo
com seus próprios interesses humanos”.
De acordo com Reiland Rabaka (2009, p. 130), foi com Asante que a
afrocentricidade “recebeu seu primeiro tratamento teórico sistemático”. Assim,
Asante (2009, p. 93) concebe que toda produção intelectual que não atende aos
interesses eurocêntricos é desvalorizada, marginalizada; por isso, ele concebe a
afrocentricidade como “uma questão de localização, porque os africanos vêm
atuando na margem da experiência eurocêntrica”.
Em consonância com os escritos dos autores da Teoria da
Afrocentricidade, destaca-se que a perspectiva de afrocentricidade não é
sinônimo da afirmação de costumes e tradições africanas, praticar os usos e
costumes africanos não significa ser afrocêntrico. O que de fato importa é a
localização, a posição central que as experiências e perspectivas epistêmicas
assumem na tomada da cultura e história africana como referencial das
atividades.

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É válido evidenciar a explicação de Asante (1987) sobre afrocentrismo e
eurocentrismo, na qual o autor diz que afrocentricidade não é uma versão negra
do eurocentrismo, sendo este baseado na superioridade dos traços fenotípicos
(cor da pele branca) que serviu para justificar e proteger privilégios e vantagens
da população branca nas várias dimensões sociais.
Sabemos que no eurocentrismo os “os autores eurocêntricos sempre
colocaram a África em um lugar inferior em relação a qualquer campo de pesquisa,
numa deliberada falsificação do registro histórico” (Asante, 2009, p. 99). Assim, a
afrocentricidade é produzida como um conceito em trânsito, em movimento, que
contemplaria todos os sujeitos africanos considerando sua própria
conscientização.
Para tanto, desenvolver uma atitude e um olhar afrocentrado diante da vida,
da técnica, da crítica e da arte dependeria da noção de sua própria condição como
sujeito; do contrário, se os indivíduos e os grupos não se reconhecem como
agentes de sua própria história, a consequência é a marginalização. A África
sofreu/sofre essa marginalização na medida em que os indivíduos
negros/africanos foram relegados como sujeitos de sua própria história (Asante,
2009).

TEMA 2 – INDÍVIDUOS AFRICANOS: PAN-AFRICANISMO

Na década de 1880, a resistência aos séculos de escravização e a


subordinação colonial torna-se mais visível, e o movimento pan-africanista é parte
dessa resistência com objetivo de reconstruir a dimensão humana dos africanos,
que fora dilacerada na diáspora.
A denominação pan-africanismo remete ao continente africano, entretanto,
sua origem se deu nos países de colonização inglesa, em especial nos Estados
Unidos e na Antilhas Britânicas. O movimento pan-africano pode ser
compreendido sob duas perspectivas: a primeira como um projeto de libertação
da estrutura eurocêntrica, e a segunda como projeto de integração das pessoas
negras na sociedade ocidental.
Os intelectuais da diáspora negro-africana foram os principais
idealizadores desse movimento político, movidos por uma questão central e
unificadora que partia do entendimento de que todos os negros dispersos por
outros continentes faziam parte do povo africano. Dessa compreensão,
depreendem que a África é continente matriz, pátria, lugar tanto dos indivíduos

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negros que ali vivem quanto daqueles que foram sequestrados de sua pátria, os
negros africanos da diáspora. O movimento também fortalecia o desejo de retorno
às raízes, aos antepassados.
Com o fim da escravização nas Américas, principalmente na América do
Norte, o sentimento de retorno ao continente africano se intensifica e com isso a
organização de movimentos negros com essa pauta. Com o passar o tempo, o
pan-africanismo configura-se num elo marcado pelo reconhecimento e
solidariedade mútua entre indivíduos negros da diáspora e do continente africano.
Em 1900, foi realizada em Londres a primeira Conferência Pan-africanista;
dentre os organizadores intelectuais destaca-se William E.B. Du Bois, Marcus
Garvey, Aimé Cesaire e Frantz Fanon. Conforme Nascimento (2009, p. 53), com
Du Bois e o apoio de outros intelectuais e ativistas “o pensamento pan-africano
evoluiu ao longo do século com a realização de quatro Congressos Pan-
Africanos”.
No período entre guerras, o movimento pan-africano assume novos
desafios e características, sendo a luta anticolonial o principal objetivo, deixando
de ser um movimento exclusivamente intelectual e passando a incorporar as
camadas populares da sociedade. Para Asante e Chanaiwa, (2010, p. 873), o
movimento pan-africano passou a se caracterizar “na qualidade de força de
integração visando a unidade ou a cooperação política, cultural e econômica na
África”.
Na década de 1940, a luta que impele o movimento é contra o colonialismo
e pela libertação econômica africana. Já em 1945 ocorreu o quinto congresso Pan-
africano, e a pauta central foi a independência de países africanos até então
colônias europeias. Ficava evidente a unificação e cooperação dos povos
africanos contra as amarras do colonialismo.
Na década de 1960, a tônica do Congresso foi a libertação política dos
Estados africanos que ainda estavam sob a supremacia colonial. Com a conquista
da independência, outros e não menos preocupantes problemas emergiram,
desde os conflitos territoriais e étnicos até carência de produtos básicos, entre
outros.
Os ideais do pan-africanismo ainda são nutridos por alguns intelectuais
negros africanos contemporâneos, como Ki-Zerbo (2009, p. 16), que diz o seguinte
sobre o Pan-africanismo:

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Há uma questão da unidade e da fragmentação da África. Minha ideia
[…] é que a África deve constituir-se através da integração, que não
existe verdadeiramente hoje. É pelo seu ‘ser’ que a África poderá
realmente vir a tê-la; mas é preciso um ter autêntico, não um ter de
esmola, de mendicidade. Trata-se do problema da identidade e do papel
a desempenhar no mundo. Sem identidade, somos um objeto da história,
um instrumento utilizado pelos outros, um utensílio.

Assim, o movimento Pan-africanismo continua contribuindo com outra


possibilidade de pensar a África hoje, inserida de maneira justa/equilibrada no
circuito da economia-mundo.

TEMA 3 – INDÍVIDUOS AFRICANOS E A RELIGIÃO

Anterior à colonização europeia no continente africano no século XVI, as


religiões existentes são múltiplas, com suas características ritualísticas e
concepções de mundo singulares. Assim, existiam religiões ligadas aos ritmos da
terra e aos antepassados, às crenças aristocráticas, às dimensões filosóficas e
aos aspectos de força/defesa. Assim, é importante não cair na armadilha da
homogeneização.
No período em que ocorre o contato dos povos africanos com os europeus
ou com povos árabes islamizados, há uma interferência ou mesmo ruptura na
dinâmica social, o que interfere na religião. Em linhas gerais, o continente africano
apresenta três grandes religiões: as religiões tradicionais africanas, o cristianismo
e o islamismo.
O islamismo se estabeleceu e se difundiu no continente de duas maneiras:
pelos comerciantes que faziam negócios em algumas áreas africanas e por
famílias que migraram e se fixaram determinados locais. Conforme Bacic Olic
(2005), o islamismo adentrou o continente africano pelo norte africano, do Egito
ao Marrocos, e foi uma das primeiras religiões responsáveis pela expansão inicial
árabe-islâmica (séculos VII e VIII).
No que tange ao cristianismo, foi “introduzido no norte do continente
através das campanhas romanas e das emigrações gregas”, ocorridas no final do
século II, e se espalhou por localidades do Egito e da Etiópia. Esse cristianismo
não seguia os preceitos da igreja ocidental.
E por fim, em relação às religiões tradicionais africanas, há uma diversidade
de práticas que aglutinam especificidades, portanto, não tratadas aqui, a fim de
evitar homogeneização e possíveis distorções. Assim, trata-se de uma maneira
“genérica de apresentar alguns elementos das religiões de matriz africana, que

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devida a sua diversidade e às constantes transformações, não podem ser
resumidas em poucas linhas sem que caia em generalizações que remetam às
crenças de um lugar comum para toda a África” (Lopes; Arnaut, 2008, p. 31).
Conforme Hampaté Bâ (2010), podemos elucidar alguns elementos
comuns que estão presentes na religiosidade de todos os povos africanos:

• Crença num Deus criador, que cede a “administração” do mundo a


divindades tutelares ou a antepassados mais próximos aos seres humanos
e da natureza;
• Respeito aos mais velhos, que constituem a tradição e a memória viva dos
grupos;
• Deferência às mulheres, consideradas fundamentais na continuidade da
criação;
• As idades e fases da vida marcada por iniciações sagradas;
• Percepção da sociedade pelo viés coletivo, evidenciando que este deve
suplantar o individualismo;
• Respeito e cuidado com todos os elementos da natureza, pois,
compreendem que ela não propriedade humana, e sim, quem propicia
condições de vida na terra.

Um conceito muito importante é a cosmovisão africana, que abarca a


religião. Para Adão (2002, p. 37), a cosmovisão “é uma interpretação do mundo,
de sua realidade global, [...] abrange o conjunto de valores, ideias e escolhas
práticas, através das quais uma pessoa ou coletividade se firmam [...]”. Esse
entendimento passa pela a identificação dos elementos que estruturam as
sociedades, que se entrecruzam para formar a cosmovisão africana, que passa
por rupturas e transformações no decorrer dos tempos; entretanto, continua
estruturando as concepções de vida dos africanos.
Conforme Ribeiro (1996, p. 39), na percepção dos indivíduos africanos “o
visível constitui manifestação do invisível. Para além das aparências encontra-se
a realidade, o sentido, o ser que através das aparências se manifesta”. Nas
religiões africanas não existe bem ou mal, e sim energias que constroem ou
destroem, portanto, uma busca pelo equilíbrio das forças do qual depende a
harmonia do mundo material e espiritual.
Os valores civilizatórios dos africanos se originam na dimensão cultural e
se ancoram nos princípios de integração, diversidade e ancestralidade. A

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integralidade confere unicidade ao cosmos. A diversidade tonifica a expressão das
diferenças e a ancestralidade. A ancestralidade mantém a ligação dos vivos com
os antepassados. Segundo Hampaté Bâ (2010, p. 74) “o que a África tradicional
mais preza é a herança ancestral”. O apego religioso é transmitido de geração a
geração.
Assim, a religião africana é marcada pela integração dos elementos e
concebe o funcionamento do universo tal qual uma teia de aranha, na qual tudo
se relaciona com tudo e a harmonia das partes depende da harmonia do todo.

TEMA 4 – INDIVÍDUOS AFRICANOS E TRADIÇÃO ORAL

Sabemos que o continente africano foi considerado pela historiografia


oficial como ausente de história anterior à chegada dos colonizadores europeus.
Todavia, os indivíduos africanos sempre mantiveram um saber ancestral,
ancorado nas tradições orais. Os anciãos são fundamentais para manutenção e
transmissão dos valores culturais que dão coesão à identidade grupal, e são
considerados fontes de histórias para compreender o passado e presente das
sociedades africanas de tradição oral.
A oralidade é uma tentativa de manter viva a história dos povos africanos,
de geração a geração, possibilitando que conheçam sobre as lutas, as relações
sociais e de parentesco, enfim, os valores materiais e espirituais que orientam a
vida da comunidade.
Um dos escritores mais conhecidos sobre o tema da tradição oral é o
malinês Amadeu Hampâté Bâ, que elucida:

A tradição oral é a grande escala da vida e dela recupera e relaciona


todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe
descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana
acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da
tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados.
(Bâ, 2010, p. 169)

Na África Ocidental, os djelis são responsáveis pela transmissão das


histórias e valores culturais do seu povo. Conforme Barry (2000, p. 6) “o duro e
longo aprendizado testemunha a importância do djeli como detentor apropriado
das tradições”, e prossegue destacando que “eles são mestres na arte de falar”.
Por fim, declara que são “os sacos de palavras, que encerram os segredos muitas
vezes seculares, somos a memória dos povos, pela palavra damos vida aos feitios
e gestos dos reis diante das novas gerações” (Barry, 2000, p. 7).

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Os djelis concebem a palavra como reflexo do que seus antepassados
viveram, carregada de vitalidade divina, sendo utilizada na criação humana. E
essa vitalidade irá estruturar a linguagem, que sairá do interior de cada pessoa
por meio da voz e poderá desencadear de energias vitais. A fala e a palavra nas
sociedades de tradição oral têm valor sagrado, sendo sua origem considerada
divina. Nesse sentido, Bâ (2010) explica o poder da fala como o vai e vem do
tecelão, dizendo que:

Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorização de vibrações das forças,


toda manifestação de uma só força, seja qual for a forma que assuma,
deve ser considerada como sua fala. É por isso que no universo tudo
fala; tudo é fala que ganhou corpo e forma. Se a fala é força, é porque
ela cria uma ligação de vai e vem, que gera movimento e ritmo, e,
portanto, vida e ação. Este movimento de vai e vem é simbolizado pelos
pés do tecelão que sobem e descem. (Bâ, 2010, p. 46)

Para o autor supracitado, esses “conhecedores, especialistas ou


arquivistas” possuem um saber holístico que integra natureza, espiritualidade e
materialidade. Eles distinguem quais plantas têm propriedade benéficas/curativas
e quais não impróprias para uso humano, sabem sobre práticas agrícolas mais
adequadas, compreendem sobre astronomia e psicologia, isso tudo dentro de um
sentido prático da vida. Trata-se de “uma ciência eminentemente prática que
consiste em saber como entrar em relação apropriada com as forças que
sustentam o mundo visível e que podem ser colocadas a serviço da vida” (Bâ,
2010, p. 175).
Destaca-se a noção de um princípio vital na tradição oral, que é a
consideração da terra como um recurso natural, uma divindade. Segundo o ditado
malinês, “tudo que somos e tudo que temos, devemos uma vez ao nosso pai, mas
duas vezes à nossa mãe”. Ainda,

O homem, dizemos, nada mais é que um semeador distraído, enquanto


a mãe é considerada a oficina divina onde o criador trabalha diretamente,
sem intermediários, para formar e levar à maturidade uma nova vida. É
por isso que, na África, a mãe é respeitada quase com uma divindade9
(BÂ, 2010, p. 47).

O intelectual Henrique Cunha Junior (2010, p. 81) contribui com importante


reflexão sobre oralidade e escrita nas sociedades africanas, assinalando que
vários “estudos reconhecem a oralidade como marca das sociedades africanas,
entretanto, não podemos construir um estereotipo sobre isso, visto que, povos
africanos dominavam sistemas diferenciados e complexos de escrita”.

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TEMA 5 – AFRICANOS: DESCOLONIZAÇÃO OU INDEPENDÊNCIA

Muitos textos ou materiais bibliográficos referem-se ao fim da política


colonial dos Estados africanos em relação às metrópoles europeias utilizando o
termo “descolonização”. Conforme Lopes e Arnaut (2008)

é intrigante que o processo que guarda semelhanças nas Américas no


século XIX seja chamado de ‘independência’ e o ocorrido na África seja
‘descolonização’. Ou seja, temos, do ponto de vista de luta dos povos
contra o domínio colonial, dois processos semelhantes que são
chamados de nomes distintos quando a referência é a América ou África.
(Lopes; Arnaut, 2008. p. 79)

Ainda conforme o pensamento dos autores supracitados, não se trata de


uma simples questão de semântica do termo, mas o que a nomenclatura deixa
subentendido. No que tange à América, a “independência” é pensada par e passo
com a liberdade, e, portanto, o presente se impõe e interrompe o passado,
vislumbrando futuro promissor. Já ao que se refere à África, a “descolonização”
indica um momento da história em que o presente continua se reportando ao
passado, e é definido em função dele. Assim, a concepção validada não é de
rompimento, mas de continuidade, apesar de toda luta feita contra o estatuto
colonial (Lopes; Arnaut, 2008).
Usualmente, os teóricos distinguem duas etapas que caracterizam como
ocorrem as conquistas e/ou processos de independência dos países africanos.
Assim, até 1962 a maioria dos países conquistou a independência por meio de
acordos e negociações, ou seja, de forma ‘pacífica’. Em parte, a reorganização
dos países europeus após a Segunda Guerra Mundial propiciou que suas colônias
pressionassem pela independência.
Quando falamos que a intendência dos países africanos foi pela via
“pacífica”, não significa considerar que

a metrópole tenha concedido ou cedido de bom grado a independência,


nem que está tenha sido uma iniciativa sua. A via diplomática e pacífica
não caracteriza uma concessão metropolitana, mas uma conquista dos
países e povos. Em várias circunstâncias houve conflitos, sabotagens e
pressões de vários tipos por parte dos africanos para obter sua
autonomia. (Lopes; Arnaut, 2008, p. 80-81)

Assim, a década de 1960 ficou conhecida como “ano africano”, pois vários
países haviam conquistado a independência política. A partir de 1960 a conquista
pela independência caracteriza-se pela luta armada, pelo conflito entre metrópole
e colônia.

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Conforme Visentini (2007), os problemas africanos pós-independência
eram grandes, a começar pela delimitação das fronteiras, muitas feitas por uma
linha traçada à régua no mapa. Não havia um idioma único que favorecesse a
unificação da língua; mediante essa ausência foi adotado como idioma oficial o do
ex-colonizador. Grupos étnicos-linguísticos rivais foram reunidos em um mesmo
espaço, destacando que essas rivalidades foram aguçadas pelos colonizadores
como instrumento de manutenção da dominação, além da hierarquia daqueles
indivíduos que assimilaram a cultura europeia e aqueles que não assimilaram.
Outro desafio aos países independentes foi a ausência de médicos,
engenheiros, administradores e professores, o que se somava a uma estrutura de
classes fragmentada, com uma economia controlada de fora (exceto as extensas
áreas ainda na fase da subsistência). A precaríssima rede de transportes ligava
apenas os enclaves exportadores aos portos, inexistindo qualquer integração
nacional (Visentini, 2007, p. 125).
Nessa perspectiva, o professor e pesquisador Kabengele Mununga, em
entrevista publicada no portal Geledés em 2009, quando interrogado acerca da
importância do saber e do conhecimento africano na época dos movimentos de
independência, responde o seguinte:

quando os países africanos tiveram a independência, eles tinham


poucos intelectuais. Mas eles tinham uma consciência clara que a
construção da África como fonte de conhecimento passava por uma
reflexão diferente. Uma reflexão do ponto de vista dos africanos, para
romper com uma visão da África que vem do exterior, dos colonizadores
e da historiografia oficial. [...] Além disso, muitos estavam preocupados
com a questão da construção da identidade africana [...] Essa identidade
enquanto discurso só podia ser construída a partir da visão dos
africanos. Então, alguns dos melhores autores que nós temos, como
Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor e outros, participaram da
construção da Negritude como movimento intelectual. Esta também era
uma maneira de pensar a África do ponto de vista dos africanos.
(Munanga, 2018)

Para Ki-Zerbo (2009, p. 12), na construção de uma identidade o idioma é


marcador fundamental. Assim, os africanos não podem simplesmente aceitar os
elementos culturais exteriores, porque esses elementos são capazes de forjar,
moldar a cultura africana, o modo de vida, visto que são produtos manufaturados
nos países industrializados; portanto, carregam mensagens simbólicas com carga
cultural impositiva e apelativa, ao passo que os países africanos enviam para
esses países produtos primários, sem nenhuma mensagem cultural, portanto, a
“troca cultural é muito mais desigual do que as trocas de bens materiais”.

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REFERÊNCIAS

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