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Friedrich Maier1
Prefácio
Ernst Cassirer é considerado por muitos como um expoente da filosofia norte-
americana, natural de Göteborg na Suécia, chega aos Estados Unidos da América em 1941.
Grande estudioso de Kant é também famoso por sua grandiosa obra no que tange o problema
do conhecimento. Além disso, é notável sua abordagem da temática de sua Filosofia das
“formas simbólicas”. Por fim, é necessário entender que o presente livro a ser resenhado surge
de um pedido dos principais amigos e colaboradores de Cassirer, que diante dos turbulentos
anos que viviam pediram ao professor uma forma de compreender tal momento, visto que ele
era muitíssimo preparado para tal feito, visto sua genialidade em duas grandes formas de
conhecimento: a História e Filosofia.
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Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP) – Campus de Marília
entre magia e ciência, portando-se como um adepto da homogeneidade do pensamento, assim
como Tylor e sua proposta de equiparar o pensamento do selvagem ao pensamento do homem
moderno ocidental, afirmando que suas filosofias e abstrações mentais diferem apenas em
grau.
Em contraposição a tal ideia, temos Lévy-Bruhl, no qual as afirmações de Tylor e
Frazer padecem de contradição e absurdo, onde o homem selvagem possui não uma mente de
intelectualidade e lógica própria, mas uma mente de “pré-logica” ou mística.
Em conclusão desse capítulo, Cassirer afirma o pensamento selvagem não como
completo e totalmente congruente com o moderno (como pressupõe Frazer e seu “filósofo
Selvagem”) e tampouco “pré-logico” como em Lévy-Bruhl, temos um selvagem que possui
sim um nível de lógica e coerência intelectual, de modo que dentro do mundo selvagem, há
sim coerência ante o mundo material que o cerca.
II - O mito e a linguagem
Parte-se para uma discussão à luz de uma proposição de F. Max Müller que em
“Comparative Mythology” afirma o enfoque linguístico como único critério científico a ser
aplicado ao mito. Teremos tal encontro somente na primeira metade do século XIX,
compreendendo a estreita relação e solidariedade entre mito e linguagem, com a descoberta
do sânscrito e sua literatura, descobre-se um “novo mundo”.
Entretanto, é evidente que mito e linguagem podem parecer desconectados, visto a
natureza irracional e incoerente do primeiro, enquanto o outro é lógico. Max Müller declarou
o mito como apenas um aspecto da linguagem, mas de cunho negativo. Onde na linguagem há
expressões e objetos com vários nomes, o mito se originaria de homônimos, o irracional
mítico seria gerado de um caminho racional da linguagem, “O mito revela-nos o ultimo desses
aspectos; nada mais é que a sombra escura projetada pela linguagem sobre o mundo do
pensamento humano” (p. 35).
O pensamento primitivo, segundo Müller, fascina-se pela totalidade, pelo infinito ao
contrário do finito, pela grande expressão de magnitude da natureza como um todo, daí
devemos procurar a origem real da religião e linguagem. De outro lado, Herbert Spencer, vê
no culto aos ancestrais o início da religião e do mito.
Por fim, o autor afirma o caráter passível de críticas das teorias de Müller e Spencer,
onde o mito não passaria de um “mal-entendido” linguístico.
VI - A república de Platão
Temos em Platão uma divergência ante o modelo socrático, segundo o autor de “A
República”, não se deve buscar respostas sobre o homem apenas no estreito caráter individual,
devemos partir para uma reflexão maior, compreendendo também a vida política e social do
homem. Nesse pressuposto assenta-se a “A República”, culminando numa teoria racional do
Estado.
Quanto ao mito, o autor afirma a inegável característica de Platão de não ascender ao
misticismo, sendo sempre barrado pela mente lógica e política do mesmo. Sua posição ante o
mito é refletida nesse imperativo categórico, nesse apelo pela ordem e medida, numa tríade
entre Razão, Legalidade e Ordem (Logos, Nomos e Taxis). Desse modo o princípio da
igualdade geométrica deve ser transferido à ciência política para descobrir a verdadeira
constituição do Estado. Mas é importante afirmar, Platão nunca considerou a vida política
como algo autônomo, mas sim uma constituinte do todo, encontrando nela o mesmo princípio
que governa o todo. “O cosmos político é somente um símbolo, e o mais característico de
todos, do cosmos universal” (p. 82).
A crítica platônica ao pensamento mítico consiste no fato de que enquanto os homens
adotarem uma concepção de deuses que lutam e enganam entre si, suas cidades também
sofrerão do mesmo mal, pois o que se vê nos deuses é uma projeção do homem, lemos a
natureza da alma humana na natureza do Estado e temos nosso ideal político de acordo com
as concepções do divino. É nessa visão crítica que Platão afirma a necessidade de substituir os
deuses por sua “Ideia do Bem”.
Passando à teoria do Estado em Platão, temos que seu estudo começa com uma
definição e análise do conceito de justiça, que tem no autor um sentido muito mais amplo do
que no senso comum. Onde o Estado não tem outra função do que a de administrar a justiça,
compreendida como uma harmonia dentro da alma humana e dentro das classes do Estado,
que cooperam para manter a ordem.
Daí temos que Platão foi o primeiro a introduzir uma teoria do Estado como um
sistema coerente de pensamento, onde se busca mostrar o Estado ideal, não definir o melhor
Estado empírico. Ignorando as proposições para reformar o Estado, buscando somente
compreendê-lo, a fim de trazer tal compreensão para uma unidade sistemática. Dessa forma,
“A República” nos oferece uma sistematização de todas as diferentes formas de governo,
onde cada forma de governo tem suas virtudes e defeitos, o lado positivo e negativo; de modo
que não há preferência a nenhuma forma [entretanto há o repúdio ante a tirania], sendo o
modelo procurado por Platão como perfeito muito além do mundo empírico e histórico.
Cassirer destaca que para a efetiva criação da teoria do Estado platônica, seria
necessário destituir o poder do mito, momento em que, segundo o autor, Platão ultrapassa a si
mesmo, pois era encantado com o mito, para criar sua teoria política, declarou-se inimigo do
mito.
Todavia, não somente o mito e a tradição deveriam ser atacados para que se
estabelecesse a teoria do Estado Legal, mas uma concepção corrente entre os sofistas que
negava radicalmente a tradição, propondo novas bases para o mundo social e político, a ideia
de “Poder é direito”.
O Estado platônico segue então o princípio de felicidade no mesmo autor, segundo
Platão a felicidade (eudaimonia, possuir um bom demônio, na concepção antiga) era na
realidade a capacidade de autodeterminação, liberdade interior em escolher qual “demônio”
seguirá. Do mesmo modo esse é seu ideal de vida política, ao contrário do Estado seguir seu
fado, deve criá-lo, a razão deve guiar esse Estado.
Temos em conclusão, a unidade da obra platônica evidenciada por Cassirer, onde
através de sua concisão na dialética, combate o mito, afirma sua teoria política e cria o
paralelo entre a alma individual e a alma do Estado, sendo esssa ultima exemplo de sua
tendência unificadora.
XVII - Hegel
Hegel nos é apresentado como um dos maiores filósofos da história, seu sistema,
diferentemente dos outros, não ficou submetido apenas ao mundo das ideias sem influenciar a
vida política, exercendo em grande parte a política moderna. Entretanto, adverte Cassirer, o
sistema hegeliano ao atingir tanta grandeza na vida política dilatou-se de forma a não se
manter o mesmo, segundo o autor, “Bolchevismo, fascismo, nacional-socialismo, todos eles
desintegraram e cortaram aos pedaços o sistema hegeliano” (p. 268).
A filosofia hegeliana assume um papel de canonizar “o existente como tal”, sendo
contrária ao ideal democrático, mas como tal concepção se tornou base para uma das forças
mais revolucionárias no pensamento político moderno e como o mesmo influencia Marx e
Lênin?
Entretanto, o conservantismo não é o único aspecto na filosofia hegeliana. Hegel
assume um papel de falar da história como um todo, quebrando a dualidade oriente-ocidente,
tentando dessa maneira criar em seu sistema não o espírito de uma nação, mas um espírito
universal.
Contudo, o sistema político de Hegel não permaneceu nesse universalismo, pelo
contrário, com o tempo passou a se restringir ao seu mundo presente, e Hegel passou a se
preocupar com a Alemanha e a Prússia, num nacionalismo e quase provincialismo. Para
compreender o verdadeiro caráter da filosofia de Hegel, Cassirer afirma necessária a
compreensão de todas as bases desse teórico.
A metafísica de Hegel resume-se em duas questões, a religião e a história. Em Hegel
temos inovação na questão da teodiceia, onde em primeiro lugar, temos a conceituação do mal
como um produto do caráter fundamental que se desprende da própria definição de realidade.
A então vigente concepção era a de separação entre o mundo real e um mundo moral,
elevado de forma sublime, pelo pensamento idealista que vai de Platão até Kant e Fichte,
nesse mundo, o desejo de bem e moral afirmam um desejo universal, igualmente abstrato.
Todavia o curso do mundo frustra esse desejo universal e nossos desejos particulares [lei do
coração], nossa consciência não aceita tal fato, separando-se da realidade a ponto de atacar e
destruir a ordem atual das coisas.
Hegel escreve sobre tal destruição em “Fenomenologia do Espírito”, ao citar a
Revolução Francesa, que se inicia com os mais elevados valores morais e ao apresentar-se
diante de uma ordem do mundo violenta, passa a atacar essa realidade. O indivíduo ao tentar
impor “a lei do coração” ao mundo atual encontra resistência, essa resistência só pode ser
vencida a partir de uma revogação da ordem natural da história das coisas. A partir daí, a “lei
do coração” torna-se um princípio destrutivo e subversivo.
Hegel busca uma reconciliação na sua Filosofia da História, ao colocar o real numa
aceitação, uma aceitação da ordem das coisas contendo uma verdadeira substância ética.
Nessa aceitação Hegel aceitaria também o mal, uma encarnação e atualização da razão, sendo
essa razão oposta à “razão prática” de Kant, mas uma “razão que vive no mundo histórico em
que o organiza”.
Na síntese hegeliana encontramos a interdependência entre o histórico e o religioso,
uma inovação que vai de contra a distinção então em voga do “mundo sensível” e o “mundo
inteligível” presente desde Platão até Kant. A própria Metafísica tratava dessa distinção que
fora perpassada por Hegel. A dualidade, presente em Platão [a concepção de encontrar a
verdade somente no mundo das ideias e não no mundo terreno]; em Kant [opôs-se à
concepção de Platão, afirmando que o conhecimento estava confinado ao mundo empírico];
em Spinoza [onde apesar de uma concepção monista entre Deus e a Natureza, há o grande
abismo entre a ordem do tempo e a ordem da eternidade]; e em S. Agostinho [com o
afastamento da ordem divina e a ordem temporal], é retirada por Hegel em suas proposições a
cerca da metafísica.
Para o autor alemão, temos na história o fim da divisão entre o “tempo” e a
“eternidade”, ambos interpenetram-se. Por fim, no sistema hegeliano “a história não é uma
mera aparência de Deus, mas a sua realidade; Deus não só “tem” história, ele é história” (p.
281)..
Cassirer parte então em direção a uma análise do estado na filosofia de Hegel,
afirmando que o mesmo é nesse autor não somente uma parte da história, mas um todo, é o
próprio núcleo da vida histórica. O Estado é perfeita realidade, é a própria encarnação do
“espírito do mundo”, é a “Ideia divina” presente na terra.
Dessa forma, o Estado aparece como algo sem qualquer obrigação moral, pois a
moralidade tem valor somente no mundo individual e não no mundo universal do Estado,
sendo seu único dever a própria conservação [essa concepção é notavelmente oposta a de
Kant, onde a moralidade, o reino dos fins, opunha-se ao mundo das causas de dos efeitos, o
indivíduo nessa concepção para cumprir o seu dever deve negar o mundo e destruir a si
mesmo, pois sua natureza moral é incompatível com a sua natureza física]. O Estado então
não conhece o bem nem o mal, sendo absoluto e infalível.
Hegel propõe inovações em seus pressupostos a cerca do Estado, diferenciados de
todos os ideais da época, a ideia de “todo orgânico” de Novalis, por exemplo, onde o autor
sonha com a unidade de todas as nações cristãs sob a direção de uma autoridade universal de
uma Igreja, é substituída por uma concepção orgânica dialética em Hegel, uma unidade de
contrários. Nessa unidade, é necessário afirmar o papel negativo da vida política: a guerra.
E nesse momento, temos uma concepção para as relações internacionais, em Hegel,
acabar com a guerra seria matar a vida política, os Estados buscam garantir seus interesses, a
ideia de uma Liga das Nações kantiana seria contingente, pois no fim ultimo, todos os Estados
agem de acordo com seu próprio interesse, “o conteúdo particular da vontade do Estado é a
sua prosperidade, essa prosperidade particular é a lei suprema na relação de um Estado com o
outro” (p. 285).
O Estado possui no sistema hegeliano verdade, essa verdade não é de forma alguma
moral, mas tem base no poder. Cassirer nos mostra como essa concepção, advinda de 1801,
propõe a teoria fascista mais “brutal” já feita.
Dando continuidade à sua análise, vimos em Hegel a junção do culto ao Estado e do
culto ao Herói, que da mesma forma assenta-se no poder. Sendo a paixão, um dos agentes do
processo histórico, a virtù de Maquiavel é aceita, significando força, não existindo mais forte
e poderoso motivo na vida humana do que as grandes paixões.
É notável que a linha de pensamento hegeliana marque uma linha de divisão entre as
filosofias do século XVIII e as do século XIX, Hegel tinha completa consciência de que o
pensador individual não podia ultrapassar seu tempo. Essa concepção remonta ao historismo
presente em seu sistema, onde a história não pode ser criada ou transformada pelo pensamento
filosófico, mas sim descrita e exprimida.
Quanto ao Iluminismo, Cassirer nos mostra a relação de Hegel com o mesmo. A
crítica hegeliana parte ao caráter do iluminismo de criar um “dever ser” que perde contato
com a realidade, passar a ser uma “formalidade”, a filosofia não tem o papel de desenhar um
ideal da natureza das coisas contra o mundo histórico, não pode se vincular num idealismo
“subjetivo”.
Em oposição a esse idealismo, Hegel propõe um idealismo objetivo, procurando as
ideias no curso dos acontecimentos históricos e não na mente do homem. E analisando esses
acontecimentos temos de distinguir o “real” da “existência histórica”, para tal temos apenas
um artifício, a história do mundo. Nesse julgamento conclui-se então que na história universal
cada nação tem a sua vez de dominar; essa é uma das mais contundentes proposições na teoria
hegeliana que culminariam numa preparação do fascismo e imperialismo na idade moderna.
Todavia, Cassirer nos mostra que há um ponto na teoria Hegeliana que diferenciam a
mesma das modernas teorias do Estado Totalitário, esse é a não submissão da Arte, da
Religião e da Filosofia ao Estado, pois tais formas de vida cultural possuem um sentido e um
valor independentes, tendo um sentido em si.
No fim do capítulo, Cassirer afirma mais um ponto de distinção entre Hegel e o
totalitarismo, dessa vez na questão do Gleichschaltung, a eliminação de todas as formas
culturais de vida a fim de evitar distinção, objetivando uma unidade orgânica. Hegel, não
admitiria tal fato, pois se tais eliminações acontecessem acabariam por gerar uma unidade
abstrata, retirando a liberdade de vida, que repousa na diferenciação de ideias. Hegel exalta e
glorifica o Estado, fazendo até mesmo sua apoteose, mas difere nessa idealização do poder do
Estado da idolatria pregada pelo totalitarismo moderno.
Conclusão
O autor termina sua obra aferindo a inconstância da cultura humana, sua debilidade
em certos momentos e sua luta interminável com o pensamento míticos, subjugado na
presença das forças intelectuais, éticas e artísticas, mas seu poder é prontamente reacendido
quando tais forças afrouxam.
A obra de Cassirer contém grande riqueza teórica nas mais amplas áreas do
conhecimento, antropologia, sociologia e história são exemplos de abordagens utilizadas pelo
autor para gerar a compreensão do fenômeno mítico e sua aplicação nos tempos modernos,
todavia é na filosofia política que as grandes considerações do autor são lançadas, através de
um embasamento que passa pelas filosofias políticas pré-socrática, platônica, escolástica,
renascentista, contratualista e romântica, tocando nas temáticas do Estado e do poder,
ressaltando sempre a presença dos elementos míticos.
Para culminar em seu capítulo final e conclusão, Cassirer cria desde a primeira parte
de seu livro um paralelismo entre o desenvolvimento do pensamento filosófico político em
um permanente processo de luta contra o pensamento mítico - dito selvagem. Para tal, utiliza
na “Parte I” de seu livro de uma ampla interdisciplinaridade para conceituar o pensamento
mítico e sua estrutura culminando tal apropriação de conteúdo com excelência no capítulo “IV
- A função do Mito na Vida Social do Homem”.
Por fim, apesar de poucas referências diretas ao modo de agir do regime totalitarista
alemão, Cassirer dialoga constantemente com tal fato em seu livro, sobretudo na terceira parte
(cap. XVIII) de seu livro, onde há maior referência ao regime nazifascista. A excelência com
que a condução das ideias, teorias e períodos históricos é feita pelo autor culminam num
capítulo final onde o aprofundamento teórico feito através do livro gera uma compreensão
completa, na medida do possível, do totalitarismo e de suas origens míticas, através da ótica
da filosofia.
BIBLIOGRAFIA
CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: ZAHAR
Editores, 1976.