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OS INDÍGENAS BRASILEIROS E A FILOSOFIA


Robson Araújo 1

1. A COSMOVISÃO INDÍGENA

Os Camacans, ou Camacãs, pertencem a um grupo indígena que, no


século XX, se fundiu com os antigos Pataxós hã-hã-hães. Sobre eles, um
pesquisador do século XIX assim se referiu:

A noção da idéia de Deus é tão vaga, tão indefinida na população do valle do


Amazonas, que os simulacros são tomados pela divindade, não conseguindo
desatar-se a pensamentos religiosos mais elevados. 2

O juízo de valor feito aos Camacans, nas palavras de Mello Moraes


Filho, reflete como os indígenas brasileiros eram vistos pelos
intelectuais etnólogos da época: eles avaliavam os povos pela capacidade
de apresentar um pensamento religioso em um deus. Por outro lado, os
aborígenes, como os Camacans, viam a natureza como divina, como
podemos constatar ao analisar os seus mitos. Vejo essas diferenças
como arbitrárias e as interpretações como arrogantes sobre outra
cultura tomando como referência a sua própria cultura. Classifico isso,
hoje, como um erro cultural do espírito colonizador do império das
crenças e me questiono: o que é mais sagrado? A religião de um deus que
levou seus seguidores a várias guerras, como as cruzadas, ou deuses que

1
Grupo Fibra
2
. A frase foi retirada de um artigo publicado na Revista da Exposição Anthropologica Brasileira, ‘Deuses-
Fetiches do Amazonas’. São palavras ipsis litteris do Dr. Mello Moraes Filho (OLIVEIRA, 1890, p. 9).
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harmonizaram-se com todas as espécies da natureza, como aparecem


nos mitemas indígenas?
Vou usar mais um trecho dessa obra etnográfica para ilustrar um
estigma construído pelos colonizadores e repassado pelos brasileiros da
época:

Sem receio de errar, pode-se asseverar o mesmo com relação a todos os


indígenas brazileiros, que permanecem em estado primitivo. Os camacans,
por mais intimo que tenha sido o seu contacto com o homem civilisado,
ainda não afastaram-se d’esse ponto, que os liga a animalidade, quer se os
considere pelo lado social, quer pelos seus sentimentos religiosos.
Procurei descobrir na maior parte d’elles uma intuição perfeita ou
imperfeita de um Ente Supremo, e baldados foram os meus esforços;
porque, quanto mais examinava as idéias d’aquelles cérebros grosseiros,
mais me convencia de que ellas gyravam no circulo estreito das mais
urgentes necessidades da vida material (OLIVEIRA, 1890, p. 10).

Como vocês podem ver, a expressão “necessidades da vida


material” simplesmente compõe um argumento ideológico excludente
e paradoxal para justificar o sistema de dominação. Com essa
generalização nos contatos com os indígenas, perdeu-se a oportunidade
de conhecer o pensamento dos povos originários, de uma filosofia
ecológica, sendo esse impedimento causado pela intolerância e pelos
preconceitos raciais. Aqueles simulacros indígenas, anteriormente
vistos como fantasias descabidas, hoje são seriamente estudados e
revelam-se sábios e oportunos para mostrar caminhos para um mundo
mais sustentável.
Para falar de um pensamento indígena, antes de tudo, seria
oportuno rever os conceitos de filosofia e filósofo. Começarei
relembrando as definições tradicionais.
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Segundo Mary Warnock, o filósofo é alguém com alto grau de


generalidade, que se sente à vontade com as ideias abstratas e procura
a verdade por detrás dos fatos, dos pormenores da história, do
significado subjacente da linguagem, do uso da razão, dos sentimentos
e da cultura. Segundo Warnock, David Hume (1711-1776) encabeça o
modelo de um grande filósofo, sobretudo por meio de seu pensamento
inquiridor. Em seus ensaios, Hume tratava sobre vários temas: sociais,
políticos, éticos, estéticos e econômicos. Em sua obra, há generalidade e
reflexões de elevada ambição explicativa. Além disso, o pensador se
valia da argumentação, característica filosófica fundamental nesse
processo, para discutir as teorias (WARNOCK, 2019).
Sem dúvida, esse modelo de atividade intelectual, de certa forma,
não apenas cumpriu como também superou seu papel e nos brindou
com obras como as de Nietzsche, Marx, Freud e outros pensadores
revolucionários. Esses pilares da história do pensamento também não
nos deixariam esquecer a complexidade humana e as forças que nela
habitam. Eles são os rebeldes da história da civilização e nos lembrariam
que quem filosofa são homens e mulheres, seres incompletos,
insuficientes, afetados pela boa ou má fortuna. Assim, a filosofia nasce
no ser humano a partir de um sentimento, de uma dor, de uma
indagação, de um prazer, de um tormento, de uma consciência, etc. Essa
ampliação do pensar crítico não indica que o filósofo seja um fraco, mas,
sim, um ser insatisfeito e inconstante. Vários pensadores apontaram
direções para a filosofia e suas amplas possibilidades.
Em outro aspecto, além de abarcar vários campos do
conhecimento, filosofar não tem nada a ver com rezar, pregar, seguir
uma crença, ter compaixão ou defender ideias. O filósofo é alguém leve,
que reflete, está aberto ao novo, desconfia dos valores e das ações
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humanas, além de comunicar, de algum modo, suas críticas ou novos


modos de perceber um determinado problema. Propomos esse modelo
de filósofo tradicional para nossas argumentações. Nesse sentido, nada
melhor do que nos expressarmos através das palavras de dois grandes
pensadores franceses em sua famosa obra O que é a filosofia?:

Não estávamos suficientemente sóbrios. Tínhamos muita vontade de fazer


filosofia, não nos perguntávamos o que ela era, salvo por exercício de estilo;
não tínhamos atingido este ponto de não-estilo em que se pode dizer enfim:
mas o que é isso que fiz toda a minha vida? Há casos em que a velhice dá
não uma eterna juventude mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma
necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida
e a morte, todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir
um traço que atravesse as eras (Deleuze & Guattarri, 2010, p. 7).

Deleuze e Guattarri viram na necessidade e na liberdade âncoras


básicas para filosofar. Vou apresentar a seguir, resumidamente,
expressões que se consagraram pela imagem, um modelo de pensamento.
Para Platão, a filosofia começa com o “espantar-se”; Aristóteles, no
“admirar-se”; Sócrates, na dimensão radical de “viver dignamente”; para
Dewey, a filosofia é a “crítica dos valores”; Kant entendia-a como a ciência
da “relação do conhecimento com a finalidade essencial da razão
humana”; para Descartes, o “estudo analítico e racional do
conhecimento”; Hobbes via a filosofia como a “ciência causal” e a
utilização dessa em benefício do homem. Alguns extrapolavam ao ver a
filosofia como uma “gramática”, segundo Strawson, ou um “gênero
literário”, como Rorty. A saudosa professora Sônia Viegas (1944-1989) via
a filosofia como a “sabedoria em ação”. Enfim, todas essas concepções são
conhecimentos intelectivos gerais e racionais. Apresentei-os na forma de
imagens da filosofia, porque as discussões dos problemas filosóficos têm
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sua limitação: o próprio ser. Somos complexos e anfíbios: vivemos na


realidade e na imaginação. Além disso, o método racional sistematizador
da filosofia é impotente ao querer unificar os debates e as discussões. É
por isso, talvez, que os filósofos usam as imagens em filosofia. Por isso os
simulacros indígenas, citados por Moraes Filho, não deixam de ser
consistentes como imagens, representações, e a liberdade dos pensadores
fundamental para essas criações.
Ainda no âmbito das imagens, os indígenas sustentam uma visão
ampla e fundamental de que a natureza é divina em si. Isso, em parte, é
semelhante ao Deus de Espinosa (Deus sive natura), mas, por outro lado,
a imagem indígena não é racional, contradizendo Descartes e as
religiões dualistas — corpo e alma —, já que haveria a separação entre a
natureza e Deus — criatura e criador. O indígena vê o mundo como um
todo, nem paraíso e nem inferno (invenções domesticadoras), e seu
pensar se traduz na comunicação com a natureza, cuidando dos rios e
das florestas.
Defenderei inicialmente dois pontos: a perspectiva de uma
filosofia indígena e a importância de sua colocação no cenário
sociocultural mundial. Farei isso sem esperar sinais de mediação de
instituições acadêmicas, seguindo o exemplo de outros ensaístas que
afastaram-se delas para realizar os seus próprios projetos. Não
compreendemos esse receio de pensar filosoficamente a cultura
indígena e o medo daquilo que parece distante e diferente. Por isso, essa
empreitada fica a cargo de pessoas capazes de formular problemas
sobre a realidade ou a teoria, ceticamente, e não para fazedores de
pesquisas. Pergunto-me: a filosofia grega não partiu dos mitos?, seus
representantes originários não eram os rapsodos?, a obra artística
fundamental dessa cultura não era ágrafa? e a base dos pensamentos
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não era a physis (natureza)? Por que não uma perspectiva filosófica
indígena brasileira baseada nos mitos indígenas?
Penso que esta questão será respondida em parte neste texto,
porém, preciso da indulgência do leitor por fazê-lo percorrer um
caminho tortuoso e digressivo. Peço a transvaloração dos valores
ocidentais, que tanto se esforçaram em anular nossa cultura originária,
principalmente os raciais.
Por exemplo, uma das formas que os indígenas têm para se
expressar é ornamentar o corpo. As pinturas pretendem lembrar as
cores dos pássaros e animais, as folhagens, enfim, a natureza — como a
mimésis grega. Essa forma de imitação expressa um desejo: dizer que
eles fazem parte da floresta, que comungam sua história e sua vida. Por
meio de todas essas ações respeitosas com a floresta, o pensamento
indígena se expressa, de forma não convencional, e temos que buscar
estas pistas nas suas estórias, nos seus hábitos e nas suas artes.
A primeira crítica que esse ensaio poderia receber é de estar
propondo uma filosofia particular. Não, não é essa a proposta. Estamos
tentando introduzir uma filosofia periférica, mas não particular.
O professor Gerd Bornheim (1929-2002), em Filosofia e realidade
nacional, discutiu categoricamente o problema de uma filosofia
nacional, segundo o pensador, reiteradamente colocado no terceiro
mundo. Ele considera esse movimento intelectual um desiderato:
“trata-se do processo que pretende superar uma situação de
inferioridade cultural através da afirmação de uma ‘linguagem’
nacional” (BORNHEIM, 1998, p. 163, 167-168). A filosofia é universal.
Qualquer povo poderia se expressar por meio de conceitos filosóficos os
seus problemas, as suas aporias, o seu modo específico de ser … não tem
sentido ser nacional. As questões colocadas por um Comte ou por um
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Marx são simplesmente francesas, alemãs? Não. E, da mesma forma,


não há uma filosofia dos indígenas, pois ela é universal.
Bornheim acredita que cada vez fica mais difícil enxergar o
particular no mundo globalizado, de amplo horizonte de valores. Para o
pensador brasileiro, a mídia tem a tendência de causar nivelamento e a
homogeneização das particularidades culturais, dos valores. Mas o
mundo, com sua pluralidade de culturas, não possui uma autoridade
soberana para avaliar determinada cultura, com outras palavras, “uma
determinada cultura não poderia servir de padrão para julgar outras
culturas”. Falar de filosofia nacional, por esse motivo, passa a ser
anacrônico. O que não podemos negar é uma perspectiva filosófica do
indígena brasileiro, uma cosmovisão.
Uma afirmativa de Ailton Krenak talvez ilustre o modo indígena de
se expressar:

A grande diferença que existe entre o pensamento dos indígenas e o


pensamento dos brancos é que estes acham que o ambiente é recurso
natural, como se fosse um almoxarifado em que se tira, tira, tira ... as coisas.
Para o indígena, [a natureza] é um lugar que tem de se pisar suavemente,
porque está cheio de outras presenças (COHN, 2015, p.5).

Observe que essa linguagem não é técnica, impositiva, hierárquica


ou autoritária, mas espiritualizada, que pretende organicidade e
harmonia. A natureza já é transcendental, e a visão de mundo indígena
é o resultado de um protocolo de comunicação entre os indivíduos da
natureza. Se há escassez de caça ou pesca, o motivo é a falta ou a má
comunicação com os seres da natureza. Nesse diálogo comunicativo
com a natureza, de ordem simbólica, os indígenas aprenderam que deve
haver respeito, negociação, reciprocidade, dádiva, oferenda ... Isso
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significa que os aborígenes veem o mundo mais com a espiritualidade


intuitiva do que como um negócio administrado racionalmente.
O grande problema para entender a visão de mundo dos indígenas
é a intencionalidade. Não adianta discutir o certo e o errado se não há
uma vontade boa e incondicionada. É possível que nossos preconceitos
antecipem a leitura do pensamento dos povos originários. E o problema
permanecerá: como ver sem ideologias uma cultura que ostenta o
diferente, o original, a vereda incomum construída por fatores
transumanos? Aquilo que é diferente deve se curvar?

2. PERSPECTIVA FILOSÓFICA INDÍGENA

Seria possível aos ameríndios expressar alguma forma de


pensamento reflexivo e crítico? Essa é a primeira proposição que pretendo
discutir. Até agora, os estudiosos, em sua maioria, admitem que haveria
certa expressão filosófica no Brasil 3 a partir da segunda metade do século
XIX, não antes. Acreditam que pensar em séculos anteriores seria “forçar”
a classificação, empobrecer o pensamento e confundir filósofo com o
admirador da filosofia. Os que não acreditam em uma filosofia brasileira
no passado apoiam essa crítica, principalmente devido à falta de
originalidade na estrutura do pensamento e no estilo tradicional de fazer
filosofia. Ora, se esses mesmos critérios fossem usados para o pensamento
ocidental, certamente muito menos filósofos integrariam os livros de
história da filosofia. 4 Penso que o preconceito, ou melhor, um

3
. Em várias passagens usaremos os termos “filosofia brasileira” ou “filosofia no Brasil” para nos referirmos
ao lugar onde ocorreu, nas terras brasileiras.
4
. Segundo o filósofo e matemático britânico Alfred North Whitehead (1861-1949): “The safest general
character-rization of the european philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to
Plato” (WHITEHEAD, 1978, p. 39).
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condicionamento eurocêntrico, impediu trabalhar imparcialmente a


cultura dos indígenas à luz de uma investigação dos seus aspectos
filosóficos. Essas culturas periféricas, consideradas inferiores no período
da descoberta do Novo Mundo, não encontraram à época pessoas
suficientemente preparadas e sensíveis para essa avaliação. Apesar da
aculturação e do genocídio indígena, o pouco do patrimônio que foi
recuperado e o estudo dos povos ainda não “contaminados” pela
civilização nos dão indícios e a certeza de que a rejeição à cultura dos povos
originários foi um gravíssimo erro do colonizador.
O certo é que essa discussão necessita ser retomada para que novos
estudos, em várias áreas do conhecimento, possam vir a lançar luz a esse
pouco conhecido período da história. Consideramos que aqueles que
defendem a não existência de uma filosofia indígena no Brasil antes do
século XX procuram parâmetros tipicamente metodológicos, pautados
por uma verve mais categorizadora, lógica e agraciada pelo estilo
identificatório, como admitem alguns acadêmicos brasileiros e
internacionais. Além disso, não aceitar uma filosofia por
desqualificação das condições dos aborígenes (“grau de civilização”) no
passado, mas, contraditoriamente, defender a não necessidade do meio
ou da cultura para possibilitar a atividade filosófica, no mínimo, é
contraditório. Para Bornheim, que não aceitava uma filosofia nacional
— por delimitar uma singularidade e por dar a impressão de que somos
opostos à universalidade —, para reconhecer uma filosofia ameríndia
deveríamos equacionar os problemas da filosofia e da realidade
brasileira. Sem isso, não perceberíamos a riqueza cultural nas
diferenças. Ou seja, “os males da filosofia começam por ela mesma. Ou
pelo que dela se faz” (BORNHEIM, 1984, p. 184).
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Assim, surge uma questão aparentemente fácil de responder: de


onde se originam essa resistência e esses critérios para designar a
existência, ou não, de uma filosofia ou designar alguém como filósofo?
Ao que tudo indica, essa origem parece se perpetuar ao eleger como
ponto de partida critérios eurocêntricos clássicos, embora ainda hoje
assumidos como definidores. Além disso, em vista desse contexto,
entendo que nossa discussão ficaria ainda mais complexa ou delicada
caso avaliássemos criteriosamente a denominação de filósofos, ou não,
atribuída aos contemporâneos midiáticos de hoje. Ressalto que estou
falando de filósofos e não de pesquisadores em filosofia. 5
Pensando especialmente sobre o Brasil, por que não uma filosofia
construída em terras brasileiras e por aborígenes? Por que não
adicionar os saberes indígenas (na forma de mitos) como ponto de
partida para se pensar o Brasil? Segundo Guattari, em uma entrevista à
televisão francesa:

A filosofia é um movimento de produção de conceitos, um movimento que


retoma continuamente o passado para dar-lhe uma densidade de
virtualidade, densidade de possíveis. Deleuze e eu nunca pensamos na
morte da filosofia, nós pensamos que a filosofia se faz, que ela está em
movimento, mesmo através de outras culturas que não a ocidental — como
formas de sabedoria, por exemplo —, a filosofia é algo de essencial à
existência humana (GUATTARI, 2005; grifo nosso). 6

5
. Foge ao nosso objetivo aqui discutir o tema, mas acreditamos que o espaço acadêmico, de um modo
geral, forma pesquisadores, não filósofos. Pesquisador é um sujeito que sabe montar um trabalho, sabe
conduzi-lo com rigor, sabe chegar a conclusões e publicar. O filósofo é algo mais: é alguém capaz de
formular problemas da realidade ou da teoria originalmente. Muitos de nossos pós-graduandos são
simples fazedores de pesquisa. Raras as exceções.
6
GUATTARI, Félix. Transcrito de uma entrevista concedida a Antoine Spire, Michel Field e Emmanuel
Hirsch, no Programa "Grandes Entrevistas" da televisão francesa (1989-1990), publicada nas Éditions de
L'aube, Paris, 2005. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=E9jwK0_eDds&t=11s>.
Consultado em: 20 abril de 2019.
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Essa declaração de Guattari — se concordarmos com ela —, abre as


portas para uma discussão mais ampla. Por essa razão, voltando à
cultura dos indígenas, penso que nossas dificuldades em parte poderiam
ser esclarecidas se utilizarmos os estudos da Etnografia e da
Antropologia recentes, voltados para os indígenas brasileiros. Com o
maior conhecimento desses povos originários, poderíamos ter uma
melhor compreensão do seu pensamento e indicaríamos caminhos para
melhor conduzirmos um olhar sobre o que pensavam esses nativos nas
suas narrativas e em seus mitos.
Não irei defender aqui uma “filosofia brasileira”, como já disse, na
maneira como ela é discutida e criticada. É sólido o argumento de que a
filosofia não pode ser nacionalizada, sob pena de negar a si própria a
sua universalidade: se for nacional, contrariando seu princípio
fundamental, não será filosofia (universal) (EPIFÂNIO, 2011). Prefiro
uma posição harmonizante, segundo a qual não há necessidade de se
negar o local onde ela apareça, apenas ficar alerta sobre sua autonomia
mental, sobre sua emancipação das inflexões esterilizadoras do
pensamento, da servidão estrangeira e dos radicalismos nacionalistas.
O perigo maior é a tendência mimetista e o descaso com a própria
reflexão sobre a natureza humana.
O Brasil é um país mestiço, indecifrável e com pessoas cordiais,
segundo os nossos principais antropólogos. A crueldade da colonização,
o desenvolvimento desigual em seu território e a transfiguração étnica
moldaram esse país. Assim, a identidade brasileira não se amalgamou,
mas se “plurietnizou”, com várias identidades particulares, entre elas, a
indígena.
Traçando um paralelo, no caso dos Estados Unidos da América —
que possui uma cultura filosófica consolidada —, houve uma
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transferência da cultura inglesa para a América e uma sistemática


aniquilação dos ameríndios estadunidenses. 7 No Brasil, isso aconteceu
parcialmente, pois nossos colonizadores tinham interesses diversos e
nossa geografia impedia um alcance territorial completo. Assim, nesse
sentido, a identidade indígena ainda encontra-se muito presente,
inspirando, educando através de seus mitos sobre o meio ambiente,
sobre valores humanos e propondo discussões sociais. Somos diferentes
e tentaremos mostrar que persiste aqui um pensamento original, apesar
do policiamento ideológico.
Antes de fechar este ponto, é importante esclarecer a irrestrita
relevância das esferas do medo e da liberdade. Apenas os pensadores
que encontraram a liberdade e não se deixaram dominar pelo medo
foram capazes de filosofar livremente. Liberdade para pensar é cláusula
pétrea para o filosofar. Não é simplesmente libertação, nem é poder agir
e escolher dentro das intrincadas relações sociais e acadêmicas, mas
estar livre e consciente das necessidades que nos são impostas desde a
infância pela civilização, pois só com liberdade poderá surgir um
homem ou mulher livre (ARENDT, 2018).
Daí a necessidade de se libertar da pobreza, da opressão política,
das crenças paralisantes, dos condicionamentos sociais, do hábito de
copiar e somente valorizar o que vem de fora. Ser livre é ter espaço para
iniciar algo novo. Assim, pensamos que, para perceber a atividade
filosófica indígena brasileira, precisaremos de liberdade para refletir,
argumentar e não ter medo de discordar e de aprofundar. Para uma
filosofia realizada no Brasil ou para um filósofo de origem brasileira ser
ele mesmo e conquistar essa liberdade, necessitamos definir

7
Sugiro a leitura de GRAYLING, 2021, Parte II, Cap. 3 (“Vim para matar índios”).
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prerrogativas essenciais para essa investigação, mudar as condições


atuais (tradicionais) e oportunizar essa discussão.
Outro ponto preocupante é sobre a individualidade. O pensamento
indígena sobre essa questão é bem diferente do tradicional, é também
complexo e será tratado mais adiante. Apenas para introduzir essa
esfera nas reflexões, repito que para os indígenas brasileiros o termo
“indivíduo” não se aplica somente ao ser humano, mas aos outros
animais e até às plantas. Indivíduo vem do latim individuus, que significa
indivisível, uno, referindo-se a um ser biológico cuja existência depende
de sua integridade. No pensamento indígena, um ser humano, um
indivíduo, implica uma vida relacionada intimamente com os outros
indivíduos, como um todo. Esse aspecto é basilar para entender o
pensamento indígena.
Segundo os povos originários, não é apenas com a transformação
do ser humano, de sua natureza total, que mudamos as relações, mas
também com a criação de uma sociedade diferente, uma boa sociedade,
integrada, comum. Todavia, uma comunidade não é possível se não
houver bons seres humanos, bons indivíduos. Como reclamava Ailton
Krenak, a sociedade achava que nós (os indígenas) tínhamos de evoluir
quase que biologicamente para ter direitos humanos. Percebi isso e
comecei a ‘espernear’. Um absurdo para os povos indígenas essa
exclusão. Vou tentar melhorar a explicação.
Os indígenas respeitam as onças, os jacarés, o tucano, os rios, as
árvores, a chuva, enfim, tudo que nos envolve. Aparentemente, uma
visão de mundo de difícil compreensão, mas totalmente plausível:
indivíduos + comunicação + natureza = planeta. Daí os indígenas serem
considerados protetores das florestas. Na verdade, eles são parte da
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floresta, da natureza. 8 É um modo de ser que não se mostra como um


sujeito individualizado que representa objetos mentalmente, ao
contrário, perde-se na impessoalidade do mundo compartilhado com os
outros e lida-se com o que está ao seu redor de modo prático e
harmônico. Assim, “cara pálida”, você vive (ou sobrevive) no mundo
enquanto os povos originários existem nele, compartilham essa
existência planetária.

3. O INDÍGENA BRASILEIRO E OS MISSIONÁRIOS

Um documento útil para conhecermos o trabalho dos missionários


com os ameríndios brasileiros é o Diálogo, do Padre Manuel da Nóbrega
(1517-1570), sobre a conversão do gentio, surgido em torno de 1560.
Nóbrega utiliza a figura retórica do diálogo, comum à cultura da época,
marcada pelo platonismo à luz dos ideais humanistas. Os religiosos da
época apresentavam duas visões contraditórias acerca do ameríndio e
do trabalho missionário. Uma é a crença na impossibilidade da
conversão dos indígenas ao cristianismo (seriam seres bestiais, em
estado de barbaridade), e a outra é a de provar que os indígenas têm
alma (MASSINI, 2001, p. 625-633), fator importante para conseguir uma
possível conversão.
No aspecto do debate da conversão dos povos originários, os
primeiros contatos com os padres (século XVI) e as missões jesuíticas
nas reduções da República dos Guaranis (séculos XVII-XVIII) tinham
objetivos diferentes. Um era saber quem é aquele nativo, sua natureza,
outro é se aproximar para evangelizar. As decisões do Vaticano,

8
Nota do autor: O sentido de floresta (urihi a) para a etnia Yanomami refere-se ao mesmo tempo à
floresta e ao espaço terrestre que a sustenta. Os termos floresta e natureza geralmente se confundem.
Robson Araújo • 79

autoridade máxima da Igreja, eram fundamentais. Por isso, no início do


contato entre religiosos e nativos, houve debates que passaram pelas
categorias filosóficas da ética aristotélica e se estenderam por uma
discussão que culminou em uma peculiar caracterização do indígena.
Para os jesuítas, não se deveria confundir a inferioridade cultural com
a intelectual, e a presença de uma personalidade humana (alma) e o
desenvolvimento de suas potencialidades dependeriam basicamente do
processo educacional (uma doutrina antropológica da Companhia, ou
seja, um pensamento pedagógico humanista associado à filosofia
aristotélico-tomista).
Sobre a resistência dos nativos à evangelização, ficava evidente que
eles não aceitavam um discurso dos padres que contrariavam a prática
com os seus maus exemplos e, além disso, tentavam anular as crenças e
os costumes indígenas. O esforço de Nóbrega no Diálogo é convencer a
opinião pública sobre o trabalho missionário. Cito aqui as
características dos indígenas que ele registrou: “respeitadores dos
discursos”, “extremamente medrosos”, “cuidadosos com os filhos”,
“inventivos” e “dotados de grande poder de imaginação”.
José de Anchieta (1534-1597) também escreveu um documento, por
volta de 1585, a Informação da província do Brasil, destinada ao padre
geral da Companhia. Há várias concordâncias nesse relato entre
Nóbrega e Anchieta sobre os indígenas, mas podemos ressaltar algumas
assinaladas por ambos e também outros autores, como: “enorme valor
atribuído à fala e à palavra”, “compreendem muito bem a doutrina”, “são
algo melancólicos”, “sociabilidade”, “extremamente sensíveis e
imaginativos”. Note que extraímos apenas esses aspectos e não nos
prendemos às dificuldades enfrentadas pelos missionários, como
algumas resistências à conversão, a recusa de abandonar suas tradições
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contrárias à moral cristã; etc. Deixaremos também de lado aspectos


cruéis e desumanos com que alguns missionários trataram os nativos
em nome dos “bons costumes” 9. Ademais, é bom notar que eles não
tinham um “sentimento de adultério” ou um sentimento de
propriedade, entre outros, para serem julgados como inferiores.
Por isso, fica claro que não houve, notadamente, uma preocupação
imparcial em compreender os hábitos, a visão de mundo e de humano
dos indígenas. As categorizações pragmáticas introduzidas por Inácio
Loyola, com o intuito de orientar os missionários com regras de
convivência e estudo dos ameríndios (LOYOLA, 1993, p. 21-22), por mais
que fossem bem-intencionadas e bem-feitas, não eram suficientes para
entender o que pensava o nativo brasileiro.
Em outra fonte de informações, nos escritos Do princípio e origem
dos índios do Brasil e a Narrativa epistolar de uma viagem e missão
jesuítica, atribuídas a Fernão Cardim (1540-1625), redigidos por volta de
1584, encontraremos várias semelhanças entre ele, Nóbrega e Anchieta.
A “sociabilidade”, “o poder da imaginação”, “o valor à palavra”, “amam
os filhos extraordinariamente”, “são melancólicos”, a dimensão afetiva
do choro (“são chorões”), e acrescenta, “são intrépidos e ferozes que
mete espanto” (CARDIM, 1584/1980, p. 95).
O pensador espanhol Francisco Suárez (1548-1617), no pequeno
tratado Coisas notáveis do Brasil (1590), também repete os elementos
citados pelos outros autores. Porém, dá maior ênfase à “eficácia da
imaginação” (SUÁREZ, 1590/1989, p. 146) e à “sociabilidade”. Acrescenta
que são preocupados com a origem das coisas e inventam várias

9
. Anchieta chegou a escrever um poema de 3054 versos em latim para louvar as crueldades de Mem de
Sá. Um poema considerado pelos críticos como infeliz e provavelmente a razão do principal
impedimento à sua canonização (RIBEIRO, 1992, p. 29).
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interpretações sobre o fogo, o diabo, a antropofagia, o dilúvio. Entre


outros temas, é curiosa a descrição da visão indígena do pós-morte.
Suárez relata:

[...] sabem esses índios que o homem tem alma (...) e que depois que morrem
vão suas almas a uns campos muito formosos cheios de árvores e figueiras
e se ajuntam com outros doutra nação, mas os veem afastados, e que não há
tristeza, senão cantar e bailar junto ao rio (SUÁREZ, 1989, p. 146).

Enfim, o erro do colonizador europeu foi impor seus costumes,


coagir, escravizar e destruir a cultura indígena sem conhecer melhor
esses “selvagens”. Alguns chamam isso de colonização, outros de
massacre étnico ou genocídio. Um crime que se espalhou pelo planeta e
vitimou nativos da Austrália, continente africano e os aborígenes de
todo o continente americano.
Sob um novo ângulo, os relatos da época não deram conta ou não
tiveram instrumentos teóricos para revelar a natureza íntima do
indígena para respeitá-la. Dessa forma, para retomar o tema e contribuir
na sedimentação do argumento de valorização de um pensamento
indígena, recorrerei ao antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de
Castro. Para o pesquisador, os povos ameríndios, da Terra do Fogo ao
Alasca, já estavam lá há mais de 50 mil anos, com uma população maior e
mais complexa que a da Europa, próxima de 100 milhões de pessoas. No
Brasil, em torno de 2-3 milhões de criaturas humanas.
Essa população era um “tecido contínuo”, com homogeneidade
cultural, apesar das nuances geomorfológicas que impedem uma maior
generalização. Viveiros de Castro, numa palestra proferida no Canal
USP, aponta a grande riqueza cultural dos ameríndios em todo o
continente, mas irá se deter nas populações das planícies, das regiões
82 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

baixas da bacia amazônica, ou seja, focarei com ele esses indígenas


(CASTRO, 1986). Os outros povos indígenas, Incas, Maias e Astecas
(Planalto Andino), diferenciaram-se um pouco mais dos ameríndios das
planícies, pois possuíam uma estrutura social mais complexa.
Para os grupos de ameríndios do norte e do centro do continente
americano, o estudo do tipo de colonização foi fundamental para o
entendimento das diferenças culturais. Outros fatores contribuíram
para essas diferenciações, além do tipo de terreno (geológico), um
aspecto dramático: a chegada das doenças europeias. Os ameríndios das
planícies não foram muito felizes depois de 1500. A população de
ameríndios até 1650 foi reduzida a 5% de toda a América, afetando
majoritariamente a população nativa brasileira, sendo a varíola a
principal responsável pelo extermínio epidêmico. É possível especular
que sem essa dizimação os colonizadores não teriam conseguido
avançar nas suas conquistas territoriais, já que encontrariam
resistências. A floresta e o sertão impediram uma penetração mais
profunda pelo território.
Outro aspecto relevante é a mobilidade indígena. Eles dispersam-
se e separam-se com facilidade devido às suas características sociais. Na
falta de terras férteis, buscavam outros lugares e, se alguns ameríndios
ficavam insatisfeitos com os rumos da tribo, eles simplesmente levavam
seus familiares para longe e estabeleciam-se em outros territórios,
quase inacessíveis.
Outros aspectos caracterizam os indígenas: não acumulavam
produtos e nem faziam comércio. Todos os bens eram distribuídos igual
e proporcionalmente. A avareza era a falha mais condenada entre eles e
não havia a noção, como temos na cultura europeia capitalista, do
roubo. Pegavam as coisas que queriam sem pedir. Um ritual que talvez
Robson Araújo • 83

seja estranho para nós é o cerimonial da destruição do excedente — que


também ocorria no início do regime comunista soviético. Aquilo que
sobrava e ia se acumulando eles destruíam em público. Isso inibia a
acumulação de bens e imprimia um comportamento de excelência
(distributiva) política entre eles (comunismo primário).
De um modo geral, na mitologia dos povos originários brasileiros,
a condição de sujeito é diferente da tradicional. Cada pessoa está
espalhada no universo que sempre existiu. Não há entre eles a ideia de
criação, criador. Contam que no universo houve uma grande dispersão
e todas as espécies, humanamente potenciais, se espalharam em várias
formas de animais. Assim, o mundo originário tinha um fundo de
animalidade, e a humanidade possui um fundo animal. Parece-nos
importante enfatizar que o sentido de humanidade dos indígenas é
diferente do da visão europeia. Como disse Viveiros de Castro: “O que
existe em comum entre os homens e os animais é a animalidade dos
homens, mas do ponto de vista indígena, o que existe em comum entre
os homens e os animais é a humanidade dos animais.” 10
É por isso que os indígenas dizem que os animais são como gente,
que têm alma. Por exemplo, a expressão “jacaré é gente” pode parecer
ingênua, mas não é bem isso que eles querem dizer. Eles pensam que o
jacaré, a onça, o macaco, enfim, todos os animais, são polos de
intencionalidade no mundo (boas ou más), têm volição, são centros de
ação, possuem propriedade potencial de humanização, ou seja, qualquer
animal pode ser humano (em um aspecto subjetivo). Os antropólogos
interpretaram isso como animismo cosmológico.

. Entrevista disponível em: <https://m.youtube.com/watch?v=cdYpyou8Tpg>. Consulta em: 20 abr.


10

2019.
84 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

Isso considerado, podemos afirmar que os indígenas brasileiros


compartilham de uma visão antropomórfica do planeta, veem o mundo
em contínua transformação e sua relação com a natureza é a de
escutar/ver/sentir todos os seus detalhes. Árvores, plantas, insetos,
rios, lagos, luz, chuva etc., são manifestações constituídas de espírito e
de humanidade. Daí a relação com o mundo natural preencher um
caráter especial para os indígenas e a necessidade de um olhar diferente
de nossa parte para compreender isso. Neste âmbito, nos dias de hoje,
as sociedades em sua caminhada ecológica e de consciência ambiental
começam a dar mais atenção a esses pensamentos e acredito que muito
temos a aprender com essa cultura e sua visão de mundo.

4. O PENSAMENTO INDÍGENA

Falar sobre um pensamento indígena ou filosofia ameríndia pode


nos levar, erroneamente, a pensar em uma cultura letrada em
transmissões formais, sistematizada, com disciplinas e demais normas.
Não é isso que encontraremos no modo de saber e de viver do indígena.
Diferentes da filosofia grega antiga, que acrescentou na sua cultura a
escrita e a interpelação crítica, retificando o objeto de estudo,
Robson Araújo • 85

inaugurando uma visão antropocêntrica e logocêntrica do mundo, os


indígenas trabalharam a cognição pura pela subjetividade. Para os
indígenas, temos de subjetivar o objeto de estudo para conhecer,
opondo-nos à filosofia tradicional, que usa a razão para “dessubjetivar”
o conhecimento, pois, para essa velha filosofia, conhecer é objetivar. 11
Para compreender o pensamento indígena, precisamos esforçar-
nos para perceber que os ameríndios percorrem outro caminho, como
se fosse um “metabolismo basal” da cognição humana, partindo para um
processo metafísico de descobrir intuitivamente as intenções. Eles
abolem os aspectos objetivos e formais para atingir o conhecimento,
descobrir as razões das ações (as intenções). É como se os indígenas
estivessem pertinho da natureza, em estado natural, e os seus sentidos
possuíssem a capacidade de perceber as manifestações do universo e
comunicá-las em uma linguagem peculiar. Poderíamos dizer que,
enquanto Kant, Nietzsche e Freud escavavam várias camadas
sobrepostas do “homem” para descobrir a natureza humana, os
ameríndios já manifestariam essas características, seriam o “homem
natureza”, o ser em si, o Dasein de Heidegger. 12
Assim, o pensamento indígena é de caráter animista, alimentado
pela subjetividade e tendo como substrato universal o humano, aquilo
que sustenta todas as variedades de vidas.
O primeiro pensador a antever uma filosofia na cultura indígena
talvez tenha sido Lévi-Strauss (1908-2009), tutor de Viveiros de Castro.

11
. Esse modo indígena de ser pode desaparecer se a educação imposta pelas escolas não respeitar a
língua e a cultura dos aborígenes. Quando morre uma língua, morre com ela um patrimônio intelectual
inestimável, uma forma de pensar e uma visão de mundo.
. Em Ser e Tempo, de Martin Heidegger (1889-1976), obra publicada em 1927, o filósofo alemão introduz
12

o conceito de Dasein, um ser no mundo e não um ser-aí e o mundo. “O Dasein não é um caso de ente
para a representaç ão do ser por abstraçã o, mas precisamente a sede do entendimenco-do-ser”
(HEIDEGGER, 2012, p. 49).
86 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

Strauss acredita que encontrou uma moral implícita na mitologia


indígena, nos seus rituais e nos cuidados que eles mantêm com o corpo.
Segundo o antropólogo francês, os indígenas geralmente pensam por
meio das coisas. Pensar a partir das coisas é usar o mundo para falar do
mundo e não conceitos pretensamente transparentes (abstratos) para
falar do mundo.
Em outras palavras, o pensamento indígena se apropria de
elementos do mundo para pensar o mundo, a existência. Por exemplo, a
oposição entre um uirapuru e um carcará, dois pássaros da nossa fauna,
nos possibilitaria pensar a desigualdade entre dois grupos de pessoas
(cantoras e predadoras). Desse modo, os indígenas pensam com as
coisas, e eles não pensam as coisas diretamente, mas pensam o mundo
com pedaços do mundo, com perspectivas.
O pensamento mítico, segundo Strauss, é uma “bricolagem
intelectual”, no sentido que ele se constrói como pensamento a partir
de elementos extraídos do mundo sensível. Então o indígena extrai
esses pedaços do mundo para criar um todo significante. Esse
pensamento opera por meio de signos, que são esses seres duplos,
compostos de uma realidade sensível de um lado e uma realidade
inteligível de outro.
Dessa realidade sensível, eles tentam atingir o mundo a partir de
instrumentos puramente inteligíveis. Claro que essa oposição, como
todas as oposições, não é absoluta, mas é útil para pensar. Além disso,
não há uma preocupação com o universal, mas com o espírito humano
(os sentimentos); os indígenas não se preocupam com as bases do
conhecimento, mas como o pensamento se desenvolve; estão
interessados em relação ao pensamento social do ponto de vista do
observado e o que eles dizem (sentem) sobre o mundo.
Robson Araújo • 87

Lévi-Strauss, no livro O totemismo hoje, escreveu que se afastou da


filosofia, da filosofia do sujeito, dessa filosofia que, segundo ele, congela
tudo, que coloca o sujeito supremo, um “eu penso” que separa o homem
do mundo natural, das coisas. O antropólogo francês não se interessa
por essa filosofia (tradicional) e acredita que encontrou um contraponto
disso na antropologia, no pensamento dos indígenas brasileiros.
Nessa esfera, Strauss vê não só uma objeção a essa filosofia
convencional como também uma crítica à filosofia do sujeito, que
promove essa separação radical entre o ser humano e a natureza. Para
ele, a identificação do ser humano com o mundo natural é a condição de
todo o pensamento:

Os animais do totemismo deixam de ser, somente ou sobretudo, criaturas


temidas, admiradas ou cobiçadas: sua realidade sensível deixa transparecer
noções e relações concebidas pelo pensamento especulativo a partir dos
dados da observação. Compreendemos enfim que as espécies naturais não
são escolhidas por serem “boas para comer” mas por serem “boas para
pensar”. (LÉVI-STRAUSS, 1968, p. 93).

O pesquisador francês também elaborou uma crítica aos exageros


do humanismo que toma o ser humano como separado do mundo
natural, ou seja, o antropocentrismo. Ele vai dizer que, para se pensar o
ser humano, é necessário pensá-lo dentro do mundo e não fora do
mundo; é preciso pensar o homem a partir da identificação necessária
que ele estabelece com as outras espécies, com a natureza. E essa
identificação é, portanto, a matéria do pensamento mítico que ele
extraiu da cultura indígena brasileira.
Cumpre ainda acrescentar que essa crítica sugere repensar esse
sujeito, que é preciso ressignificar, dissolver o sujeito. E dissolver o
sujeito não é abolir o sujeito, não quer dizer que não existiria o sujeito.
88 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

Dissolver o sujeito, em uma metáfora físico-química, explora a


semelhança entre colocar um sólido solúvel (por exemplo, açúcar) em
um líquido (por exemplo, água) e observar que esse sólido se dispersa
(aparentemente desaparece). Na interpretação científica, ocorre um
espalhamento do açúcar em microestruturas invisíveis que passam a
pertencer ao meio líquido (solução aquosa de açúcar). Porém, há ainda
uma relação entre esse sólido particularizado — em partículas — e o
meio líquido (açúcar aquoso), uma interação “atividade” (relação de
forças na solução). Repito, o açúcar não desaparece. Aquilo que era
individuado e separado (açúcar) passa a ser “desindividuado” e disperso
(açúcar dissolvido em água). E ainda, passa a existir uma relação de
“forças” entre o “disperso” e o “dispersante”, originando uma realidade
que seria a “dispersão”, a realidade ou o todo.
Enfim, o que está exposto acima pretende dizer que dissolver o
sujeito é um recurso metodológico para pensar a relação dele com o
meio no qual ele vive. Esse sujeito (indivíduo) como entidade, presente
como constituinte, mas não como uma realidade primeira. Strauss
percebeu, por meio dos mitos e rituais indígenas, uma relação
fundamental entre o ser humano e o mundo natural que não pode ser
desprezada, que não pode ser desconsiderada. E que isso implicaria uma
moral, uma ontologia e uma política diferente, original — uma visão de
mundo.
Baseando-nos nesse pensamento, podemos dizer que temos aqui
toda uma ética do sujeito, que parte do princípio de que esse sujeito está
integrado a um mundo maior, que diz respeito às relações, e essas
relações são entre pessoas e são entre pessoas e o mundo. Logo, também
podemos reconhecer aqui o aspecto principal do pensamento político
indígena: as relações entre sujeitos e entre sujeitos e o mundo ocorrem
Robson Araújo • 89

sem classes, sem partidos, sem polarizações, no que se refere às


necessidades da comunidade. Uma integração com o planeta.
Cabe ressaltar que a ideia de um sujeito que é relação e não é
entidade também está presente no arcabouço cultural de vários outros
povos ameríndios. Trata-se de um tema filosófico que, além de original,
passa a ser significativamente útil para entender o mundo de hoje.
Como Lévi-Strauss escreveu sobre essa temática por volta de 1968, à
época não surtiu tanto efeito, mas hoje a questão do meio ambiente
voltou ao centro dos debates. Trabalhos como de Bruno Latour, Políticas
da Natureza, ou a própria ideia da autora Isabelle Stengers sobre
cosmopolítica (La Propuesta Cosmopolitica), toda essa discussão gira em
torno da ecologia política e isso fez com que a natureza fosse
reintroduzida na discussão dos problemas ambientais do planeta. A
natureza ingressou na política.
Esse é um dos pontos onde o pensamento indígena mais enriquece
a reflexão crítica — a filosofia. É aqui que encontramos os princípios
éticos e uma filosofia política a partir de elementos que podem ser
explorados no pensamento indígena, como o problema da destruição do
mundo natural, o problema do lugar do ser humano no mundo, o
individualismo, o problema do desenvolvimentismo. Como exemplo, a
epidemia da dengue no Brasil; a proliferação global do Aedes aegypti e
do Aedes albopictus deve-se não apenas às mudanças climáticas e à
destruição pelo ser humano dos habitats silvestres, mas também ao
colapso em curso das populações de insetívoros: aves, anfíbios, peixes e
répteis (MARQUES FILHO, 2016). Essa falta de visão e respeito que temos
pelas outras espécies da natureza desencadeará uma grande tragédia,
como vimos com a pandemia pela COVID-19.
90 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

O sinal alvissareiro nesse momento é a presença dos povos


originários nas reuniões internacionais que tratam das questões
ambientais. Eles não foram convidados para simplesmente ornamentar
esses encontros com suas indumentárias peculiares. Eles têm muito o
que dizer e ensinar.
A seguir, apresentarei três dos nossos principais representantes
indígenas que usam discursos filosóficos.

5. FILÓSOFOS INDÍGENAS

Poderia citar mais pensadores indígenas, mas destaco três


expoentes indígenas relevantes para uma interlocução filosófica: Davi
Kopenawa, Daniel Munduruku e Ailton Krenak.
Davi Kopenawa Yanomami 13 escreveu, em 2010, a Queda do céu (La
chute du ciel), em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert.
Lançada na França, a obra foi traduzida para o inglês e publicada no
Brasil em 2015. O livro é um manifesto xamânico e testemunho
autobiográfico para denunciar a destruição de seu povo. Foi escrito a
partir de seus depoimentos contados a Bruce Albert, seu amigo há mais
de três décadas.
Em sua obra, Kopenawa afirma que os yanomamis não lutam por
suas casas e sua floresta, ou contra garimpeiros e fazendeiros que
querem destruí-las, nem pelas próprias vidas. Há um sentido maior.
Eles lutam pela terra inteira (planeta) que corre o risco de entrar em

. Davi Kopenawa nasceu no Alto Rio Toototobi, Amazonas, em 18 de fevereiro de 1956, é um escritor,
13

xamã e líder político yanomami. Atualmente, é presidente da Hutukara Associação Yanomami, uma
entidade indígena de ajuda mútua e etnodesenvolvimentista. Ele foi um dos responsáveis pela
demarcação do território Yanomami em 1992. Recebeu o prêmio ambiental Global 500 da ONU.
Consulta disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Davi_Kopenawa_Yanomami>. Consulta em: 29
abril 2019.
Robson Araújo • 91

caos. “Os brancos não temem como nós (yanomami), ser esmagado[s]
pela queda do céu” (KOPENAWA, 2015). É esse o maior medo dos
yanomamis: “a queda do céu”. Eles nos convidam a sonhar mais longe, a
pensar nos nossos filhos e nossos netos, pois só existe um céu e devemos
escutar a voz dos “espíritos da floresta”, já que o homem branco está
cheio de esquecimento.
Daniel Munduruku 14 é um escritor formado em filosofia, história,
psicologia e antropologia que gosta de escrever para crianças.
Questionado em uma entrevista (BBC News Brasil) sobre o papel da
literatura na mudança da visão indígena pela sociedade ele afirmou:

A literatura é um instrumento superinteressante de construção de lugares


de fala. Tem esse componente muito positivo de alimentar nas pessoas
outros olhares, outras facetas da existência. A literatura que eu faço é
comprometida, minha forma de ser militante no movimento indígena. Eu
tento usar a literatura para poder falar das nossas culturas. A literatura é
fundamental para a gente ir desconstruindo esses estereótipos sobre os
povos indígenas e ir construindo uma percepção diferente. 15

Ailton Krenak 16 é mineiro do Vale do Rio Doce. Ele se define como


uma pessoa crítica, mas que não abandonou a esperança de ver um
mundo melhor. Para ele, “acreditar na Terra é a única possibilidade de

14
. Daniel Munduruku nasceu em Belém (1964), é um escritor, professor brasileiro da etnia mundurucu e
é graduado em filosofia, história e psicologia. Tem mestrado em antropologia social pela Universidade
de São Paulo. É doutor em educação pela Universidade de São Paulo e Diretor-Presidente do Instituto
Uk´a – Casa dos Saberes Ancestrais. Como escritor, tem várias obras publicadas e destaca-se na área da
literatura infantil. É membro da Academia de Letras de Lorena, São Paulo. Recebeu a Comenda do mérito
cultural por duas vezes. Já recebeu vários prêmios no Brasil e no exterior: Jabuti, da Academia Brasileira
de Letras, Érico Vanucci Mendes (CNPq), Tolerância (UNESCO). Consulta disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Munduruku>. Acesso em: 28 abril 2019.
. Consulta disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47971962>. Consulta em: 28 abril
15

2019.
. Ailton Krenak é um ativista, ambientalista, escritor e líder indígena natural da região do Médio Rio
16

Doce (MG).
92 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

salvação” e uma reconciliação das novas gerações com a sua história e


com a história do planeta: “a história do planeta é a história da vida”.
Sobre Ailton, podemos dizer que é um líder indígena da etnia Krenak
e chamou a atenção de lideranças políticas nacionais em setembro de 1987
ao discursar no plenário da Assembleia Nacional Constituinte. Seu apelo
dramático às lideranças políticas para que aprovassem uma emenda
constitucional tratando dos direitos dos indígenas e incluíssem um
capítulo na Constituição foi considerado inédito. No entanto, sua imagem
não se limita a esse discurso. Ailton participa de várias organizações
indígenas nacionais e internacionais, faz palestras pelo Brasil e no
exterior, possui uma militância política e um pensamento crítico social e
ambiental diferenciado do processo civilizatório.
Em certa medida, apesar das diferenças entre Kopenawa (discurso
mítico), Munduruku (discurso didático) e Ailton Krenak (discurso
político), eles fazem uma filosofia da natureza. Kopenawa, na obra A queda
do céu: palavras de um xamã yanomami, faz um relato repleto de termos
indígenas próprios que não segue uma racionalidade e nem se preocupa
com isso. A comunicação desse mito tem um enredo, mas não obedece às
leis científicas, ao bom senso ou à lógica. Sua leitura é instigante,
enriquecedora e séria. No capítulo 22 do seu famoso livro ele afirma:

A escrita (comunicação) do homem branco (traços tortuosos, que não falam


e nem pensam) diz respeito apenas àquilo que sai de sua própria mente
(mentiras), logo, só conhecem aquilo que está dentro deles mesmos.
[...] Se os homens brancos escutarem de vez em quando as palavras dos
xapiri (espíritos), seus pensamentos talvez fossem menos tacanhos e
obscuros. Fingem querer defender a floresta com suas leis, mas acabam
destruindo-a (KOPENAWA, 2015, p. 455).
Robson Araújo • 93

Para Kopenawa, os homens comuns pensam muito em mulheres,


por isso os espíritos não olham para eles; sonham pouco e quando
acordam não se lembram dos sonhos; veem apenas o seu trabalho e os
seus afazeres; dormem em “estado de fantasma”. Na sequência, ele
também diz que os homens brancos da cidade quando dormem só veem
sua esposa, seus filhos e suas mercadorias; pensam com preocupação
em seu trabalho e suas viagens; não podem ver a floresta como veem os
yanomamis. Só os Xamãs não se contentam em dormir; conversam com
os xapiri e quando eles chegam, “envoltos em sua luz intensa”, deixam
recados e alertas. O sopro de vida que os espíritos deixam é o que
permite que esses homens enxerguem as coisas, adquiram
conhecimento e saiam da escuridão e do esquecimento. Sem isso, é
impossível o pensamento entender as coisas.
Munduruku, por sua vez, em O Banquete dos Deuses: conversa sobre
a origem da cultura brasileira e a sabedoria das águas, faz um trabalho
didático: conta-nos histórias através de duas perspectivas. Seu objetivo
é explicitar uma relação entre memória e ancestralidade. Esses dois
pontos são presenças incontornáveis do que somos e daquilo que nos
constitui, seja a favor de nós mesmos ou contra o que somos. Em
Sabedoria das águas, o personagem do gavião-real diz algo importante
para Koru, o homem cotado para substituir o velho guardião das
memórias – Krixi: “Se pretendes conhecer a verdade das coisas, [...],
precisas mergulhar nas águas do rio e deixar que ele te lave e te leve
para seu leito, em suas profundezas” (MUNDURUKU, 2004, p. 27). Mas
antes desse trecho, o gavião-real afirma que todo conhecimento é
inalcançável, que sempre há algo para descobrir e conhecer. O cético
Munduruku, não diretamente, sugere perseguir o fluxo dessas águas, o
94 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

curso do pensamento, que para ele é uma maneira de encontro consigo.


Um autoencontro que não está restrito à busca individual.
Assim, Munduruku mostra uma perspectiva que deixa o indivíduo
e o coletivo (mundo) no mesmo plano, é uma proposta de
coextensividade entre passado/memória/ancestralidade, com
presente/atualidade/habitantes da Terra. Neste sentido, Munduruku é
atual ao colocar em xeque algumas formulações que admitem a crise
como incontornável em um mundo egoísta. Para ele, a crise do sujeito
integra uma crise mais geral, que tem relação com esquecimento e a
busca pela “autonomia” do humano em relação aos outros entes e à
própria natureza. Nada mais paradoxal para o pensamento indígena.
Em outra esfera, Ailton Krenak, no livro Ideias para adiar o fim do
mundo, escreve honestamente sobre o outro que temos dificuldade de
ver; o outro que não gostaríamos que existisse. Afirma que viajou
bastante e conheceu várias culturas, mas não entende:

Por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube
(da humanidade), que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de
invenção, criação, existência e liberdade? ... Será que não estamos sempre
atualizando aquela nossa velha disposição para a servidão voluntária?
(KRENAK, 2019, p. 13).

Sua crítica às instituições que lutam pela sustentabilidade é forte:

Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade,


inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa
ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história
de que somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem
—, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, e passamos a
pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não
percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O
Robson Araújo • 95

cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza (KRENAK,


2019, p. 16-17).

Para Krenak, são várias as perspectivas de existência e os humanos


não são os únicos. Ele acredita que essa insistência de homogeneização
da sociedade vai criar zumbis e que é necessário salvar nossas
subjetividades. Sua crítica também recai nas escolas e universidades,
que trabalham para nos moldar e impor uma visão de mundo que trata
apenas dos interesses dos poderosos. Sobre a ciência, ele escreve:

… o que chamamos de cientista há muito deixou de ter liberdade para


inventar ou trazer uma inovação nos processos que conhecemos. Segundo
ele, os condicionamentos são fortes, as desconfianças aumentam
(laboratórios e seus remédios em um mercado manipulado), há uma
reprodução das coisas sem sentido ou objetivo, o consumo da inocência.
Precisamos abrir espaços para outras visões de mundo e de vida sem as
limitações impostas pelo mercado. Reordenar as relações e os espaços para
novos entendimentos com a natureza (KRENAK, 2019, p. 63).

Assim, considero que é importante inscrever esses pensamentos


indígenas, apresentados aqui de forma sumária, por três representantes
contemporâneos, com o devido respeito que o tema merece, nas nossas
discussões filosóficas. Acredito na atualidade e na pertinência desse
debate.
Antes de concluir, deixo aqui uma sábia frase de Merleau-Ponty:

A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história


narrada pode significar o mundo com tanta "profundidade" quanto um tratado
de filosofia (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 19).
96 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurei destacar a relevância e a importância da inclusão do


pensamento indígena no cenário filosófico. Aludi sobre a utilidade da
Etnografia e da Antropologia dos povos indígenas. Para avançar nesses
estudos, elas são muito úteis no entendimento das consequências da
colonização dos europeus e no conhecimento da cultura indígena
brasileira. Por sua vez, apoiando-me em Pierre Hadot, que diz que “o
exercício filosófico é uma atividade espiritual em que a meta
fundamental encontra-se amparada na modificação, construção e
produção de uma maneira de viver” (HADOT, 2006, p. 20), creio que a
caracterização que fizemos da filosofia na introdução deste ensaio, a
argumentação em favor da existência e da relevância de uma filosofia
indígena e de filósofos indígenas tenham demonstrado sua
plausibilidade. Não me aprofundei nem com aspectos históricos e nem
antropológicos, onde encontraríamos farto material — o que reforçaria
ainda mais o argumento. Também não me permiti, durante a elaboração
desse ensaio, procurar no pensamento indígena algo semelhante ao que
encontramos na filosofia tradicional, com receio de despersonificá-lo
ou desqualificá-lo.
Inspirei-me na visão de mundo indígena — simbiótica, animista e
harmônica — para propor o perspectivismo filosófico. Não
encontraremos uma narrativa homogênea de criação e cultuadora de
divindades (a natureza por si é divina, para os povos originários), as
cosmogonias indígenas brasileira são plásticas, mitoplásticas. 17 Há sim
uma ideologia do ser humano integrado na natureza com diversidade e

17
. O termo mitoplástico foi encontrado no livro de Oswaldo Luiz Ribeiro, Homo Faber, e equivale a “mito
moldável” ou “mito adaptado”.
Robson Araújo • 97

uma cognição pura pelo subjetivismo. Uma filosofia antropomórfica


afastada do logocentrismo, do antropocentrismo e do individualismo.
Destaco aqui que a humanidade proposta pelos indígenas vai além
das fronteiras da moral até hoje estudadas e superestimadas. Que a
política indígena traduz-se em orquestrar a ação humana com todas as
coisas da natureza, ação desconhecida por liberais progressistas. E,
epistemologicamente, a concepção de conhecimento como um processo
que leva em consideração estar ciente das intencionalidades, sem se
afastar do exercício racional, mas desautorizando a exclusividade do
aspecto objetivo frente ao subjetivismo, aceitando mais uma via na
busca do conhecimento.
Isto considerado, afirmo que, ao flexibilizar, sem distorcer, o
conceito de filosofia do sistema tradicional, no aspecto estilístico e
conceitual, a introdução de narrativas indígenas na filosofia, tanto na
história, como na política ou na ética, onde temos muito que aprender
com os indígenas, poderá enriquecer o nosso conhecimento sobre o
mundo, principalmente ao nos afastar de nossa zona de conforto, nos
aproximar de nossas origens e nos incitar a novas e intrigantes
reflexões. Diante de todo o exposto, acredito ser pertinente, plausível e
justificável o convite à filosofia indígena brasileira.

REFERÊNCIAS

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ARAÚJO, Robson J. Filosofia entre os ameríndios brasileiros: em meio ao plausível e ao


justificável. Belo Horizonte, 2022.

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98 • VII Colóquio Pensadores Brasileiros: Coletânea de Textos

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CARDIM, F. Tratados da terra e gentes do Brasil. São Paulo: Editora da USP; Belo
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Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ).

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