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Capítulo IV

OS SISTEMAS DE PENSAMENTO

«Não tendemos para uma coisa por pensar-


mos que ela é boa, mas, pelo contrário,
julgamo-la boa porque tendemos para ela».

Espinosa, Ética, 11, 9.

1. Introdução

No Ocidente, uma abundante produção literária, cinemato-


gráfica e televisiva sublinha o carácter ilusório das concepções
relativas a estranhas culturas exóticas que surgem como domi-
nadas pelas crenças e pela magia. Todavia, é duvidoso que os
europeus ou os americanos tenham uma consciência muito mais
clara das leis naturais e sociais que os governam. Embora as
teorias «indígenas» não sejam nada científicas (e sabemos como
as próprias verdades científicas são provisórias), mostram-se
eficazes socialmente e, na perspectiva da antropologia, é isso
que interessa. Além disso, no plano da adequação do indivíduo
à sua cultura, da compreensão e da interiorização dos valores,
não se pode afirmar racionalmente que a civilização industrial
suplanta todas as outras. Para um antropólogo, a palavra crença
não designa a religião dos outros. Os ocidentais não têm menos
crenças do que os outros habitantes do planeta. Seria errado
imaginar que a maioria destes funda racionalmente as suas
opiniões e que estão prontos a revê-las à luz de factos novos.

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Como observava Lévi-Strauss, e isto é válido para todas as


sociedades:

«Não há dúvida de que as razões inconscientes pelas quais se


pratica um costume, se partilha uma crença, estão muito longe
daquelas que se invocam para a justificar» (1958, p. 25).

Em qualquer religião, os crentes podem aceitar uma doutri-


na, não ignorando que, na realidade empírica, os factos se
desenrolam de outro modo. Em matéria de religião, é frequente
que uma coisa seja substituída pelo seu contrário, que a parte
valha pelo todo, que algo seja postulado quando se impõe a
necessidade. A psicanálise, a história das religiões e até a das
ideias políticas ensinam-nos que, ao nível do grupo, a crença
caracteriza-se pelo facto de não ser legítimo questionar a sua
veracidade. Em suma, o crente crê acreditar, faz parte de um
código cultural comum a todo o seu grupo e não se preocupa
muito em verificar o seu fundamento material. O imaginário
partilhado (e nenhuma sociedade é excepção) tem sempre mais
aprovação do que a constatação aflitiva. É talvez por um misto
de desafio e de sabedoria que a literatura oral da África Ociden-
tal advoga geralmente a favor de uma aparecente absurdidade.
Nos contos, o herói que pensa de modo estritamente realista é
quase sempre sancionado: desempenha o papel do perdedor.
A propósito das religiões dos índios da América do Sul, dos
aborígenes da Austrália, dos habitantes da Papuásia Nova Guiné
e da África Negra, os preconceitos mais persistentes, herdados
do século XIX, são ainda muito correntes na opinião ocidental
e até nas «elites» ocidentalizadas. Ora, as representações colec-
tivas dos povos sem máquinas estão longe de ser simplistas e,
por vezes, alcançam um grau de subtileza inesperado. Na arte,
precisámos de tempo para aprender que a aparência das coisas
não esgota a sua realidade, e muitos povos que qualificamos de
«selvagens» adquiriram esta convicção antes de nós. Mais uma
vez, é preciso ter o cuidado de não confundir simplicidade
tecnológica com pobreza cultural. As categorias de crenças e
de superstições, e até de religião, empobreceram considera-
velmente a imagem das culturas antigas. É preciso dizer que,

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Os SISTEMAS DE PENSAMENTO

durante a conquista do oeste americano ou a ocupação colonial


de África, seria por certo moralmente desconfortável reconhe-
cer o engenho e a riqueza dos sistemas de pensamento «indí-
genas».
Actualmente, parece prudente considerar que uma pobreza
cultural postulada a propósito de determinada sociedade disfar-
ça, na maioria dos casos, a pobreza da informação de que se
dispõe.
As populações qualificadas pelos primeiros etnólogos como
«paleonegríticas», ou seja, as mais atrasadas da África Ociden-
tal francesa, perpetuam conhecimentos intelectuais de extraordi-
nária complexidade. Entre os Minyanka, o culto de Nya com-
porta uma série de altares sagrados, correspondendo cada qual
a um sinal gráfico, a um animal mítico, a uma espécie vegetal,
a um antepassado fundador, a um conjunto de conhecimentos
medicinais e, por vezes, a um astro.
Entre os Bambara, o indivíduo é iniciado em sociedades
religiosas hierarquizadas, no seio das quais pode adquirir uma
cultura religiosa esotérica (D. Zahan, 1960). Vale a pena citar a
conclusão de Reichel Dolmatoff, no fim do seu estudo sobre o
simbolismo dos índios Tucanos, da Amazónia:

«Viajámos através do universo. Um imenso mundo de signos e


símbolos, de imagens e cores, abriu-se diante de nós; neste
mundo, reconhecemos por vezes formas de pensamento que não
nos são estranhas, pois são universais. Que tal mundo tenha sido
criado num canto da Amazónia, que tal esforço tenha sido
despendido para criar este modelo de existência e de perpetuação
da floresta tropical dos Vaupés, só pode reforçar a nossa admira-
ção e confirmar que esse mundo a que chamamos "primitivo"
encerra valores que não deviam ser subestimados» (G.
Reichel-Dolmatoff, 1971, p. 252).

Os sistemas de pensamento, longe de se reduzirem a um


conjunto de superstições, resultam em saberes, numa zoologia,
uma botânica, uma psicologia, por vezes uma teoria histórica. O
relativismo cultural causa algumas dificuldades de tradução na
medida em que essas diferenças de concepção podem incidir

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

sobre noções elementares, que parecem tão evidentes que nin-


guém se lembra de as discutir.
Não existe, por exemplo, uma definição única e universal da
noção de pessoa humana ou de indivíduo. Não só se trata de uma
categoria que varia no tempo e no espaço e no seio de uma
mesma cultura, como pode também ser objecto de interpreta-
ções variáveis conforme as circunstâncias. Em função da nossa
educação, a sociedade fala sempre em nós. A nossa concepção
do indivíduo não é aquela que prevalece na Índia, na China ou
em África. No Ocidente, o Platão de A República, os jansenistas
e o psicólogo húngaro Szondi familiarizaram-nos com as teorias
que se referem ao destino. Várias sociedades africanas, os Fon
(Benim), os Achanti (Gana), os Tallensi (Gana), os loruba
(Nigéria), os Gurmantché (Burkina Faso) e os Mossi (Burkina
Faso) poderiam ser associados a este tipo de concepções. Estes
póvos, com efeito, admitem que uma causa inata (uma escolha
efectuada antes do nascimento por uma componente do próprio
sujeito ou por um dos pais) determina o curso particular da sua
vida. Mas

«neste mundo regido pelo destino, o homem vive em relativa


segurança, convicto de que, entre o destino inexorável instituído
para um indivíduo e a realização desse destino, há uma saída
possível» (M. Herskovits, 1938, p. 222).

Esta saída é oferecida por aquilo a que os ocidentais chamam


magia, ou seja, o meio de agir segundo o modelo das forças
sagradas.
A noção de sistemas de pensamento é, evidentemente, bas-
tante problemática, uma vez que uma grande quantidade de
incerteza toma o seu estudo mais complicado. Como é que
podemos saber realmente aquilo que as pessoas pensam? Actu-
almente, sabe-se que até grupos de dimensões reduzidas, do
mesmo campo linguística e religioso, podem admitir, ao nível
das opiniões e das práticas, grandes variações. O peso das
tradições raramente chega a determinar concepções idênticas
em todos os adeptos de um mesmo culto, e os primeiros
etnólogos, ansiosos por encontrarem uma «alma negra» ou por

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Os SISTEMAS DE PENSAMENTO

penetrarem na psicologia asiática, exageraram o carácter


consensual das culturas não ocidentais. Esta correcção impõe-se,
mas não nos deve conduzir à negação de todo e qualquer
sistema.
Por sistemas de pensamento entendemos o conjunto de
ideias e concepções com que os indivíduos se deparam e que se
impõem mais ou menos a eles: concepções do universo, da
sociedade, da pessoa humana, classificações, mitologias, cren-
ças religiosas, adivinhação, magia, etc. Portanto, o pensamento
designa, em simultâneo, a função (o pensamento) e os seus
produtos (os pensamentos). Trata-se de um domínio que não se
limita às representações conscientes e que transcende também a
oposição individual/colectivo.
Actualmente, toda a gente sabe que muitas técnicas e con-
cepções são aprendidas sem ser ensinadas. As representações
colectivas constituem totalidades relativamente variáveis, mas
obedecem a regras. Articulam-se, na minha opinião, segundo
dois sistemas: um sistema simbólico e um sistema ideológico.
Estes dois conceitos não remetem para objectos empíricos
distintos, mas para a problemática segundo a qual se considera
os mesmos factos.

2. O sistema simbólico

Os sistemas de pensamento - quer se trate de factos que


dantes se agrupavam sob os títulos de crenças, superstições,
mentalidades, ou de convenções, como a estruturação do tempo
e do espaço, a culinária ou o vestuário - devem ser estudados na
perspectiva da sua coerência interna. No seio de uma cultura, as
correspondências simbólicas não são anárquicas: nem todas as
combinações são igualmente possíveis. Sublinhou-se muitas
vezes, em numerosas populações, a existência de saberes siste-
máticos, de classificações sobre as coisas da natureza e da
cultura. Uma cultura baseia-se numa grelha de correspondências
simbólicas, que constitui uma ordenação do Universo, da socie-
dade e do indivíduo. Este sistema de totalidade, no qual se
integram as concepções de toda a ordem, responde a uma

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

exigência de sentido. Toda a obra de Lévi-Strauss tendia a


mostrar que, para o homem (animal simbólico), o universo tinha
de significar de modo a poder ser conhecido.
Qualquer indivíduo é portador de teorias e de categorias
inconscientes, adquiridas praticamente sem esforço pelo funci-
onamento normal da aprendizagem social. É a conclusão a que
Meyerson já chegara, quando escrevia:

«0 pensamento de todos os povos antigos assenta na ideia de um


sistema universal de correspondências em todos os domínios da
natureza, do sobrenatural, do fisiológico e do psicológico» (1948,
p.43).

A linguagem, evidentemente, desempenha um papel essenci-


al: sem linguagem não há sistemas simbólicos possíveis, pelo
menos no sentido em que a entendemos. Edward Sapir foi um
dos primeiros a compreenderem a importância dos mecanismos
inconscientes neste domínio. A linguagem, cujas regras esca-
pam em grande medida à consciência, impõe aos indivíduos que
a utilizam um sistema de classificação que lhes modela as
percepções. Cada linguagem faz escolhas na realidade sensível,
estrutura o espaço e o tempo: a cada linguagem corresponde
uma visão específica do mundo. Para B. L. Whorf, «dissecamos
a natureza segundo as linhas traçadas pelas nossas línguas
maternas» (1958). Trata-se de uma hipótese difícil de verificar
e Whorf foi acusado de ter exagerado a singularidade da língua
hopi para levar a cabo uma crítica antropológica da sociedade
industrial. No entanto, parece razoável pensar que princípios de
estruturação linguísticos diferentes devem implicar maneiras de
pensar diferentes. Não há dúvida de que a própria língua não é
um dado imutável; ela evolui correlativamente com as outras
práticas sociais, como demonstram os numerosos neologismos
que o progresso do conhecimento e as modas lhe impõem. Já
tivemos ocasião de abordar as representações mentais que im-
plicam certas terminologias de parentesco e de mostrar como
elas «manipulam» o facto natural.
Em muitos casos, os antropólogos tinham tendência para
querer escrever uma espécie de versão oficial das culturas que

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Os SISTEMAS DE PENSAMENTO

estudavam. Ora, traduzir um relato, um ritual ou uma experiên-


cia religiosa em palavras é sempre, em certa medida,
transformá-los. Jack Goody esforçou-se por compreender como
é que a «domesticação» pela escrita das tradições orais pôde
deformar os modos de pensamento próprios às sociedades sem
escrita. Analisa também tudo aquilo que os modos de pensa-
mento abstractos, «racionais» ou «científicos», que estão asso-
ciados ao desenvolvimento da escrita, devem à sua inscrição
gráfica (1. Goody, 1980). Actualmente, concorda-se em criticar
a «reificação» pela qual a etnografia dava corpo, de modo
rígido, a determinada cultura, que seria assim definida de uma
vez por todas.
Quando se passam em revista as diferentes abordagens dos
sistemas simbólicos, damo-nos conta de que nenhuma «coloca-
ção em narrativa», segundo a expressão de Paul Ricceur, é
possível sem um corpus de hipóteses fundamentais sobre a
natureza daquilo que se pretende descrever. Os evolucionistas,
que trabalhavam principalmente a partir de fontes indirectas
como os relatos de viagem, pretendiam reconstituir inteiramente
uma história da humanidade. Deste modo, generalizavam a
partir de informações parciais, sem se preocuparem muito em
criticar as fontes. Os funcionalistas recolhiam os relatos e
descreviam os ritos que lhes pareciam formar um «mapa» que
validava a ordem estabelecida. Do lado francês, a «escola de
Marcel Griaule» foi preponderante até aos anos 50. Dedicou-se
principalmente ao estudo da mitologia. Marcel Griaule e Germaine
Dieterlen esforçaram-se por descrever a armadura mitológica
que estaria na base da cultura de boa parte dos povos da antiga
África Ocidental Francesa. Foi entre os Dogon que esse trabalho
«mitográfico» de grande fôlego, inaugurado pelas conversas
com Ogotemmeli, um velho sábio dogon que queria iniciar
Griaule, encontrou a sua ilustração mais perfeita. Após a morte
de Griaule, Germaine Dieterlen continuou a investigação e
publicou dois tomos da obra Le Renard Pâle. Segundo esta
versão iniciática do trabalho de terreno, à «parole de face»(*),
que se comunica às crianças, aos adultos pouco sérios e aos

(') Literalmente, fala de frente, ou conhecimento simples (N.T.)

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

estrangeiros, opor-se-ia a «parole claire» [fala clara ou conheci-


mento profundo], que faz intervir a cosmogonia e as bases
religiosas da organização social. Os trabalhos de Genevieve
Calame-Griaule, que se baseiam em investigações de
etnolinguística (G. Calame-Griaule, 1965), e de Dominique
Zahan (1960) sobre os Bambara inscrevem-se igualmente nesta
corrente.
Estas tendências da antropologia encaram a cultura numa
óptica que se poderia qualificar de patrimonial, afirmando, de
algum modo, que uma cultura só se pode compreender nos
seus próprios termos. De certa maneira, o estruturalismo ten-
tou ultrapassar este encerramento dos sistemas, tentando
reconstituir, a partir de todos os enunciados conservados pela
memória social, as classificações fundamentais que possibili-
tam o exercício do pensamento. Mas esse projecto, de certo
modo, separou a cultura da sua eficácia social, encarando-a
como um conjunto de variações derivadas de um código
universal (ver p. 69). Igualmente influenciados pela semiologia,
os estudos da comunicação sublinharam a necessidade de não
se separar os enunciados recolhidos no terreno das condições
de enunciação, devendo as falas ser consideradas como actos
que visam produzir determinados efeitos. Actualmente,
insiste-se no carácter dialogado da etnografia e até no seu
carácter «dialógico», segundo a expressão corrente retirada do
teórico da literatura Mikhail Bakhtine. Fala-se de abordagens
«performativas» da etnografia (a partir de uma distinção,
estabelecida pelo linguista americano Noam Chomsky, entre
competência e desempenho), quando o investigador se interes-
sa pela produção de uma informação que não existia forçosa-
mente enquanto tal antes da investigação que a produz. Estes
estudos colocam a tónica na importância do contexto e defen-
dem uma antropologia mais pragmática. O ritual, por exemplo,
não é apenas a actualização de uma memória; sabemos isso
desde Gluckman.
Vários autores, como Tumer e Schechner, propõem conside-
rar os rituais segundo o modelo de «dramas sociais». É claro que
os ritos não têm a função de aplicar literalmente uma doutrina
enunciada noutro lado. Limitam-se muito raramente a pôr em

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Os SISTEMAS DE PENSAMENTO

prática ou a reafirmar as codificações socialmente estabelecidas,


porque conferem uma expressão pública às contradições, à
contestação e até aos conflitos. Acontece que aqueles que
cumprem os ritos insistem no seu carácter imutável, mas, na
verdade, esses ritos são quase sempre criativos.

3. O sistema ideológico

Segundo Marx, a religião serve os interesses políticos e


económicos das classes dominantes e neutraliza as contestações
fazendo promessas para o Além e inspirando o respeito pela
ordem estabelecida. Alguns autores postulam que a ideologia
nasce apenas com a emergência de classes sociais antagónicas
e do Estado. Para outros, e esta é a posição aqui adoptada, existe
uma ideologia «em geral», ou seja, um conjunto de concepções
que fundam a ordem social e a justificam, validando, se neces-
sário, poderes e privilégios. Nesta óptica, a ideologia é também
a teoria implícita segundo a qual os diferentes domínios da vida
social se integram numa totalidade.
A oralidade não é forçosamente portadora de ideais igualitá-
rios. Em muitos casos, as sociedades tradicionais baseiam-se
numa estrutura hierárquica instituída segundo critérios de casta,
de sexo e de idade. Sendo a memória a única guardiã do saber,
o volume deste aumenta à medida que se avança na idade.
Muitas vezes, uma série de regras especifica os domínios do
saber que cabem aos homens e às mulheres. O conhecimento é
também protegido por barreiras institucionais, como as inicia-
ções sucessivas, o esoterismo, o segredo, etc. Estas formas de
confiscação do saber têm geralmente como efeito o reforço do
poder dos mais velhos. Assim, o sistema de valores atribui à
idade virtudes especiais: à medida que alguém envelhece, avan-
ça para um estado de sacralidade, e os idosos são considerados
pessoas dotadas de capacidades extra-sensoriais. Julga-se que
estão em contacto com o passado e já em posição de mediadores
relativamente aos seres do Além. Após a sua morte, o respeito
que lhes era devido enquanto parentes transforma-se em culto
dos antepassados.

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

Os Shilluk do Sudão, apesar de um habitat disperso, conse-


guem conservar uma autoridade centralizada. Deve-se honra e
respeito ao rei, pois este é de essência divina: é considerado a
reencarnação de Nyikang, o primeiro rei-fundador da tribo.
Segundo Evans-Pritchard, é a função real que permite evitar a
desagregação da sociedade.
Outro exemplo da função ideológica das representações men-
tais: entre os Bambara do Mali, o poder está baseado no conhe-
cimento secreto detido pelos homens; as mulheres estão (oficial-
mente) privadas de poder decisório. Do mesmo modo, a palavra
das mulheres, «por natureza» instável segundo a versão oficial,
é considerada como tendo uma essência diferente da do homem.
Por último, um pouco por todo o mundo, a interpretação da
desgraça concorre para reforçar as normas sociais: aquele que
sofre uma infelicidade não respeitou interdições, quebrou as
regras do parentesco, negligenciou os poderes religiosos, etc.

4. A importância do contexto

Numa dada cultura e, a fortiori, ao nível transcultural,


nenhum símbolo recebe um sentido definitivo, porque a signifi-
cação depende sempre do contexto. Ao falar-se de mitologia,
por exemplo, importa, em primeiro lugar, saber se aquilo a que
se chama o mito provém do enunciado de um relato coerente, e
nesse caso é necessário conhecer o contexto de enunciação e
estudá-lo como facto de comunicação. Em contrapartida, convi-
dar um «informador» a formular um relato exemplar e causal a
partir de indícios fornecidos em diversos domínios (práticas
rituais, comportamentos quotidianos, correspondências simbóli-
cas oriundas de provérbios, de aforismos, de orações, de
etimologias), é um exercício diferente, que, no fundo, significa
coproduzir com ele uma representação. Nada impede que o
etnólogo se dedique a uma hermenêutica, organizando as infor-
mações de que dispõe como uma charada, cuja chave terá de
encontrar; nada o impede de estabelecer um diálogo criativo
com os seus «informadores», mas o resultado deve mostrar-se
como o produto desse diálogo, e não como um «dado» que seria

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a chave de interpretação de todos os factos observáveis na


sociedade em causa. A priori, nada nos diz que uma categoria de
relatos a que chamamos mitos contenha os dados cosmológicos
essenciais. Trata-se de uma teoria muito nossa, que passa pelos
Gregos e cuja escrita, como mostrou Marcel Détienne (1981),
vem de uma história complexa.
A influência preponderante do estruturalismo alterou radi-
calmente o modo de encarar os sistemas de pensamento exóti-
cos, mas muitos antropólogos manifestaram o desejo de integrar
o formalismo e o pragmatismo num mesmo quadro teórico.
Podemos citar autores como C. Geertz, V. Tumer e D. Schneider.
Estas considerações podem ser integradas numa corrente da
antropologia francesa, que não dissocia os pontos de vista
sociológico e antropológico. Independentemente das diferenças
das suas abordagens, autores como M. Augé, P. Bourdieu e M.
Godelier reflectem sobre problemas semelhantes: recusam, em
simultâneo, o anti-sociologismo, que faz dos códigos simbólicos
uma espécie de arte pela arte, e o reducionismo, que os consi-
dera o reflexo directo das relações de força políticas ou sociais.
Para eles, a questão do sentido dos sistemas simbólicos não se
pode separar da sua eficácia social, pois esses códigos instauram
diferenças no seio do social.
Actualmente, a análise do poder e da ideologia apresenta-se
de modo diferente: o uso da força já não é a característica
distintiva exclusiva do poder (Weber) e a ideologia não se reduz
a um discurso astucioso dos poderosos para conservarem os seus
privilégios. A justificação do poder implica sempre, da parte dos
dominantes e dos dominados, uma visão do mundo, uma teoria
da pessoa e uma reflexão sobre o destino. Para beneficiar de
alguma legitimidade, é necessário que o domínio passe por uma
troca e que o serviço prestado pelos dominantes, reis e sacerdo-
tes, pareça indispensável à salvaguarda da ordem cósmica.

5. Reprodução, contradições e conflitos de valores

Sem sistema de pensamento, uma sociedade não podia exis-


tir. Isto pode parecer um truísmo, mas, numa época em que a

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL

própria noção de sociedade é por vezes contestada, vale a pena


lembrá-lo. Os seres humanos não podem viver sem se organiza-
rem em sociedade e sem tomarem inteligível o mundo. Os
determinismos biológicos não lhes fornecem soluções fmais; o
homem tem de inventar parcialmente o universo em que vive.
Como diz Marc Augé (1977, p. 83): «Qualquer organização é,
simultaneamente, representação de si mesma (quer diga respeito
ao parentesco, à economia ou à política)>>.Para que a sociedade
perdure, é necessário que esses esquemas culturais se transmi-
tam de geração em geração. No entanto, um modelo social não
pode assegurar a perpetuação sem adaptar o seu programa e sem
se inscrever numa história. Sofre sempre um movimento duplo:
o que resulta das suas contradições internas e o que resulta da
modificação do contexto em que se situa. Sejam quais forem as
perturbações e as mutações, uma sociedade educa, forma, «so-
cializa» os seus novos membros tendo em vista uma certa
estabilidade. A sociedade nunca consegue tomar os seus mem-
bros perfeitamente conformes, e os falhanços traduzem-se por
comportamentos desviantes, que ela reprime mais ou menos
severamente.
Nas sociedades orais, os homens vivos, de carne e osso, são
os depositários do património. Poucos meios técnicos permitem
fixar as regras e os saberes; é a memória que desempenha o
papel mais importante, o que levou o sábio Hampaté Ba a dizer:
«cada velho que morre é uma biblioteca que arde».

6. A cultura enquanto produção histórica

Contra as concepções patrimoniais da cultura, podemos


subscrever alguns enunciados propostos por James Clifford, um
dos chefes de fila da crítica do «cânone antropológico».

«... a cultura é sempre relacional, está inscrita num processo de


comunicação que existe, historicamente, entre sujeitos que man-
têm relações de poder. (...) A cultura e a ideia que dela temos são
historicamente produzidas e activamente contestadas. Não há um
quadro geral que deva ser preenchido, porque perceber lacunas e

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preenchê-las implica a descoberta de novas lacunas (...). Se uma


cultura não é um objecto que possa ser descrito, também não é um
corpus de símbolos e de representações que possam ser definiti-
vamente interpretados. A cultura é contraditória, temporal e
criadora. Representação e explicação - seja do interior ou do
exterior - estão implicadas nesta criação» (J. Clifford, 1986, pp.
15, 18, 19).

Estas relativizações exprimem apenas a impossibilidade de


um saber total e intangível sobre objectos vivos que, a cada
instante, têm de se produzir. Num texto recente, Alban Bensa
definiu com alguma ironia a noção de cultura como «o hipoté-
tico reservatório de representações ordenadas que preexistiria às
práticas e lhes daria sentido a priori» (1996, p. 44). Fala também
de «stock finito de tradições». Percebe-se que Bensa visa assim
o tipo de naturalização através da qual a etnologia substituiu as
concepções raciais dos inícios por uma distribuição da humani-
dade em unidades culturais quase definidas como espécies. É
verdade que presumir uma herança intelectual como objecto
cultural disfarça o carácter criativo, performativo, da cultura,
em proveito de saberes patrimoniais imutáveis.
No entanto, a cultura enquanto conjunto de significações e
de valores partilhados de modo difuso continua a ser um concei-
to indispensável, ainda que se possa discutir a homogeneidade
e o grau de integração das formações culturais. Levar a sério a
noção de cultura não significa negar a sua natureza histórica
nem o seu carácter «polifónico». Nesta perspectiva, podemos
admitir a formulação de Marc Augé, para quem:

«O espaço da antropologia é necessariamente histórico, uma vez


que é precisamente um espaço investido por grupos humanos, ou
seja, um espaço simbolizado. Esta simbolização, que é a acção de
todas as culturas humanas, visa tomar legível, a todos aqueles que
frequentam o mesmo espaço, um certo número de esquemas
organizadores, referências ideológicas e intelectuais que ordenam
o social. Esses três temas são a identidade, a relação e, precisa-
mente, a história» (1994, p. 14).

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