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“7.4.

Valores e atitudes fundamentais da geração do «Orpheu»” (*)

Para os modernistas portugueses, «[...] ter um pouco de Europa na


alma», - frase de Fernando Pessoa que Sá-Carneiro destaca
entusiasticamente na sua correspondência -, funcionava praticamente como
uma divisa orientadora de todos os actos estéticos. Este querer-ser
europeu era também sinónimo de uma dupla meta, fundamental para a
compreensão do Modernismo e do seu caráter vanguardista. Tratava-se do
desejo de universalidade que impunha a superação das limitadas
fronteiras portuguesas e, simultaneamente, de uma vontade de ruptura
com a literatura do passado que sugeria uma viragem rumo ao futuro e
despertava o fascínio por tudo quanto fosse inteiramente novo. Assim
Pessoa, mantendo certa euforia profética e nacionalista que já lhe era
patente nos tempos da colaboração na revista A Águia, afirmará da geração
de Orpheu:

«Não somos portugueses que escrevem para portugueses; [...]


somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civilização;
nada somos por enquanto, mas aquilo que agora fazemos será um dia
universalmente conhecido e reconhecido. [...] Não pode ser de outra
maneira, realizamos condições sociológicas cujo resultado é inevitavelmente
esse. Afastamo-nos de Camões, de todos os absurdos enfadonhos da
tradição portuguesa e avançamos para o futuro.»(1)

Para além da exigência de absoluta originalidade e de pleno


cosmopolitismo, misturados com um patriotismo muito especial, o
Modernismo representava ainda, como se vê, uma importante afirmação
transnacionalista e continha uma nítida dimensão «futurante»,
renovadora e agressiva. Através delas separava-se completamente do
passado, orientando-se projetivamente para a descoberta de novas
expressões da sensibilidade estética. Por outro lado, distinguia-se em
absoluto do nacionalismo saudosista seu contemporâneo, romanticamente
«fixado» num passado mítico de cuja recuperação fazia depender a
salvação pátria.

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Assim, a imperiosa reivindicação de novidade e modernidade
transmitida por «Orpheu» passava obrigatoriamente por uma
perspectivação européia do «modo de ser literário» português. Tratava-se
de efetuar uma profunda e radical revisão de toda a literatura nacional
através de um novo espírito, liberto dos «fantasmas» do servilismo e de
qualquer sentimento de inferioridade face ao estrangeiro. Esta nova
«consciência da Atualidade» surgiria então, pelo contrário, plenamente
afirmativa e orgulhosa de si e da cultura que representava.
Em suma, para abolir o tradicionalismo e atenuar o provincianismo
caracteristicamente portugueses, os novos poetas pretendiam instaurar
uma nova «visão do mundo» capaz de revolucionar e reformar totalmente a
mentalidade cultural nacional. Só uma estratégia de abertura e,
simultaneamente, apropriação criativa dos valores europeus, viabilizaria o
surgimento de uma sensibilidade estética diferente. Por sua vez, esta seria
a única forma de realizar um reencontro decisivo da genuína «alma literária
nacional» consigo mesma.
O Modernismo português incluía em si o projeto de uma estética
aberta, essencialmente expansiva, eclética e disponível a tudo quanto se
mostrava diferente, estranho, exótico. Dela faziam parte uma extrema
plasticidade e versatilidade, características positivas da alma portuguesa
que apareceram assim renovadas e multiplicadas pelos poetas órficos,
através de uma tendência, que podemos considerar genérica, para a
diversificação estética expressa, designadamente, pelo delírio
sensacionista do «ser tudo de todas as maneiras». Ou, utilizando a
agressividade tipicamente futurista, em forma de «Ultimatum»:

«Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o


indivíduo que sente por vários. [...] O que é preciso é o artista que sinta por
um certo número de Outros, todos diferentes uns dos outros, uns do
passado, outros do presente, outros do futuro. [...] Nenhum artista deverá
ter só uma personalidade.» (2)

Implicando uma dispersão e um desdobramento sistemático em todas


as práticas culturais e potencialidades civilizacionais possíveis, esta
experiência de pluralidade era a única regra - embora paradoxalmente

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anárquica - compatível com esse «maravilhoso movimento sintético» que
foi «Orpheu».
É importante salientar ainda, o mais amplo alcance desta missão
indisciplinadora de «Orpheu», que consistia na tarefa de «ampliação» do
«psiquismo nacional». Tratava-se de criar civilização fazendo arte e fazê-la
sobretudo em função de uma irrequieta busca de libertação dela mesma e
do ser-artista. Tal revelava a consciência, natural para o artista moderno e
presente nos nossos novos poetas, da implicação essencial existente entre a
arte e a vida. Para além disto, também a radicalidade da sua opção pela
arte, essa «aceitação sem limites da seriedade da poesia» fez, como nota
Eduardo Lourenço, «a importância única da geração de Orpheu»(3).
Em suma, os órficos consubstanciaram valores e atitudes
fundamentais da modernidade, tendo sido entre os portugueses os únicos
testemunhos vivos da crise geral e consequente procura de novos padrões
de toda a civilização ocidental então em curso. O seu «sê plural como o
universo» reflete a fragilidade e o nihilismo de toda a consciência moderna,
verdadeiramente uma «consciência infeliz» ao descobrir a absoluta
imprevisibilidade essencial de tudo, e também, o sentimento de incerteza
infinita que a possibilidade - cada vez mais precária - de pensar a divindade
ou qualquer unidade não pode deixar de lhe provocar.
Do ponto de vista estético-literário, o período que se situa entre 1912
e 1917 é fértil em «ismos». Não é fácil estabelecer entre eles uma sucessão
linear ou uma hierarquização clara. Tanto nos textos de Pessoa, o poeta
mais ativo quanto à criação dos diferentes movimentos, como em Sá-
Carneiro, «seu confrade em paulismo e lugar-tenente interseccionista»(4),
frequentemente aparecem as mesmas designações usadas em acepções
diferentes ou trocadas relativamente à eventual data do seu aparecimento.
O autor de «Mensagem» ressente-se de toda esta agitação dispersiva,
caracterizando-a como «excesso de forças vivas em acção, conflito e
evolução interconexa e divergente»(5).
Esta espécie de «estado anárquico» é explicável pela própria natureza
da aventura modernista. Por um lado, os «ismos» surgem, na sua forma
vertiginosa e efêmera, como experimentações desordenadas, tentativas
indisciplinadas de substituição dos critérios estéticos existentes e de
produção de outras expressões literárias mais adequadas à nova noção do

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mundo, da arte e até da vida. Por outro lado, o espírito mistificador,
excêntrico, paradoxal e contraditório dos novos poetas, contribuindo
propositadamente para o caráter fragmentário e hermético que a cada
passo os textos apresentam e responsável pela consagração do «reinado da
incoerência» na sua prática literária.
Certo tom «apalhaçado» que em parte permaneceu como emblema
distintivo desta geração, pode ser interpretado como uma defesa contra a
hostilidade e tacanhez com que o meio literário português recebia as
manifestações da nova estética, funcionando, ao mesmo tempo, como uma
espécie de aval protetor dessa ousadia de querer pensar e praticar a
inovação sem limites. Por outras palavras, se o desejo de mistificação é um
mal necessário em termos de vanguarda, é porque ele é «o preço que deve
ser pago e sempre será pago por uma atitude que não tem por definição
nenhuma garantia no passado»(6).
Na verdade, existe um modo de ser específico desta geração
indissociável das suas opções estéticas. Como defini-lo? Trata-se de
sensibilidades superiormente requintadas e fortemente individualistas,
determinadamente anti-sociais e anti-sociáveis, que cultivam acima de tudo
a diferença e a exceção e professam um arrogante e assumido
aristocracismo de tonalidade vincadamente decadente e elitista. Aliás, a
revista Orpheu fora apresentada ao público por Luiz de Montalvôr,
exatamente como sendo um «exílio de temperamentos de arte que a
querem como a um segredo ou tormento», correspondendo a um «ideal
esotérico» e tendo o «princípio aristocrático» como único critério estético
explícito. (7)
Valorizando exclusivamente o raro e o insólito, os órficos gostavam
de definir a sua estética de forma tão extravagante quanto enigmática,
usando e abusando de toda a espécie de blagues: «ter o aplauso de
lepidópteros e democráticos [...] é o pior que nos pode suceder», sublinha
Sá-Carneiro numa carta a Fernando Pessoa, acrescentando mordazmente:

«Veja o que sucedeu às bicicletas: artigo de luxo que, começando a


ser empregado pelos democráticos, desapareceu da via pública como sport
elegante. A pior recomendação dum produto de luxo é o seu consumo
popular.» (8)

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Almada Negreiros, por seu turno, «explica-nos» em estilo hermético
tipicamente vanguardista, o significado que tinha para o grupo esta quase-
senha:

«[...] A mais profunda das [...] criações de vocábulos pejorativos em


dias do Orpheu. Lepidóptero simula com o próprio vocábulo palavra erudita
com todo o fingimento de individuar categoria de exceção.» (9)

Outro termo que fazia parte deste glossário restrito e provocatório


dos novos poetas, era «botas delástico», o qual, como explicava o pintor,
«significa... Só botas delástico ignoram a sua significação» (10)
Percorrendo os textos de Pessoa, Mestre também em sutis
«fingimentos» e geniais boutades, o que se torna difícil é escolher, entre
tantos exemplos, até porque o poeta faz «todos os esforços para não ser a
mesma coisa durante três minutos a fio por ser má higiene estética». Tal
atitude é perfeitamente natural uma vez que «graças a Deus, não há
nenhum instinto do sensato em moderna literatura». Tal circunstância,
aliás, não deixava de reflectir inteiramente a própria origem de «Orpheu»
pois, enquanto a tendência para o «bom gosto» era em geral proeminente,
em contrapartida, não havia em nenhum dos elementos do grupo quaisquer
vestígios de «bom senso».
Os principais «ismos» do movimento modernista - além do
paúlismo, o sensacionismo, o interseccionismo e também, apesar de
ligeiramente secundarizado por Pessoa, o futurismo, têm em comum um
espírito decadente que os aproxima e até certo ponto igualiza. Dado que
este representa um substrato ativo da estética moderna, vale a pena referir
brevemente a definição que Fernando Pessoa sugere.
Assim, o decadentismo português, além de «proveniente da falência
de todos os ideais passados e mesmo recentes»(11), é misto,
caracterizando-se como uma composição de «tipos» diferentes de
decadentismo de raízes diversas e europeias. Em primeiro lugar ele é «uma
continuação [...] daquela parte do decadentismo que representa uma
revolta contra as regras, uma introspecção excessiva»(12). Em segundo
lugar, ele é o que reivindica «absoluta indiferença para com a humanidade,
a religião e a pátria»(13). Daqui resulta finalmente um «terceiro tipo de

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decadentismo» que surge precisamente «na corrente portuguesa que
veio [?] [sic] a manifestar-se em Orpheu, e constitui uma exacerbação dos
dois reunidos»(14).
Por outro lado, pode dizer-se que os vários «ismos» acabam por se
integrar no sensacionismo afirmando-se mais enquanto modos dessa
«corrente estranha - como diz Pessoa - a que pertencem a maioria das
composições de Orpheu, os livros de Sá-Carneiro, exceto Princípio e outras
composições análogas»(15), do que como tendências literárias
independentes.
Concentremo-nos por último um pouco nessa espécie de
consequência literária do cubismo que é o interseccionismo. Este «ismo»
salienta-se neste contexto, não só pela sua importância na avaliação do
caráter inovador da estética modernista, mas pela relação estreita que
detém com o fenômeno da heteronímia e a questão da sua gênese. Como
aparece então projetada na poesia a característica essencial da pintura
cubista?
Na verdade, a «decomposição do modelo» que os cubistas realizam é
intelectualizada pelos órficos, ou seja, ao ser transferida da pintura para a
literatura, é recriada em termos do que julgam ser «a esfera própria dessa
decomposição - não as coisas, mas as nossas sensações das coisas»,
desembocando, precisamente, na «atitude central» dos poetas
sensacionistas, para quem «a única realidade da vida é a sensação [e] a
única realidade em arte é a consciência da sensação»(16).
Por seu turno, o interseccionismo, definindo-se como
consciencialização dessa «deformação» de planos operada pelo cubismo,
a partir da qual cada sensação passa a ser «na realidade constituída por
diversas sensações mescladas», revela-se como processo privilegiado de
execução do mesmo sensacionismo, o qual, justamente, «pretende realizar
na arte a decomposição da realidade nos seus elementos
geométricos psíquicos»(17).
Observemos, para terminar, dois sugestivos exemplos encontrados,
respectivamente, na obra Céu em Fogo de Mário de Sá-Carneiro e no
poema «Chuva Oblíqua» de Fernando Pessoa:

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«O omnibus que o conduzia resvalava agora barulhento de erragens
pela Avenida monumental, e esse ruído acre, unindo-se às luzes imensas
que o fustigavam zebrando-se através das vidraças tilintantes, dava bem a
expressão rítmica da sua alma actual. A sua alma de hoje era toda vidros
partidos e sucata leprosa.
[...]
Disperso, o artista olhou em redor de si. Atentou no panorama que o
envolvia e pôs-se a delirá-lo, seguindo-o na sua multiplicidade. Pois o
cenário interior do auto-omnibus era inconstante: variava momento a
momento em função da paisagem exterior. Ao dobras as esquinas, os
grandes prédios e as árvores atravessavam-no resvalando em semi-círculo,
e os candelabros ziguezagueantes vergavam-se enclavinhadamente,
penetrando em rodopio pelas janelas.»(18)

«Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito


E a cor das flores é transparente de as velas
de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas ...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado ...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol ...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo ...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...» (19)

_______________________
(1) Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d,
pp. 121-122.
(2) Portugal Futurista, (3ª edição facsimilada), Lisboa, Contexto, pp. 33-34.
(3) Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Porto, Inova, 1974, pp. 57-58.
(4) Mário de Sá-Carneiro, Cartas a Fernando Pessoa, vol. I, Lisboa, Ática, 1978, p.
158.

7
(5) Fernando Pessoa, Cartas a Armando Cortes-Rodrigues, Lisboa, Horizonte, 1985,
p. 34.
(6) Eduardo Lourenço, «Sentido e não sentido do moderno», in Pentacórnio e
último, Lisboa, (sem nome).
(7) Orpheu, vol. I, Lisboa, Ática, s/d, p. 11.
(8) Mário de Sà-Carneiro, Cartas a Fernando Pessoa, vol. II, Lisboa, Ática, 1979,
pp. 83-84.
(9) Almada Negreiros, Orpheu - 1915/1965, Lisboa, Ática, s/d, pp. 27-29.
(10) Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d,
p. 167.
(11) Idem, Ibidem, p. 176.
(12) Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d,
p. 204.
(13) Idem, Ibidem, p. 176.
(14) Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d,
p. 163.
(15) Idem, Ibidem, p. 137.
(16) Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d, pp. 187-188.
(17) Mário de Sá-Carneiro, Céu em Fogo, Lisboa, Ática, 1990, p. 127.
(18) Fernando Pessoa, Obra Poética, Rio de Janeiro, Aguilar, p. 113.

(*) PIEDADE, Ana Nascimento, “7.4. Valores e atitudes fundamentais da


geração do «Orpheu»”, in Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea,
Carlos Reis (Org.), Lisboa, Universidade Aberta, 1990, pp. 170-175.

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