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Educação

Africana
Núcleo de Pós-Graduação

ARTE E CULTURA
AFRICANA
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 5
1. ARTE AFRICANA ..................................................................................................6
2. TRADIÇÃO ORAL AFRICANA ............................................................................. 19
3. ORALIDADE E FOLKCOMUNICAÇÃO.............................................................24
4. GRIÔS: A REINVENÇÃO BRASILEIRA.......................................................30
5. O CURRÍCULO PARA OS VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRICANOS......39
REFERÊNCIAS………………………………………………………………………………………………………………..47
INTRODUÇÃO

O presente material é uma coletânea reflexiva que contextualiza as


questões a cerca dos aspectos relativos a cultura e arte africana .

Compreender, conhecer e reconhecer a importância da arte, da


oralidade e suas influências na constituição de um povo e na preservação de
suas tradições é legar ao mesmo sua continuidade, sendo assim não podemos
minimizar em fragmentos sua real construção.
Como propósitos educacionais temos a reflexão critica da diversidade na
construção de um currículo que privilegie os valores da cultura africana e seus
saberes.

Bons estudos!
Profa Fátima Lefone
1. ARTE AFRICANA

Fernando Augusto Albuquerque Mourão, em seu texto “Múltiplas faces da


identidade africana”, coloca o quão genérica é a designação “arte africana”
como aglutinadora de vários gêneros, uma vez que os fundamentos que
conhecemos da arte africana podem até ser comuns a todo um continente, mas
cada grupo cultural apresenta suas próprias especificidades. Os estudos sobre
a arte africana, durante longo tempo, ora davam primazia a aspectos
particulares, ora privilegiaram aspectos globais, ambas as opções norteadas
por conceitos em que a arte africana surge como objeto. Importante se torna,
para a análise de suas manifestações, a instauração de um espaço de reflexão
que possa atender à multiplicidade da arte africana.
Ao nos utilizarmos de uma terminologia para denominar ou classificar as
manifestações artísticas africanas, é importante lembrar que, segundo Stuart
Hall (2003, p. 31), o próprio termo África é uma construção moderna, que
segundo o autor é referente à “uma variedade de povos, tribos, culturas e
línguas cujo principal ponto em comum situava-se no tráfico de escravos”.
Ainda Stuart Hall afirma que a categoria “raça” não é científica, mas também é
uma construção política e social (2003, p. 69), ou seja, discursos que atuam a
serviço dos interesses de um determinado sistema social. Essa advertência de
Stuart Hall nos situa também no campo das representações estéticas africanas,
que foram catalogadas por alguns anos segundo princípios e terminologias
ocidentais a partir do tráfico dos escravos e intensificadas no período da
colonização, quando missões colonialistas em nome da ciência iam à África e
recolhiam os objetos estéticos para fins de estudo e curiosidade, ou
estranheza.
Nessa medida, seguindo Clifford Geertz em “A arte como sistema cultural”,
há uma grande necessidade de nos desfazermos de certos juízos de valor e
termos pejorativos que envolvem a nossa noção ocidental de selvagem,
primitivo, falta de linguagem e a-cultura, por exemplo. Ainda Roger Somé
lembra que esses conceitos tentavam impor ao pensamento ocidental, que o
africano era um povo sem cultura, sem estética, sem escrita.

Consideradas como culturas sem escrita alfabética e sem história


datada, os objetos recolhidos dessas culturas foram expulsos do
campo estético. Em resumo, as culturas aparecem como civilizações
sem. Avaliados pelo viés negativo, foram classificados como
selvagens ou semi-civilizados. Nessa época, em meio a uma grande
controvérsia, alguns políticos e intelectuais chegaram a sugerir a
abertura no Louvre, museu do Estado, de uma ala para abrigar os
objetos recolhidos dos povos selvagens. (ANTONACCI apud SOMÉ,
2003, p. 25)
Também Kabengele Munanga, em um esclarecedor texto, denominado “A
dimensão estética na arte negro-africana tradicional”, aborda justamente a
posição de exclusão a qual passou por muito tempo a arte negro-africana em
relação a um panorama de história universal da arte. Ao olhar canônico
europeu, o modelo estendido à grande parte do globo, a arte africana era ainda
primitiva, bem como o povo que a produzia. Dentro do esquema de
pensamento evolucionista predominante no século XIX, por exemplo, essa arte
aparecia como uma infância figurativa, que somente após muita evolução
chegaria ao estilo intelectual, abstrato e geométrico que se encontrava a arte
da Europa, considerada pelos filósofos da época como civilizada. Vista como
uma produção apenas mágico-religiosa, toda a sofisticação estética e a
potência informativa presentes na arte negro-africana eram simplesmente
negadas. Munanga, por ocasião da exposição comemorativa do centenário da
abolição da escravatura no Brasil, escreveu:

Partindo do inventário crítico das principais obras de arte produzidas


pelas diversas populações que compõem esta exposição
comemorativa do centenário da abolição da escravatura no Brasil,
pudemos analisar os significados e os papéis reservados a cada
objeto tomado em particular dentro do contexto original. Nossas
observações discordam da opinião da maioria dos autores ocidentais
sobre a origem da arte negro-africana, por eles afirmada como sendo
“mágico religiosa”. Estamos de acordo que a arte de um povo não é
construída no vazio e mergulha na vida profunda desse povo. É
através de sua arte que um povo projeta sua visão global da
existência. Tentar explicá-la essencialmente pelo mecanismo
religioso, tentar afirmar que o aspecto religioso era a preocupação
original dessa arte ou que está presente e predominante a qualquer
momento, parece um julgamento exagerado e a priori. (MUNANGA,
1988, s/p).
Célia Antonacci Ramos (2008) ainda lembra que sem realizarem um estudo
sistemático da cultura e da arte africana, os colonizadores logo criaram
definições verbais para classificar os africanos e suas expressões de
linguagem. E completa nas palavras do sociólogo José Machado Paes:

Nas definições verbais, o que conta é a significação dos nomes. Elas


traduzem uma notável capacidade de criar etiquetas. Esse processo
de etiquetagem origina realidades representacionais, discursivas,
mitificadas. Para o sociólogo, devemos ficar atentos ao que
representam as palavras, as coisas e os conceitos (...) e não
confundirmos conceitos com preconceitos (2004, p. 9-10).

A partir desses conceitos e pré-conceitos acima citados, percebemos que


se instaurou e persiste toda uma controvérsia em torno da arte africana, onde
as diferentes posições metodológicas sustentadas por pesquisadores, críticos,
museólogos e estudiosos ocidentais somadas à dificuldade de conversão das
conclusões, divide opiniões sobre a dimensão estética da arte negro-africana,
que acaba negada por uns, aceita por outros, modificada por muitos, mas
lembrando sempre que a visão ocidental utiliza-se do filtro de sua própria
cultura e de sua própria visão estética para entender e estudar a arte do outro,
que tem posições, inclusive, muitas vezes incompatíveis com a visão de mundo
ocidental. Como diz Jolly:
O olhar sobre a fotografia africana parecia em todos os pontos com o
olhar lançado sobre as outras formas de arte africana: deveriam ser
suficientemente intrigantes, mágicas, divertidas e, sobretudo exóticas
e primitivas para merecer o olhar do Ocidente e, no máximo, um
bilhete de segunda classe no trem da história da arte”. (JOLLY,
2004/2005, p. 218- 265).

A história da arte africana, sobretudo, as pesquisas realizadas nos últimos


anos, vem buscando situar a produção artística das culturas africanas sob uma
perspectiva relativista cujas abordagens históricas de cada povo, nação, reino,
enfim, de cada cultura do imenso continente africano revela produções de alta
definição estética e técnica. Sob essa ótica a arte africana não pode ser
definida apenas como uma arte de princípios e funções utilitaristas pelas
temáticas estreitamente remetidas à natureza e à religião, mas como uma arte
muito próxima do cotidiano onde a experiência estética e a noção de
contemplação se confundem e se associam com a vida diária fazendo do
produto artístico uma parte da vida.
É necessário revisar uma série de ideias formuladas de antemão sobre o
primitivismo (RUBIN, 1984,). Até recentemente, peças tribais eram mantidas no
máximo em museus, coleções, coletâneas etnográficas e butiques, sendo que
seu contato com o público europeu era muitas vezes voltado ao estudo
científico, com o intuito de entender a cultura para dominá-la. Apenas a partir
da Segunda Guerra Mundial, a disciplina de História da Arte voltou sua atenção
a esse material. Estudos acadêmicos sobre o assunto ainda são raros, e entre
os poucos menos ainda são por parte de estudantes do modernismo (RUBIN,
1984, p. 1). No Brasil, a Lei 10.639/2003 é um reflexo da urgência de estudar
seriamente a cultura africana e pode ser considerada um marco nos estudos
culturais, especialmente, da história, da representação e da arte africana, afinal
a “bibliografia disponível para o ensino da Arte é omissa no que se refere à arte
africana e incompleta quanto à arte afro-brasileira” (SILVA, 1997, p. 44).
O discurso sobre arte africana sofre ainda alguma confusão no tocante a
definição de primitivismo. A palavra usada primeiramente na França, no século
XIX, se referia a uma arte pré-renascentista ocidental, aludindo a momentos
anteriores diversos tais como a arte bizantina (RUBIN, 1984, p. 2) quando,
segundo o consenso da época, nas artes ditas “primitivas” prevaleciam a
imitação, a simplicidade e a sinceridade em relação a uma arte europeia já
“evoluída”, representada com recursos de perspectiva, efeitos de iluminação e
equilíbrio, por exemplo, concepções de estética grega. Tal linha de
pensamento tem seu início com Da Vinci em sua hierarquização das Artes,
relacionando-as com o nível técnico das comunidades que as produzem
(SILVA, 1997, p. 46). Esse pensamento que considera a pintura como a
primeira das artes, posiciona os negros como artistas inferiores, à medida que
se “limitavam” à escultura. Com Hegel, em sua Filosofia da História, a
apreciação estética da produção africana parece ainda mais distante, quando
desconsidera que os africanos tenham história. Na citação escolhida por Dilma
de Melo Silva (1997, p. 46), Hegel afirma explicitamente: "A África não é um
continente histórico, ela não demonstra nem mudança nem desenvolvimento
(...) Os povos negros são incapazes de se desenvolver e de receber uma
educação. Eles sempre foram tal como vemos hoje”. Neste tipo de pensamento
é claramente visível a influência do positivismo e do funcionalismo do século
XIX. “A incompreensão habitual do europeu pela arte africana está à altura da
força estilística desta última: essa arte, entretanto, não representaria um caso
notável da visão plástica?”
Acontece que, justamente esse caráter escultórico, além do ideal de
“retorno à natureza” o qual transmite o termo “selvagem” ou “primitivo” foi o que
chamou a atenção e conquistou artistas que almejavam se contrapor à busca
pelo refinamento e todo o preciosismo que vigorava no universo burguês do
século XIX. A arte do século XIX, para muitos artistas, parecia “superatenuada”
e pouco expressiva (RUBIN, 1984, p. 2), e assim, na arte de civilizações
antigas ou distantes (tais como Pérsia, Egito, Índia, Java, Peru, Camboja, etc.)
os artistas acreditavam encontrar mais poder e energia. Igualmente os alemães
ligados ao Die Bruck, movimento de Artes Plásticas desencadeado na
Alemanha durante as primeiras décadas do século XX, ao afirmarem em seus
catálogos a necessidade de se buscar o instinto, as causas viscerais das
emoções, substituíram a representação do rosto humano por estéticas de
máscaras africanas (SILVA, 1997, p. 46). Assim, descobriu-se que, raramente,
salvo na arte negra, havia sido formulada uma maneira tão própria de criação
artística e assinalados com tanta clareza problemas precisos de espaço
(EINSTEIN, 1915, p. 30).
O texto Negerplastik, de Carl Einstein, é um precioso documento que
registra o interesse dos artistas modernos pela escultura africana. O texto é de
1915, e reflete uma consciência precoce por parte do escritor cubista, em
relação à arte africana, num momento quando qualquer informação sobre a
arte dos povos africanos era escassa na Europa. Roberto Conduru coloca a
obra Negerplastik como o primeiro livro a apresentar de modo livre de
preconceitos racistas os objetos provenientes da África, os considerando obras
de arte. Segundo Conduru, Einstein recusa desde o início a visão
preconceituosa dos africanos como seres inferiores e o falso conceito de
primitivismo. Assim, Negerplastik é simultaneamente um livro de história, crítica
e teoria; livro de arte da África, e de arte moderna.
Podemos pensar que as observações de Einstein sobre a obra de arte
africana refletem as preocupações formais e expressivas dos cubistas. A
frontalidade da obra africana, geralmente tida pela arte ocidental como estrita e
“primitiva”, é vista por Einstein como uma necessária apreensão pictórica do
volume (2002, p. 35). A tridimensionalidade concentrada em alguns planos
enfatiza as partes mais próximas do espectador, ordenando-as na superfície,
considerando que as partes posteriores são modulações complementares da
superfície anterior, que é enfraquecida em sua dinâmica. Reiteram-se os temas
dos objetos posicionados à frente (EINSTEIN, 2002, p. 35). Numa análise
formal como essa, Einstein admite o manancial de soluções formais que uma
obra de arte africana pode proporcionar às buscas cubistas por uma
desfragmentação, ou seja, pela dinâmica da forma. “Alguns pintores tiveram
suficiente força para se desviar de um métier feito mecanicamente”, diz
Einstein (2002, p. 38). Uma vez desligados dos procedimentos habituais, eles
avaliam os elementos da visão do espaço para encontrar o que bem a poderia
gerar e determinar. E são bastante conhecidos os resultados desse importante
esforço, descobriu-se a escultura negra e reconheceu-se que ela havia
cultivado as formas plásticas puras (EINSTEIN, 2002, p. 38).
Einstein, mesmo em meio a um contexto escasso de informações
etnográficas precisas, percebeu a escultura negra como representante de “uma
clara fixação da visão plástica pura” (2002, p. 44). Para os olhos ingênuos, a
escultura, cuja tarefa é restituir a tridimensionalidade, aparece como algo óbvio,
pois ela trabalha a massa, propriamente definida pelas três dimensões
(EINSTEIN, 2002, p. 44). Ou seja, sobre os anteriores e já fixados cânones
formais e a impressão de “perfeição mimética”, que temos da representação
artística europeia, é apenas uma visão acomodada, à qual nosso olhar parece
estar “viciado”. Nas palavras de Einstein: “As soluções europeias (confrontadas
à estatuária africana) nos são familiares ao olhar e somente convencem de
modo mecânico e por hábito” (2002, p44).
Como pudemos ver, qualidades do dito “selvagem” foram assim
amplamente admiradas por artistas modernos, como Van Gogh e Paul
Gauguin, tendo este último se auto-proclamado um selvagem. Mas é
importante lembrar que um sentido de “primitivo” mais exclusivamente
relacionado ao tribal somente aparece no século XX.
Quando nos reportarmos à arte tradicional africana, aquela arte anterior às
transformações coloniais, é fundamental lembrarmos que as esculturas
africanas não tinham uma finalidade meramente estética, tampouco adquiriam
autonomia como esculturas através da sua qualidade de objeto, mas estavam
sempre relacionados ao ritual para o qual haviam sido elaboradas. Assim,
enquanto na arte ocidental o ciclo da arte se completa no reino estético da
exposição, nas tradições africanas, ao contrário, o significado só se completa
quando agregado aos outros objetos, aos cantos e danças, isto é, às
performances sagradas. Quando se busca uma comercialização do objeto, ou
a sua exposição em outro contexto que não o sagrado, há um fim para essa
estratégia de (de) sublimação, deslocamento contínuo do objeto, que atribui
maior significação aos códigos não visuais e às ações performativas em
particular, por meio de jogos de palavras e de fórmulas aforísticas,

Por exemplo, as máscaras africanas esculpidas. Muitas não foram


feitas para serem contempladas, mas para serem usadas em
cerimônias rituais, sociais e religiosas. Estas máscaras não podem
ser entendidas separadas dos rituais, como se fosse obra de arte. A
máscara é parte da cerimônia. Quando os cubistas usaram as
máscaras africanas na pintura, retiraram delas o seu contexto e delas
só restou a forma. (MARQUES, 2001, p. 2).
A obra de arte ocidental trabalha no interior de um sistema fluído de trocas
e de relações entre o objeto, o artista e a audiência. Na arte africana dois
elementos atuam em consonância, a obra e a ideia da obra. Não existem
sistemas independentes, um necessita do outro. Ao tornar subitamente
contingente o estatuto do objeto africano como significante autônomo, como na
arte ocidental, perdemos seu significado sagrado, para valorizarmos sua
estrutura formal, sua qualidade estética. Exemplos já aqui citados como
Picasso e outros modernistas. Percebemos então, o quão fica difícil conciliar a
arte negro-africana com a concepção de estética ocidental, bem como a
comparação entre culturas de uma maneira geral é um trabalho complexo e
arriscado. Mas como já foi dito anteriormente, esse intercâmbio precisa
acontecer, e se pensarmos pelo ângulo que Einstein pertinentemente coloca, “é
precisamente o acordo essencial entre a percepção universal e a realização
particular o que produz de fato uma obra de arte” (2002, p. 34).

Um aspecto da cultura Igbo exemplifica: “Toda coisa material é


acompanhada por outra coisa, essa imaterial, que não pode ser vista.”
(ENWEZOR, 1999, s/p). Na base material, a arte africana encontra-se
centralizada no objeto, mas em seu significado e intuito, é paradoxalmente
antiobjeto e antiperceptiva, ligada a veiculações de ideias onde a fala ou a
comunicação verbal são altamente valorizadas.

Na arte tradicional africana, a máscara não representa uma realidade


material; o artista procura antes aproximar-se de uma realidade
espiritual nela contida, através de imagens sugeridas por formas
humanas e animais. (JOLLY apud KAYODE, p. 38)

Willian Rubin, ao defender o senso de arte entre os povos africanos


afirma que:

etnólogos podem talvez argumentar que eu estou falsamente


atribuindo aos artistas tribais um senso ocidental de fazer-arte, que
um escultor tribal criando objetos para culto não possui consciência
de qualquer solução estética claramente baseados no fato de muitas
culturas tribais não terem uma palavra para a arte. (...) Mesmo que
isso fosse provado verdade, não contradiz meu argumento de que a
busca por soluções artísticas é, de forma elementar, antes uma
atividade intelectual”. (RUBIN, 1984, p. 28)

Também Cunha, citado por Dilma de Melo Silva (1997, p. 47), sobre a
estética Yoruba, afirma a existência de dezenove conceitos em Yoruba para
apreender a realidade estética. Dentre eles, jijora - semelhança ao modelo,
equilíbrio entre o modelo e a abstração da cópia; ifarahon - visibilidade do
plano de trabalho; gigun - arranjo e simetria na escultura; odod - representação
do indivíduo em pleno vigor; tatu - serenidade, compostura, harmonia. Nesse
ponto nos perguntamos, como ENWEZOR, “será que pode se falar em um
conceitualismo africano? (1999, s/p). Considerando a complexidade das
questões de percepção que constituem princípios organizativos fundamentais,
a arte conceitual, tal como é pensada nos Estados Unidos e na Europa
Ocidental, e por assimilação acadêmica, também aqui no Brasil, parece excluir
a África. Tal exclusão segue a lógica predominante de desqualificação do
pensamento estético africano dentro de uma discussão ampliada de
modernismo. Apesar das diferenças de modernidade no contexto mundial, esse
conceito histórico de arte continua fortemente enraizado em numerosas
atividades institucionais e epistemológicas.

Se considerarmos a reivindicação pela arte conceitual, tendo em vista o


estágio das linguagens artísticas dentro do projeto modernista, e a sua
valorização institucional como o avanço artístico mais significativo do século
XX, depois do cubismo, deve-se então reconhecer também o quão esse passo
pode ter sido 22 ocasionado pelo contato dos primeiros modernistas com as
esculturas africanas, contato esse que oferece alternativas para a superação
do impressionismo e da arte europeia clássica.

A África desempenhou um importante papel na História da Humanidade,


uma vez que, neste continente foram encontrados os primeiros vestígios do ser
humano na terra. Através desta constatação fica evidente que as produções
artísticas dos diversos povos africanos, é uma das mais antigas do mundo. Há
estudos que comprovam a existência de pinturas rupestres na Namíbia que
datam vinte mil anos; e que no norte da Nigéria, no primeiro milênio a.c, já se
produziam esculturas de terracota.
A arte africana possui características que lhes são peculiares. A obra
aparece como um bem coletivo útil e sagrado, no qual está inserido no
cotidiano das pessoas que a produz; o “belo” deve ser apreciado por todos; e
não por um grupo seleto, como acontece na sociedade ocidental.
A arte ocidental é uma criação individual, em que o artista tem que
expressar toda sua individualidade para se destacar dos demais.
As características tão singulares da arte africana fizeram com que durante
muito tempo ela fosse vista pelo ocidente como uma "arte inferior". Não se
considerou o fato de que a arte por ser produção humana, é diversa. Os
ocidentais analisavam a obra de arte africana dentro dos seus próprios
parâmetros, dentro da sua concepção do "belo universal". Mas, como afirma o
professor Sodré: "A arte africana é uma outra forma de manifestação da
sensibilidade humana, tão variável quanto à diversidade cultural do nosso
planeta”. · Ou segundo Salum:
'Étnica', religiosa – toda arte ameaçada pela anulação dos seus
autores é codificada de simbólica. Porém, a arte de origem, da África,
e a arte negra do aqui-agora constituem uma criação ontológica, e
não social propriamente. É uma arte em que a figura humana é plena
e revestida de totalidade. Ideológica ou não, sua genuidade está na
reflexão-do-homem sobre- o-homem-pelo-homem, dentro de um
ideário cultural, sim, o que não quer dizer que não haja diferenças na
arte negra, tradicional ou moderna – nem da África, nem do Brasil.
Isso explica o problema da individualidade na arte africana e na arte
negra, sempre considerada em seu caráter 'coletivo' sociológico, e
por isso diminuída em seu valor estético-artístico na concepção
branca-colonial-europeia..
No tocante, a História da Arte pode-se perceber que geralmente a arte
negra africana não aparece nos livros de História da Arte, e, quando aparece
não é contextualizada lhe são atribuídos adjetivos como; “fetichista, primitiva,
exótica”, exceto a arte egípcia, que apesar do Egito ser um país do continente
africano, os ocidentais durante muito tempo o trataram como “não-África” e,
quando começaram a tratá-lo como um país africano, tentou induzir a um
pensamento de que os povos egípcios eram “superiores” aos demais povos
africanos.
No século XIX, irá se intensificar a difusão de teorias como a do filósofo
Hegel, em que ele afirmava que a "África não tem história". Outros teóricos
afirmavam que as manifestações artísticas como as construções arquitetônicas
dos grandes reinos africanos, por exemplo, foram feitas por outros povos que
não africanos.
Muitas dessas teorias criadas no século XIX, ainda permeiam o
pensamento ocidental na atualidade. Muitos historiadores da arte, ainda se
deixam influenciar por essas concepções de “inferioridade da arte africana”:
Outro ponto importante, é que devido ao fato da arte africana e a
religiosidade estarem intimamente interligados, criou-se segundo Price: “... a
difundida ideia no ocidente de que os povos das chamadas sociedades tribais
não têm consciência de sua própria história da arte, nem conversam
especificamente sobre ela”.
Pode-se notar que a arte africana durante muito tempo ficou excluída do
cenário da arte ocidental; e no momento em que ela começou a fazer parte
desse cenário, foi de forma estigmatizada. Os grandes artistas considerados
“mestres da arte universal” como o Picasso, Cézanne e o Mondiglianni, criaram
obras em que são perceptível nitidamente traços da arte africana, como é caso
da Mademoiselles D‟Avignon, obra do Picasso considerada o ícone do
Cubismo, que possui características estéticas das Máscaras Africanas. Ainda
assim; ao invés de levar em consideração que esses artistas tenham se
deixado influenciar por uma arte que traz uma outra releitura do belo, uma
forma diferente de interpretar o mundo, e que eles foram privilegiados por ter
essa sensibilidade, coloca-se esse fato como uma espécie de “apoio” para a
arte africana. Mas vale evidenciar o que Sodré afirmou sobre essa questão:
"Vale ressaltar que, apesar da sensibilidade do mestre Picasso vislumbrar na
produção estética africana um potencial inovador, a arte africana já era arte por
suas características contextuais e parâmetros artísticos”.
A experiência artística e estética de nossas realidades culturais, onde, na
maioria dos casos, a arte é legada à função de um especialista e a apreciação
estética é entendida como algo que demanda tempo, conhecimento elitizado e
vocação, não pode ser integralmente transferida às culturas africanas onde as
artes gráficas e plásticas se encontram, de modo muito particular, mescladas
com expressões estéticas menos tangíveis como a literatura, a música e arte
dramática e nelas encontram plena significação enquanto produto artístico,
cultural e social, pela maneira como são envolvidas nessas expressões
artísticas. É importante ressaltar que o que faz da arte uma vivência cotidiana
nestas culturas é o aspecto social, pois a constituição da arte está intimamente
ligada à celebração da vida em situações que são significadas pela coletividade
e se manifestam plenamente em simples aspectos como a pintura dos corpos,
a vestimenta ornamentada e preparada para um fim específico ou mesmo os
adereços minuciosamente confeccionados segundo um apuro estético que
diverge de cultura para cultura dentro do próprio continente africano.
Entendendo que os aspectos culturais e sociais estão intrínsecos na arte de
uma dada sociedade, é imprescindível que, ao apresentar, analisar e refletir
sobre esta arte se considere a realidade sociocultural nela circunscrita. Esta
verdade universal é válida para toda a arte de toda cultura e é, portanto,
indispensável que se verifique a situação produtiva além do produto. O padrão
de beleza artístico adotado num nu feminino hoje, por exemplo, não seria
facilmente relativizado de acordo com a abordagem barroca ou neoclássica, da
mesma maneira como para nós hoje seria custoso aceitar como belas certas
construções estéticas do barroco, onde mulheres de formas muito
arredondadas despontavam como indicadores de um ideal de beleza para as
construções estéticas do artista, da obra em si e do público de então,
recordando aqui Antonio Candido, para o qual a obra de arte tem uma “forma
orgânica” e a sua constituição estética leva em consideração a dinâmica de
trocas ou relações que existem entre artista, obra público, inerentes da cultura,
da sociedade e do período histórico preciso através de uma interação social
(CANDIDO, 1980: 21).
Outra situação que nos leva a uma interessante reflexão quando aludimos à
condição sociocultural da arte, pode estar, por exemplo, na busca da
compreensão do modo pelo qual um heleno – homem grego da antiguidade,
para quem a arte se liga mitologia buscando definir a partir dela a perfeição das
formas na imagem de deuses e deusas além da natureza pura e relacionando
esta ideia de beleza ao equilíbrio da proporção das partes com o todo – reagiria
ao ver uma mulher pintada de azul ou com o rosto propositalmente alongado
como as pintava Modigliani (1884 – 1920) em sua estética revolucionária da
beleza feminina.
O consenso social, portanto, é algo diferente em cada período histórico nos
quais a arte se liga. Há uma realidade social e cultural da qual a arte é parte
concisa e possui uma função social a partir do momento de sua concepção,
com o resultado de uma dada organização cultural. No caso da arte africana,
em suas múltiplas linguagens, manifestações e padrões culturais, isto não é
diferente, trata - se de produções conectadas a culturas organizadas que
demanda conhecimento a cerca da realidade cultural de sua criação e
reconhecimento da ideia de arte como manifestação da vida cotidiana. É
preciso que se considere a arte na realidade cultural da África como propõe
Herskovits (1964:179), como uma manifestação que prima pelo todo
embelezamento da vida cotidiana, comum e que conseguido com habilidade de
saberes e experiências especificas.
Nesse sentido, merece muita atenção o aspecto múltiplo e dinâmico da
arte e da cultura africana que envolve estas criações numa ideia de
singularidade que é impossível dentro de um continente tão vasto. As
expressões “arte africana” e “cultura africana”, cunhadas corriqueiramente,
soam de maneira redutora no sentido de amalgamar uma produção técnica
enormemente vasta cujas expressões estilísticas e ontológicas s ão ainda mais
variadas. Uma simples observação imediata já nos revela a notoriedade da
existência de distinções quanto às formas de produções, isto é, as culturas, e
os produtos, ou seja, a arte. O emprego de domínios técnicos e estéticos
diferem tanto por conhecimento e por experiências culturais de cada reino ou
sociedade da África tradicional, quanto pela preferência dos artistas, neste
caso entendendo que a arte pode ser resultado da competência técnica de um
criador sobressaído, inepto como também da atuação de muitos expectadores
numa elaboração estética que envolve a plasticidade e o grafismo das
produções africanas em outras expressões estéticas como a oralidade, a
performance e a música.
Uma proposta pedagógica da arte africana dentro da arte -educação
deve assinalar a sua circunscrição histórica, geográfica e cultural com a mesma
preocupação com que situa uma obra de arte do renascimento cultural europeu
às suas conexões históricas, sociais e culturais marcando as questões que
pontuam especificidades estéticas alusivas à época e a cultura. Em outras
palavras, o educador tem a função de contribuir para a quebra de visões
maniqueístas que permitam singularizar as artes das sociedades e reinos da
África ou caracterizá-las como “arte primitiva” ou “selvagem”. O tratamento
pluralista destas manifestações estéticas e artísticas contribui para a quebra de
visões redutivistas e etnocêntricas que rotulam os produtos culturais africanos
como uma arte única diante do mundo além de se inserir numa forma de
resgate destas produções historicamente minimizadas pelas ideologias que se
foram construindo desde o renascimento europeu e que culminaram na
escravidão destes povos nas Américas e na colonização do continente
africano.
Para Ana M. Barbosa, a situação política e conceitual do ensino de arte
deve receber o estudante como conhecedor em formação: “o que a arte na
escola principalmente pretende é formar o conhecedor, fruidor, decodificador
da obra de arte.” (1996: 32). Faz-se imprescindível, contudo, que essa
formação seja estimulada a partir de proposições muito relativistas
independentemente da origem e função da arte, fazendo do ensino de arte uma
porta para o conhecimento e o reconhecimento da habilidade técnica e da
estética de cada cultura. Continua a autora: “uma sociedade só é altamente
desenvolvida quando ao l ado de uma produção artística de alta qualidade há
também uma alta capacidade de entendimento desta produção pelo público”
(idem: 32).
A singularidade da ligação existente entre a arte e a sua realidade
cultural nas sociedades da África é um aspecto com o qual a arte - educação
precisa urgentemente aprender a lidar. Pesquisas podem publicar da dos
antropológicos, sociais, estatísticas econômicas e revelações revolucionarias
quanto a realidades culturais e artísticas da África, entretanto, ao educador,
cabe um papel indiscutível que pode funcionar plenamente independentemente
destes dados – embora venha a se tornar mais fortemente argumentativo
quando embasado neles – que é o de agenciar o conhecimento de cada
especificidade cultural com olhares relativistas, praticar o conhecimento da arte
africana e patrocinar tal conhecimento nas salas de aula possibilitando a arte
como forma de expressão que requer uma educação para ver, analisar,
compreender e se posicionar frente a estes estímulos visuais quebrando
estereótipos existentes que sintetizam os elementos simbólicos e materiais
destas artes a partir de visões redutivistas ou preconceituosas.

2. TRADIÇÃO ORAL AFRICANA

A história dos povos africanos era transmitida oralmente. Era


pacientemente passada de boca a ouvido, de mestre a discípulo ao longo do
tempo. De modo geral, a importância maior da fala sobre a escrita está
presente ainda hoje na cultura de muitos povos, nos vários cantos do planeta.

“Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a


oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural,
durante muito tempo julgou-se que os povos sem escrita eram povos
sem cultura. Felizmente esse conceito infundado começou a
desmoronar. [...] Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo
foram o cérebro do homem”. (HAMPATÉ BÁ, 1982,181).
A oralidade dessas sociedades desenvolve a memória e fortalece a
ligação entre homem e palavra. A fala é considerada divina, pois é a força
criadora. E tradição oral africana não se limita a narrativas lendárias ou
mitológicas. Ela está ligada ao comportamento cotidiano das pessoas e da
comunidade, aos fatos históricos que marcam a vida de um povo. Ela é ao
mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação a arte, história,
divertimento e recreação.
Por exemplo, ao fazer uma caminhada pela mata e encontrar um
formigueiro, um velho mestre terá a oportunidade de ensinara aos mais jovens
de diversas maneiras. Pode falara do próprio animal e da classe de seres a que
pertence ou pode demonstrar como a vida em comunidade depende da
solidariedade. Assim qualquer acontecimento pode ser aproveitado para
desenvolver vários tipos de conhecimento.
A memória das pessoas que vivem em sociedades orais, é maior que a
dos indivíduos das sociedades letradas. Nas sociedades da costa ocidental
africana, os membros responsáveis pela transmissão das tradições
(conhecimento repassado por uma cadeia de ancestrais) têm uma memória
extraordinária, e aprofundam seus conhecimentos durante toda a sua vida.
Os guardiões da tradição oral africana são os tradicionalistas (doma
em bambara) são os detentores do conhecimento transmitido pela tradição oral
de sua sociedade.
Estes domas conhecem a ciência “das plantas”, “das terras”, “das
águas”, e também as ciências astronômicas, biológicas, cosmogonias e
esotéricas – que consiste em saber como entrar em relação apropriada com as
forças que sustentam o mundo visível e que podem ser colocadas a serviço da
vida, pois o universo visível é concebido e sentido como o sinal, a
concretização de um universo invisível. Para Hampaté Bá todo este
conhecimento “trata-se de uma ciência da vida cujos conhecimentos sempre
podem favorecer uma utilização prática” na vida dos membros da sociedade”
(HANPATÉ BÁ, 1982, 188). São também conhecidos como mestres de ofício,
pois não dominam apenas as histórias e as ciências de seu povo eles também
a vivenciam, são, ferreiros, tecelões, sapateiros, marceneiros, lenhadores,
pastores de animais.

Mais do que todos os outros homens os domas obrigam-se a respeitar


a verdade, pois a fala, que é o instrumento de trabalho deste grupo, encontra-
se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia do
homem e do mundo que o cerca, a palavra pode criar a paz, assim como pode
destruí-la. Se forem pegos mentindo, não podem mais cumprir com suas
funções, porque desvirtuaram a palavra, a profanaram, usaram de forma
imprudente o conhecimento que lhe foi repassado por seus ancestrais.
Segundo Hampaté Bá:
“O que se encontra por detrás do testemunho é o próprio valor do
homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da
qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva
e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade [...]. É,
pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é
mais desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a
Palavra é mais forte. Lá onde não existe a escrita, o homem está
ligado à palavra que profere. Está comprometido com ela. Ele é a
palavra e a palavra representa um testemunho daquilo que ele é. A
própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela
palavra”. (HAMPATÉ BÁ, 1982, 182).

Outro grupo social que também trabalha com a palavra são os dielis –
chamados pelos franceses de griots. Estes são menestréis, trovadores,
responsáveis por entreterem o público. A poesia lírica, os contos e as histórias
são privilégio dos dielis. São classificados em três categorias: os músicos, que
tocam instrumentos, cantam, compõem e transmitem as músicas antigas; os
embaixadores, que mediam as negociações entre grandes famílias; os
genealogistas, que contam as histórias e genealogia das famílias e transmitem
as notícias da sociedade.
A tradição lhe confere um status social especial, gozam de grande
liberdade de falar – até de mentir se necessário – e tem o direito de receber
presentes – diferente dos domas. Essa liberdade com a fala os tornou
transmissores das mensagens dos nobres e dos reis, que não tinham o direito
de voltar a traz no que diziam.
Dieli é uma palavra da língua bambara, falada pelo povo africano que
habita principalmente as regiões do Mali, Senegal e Guiné-Bissau, e que quer
dizer “sangue”; e a circulação do sangue é a própria vida, como a palavra que
circula. De fato estes dielis circulavam pelo corpo das sociedades como o
sangue circula pelo corpo humano. Os dielis conhecem muitas línguas e viajam
pelas aldeia, escutando relatos, notícias e recontando a história das famílias.
A possibilidade de se tornar um tradicionalista está ao alcance deste
dielis, como de qualquer membro da sociedade, se suas aptidões o permitirem,
e se passar pelo processo de assimilação e aprofundamento dos ensinamentos
que recebeu desde a infância. Estes diélis passam a ser chamado de diéli-
faama, ou griô-rei, e abdicam dos seus direitos tradicionais de dieli, o direito de
mentir e receber presentes por seus préstimos.
A tradição oral e as características da memória africana não foram
afetadas pela expansão da religião islâmica no continente africano. De fato o
islamismo incorporou-se a essa tradição e seus ensinamentos e preceitos
passaram a fazer parte da memória africana e a serem transmitidos pela
oralidade.
Exemplo da manutenção dessa tradição africana, na costa ocidental
africana, com a chegada do islamismo é a permanência da grande memória
africana e as formas de sua transmissão oral, que como já vimos são feitas
pelos domas e pelos dielis. Logo que a população dessa região aprendeu o
árabe, passou a utilizar suas tradições ancestrais para transmitir e explicar o
islamismo. Escolas islâmicas na costa ocidental africana eram puramente orais
e os ensinamentos da religião eram repassados nas línguas vernáculas –
exceto o Alcorão e os textos que fazem parte das orações canônica, que eram
repassados em árabe.
O trabalho com as fontes orais para o estudo da história da África é de
suma importância. Os testemunhos de fatos passados conseguidos através
das fontes orais são tão confiáveis quanto os testemunhos conseguidos
através das fontes escritas, pois o testemunho segundo Hampaté Ba, “seja oral
ou escrita, no fim não é mais que testemunho humano”. Portanto um não é
melhor ou mais confiável que o outro, tem apenas a forma de transmissão
diferente.

TRADIÇÃO, MEMORIA E ORALIDADE

As atividades comunicacionais ligadas à transmissão oral estão


presentes nas relações humanas históricas em diversas sociedades, seja com
fins noticiosos, educativos, lúdicos ou na transmissão de tradições culturais,
por meio de narrativas contadas por homens e mulheres às gerações
predecessoras.
Da Europa medieval aos impérios feudais africanos e asiáticos, a
oralidade sempre possuiu forte respaldo social, político e religioso, pois o
manejo hábil das palavras era considerado uma espécie de dom e, quase
sempre, os signatários desta graça eram pessoas comprometidas com a
verdade, com as tradições e divindades de seu povo. Havia uma grande
preocupação na fidelidade dos fatos transmitidos e a manutenção da palavra
era questão de honra – algo de importância maior que a própria vida.
A invenção da escrita, numa primeira hora, não diminuiu o respaldo dos
mestres e sábios, detentores das tradições orais, pois além de pertencerem a
uma linhagem própria, com certas regalias, os escribas precisavam
constantemente recorrer a estes a fim de ouvir seus relatos para o devido
registro. Contudo, com o surgimento da imprensa, e os posteriores momentos –
industrial, científico-racional, iluminista e moderno – ocorreu, principalmente na
Europa, um questionamento das tradições, do divino e, por conseguinte, das
narrativas orais. Este ideário influenciou de modo determinante, o pensamento
acadêmico, inclusive as atividades escolásticas coloniais aplicadas pelas
nações europeias sobre o restante do mundo.
No noroeste africano, especificamente na região onde se situa o Mali, os
detentores e transmissores das tradições culturais, por meio da oralidade, são
conhecidos com djeli, mas foram nomeados com griots pelos colonizadores
franceses. Donos de um saber único e depositários da memória social das
tribos e grupos étnicos, os griots gozam de grande prestígio e credibilidade
entre os povos africanos, atuando como artistas, mediadores e noticiadores,
numa sociedade que valoriza e respeita indivíduos idosos, por estarem mais
perto dos ancestrais.
Recentemente no Brasil, iniciativas oriundas de projetos sociais voltados
à educação infanto-juvenil, na cidade de Lençóis – Bahia redescobriram as
tradições griots, suas práticas e procedimentos, aliando-as às suas ações
sócio-educativas. Ao incorporá-las e ressignificá-la dentro do contexto
brasileiro, estas tradições deram origem à Pedagogia Griô, divulgada por todo
o país devido à parceria entre o projeto Ação Griô Nacional e o Programa
Cultura Viva, do Ministério da Cultura, que integra também os Pontos de
Cultura.
Noticiadores, os griôs relatam fatos e acontecimentos e os compartilham
com outras localidades, por meio da oralidade, além de transmitirem saberes e
conhecimentos provenientes de outros períodos históricos. São também líderes
comunitários respeitados, com grande reconhecimento e executam funções de
diplomacia junto a outros grupos sociais. Todas estas características
posicionam os griôs num papel social que vai do intelectual orgânico, de
Antonio Gramsci (1982), ao agente folkcomunicacional, de Luiz Beltrão (2001).
No processo de ressignificação das práticas griôs, no modelo brasileiro,
a tradição vem sendo recriada, contando com o suporte tecnológico advindo,
em grande parte, das parcerias e apoios recebidos pelo projeto, principalmente
pelos Pontos de Cultura. Assim, a tradição oralmente transmitida pelos griôs
está sendo registrada e difundida por meios audiovisuais e hipertextuais,
complementado a oralidade.

3. ORALIDADE E FOLKCOMUNICAÇÃO

Antes do uso de qualquer sinal gráfico como forma de comunicação, o


ser humano recorreu ao gestual e à oralidade. Os primeiros sons evoluíram
para a linguagem oral, forma de comunicação que por séculos foi utilizada para
a manutenção das ciências e das tradições, tendo nos idosos a figura dos
guardiões, dos transmissores de um conhecimento acumulado por gerações de
antepassados e dos saberes e histórias preservados, em sua memória, como
patrimônio imaterial.
Em diversas localidades, de vários continentes, a atividade de ensino-
aprendizagem via oral era muito comum. De acordo com Pierre Lévi (1993),
bardos, aedos e griots aprendiam seu ofício escutando os mais velhos. Estes
anciãos possuíam grande respeito e consideração – características basilares
das sociedades orais. Segundo Amadou Hampátê Bâ (1982), as tradições
africanas consideram que quando um ancião morre, é como se uma biblioteca
se queimasse, se perdesse.
Atividade intrínseca à natureza fisiológica do ser humano, o uso
cotidiano da oralidade não foi alterado pelo desenvolvimento da escrita e da
imprensa. Contudo, em algumas sociedades, o conhecimento da escrita veio a
desvalorizar o saber transmitido oralmente. Pierre Lévy (1993) propõe uma
classificação na qual, segundo ele, existem sociedades com características de
oralidade primaria – onde ainda não há a escrita e a palavra possui função de
gestão da memória social e há sociedades em que a oralidade desempenha
um papel secundário, complementar ao da escrita, cujos textos, ao final, são os
que permanecem.

Numa sociedade oral primária, quase todo o edifício cultural está


fundado sobre as lembranças dos indivíduos. A inteligência, nestas
sociedades, encontra-se muitas vezes identificada com a memória,
sobretudo com a auditiva (LÉVY, 1993, p. 77)

Ainda assim, nas sociedades em que a escrita sobrepõe, formalmente, a


oralidade, a formação social, além dos muros das escolas, mantém forte
influencia da transmissão oral. Conselhos morais, doutrinamento religioso e
outras formas de transmissão do conhecimento permanecem ligados à fala
sábia dos mais experientes.
Não foram somente a institucionalização da educação e a escrita que
afetaram a credibilidade e o reconhecimento da oralidade. A invenção de novos
dispositivos de memória, mecânicos e posteriormente digitais, deram uma
sensação de maior segurança àqueles que se valiam do registro dos
acontecimentos. Assim, a função da memória e seu papel social foram
alterados, bem como foi alterada a importância dada àqueles que antes eram
os guardiões desta memória coletiva e que se valia da oralidade para sua
preservação e transmissão. Vale ressaltar que estes detentores e difusores do
conhecimento se encontravam dentro do mesmo contexto sociocultural de seu
conteúdo, facilitando o entendimento e a interpretação de suas mensagens. Os
novos dispositivos de registro necessitam de determinadas informações
prévias, a fim de evitar distorções na compreensão das narrativas.

Nas sociedades orais, as mensagens discursivas são sempre


recebidas no mesmo contexto em que são produzidas. Mas, após o
surgimento da escrita, o texto se separa do contexto vivo que foram
produzidos. É possível ler uma mensagem escrita redigida cinco
séculos antes ou redigida a cinco mil quilômetros de distância – o que
muitas vezes gera problemas de recepção e interpretação. Para
vencer essas dificuldades, algumas mensagens foram então
concebidas para preservar o mesmo sentido, qualquer que seja o
contexto (o lugar, a época) de recepção: são as mensagens
universais (ciências, religiões do livro, direitos do homem etc.). Esta
universalidade, adquirida graças à escrita estática, só pode ser
constituída, portanto, à custa de uma certa redução ou fixação de
sentido: é um universal totalizante (LÉVY, 1999, p. 15)

Enquanto os meios de comunicação, a academia e os historiadores


estudam os fatos, tradições e atores históricos à distância, por meio de
registros frios, quase toda interpretação feita acerca destes elementos,
opiniões e ações estão sujeitas a serem descrições imperfeitas, projeções da
experiência e do ponto de vista do sujeito que se propõe a compreender estes
fatos – uma forma erudita de ficção. Contudo, a evidência oral, transformando
os objetos de estudo em sujeitos, contribui para narrativas históricas que não
só são mais ricas e vivas, como são mais comoventes, mais verdadeiras.
(BOSI, 2009, p. 137). Por estes motivos, os pesquisadores que se utilizam da
escrita e dos meios mecânicos e digitais de registro histórico, continuam a se
valer dos estudos baseados em entrevistas e narrativas orais. A oralidade
permanece viva, mesmo, às vezes, sem o devido reconhecimento.

Dentre as formas de registro e transmissão de conteúdo, estão os meios


de comunicação. Eles se valem da escrita, das imagens e, na atualidade,
principalmente dos recursos orais para transmissão de suas informações e
valores. Vale lembrar que, mesmo quando utiliza a oralidade, estes meios
possuem grande respaldo diante da sociedade, por conta de sua difusão
massiva e capital cultural que possui.

A mídia se apropria da oralidade, das informações e fatos históricos e,


muitas vezes, das tradições e valores comunitários, num processo de
incorporação e conversão, posteriormente transmitindo-os conforme seus
interesses (SILVERSTONE, 1994). Contudo, comunidades e grupos étnicos,
culturais e tradicionais, em suas atividades cotidianas, inventam, recriam e
exercem sua própria comunicação, seus meios locais. Deste modo, mesmo os
conglomerados comunicacionais, difusores da cultura urbana dos grandes
centros do país – que adentram o cotidiano das comunidades e alteram parte
de seu cotidiano, de sua cultura – provoca, nestas comunidades, processos de
transformação e adaptação, mas geram também um movimento contrário de
resistência, de sobrevivência e manutenção das tradições.

As complexas e eficientes redes dos conglomerados de


comunicação, da economia e da cultura, também, agendam os
acontecimentos e moldam os estilos de vida dos que habitam os
sertões nordestinos. É, nesse movimento de transição, que emergem
as tradições. Não para „matar a saudade‟, mas como parte do
processo de articulação da modernidade e do desenvolvimento
regional. (TRIGUEIRO, 2000, p. 82)

Foi analisando estes pressupostos e as formas criativas de resistência e


sobrevivência cultural dos grupos existentes às margens da comunicação
midiática que, em 1967, Luiz Beltrão cunhou o termo Folkcomunicação, que ele
mesmo define como um "conjunto de procedimentos de intercâmbio de
informações, ideias, opiniões e atitudes dos públicos marginalizados urbanos e
rurais, através de agentes e meios direta ou indiretamente ligados ao folclore"
(BELTRÃO, 1980, p. 24).
Representantes destes públicos marginalizados, aos quais Beltrão
denominou de comunicadores folks, se apropriam dos conteúdos e da estética
dos produtos midiáticos e os integra ao seu próprio modo de expressão
cotidiano, criando estratégias de comunicação peculiares e eficazes, dentro de
seu contexto. Segundo Osvaldo Trigueiro, mesmo sem possuir representação
na grande mídia,
esses grupos possuem alternativas próprias de emissão, e criação na
elaboração dos seus produtos culturais, emitem opiniões, fazem
críticas, tomam posição e se apropriam de interesses que vão além
dos planejados pela produção e emissão da mídia hegemônica.
(TRIGUEIRO, 2008, p. 22)
Quando se trata das relações entre os comunicadores folks e a mídia
convencional, algumas situações têm permitido uma inversão da lógica
dominante. Do ponto de vista funcional, “a cultura popular pode atravessar a
cultura de massa tomando seus elementos e transfigurando esse cotidiano em
arte. Ela pode assimilar novos significados em um fluxo contínuo e dialético”
(BOSI, 1996, p. 65).
Moradores de comunidades populares, detentores de determinado
saber, artifício e técnica, ou mantenedores e contadores das tradições e
histórias de outros tempos e antepassados comunicam, transmitem mensagens
de outros tempos/lugares, de outras gerações e tornam-se noticiadores, via
oral, de fatos e interesses dos agrupamentos urbanos a que se reportam.
Estes detentores de saberes e informações são, geralmente, respeitados
em suas localidades e gozam de grande consideração social e apreço. Sua
presença em festividades e solenidades é, quase sempre, requisitada. São
anciãos, cantadores, religiosos, menestréis, foliões partícipes de folguedos e
festejos populares, mestres de ofícios e fazeres.
Luiz Beltrão (2001) denomina estes indivíduos de agentes
folkcomunicacionais – disseminadores de conhecimentos orais que são
transmitidos de um indivíduo para outro, formando novos agentes, de forma
democrática, onde o agora ouvinte será um meio e aquele que transmite, a fim
de coletar novas histórias, será novamente ouvinte. “A informação oral corre
como que nas asas do vento. O ouvinte de agora será o veículo de daqui a
pouco, em razão daquela necessidade instintiva da natureza humana de
informa-se e informar” (BELTRÃO, 2001, p. 146). Por seus usos e
características, a oralidade é uma forma de comunicação tipicamente
folkcomunicacional.
GRIÔTS. QUEM SÃO ELES?

A história da libertação do continente africano e suas posteriores


divisões políticas e geográficas ainda é bem recente. Embora boa parte das ex-
colônias tenha optado pelo idioma do colonizador como língua oficial e
estabelecido um sistema educacional próximo ao destas metrópoles, o
continente africano ainda mantém fortes laços com suas tradições, dialetos,
culturas e organizações tribais. Em seus grupos étnicos, as relações sociais
ainda são baseadas no diálogo entre indivíduos e na comunicação comunitária.
Neste contexto, detentores do saber tradicional e mantenedores da cultura oral
possuem papel vital para o bom funcionamento das sociedades.

A sociedade africana está fundamentalmente baseada no diálogo


entre os indivíduos e na comunicação entre comunidades ou grupos
étnicos, os griots são os agentes ativos e naturais nessas
conversações. (HAMPÁTÊ BÂ, 1982, p. 204)

Nas sociedades tribais da África, é comum a presença de contadores de


história e transmissores da cultura oral, mediadores que exercem funções de
guias espirituais, noticiadores, conselheiros e especialistas em ofícios do
cotidiano. Esses indivíduos receberam denominações diversas, em cada
agrupamento e tradição. Heloisa Lima e Leila Hernandez (2010) os denominam
de fontes orais, capazes de fazer o passado alcançar o presente e afirmam
que, nas savanas da África, cada nação “arquitetou o seu griô e transmitiu
oralmente o conhecimento a seu respeito” (LIMA; HERNANDEZ, 2010, p. 101).
Entre os povos ocidentais do continente africano, estes indivíduos se
tornaram conhecidos como Dieli, nas tradições da etnia Bambara, situada ao
sul do Saara, ou Jeli, entre os Fulas, nações que deram origem ao atual Mali,
no noroeste africano. Suas atividades estão fortemente ligadas ao Império do
Mali, que começou a florescer no século XIII, durante o reinado de Sundiata
Keita. Os dois termos – Jeli e Dieli – significam sangue, elemento que circula
para manter um organismo vivo. Durante a dominação francesa no continente,
estes mestres da palavra receberam a denominação guiriot – e posteriormente
griot – grafia francesa da palavra criado, de origem portuguesa, primeiros
colonizadores da região (HAMPÁTÊ BÂ, 2003).
Depositários das memórias e histórias do povo africano, os griots –
griotes, no feminino – são portadores e transmissores dos conhecimentos das
ciências da vida material e imaterial, das normas sociais, dos mitos, lendas,
entre outros, influenciando efetivamente as sociedades nas quais estão
inseridos. De acordo com o historiador malinês Amadou Hampátê Bâ (1982),
os griots são indivíduos de considerável inteligência, que desempenham
funções de agentes da cultura, que variam de contadores de histórias a
músicos e poetas populares, ao papel de agentes ativos do comércio. Como o
sangue da palavra dieli, eles circulam pela sociedade, gozando de uma
imagem social e política de grande reconhecimento, entre as comunidades, por
seu saber, sua arte e seu compromisso com a palavra, com a verdade, com os
ancestrais e com o divino.
Quando convidados, os griots podem alegrar eventos locais – atuando
como espécies de palhaços – ou podem, a pedido de um nobre, atuar como
genealogistas, pesquisando e contando a história de uma família, louvando
seus heróis e suas glórias. Quando ligados a uma determinada tribo, visitam
outros grupos como diplomatas, embaixadores e agentes da comunicação,
coletando e transmitindo notícias. Como afirma Hampátê Bâ, eles formam uma
“corporação profissional compreendendo músicos, cantores e também sábios
genealogistas itinerantes ou ligados a algumas famílias cuja história cantavam
e celebravam”, (HAMPÁTÊ BÂ, 2003, p. 15).
4.GRIÔS: A REINVENÇÃO BRASILEIRA

Na cidade baiana de Lençóis – localizada na Chapada Diamantina – no


final dos anos 1990, experiências de ações comunitárias e sociais deram
origem a um projeto de educação e cultura para jovens denominado Grão de
Luz, capitaneado pela educadora Líllian Pacheco. Este projeto, cujo nome está
ligado às formas como os garimpeiros chamavam os diamantes, buscava
valorizar, por meio de oficinas de arte, a cultura local e as vivências dos
participantes. Para tanto, foram incorporadas aos seus referenciais
metodológicos diversos estudos ligados às práticas educacionais que valorizam
as diferenças raciais, sociais e culturais e que utilizam as vivências do cotidiano
e as tradições orais, principalmente as de raízes afro-indígenas (PACHECO,
2006).
A busca pelas experiências ligadas às tradições levou o Grão de Luz a
travar contato com os rituais griots, havendo uma identificação imediata de
seus princípios com as práticas adotadas pelo projeto. A partir deste encontro,
foi sendo desenvolvida uma prática educativa voltada ao biocentrismo, a qual
Líllian Pacheco (2006) denominou Pedagogia Griô, com o termo francês sendo
abrasileirado.
A incorporação das tradições griots africanas, aliadas às práticas de
vivências educacionais biocêntricas, deu origem a uma releitura destas
tradições, sendo seus elementos incorporados e adaptados ao contexto
brasileiro, num processo de formalização e ritualização, caracterizado por
referir-se ao passado, mantendo, contudo, uma relação dialógica com a
contemporaneidade. Toda esta prática dá origem a novas redes de
convenções, como pontua Eric Hobsbawn (2008), que se utilizam de elementos
antigos e folclóricos na elaboração de novas tradições, com finalidades
bastante originais.
Como artistas do invisível, reinventou-se o griô africano, convidando a
comunidade e escola para a roda da vida, um ritual onde passado e
futuro se encontram no presente pleno de aprendizagem, contando
mitos e símbolos que existem no inconsciente coletivo de nossas
raízes afro-brasileiras. Velhos, estudantes, educadores e lideranças
viveram o desafio de dançar no centro da roda, do mundo e de sua
própria identidade, jogando seu verso e sua história, e a partir daí
ressignificar a vida e o currículo de educação municipal. (PACHECO,
2006, p. 80)

A Pedagogia Griô é originada de um processo de


incorporação/ressignificação que, exatamente por isto, não é apenas africana,
indígena, nem tampouco ibérica-mourísca. Trata-se de uma relação, de
resultados riquíssimos, que busca preservar o passado, aplicando-o ao
presente, gerando uma nova tradição, tipicamente brasileira.
No ano de 2006, o projeto Grãos de Luz e Griô lançou – no Encontro Sul
Americano de Culturas Populares – a Ação Griô, com intuito de compartilhar a
experiência de Lençóis com outras partes do Brasil. Neste mesmo ano, a Ação
Griô foi incorporada como política pública do Programa Cultura Viva, um
programa de governo desenvolvido pelo Ministério da Cultura, durante a gestão
Gilberto Gil / Juca Ferreira (2003 – 2010), que seguia a linha política de
inclusão adotada pelo Governo Federal. O Programa Cultura Viva – Cultura,
Educação e Cidadania – foi instituído oficialmente em 2004, sendo voltado à
difusão e ampliação dos meios de formação, criação, difusão e fruição de
cultura e seu acesso aos cidadãos em situação de risco ou exclusão social
(BRASIL, 2010).
Dentre as políticas públicas do Cultura Viva figuram os Pontos de
Cultura, unidades locais voltadas à potencialização de ações culturais e que
são desenvolvidas por meio de parceria entre o Ministério da Cultura e a
sociedade civil organizada – na forma de associações, ONGs e instituições
educacionais. Este pacto com o Estado fortalece e permite um maior
reconhecimento destas organizações culturais.
Os Pontos de Cultura foram assimilados facilmente pelas localidades
onde foram implantados, pois não intentam criar, nem inventar nada, e sim
ampliar as ações e realizar anseios pré-existentes nas comunidades. Assim, é
possível encontrar Pontos de Cultura vinculados às mais diversas formas de
fazeres culturais, pois “o conceito de Ponto de Cultura é o que eles já praticam:
trabalho compartilhado e o desenvolvimento de atividades culturais respeitando
a autonomia e o protagonismo das comunidades” (TURINO, 2010, p. 17).
O Grãos de Luz e Griô tornou-se, ele mesmo, um Ponto de Cultura e,
em 2007, elaborou, junto com o MinC, ações voltadas a implantar a Ação Griô,
inicialmente, em 50 Pontos de Cultura e organizar trabalhos coletivos que
culminaram na sistematização do livro Nação Griô (2006), contendo vivências e
atividades de valorização das tradições orais, além da confecção do filme Eu
Griô (2006), com outros relatos e afirmações da identidade do povo brasileiro,
oriundos de várias partes do país.
Adequando-se às recomendações do Programa Cultura Digital – outra
ação do Cultura Viva – além de recursos para execução de suas propostas,
cada Ponto de Cultura recebe um conjunto de equipamentos voltados à
produção e difusão da cultura digital. Este kit conta com câmeras fotográficas,
filmadoras e computadores com softwares livres, voltados à manipulação de
áudio e imagem e ainda com conexão banda larga (BRASIL, 2010).
O empoderamento social nos Pontos de Cultura pode provocar
transformações que vão muito além da cultura em um sentido estrito e
desencadear mudanças nos campos social, econômico, de poder e valores. Ao
concentrar sua atuação nos grupos historicamente alijados das políticas
públicas (seja por recorte socioeconômico ou no campo da pesquisa e
experimentação estética), o Ponto de Cultura potencializa iniciativas já em
andamento, criando condições para um desenvolvimento alternativo e
autônomo, de modo a garantir sustentabilidade na produção da cultura. É a
cultura entendida como processo e não mais como produto. (TURINO, 2010, p.
37)
RELAÇÕES FOLKCOMUNICACIONAIS

Ao associar a posse dos equipamentos, sua técnica e produção – seja


ela social, cultural ou etnográfica – aos seus desafios cotidianos, as
comunidades tradicionais ou em situação de risco apropriam-se da linguagem
dos meios de comunicação e dão a ela uma ressignificação própria,
valorizando e difundindo suas manifestações e tradições.
A Ação Griô buscou formas de utilizar as novas tecnologias disponíveis
para auxiliar no processo de registro, catalogação e difusão do conteúdo.
Desde então, muito do conteúdo oral, artístico, histórico e de afazeres, além
das tradições culturais, vem sendo sistematicamente registrado, organizado e
difundido, por meio de sites, vídeos, livros, gravações sonoras e atividades
locais, como cursos e oficinas. Entre os principais portais virtuais da difusão do
conhecimento griô, destacam-se o site do próprio Ponto de Cultura Grãos de
Luz e Griô4 e a página da Ação Griô Nacional5, onde pode ser encontrado
grande acervo ligado às atividades de pesquisa e documentação da memória
tradicional africana.
Estes materiais, realizados de maneira colaborativa, visam ampliar a
área de ação e influência dos conhecimentos griôs, reconhecendo, nas
comunidades, um número cada vez maior de detentores dos saberes orais e
formando novos interessados em manter vivas estas atividades e tradições.
Para facilitar tal processo, foi sistematizado um método de cognição, por meio
das vivências e do cotidiano, e uma hierarquia, por idade e nível de
aprendizagem, que inclui Mestres, Griôs e Aprendizes.
A figura do aprendiz tem funções bem distintas. Além de ocupar lugar de
aprendizagem, a fim de manter viva a memória, o aprendiz, ao dialogar com os
mestres e os griôs, busca provocá-los, fazendo uma ponte entre seu
conhecimento e o mundo.
Onde estavam na comunidade os personagens que traziam a cultura
viva na sua memória e no seu jeito de viver? Para encontrar os
personagens da cultura da comunidade, alguns já esquecidos no
tempo, era importante inventar um aprendiz que se iniciasse e
dialogasse com eles (PACHECO, 2006, p. 79)

Os trabalhos de organização e desenvolvimento da Pedagogia Griô, no


Brasil, vêm realizando diálogos e pesquisas que transpõe papéis formais, pois
exigem vivências afetivas e culturais, a fim de compreender um mundo
simbólico, quase sempre reconhecível por meio do imaginário ou de rituais.

O principal registro da tradição oral é a memória vivencial e dialógica


afetiva cognitiva e motora. É uma memória dançante, cantante,
contadora de histórias e conversadora. O Brasil precisa do
caminhante (do griô aprendiz) que entrega sua corporeidade, sua
pele, sua voz, seus sentimentos, sua palavra divina para gravar a
continuidade da história viva da tradição oral. Um caminhante que se
entregue à caminhada para ligar os fios familiares e comunitários das
redes de transmissão oral. (PACHECO, 2006, p. 44)

Estes diálogos serviram para definir algumas características que,


segundo a Ação Griô Nacional, são úteis para o reconhecimento e a
manutenção das tradições. De acordo com estas definições, a palavra griô
deve se referir a todo cidadão ou cidadã, que se reconheça, ou seja,
reconhecido pela sua própria comunidade como mestre das artes, da cura e
dos ofícios tradicionais, líder religioso de tradição oral, brincante, cantador,
instrumentista, contador de histórias ou poeta popular que, através de uma
pedagogia que valoriza o poder da palavra, da oralidade, da vivência e da
corporeidade, se torna a biblioteca e a memória viva de seu povo.
Em sua caminhada pelo mundo, o griô deve transmitir saberes e fazeres
de geração em geração, fortalecendo a ancestralidade e a identidade de sua
família ancestral e comunidade. As histórias vivas contadas e cantadas pelos
griôs funcionam como um chamamento à valorização do cotidiano. Por sua
vez, esta valorização funciona como um religante, conduzindo a um retorno ao
ideal comunitário (MAFFESOLI, 1995).
Além das aproximações e similitudes de características dos griôs com os
agentes folkcomunicacionais – como o de papel de liderança social ou
espiritual, reconhecimento da comunidade, preocupação em cuidar e manter o
patrimônio imaterial de seu grupo social e por exercerem funções de
noticiadores e relatores – muitas das atividades exercidas pela maioria do
griôs, no Brasil, bem como alguns elementos de suas tradições, encontram-se
catalogadas, desde os anos 1950, por Luís da Câmara Cascudo, em seu
célebre Dicionário do Folclore Brasileiro (2012), extenso inventário da cultura
popular e das tradições nacionais.
São exemplos das atividades griôs, no Brasil, a de congadeiro,
jongueiro, folião de reis e de bois, capoeira, parteira, zelador de santo,
juremeiro, raizero e erveiro, caixeiro, carimbozeiro, rezador, violeiro, sanfoneiro,
rabequeiro, cirandeiro, quadrilheiro, folião de maracatu, de coco, de marujada,
de catira, brincantes de roda e de batuques, cantadores cânticos indígenas –
como torés, awês e heruês, artista de circo, artista de rua, bonequeiro,
mamulengueiro, repentista, cordelista, pajé, sambadores, artesãos, fabricantes
de instrumentos folclóricos, como berimbau, tambor e rabeca e fazedores de
todas as demais expressões culturais populares que se desenvolvam e se
transmitam de forma oral e tradicional.
Vale ressaltar que a maioria destas tradições orais está presente no
cotidiano de várias comunidades pelo Brasil, contudo, pouco se relaciona com
a educação formal ou com os meios de comunicação de massa. As atividades
da Ação Griô Nacional não só difundem estas tradições, como as valorizam e
fazem com que os sujeitos envolvidos em suas ações de preservação sintam-
se reencantados com seu cotidiano e legitimem sua existência ao
reconhecerem seus pares e serem reconhecidos.

Reconhecer a tradição oral é considerar que o patrimônio cultural


brasileiro não se reduz ao que está escrito nos livros e, portanto, não
é propriedade de pessoas alfabetizadas ou letradas. É considerar que
o patrimônio cultural é também formado por um tesouro vivo de bens
imateriais que são transmitidos oralmente de geração em geração em
diversas áreas do conhecimento, não apenas nas artes e na religião.
Existe um sistema de educação informal, uma cultura que resiste ao
ciclo intergeracional da pobreza preservando e produzindo uma
riqueza cultural e identitária no Brasil. (PACHECO, 2006, p.)

As atividades folkcomunicacionais aliadas à cibercultura são vitais para o


êxito destes intentos. Num novo cenário virtual, a internet apresenta-se como
uma localidade habitada por uma comunidade que, embora não possua laços
sanguíneos, possui afinidades de interesses. Este novo território é também
espaço para as andanças dos griôs e de suas histórias e tradições. Segundo
Pierre Lévy,
uma comunidade virtual é construída sobre as afinidades de
interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um
processo de cooperação ou de troca, tudo isso independentemente
das proximidades geográficas e das filiações institucionais (LÉVY,
1999, p. 127)

Por meio do ciberespaço, as tradições e histórias orais dos griôs podem


percorrer o mundo e encantar povos de outras nações, ampliando o terreno de
peregrinação destes anciãos e de seu saber. A roda da vida excede os limites
geográficos e pode ecoar em diversas partes do mundo. O que antes estava
relegado ao esquecimento, ganha fôlego e passa a ser compartilhado e
conhecido em diversas localidades. O griô continua sendo um diplomata, um
noticiador, um contador de histórias, mas seu público ouvinte é muito maior. Ao
disseminar seus saberes, os griôs fortalecem a si e às suas redes, num
processo cíclico de trocas.
As estratégias de médio e longo prazo de valorização da tradição oral
precisam priorizar seus princípios e práticas. Para registrar por escrito
seus saberes, é necessário potencializar a rede de transmissão oral e
seus autores – os griôs e mestres – possibilitando-lhes o vínculo e o
reconhecimento diante das novas gerações e dos sistemas formais
de ensino e aprendizagem. Esta nos parece ser uma estratégia de
vital importância. (PACHECO, 2006, p. 44)
A chegada dos conhecimentos orais ao ciberespaço, seja por hipertexto,
áudio ou vídeo, potencializa um reencantamento com certas tradições que
estavam esquecidas, desconhecidas; levando grande quantidade de novas e
ricas informações a outros públicos, alegrando novos ares e fazendo a roda da
vida, proposta pela Pedagogia Griô, ganhar fôlego, habitar imaginários e ser
redescoberta. Como afirma Peter Burke, “na tradição oral, os textos se
comportam como melodias” (BURKE, 2010, p. 175). São canções da
ancestralidade, cânticos de vida.

DOCUMENTO HISTÓRICO

A PALAVRA DE UM GRIÔT

O senegalês Djibril Niane, um dos mais importantes intelectuais


africanos da atualidade, registrou as palavras de um griot, da Guiné, quando
este descreve o valor da verdade para o seu grupo:

“(...) Sou griõt. Meu nome é Djeli Mamadu Kuiyatê, filho de Bintu Kuyatê
e de Djeli Kedian Kuyatê, mestre na arte de falar. Desde tempos imemoriais
estão os Kuyatês a serviço dos príncipes de Keita do Mandinga [o mesmo que
Império do Mali]: somos os sacos de palavras, somos o repositório que
conserva segredos multisseculares. A arte da palavra não apresenta qualquer
segredo para nós, sem nós, os nomes dos reis cairiam no esquecimento; nós
somos a memória dos homens; através da palavra, damos vida aos fatos e às
façanhas dos reis perante as novas gerações.

Recebi minha ciência de meu pai Djeli Kedian, que a recebeu igualmente
de seu pai; a História não tem mistério algum para nós; ensinamos ao vulgo
tudo o que aceitamos transmitir-lhe; somos nós que detemos as chaves das
doze portas do Mandinga.
(...) Os griots conhecem a história dos reis e dos reinos, motivo por que
são os melhores conselheiros dos reis. Todo grande rei quer ter um chantre
para perpetuar sua memória, visto que é o griot quem salva a glória dos reis,
pois os homens têm a memória muito curta.

Os reinos têm o seu destino traçado, tal como os homens; só o


conhecem os advinhos, que investigam o futuro, cuja ciência dominam.

Nós outros, griots reais, somos os depositários da ciência do passado;


mas quem conhece a história de um país poderá ler o seu futuro.

Há povos que se servem da linguagem escrita para fixar o passado; mas


acontece que essa invenção matou a memória dos homens: eles já não sentem
mais o passado, visto que a língua escrita não pode ter o calor da voz humana.
Todo mundo acredita conhecer, ao passo que o saber deve ser algo secreto
[os griots tradicionais são muito criteriosos ao transmitir seu saber por
considerá-lo um segredo]. Os profetas não escreveram, e sua palavra nem por
isso é menos viva. Pobre conhecimento, esse que se encontra imutavelmente
fixado nos livros mudos...

Eu, Djeli Mamadu Kuyatê, sou o elo final de uma longa tradição: desde
muitas gerações nós transmitimos de pai para filho as histórias dos reis. A
palavra me foi transmitida sem alteração e eu a passarei sem que qualquer
mudança, visto que a recebi isenta de qualquer mentira. (...)”

Fonte:NIANE, Djibril. Sundjata ou a epopeia mandinga. São Paulo: Ática, 1982.


P.11 e 66.
5. O CURRÍCULO PARA OS VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRICANOS

Os currículos escolares ainda refletem profundamente o esquecimento a


que os historiadores da burguesia relegaram as sociedades africanas. A
engenhosa operação de esquecer e invisibilizar o continente negro perpetua-se
através da manutenção da África periférica em nossos currículos escolares. O
papel estratégico dessa noção de África periférica é silenciar e impedir a
manifestação de uma África a partir de dentro. A desconstrução desse
prolongado e persistente silêncio deve partir da constatação do fato de África
ter sido o palco da evolução biológica dos hominídeos, e do aparecimento da
humanidade anatomicamente moderna e das primeiras culturas humanas. Isto
não apenas credencia o continente africano como o berço da humanidade e
das primeiras civilizações humanas, mas também como o berço das primeiras
narrativas humanas que costumamos denominar de história. É nesse sentido
que podemos entender a atividade dos griots (denominados djeli, “sangue”, em
bambara). Apesar de descritos por viajantes e colonizadores europeus como
um misto de animadores públicos e contadores de histórias, comparados com
os menestréis e bardos medievais, as atividades desenvolvidas por estes
grupos, nas sociedades africanas, consistiam tanto na preservação da memória
social de impérios, reinos, povos e linhagens de parentesco, quanto na
exortação dos viventes à emulação do comportamento dos antepassados,
desempenhando um papel social que os aproxima muito mais dos historiadores
e diplomatas do que dos bardos e menestréis. Assim sendo, falar de África
significa reconhecer e valorizar a palavra africana. Longe de se restringir à
oralidade, a palavra africana é um dos elementos fundamentais de todas as
civilizações negro africanas. Considerada sagrada, a palavra é o elemento
divino compartilhado com o humano que diferencia a humanidade dos demais
seres criados, colocando os homens no centro de toda a criação. Está,
portanto, presente tanto nas narrativas orais quanto na arte tradicional, na
gestualística , no próprio modo africano de ser e estar no mundo, ou seja, na
cosmovisão africana. A valorização da palavra africana não pode ocorrer
quando dissociamos as narrativas orais tradicionais da cosmovisão que as
sustenta. Portanto, a primeira tarefa consiste em dar voz aos africanos na sua
maneira africana de falar e ler o mundo. Isso possibilita a desconstrução de um
currículo eurocêntrico, ao deslocar os povos africanos da condição de
observados (objetos da história) para a de observadores (sujeitos da história).
É necessário arrancar de um passado silenciado toda a orça de histórias e
culturas votadas ao esquecimento por aqueles que as desprezam.
A segunda tarefa consiste em problematizar os elementos constitutivos
da cosmovisão africana no contexto das diferentes sociedades presentes no
continente. E, neste terreno, não podemos generalizar: não existem uma África
e uma humanidade africana genéricas. Ao lado de uma diversidade de
símbolos, idiomas, religiões, organizações sociais e políticas, de costumes e
práticas encontramos a presença de traços civilizatórios comuns: a importância
da família extensa e da economia aldeã, a centralidade da ancestralidade, a
crença em forças vitais e a valorização da palavra como a sua manifestação
por excelência, o papel determinante do sagrado na organização da sociedade
e do poder. A terceira e última tarefa, talvez a mais árdua de todas, consiste
em historicizar os valores civilizatórios africanos. Ou seja: sendo a cosmovisão
um traço comum ao homem negro e elemento estruturante presente nos
impérios, reinos e sociedades africanas de ontem e de hoje, cabe indagar por
quais mecanismos e processos históricos e sociais tais valores civilizatórios
foram elaborados e se tornaram o elemento fundamentais nestas sociedades e
como continuam operantes ainda hoje.
Por mais diversas que sejam as histórias e tradições mandinga, yoruba,
fulani ou dos povos bantufalantes, a presença dos mesmos valores
civilizatórios africanos em todas elas indica que a milenar presença humana
manifestada pela diversidade de povos no continente negro os construiu em
conjunto: seja a partir de matrizes comuns mais antigas, como parece ser o
caso das sociedades iniciáticas relacionadas aos caçadores; seja a partir de
matrizes diferentes que convergiram entre si, como parece ser o caso da
organização da economia aldeã e das tradições metalúrgicas negroafricanas
apontadas pela arqueologia; ou ainda a partir de matrizes por enquanto ainda
difíceis de precisar, como parece ser o caso do papel central desempenhado
pelas concepções de mundo invisível/visível, de forças vitais e do preexistente
na organização da ancestralidade em seus aspectos mítico e histórico.
Muitos foram os avanços e os ganhos obtidos a partir da promulgação
de Lei 10.639/03. Não apenas a nossa indignação contra a discriminação e o
racismo ganhou respaldo legal, mas nossa escuta e nosso olhar também se
tornaram mais sensíveis para as diferenças. Os educadores cada vez mais
estão empenhados na valorização da diversidade e no combate ao racismo e
às práticas discriminatórias. Contudo, é ainda muito forte a presença de uma
história eurocêntrica que condena à invisibilidade e ao esquecimento a história
da África, desconsiderando a importância da matriz africana na formação da
sociedade brasileira. Afinal, são muitos os vínculos que ligam os dois lados do
Atlântico que tanto separou como uniu povos. Em nossas práticas de
educadores, essa história eurocêntrica se tem traduzido num currículo que
desconsidera o fato de a cultura e a história serem produzidas por diferentes
grupos sociais. Privilegiando a Europa e o espaço ocidental, não nos damos
conta de que não apenas precisamos, mas devemos contar a história a partir
de outros pontos de vista. Isso não significa simplesmente adicionar, ao
currículo já existente, elementos da história e da cultura africana e afro-
brasileira; significa rever esse currículo e colocar em discussão os seus
pressupostos mais íntimos, desconstruindo as ideias, conceitos, valores e
crenças que o animam: os dispositivos de disciplinarização e assujeitamento, o
darwinismo social, o consumismo, o sexismo e o racismo forjado pelas teorias
raciológicas do século XIX, produzidas pelo homem burguês, heterossexual,
branco e europeu para o seu autoenaltecimento. Este deve ser o espírito que
deve animar a nossa busca e as nossas pesquisas, muito necessárias para a
construção de um currículo que valorize a diversidade. Trata-se, portanto, de
dar visibilidade, reconhecer e valorizar outras narrativas e os múltiplos sujeitos
presentes na escola, na comunidade, na sociedade. É dentro desse contexto
que é necessário colocar em foco e escolar as experiências africanas e afro-
brasileiras como história e cultura.

6. RODAS SAGRADAS DA TRADIÇÃO AFRICANA

As três rodas sagradas do universo afrodescendente brasileiro formam o


espaço onde ocorre a maiêutica africana. As rodas de candomblé, samba e
capoeira dão a liga necessária para que aflore a experiência tradicional de
povos africanos, nos seus aspectos mais singulares: o canto, o toque a dança.
O candomblé – pelas características já apontadas pelo antropólogo
francês, Roger Bastide (1898 – 1974) – permitiu aos africanos a constituição de
uma linha de corte, entre a sociedade global e seu macro universo tradicional –
cartografia cósmica e geográfica – reinventado no terreiro sagrado, dentro dos
padrões e valores africanos.
A despeito da violência da escravidão, os afrodescendentes tiveram à
sua disposição uma manancial de conhecimentos tradicionais, que lhes
permitiu a reconstrução de sua identidade e do seu ecossistema humano, em
simetria com a experiência africana.
Assim, esse espaço sagrado converteu-se na pedra angular que serviu
de modelo para as demais rodas. Tanto o samba como a capoeira – e as
demais rodas que estão nas fronteiras de ocorrência do futuro – beberam
dessa fonte cristalina de conhecimento.

ORALIDADE.
Nessas rodas, encontraram-se três experiências profundas da
continente africano: o canto, a música e a dança. A onda que embalou essas
experiências foi a oralidade, fator fundamental da compreensão do universo
negro-africano.
Para muitos dos povos africanos, a oralidade não é a incapacidade de
produzir textos grafados, como se acreditou e se difundiu no ocidente. O
africano tem uma ligação intrínseca com a oralidade. Ela é um fio permanente
que o conecta com seus ancestrais, com sua história e com sua identidade
mais profunda.
Amadou Hampâté Bâ (1900 – 1991) – um dos grandes tradicionalistas
africanos – destacou que, para os povos do continente negro, a oralidade tem
duas dimensões: uma ascendente – do homem em direção ao sagrado – e
outra descendente – do sagrado em relação ao homem. Isso faz com que,
segundo ele, a oralidade é mais do que uma mera forma de comunicação. Ela
é um instrumento poderoso de preservação do hálito sagrado, concedido pelo
ser supremo à humanidade. A função da humanidade é preservá-la, cristalina e
livre da mentira. Para muitas sociedades africanas, a mentira é um erro
imperdoável.
Por essa razão, o espaço sagrado do candomblé tornou-se local
privilegiado para o exercício da oralidade.
Os cantos sagrados são as formas musicadas das grandes narrativas
africanas: histórias de heróis fundadores de tradições, grandes visionários das
sociedades africanas, mulheres poderosas que fundaram reino e reorientaram
os destinos da humanidade. Esses cantos presentificam o passado ancestral, e
reproduzem o momento em que o sagrado emergiu na terra. O ancestral –
orixalizado ou ancestralizado – apresenta-se ao seu descendente, e com ele
toca e dança, mobilizada e renova a existência.
O estadista e poeta senegalês Léopold Sédar Senghor (1906 – 2001)
destacou a importância da dança para o africano. Ao dançar, explicava ele, o
africano coloca-se em sintonia com o movimento do cosmo. Para o africano, o
corpo não é a prisão da alma. Ele a completa e o coloca em consonância com
os sons que vibram o universo africano: eu sinto o Outro, eu danço o Outro,
então eu sou, acentuou Senghor.
Canto, música e dança – presentes nas rodas sagradas africanas –
revivem nos textos da memória coletiva – as páginas das grandes narrativas
orais que embalam os sonhos e realizações dos diversos povos do continente
negro.
DIMENSÕES

Nessas três rodas, reinventam-se as quatro dimensões presentes na


maiêutica africanas: a dimensão cósmica, a dimensão mística, a dimensão
sociológica, e a dimensão pedagógica, apontadas por Joseph Campbell (1904-
1987), quando desvendava as funções do mito nas sociedades antigas e
modernas.
As rodas trazem à tona a complexa cosmologia africana, onde impera a
dinâmica, a mudança, a incerteza, a transformação – destruição criativa,
criação destrutiva -, o movimento perpétuo. Nessa rede de forças que se
encontram e se entrechocam se tece o universo mutante das tradições
africanas. A existência é um fluxo permanente que corre num rio sem fim. Para
muitos povos africanos, o criador não criou o mundo num número de dias
predeterminado, mas deu inicia à criação, que se desdobra no infinito.
Ao invés de um universo plasmado, idêntico a si mesmo, despontasse a
visão de um universo que se reinventa, criativamente, a cada movimento, a
cada ação.
Universo que se desdobra em duas dimensões: uma dimensão real e
outra, virtual, em comunicação permanente. O mundo dos ancestrais, das
forças cósmicas, do sagrado, comunica-se com o mundo da humanidade, com
o mundo da história. Nos atos sagrados, num solo sagrado, e na liturgia
conduzidas por pessoas sagradas, abre-se um portal onde material e imaterial
se encontram, e os ancestrais vêm dançar, cantar e conduzir os destinos dos
seus descendentes – filhos, netos, bisnetos, tataranetos.
Dessa forma, o ancestral é um ser ativo na vida dos descendentes e na
condução dos destinos e atos da comunidade.
A dimensão sociológica apresenta o quadro da organização das
tradições africanas. Nela, os velhos e as velhas ocupam espaço especial e de
destaque. Sua presença tramite a força daqueles que experimentaram o sabor
da vida, por longos fios de vida, e os transmitem para a sociedade. Essa é a
razão de se ter por todo o continente africano o conceito de que o velho e a
velha são bibliotecas vivas de seus povos, onde estão arquivadas as memórias
individuais e coletivas. Nessas sociedades o velho e a velha não são
descartáveis. Eles são os epicentros da sociedade e da comunidade, seus
conselheiros.
Condutores nas questões morais – regras sociais compartilhadas -, nas
questões éticas – regras de conduta que se aplicam no cotidiano e procura
responder às novas e velhas demandas-, e nas questões deontológicas –
regras de conduta dos iniciados nas tradições africanas, os preservadores dos
segredos sagrados.
Nessa dimensão, destaca-se, ao lado dos velhos e das velhas, a figura
da mulher. Para muitos povos africanos, a mulher é o útero da existência. Sem
ela, a existência não seria possível, não teria sentido.
Num dos grandes poemas que compõem os Versos Sagrados de Ifá,
(oratura – nas palavras de Cremilda Medina – sagrado dos iorubas) – Oxetura -
, Oxum é apontada como a mãe da humanidade, da existência, e de toda a
criação.
No cenário de fundo apresentado pela tradição, o quadro sociológico
que desponta apresenta – diferente da experiência no ocidente – os velhos, as
velhas e as mulheres como pedra angulares da organização das sociedades
africanas tradicionais.
E, por fim, na dimensão pedagógica, encontram-se enfeixados os
conhecimentos ancestrais da divinação, dos ancestrais masculinos, dos
ancestrais femininos, das formas de transcendência – relação com o sagrado –
e imanência – organização litúrgica de acesso ao sagrado -, do conhecimento
da natureza – fauna e flora -, e do conhecimento da natureza humana.
Toda essa enciclopédia tem na oralidade o seu veículo privilegiado, não
de memorização – pois os povos africanos são como “antenas parabólicas com
os pés fincados no chão”, como disse o compositor baiano e ex-ministro da
Cultura, Gilberto Gil – mas pela veiculação da energia ancestral (axé, para os
iorubas), que se transite pelo hálito dos iniciados na tradição: da boca
adocicada pela verdade, para o ouvido sedento de conhecimento (Iyakemi
Ronilda Ribeiro).

TRÊS RODAS.

No plano geral da tradição, as três rodas sagradas são mais do que


espaços de sociais. Eles são dimensões retro alimentadoras das tradições
africanas. Em cada pedaço, em cada fiapo de expressão, em cada uma de
suas dobraduras encontram-se os fios que ligam as experiências dos
afrodescendentes aos seus legados e patrimônios culturais e civilizatórios.
O velho Hampaté Bâ, quando observava o poder que as tradições
tinham para a reconstrução da identidade profunda dos jovens africanos
aculturados pelos valores ocidentais, dizia que a reconstrução da identidade
era um problema para os que se afastaram da tradição.
Para os que se mantiveram imersos nos valores da tradição, a
reconstrução não se colocava como um problema. Para a juventude
afrodescendente da diáspora, os espaços articulados pelas rodas sagrados
podem propiciar a possibilidade de (re) construção dessa identidade profunda,
da qual falou o velho tradicionalista. Identidade ancorada em valores ancestrais
dos povos africanos, guardados, com zelo e carinho, pelos velhos e pelas
velhas da tradição, que legaram esse tesouro para as gerações futuras.
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