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FILOSOFIA AFRICANA

Antecedentes históricos e conceito da Filosofia Africana

O surgimento e desenvolvimento do pensamento africano foi condicionado pela posição


desfavorável que o nosso continente sofreu ao longo da história global. As primeiras relações
intercontinentais que a África teve foi com a Ásia eram de natureza comercial, ainda que tenha
naturalmente havido intercambio cultural. Depois disso, a partir o século XV, a África
experimenta uma outra relação com a Europa, que não foi comercial mas sim de dominação e
opressão. A Europa apropriou-se das riquezas africanas e dos próprios africanos submetendo-os
a escravatura e maus tratos. Para isso os europeus dominaram não só o corpo, mas também a
mente do africano, fazendo-o acreditar que é inferior ao branco.

Várias disciplinas científicas foram usadas para defender a idéia de que o africano é um ser
atrasado e justamente por isso deve aceitar a colonização como uma forma de lhe civilizar, ou
seja de lhe tirar do seu estágio primitivo e selvagem.

A antropologia considerava que os africanos são inferiores em termos biológicos e culturais em


relação aos brancos, o que facilitou o racismo. Dizia-se que os africanos são povos sem religião,
sem moral, nem cultura.

Na Igreja, muitos teólogos e missionários defendiam que o negro ou não constava na Bíblia ou
então era filho do maldito Caim, que viu a nudez do seu pai, por isso era um amaldiçoado por
Deus. Alguns defendiam a maldição do negro apoiando-se na cor preta que para eles era símbolo
das trevas, do mal e da corrupção.

Muitos filósofos também denegriram a imagem do negro. Hegel dizia que a África não possui
história nem razão e o negro representa o estado mais primitivo da natureza. Para Lévy Brhul os
africanos são sociedades inferiores dirigidos por uma mentalidade pré-lógica. O padre Tempels
dizia que o africano tem uma lógica menor, ou seja pensa pouco. Voltaire dizia que o povo mais
elevado é o francês e o mais baixo é o africano; para Rousseau os africanos são os bons
selvagens; Montesquieu afirma que os africanos são povos sem lei; os empiristas ingleses John
Locke, por sinal proprietário de escravos nas colónias americanas e David Hume, contribuiram
muito com idéias racistas para a colonização e escravatura dos africanos.

Estes exemplos, mostram que desde que se encontrou com o Ocidente, o africano entra na
história como objecto, isto é que não pensa e nem decide nada por sí. O africano entra na história
como primitivo, colonizado, escravo, oprimido, subdesenvolvido. Por esta razão, quando o
africano começou a pensar por sí, a primeira coisa que reivindica é, segundo Ngoenha, a
liberdade.

A Filosofia Africana, enquanto conjunto de pensamento sobre os problemas africanos, desde o


seu surgimento até hoje debate-se com a busca da liberdade. Para Severino Ngoenha, a Filosofia
Africana deve fundamentalmente, contribuir no alargamento dos espaços e oportunidades para
que as pessoas, individual e colectivamente, exerçam as liberdades políticas, sociais, económicas
e tenham o direito de pensar por sí o seu futuro. A Filosofia Africana é o conjunto de
pensamentos relativos à emancipação e ao reconhecimento do homem negro dentro e fora de
África.  

Essa busca da liberdade manifestou-se de diferentes maneiras, desde os afro-americanos até aos
africanos: Uns acham que a base para a emancipação dos africanos consiste na valorização da
cultura que foi desprezada pelos colonos; outros acham que deve-se lutar pela liberdade política
e, ou económica. Em função destas diferenças apareceram várias correntes de pensamento, que
no seu conjunto constituem a Filosofia Africana.

Gênese da Filosofia Africana

Contudo, o pensamento africano não começa propriamente em África, mas sim nos EUA com os
afro-descendentes. Como é sabido, no âmbito do comércio triangular, muitos africanos foram
levados como escravos para as Américas. Ainda que esses negros tenham contribuído muito no
desenvolvimento dos EUA, tendo inclusive, participado ao lado dos americanos brancos na luta
contra a metrópole, que culminou com a independência dos EUA diante da Inglaterra,
continuaram marginalizados e sem direitos.

Houve duas visões diferentes sobre a busca da liberdade do negro nos EUA. A primeira,
defendida por Marcus Garvey, defendia a idéia de que o africano só seria livre voltando para a
sua terra natal (África). A segunda, defendia que o negro podia lutar pela sua liberdade e
igualdade dentro dos EUA sem precisar de retornar a África. Aqui estão William Du Bois que
lutava mais pela liberdade e direitos políticos, e por outro lado Booker Washinghton, que, ao
contrário de Du Bois pensava que o problema do negro é económico e não de carácter politico.
Por isso aceita a segregação racial  imposta pelos brancos, desde que os negros tenham escolas
técnicas para aprender a  produzir.

 Pan-africanismo

 É um movimento de união e solidariedade de todos os africanos visando a libertação e a


independência política de África. Nos EUA, este movimento foi impulsionado por William Du
Bois e em África por Kwame Nkrumah, cujas idéias estão expressas na sua obra A África deve
Unir-se. A evolução histórica do pan – africanismo começou no ano de 1900 e atingiu o seu auge
na 2ª Guerra Mundial. Nesse ano, realizou-se o primeiro encontro dos africanos na Inglaterra,
onde foi estruturada a ideologia necessária para unir os africanos oprimidos e escravizados num
movimento mundial de revolta contra os opressores, nomeadamente, o capitalismo, o
imperialismo, o colonialismo e o neocolonialismo.

Para além ser defensor do pan-africanismo, Nkrumah, foi também defensor da idéia de
Personalidade Africana ( African Personality) iniciada por Blyden. Blyden dizia que os africanos
devem amar e valorizar a sua raça negra.
 

Negritude

Influenciados pelos movimentos do pan-africanismo e do renascimento negro (Black


Renaissance ), cujo fundador foi Du Bois, na década de 1930, jovens africanos de colónias
francesas, fundam a negritude.   Trata-se de um movimento cultural, literário mas também com
um cunho filosofico, que tal como o renascimento negro, tinha como objectivo defender a
dignidade do negro. Ainda que as idéias da negritude tenham começado na América, considera-
se que em África foi fundada por Aimé Césaire, Leopold S. Senghor e Leon Damas. Na sua obra
Cahier d’un Retour au Pays Natal, A. Cesaire, o primeiro a usar o termo negritude, definia-a
como o simples reconhecimento do facto de ser negro e a aceitação deste facto do nosso destino.
Para Senghor, a negritude é a soma de todos os valores negros. Em 1932 foi criada em Paris, a
revista Légitime Défense, por um grupo de antilhanos sob orientação de Etienne Lero, que era
um manifesto contra a assimilação colonia, mas a iniciativa fracassou. Dois anos mais tarde, é
publicado por um outro grupo que contava com Cesaire, Damas e Senghor, o jornal L’etudiant
Noir, que seria o princípio da negritude. O jornal lutava contra a assimilação colonial e exaltava
os valores tradicionais de Africa Negra. Para os seus mentores, a negritude resume-se em três
palavras-chave: identidade, fidelidade do negro à terra-mãe e solidariedade entre os negros.

Ainda que historicamente, as reivindicações da negritude sejam aceitáveis, ela foi muito criticada
pelas seguintes razões: ao exaltar o negro e desprezar o branco também foi racista( racismo anti-
racista), mas o importante é lutar contra o mal que existe tanto nos brancos como nos negros.
Esteve mais ligado ao passado como o melhor momento a  ser recuperado e não soube viver e
responder os desafios do povo africano na actualidade. Entre os críticos da negritude, destacam-
se Jean P. Sartre, Franz Fanon, Lilyan Kesteloot, René Mentil e Soyinka.

Existência ou não da Filosofia Africana

Desde a sua origem e em toda a sua longa história, a Filosofia define-se como busca desinibida,
radical e crítica da verdade com o recurso da razão. Em Filosofia, a verdade não depende da
autoridade de quem a defende, mas única e exclusivamente da sua coerência lógica, por isso que
ao surgir, ele rompe com o mito e a religião uma vez que aqui basta a crença, mesmo sem
nenhuma demonstração lógico-racional.

A questão que se coloca, é a de saber se em África onde ainda predominam os mitos, crenças
religiosas diversas e a oralidade, podemos encontrar um pensamento filosófico, tal como
acontece no Ocidente. Esta questão deu origem a duas correntes de pensamento:  a etnofilosofia
e a filosofia crítica ou académica.

Etnofilosofia

É um sistema de valores, atitudes, crenças e formas de pensar, próprias de um determinado grupo


de pessoas, por isso também designa-se por mundividência, visão do mundo (weltanschaaung).
Os etnofilósofos afirmam que existe Filosofia Africana, como pensamento especulativo que se
encontra nos mitos, nas crenças religiosas, nos provérbios, nas máximas e nos costumes que os
africanos de hoje herdaram dos seus antepassados por via da tradição oral. A função do filósofo é
de coleccionar, interpretar e difundir tais mitos, contos e outro tipo de material desta natureza.

O objectivo deste tipo de filosofia era de reabilitar a imagem do africano denegrida pelos
colonizadores e etnógrafos, que o consideravam inferior ao branco na sua cultura e na sua
maneira de pensar.

Os principais autores da etnofilosofia são:

 Plácide Tempels, foi padre e é o primeiro a escrever uma obra deste género intitulada
Bantu Philosophy.
 John Mbiti, escreveu a obra African Religions and Philosophy
 Aléx Kagamé, escreve o livro La Philosophy Bantu Compareé e A Filosofia Bantu-
Ruandesa do Ser.

Filosofia Crítica, Académica ou Profissional

Esta corrente é constituída por todos os filósofos que, apesar das diferenças em outros assuntos,
são unânimes em afirmar que a etnofilosofia não pode ser considerada uma filosofia. São críticos
da etnofilosofia: Paulin Hountondji, Eboussi Boulaga, Marcien Towa, Wiredu. Para eles, a
filosofia é um pensamento individual, crítico e autónomo, mas a etnofilosofia considera a
Filosofia Africana como um pensamento conservador, acrítico, colectivo e unânime (a ideia de
que todos os africanos pensam da mesma maneira).

Paulin Hountondji, um dos maiores defensores desta escola, defende que a Filosofia Africana
tem que ter as mesmas características que a Filosofia europeia e o resto das ciências têm, ou seja
tem que ser uma disciplina científica, teórica, racional e individual. Além disso, a Filosofia
Africana tem que ser escrita e não transmitida oralmente. A Filosofia Africana deve ser uma
literatura racional e critica produzida por africanos tratando de diversos temas tanto africanos ou
universais. A Filosofia Africana não deve coleccionar e arquivar as tradições; ela tem que ter um
papel crítico e transformador diante das tradições visando o desenvolvimento de Àfrica.

As diferentes concepções da filosofia nas duas escolas: etnofilosofia e Filosofia crítica.

Etnofilosofia Filosofia Crítica (Hountondji)

 
Pensamento colectivo e comum aos grupos Pensamento individual, crítico e diversificado
africanos (pluralismo de idéias)
Transmitido oralmente de geração em geração Literatura racional escrita em livros
Está implicito nos mitos, crenças religiosas e É um projecto de debate de idéias a ser
tradições africanas, a ser organizado pelo filósofo. desenvolvido apenas por filósofos africanos
É conservadora e virada para o passado É dinâmica e orientada para o futuro

Sagacidade

Se, para Hountondji, uma obra só pode fazer parte da filosofia africana se fôr escrita por um
africano, Odera Oruka, pensa que qualquer obra pode fazer parte da filosofia africana desde que
trate de problemas relacionados com África. Oruka, também acha que o pensamento africano não
é necessariamente colectivo (comunal), pois existem em África sábios que os chama de sagazes,
alguns dos quais poderão se converter em filósofos que têm a sua própria racionalidade para
sustentar as suas idéias e pontos de vista de forma individual e critica. Estas idéias podem ser
organizadas por filósofos profissionais em forma de literatura filosófica.

Filosofia Politica

Neste âmbito, a filosofia como actividade intelectual, visa criar idéias e soluções para o
desenvolvimento sócio-politico e económico de África. Figuram aqui politicos e estadistas
africanos, que após as independências, tinham que traçar bases de reconstrução e
desenvolvimentos dos seus países, como são os casos de Kwame Nkrumah, Julius Nyerere,
Kenneth Kaunda, Albert Lithuli e Leopol Senghor. 

Nas suas teorias tentaram conciliar algumas caracteristicas tidas como específicas de África
como a solidariedade e o comunismo com o socialismo marxista, dando origem ao socialismo
africano.

A partir do 5º Congresso Pan-africano realizado em Manchester (1945), Nkrumah e Senghor,


destacaram-se como as grandes figuras que lançaram as bases politicas para os estados africanos.
Lideraram dois grupos e dois pontos de vista que nunca se conciliaram: enquanto Nkrumah
defendia a independência imediata dos estados africanos, que mais tarde daria lugar à união de
toda a África, Senghor queria uma independência gradual.     

Por Antonio Wiliamo Mabongo


PARTE UM ETNOFILOSOFIA

Inicialmente no deparamos com o título: Mãe, Materno Mar. Primeiro fica clara a
referência ao universo matriarcal africano em contraste com o sistema de mundo patriarcal
ocidental que o suplantou de maneira abrupta e ineficiente. “No principio era a Mãe, o Verbo
veio depois.” assim que Marilyn French, uma das maiores pensadoras feministas americanas,
começa o seu livro Beyond Power (Summit Books, Nova York, 1985). E não é sem razão, pois
podemos retraçar os caminhos da espécie através da sucessão dos seus mitos. Um mitólogo
americano, em seu livro The Masks of God: Occidental Mythology (Nova York, 1970), citado
por French, divide em quatro grupos todos os mitos conhecidos da criação. E,
surpreendentemente, esses grupos correspondem às etapas cronológicas da história humana.

Na primeira etapa, o mundo é criado por uma deusa mãe sem auxílio de ninguém. Na
segunda, ele é criado por um deus andrógino ou um casal criador. Na terceira, um deus macho ou
toma o poder da deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Finalmente, na quarta
etapa, um deus macho cria o mundo sozinho. Essas quatro etapas que se sucedem também
cronologicamente são testemunhas eternas da transição da etapa matricêntrica da humanidade
para sua fase patriarcal, e é esta sucessão que dá veracidade à frase já citada de Marilyn French.
Alguns exemplos nos farão entender as diversas etapas e a frase de French. O primeiro e
mais importante exemplo da primeira etapa em que a Grande Mãe cria o universo sozinha é o
próprio mito grego. Nele a criadora primária é Géia, a Mãe Terra. Dela nascem todos as
protodeuses: Urano, os Titãs e as protodeusas, entre as quais Réia, que virá a ser a mãe do futuro
dominador do Olimpo, Zeus. Há também o caso do mito Nagô, que vem dar origem ao
candomblé. Neste mito africano, é Nanã Buruquê que dá à luz todos os orixás, sem auxílio de
ninguém.

Exemplos do segundo caso são o deus andrógino que gera todos os deuses, no hinduísmo,
e o yin e o yang, o principio feminino e o masculino que governam juntos na mitologia chinesa.

Exemplos do terceiro caso são as mitologias nas quais reinam em primeiro lugar deusas
mulheres, que são, depois, destronadas por deuses masculinos. Entre essas mitologias está a
sumeriana, em que primitivamente a deusa Siduri reinava num jardim de delícias e cujo poder foi
usurpado por um deus solar. Mais tarde, na epopéia de Gilgamesh, ela é descrita como simples
serva. Ainda, os mitos primitivos dos astecas falam de um mundo perdido, de um jardim
paradisíaco governado por Xoxiquetzl, a Mãe Terra. Dela nasceram os Huitzuhuahua, que são os
Titãs e os Quatrocentos Habitantes do Sul (as estrelas). Mais tarde, seus filhos se revoltam contra
ela e ela dá à luz o deus que iria governar a todos, Huitzilopochtli.

A partir do segundo milênio a.C., contudo, raramente se registram mitos em que a


divindade primária seja mulher. Em muitos deles, estas são substituídas por um deus macho que
cria o mundo a partir de si mesmo, tais como os mitos persas, meda e, principalmente e acima de
todos, o nosso mito cristão, que é o que será enfocado aqui.

Javé é o deus único todo-poderoso, onipresente, e controla todos os seres humanos em


todos os momentos da sua vida. Cria sozinho o mundo em sete dias e, no final, cria o homem. E
só depois cria a mulher, assim mesmo a partir do homem. E coloca ambos no Jardim das Delícias
onde o alimento é abundante e colhido sem trabalho. Mas, graças à sedução da mulher, o homem
cede à tentação da serpente e o casal é expulso do paraíso.

Antes de prosseguir, procuremos analisar o que já se tem até aqui em relação à mulher.
Em primeiro lugar, ao contrário das culturas primitivas, Javé é deus único, centralizador, dita
rígidas regras de comportamento cuja transgressão é sempre punida. Nas primitivas mitologias,
ao contrário, a Grande Mãe é permissiva, amorosa e não coercitiva. E como todos os mitos
fundantes das grandes culturas tendem a sacralizar os seus principais valores, Javé representa
bem a transformação do matricentrismo em patriarcado.

O Jardim das Delícias é a lembrança arquetípica da antiga harmonia entre o ser humano e
a natureza. Nas culturas de coleta não se trabalhava sistematicamente. Por isso os controles eram
frouxos e podia se viver mais prazerosamente. Quando o homem começa a dominar a natureza,
ele começa a se separar dessa mesma natureza em que até então vivia imerso.

Como o trabalho é penoso, necessita agora de poder central que imponha controles mais
rígidos e punição para a transgressão. É preciso usar a coerção e a violência para que os homens
sejam obrigados a trabalhar, e essa coerção é localizada no corpo, na repressão da sexualidade e
do prazer. Por isso o pecado original, a culpa máxima, na Bíblia, é colocado no ato sexual (é
assim que, desde milênios, popularmente se interpreta a transgressão dos primeiros humanos).

E por isso que a árvore do conhecimento é também a árvore do bem e do mal. O


progresso do conhecimento gera o trabalho e por isso o corpo tem de ser amaldiçoado, porque o
trabalho é bom. Mas é interessante notar que o homem só consegue conhecimento do bem e do
mal transgredindo a lei do Pai. O sexo (o prazer) doravante é mau e, portanto, proibido. Praticá-
lo é transgredir a lei. Ele é, portanto, limitado apenas às funções procriativas, e mesmo assim é
uma culpa. Daí a divisão entre sexo e afeto, entre corpo e alma, apanágio das civilizações
agrárias e fonte de todas as divisões e fragmentações do homem e da mulher, da razão e da
emoção, das classes.

Tomam ai sentido as punições de Javé. Uma vez adquirido o conhecimento, o homem


tem que sofrer, O trabalho o escraviza. E por isso o homem escraviza a mulher. A relação
homem-mulher-natureza não é mais de integração e, sim, de dominação. O desejo dominante
agora é o do homem. O desejo da mulher será para sempre carência, e é esta paixão que será o
seu castigo. Daí em diante, ela será definida por sua sexualidade, e o homem, pelo seu trabalho.

Mas o interessante é que os primeiros capítulos do Gênesis podem ser mais bem
entendidos à luz das modernas teorias psicológicas, especialmente a psicanálise. Em cada
menino nascido no sistema patriarcal repete-se, em nível simbólico, a tragédia primordial. Nos
primeiros tempos de sua vida, eles estão imersos no Jardim das Delícias, em que todos os seus
desejos são satisfeitos. E isto lhes faz buscar o prazer que lhes dá o contato com a mãe, a única
mulher a que têm acesso. Mas a lei do pai proíbe ao menino a posse da mãe. E o menino é
expulso do mundo do amor, para assumir a sua autonomia e, com ela, a sua maturidade.
Principalmente, a sua nudez, a sua fraqueza, os seus limites. E à medida que o homem se cinde
do Jardim das Delícias proporcionadas pela mulher-mãe que ele assume a sua condição
masculina.

E para que possa se tornar homem em termos simbólicos, ele precisa passar pela punição
maior que é a ameaça de morte pelo pai. Como Adão, o menino quer matar o pai e este o pune,
deixando-o só.

Assim, aquilo que se verifica no decorrer dos séculos, isto é, a transição das culturas de
coleta para a civilização agrária mais avançada, é relembrado simbolicamente na vida de cada
um dos homens do mundo de hoje. Mas duas observações devem ser feitas. A primeira é que o
pivô das duas tragédias, a individual e a coletiva, é a mulher; e a segunda, que o conhecimento
condenado não é o conhecimento dissociado e abstrato que daí por diante será o conhecimento
dominante, mas sim o conhecimento do bem e do mal, que vem da experiência concreta do
prazer e da sexualidade, o conhecimento totalizante que integra inteligência e emoção, corpo e
alma, enfim, aquele conhecimento que é, especificamente na cultura patriarcal, o conhecimento
feminino por excelência.

Freud dizia que a natureza tinha sido madrasta para a mulher porque ela não era capaz de
simbolizar tão perfeitamente como o homem. De fato, para podermos entender a misoginia que
daí por diante caracterizará a cultura patriarcal, é preciso analisar a maneira como as ciências
psicológicas mais atuais apontam para uma estrutura psíquica feminina bem diferente da
masculina.

A mesma idade em que o menino conhece a tragédia da castração imaginária, a menina


resolve de outra maneira o conflito que a conduzirá á maturidade. Porque já vem castrada, isto é,
porque não tem pênis (o símbolo do poder e do prazer, no patriarcado), quando seu desejo a leva
para o pai ela não entra em conflito com a mãe de maneira tão trágica e aguda como o menino
entra com o pai por causa da mãe. Porque já vem castrada, não tem nada a perder. E a sua
identificação com a mãe se resolve sem grandes traumas. Ela não se desliga inteiramente das
fontes arcaicas do prazer (o corpo da mãe). Por isso, também, não se divide de si mesma como se
divide o homem, nem de suas emoções. Para o resto da sua vida, conhecimento e prazer, emoção
e inteligência são mais integrados na mulher do que no homem e, por isso, são perigosos e
desestabilizadores de um sistema que repousa inteiramente no controle, no poder e, portanto, no
conhecimento dissociado da emoção e, por isso mesmo, abstrato.

De agora em diante, poder, competitividade, conhecimento, controle, manipulação,


abstração e violência vem juntos. O amor, a integração com o meio ambiente e com as próprias
emoções são os elementos mais desestabilizadores da ordem vigente. Por isso é preciso precaver-
se de todas as maneiras contra a mulher, impedi-la de interferir nos processos decisórios, fazer
com que ela introjete uma ideologia que a convença de sua própria inferioridade em relação ao
homem.

E não espanta que na própria Bíblia encontremos o primeiro indício desta desigualdade
entre homens e mulheres. Quando Deus cria o homem, Ele o cria só e apenas depois tira a
companheira da costela deste. Em outras palavras: o primeiro homem dá à luz (parir) a primeira
mulher. Esse fenômeno psicológico de deslocamento é um mecanismo de defesa conhecido por
todos aqueles que lidam com a psique humana e serve para revelar escondendo. Tirar da costela
é menos violento do que tirar do próprio ventre, mas, em outras palavras, aponta para a mesma
direção. Agora, parir é ato que não está mais ligado ao sagrado e é, antes, uma vulnerabilidade
do que uma força. A mulher se inferioriza pelo próprio fato de parir, que outrora lhe assegurava a
grandeza. A grandeza agora pertence ao homem, que trabalha e domina a natureza.

Já não é mais o homem que inveja a mulher. Agora é a mulher que inveja o homem e é
dependente dele. Carente, vulnerável, seu desejo é o centro da sua punição. Ela passa a se ver
com os olhos do homem, isto é, sua identidade não está mais nela mesma e sim em outro. O
homem é autônomo e a mulher é reflexa. Daqui em diante, como o pobre se vê com os olhos do
rico, a mulher se vê pelos do homem.
Da época em que foi escrito o Gênesis até os nossos dias, isto é, de alguns milênios para
cá, essa narrativa básica da nossa cultura patriarcal tem servido ininterruptamente para manter a
mulher em seu devido lugar. E, aliás, com muita eficiência. A partir desse texto, a mulher é vista
como a tentadora do homem, aquela que perturba a sua relação com a transcendência e também
aquela que conflitua as relações entre os homens. Ela é ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao
prazer, domínios que têm de ser rigorosamente normatizados: a serpente, que nas eras
matricêntricas era o símbolo da fertilidade e tida na mais alta estima como símbolo máximo da
sabedoria, se transforma no demônio, no tentador, na fonte de todo pecado. E ao demônio é
alocado o pecado por excelência, o pecado da carne. Coloca-se no sexo o pecado supremo e,
assim, o poder fica imune à crítica. Apenas nos tempos modernos está se tentando deslocar o
pecado da sexualidade para o poder. Isto é, até hoje não só o homem como as classes dominantes
tiveram seu status sacralizado porque a mulher e a sexualidade foram penalizadas como causa
máxima da degradação humana.

Segundo a maioria dos antropólogos, o ser humano habita este planeta há mais de dois
milhões de anos. Mais de três quartos deste tempo a nossa espécie passou nas culturas de coleta e
caça aos pequenos animais. Nessas sociedades não havia necessidade de força física para a
sobrevivência, e nelas as mulheres possuíam um lugar central.

Em nosso tempo ainda existem remanescentes dessas culturas, tais como os grupos
mahoris (Indonésia), pigmeus e bosquímanos (África Central). Estes são os grupos mais
primitivos que existem e ainda sobrevivem da coleta dos frutos da terra e da pequena caça ou
pesca. Nesses grupos, a mulher ainda é considerada um ser sagrado, porque pode dar a vida e,
portanto, ajudar a fertilidade da terra e dos animais. Nesses grupos, o princípio masculino e o
feminino governam o mundo juntos. Havia divisão de trabalho entre os sexos, mas não havia
desigualdade. A vida corria mansa e paradisíaca.

Nas sociedades de caça aos grandes animais, que sucedem a essas mais primitivas, em
que a força física é essencial, é que se inicia a supremacia masculina. Mas nem nas sociedades de
coleta nem nas de caça se conhecia função masculina na procriação. Também nas sociedades de
caça a mulher era considerada um ser sagrado, que possuía o privilégio dado pelos deuses de
reproduzir a espécie. Os homens se sentiam marginalizados nesse processo e invejavam as
mulheres. Essa primitiva “inveja do útero” dos homens é a antepassada da moderna “inveja do
pênis” que sentem as mulheres nas culturas patriarcais mais recentes.

A inveja do útero dava origem a dois ritos universalmente encontrados nas sociedades de
caça pelos antropólogos e observados em partes opostas do mundo, como Brasil e Oceania. O
primeiro é o fenômeno da couvade, em que a mulher começa a trabalhar dois dias depois de parir
e o homem fica de resguardo com o recém-nascido, recebendo visitas e presentes... O segundo é
a iniciação dos homens. Na adolescência, a mulher tem sinais exteriores que marcam o limiar da
sua entrada no mundo adulto. A menstruação a torna apta à maternidade e representa um novo
patamar em sua vida. Mas os adolescentes homens não possuem esse sinal tão óbvio. Por isso, na
puberdade eles são arrancados pelos homens às suas mães, para serem iniciados na “casa dos
homens”. Em quase todas essas iniciações, o ritual é semelhante: é a imitação cerimonial do
parto com objetos de madeira e instrumentos musicais. E nenhuma mulher ou criança pode se
aproximar da casa dos homens, sob pena de morte. Desse dia em diante o homem pode “parir”
ritualmente e, portanto, tomar seu lugar na cadeia das gerações.

Ao contrário da mulher, que possuía o “poder biológico”, o homem foi desenvolvendo o


“poder cultural” à medida que a tecnologia foi avançando. Enquanto as sociedades eram de
coleta, as mulheres mantinham uma espécie de poder, mas diferente das culturas patriarcais.
Essas culturas primitivas tinham de ser cooperativas, para poder sobreviver em condições hostis
e, portanto não havia coerção ou centralização, mas rodízio de lideranças, e as relações entre
homens e mulheres eram mais fluidas do que viriam a ser nas futuras sociedades patriarcais.

Nos grupos matricêntricos, as formas de associação entre homens e mulheres não


incluíam nem a transmissão do poder nem a da herança, por isso a liberdade em termos sexuais
era maior. Por outro lado, quase não existia guerra, pois não havia pressão populacional pela
conquista de novos territórios.

E só nas regiões em que a coleta é escassa, ou aonde vão se esgotando os recursos


naturais vegetais e os pequenos animais, que se inicia a caça sistemática aos grandes animais. E
aí começam a se instalar a supremacia masculina e a competitividade entre os grupos na busca de
novos territórios. Agora, para sobreviver, as sociedades têm de competir entre si por um alimento
escasso. As guerras se tornam constantes e passam a ser mitificadas. Os homens mais
valorizados são os heróis guerreiros. Começa a se romper a harmonia que ligava a espécie
humana à natureza. Mas ainda não se instala definitivamente a lei do mais forte. O homem ainda
não conhece com precisão a sua função reprodutora e crê que a mulher fica grávida dos deuses.
Por isso ela ainda conserva poder de decisão. Nas culturas que vivem da caça, já existe
estratificação social e sexual, mas não é completa como nas sociedades que se lhes seguem.

E no decorrer do neolítico que, em algum momento, o homem começa a dominar a sua


função biológica reprodutora, e, podendo controlá-la, pode também controlar a sexualidade
feminina. Aparece então o casamento como o conhecemos hoje, em que a mulher é propriedade
do homem e a herança se transmite através da descendência masculina. Já acontece assim, por
exemplo, nas sociedades pastoris descritas na Bíblia. Nessa época, o homem já tinha aprendido a
fundir metais. Essa descoberta acontece por volta de 10000 ou 8000 a.C. E, à medida que essa
tecnologia se aperfeiçoa, começam a ser fabricadas não só armas mais sofisticadas como também
instrumentos que permitem cultivar melhor a terra (o arado, por ex.).

Hoje há consenso entre os antropólogos de que os primeiros humanos a descobrir os


ciclos da natureza foram as mulheres, porque podiam compará-los com o ciclo do próprio corpo.
Mulheres também devem ter sido as primeiras plantadoras e as primeiras ceramistas, mas foram
os homens que, a partir da invenção do arado, sistematizaram as atividades agrícolas, iniciando
uma nova era, a era agrária, e com ela a história em que vivemos hoje.

Para poder arar a terra, os grupamentos humanos deixam de ser nômades. São obrigados
a se tornar sedentários. Dividem a terra e formam as primeiras plantações. Começam a se
estabelecer as primeiras aldeias, depois as cidades, as cidades-estado, os primeiros Estados e os
impérios, no sentido antigo do termo. As sociedades, então, se tornam patriarcais, isto é, os
portadores dos valores e da sua transmissão são os homens. Já não são mais os princípios
feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim, a lei do mais forte. A comida era
primeiro para o dono da terra, sua família, seus escravos e seus soldados. Até ser escravo era
privilégio. Só os párias nômades, os sem-terra, é que pereciam no primeiro inverno ou na
primeira escassez.
Nesse contexto, quanto mais filhos, mais soldados e mais mão-de-obra barata para arar a
terra. As mulheres tinham a sua sexualidade rigidamente controlada pelos homens. O casamento
era monogâmico e a mulher era obrigada a sair virgem das mãos do pai para as mãos do marido.
Qualquer ruptura desta norma podia significar a morte. Assim também o adultério: um filho de
outro homem viria ameaçar a transmissão da herança que se fazia através da descendência da
mulher.

A mulher fica, então, reduzida ao âmbito doméstico. Perde qualquer capacidade de


decisão no domínio público, que fica inteiramente reservado ao homem. A dicotomia entre o
privado e o público torna-se, então, a origem da dependência econômica da mulher, e esta
dependência, por sua vez, gera, no decorrer das gerações, uma submissão psicológica. É nesse
contexto que transcorre todo o período histórico até os dias de hoje. De matriarcal, a cultura
humana passa a patriarcal.

Retomando o título segundo outro de seus aspectos, o elemento água está associado à
palavra mar. A diferença geográfica entre mar e oceano é que os oceanos tem profundidade
desconhecida e delimitam as terras emersas e já os mares têm profundidades conhecidas em
algumas centenas de metros. Os mares são, por sua vez, delimitados pelos continentes, aqueles
trechos do oceano mais próximos aos acidentes geográficos terrestres, possuindo uma grande
importância para inúmeros povos que se localizam nas proximidades. O mar possui um caráter
mais nacional e particular que oceano.

Outra observação que pode ser feita é a repetição deliberada da letra M nas iniciais das
três palavras que constituem o sintagma-título do livro. Essa estruturação remete à gramática da
língua bantu. O radical inicial da palavra que tem a função sintática de sujeito na oração permeia
as outras palavras que a compõe para indicar a importância e a dominação sintática, semântica e
morfológica sobre as outras com as quais se relaciona. Esse vínculo fica expresso semântica e
morfologicamente também além das evidências sintáticas reveladas pelo enunciador. As línguas
bantu juntam as palavras com características semânticas comuns numa classe e não, como as
línguas europeias, por gênero. Cada classe tem prefixos diferentes para designar o singular ou o
plural que, nos outros elementos da frase, antecedem a raiz de cada palavra, reaparecendo nos
prefixos. A sistemática dessa estrutura pode ser constatada através deste exemplo retirado do
ensaio brilhante de Pedro Miguel que inspirou este trabalho intitulado Da Foz à Fonte: A
Literatura Angolana como Antropologia Filosófica (2002).

“Tomemos o Kimbundu como língua de referência e, a título de exemplo,


consideremos as seguintes frases:
 Ditadi didi dingezanadiu dianeme = Esta pedra que eu trouxe é pesada
 Kialu kiki kingezanakiu kianeme = Esta cadeira que eu trouxe é pesada"

Nessas frases cabe notar o seguinte: enquanto no idioma português o adjetivo “esta” e a
frase relativa integrante permaneceram inalterados nas três frases, no idioma kimbundu, já não
acontece o mesmo. Não só isso, mas também em português pode-se mudar a ordem dos adjetivos
sem alterar nada. Significa que estamos perante uma estrutura universal e universalizante. Em
outras palavras, estamos perante uma língua conceitual. À equivalência de condições, semelhante
arbitrariedade não se pode efetuar na língua kimbundu. Esta é uma estrutura que caracteriza as
línguas do tronco bantu, registrando-se uma diferenciação apenas no plano lexical (MIGUEL
2002).

Nos exemplos acima citados em kimbundu notamos que a partícula com a qual uma frase
inicia repercute-se em todas as palavras que têm relação com a palavra inicial. E assim se
procede, por mais longa que seja a frase: pedindo a consequente de uma partícula, ela é
encontrada no seu correlato antecedente. Assim sendo, é igualmente legítimo perguntar qual é o
correlato antecedente da partícula da palavra inicial do sintagma-título.

A significação de uma realização análoga no sintagma Mãe, Materno Mar pode ser a de
uma interferência linguística reversa onde a gramática autóctone subvalorizada e subjugada da
língua bantu se materializa como forma dominante dos vocábulos do vernáculo português
imposto pelos colonizadores. A letra M (eme) é a décima terceira letra do alfabeto português e é
também a décima consoante. É utilizada em 4,74% das palavras portuguesas. A letra M na
escrita hierática egípcia é a transliteração do sinal representado pela coruja e depois no alfabeto
fenício recebeu a denominação de "mem" que significava água e era simbolizada por uma linha
ondulada representando as ondas do mar, dando origem ao "mi" dos gregos e à letra M que
utilizamos atualmente.

Hieróglifo Egípcio >>> Escrita Hierática >> Proto-Semítico > Fenício > Etrusco > Grego
Fig.1
Preto (adjetivo) Mar (substantivo) Água (substantivo)

O sinal identificado com a coruja é um fonograma unilítero, tem o som de “M” e é usado
para escrever palavras que tenham o som de “M”. Em egípcio a palavra preto é lida “kem”, e o
sinal da coruja nesse caso é usado como um fonograma (complemento fonético) para escrever a
palavra preto. O ideograma da coruja, por exemplo, é uma maneira de se referir a uma coruja
sem ter que escrever as letras C – O – R – U – J – A. Nesse caso o sinal representa o que ele é.
Então já sabemos que um mesmo sinal poderá ser um fonograma em uma frase ou um ideograma
em outra, e isso dependerá apenas do contexto em que ele está inserido.

Na mitologia egípcia, Neith (também denominada de Nit, Net e Neit) é a deusa da guerra
e da caça, criadora de Deuses e homens, divindade funerária e deusa inventora. Neith, também
chamada Tehenut, é uma antiga Deusa egípicia cujo culto provém do período pré-dinástico, na
qual tinha forma de escaravelho, depois foi deusa da guerra, da caça e deusa inventora além de
protetora dos mortos. Platão afirmou que em Saís, Atena fundia-se com Neith, pelos atributos da
guerra e da tecelagem, e tinham um mesmo animal simbólico, a coruja. O símbolo da Deusa
grega da sabedoria, Atena, é uma coruja do género Athene: o mocho-galego. Também
considerada o símbolo da filosofia.

A escrita hieroglífica constitui provavelmente o mais antigo sistema organizado de escrita


no mundo, e era vocacionada principalmente para inscrições formais nas paredes de templos e
túmulos. Com o tempo evoluiu para formas mais simplificadas, como o hierático, uma variante
mais cursiva que se podia pintar em papiros ou placas de barro.

A escrita hierática no Antigo Egito permitia aos escribas escrever rapidamente,


simplificando os hieróglifos quando o faziam em papiros, e estava intimamente relacionada com
a escrita hieroglífica. Hieróglifo é um termo originário de duas palavras gregas: hierós
"sagrado", e glýphein "escrita". Apenas os sacerdotes, membros da realeza, altos cargos, e
escribas conheciam a arte de ler e escrever esses sinais "sagrados".
A escrita egípcia contém apenas consoantes e semiconsoantes. Basicamente a escrita é
formada por três tipos de sinal. Pelos fonogramas; usados para representar os sons e divididos em
três subcategorias de sinais: unilíteros (representam uma consoante); bilíteros (representam duas
consoantes); trilíteros (representam três consoantes), por ideogramas; sinais que expressam uma
ideia, mas não expressam qualquer tipo de som e pelos determinativos, também conhecidos
como taxogramas ou semagramas, são ideogramas utilizados para sistematizar categorias
semânticas de palavras nas escrituras logográficas, o que ajuda a eliminar ambiguidades em sua
interpretação. São sinais que determinam a que grupo pertence a palavra ou sequência de
palavras. Os egípcios usavam os determinativos para saber do que a palavra ou a frase se tratava,
já que, por não existirem vogais, muitas palavras eram escritas da mesma maneira.

Os taxogramas seriam, também, as formas escritas onde os maiúsculos distinguem nomes


próprios de comuns ou de outra categoria de palavras em alguns idiomas. Como Clara e clara ou
Vitória e vitória no português. A palavra semagrama vem do grego, onde sema significa sinal e
grama significa escrito ou desenhado. Em outras palavras, semagramas são signos, símbolos ou
padrões usados para ocultar e revelar as informações. Os semagramas podem ser visuais ou
textuais. Um exemplo de semagrama visual é o uso das posições dos ponteiros de um relógio
para codificar informações ou posições espaciais. Um exemplo de semagrama textual é o uso de
espaçamento extra entre as palavras de uma mensagem para codificar informações. O
semagrama é um tipo especial de esteganografia que faz uso de objetos pouco usuais para
transmitir informações. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, um carregamento de
relógios foi considerado suspeito por censores norte-americanos porque a posição dos relógios e
seus ponteiros poderiam representar algum tipo de informação.

Esteganografia (do grego "escrita escondida") é o estudo e uso das técnicas para ocultar a
existência de uma mensagem dentro de outra, uma forma de segurança por obscurantismo. Em
outras palavras, esteganografia é o ramo particular da criptologia que consiste em fazer com que
uma forma escrita seja camuflada em outra a fim de mascarar o seu verdadeiro sentido. É
importante frisar a diferença entre criptografia e esteganografia. Enquanto a primeira oculta o
significado da mensagem, a segunda oculta a existência da mensagem. A esteganografia inclui
um vasto conjunto de métodos para comunicações secretas desenvolvidos ao longo da história.
Dentre tais métodos, estão: tintas “invisíveis”, micro pontos, arranjo de caracteres, assinaturas
digitais, canais escondidos que podem ser utilizada para a divulgação de mensagens sem o
conhecimento da existência dessas mensagens por parte de outros interessados.

A classe dos semagramas corresponde na prática da esteganografia à técnica da


anamorfose. Os semagramas escondem a mensagem em um texto legítimo, de forma que o
mesmo não levanta suspeita ao leitor. Podem ser usadas metáforas (mascaramento) ou letras
secretas em certa posição do texto (acrósticos). Se os semagramas são signos, símbolos ou
padrões utilizados para esconder e desvendar a informação. Os semagramas desencadeiam uma
anamorfose que reserva a informação (mensagem) através de uma distorção perceptível ou
imperceptível na imagem ou discurso.

A anamorfose ou anamorfismo está presente em várias áreas de conhecimento, seja na


matemática, biologia, cartografia, geologia, ótica, artes, design e até publicidade. Ou seja, uma
perspectiva anamórfica consiste na criação de uma imagem indecifrável e com proporções
distorcidas quando vista de maneira habitual, mas que sob um ponto de vista específico adquire
proporções reais ou cognoscíveis. No âmbito das linguagens visuais, anamorfose é uma
linguagem oculta na imagem, segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, versão on-line,
anamorfose é:

“(...) representação de figura (objeto, cena etc.) de maneira que, quando


observada frontalmente, parece distorcida ou mesmo irreconhecível,
tornando-se legível quando vista de um determinado ângulo, a certa
distância, ou ainda com o uso de lentes especiais ou de um espelho
curvo [ou] (...) a deformação de uma imagem obtida por um sistema
óptico que permite uma variação da ampliação transversal
relativamente a ampliação longitudinal. [Do grego], anamorf(o)- +
-ose. anamórphósis 'formado de novo'.

Assim, faz-se necessário demonstrar que a anamorfose é uma técnica tão antiga quanto a
perspectiva e que foi amplamente utilizada no campo das artes plásticas, podendo ser
considerada uma técnica de enorme potencial criativo, pois permite dialogar entre diversos
universos artísticos e níveis de consciência e possui elevado poder expressivo.

O objetivo principal do estudo da história da anamorfose é fornecer uma base conceitual


sólida para este campo do conhecimento, visando à inclusão desta linguagem no repertório
crítico das narrativas através da sua disseminação no sistema literário.
A anamorfose foi inventada na China e levada para a Itália na época Renascentista.
Segundo LIMA (2006), “A arte da anamorfose teve origem a aproximadamente há 700 anos na
China”. Primeiramente ela foi vista como uma forma de perspectiva, pois sua montagem é feita
de um ponto de vista, depois foi identificada como Anamorfose. O trabalho mais antigo que se
destaca como exemplo foi a pintura de Leonardo da Vinci, o Olho de Leonardo (1485), no
período Renascentista, onde visto de frente não se identifica a figura, mas colocando-o em um
certo ponto de vista, consegue-se perceber a pintura de um olho, com suas pálpebras e
sobrancelhas. Leonardo foi quem difundiu a técnica da anamorfose denominada oblíqua.

Já no ano de 1533 foi pintado o quadro mais famoso que aplica a Anamorfose, Os
Embaixadores de Hans Holbein, que foi posicionado no topo de uma escada de um castelo,
somente enquanto subia-se a escada tinha-se a visão de um crânio, assim que se chegava ao topo,
enxergava-se a figura de duas pessoas bem vestidas e a caveira não era vista.

Conforme o desenrolar dos tempos, foram se identificando diferentes formas e técnicas


de execução da anamorfose. Primeiramente havia a anamorfose de perspectiva, que se realizava
no Renascimento (século XV), logo no Barroco (século XVII) foi amplamente difundida a
técnica trompe l'oeil, integrando objetos arquitetônicos com uma ilusão. Há divergências entre o
agrupamento desses dois procedimentos sob a mesma classe categórica e a alegação que sustenta
que são duas práticas absolutamente diversas. Essa técnica foi utilizada, principalmente em
igrejas, onde o teto era plano, mas passava a impressão de ser uma extensão das paredes até o
céu. Pode-se dizer que a técnica trompe l'oeil esteve em uso desde o período Grego e Romano,
onde se utilizava esta pintura como forma de aumentar os cômodos das casas.

Desde o início de sua utilização, a anamorfose era representada com diversos objetivos.
Nos tempos antigos, entre século XVI e XVII, eram usadas para se transmitir mensagens
pornográficas, políticas, cenas de magia e caricaturas. Em períodos de guerra, foi utilizada para
mensagens secretas. Também se usou em jogos infantis, nos séculos XVIII e XIX. Hoje, usa-se
muito na representação visual, como uma forma curiosa da leitura de imagens, usa-se em
pinturas, decorações, propagandas, quadros, desenhos, na arquitetura e urbanismo, nas artes
plásticas entre outros.
Atualmente há muitos artistas que utilizam a Anamorfose para seus trabalhos. O conceito
de anamorfose se refere ao retorno, à reiteração e à reversão da forma. Utilizado em várias áreas
do conhecimento – matemática, ótica (com aplicações nas artes visuais), biologia e geologia –
este conceito aplica-se a qualquer situação onde a base constitutiva transfere suas características
para a constituição geral – tal como um fractal, estrutura geométrica complexa cujas
propriedades, em geral, repetem-se em qualquer escala.

A arte anamórfica é um efeito de perspectiva, utilizado por artistas plásticos, forçando o


observador a se colocar sob um determinado ponto de vista ou distância do objeto observado,
capaz de fazê-lo ver este objeto de forma clara ou de uma nova forma inesperada.

Com uma perspectiva de texto convencional uma narrativa define-se como um bloco
linear de texto que tem um começo, um meio e um fim. Platão quer que um discurso tenha o
corpo bem constituído de um grande animal, com cabeça, ventre e cauda. É mesmo por isso que
nós, bons e velhos platônicos, sabemos e não sabemos o que é um discurso sem cauda nem
cabeça, afalo e acéfalo. Sabemos: é aquilo a que chamamos o sem sentido; o obscuro, o
excêntrico, o deformado, o bizarro. Mas não sabemos. Não sabemos o que fazer do “sem-
sentido”. Estamos sempre a fazer sinal ao sentido: para lá dele, perdemos o pé. Jean-Luc Nancy
esclarece-nos acerca deste não saber, que está ligado ao saber do ‘corpo’; o ‘corpo’ é onde se
perde o pé ou a cabeça, ou os dois. ‘Sem-sentido’ não quer dizer aqui algo como o absurdo, nem
como sentido ao contrário, ou contorcido. Mas isso quer dizer: sem sentido, ou ainda, sentido
que é absolutamente excluído abordar sem qualquer figura de ‘sentido’, é o outro ‘corpo’ que se
faz presente.

Estabilidade e fixidez são as traves mestras do texto clássico. Um espaço de histórias


manifesta-se textualmente como uma série de unidades estruturadas em rede em que tudo
depende da resposta do leitor, da sua capacidade de navegação. Said (1984b: 227) sustentou
muito bem a idéia de que as teorias viajam, tendo cada uma seus pontos de origem, uma
distância que é percorrida, condições que são confrontadas e transformações que correm ao
longo do caminho. O leitor transforma-se num "turista" (Joyce), o texto transforma-se em uma
jornada de "caminhos que se bifurcam" (Borges). Um novo estatuto do texto obriga a algumas
considerações. A perspectiva de um texto em constante estado de fluxo não é um texto, é um
texto em fluxo de perspectivas, ideia cara aos modernos. Não é o fluxo que faz o tempo, mas a
ligação entre os saberes, o deslocamento entre as ontologias e epistemologias. É necessário, pois,
repensar o estatuto ontológico e epistemológico do texto e é igualmente recomendável que se
tente redefinir a noção de texto dentro daquilo que é a nossa tradição textual.

Configura-se, sob o governo da metáfora e da alegoria, a experiência que é gerada por um


olhar anamórfico. Este trabalho sistematiza o texto de Mãe, Materno Mar como uma narrativa
anamórfica. Sistema fundamentado na utilização de uma diversidade de elementos; signos,
símbolos e padrões como semagramas determinantes dos sentidos, das dimensões da consciência
e da experiência literária que calam e dão voz a aspectos ontológicos e epistemológicos que
obedecem à intenção do autor e são direcionadas principalmente aos leitores que compartilham
das mesmas vivências, mas que pode ser apreciada em menor ou maior grau de acordo com os
saberes possuídos.

O texto anamórfico produz através da sua estruturação uma assinatura característica que
pode ser percebida como em consonância com os saberes e práticas específicos de determinadas
comunidades. O anamorfismo seria uma expressão da ‘glocalização’. Glocalização é um
neologismo resultante da fusão dos termos globalização e localização. Refere-se à presença da
dimensão local na produção de uma cultura global. O "local" foi definido por Manuel Castells
como os "nós" - nós de valor acrescentado aos fluxos econômicos e lugares de vida social.
Segundo Paul Soriano, no "glocal, " o "local" representaria os "nós" da rede global e integra as
resistências mas também as contribuições das formações identitárias locais e regionais à
globalização.

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Sobre essa perspectiva esta investigação vem explicitar que a narrativa inicia-se e
desenvolve-se sob a égide da mulher (mãe), da água (mar), da filosofia (coruja) e do negro (letra
M). Esses são os semagramas determinantes principais que impulsionam a compreensão em
direção à consciência do saber criador feminino, do saber elementar da natureza, das múltiplas
sabedorias humanas e do conhecimento de si próprio e das relações de alteridade.

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Também neste segmento vemos o aprofundamento e o desenrolar da história da noiva.
Em muitas simbologias associa-se a noiva à virgindade e também à Igreja Católica.

“O vestido da noiva era bonito, rodado e rendado, em seda selvagem,


com cauda de dez metros, véu e toucado, tudo numa cor pouco comum:
vermelha Um vermelho vivo, cor de sangue” (pg. 120).

Vermelho é a cor da religião tradicional africana, mas apesar da pureza da noiva também
pode ser relacionado ao sangue menstrual, linhagem sanguínea, sacrifício, crime, assassinato,
guerra, perigo, violência, libido e maturação sexual. Sobre seu casamento

“Ti Lucas, o ceguinho, respondeu que ele estava a ver a noiva a flutuar
no espaço, sem terra pra pisar, depois casada, mas um casamento
muito estranho, muito estranho mesmo”(pg. 103).

O seu casamento com o deus do fogo pode significar a consumação do cruzamento da


doutrina católica com a tradição religiosa e cultural ancestral africana ou então sua destruição e
apagamento pelo poder e saber da herança animista ancestral negra. Pode ser relacionado ao
esforço e engajamento feminino pela independência angolana e sua invisibilização posterior pelo
Estado e pela elite intelectual e política ou pela Igreja Católica que queimava mulheres durante a
inquisição. O fogo pode ser associado também ao batismo de fogo, a primeira experiência no
campo de batalha de um guerreiro ou soldado em uma guerra ou cruzada devido ao forte
desenvolvimento do núcleo religioso católico neste estágio do relato.

Sobre o Fogo que arrebatou a noiva, o conselho dos anciões:

“era unânime em afirmar que aquela fulgurante chama vinha das


profundezas invisíveis da terra onde viviam os nossos antepassados,
que, por isso, era um sinal muito forte, um aviso muito expressivo para
as novas gerações para que soubessem respeitar sempre as nossas
tradições.” (pg. 197).

Em contrapartida à figura da noiva temos as figuras das divas kamasutras que


representam as prostitutas.

“Nesse grupo de jovens, tinha muitas raparigas que, se falava então,


eram todas as noites procuradas por homens e que naquela solene
ocasião se distinguiam não só pelos seus indecorosos trajes, mas
particularmente porque usavam todas óculos escuros, vermelhíssimas
maquilhagens e muito exagerad ouro”(Pag.58).
Por serem mulheres, negras, pobres e exercerem um trabalho marginalizado e ilegal,
acabam encenando o ser humano sob seu aspecto mais extremo de exclusão e mesmo assim
figuram como fundamentais para o processo civilizatório tanto pelos serviços prestados à
comunidade quanto por encarnarem a representação da mulher, do poder criador e perpetuador
da espécie humana que a mulher possui. Para Camille Paglia (1997), “a prostituta não é, como as
feministas dizem, uma vítima dos homens, mas sim a sua conquistadora. Uma fora da lei, que
controla os canais do sexo entre natureza e cultura”. E continua,

Respeito e presto homenagem à prostituta, governante da esfera sexual,


que o homem tem de pagar para entrar (…), A prostituta é uma analista
soberba, não somente na arte de burlar a lei, mas na intuição da
constelação única de convenção e fantasia que produz um orgasmo
num estranho. É psicóloga, atriz e dançarina, uma artista performática
de imaginação sexual hiperdesenvolvida. É uma empreendedora e
sagaz mulher de negócios: as madames de bordel, juntamente com as
abadessas medievais, foram as primeiras mulheres administradoras. (...)
Ao considerar as prostitutas como almas perdidas a serem salvas das
satânicas garras masculinas, as feministas colaboram para denegrir
sistematicamente uma classe de mulheres que, sob condições perigosas,
realizam um serviço social necessário. (…) Durante a revolução sexual
dos anos 60 eu acreditava que num futuro reformado, a prostituição
seria desnecessária, pois o desejo feminino emancipado expandir-se-ia
ao encontro das necessidades dos homens. Entretanto, com o passar do
tempo, compreendi que a sexualidade nunca poderá ser completamente
contida no interior das formas sociais, e que o velho duplo padrão não
era uma ficção misógina: a promiscuidade é arriscada para a saúde
reprodutiva da mulher e para o seu feto. Consequentemente, a prostituta
passou a simbolizar para mim a mulher libertada que vive no limite e
cuja sexualidade não pertence a ninguém (…)(PAGLIA, Camille.
Vampes & Vadias, 1997).

As abordagens feministas à prostituição têm vindo a sofrer mudanças desde que o debate
se instalou no seio deste movimento. Se, nas fases iniciais da análise feminista da prostituição,
esta foi tratada de forma reducionista como uma atividade desviante, mais recentemente passou a
ser encarada como uma resposta compreensível e razoável às necessidades socioeconómicas
entendidas num contexto de cultura consumista e num enquadramento social que privilegia a
sexualidade masculina, como fica patente no trabalho de Maggie O’Neill (2001).

A discussão sobre a prostituição é um dos mais antigos debates no âmbito dos


feminismos, tendo surgido logo na 1ª vaga deste movimento com as perspetivas marxista-
socialista e radical e evoluindo com este, quando, a 2ª vaga do feminismo, a partir dos anos 70
do século XX, começou a desmontar as representações tradicionais da prostituição,
nomeadamente com a teoria liberal feminista a salientar a livre escolha e a responsabilização de
cada mulher sobre as suas decisões (Pinto, Nogueira e Tavares, 2010).

Apesar de se encontrarem na literatura diversas visões sobre as abordagens feministas


relativas à prostituição, podemos considerar que existem duas perspectivas feministas
dominantes sobre este tema.

Uma destas perspetivas encara a prostituição como uma forma de opressão da mulher,
concebendo esta atividade como vitimizante per se e advogando que a exploração e a violência
são intrínsecas e inextricáveis do comércio do sexo. Assim, de acordo com esta conceção,
habitualmente denominada de abolicionista, toda e qualquer forma de prostituição deve acabar.
Esta corrente tem entre as suas mais conhecidas defensoras Kathleen Barry (1984, 1995), Andrea
Dworkin (1987), Sheila Jeffreys (1997), Catherine MacKinnon (1987), Julia O’Connell-
Davidson (1998) e Carole Pateman (1988) que argumentam que não há escolha na prostituição e
que esta é uma forma de escravatura feminina. Este modelo é também chamado de opressivo e é
definido como a quinta-essência da expressão das relações de género do patriarcado e da
dominação masculina (Weitzer, 2010), o que faz da prostituição um mecanismo fundamental da
opressão masculina (Pinto et al., 2010).

Ao conceber todas as situações e experiências de prostituição como vitimizantes, ao


dirigir o seu discurso apenas às mulheres, ao aplicar os seus princípios a qualquer experiência de
trabalho sexual, não interessando se tratarem de prostitutas de rua ou de acompanhantes, de
atrizes de filmes pornográficos ou de web cam girls e, ainda, ao veicular o viés da
exemplificação dos casos mais extremos e graves de exploração e vivência negativa da atividade,
esta abordagem demonstra como é simplista e não atende à multiplicidade de situações e
experiências.

A outra grande perspectiva feminista no debate sobre a prostituição, também designada


de pró-prostituição, inclui-se na teoria liberal feminista e advoga, por oposição, que a
prostituição não é inerentemente exploradora e que o que a torna abusiva são as condições em
que é exercida. Para aqueles que defendem desta corrente, a prostituição é livremente escolhida
por muitas mulheres como uma forma de trabalho e as mulheres que estão na indústria do sexo
merecem os mesmos direitos a liberdades que as outras trabalhadoras (O’Neill, 2001). A
prostituição é aqui entendida como um direito de cidadania (Pinto et al., 2010). Assim, para que
os direitos possam ser assegurados, argumentam pela descriminalização de todos os aspetos da
prostituição e pelo seu enquadramento legal. De acordo com esta abordagem, as mulheres devem
poder dispor livremente do seu corpo, incluindo para prestar serviços sexuais remunerados se por
isso optarem. Desta forma, tal como defende Annette Jolin (1994), a prostituição é concebida
como um ato de autodeterminação sexual, expressão do estatuto de igualdade das mulheres e não
um sintoma da sua subjugação.

Uma conhecida defensora desta segunda perspectiva feminista é Camille Paglia (1997)
para quem a prostituta é dona da sua esfera sexual e representa a mulher libertada cuja
sexualidade não pertence a nenhum homem. Algumas autoras, muitas delas trabalhadoras ou ex-
trabalhadoras do sexo, que partilham desta posição, defendem ainda que esta atividade é
empoderante para as mulheres (e.g. Delacoste e Alexander, 1987; Chapkis, 1997). Ora, aqui,
impõe-se algum cuidado no sentido de evitar um romantismo apologético igualmente
estereotipado e simplista.

A prostituição tanto pode ser apresentada como a expressão máxima da exploração e


vitimação da mulher como da sua libertação, mas, em qualquer um destes extremos, está uma
visão parcelar da realidade baseada nos piores e nos melhores casos. Se a vitimação não é
intrínseca ao trabalho sexual, também não é verdade que todas as mulheres se sentem libertadas
pela prostituição. Seria muito injusto, irresponsável e desonesto ignorar aquelas e aqueles que se
sentem vitimados e oprimidos no comércio do sexo.

Camille Paglia tem sido considerada por alguns como a maior traidora do movimento
feminista e por outros como a heroína que denunciou o carácter extremista, irracional e perigoso
desse mesmo movimento. No início dos anos noventa, Susan Faludi, Gloria Steinem e Naomi
Wolf, alertaram para o retrocesso dos ideais feministas devido aos erros em que o "feminismo
duro" se estava a embrenhar, mas a maré fundamentalista parecia não poder ser contida,
reformulando ataques e reacendendo polêmicas. Foi quando, na arena ideológica, surgiu Camille
Paglia.
Há, no entanto, atualmente, um corpo crescente de literatura que aborda a troca de sexo
por dinheiro como um fenómeno social complexo que se alicerça em relações sociais,
econômicas, políticas, criminais e sexuais que incluem diversos atores e atrizes (Vanwesenbeeck,
2013). Muita da investigação recente sobre o trabalho sexual tende a abarcar a complexidade do
fenômeno e as múltiplas variáveis e processos que o caracterizam (e.g. Ribeiro, Silva, Schouten,
Ribeiro e Sacramento, 2008, em Portugal, Handman e Mossuz-Lavau, 2005, em França, ou
Riopedre, 2010, em Espanha). O que parece imperativo, hoje, é, pois, a análise de novas
variáveis, dos atores e atrizes e a utilização de novas perspectivas de interpretação. E, ainda, que
os métodos sejam proximais, dando voz às pessoas envolvidas, contribuindo para a
desconstrução de mitos, estereótipos e preconceitos relativos à prostituição e outros trabalhos
sexuais e seus atores e atrizes. Este é um fenômeno multiforme e complexo e que vai mostrando
novas configurações às quais a ciência deve adaptar-se.

As investigações nesta área têm ainda sido influenciadas pelas diferentes visões
feministas (Koken, 2010) e a tensão, enorme e duradoura, entre essas diferentes correntes só
pode, de acordo com Ken Plummer (2010), ser resolvida através de trabalho etnográfico
fundamentado. Para ir além desta tensão, segundo este autor, é útil o recurso a este tipo de
investigações, pois é aí que algumas das contradições e sutilezas da prostituição emergem, na
medida em que elas permitem ver as complexidades nas observações fundamentadas
empiricamente no real, onde a vida é sempre mais desorganizada, contraditória e ambígua.

A etnografia, ao ser fundamentada e ao conseguir uma visão próxima da dos atores e


atrizes sociais estudados, permite deslindar a complexidade, nomeadamente das trajetórias
humanas, dando foco aos caminhos diversos e difíceis que elas podem tomar e tendo em conta a
capacidade de agência individual. A prostituição é um fator social extremamente importante para
o desenvolvimento da comunidade, pois envolve inúmeras representações do sexo que de acordo
com Paglia (1997), "É animalidade e artifício, uma interação dinâmica entre natureza e cultura".

ETONISMO

António Tomás Ana (Etona) nasceu a 22 junho de 1961 na província do Zaire, município
do Soyo, em Angola. Em 1975 frequenta vários ateliers de artesãos, pintura e escultura no Soyo.
É já em Luanda que, em 1979, é recebido como discípulo de pintura no atelier do artista João
Luís de Almeida, na Ilha de Luanda, durante 5 anos. Integra-se nas FAPLA em 1982, tendo
cumprindo a sua missão no Kuito Kuanaval, província do Kuando-Kubango, onde tirou o curso
básico de rádio, iniciando-se como operador. Entra na 16ª Brigada como oficial de operações
com a função de cartográfico, devido à sua experiência como desenhador. É colocado no
comando da 6ª região militar, secção política, como oficial da agitação e propaganda massiva sob
ordens do então Major ‘Jota’, atual embaixador de Angola em Israel.

Começou a frequentar a União Nacional de Artistas Plásticos (UNAP) em 1985,


enquadrando-se na Brigada Jovem de Artes Plásticas. Um ano mais tarde é eleito Coordenador
da Brigada de Jovens Artistas Plásticos (BJA), Instituição ligada à UNAP. Em 1988, assume a
J.M.P.L.A de uma forma ativa, sendo membro do núcleo da Ilha de Luanda. Ao longo deste
período foi apoiando a sede da J.M.P.L.A – Nacional na área cultural, especificamente no
domínio das artes plásticas. É eleito para o Conselho Nacional das Organizações Juvenil
(C.N.O.J.) em 1991, assumindo a pasta de Secretário para o Gabinete de informação da
Comissão Directiva. Em 1992 representa o (C.O N.O.J.) na Namíbia.

Concluiu o estudo médio em Artes Plásticas (INFAC), em 1995, e frequentou uma


especialização de escultura de pedra com exploração de novas tecnologias no Centro
Internacional de escultura em Pero Pinheiro, também em Portugal. No mesmo ano, torna-se
membro da Associação dos Novos Artistas Africanos, com Sede em Lisboa. É em 1996 que
participa no festival de Juventude dos Estudante denominado Y.U.S.I, com uma exposição de
pintura, na Alemanha. No ano seguinte entra no Comité Provincial da J.M.P.L.A. até 2002.

Etona tem desde 2000 dois espaços de trabalho em Portugal: o Centro Internacional de
Escultura em Sintra e em São João da Madeira. Em 2001, mostrando a versatilidade na área
artística, associa-se com Tirso Amaral, e tem um papel revolucionário na recuperação e
reestruturação da UNAP, inoperacional nessa data. Daí vem a eleição de Secretário-Geral da
mesma associação no quadriénio 2001/2006. Em 2002 é indicado para participar na comissão
instaladora do comité de especialidade do sector de Luanda na área das Artes plásticas. É
presidente do Projecto do Centro Cultural ETONA, na Ilha de Luanda. A 12 de Setembro 2003
foi eleito como responsável da área das artes plásticas no comité dos Artistas de Luanda.
Também é membro da subcomissão da área cultural em preparação do V congresso M.P.L.A.
Etona estuda atualmente relações Internacionais.

Artisticamente Etonismo é “luta contra racismo, tribalismo, discriminação de género,


ideias, etc...”. O termo vem do antropônimo “Etona”. Filosóficamente, a criação é conjunto de
valores que evidencie alguma particularidade formal-conceitual (pensamento) singular na sua
arrumação, sistematização e atuação. Do Socrates vem o classicismo (que de acordo com alguns
filósofos seria socratismo); do seu discíplo Platão surgiu platonismo; do Aristotéles discípulo
deste surgiu aristolelismo; etc.

Filosoficamente um e outro difere de apresentação do pensamento, sua arrumação,


sistematização e sua atuação. Eis a razão pela qual existiu Marxismo, Leninismo, Stalinismo.
Falando das esculturas Côkwe e Kôngo, por exemplo, nota-se que seus criadores estão
intimamente ligados uns aos outros sucessivamente. O caso de Platão explicita isso tal como no
seu estudo “Plato’s Throught in the Making” publicado pela Cambidge University Press, Raven
J. mostra que na “República” encontramos “Socratismo” (Livro I), “Platonismo” (Livo II-IX) e
as primeiras alicerces de “Aristoletismo” (Livro X).

Historicamente, a criação pode ser considerada o ponto culminante de um período que


decididamente (formalmente) marca a ruptura, dando sequência a outro período. Os
Historiadores dividem o tempo histórico a partir das descobertas do Homem (criação): a Escrita,
por exemplo, marca a separação entre Pré-história e a História. A hominização, por exemplo,
separa Australopithecus do Homo Habilis, este do Homo Erectus e este do Homo Sapiens não
somente a partir duma simples teoria baseada em estudo dos ossos. A arqueologia explica
forçosamente as rupturas técnicas (formais) e intelectuais (conceituais). Igualmente, de
nomadismo ao sedentarismo não só o homem evolui arquitetonicamente, mas também de ponto
de vista o seu pensar. O princípio do sedentarismo é o ponto culminante das experiências da vida
nômade, e é somente através deste que se resume a “criação” ou “invenção”: agricultura
(dominando as águas de rios e mais tarde com sistema de canalização). Pois, seria impróprio um
Historiador afirmar que o nomadismo adâmico desconhecia a “agricultura”, apesar da criação ser
marcada pela “cultura da terra”.
Em Angola, especificamente, o quê é que “etonismo” traz de novo? O etonismo é uma
proposta de “teorizar” a Arte em Angola, criar discrepância entre “arte” e “artesanato”, ou
melhor, cientificar, sistematizar a Arte; é uma proposta de prevenção e salvaguarda do
património contemporâneo através duma socialização (ensino dos Artistas no Ensino Geral).
Ensinar Michelângelo, Pablo Picasso, Matisse, etc. é muito interessante. Mas ensinar António
Gonga, Rui de Matos, Kidá, etc... É salvaguardar não só o patrimônio contemporâneo angolano,
mas, sobretudo um meio eficiente para internacionalização e participação ativa e condigna na
Globalização.

A arte é antes de mais filosofia, diria Hegel. Existe uma particularidade que gostaria de
sublinhar no “etonismo”, que é a filosofia da razão tolerante que consiste na inclusão “sem
choque” de três razões oriundas de fontes diametralmente distintas cuja coalizão se fundamenta
essencialmente nas suas alegações mútuas, e sucessivamente, pela indulgência de forma que a
razão mais forte tolera a pseudo-razão. Angola já deu prova disso: o plano do Governo angolano
assenta na interindependência e na comparticipação políticas dos vencedores (nesse caso
Governo), vencidos (UNITA militarista) e observadores (outros partidos políticos). Dai, não há
vencedor no sentido estrito do termo. Não só a “teknikós”do artista plástico angolano evidencie
alguma particularidade formal-conceitual (pensamento) singular na sua arrumação,
sistematização e atuação, mas, sobretudo, se justifique na atualidade social angolana, servindo ao
mesmo tempo de modelo para futuro.

A criação se justifica na “longue durée”, de acordo com a História. É importante dizer


que aquilo que chamamos “etonismo” não se limita a “pesquisa” sobre a obra do Etona e a
sociedade onde integra. Desde a sua primeira exposição individual em 1991, as bases já foram
lançadas. Em 2005, foi apenas o “primeiro” ponto culminante que teria alcançado o “etonismo”
artisticamente. Tal fato confunde-se com a própria História Contemporânea de Angola onde o
artista integra. O “etonismo” é formalmente apresentado em Dakar, Paris e Luanda num
“período” que historiograficamente parafraseia as épocas que levaram os Angolanos a
estabelecer e enraizar as bases da Reconciliação Nacional: (2002-2006). Dois eventos se
confundem com ele: 1) a filosofia da Reconciliação Nacional se revê na filosofia do “etonismo”;
2) a condecoração do Etona pelo Alto Mandatário de Angola vem reforçar isso e interpretar-se-á
convergentemente com “etonismo”.
De ponto de vista o conteúdo, Etonismo relaciona as três verdades subjetivas numa só
“relação lógica” criando assim uma “filosofia de razão tolerante”.

A nosso ver, não seria precipitação alguma, pois sim uma tentativa de recuperação dos
atrasos que o país (ou até continente) por uma e outra razão conhece. Se o “ismo” é banalmente
preocupante por muito, cientificamente é tão normal desde que a sua atribuição se enquadra
dentro dos cânones (científicos). Esperemos que haja mais Faculdades e Cursos no país para
permitir a teorização da Arte (Música, Artes Plásticas, Teatro, Dança, etc.) afim de explorar
melhor o “suco científico” salvaguardando o patrimônio contemporâneo, e presenciar na
Globalização não como inocente mas tendo específicas propostas (com “garras”) nessa História
atual decisiva.

Quando eminentes filósofos declaram o “fim da Arte”, e principalmente Arthur C. Danto,


referem-se à rebeldia criada pelo cubismo, surrealismo, etc. dissociando o sentido de “bellum”,
“moral”, etc... que a uma dada época, a concepção helênica deu a “arte” e a sua “regulação
lógica”. Baumgarten, Kant, Schiller, Kierkegaard e Wittgestein duma e outra forma tentaram
autonomizar cientificamente a “estética”, mas com algumas debilidades para “arte moderna”
começada por Picasso. Daí, o filósofo e crítico de Arte Arthur C. Danto anunciou o “fim da
Arte”. Será realmente o “fim da Arte”? Muitos especialistas divergem opiniões sobre a
teorização da “arte moderna” que acham diferente em cânones estabelecidos pelos gregos nas
suas teorizações. Com modernismo, a arte é banalizada e esvaziada. Tudo é arte, todos são
Artistas! Desde então “criação” e “arte” morreram.

Se arte é visível, notamo-la assim através de algumas condições. Pois devemos começar
por balizar as “condições” daquilo que é visível. Daí, veremos que os Gregos tinham uma e os
Egípcios tinham outra forma de interpretar o que “é visível”. Isto é antigamente. Como é óbvio,
hoje cada um interpreta da sua maneira. A discrepância está nas “condições” de contemplar e não
na própria arte. Portanto, como estabelecer “link” entre o modernismo que é uma nostalgia da
presença e a “arte antiga” (classicismo grego, por exemplo.) que é uma nostalgia da ausência.
Daí, etonismo vem propôr o “recomeço” ou “ressureição” da arte começando por “definição
lógica” de arte, “definição descritiva” do artista assim como – o que é mais importante ainda –
“redefinir e revitalizar” os princípios, métodos da estética como “ciência autônoma”.
Estéticamente, etonismo propõe entre outros a teorização, o que poderá cientificamente
redinamizar a modalidade; filosóficamente, ele aventa que toda arte não perca a sua essência
(uma carga de filosofia), e se a angolanidade for uma ideologia, “etonismo” propõe a sua
cientificação; e historicamente sugere facilitar a classificação conveniente e adequada dos
períodos históricos da Arte em Angola em vez de recorrer sempre às periodizações
incongruentes que nos estamos habituados: “... dos anos 70 ou 80, 90”, etc. Tecnicamente, o
Vereador da Cultura da Câmara da Amadora (Portugal) escreve na sua exposição “Marcas e
Evidências”: etonismo “reflete a originalidade das pinturas e esculturas de Etona”.

Contudo, não é escândalo algum que, com a modernização e com a racionalização, a


autonomização e a simultânea mercantilização crescente da arte (que não foi contrabalançada
pelas vanguardas que, como no surrealismo ou mesmo com Mondrian, queriam reintegrá-la à
vida, dissolvendo-a como arte autônoma ou “separada”) tenham culminado em algo como seu
esvaziamento, sua banalização ou seu fim: todos não são artistas e nunca assim foram! É nessa
ordem que etonismo tenta reverter essa situação, devolvendo a “arte” o seu valor original e uma
cientificação que a dada época e por razões circunstanciais, a História negou por causa de
ruptura de interpretatividade.

Para uma breve retomada das artes do século XX, na virada daquele século, tomou-se
consciência de que uma nova forma de arte tinha nascido. Dentre as várias expressões dessa arte,
chama a atenção o movimento denominado fauves, que em sua tradução “feras” caracteriza
metaforicamente o conjunto dos artistas que participaram dos movimentos de vanguarda. De
efêmera existência, como todo movimento de vanguarda, o que se convencionou chamar de
fauvismo iniciou com uma exposição na França, caracterizando-se por uma suposta selvageria,
dadas as suas cores vivas, seus traços espontâneos e violentos: as tintas, tais como saem das
bisnagas, criam traços impulsivos e traduzem as sensações no mesmo estágio de espontaneidade
e graça das crianças e dos selvagens.

Para Thérèse Delpech (2006: 113), que discorre sobre o assunto em El retorno a la
barbarie en el siclo XXI, o fauvismo marca não só o nascimento da arte do século XX , mas vem
citado dentre os acontecimentos capitais que ocorreram no mundo em 1905 nas ciências e nas
artes. No capítulo intitulado “Nacimiento de la modernidad”, a autora destaca três
acontecimentos decisivos na história das ideias:

En Física, la publicación en Suiza de la teoría de la relatividad, junto


con otros três escritos de Albert Einstein, provocaria una revolución
[...]. En la história de la pintura, 1905 fue el año de la primera
exposición de los Fauves (feras) en el Salón de Otoño de París. [...]. Por
último, em 1905, se publicó en Viena una obra crucial de Freud, cuyo
pensamiento influenciaria a tal punto el siglo que no resulta excesivo
hablar del siglo del inconsciente.

Não é propósito desta investigação resenhar os acontecimentos que, como esses que
irromperam junto às vanguardas, passam a compor a história em paralelo às propostas que
revitalizam as artes plásticas e a literatura no decorrer do século XX. Importante tarefa é
relacionar essas manifestações artísticas que contribuíram para representar momentos decisivos
da vida dos povos, sobretudo os medos da humanidade na iminência das guerras, das
arbitrariedades políticas, das catástrofes ecológicas, mas também das épocas de grandes
descobertas que beneficiaram a humanidade. Tais representações na arte e na literatura têm
permitido a sucessivas gerações participar da cultura e da memória cultural, pondo assim em
processo a tradição e dando continuidade, afinal, à história da condição humana.

É de 1913 a obra Totem e Tabu, de Sigmund Freud, em que se insere o capítulo


“Animismo, Magia e Onipotência das Ideias”. Com base em Herbert Spencer, Frazer, Lang,
Taylor e Wundt, Freud expõe, em suas Obras Completas (1958: 453), todas as informações
possíveis que recolheu desses autores sobre o animismo e a magia:

Ao considerar que a maioria dos autores está disposta a admitir que essas representações
da alma constituem o núcleo originário do sistema animista, que os espíritos correspondem a
almas que se tornaram independentes e, mais, que as almas dos animais, das plantas e dos
objetos foram concebidas analógicamente às almas humanas, Freud lança a indagação sobre
como os homens primitivos chegaram às concepções fundamentais, propriamente dualistas, em
que se ampara o sistema animista. Em suas hipóteses e em busca de possíveis respostas, Freud
(ibidem: 455) supõe que isso se deva à observação do fenômeno do sono e do sonho e por
extensão à morte, ideia que é até hoje “aceita com dificuldade”, senão “vazia e inapreensível”:
caracterizada pela narrativa como a “eterna viagem” (pg.56).
Quando o primitivo reage, ante os fenômenos que lhe excitam a reflexão, com a formação
das representações da alma e as transfere sobre os objetos do mundo exterior, considera-se esse
seu comportamento como muito natural e não mais enigmático.

Considera-se, pois, a relevância das ideias que Freud destaca de Wundt, segundo as
quais, “nos povos mais diversos e em todas as épocas coincide a existência das mesmas
representações animísticas” e tais representações seriam o produto psicológico necessário da
consciência criadora dos mitos. Quanto ao animismo primitivo, este deve ser considerado como a
expressão espiritual do estado natural da humanidade, tanto quanto é este acessível à nossa
observação (ibidem: 455).

Freud afirma ser essa “primeira concepção humana do universo” uma “teoria psicológica”. Não
obstante, o autor admite não terem sido ainda devidamente esclarecidos os pormenores da
relação entre o mito e o animismo.

Nessa direção, caberia ao autor do texto literário representar a natureza pela via da
imitação (imitatio, em latim), ou seja, da mimese aristotélica, entendida como ação de
reprodução ou representação da natureza que fundamenta toda a arte.

Diante do exposto, consolidamos nossa afirmação quanto ao desempenho indispensável da


literatura como arte da representação da realidade. Como manifestação da arte, o texto literário
pode ser interpretado à luz do conceito aristotélico de verossimilhança, segundo o qual, existe
uma lógica entre os elementos constitutivos da narrativa, de tal sorte que, se os acontecimentos
narrados não ocorreram, estes poderiam ter acontecido. Reforçam-se, portanto, algumas ideias
anteriormente aqui lançadas.

Tratar do elemento insólito na ficção é resolver uma questão conceitual, ainda que seja
lugar comum para os iniciados nas literaturas em língua portuguesa e hispano-americana. Falar
do realismo mágico, realismo fantástico ou realismo maravilhoso, como é conhecido no Brasil e
entre latino-americanos, portanto, não constitui mais novidade alguma.

Diante do propósito de se estudar uma teoria que aproximasse países distantes em épocas
diferentes e nos dias de hoje, pelo tratamento do insólito na literatura e pela via do imaginário,
interessa-nos compreender os mencionados conceitos, o ‘realismo mágico’ e o ‘realismo
maravilhoso’ latino-americanos,
A problematização que advém do paralelo entre essas expressões teóricas representa uma
questão ainda não totalmente investigada pela crítica acadêmica.

'Humanismo', porém, não significa 'humanidade', mas 'homem'. As mulheres ainda vão
esperar muito tempo antes que os movimentos feministas comecem a lutar para incluí-las em
igualdade de condições no mundo dos 'seres humanos'. Segundo o filósofo Roberto Romano, em
seu livro Lux in Tenebris: meditações sobre filosofia e cultura,

"o mesmo Kant, que defendeu a saída corajosa da humanidade de seu


estado infantil, menor, mantém este último para a mulher" (ROMANO,
1987, p. 125).

Para comprovar o que diz, cita um trecho onde o filósofo do séc. XVIII define o estatuto
da mulher na sociedade:

“Para a [...] indissociabilidade de uma união, o encontro ocasional de


duas pessoas não basta; um elemento deve ser submetido ao outro, e,
reciprocamente, este deve ser superior para poder comandar e governar
[...] o homem deve ser superior à mulher pela força corporal e coragem,
a mulher, pela faculdade natural de submeter-se à inclinação que o
homem tem por ela, para dominá-la” (KANT apud ROMANO, 1987, p.
126).

Kant não está sozinho entre os grandes filósofos que destacam a inferioridade das
mulheres. Entre muitos outros como Platão, Kierkegaard e Schopenhauer, temos Hegel (1770-
1831), que na sua Filosofia do Direito diz:

“As mulheres [...] podem ser cultivadas, mas não foram feitas para as
ciências nobres, nem para a filosofia, nem para certas formas artísticas,
que exigem o universal. As mulheres podem ter pensamento, gosto,
elegância, mas o Ideal não lhes é acessível [...] Se as mulheres estão no
ápice do governo, o Estado corre perigo, pois elas não agem segundo as
exigências do Universal mas segundo inclinações e opiniões
contingentes [...]” (HEGEL apud ROMANO, p.126 e 131)

Se a mulher está distante do "Ideal" e do "Universal", não é possível estar em igualdade


de condições dentro de grandes conceitos como 'Homem', 'Humanidade' e 'Humanismo'. A
doutora em filosofia Rosa Maria Rodríguez Magda (RODRÍGUEZ MAGDA, 2007) estende a
crítica aos filósofos mais recentes, começando pela clara e reconhecida misoginia de Nietzsche e
incluindo, em sua crítica, autores considerados pós-modernos, referindo-se a uma ausência de
estudos sobre a mulher na História da Sexualidade de Foucault, embora ressalte a importância
desse autor para o pensamento feminista, ao 'esquecimento' da diferença sexual na noção de
corpo em Deleuze, ao uso que Baudrillard faz do 'feminino' como puro artifício a partir de uma
ritualidade masculina.

O feminismo do século XX foi precursor de mudanças significativas não apenas nas


relações sociais e políticas entre mulheres e homens, mas igualmente na filosofia e na teologia,
embora de formas bastante diferentes. 

A teologia, desde a Antiguidade, quase sempre se caracterizou por um pensamento


monoteísta com base filosófica transcendente, ou seja, uma base racional fundada numa visão
metafísica da existência de um ser superior que seria o Outro de todos os seres criados. Esse
Outro, Deus, entretanto, não fugia de uma concepção antropológica a partir dos parâmetros
masculinos, revelando assim seus limites ontológicos.

O feminismo na teologia desenvolveu-se a partir da segunda metade do século XX


inicialmente em alguns países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. As teólogas tomaram
consciência do quanto o Deus criador e todo-poderoso era cúmplice do bloqueio masculino de
suas reivindicações sociais, políticas e religiosas assim como expressão da opressão e dominação
sexual que viviam. O Deus anunciado em sua cultura e cultuado nas igrejas não era aliado da
emancipação feminina. Ao contrário, era usado como um entrave para as conquistas das
mulheres. A opressão feminina e a manutenção dos privilégios masculinos eram legitimadas por
uma ideologia religiosa que naturalizou certos papeis sociais e funções biológicas e as elevou às
expressões da vontade divina para a humanidade.

Diante da constatação crescente da dominação do ídolo divino masculino sobre suas


vidas, as teólogas feministas começaram a introduzir a metodologia da suspeita e da
desconstrução de conceitos teológicos (Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, Pecado, Bem
e Mal, Encarnação, Redenção etc.) para verificar-lhes a origem e a pertinência em relação à
experiência histórica e feminina. O feminismo teológico convida a pensar de novo as próprias
crenças e a situá-las a partir das necessidades dos diferentes grupos e dos diferentes tempos.

A teologia feminista desenvolveu-se na América Latina, África e Ásia a partir da década


de 1980. Seu campo de atuação social é limitado. As teólogas feministas não são aceitas nos
espaços institucionais dominados pelo clero e por pessoas convencidas da superioridade da
imagem patriarcal de Deus. Uma das batalhas atuais importantes das teólogas feministas na
América Latina é em relação ao poder religioso que domina os corpos femininos. Por isso,
introduzem a questão da dominação sexual na teologia, falam dos corpos destroçados pelo abuso
sexual, sua redução a um produto do mercado, sua culpabilização religiosa como instrumento de
manutenção da mesma lógica de dominação.

A teologia feminista é parte de uma revolução cultural dos séculos XX e XXI, uma
revolução que ainda está em seus primeiros passos. Se persistir nessa luta de desnudamento de
certos conceitos religiosos em favor da dignidade feminina, estará sinalizando um novo
momento criativo na história das religiões, visto que as mulheres estarão expressando dentro das
diferentes tradições religiosas sua experiência, seus valores e sentidos. É o movimento
caracterizado por uma teologia humanista como orientação filosófica.

Os acontecimentos narrados em Mãe, Materno Mar aproximam-se dos traços


espontâneos e violentos do fauvismo. São traços impulsivos, que aguçam sentidos no estágio
próximo à espontaneidade do homem simples e primitivo, das feras, mas que também traduzem a
graça e a espontaneidade da criança. Sensível, o autor passa a dar alma aos elementos simples da
natureza. Para revelar-nos que o animismo e a religião podem brotar mesmo de modo espontâneo
no texto literário. Próximo ao primitivo e à selvageria, o mundano interage com o sagrado. Pois
são esses escritores que tratam do insólito, das coisas sentidas, mas difíceis de serem explicadas
à luz da razão, que recriam mimeticamente o que Freud chamou de ‘a animação do inanimado’.

No sentido estrito da palavra, o animismo é a teoria das representações da alma; no


sentido mais amplo, a dos seres espirituais em geral. [...] O termo animismo serviu antigamente
para designar determinado sistema filosófico e parece ter recebido a sua significação atual de E.
B. Tylor. O que provocou a criação desse termo foi o exame das interessantíssimas concepções
dos povos primitivos, pré-históricos ou contemporâneos, sobre a natureza e o mundo.

O animismo é, para Freud, um sistema filosófico, dentre as três grandes concepções do


universo, a saber: a ANIMISTA (mitológica), a RELIGIOSA e a CIENTÍFICA. Dentre essas três
concepções, o primeiro concebido, o animismo, é talvez o mais criador e o mais lógico e também
o que explica, integralmente, a essência do mundo. Assim,

“sem ser ainda uma religião, o animismo implica todas as


condições preliminares sobre as quais são construídas todas as
religiões” (ibidem).

Sobre o animismo ou “teoria psicológica”, diz o autor (ibidem: 456):

“[f]oge ao nosso propósito demonstrar o quanto dela [da teoria


psicológica] ainda subsiste na vida atual, seja [o animismo]
depreciado sob a forma de superstição, seja ainda vivo, como
base da nossa linguagem, da nossa crença, da nossa filosofia”.

Como dinamizador do conhecimento, o animismo cedo encontra lugar nos estudos sobre
a criação literária, se o concebermos dentre as forças dinamizadoras das grandes concepções do
universo; a animista, a religiosa e a científica, tal como Freud assim o concebe.

Desafiadora continua sendo a arte de narrar para o escritor contemporâneo: como lidar
com o conhecimento científico, que se sobressaiu de modo exponencial na era da tecnologização
da palavra e, ao mesmo tempo, estabelecer as necessárias mediações entre a concepção científica
e as outras grandes concepções do universo: a animista (mito) e a religiosa, que sempre
estruturaram a vida do homem. Ser capaz de demonstrar o quanto o animismo ainda subsiste na
vida religiosa atual seja na forma de superstição, seja ainda vivo, como base da nossa linguagem
é, portanto, tarefa que se impõe para as representações artísticas, entre elas a literatura, no
presente século.

em sua correspondência com o chamado ‘realismo animista’ africano, de modo especial,


da África de língua portuguesa. Neste trabalho o enfoque será para a apreciação da arte de narrar
e da dinamização do animismo que se articula com a religiosidade em Mãe, Materno Mar
(2001).

É pela obra do escritor angolano Pepetela (2008), destaque na literatura lusófona, que
conhecemos a expressão ‘realismo animista’. Estudo recente sobre o termo vem sendo
desenvolvido pelo sul-africano Harry Garuba. Para o professor Garuba, a expressão ‘realismo
mágico’ não daria conta das representações identitárias dos mitos sul-africanos, é o que diz o
ensaísta ao referir-se à terra de Yoruba com a veneração à estátua de Sango, o deus do raio,
exemplos que são pontuais quando relacionados ao conceito de ‘materialismo animista’ (Garuba,
2003). De fato, trata-se de uma expressão que se complementa em seu caráter paradoxal, uma
vez que a palavra “materialismo” difere de “animismo”, palavra que vem do latim anima, alma, e
que corresponde à atitude que consiste em atribuir às coisas uma alma análoga à alma humana
(Costa e Melo, 1999).

Para análise do texto literário, apresenta-se aqui a hipótese de que o realismo-animista,


que se conhece pela mão de Pepetela e, a seguir, a expressão ’materialismo animista’, de Harry
Garuba, são conceituações teóricas que brotam de modo espontâneo na novela do escritor
Boaventura Cardoso. Rica em mistérios e sabedorias, talvez seja essa obra angolana uma das que
melhor exemplifique o animismo e a religiosidade nos últimos tempos. Tão cara à obra Lueji, de
Pepetela um de seus criadores, senão o seu precursor, conforme se observou, a expressão será
aqui examinada, portanto, em alguns de seus desdobramentos, à luz do que no início do século
passado Freud já assinalava acerca do animismo e da magia.

Não raros são os momentos em que o texto em seus mistérios e em sua trama narrada dá
conta das três grandes concepções do universo de que trata Freud, com destaque para o animismo
e a religiosidade. Para reafirmar que o bom escritor é aquele que transfere para o texto literário
os mistérios da vida humana, dos grandes acontecimentos da história, de heróis notáveis, mas
também de comunidades de aldeias sem mais virtudes do que as que se expressam pela graça e
pela simplicidade, pela convivência por vezes indistinta entre o humano e a natureza.

Além de narrar histórias em que os personagens centrais revelam  uma  capacidade  de
interpretar os sinais do mundo invisível, dos espíritos outros sobrenaturais. No plano simbólico,
tal feito é possível com o recurso a elementos cosmogónicos como o fogo,
intermediários hierofânicos, e cobras, águias, associados a outros elementos da natureza
em Mãe, Materno Mar. As festas apoteóticas constituem igualmente um aspecto comum. São
momentos que ocorrem no desfecho das histórias.
A percepção do homem africano que sacraliza os elementos permanece à margem da
compreensão nas bases do pensamento ocidental, como se a reflexão entre homem e cultura
fosse seu atributo exclusivo e como se natureza e cultura fossem fatores antagônicos.

Com a presença do insólito e de mistérios insondáveis, a novela de Boaventura Cardoso


deixa emergir o “realismo animista”, tal como esse conceito literário é proposto pelo angolano
Pepetela. Pela mesma via em que se alternam os sentidos, o texto deixa transparecer a aparição
da beleza ao sabor da razão e da ilogicidade, da simbiose entre sagrado e profano, entre tradição
e modernidade, entre grotesco e sublime, o que não se distancia do que propõe Harry Garuba
(2003) ao tratar do ‘materialismo animista’.

Na procura de um modo para chegar ao que o narrador quer dizer, o texto se constrói
mediante o conceito de animismo, evidenciando de modo muito espontâneo que existe mesmo
entre os angolanos uma tendência geral de conceber todos os seres da natureza como
semelhantes a eles próprios e a transferir essas qualidades também às coisas.

Desde que o filólogo e antropólogo alemão Wilhelm Bleek (1927-1875) cunhou o


conceito “bantu1”, pensando em uma certa unidade linguística de muitas línguas africanas sub-
saharianas, o termo bantu foi tomando cada vez mais proporções. Na África do Sul onde Bleek
esteve trabalhando como filólogo, antropólogo e político, os brancos começaram a chamar os
negros sul-africanos de bantu, de tal maneira que hoje em dia esse termo acabou com algumas
conotações racistas naquele país. Contudo, a nível intelectual, em muitos países se adotou este
conceito, com fins de investigações científicas ou de autoafirmações identitárias de parte dos
africanos da região. Nesta linha podemos situar os trabalhos do padre franciscano belga, Placide
Tempels, que desembocaram em seu multicitado livro “Filosofia Bantu”, publicado em 1945, o
qual abriu, por assim dizer, as investigações em filosofia africana. Outro dado irrefutável na
mesma linha é precisamente a apropriação oficial do “ser bantu”, por conta de alguns governos
de países do espaço linguístico bantu que, em 08 de janeiro de 1983, criaram o “Centro
Internacional das Civilizações Bantu (CICIBA)”, para promover as investigações
interdisciplinares sobre os povos bantu.

1
http://es.wikipedia.org/wiki/Lenguas_bant%C3%BAes
Agora na África do Sul, país onde se aplicou muito precocemente e de maneira racista, o
termo bantu, tem sido um dos lugares onde se tem feito distintas investigações afins. Pois em um
ambiente onde os autóctones, em sua maioria bantu, eram discriminados, marginalizados e
estigmatizados pela cor de sua pele, a tal ponto de ser negado a eles sua humanidade (ubuntu);
em um ambiente onde o branco era sinônimo da força (armas), do poder, do bem estar e do belo,
em detrimento do negro; em um país onde “negro era não apenas a ausência de luz na África do
Sul, mas a ausência de identidade”2; obviamente a reação dos nativos sul-africanos deveria ser
diversa: aceitar humilhações do homem branco e todos os valores “brancos”, ou buscar uma
terceira via que, mutatis mutandis, poderíamos definir com uma analogia ao personagem de
Shakespeare “Caliban”; aprender os valores e a língua impostos, para logo servir-se deles para
operar uma “transmutação axiológica” (ROIG,1991 pg.51) dos mesmos. Muitas dessas reações
foram articuladas por alguns intelectuais e políticos sul-africanos como Steve Biko, Nelson
Mandela, Masolo, Desmond Tutu, entre outros.

Este último é também, como Mandela, prêmio nobel da paz. Este prêmio foi a apoteose
de sua luta contra o sistema do Apartheid, cujos muros foram derrubados pela abertura daquele
país ao multipartidarismo que levou à eleição de Nelson Mandela, como primeiro presidente
negro, em 1994. Sendo Tutu um bispo anglicano da etnia Xhosa, e conhecendo tão bem tanto a
cultura e a tradição de seu povo como a cultura e tradição dos brancos, tem funcionado como
uma verdadeira dobradiça na luta empreendida por seu povo, e logo na reconciliação de uma
África pós-apartheid. O fato de ser um pastor anglicano africano tem sido determinante na
elaboração de um pensamento arraigado tanto na tradição e cultura africana bantu, como na
tradição cristã anglicana. O conceito chave que tem manejado é o de “Ubuntu”.

Falando deste conceito, o expoente mais cabal do pensamento de Desmond Tutu, Michael
Battle aponta:

“Ubuntu é a forma plural da palavra africana Bantu, cunhada


por Wilhelm Bleek para identificar uma ligação linguística similar entre
falantes africanos. Ubuntu significa “humanidade” e é relacionada tanto
a umuntu, a qual é uma categoria da força humana inteligente que inclui
espítritos, os mortos humanos, e os vivos, como a ntu, que é o Ser de
Deus como metadinâmico (mais ativo do que metafísico). Tutu é do
povo Xhosa, e seu senso de ubuntu deriva da proverbial expressão

2
Battle, Michael, Reconciliation. The Ubuntu theology of Desmond Tutu, the Pilgrim Pres, Cleveland, Ohio, 2009, p.2.
Xhosa “ubuntu ungamuntu ngabanye abantu”, a qual, traduzida
significa “cada humanidade individual é idealmente expressa em
relação com outros” ou “uma pessoa depende de outras pessoas para
ser uma pessoa” (BATTLE, Op.Cit., pg.39)

Havendo uma unidade linguística comprovada entre os povos bantu, poderíamos


encontrar em quase todos estes povos, uma expressão similar. Assim por exemplo, em zulu se
diz: “umuntu ngumuntu ngabantu”; em mashi (língua falada no leste da República Democrática
do Congo) se diz: “O’muntu ajirwa n’owabo” (“a pessoa se faz no outro” ou “a pessoa é feita
pela outra”); em swahili (a primeira língua negroafricana e bantu que tem mais falantes) se diz:
“Mtu ni mtu kati ya watu” (a pessoa é pessoa no meio [ou em relação com] as outras pessoas).
Essas expressões ou ditados tem um campo muito amplo de aplicação, já que resume em si um
pensamento e uma prática ética que, nas sociedades africanas, são considerados como a base do
entendimento do ser humano e do humano mesmo. Muitas das traduções que tem sido dadas a
essas máximas são as seguintes “A pessoa é [faz-se] humano através de outras pessoas”, “Eu sou
eu porque nós somos” (Desmond Tutu), “Humanidade pelos outros”, “Uma pessoa é pessoa em
razão das outras pessoas”, “A crença é um enlace universal de compartilhamento que conecta
toda a humanidade”, etc...

Dessas concepções se desprende uma visão comunitária que assenta a comunidade


humana como base do ser, do existir e da realização de todos os seres humanos. Na prática isso
se traduz, por exemplo, na concepção de família na África. Esta não se reduz somente a papai,
mamãe e filhos, mas se estende aos demais membros distantes da família. Com efeito, é muito
comum na África escutar alguém presentear sua prima ou primo como sua irmã ou irmão. Outro
exemplo, é o que nos traz Buatu Batubenge em sua tese de doutorado 3, quando mostra que os
africanos resolvem seus problemas em comunidade, onde todo mundo tem direito à palavra. São
os “intermináveis palavreares” dos africanos. Na era do Multipartidarismo na África (anos 90)
muitos países lançaram mão a essa prática tradicional para buscar o consenso em questões muito
relevantes de seus respectivos países. Foram as famosas “Conferências Nacionais Soberanas
Africanas”. Um último exemplo que bem ilustra essa prática é o que concerne a suposta prática
de escravidão “intra-africana”. Segundo o congolês-brasileiro, Kabengele Munanga4 e segundo o

3
Buatu, Batubenge, Omer, Elementos historico-culturales en la construccion de la democracia para Africa y su importância
para America Latina. El caso de la Conferencia Nacional Soberana Africana (tesis doctoral en Estudios Latinoamericanos,
FFyL/UNAM, 2003)
brasileiro Eugênio Platão de Carvalho5, na escravidão “africana-africana” ou “intra-africana”
houve um forte sentido comunitário. Pois os cativos de guerras ou as pessoas “empenhadas” por
suas famílias, integravam a comunidade que as recebia, de tal maneira que com o passar do
tempo se convertiam já nos membros completos da dita comunidade. Desse modo, segundo De
Carvalho, o reino do Daomé se fortaleceu muito por todos os cativos de guerras que haviam
integrado completamente a comunidade daomeana. Tudo isso mostra a importância da
comunidade nas sociedades africanas. O mesmo que Tempels aponta, na sua “Filosofia Bantu”,
que o pior dos castigos que poderia acontecer a um muntu é ser excluído de sua comunidade6.

Esta visão comunitarista tem sido criticada por vários autores tanto africanos como
estrangeiros, e também tem sido abusada por alguns dirigentes “oportunistas” africanos. A crítica
mais importante consiste em “sacrificar” o indivíduo no aras da comunidade. Como nossas
propostas vão pela linha do pensamento de Tutu, pensamos com ele que se pode contestar a
partir de uma aproximação com a interdependência. Foi desta forma que Tutu transcendeu
algumas aproximações com a filosofia africana que, no seu afã da busca da “originalidade”
africana frente a uma imponente filosofia ocidental, tem ressaltado sobretudo o comunitário em
detrimento do individual. Tutu parte de um horizonte cristão, para respaldar seu pensamento.
Assim aponta Battle:

“Tutu enfatiza a definição cristã de relacionamento, como


oposta a outras formas de comunalismo, para definir ubuntu.
Profundamente influenciado pela espiritualidade Anglicana,
Tutu é capaz de superar a tendência da filosofia africana de ir
ao oposto extremo de monosprezando o indivídual pelo bem
da comunidade. Para ele, o ser propriamente relacionado à
teologia ubuntu não deprecia a individualidade. Ao invés
disso, constrói uma comunidade interdependente.”(BATTLE,
Op.Cit.pg.42).

Para Tutu, pois, a interdependência é primordial entre os seres humanos. Estes se


convertem em pessoas somente vivendo em um ambiente onde há uma interação entre diversas
pessoas e culturas. Isto leva a pensar, segundo Tutu, que se não existe tal ambiente, a pessoa não
pode sobreviver. Esta ideia “ubuntuista” da interdependência consagra um princípio fundamental
4
Munanga, Kabengele, Origens africanas do Brasil contemporâneo. História, línguas, culturas e civilizações, Ed. Global, São
Paulo, 2009, PP. 88-90.
5
De Carvalho, Platão Eugênio, A Conquista da África meridional e o tráfico de escravos para o Brasil, Grupo Editorial
Scortecci, Sao Paolo, 2007, p.86.
6
Tempels, Placide, La Philosophie bantoue, Éditions Africaines, Paris, 1949.
a partir do qual se entenderia o que alguns autores tem chamado “ontologia relacional”. Isto é,
um conceito que remete a uma inteligibilidade dos entes a partir da sua relação e não a partir de
sua substância, como havia acertado a metafísica tradicional.

A partir de lugares de enunciação distintos muitos têm conseguido superar a metafísica


tradicional ou substancial-aristotélica, a partir da aproximação da “ontologia relacional”. O
primeiro, Forester7, desde as aproximações da filosofía africana sobre o “Ubuntu”, enfatiza a
importância da intersubjetividade no processo de definição e apropiação de uma identidade; os
dois últimos, Peter8 e Bárbara9, por seu lado, a partir de um enfoque antropológico-teológico,
trazem alívio ao mistério da Santa Trindade, onde se vive uma feliz interdependência sem a qual
não se pode entender ao Deus de Jesus Cristo, ou o Deus cristão: o Pai não é o Filho, e o Filho
não é o Espírito, como tampouco este é o Pai e nem o Filho; mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo
não são senão o mesmo Deus. Através da encarnação do Deus-Filho, fomos feitos partícipes
dessa divindade, ou em outros termos, fomos incorporados na comunidade trinitária, isto é,
temos recebido o abraço trinitário, ou seja, do Pai, pelo Filho, no Espírito; por tanto, desde então
nossa identidade de filhos e filhas de Deus se definem a partir da relação entre Deus e nós, e
entre nós mesmos.

Em sua tese de doutorado, o filósofo-teólogo sul-africano Forester Dion aborda o ubuntu


a partir do enfoque da ontologia relacional. Frente ao dilema metodológico que tem sempre se
apresentado no momento de estudar as identidades, ele sugere o conceito de ubuntu como o
melhor ponto de partida. Pois, metodologicamente falando, muitos estudiosos das identidades
dos seres humanos têm partido, fenomenologicamente, desde um horizonte objetivista que se
resume no “tu és”, que se entende em termos levinasianos como a exterioridade ou a alteridade; e
a partir de um horizonte subjetivista que se resume na frase “eu sou”, que evocaria as
aproximações heideggerianos da mesmidade. Então, para resolver este problema, Forest pensa
achar no “Umuntu ngumuntu ngabantu”, uma via de saída, uma terceira via, por dizer assim,

7
O filósofo-teólogo sul-africano Forester A. Dion (obra de referência: Validation of individual consciousness in strong artificial
intelligence: An African Theological contribution [Tesis de doctorado en Teología sistemática], University of South Africa, June
2006).
8
O teólogo jesuíta alemão Peter Knauer (obra de referência: “Para comprender nuestra fé”, UIA Librería Parroquial, México,
1989).
9
A teóloga mexicano-alemã Bárbara Andrade (obra de referência: “Dios en medio de nosotros”, Secretariado Trinitario,
Salamanca, 1999).
para reaproximar a questão das identidades. Sendo um crente cristão, lança mão da antropologia
cristã e da teologia trinitária, e assevera que:

“[A] verdadeira identidade é ambos, definida por e descoberta no


relacionamento com outros. A expressão mais nítida desta realidade é
encontrada no provérbio africano Umuntu ngumuntu ngabantu [Uma
pessoa é uma pessoa através de outras pessoas] (Dion, A.Forester,
2006, pg. 218-326.)”.

Conceitualizando mais sua proposta, Forester formula algumas categorias para entender
melhor o Ubuntu: fala da objetividade, da interobjetividade, da subjetividade e da
intersubjetividade.

Fig.2 (Forester, 2006)

A objetividade e a subjetividade estariam no âmbito individual, enquanto a


interobjectividade e a intersubjetividade ficariam no âmbito comunitário; mas a objetividade e a
interobjetividade se entenderiam pura e simplesmente através da exterioridade, enquanto a
subjetividade e a intersubjetividade seriam inteligíveis através de uma interioridade, mas com
uma diferença muito importante: a subjetividade se entende a partir do que chamaríamos de
“mesma mesmidade”, enquanto a intersubjetividade se faz inteligível através de uma
“mesmidade comunitária” ou uma “mesmidade ‘nósica’”, parafraseando Lenkersdorf (2002).
Não é nem uma negociação da individualidade, mas ao invés disso uma forma de sua
inteligibilidade intersubjetiva. Isto é o Ubuntu que consagra o princípio da ontologia relacional,
porque o “eu” não se entende, não se faz, não existe, senão através do “nós”. O qual estaria nos
dizendo que o “nós” antecede metafisicamente o “eu”. Isto foi justamente o que descobriu
Lenkersdorf com os tolojabais, etnia maia falante da língua de mesmo nome.

Mas, neste autor encontramos algo mais. Ele explica da seguinte maneira:

“O NÓS enfatiza uma entidade grupal e não individual e o faz ao ser


empregado com uma frequência surpreendente, que nos faz chegar à
conclusão de que se trata de uma palavra-chave [nos Tojolabales]. No
intercâmbio grupal de ideias, cada um de seus participantes fala de
NÓS e não do EU. [...] cada falante sabe e respeita essa relação que
chamamos ‘NÓSICA’ e que orienta a todos até um acordo, em lugar de
que cada um fale por si mesmo, convencido de suas ideias para tragar
os demais em sua direção” (Lenkersdorf, Op.Cit. pg.31).

É precisamente esta ideia de “relação” que nos levaria necessariamente a pôr em cena o
deítico muito importante para a filosofia latino-americana: o “NÓS”.

Em seus estudos sobre os tojolabais, Carlos Lenkersdorf destaca uma peculiar maneira de
filosofar “nósicamente” que caracteriza este povo maia de Chiapas. O famoso “tik-tak” (nós-
eles) na fala desse povo remete sempre a dimensão “nosótrica” do seu viver e atuar. Este é um
viver e um atuar interdependente. Essa interdependência começa desde o nascimento porque:

“Desde o nascimento de uma pessoa a educação significa vivenciar o


NÓS. De cócoras, a mãe dá a luz à sua filha ou filho, rodeada pelos
adultos casados da extensa família. Uma pessoa com experiência e de
certa idade, mulher ou homem, faz o papel de parteira. A criatura uma
vez lavada, passa pelos braços de cada um dos familiares presentes.
Assim se realiza a aceitação no círculo do NÓS familiar ou se inicia a
educação sóciocêntrica, melhor dito nosocêntrica, se nos permite o
neologismo”(Lenkersdorf,C., Filosofar em clave tojolabal, Porrúa,
México, 2002, pg.84)

Esta prática é muito determinante quando se trata de entender essencialmente as pessoas. A partir
desta perspectiva que nos apresenta Lenkersdorf,

As grandes transformações e os avanços tecnológicos que caracterizaram o século XXI


trouxeram em seu bojo muitas vantagens e também grandes ameaças. A sociedade
contemporânea naufraga em um grande mar de desprovidos, de milhões de miseráveis do sul
subdesenvolvido. As injustiças sociais, o desemprego, a violência, a fome, as guerras e os
desastres ecológicos, por exemplo, apontam para uma situação degradante. O planeta inteiro
corre o risco de entrar em colapso.
Inúmeras pesquisas apontam que a doença do século XXI é o stress conjugado à
depressão, e isto ocorre como consequência do enfraquecimento das relações humanas e da
“obrigação diária” estabelecida pelo mercado de as pessoas provarem que são competentes.
Assistimos atualmente a um processo de enrijecimento gradual do individualismo. Os avanços
tecnológicos e o crescimento das cidades têm ocasionado o isolamento das pessoas em
detrimento do diálogo com o outro. Podemos caracterizar o homem deste início de século como
um ser isolado, preocupado consigo e longínquo da realidade ao seu redor.

Não queremos, ao apresentar os problemas citados acima, firmar uma acepção pessimista
sobre o homem atual, mas enfatizar como ele vem se distanciando de um princípio relevante para
sua própria realização enquanto ser humano, a relação. O homem atual restringe-se a proferir a
palavra-princípio Eu-Isto, colocando-se diante das coisas em vez de confrontá-las no fluxo da
ação recíproca, preferindo um relacionamento unidirecional entre o Eu (egótico) e um objeto
manipulável (Isto). Buber, contudo, posicionou-se de maneira radical quando ao analisar a
atitude Eu-Isto, para ele assim como para o Ubuntu “aquele que vive somente com Isto não é
homem” (BUBER, 1977:39).

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