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03/02/2021 Filosofia Africana e Saberes Ancestrais Femininos: útero do mundo

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Filoso a Africana e Saberes


Ancestrais Femininos: útero
do mundo
Acervo Online | África
por Adilbênia Freire Machado
3 de novembro de 2020

A filosofia africana traz encantamento ante o desencantamento


provocado pela filosofia ocidental. É vital tornar visível o
pensamento africano, afrorreferenciado

Comparo a mulher à terra porque lá é o centro da vida.

Da mulher emana a força mágica da criação.

Ela é abrigo no período de gestação.

É alimento no princípio de todas as vidas.


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É alimento no princípio de todas as vidas.

Ela é prazer, calor, conforto de todos os seres humanos na superfície da


terra.

 Paulina Chiziane

Um dia, quando ainda morava no sertão cearense, onde nasci sob luz de
lamparina e pelos braços da parteira Mãe Chica, a menina que me habita
acreditou que a filosofia fosse possibilidade de construir pensamentos e
práxis de libertação, onde a pluralidade de saberes, de culturas, de povos

fosse fonte para suas tessituras. Entretanto, ao chegar na Universidade


encontrei uma filosofia sem poéticas de libertação, patriarcal e racista! No
pensamento universal apresentado nas histórias da filosofia, nas
metafísicas, éticas, teorias do conhecimento, dentre outras “disciplinas”,
não se viam / conheciam filosofias negras, femininas… ou seja, o
pensamento ocidental instituía-se como universal colocando os povos
africanos, assim, também, seus descendentes, à margem do pensamento.
Marginalizando e invisibilizando, também, o pensamento das mulheres, o
feminino. Dizia-se que só era (é) possível filosofar em alemão! E esse
alemão é branco, masculino e heteronormativo.

O desencantamento do mundo provocado pela filosofia que se aprende nas


universidades levou-me a um questionamento que mudou todo o meu
percurso e acabou por trazer-me, finalmente, o encantamento do mundo…

Perguntei-me: como será a filosofia em África? Como filosofar em


pretuguês, como nos ensina Lélia Gonzalez?
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Vale lembrar que não conhecer não quer dizer que não exista, portanto, é
necessário e urgente que outras filosofias façam parte da história da
filosofia, para que assim ela possa ser ensinada de modo diverso, plural,

inclusivo. É imperativo, também, que as mulheres filósofas sejam


reconhecidas como parte dessa história.

Mulheres de Serra Leoa, África Ocidental (Crédito: Annie Spratt/ Unsplash)

A filosofia africana traz, então, encantamento ante o desencantamento


provocado pela filosofia ocidental. É vital tornar visível o pensamento
africano, afrorreferenciado. Desse modo, compreendo que a(s) filosofia(s)
africana(s), africano-brasileira, afrorreferenciada, implica-se na busca do

rompimento com a colonialidade que não acabou com o fim das diversas
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rompimento com a colonialidade que não acabou com o fim das diversas
colonizações de países europeus no continente africano e no Brasil.
Implica-se com valorização e re-conhecimento de nossos saberes, de
nossas culturas, de nossas filosofias, de nossos corpos. Re-conhecimento
de nossas escrevivências. Pois, como nos ensina Conceição Evaristo, nada
nasce imune ao que somos, as nossas vivências e experiências. Negar
nossas escrevivências é seguir negando nossas filosofias, nossos saberes
produzidos por corpos vivos, produtores de conhecimentos.

Nesse sentido, quero seguir o texto dialogando com os saberes ancestrais


femininos. Dialogando com a filosofia africana desde e com vozes de
mulheres, discutindo, brevemente, o feminino que habita em todas as

pessoas. Assim, esses saberes apresentam-se como fonte de


potencialização de nossas existências, de nossos saberes, de
pertencimento, de ancestralidade e encantamento.

Partindo dessa perspectiva, cada pessoa é constituída pelas energias


femininas e masculinas. É importante trabalharmos para mantê-las em
harmonia. Entretanto, é a energia feminina que contém a cabaça da
existência, cabaça que gera, cria, co-cria. O feminino é o útero do mundo,

potência da vida comunitária, coletiva, pautada pela justiça e pelo bem


viver. Carregamos toda uma ancestralidade que nos permite ser, existir,
resistir, re-existir, assim, somos ancestrais, nossos corpos são ancestrais,
portanto, sagrados. Desse modo, nossa existência só é possível em contato,
em relação com a natureza. Sem ela não somos. A ancestralidade é a
natureza. Assim sendo, os saberes ancestrais femininos nos ensinam que
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devemos voltarmos à terra, pois ela é o centro da vida. Voltarmos ao centro


da terra é ouvirmos nossa ancestralidade, encantarmo-nos com essa
escuta, uma escuta sensível que tece nosso ser-tão. É a escuta de nosso
útero.

A escuta sensível inicia-se com a escuta de nossa intimidade, portanto, de


nossa ancestralidade, de nossos corações. Não é apenas ouvir, mas sentir,
perceber, encantar-se. Viver de dentro para fora, reconhecer o valor de

nossa existência e, assim, reconhecer o valor de todas as existências. Ouvir,


sentir, perceber as outras pessoas em uma relação de cuidado e com-
partilha. Pois, a filosofia africana é pautada pela ética do cuidado.

Essa escuta privilegia o corpo como produtor de sentidos, de


conhecimentos, corpo ancestral, assim re-conhecemos suas singularidades
diante do coletivo que permite nossa existência. Nosso corpo é suporte de

nossas vivências, experiências e sabedorias, de nossos sentidos, ele cria


textualidades, reinventando a vida, potencializando o encantamento.

Portanto, a escuta sensível não apura apenas nossos ouvidos, mas nosso
olhar, nossos modos de perceber, conhecer, sentir. E assim, podemos
apreender a poesia, o sagrado que nos habita, encontrarmos as poéticas de

encantamento oriundas da escuta ancestral, que também permite ouvirmos


a criança que há em nós.
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Os saberes ancestrais femininos são tecidos pelo conhecimento de nossa


natureza, da natureza que há em nós, conhecimento de nossos ciclos, da
nossa potência criativa, do nosso poder de permitir e potencializar a vida.

Os saberes ancestrais femininos são a escuta da água que há em nosso


útero, pois é escuta de nossa ancestralidade.

Essa escuta do nosso corpo ancestral tece o nosso ser-tão. Conhecer esse
ser-tão é conhecer nossas entranhas, movimentar a energia que há em nós
e é desse movimento que a vida se origina, que o conhecimento se dá. É,
também, conhecer a sacralidade de um corpo natureza. O exercício de

pertencer ao mundo e ser grata pela vida, nos desfazendo diariamente das
inferiorizações que o racismo, o patriarcado, o epistemicídio, o genocídio e
o feminicídio nos impõe. Ter o conhecimento como cura e, assim,
potencializador da nossa força (energia) vital que nunca é única, pois
carrega uma comunidade inteira. Somos o útero do mundo!

O feminino é a potência da reinvenção… da criação, do re-criar, do


ressignificar, do co-criar. Como a água que se transforma, que forma, que
flui, que desconstrói para reconstruir, que dá vida… O feminino é o ser de

corpo inteiro, desde o útero, desde a possibilidade de toda e qualquer


existência humana… Sabedorias fonte da própria vida.

A compreensão de um tempo outro que se dá de modo integrado, pois


d i d d
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somos uma grande teia, onde passado e presente movimentam-se


continuamente na busca da construção de um futuro melhor, tecido pelo

bem viver. Nossa história é potência, vivência, experiências… é movimento


de cada coisa dentro de um todo, respeitando as singularidades, as
diversidades em meio a unidade.

Nossa origem é circular, é o círculo uterino de nossa mãe que nos acolhe
não apenas durante nove meses… a circularidade é, pois, um padrão da
cultura tradicional africana. O círculo não exclui, tem como características
a integração, a horizontalidade, a ligação, a relação uterina, a relação

maternal navegando em suas águas. A barriga / cabaça / útero que nos


acolhe quando estamos nos preparando para estrear no mundo é repleta de
água… simbiose com o mundo que está fora, mediado pelas
cosmossensações maternais (para além de nossas mães biológicas)… somos
complementos… O que entra no interior de um círculo já o compõe. E tudo
que compõe um círculo está integrado em roda, onde cada elemento se
relaciona com o outro, complementando-o. Somos cabaças da existência.

Nesse sentido, as filosofias da ancestralidade e do encantamento que tecem


as filosofias africanas são bordadas pelo pertencimento. Pertencimento é
construção, formação e escuta uterina e, assim, descoberta do que está
inscrito em nosso íntimo, é ouvir o ritmo de nossos corações. É entender

nosso eu interior e compreender o mundo, a vida desde esse pertencimento


que é coletivo, enraizado, que é ser-tão. Assim, implica-se na saída do não
lugar, do não ser, não pertencer, sempre em uma perspectiva coletiva. Pois
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Filosofia Africana e Saberes Ancestrais Femininos: útero do mundo

definimos nossa existência pelo comunitarismo e pela justiça social, ou seja,


ancestralidade e o encantamento.

Aprendi desde a escuta sensível e o encontro com meu ser-tão, que segue
em movimento, que não existe conhecimento, que não existe filosofia sem o
feminino! A ancestralidade é feminina… e o encantamento só existe desde a
escuta ancestral.

Os saberes ancestrais femininos propõem que nos autorizemos a contar


nossas histórias, a construí-las, reconstruí-las, contar sobre nossos
valores, nossos saberes, nossas lógicas de pertencimento, de sociedade, de
partilha, contar sobre nós mesmas, desde nossas escrevivências. Filosofar

anunciando, resistindo, re-existindo, em um desafio cotidiano de


descolonização, desconstruções, transformAções e encantamento!
Aprender a ouvir / sentir / conhecer / filosofar de corpo inteiro, desde o
chão que pisamos e que nos fortalece, é enraizar-se. O enraizamento é um
movimento de expansão, fixação, movimento e profundidade, absorção da
água para manter a energia vital… não há vida sem a água. O feminino é o
útero, a cabaça, a água que permite a existência.

A ancestralidade guia, cuida, cura, encanta e encruzilha… A encruzilhada é


lugar de encontros / encantos, desencontros / desencanto, é lugar da
diversidade, da transforma-Ação, da ética do cuidado, da escuta sensível,
do enraizamento… É uterina!

Adilbênia Freire Machado, filósofa, mestra e doutora em Educação. Autora


do livro “Filosofia Africana: ancestralidade e encantamento como
inspirações formativas para o ensino das africanidades”. NACE / Rede
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Africanidades / Rede Brasileira de Mulheres Filósofas / ABPN

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Vanda Machado
Encantamento filosofia e arte de viver mulher. Felicidade é receber
este presente literário.
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Adilbênia Machado
Querida Vanda, tu és uma encantada que me ensina essa
arte de ser-viver! Gratidão imensa!
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Mineia Clara
Affff, que lindo ler essa mulher!! Gratidão 🐝 🌼
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Adilbênia Machado
Gratidão e um grande abraço!
Curtir · Responder · 9 sem

Mariana Bracks
Texto maravilhoso! Damos graças à força ancestral feminina!
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Adilbênia Machado
Graças! Graças e todo axé!!!
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Euzébio Mossini
Posicionamento e reflexão com muita oportunidaade e validade
Descurtir · Responder · 1 · 12 sem

Adilbênia Machado
Gratidão!!!
Curtir · Responder · 9 sem

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