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IDENTIDADE E COMUNIDADE
AFRICANA NO BRASIL
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se de apresentar argumentos e discursos produzidos e legitimados pela ciência
no período dito “das Luzes”, o Iluminismo, e que se perpetuaram desde então.
Conforme Fage (2010, p. 7-8) na primeira metade do século XIX, Hegel
(1770-1831), em sua obra Filosofia da História, defendeu que “a África não é um
continente histórico; ela não demonstra nem mudança nem desenvolvimento”.
Essa concepção representava a África como um continente habitado por seres
desprovidos de inteligência, dominados pelos instintos primitivos, naturais,
portanto, ali era impossível a existência de história e cultura.
O filósofo Voltaire (1978, p. 61), em sua obra Tratado da Metafisica, buscou
descrever/compreender o que é um homem, na perspectiva filosófica. Em sua
incursão filosófica, demonstra profundo desprezo, rejeição e desumanização em
relação aos africanos/negros. Ele define o homem negro/africano como:
Não somente sua cor os distingue, mas eles diferem dos outros homens,
pelos traços de seu rosto, narizes largos e chatos, lábios grossos, lã no
lugar dos cabelos, que parecem constituir uma nova espécie de homem.
(Voltaire, 1978, p. 62)
São brutos sem razão, sem inteligência e sem experiência. Eles não têm
absolutamente nenhuma noção do que quer que seja. Eles assim vivem
como as bestas, sem regras e sem lei. (Cohen, 1981, p. 24)
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desprezível. Essas narrativas nos mostram de maneira digna sobre a organização
política, a beleza, riqueza dos povos africanos.
Conforme Munanga e Gomes (2006, p. 32), entre os séculos IX e XI,
viajantes árabes e europeus descreviam a África e os africanos com imagens e
narrativas autênticas contemplando as diversas realidades culturais, naturais,
políticas, sociais. Ainda segundo o autor, muitos deixaram relatos expressando
admiração com as formas de organização política, “altamente elaboradas e
socialmente aperfeiçoadas, entre as quais se alternavam reinos, impérios,
cidades-estados e outras formas politicas baseadas no parentesco, como chefias,
clãs, linhagens etc.”.
Nesse sentido, o viajante alemão Barth, em 1800, narra suas percepções
sobre uma cidade da África ocidental, com o seguinte relato:
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Segundo Nascimento (1994) “os hieróglifos eram grafados em papiro,
contraste com a escrita cuneiforme da Babilônia, registrada em pedra ou barro,
materiais duráveis”.
Conforme Ki-Zerbo (2010,) a produção de novos saberes sobre a história
da África e os povos africanos ficou ainda mais difícil a partir do século XIX,
quando na Alemanha é instituída uma concepção de trabalho/científico
historiográfico fundada sobre a análise estrita e precisa de fontes escritas.
Outros intelectuais também argumentavam sobre a inexistência de história
dos africanos anterior à chegada dos europeus. Para Nascimento (1994, p. 29),
essa concepção se difundiu porque “a história africana convencional foi escrita
com base em documentos exógenos”.
Assim, a compreensão histórica acerca dos povos africanos, a partir de
uma perspectiva afirmativa, requer um olhar analítico/interpretativo com lentes
produzidas pelos próprios africanos, isto é, olhar que ao mesmo tempo é de dentro
e de fora.
Essa perspectiva, pode ser sintetizada pelas palavras de Serrano e
Waldaman (2007, p. 16), quando defendem que a realidade africana seja
compreendida “a partir dos próprios pressupostos civilizatórios [...] pensar o outro
de modo que deixe de constituir um objeto para tornar-se sujeito de dado processo
social”.
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ter se dispersado para os vales dos rios Tigres e Eufrates. (Van Sertima, citado
por Nascimento, 1994).
Referindo-se ao desenvolvimento africano, Cunha Junior (2010) destaca
que até o século XVI há uma diversidade de conhecimentos presentes na África
e ainda ausentes na Europa. Segundo ele, alguns conhecimentos técnicos e
tecnológicos foram desenvolvidos dentro do continente africano, outros foram
adquiridos pelo intercâmbio com a China, Índia e países árabes.
Do mesmo modo, Nascimento (1994, p. 25) corrobora que as “tecnologias
de mineração e metalurgia, [...] a medicina, as ciências, a medicina, a matemática,
a engenharia, a astronomia, enfim, todo um cabedal de conhecimento tecnológico
caracterizava os estados africanos”. Todavia, isso não significa que todos os
povos africanos possuíam as mesmas habilidades e que estavam no mesmo
patamar de conhecimentos, portanto, nem todos sabiam lidar com cobre, ouro,
ferro.
Para Silva (2008, p. 1), “o conhecimento da metalurgia do ferro na África
Central é bastante antigo”. A relevância do ofício de ferreiro é evidenciada nos
mitos produzidos sobre eles, nos quais a figura central do ferreiro remete à
realeza, ao poder e ao universo simbólico, sobrenatural. Conforme a autora, a
concepção e o interesse dos africanos da África Central se diferenciavam dos
europeus, cujo interesse se restringia à questão econômica/lucrativa com os
minerais.
Nessa reflexão sobre a relação de alguns africanos com a metalurgia,
Nascimento (1994) contribui argumentando que os povos aya, de fala banta,
produziam aço em fornos que atingiam temperaturas próximas aos quatrocentos
graus centigrados, superando os fornos europeus até o século XIX. A autora
salienta que esse fenômeno foi estudado por quase uma década pelo antropólogo
e historiador Peter Schmidt, junto com os aya. A antiga tecnologia de fundição foi
reproduzindo a partir da tradição oral guardadas pelos anciãos.
No campo da saúde, o grego Hipócrates foi legitimado e consagrado até
hoje como “Pai da Medicina”, entretanto, estudiosos e pesquisadores contestam
essa reverência, afirmando que o verdadeiro “Pai da Medicina” foi o cientista e
clínico egípcio Imhotep, que quase 3 mil anos antes de Cristo tinha domínio de
diversas técnicas básicas da medicina. Conforme Nascimento (1994, p. 25), o
documento que comprova esse saber é o papiro encontrado por Edwin Smith:
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De fato, o papiro Edwin Smith comprova a existência de uma medicina
objetiva e científica destituída de teorias e magia, com uma exceção só,
e fundamentada na atenta e repetida observação do paciente, na
observação clínica, e num conhecimento da anatomia de que, até o
momento, ninguém suspeitava. (Newsome citado por Nascimento, 1994,
p. 25)
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em pesquisas contemporâneas, revela que “os sistemas teológicos e filosóficos
gregos também se originaram no Egito, em que vários escritores [...] como
Sócrates, Platão, Tales, Anaxágoras e Aristóteles estudaram com sábios
africanos”.
Para fundamentar seus argumentos, Nascimento (1994) referencia George
G. M. James (1954), que documenta o fato de que, na verdade, grande parte
desses conhecimentos foi levada embora.
O eurocentrismo buscou de todas as formas possíveis ocultar, destruir e
pilhar toda e qualquer evidência de progresso e desenvolvimento que
posicionasse o continente africano num estágio mais avançado em relação à
Europa. Por isso, durante muito tempo foram construídos imagens e discursos
que tentaram retirar o Egito da África, “inventaram uma suposta raça vermelho
escura, para não dizer que lá viviam negros” (Nascimento, 1994, p. 44).
A tentativa de apagamento da civilização egípcia e dos conhecimentos
produzidos e disseminados pelo mundo foi uma constante na História da
Humanidade. Não é estranho que no imaginário popular, e mesmo em alguns
locais culturais (museus), o Egito seja posicionado como país branco, em que
suas invenções foram transferidas para as “verdadeiras civilizações”, ou seja,
europeus-gregos.
Assim, há uma nítida negação do que foi a civilização egípcia, como bem
analisa Nascimento (2001), quando diz que:
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p. 45) argumenta que “a religião esteve presente no exercício do poder, na
aplicação das normas do convívio do grupo, na garantia da harmonia e do bem-
estar da comunidade”.
Até aqui, evidenciamos três elementos que conferem semelhanças às
sociedades africanas; além desses, podemos conhecer outros. Conforme Serrano
e Waldan (2007, p. 137) nas sociedades africanas existe o pressuposto de um
“sistema de forças – incluindo deuses, ancestrais e mortos de linhagens”. Tais
valores existem auxiliam na organização dos espaços (étnico, clânico, das
linhagens e do aldeão).
Ainda segundo os autores, o “sistema de forças” cria uma hierarquia das
estruturas sociais, elegendo “critérios de ancianidade”. Assim, o ancião
desempenha um papel fundamental na organização social dos povos africanos.
Segundo Leite (1996, p. 109), “os ancestrais negro-africanos constituem,
juntamente com a sociedade e sem dela separar-se, um princípio histórico
material e concreto capaz de contribuir para a objetivação da identidade
profunda”.
A ancestralidade é conceito difícil de ser fechado em uma única definição.
Com apoio de Oliveira (2007, p. 257), que nos mostra várias dimensões que esse
conceito abarca, em síntese, podemos compreender que a ancestralidade é “uma
categoria de relação, ligação, inclusão, diversidade, unidade encantamento. [...]
Indica e esconde caminhos. A ancestralidade é um modo de interpretar e produzir
a realidade”.
Na concepção de Lopes (2004, p. 59), ancestral remete a antepassado e
“para o africano, o ancestral é importante e venerado porque deixa uma herança
espiritual sobre a Terra, contribuindo assim para a evolução da comunidade ao
longo da sua existência”.
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REFERÊNCIAS
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