Você está na página 1de 29

Resenha do livro: o Mito do Estado

Friedrich Maier1

Prefácio
Ernst Cassirer é considerado por muitos como um expoente da filosofia norte-
americana, natural de Göteborg na Suécia, chega aos Estados Unidos da América em 1941.
Grande estudioso de Kant é também famoso por sua grandiosa obra no que tange o problema
do conhecimento. Além disso, é notável sua abordagem da temática de sua Filosofia das
“formas simbólicas”. Por fim, é necessário entender que o presente livro a ser resenhado surge
de um pedido dos principais amigos e colaboradores de Cassirer, que diante dos turbulentos
anos que viviam pediram ao professor uma forma de compreender tal momento, visto que ele
era muitíssimo preparado para tal feito, visto sua genialidade em duas grandes formas de
conhecimento: a História e Filosofia.

PARTE I - O QUE É O MITO?


I - A Estrutura do Pensamento Mítico
Cassirer começa a primeira parte de seu livro afirmando a necessidade de se
compreender o fenômeno do mito, afirmando que o homem moderno passou a adotar o
conhecimento mítico em depreciação ao conhecimento científico deixando de lado uma
história de racionalização.
Diante de uma complexidade de definição de mito e de sua função na vida social,
devido a muito material proposto, o autor passará por várias áreas do conhecimento, da
Filosofia à Psicologia.
Na antropologia, temos o mito como simplicidade, como fruto de uma ingenuidade
primitiva (Urdummheit) da humanidade. A concepção do romantismo afirma uma
interconexão entre mito e realidade, poesia e verdade, bem expressa em Schelling e sua teoria
de uma não distinção entre ideal e real (tal distinção seria mera abstração do pensamento).
Temos em “Crítica da Razão Pura” uma importante concepção de Kant, onde se
afirma a existência de dois grupos no pensamento científico, o homogêneo e o heterogêneo,
sendo ambos necessários ao entendimento científico humano.
Desse modo, Frazer e seu amplo estudo sobre os mitos, propõe uma aproximação

1
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP) – Campus de Marília
entre magia e ciência, portando-se como um adepto da homogeneidade do pensamento, assim
como Tylor e sua proposta de equiparar o pensamento do selvagem ao pensamento do homem
moderno ocidental, afirmando que suas filosofias e abstrações mentais diferem apenas em
grau.
Em contraposição a tal ideia, temos Lévy-Bruhl, no qual as afirmações de Tylor e
Frazer padecem de contradição e absurdo, onde o homem selvagem possui não uma mente de
intelectualidade e lógica própria, mas uma mente de “pré-logica” ou mística.
Em conclusão desse capítulo, Cassirer afirma o pensamento selvagem não como
completo e totalmente congruente com o moderno (como pressupõe Frazer e seu “filósofo
Selvagem”) e tampouco “pré-logico” como em Lévy-Bruhl, temos um selvagem que possui
sim um nível de lógica e coerência intelectual, de modo que dentro do mundo selvagem, há
sim coerência ante o mundo material que o cerca.

II - O mito e a linguagem
Parte-se para uma discussão à luz de uma proposição de F. Max Müller que em
“Comparative Mythology” afirma o enfoque linguístico como único critério científico a ser
aplicado ao mito. Teremos tal encontro somente na primeira metade do século XIX,
compreendendo a estreita relação e solidariedade entre mito e linguagem, com a descoberta
do sânscrito e sua literatura, descobre-se um “novo mundo”.
Entretanto, é evidente que mito e linguagem podem parecer desconectados, visto a
natureza irracional e incoerente do primeiro, enquanto o outro é lógico. Max Müller declarou
o mito como apenas um aspecto da linguagem, mas de cunho negativo. Onde na linguagem há
expressões e objetos com vários nomes, o mito se originaria de homônimos, o irracional
mítico seria gerado de um caminho racional da linguagem, “O mito revela-nos o ultimo desses
aspectos; nada mais é que a sombra escura projetada pela linguagem sobre o mundo do
pensamento humano” (p. 35).
O pensamento primitivo, segundo Müller, fascina-se pela totalidade, pelo infinito ao
contrário do finito, pela grande expressão de magnitude da natureza como um todo, daí
devemos procurar a origem real da religião e linguagem. De outro lado, Herbert Spencer, vê
no culto aos ancestrais o início da religião e do mito.
Por fim, o autor afirma o caráter passível de críticas das teorias de Müller e Spencer,
onde o mito não passaria de um “mal-entendido” linguístico.

III - O mito e a psicologia das emoções


Afirma que o congruente entre todas as teorias de mito até aqui apresentadas é a ideia
de mito como uma massa de ideias, representações, crenças e juízos históricos, que vão de
encontro ao mundo chamado “real” (ou seja, a realidade apreendida através do sentido),
sendo, portanto “fantasmagorias”.
A antropologia e a psicologia moderna responderão então de acordo com suas novas
acepções como e por que o ser humano apega-se ao mito, ao invés de enfrentar o mundo real.
A resposta está no observar o rito, ao invés do mito. Onde, o selvagem ao realizar um rito
religioso vive uma vida de emoções e não de pensamentos. Além disso, podemos observar
que o rito perdura muito mais do que o mito.
Portanto, o caminho para se compreender o mito e a religião é compreender a ação, ao
invés do pensamento. Temos em Jane Ellen Harison, que estudar o que um povo faz, é
compreender como um povo pensa.
Entretanto, para a compreensão do rito pela psicologia, era necessário que a visão da
época sobre o emocional mudasse, deixando o caráter intelectualista tradicional. Tal
realização aconteceria com Th. Ribot e sua tese fisiológica das emoções, onde o emocional
surgiria de um profundo fisiológico, das necessidades e instintos. Atentando, dessa forma, às
significações da inervação muscular, das modificações vasomotoras, não há, portanto, uma
emoção desencarnada, uma separação do plano emocional com o plano fisiológico.
A partir dessa nova concepção de emoção formulada pela psicologia o distanciamento entre
Psicologia e Antropologia diminuiu. O rito passa a ser entendido como manifestações motoras
da vida psíquica, representando apetites, tendências e necessidades, traduzidas então pelo
movimento.
É em Freud, que a concepção de mito avança, afastando-se das antigas proposições
(do mito como ciência primitiva, em Frazer; como Filosofia selvagem, em Tylor; ou doença
da linguagem, em Max Müller e Spencer), onde o mesmo é visto em consonância com fatos
conhecidos, diferentemente da concepção isolada do mesmo, sendo possível estudá-lo
cientificamente e confirmá-lo empiricamente.
Mas antes de entender o mito em Freud, é necessária compreender que sua concepção
das emoções não era concernente à teoria fisiológica. De modo que a vida psíquica tinha sim
grande importância e a consciência não era seu todo, mas, pelo contrário, uma pequena parte
do todo, de modo que o mito apareceria intrinsicamente ligado à natureza humana.
Para compreender a metafísica de Freud, temos que remontar, às suas origens
históricas, que caem sob a filosofia alemã do século XIX, onde havia duas concepções
opostas sobre a natureza e a cultura; de um lado o racionalismo hegeliano do processo
histórico e do outro o irracionalismo, baseado na vontade e desejo sexual de Schopenhauer,
do qual Freud alicerça sua teoria, baseada no empirismo, afirmando uma fundamental
identidade entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos..
Em “Totem e Tabu”, Freud lança as premissas de seu entendimento mítico,
relacionando a questão totêmica com a história de Édipo, onde os desejos primários da criança
são repreendidos e geram a posteriori todas as neuroses, temos por fim que “os primeiros
desejos de criança aparecem, muitas vezes sob os mais curiosos disfarces e inversões, na
formação de quase todas as religiões” (p. 50).
Entretanto, Cassirer afirma que até mesmo Freud em sua concepção mítica procura
descobrir o significado do mito através da compreensão e classificação de seus objetos,
esquecendo-se da linguagem do mito, que o autor afirma ser simbólica. Desse modo, o autor
afirma que Freud apenas limitou-se a mudar a cena das histórias míticas, para o grande drama
da história sexual humana.

IV - A função do mito na vida social do homem


O capítulo começa com a afirmação da incoerência e inconsistência mítica, mas há
uma mudança nessa concepção quando se observa o motivo do mito, que, em geral, são
sempre os mesmos, nos dando uma conscientização de universalidade e fundamental
identidade de vida.
Os mitos são então apresentados como agentes identificadores, ou seja, como meio do
indivíduo identificar-se com a natureza e com sua comunidade. Tratando-se então de uma
relação não causal, mas sim emocional, não importando as relações empíricas, mas sim o
efeito e profundidade nas relações humanas.
Temos essa busca pela identidade, pela posição dentro de um todo, no culto à natureza
e na ligação do povo entre si, gerada pela admiração e exaltação dos ancestrais. Tanto o tabu
quanto o totem surge como uma forma de proteger esse processo de identificação. Temos nos
ritos de iniciação, a necessidade de uma renovação biológica por meio de ações humanas e
não simplesmente no caráter fisiológico.
Sobre a religião grega, notamos um afastamento ante a primitividade das outras
religiões dos sentimentos de humanidade e pertencimento, tal característica é dada pela mente
lógica dos gregos. A explicação para os rituais dionisíacos, muito consonantes à religião
primitiva, surge como prova dessa lógica, onde um mito é criado com o intuito de explicar,
não uma realidade física, nem histórica, mas ritual.
Atenta-se então ao fato de mito não nascer dos processos intelectuais mas sim da
emoção humana, entretanto, compreendê-lo assim é um erro, temos que apreender o mito
como expressão de emoção, ou seja, a forma imagética e significativa da emoção.
Quanto a manifestação da emoção, temos em Darwin uma distinção, de forma de
expressão física e forma de expressão simbólica, a primeira estritamente ligado ao instintivo e
ao animal, existe em grande diversidade por entre os filos da biologia, mas a segunda fica
confinada à humanidade, descoberta pelo homem a expressão simbólica torna-se denominador
comum de todas as atividades culturais.
São nessas atividades que surgem a tarefa de objetivação humana, que é o “tornar
empírico”, palpável ao homem e sua apreensão do mundo ao seu redor. Desse modo, ao
mesmo tempo que o simbolismo linguístico gera essa objetivação das impressões sensoriais, o
simbolismo mítico procura uma objetivação de sentimentos.
O mito assume, segundo Cassirer, uma forma de exteriorização do sentimental
humano, apresentando-se como obra na religião e na linguagem, não desaparecendo com o
tempo. A reação física desse emocional passa para uma ritualística, mais efetiva e perpétua,
de certa forma. Sendo a arte e a poesia expoentes dessa acepção. Temos ainda que o
pensamento e imaginação míticas não são individualizados, mas sim pertencentes a um
coletivo, à vida do homem em geral.
O mito surge também ante um dos maiores problemas do homem, a morte. Tida como
o fator mínimo para caracterizar uma religião em Malinowski, temos a morte como grande
dilema para explicação com os mitos, que ensinavam ao homem primitivo, a morte não é o
fim da vida, mas apenas uma transformação.
Por fim, Cassirer elucida nesse capítulo final da primeira parte de sua obra, a real
função do mito na experiência de vida humana, afirmando ao menos três funções básicas do
mesmo: a identificação de um ser individual com uma coletividade ou uma totalidade
(natureza), a expressão do sentimental através de uma ritualística e por fim, a explicação para
o fenômeno da morte.

PARTE II - A LUTA CONTRA O MITO NA HISTÓRIA DA TEORIA POLÍTICA


V - O “logos” e o “mythos” na filosofia grega pré-socrática
O autor começa pela análise da filosofia grega, berço da primeira teoria racional do
Estado, mas o feito grego não seria possível sem uma nova concepção de natureza, que
contestava o poder do mito e avança na direção de uma concepção individual e social do
homem.
Numa dessas modificações dos preceitos míticos está a ideia de começo, onde o início
pertencente a um ente sobrenatural é substituído pelo pensamento lógico dos naturalistas
gregos de ordenação.
“Atacando” outro cerne da mitologia, a Filosofia grega acabaria por contestar o ideal
de deuses e religiões, pregando uma incongruência ética, especulativa e religiosa, entre um
mundo de diversos deuses antagonistas, temos em Xenófanes a concepção de um Deus Uno,
que abandona as limitações do pensamento mítico e antropomórfico.
O embate entre a multiplicidade dos sofistas ante a unidade dos socráticos, culmina
num fim em comum, a teorização racional acerca da natureza humana, sendo essa a base para
desenvolvê-lo de qualquer teoria filosófica.
Por fim, Cassirer aponta em Sócrates o seu método e sua forma de observar o mito
como algo fútil e vão, importando não uma explicação ou racionalização da mitologia, mas
antes de tudo, o “conhece-te a ti mesmo”, o único problema relevante é o do bem e do mal,
que deve ser solucionado através do método socrático do autoexame.

VI - A república de Platão
Temos em Platão uma divergência ante o modelo socrático, segundo o autor de “A
República”, não se deve buscar respostas sobre o homem apenas no estreito caráter individual,
devemos partir para uma reflexão maior, compreendendo também a vida política e social do
homem. Nesse pressuposto assenta-se a “A República”, culminando numa teoria racional do
Estado.
Quanto ao mito, o autor afirma a inegável característica de Platão de não ascender ao
misticismo, sendo sempre barrado pela mente lógica e política do mesmo. Sua posição ante o
mito é refletida nesse imperativo categórico, nesse apelo pela ordem e medida, numa tríade
entre Razão, Legalidade e Ordem (Logos, Nomos e Taxis). Desse modo o princípio da
igualdade geométrica deve ser transferido à ciência política para descobrir a verdadeira
constituição do Estado. Mas é importante afirmar, Platão nunca considerou a vida política
como algo autônomo, mas sim uma constituinte do todo, encontrando nela o mesmo princípio
que governa o todo. “O cosmos político é somente um símbolo, e o mais característico de
todos, do cosmos universal” (p. 82).
A crítica platônica ao pensamento mítico consiste no fato de que enquanto os homens
adotarem uma concepção de deuses que lutam e enganam entre si, suas cidades também
sofrerão do mesmo mal, pois o que se vê nos deuses é uma projeção do homem, lemos a
natureza da alma humana na natureza do Estado e temos nosso ideal político de acordo com
as concepções do divino. É nessa visão crítica que Platão afirma a necessidade de substituir os
deuses por sua “Ideia do Bem”.
Passando à teoria do Estado em Platão, temos que seu estudo começa com uma
definição e análise do conceito de justiça, que tem no autor um sentido muito mais amplo do
que no senso comum. Onde o Estado não tem outra função do que a de administrar a justiça,
compreendida como uma harmonia dentro da alma humana e dentro das classes do Estado,
que cooperam para manter a ordem.
Daí temos que Platão foi o primeiro a introduzir uma teoria do Estado como um
sistema coerente de pensamento, onde se busca mostrar o Estado ideal, não definir o melhor
Estado empírico. Ignorando as proposições para reformar o Estado, buscando somente
compreendê-lo, a fim de trazer tal compreensão para uma unidade sistemática. Dessa forma,
“A República” nos oferece uma sistematização de todas as diferentes formas de governo,
onde cada forma de governo tem suas virtudes e defeitos, o lado positivo e negativo; de modo
que não há preferência a nenhuma forma [entretanto há o repúdio ante a tirania], sendo o
modelo procurado por Platão como perfeito muito além do mundo empírico e histórico.
Cassirer destaca que para a efetiva criação da teoria do Estado platônica, seria
necessário destituir o poder do mito, momento em que, segundo o autor, Platão ultrapassa a si
mesmo, pois era encantado com o mito, para criar sua teoria política, declarou-se inimigo do
mito.
Todavia, não somente o mito e a tradição deveriam ser atacados para que se
estabelecesse a teoria do Estado Legal, mas uma concepção corrente entre os sofistas que
negava radicalmente a tradição, propondo novas bases para o mundo social e político, a ideia
de “Poder é direito”.
O Estado platônico segue então o princípio de felicidade no mesmo autor, segundo
Platão a felicidade (eudaimonia, possuir um bom demônio, na concepção antiga) era na
realidade a capacidade de autodeterminação, liberdade interior em escolher qual “demônio”
seguirá. Do mesmo modo esse é seu ideal de vida política, ao contrário do Estado seguir seu
fado, deve criá-lo, a razão deve guiar esse Estado.
Temos em conclusão, a unidade da obra platônica evidenciada por Cassirer, onde
através de sua concisão na dialética, combate o mito, afirma sua teoria política e cria o
paralelo entre a alma individual e a alma do Estado, sendo esssa ultima exemplo de sua
tendência unificadora.

VII - A base religiosa e metafísica da “Teoria do Estado” medieval


Temos com base da filosofia medieval o Cristianismo e a grande metamorfose trazida
por ele, a transição do Logos grego para o cristão. Nesse pano de fundo, S. Agostinho
modifica o ideal platônico de busca da felicidade [como um longo caminho a ser percorrido
entre as ciências], para uma identificação e repouso em Deus. O escolástico repousa sua
filosofia num único sentido, o conhecimento de Deus, sendo essa a chave da filosofia
medieval, a especulação filosófica para além daí é inútil.
A concepção divina também se apresenta como ponto de contraste entre as duas
filosofias, enquanto no pensamento grego temos o divino como o ápice do conhecimento, o
próprio conhecimento de Deus, pode vir a ser conhecido através da racionalidade, temos no
pensamento cristão a completa irracionalidade perante o divino, que age sem poder ser
compreendido.
Temos então a completa influência da doutrina helênica sobre o pensamento medieval,
entretanto, esse processo não foi uma imitação ou reprodução, pois tudo foi modificado,
assumindo uma nova forma concernente com a vida religiosa.
Após tais considerações Cassirer passa para uma análise do sistema platônico,
delegando críticas às considerações que afirmam a criação de uma religião pelo autor em
“Timeu” [afirmada pelos escolásticos, devido o pouco conhecimento das obras do filósofo
grego como um todo], posteriormente tratando das questões do demiurgo, da Ideia de Bem e
da separação do mundo real para com o ideal.
Passa-se agora para uma análise das concepções divinas de Aristóteles, na qual se
baseiam as ideias de S. Tomás de Aquino, onde se nega a divisão entre o mundo real e o
mundo ideal. Mostrando a concepção aristotélica entre o Deus que é comparável ao objeto de
pensamento e sua essência podendo ser explicada num ato puro de pensamento ao contrário
do Deus irracional judaico, que é aquilo que é. Nessa diferença temos que a lei ética judaica
descende de Deus, num ato sobre-humano, ao contrário do pensamento grego, onde a mesma
encontra-se desde sempre devendo ser descoberta por meio do pensamento racional e
dialético.
Quando tratamos da filosofia medieval devemos nos atentar a essa dupla origem
histórica, a grega e judaica, adverte Cassirer. Nesse período a divisão entre teólogos e
dialéticos, colocavam fé e razão como opositores ferrenhos, não podendo haver solução
amigável entre eles.
Pedro Daminai é citado como um dos arrebatados pela Teologia, declarando-se
inimigo de qualquer forma racional, não somente da dialética, mas também das ciências, das
artes liberais e até mesmo da gramática. Afirmando que a única forma de se salvar da razão é
a simplicidade na fé.
Do outro lado temos os dialéticos Anselmo da Cantuária e Abelardo, tendo o primeiro
afirmado a necessidade da razão para apoiar à fé, provando ontológicamente a existência de
Deus, bem como tornando permeáveis à razão os dogmas cristãos.
O “racionalismo medieval” mostra-se então completamente diverso do posterior
racionalismo moderno, visto que no primeiro a razão caminha atrelada à fé, não tendo
autonomia, é necessário crer para compreender, em primeiro lugar devemos aceitar toda a
revelação da fé, para depois tentar compreendê-la.

VIII - A teoria do Estado Legal na filosofia medieval


“A República” de Platão tem importante influência no pensamento medieval acerca do
Estado. Sua concepção de que a primeira e mais importante tarefa do Estado é a manutenção
da justiça tornou-se verdadeiro foco da teoria política medieval.
Entretanto, a concepção e a derivação dessa justiça é ponto de contravenção entre o
pensamento grego e o medieval, uma vez que para a filosofia da Idade Média, temos a lei
completamente vinculada à pessoa de Deus, sendo vontade dele, sua mais pura derivação; o
completo contrário observamos na teoria grega, onde a real justiça revela-se impessoal, sendo
o que é, por si só.
Há outra diferença entre os pensamentos, afirma Cassirer, apontando para a concepção
dos filósofos gregos de igualdade. Em Platão, temos que a alma ao ser divindade em três
partes [racional e apetitiva, tendo como intermédio a ardente], a parte que dialoga com as duas
opositoras é a ardente, sendo essa diferente em todos os homens, temos que as desigualdades
entre os mesmos apresentam-se como características inalteráveis da natureza, pois um homem
com determinada alma, um carpinteiro, por exemplo, não poderia adquirir a alma de um
político.
Em Aristóteles temos também a defesa da desigualdade no que se refere à escravidão
defendida pelo autor, bem como a discriminação dos bárbaros, que são “naturalmente”
inimigos dos gregos, que por sua vez tendem a serem sempre amigos.
Por fim, temos no pensamento estoico uma mudança ética no pensamento da Hélade,
afirmando que apesar das diferenças exteriores entre os homens, o que os tornava iguais entre
si seria sua essência.
A concepção estoica é então um dos ais fortes laços entre o pensamento antigo e
medieval, visto que o mesmo ideal de igualdade entre os homens surge como um axioma
geral para toda a filosofia medieval.
Temos por fim, uma reflexão da autoridade do governante ante seu povo, através dessa
concepção de igualdade entre os homens, o governante estava livre de qualquer tipo de
coerção legal, mas não está isento de seus deveres e obrigações. S. Tomás de Aquino
apresenta uma concepção dita como “revolucionária” afirmando que uma população que
desobedece a um governante tirano e injusto, não comete pecado.

IX - Natureza e graça na filosofia medieval


Temos que toda a “teoria do Estado” medieval estava fundada sobre o conteúdo da
revelação cristã e a concepção estoica da igualdade entre os homens, todavia, a mesma
padecia de alicerces. O postulado da igualdade entre os homens era constantemente
contrariado pela realidade da história e da vida social.
No Estado, temos que diversamente do ideal Platônico, em que o Estado Ideal, assume
o papel da própria beleza, sendo a beleza em si, o Estado medieval é reminiscência do pecado
original, sendo dessa forma descendente do erro humano, não podendo assumir beleza, tendo
como bom, somente o seu fim. A questão da queda do homem e o caráter mal do estado em
consequência é vista como um mistério, não explicável pelo modelo dialético.
É aí que confluem teorias de diversos escolásticos que apresentam o Estado como
fruto do mal original, o pecado, mas que assume fins bons, garantindo o afastamento do caos
da anarquia. O Estado é apresentado então como um remédio divino, onde “Num mundo
corrompido e desorganizado, o Estado terreno é a única força capaz de manter um equilíbrio,
certa proporção e igualdade” (p. 129).
Em S. Tomás de Aquino, temos modificações da corrente teologia medieval e até
mesmo de algumas concepções platônicas, especialmente na dualidade corpo-alma. Para o
escolástico, a relação negativa entre ambos, onde corpo e alma pertencem a planos distintos,
referindo-se a realidades distintas, então em voga deve ser substituída por uma concepção
orgânica, onde corpo e alma fazem parte do mesmo organismo, sendo o primeiro através de
suas experiências sensoriais indispensáveis ao desenvolvimento do segundo.
É dessa forma que compreendemos a teoria política e social de Tomás vendo a
concepção do Estado como originado do pecado, da queda, não é aceita. Para o autor
medieval o Estado deve guiar a lei moral e humana, tendo Deus por início e fim, apesar de ter
Deus como impulso, cabe ao homem consolidar o Estado buscando na razão as leis morais e o
direito. De modo que o divino não destrói o humano, mas aperfeiçoa-o, o homem deixa de ser
passivo na vida religiosa, reclamando-a. “O Estado terreno e a Cidade de Deus já não são
polos opostos; relacionam-se e completam-se um ao outro” (p.133).

X - A nova ciência política de Maquiavel


Cassirer começa esse capítulo tratando da fama de “O Príncipe”, afirmando que o livro
fora inicialmente posto em prática [e não estudado], tendo hoje vários estudos por ângulos
diversos, entretanto, seus segredos persistem.
Pelo autor italiano existem duas lendas, Cassirer atesta a necessidade de explaná-las,
uma lenda de veneração, outra lenda de ódio extremo. A ultima tem sua origem na Inglaterra
do século XVII, onde a repulsa e aversão às ideias do filósofo ganharam força, através de
escritos teatrais, poesias e ensaios, que tratavam de demonizar e afirmar o caráter maligno das
ideias maquiavélicas.
É na filosofia do século XVII, que temos o combate dessa concepção negativa no
senso comum e foi Spinoza o maior defensor de uma revisão do juízo dado a Maquiavel,
admitindo que o autor era bravo defensor da liberdade e incluiu um sentido oculto em “O
príncipe”. Spinosa considerava o autor de Florença ladino e astuto, fato que é evidenciado por
Cassirer como errôneo, visto que a análise dos textos e cartas do autor revelam um Maquiavel
sincero, franco e aberto.
O desenvolvimento do pensamento político do século XIX levou a cabo novamente
um apoio à Maquiavel, que passa a ser analisado por Hegel, Fichte e demais pensadores desse
momento. Os motivos apresentados para tal ocorrência são a colocação da história como
papel principal no processo intelectual e o crescente apelo ao nacionalismo.
Cassirer afirma que há um equívoco na compreensão de “O Príncipe” por autores
modernos, que afirmam um livro como um discurso restrito a um pequeno círculo de italianos
da época de Maquiavel, todavia, é notável que as concepções de Maquiavel sobre a história
são diferentes das dos autores modernos, para ele a história é cíclica, repetindo-se
incessantemente. Portanto, seus modelos e generalizações a partir de vários personagens
históricos aparecem como característica de sua obra ser destinada ao mundo, através de
gerações.

XI - O triunfo do maquiavelismo e as suas consequências


Ao questionar a os motivos que Maquiavel teria para escrever seu livro, Cassirer
afirma a importância de descrever qual o contexto do autor italiano, entrando brevemente na
discussão a cerca da Renascença e toda a sua dissidência conceitual. A teoria da emanação,
encontrada em “Da Hierarquia Celeste” e “da Hierarquia Eclesiástica”, aparece como
principal eixo de concepção do período medieval, a ideia de que tudo descendia de um Uno e
então avançava num diferenciar-se deste por uma degeneração, sendo o passo mais distante,
mais imperfeito, havia dominado o pensar medieval, estando presente na organização feudal,
social e eclesiástica.
Tal concepção começaria a ruir nos anos iniciais da Renascença que minariam tal
teoria ao poucos, através de mudanças em algumas áreas, como a teoria de Copérnico [que
submetia a todas as coisas as mesmas leis gerais do Universo], Giordano Bruno e a afirmação
do todo mundo sendo o todo infinito e as tiranias erguidas por indivíduos isolados
[condottieri] ou famílias poderosas [Visconti ou Sforza, Milão; Médici, Florença; Gonzaga,
Mântua].
É nesse pano de fundo que as ideias de Maquiavel se apresentam, no fascínio do autor
por esse novo modelo político que começa a se desenhar na Europa. É compreensível a partir
desse entendimento, que Maquiavel admire César Bórgia, um verdadeiro inimigo de sua
cidade natal, pois via nesse o verdadeiro modelo a ser seguido para a construção de um Estado
moderno europeu.
Mas não podemos apenas ver na obra de Maquiavel o aspecto político, notadamente
revolucionário. O autor contribui também para reformular a filosofia da época ao romper com
o paradigma escolástico do sistema hierárquico.
Desse modo, através da observação dos fatos reais, como são Maquiavel refuta a tese
da origem divina do Estado, pois ao avaliar os homens e ver como seus estados eram
construídos, chamá-los de divinos, não somente seria um erro, como também uma blasfêmia.
Ao analisar os fatos como seu, o autor italiano apresenta-se como realista, mas não como
apenas historiador, visto que foi capaz de além de relatar fatos ocorridos no tempo, foi
fundador de um novo tipo de ciência, a estática e dinâmica dos Estados, através de um
princípio construtivo para unificar e sintetizar os fatos de sua exposição.
Enfim, faz-se necessário apenas elucidar a questão da religião para Maquiavel, que
apresenta utilidade somente se for capaz de manter a ordem no Estado, tornando-se apenas
mais uma ferramenta na mão dos administradores públicos e não um fim em si, a partir destas
conclusões temos que o processo de secularização atingiu a fase final, pois o Estado secular
existe agora não somente de fato, mas de jure, por encontrar legitimação teórica.

XII - Implicações da nova teoria do Estado


Cassirer adverte que toda a teoria do Estado proposta por Maquiavel acabava por
separar totalmente o Estado daquelas relações que fazia com as outras instituições que
atuavam ao ligá-lo no todo orgânico.
No que tange a moral, temos a maioria dos autores modernos desconsiderando o fundo
moral das ideias de Maquiavel, pouco as considerando. Cassirer atenta para o fato e admite
que o autor italiano admite o uso de todos os métodos não aceitáveis moralmente para que um
príncipe possua seu Estado dentro de sua teoria política. Muitos então ressalvam afirmando
que tais métodos poderiam ser utilizados se consoantes ao bem comum, nesse ponto o autor
mostra-se novamente enfático, pois o “bem comum” seria decidido pelo próprio príncipe, que
poderia colocar-se num posicionamento unânime a respeito do bem de suas ações, ao mais
completo estilo L’etat c’est moi.
O autor volta-se então, mais uma vez, para a temática da moral nos escritos
maquiavélicos, sua concepção dos atos imorais que são apontados pelo autor para a conquista
de um estado, entretanto, tais ações não são incentivadas. Mas, apesar disso, o próprio admite
que a vida pública consiste na degladiação entre todos os homens de caráter público.
A imoralidade de Maquiavel não assenta na concepção moderna do conceito. O
italiano não desprezava a moralidade mas tinha o homem em baixa consideração, afirmando
sua falta de bondade. Por isso existiam as leis, evitando a face tenebrosa do homem, mas tais
leis não são capazes sozinhas de evitar a maldade do homem, por isso precisamos de boas
armas, que na verdade é o único pré-requisito para a manutenção da ordem. Temos ainda, que
apesar de louvar os bons príncipes, Maquiavel admite a excepcionalidade dos mesmos,
afirmando uma maioria formada na arte da astúcia e traição.
É evidente que Maquiavel queria, com seu livro, formar o novo governantes,
ensinando-o de tudo, até mesmo os caminhos da astúcia, perfídia e crueldade, assumindo
assim seu caráter inédito. Apesar de centenas de obras serem escritas entre 800 e 1700 sobre a
educação dos governantes, nenhuma assumiu tanta importância dentro da teoria politica do
que “O Príncipe”, sua diferença está na não função pedagógica em geral, pois Maquiavel
considerava os príncipes material não-educável, desse modo seu livro indica apenas como
tomar e manter um Estado, sem mais delongas.
Portanto, temos “O Príncipe” não um escrito moral ou imoral, mas um escrito técnico,
seu autor utiliza da frieza científica para descrever tanto os métodos bons quanto ruins dos
governantes, não reprovando ou aprovando ações, pois oferece apenas uma análise descritiva
das mesmas. Sua teoria rompeu com aquela destinada somente ao Estado legal, pois sua arte
dell Stato, destinava-se a todo tipo de Estado, tanto o legal quanto o ilegal, o dos bons
soberanos e dos tiranos, depreendemos que “O seu juízo era o de um cientista e de um técnico
da vida política” (p. 172).
Passamos para a análise do elemento mítico em “O Princípe”. Em primeiro lugar
devemos entender que a teoria de Maquiavel parte do mesmo axioma da de Galileu, a
uniformidade e homogeneidade da natureza, onde todos os fenômenos naturais obedecem às
mesmas leis. No caso das ciências humanas, o florentino afirma que devemos nos pautar pela
História, visto que homem sempre repete seus mesmos passos. Um soberano em crise deveria
atentar para o passado a fim de encontrar situação análoga e analisar quais as atitudes tomadas
no passado, aprimorando-as ou não.
Entretanto, Maquiavel reconhece que nem sempre essa uniformidade e generalidade se
manifestam, pois o mundo dos homens é inconstante e caprichoso, logo o autor recorre a
outro poder, semimítico, o poder da Fortuna, que parece governar todas as coisas.
A Fortuna era assunto recorrente na Idade Média, visto que muitos teóricos, filósofos,
artistas e governantes trataram dela, Maquiavel como um homem de seu tempo, também
pensou como eles. Apesar de reconhecer a Fortuna, Maquiavel não cede a qualquer fatalismo,
pois enquanto a mesma comanda metade de nossas ações, nós somos responsáveis por
comandar a outra metade.
Além disso, “O Príncipe” e seu autor mostram-se revolucionários ao desvincular a
antiga concepção da Fortuna da providência divina, pois Maquiavel passa a falar da Fortuna
em si mesma, sem nenhum apoio ou mandato divino, a partir daí é possível lutar contra ou
utilizar a Fortuna para seus próprios feitos. Tais possibilidades abrem-se somente ao líder
capaz de seguir os conselhos mostrados no capítulo XXV do livro italiano.
Concluindo o capítulo, Cassirer sintetiza toda a sua dissertação a cerca de Maquiavel e
sua obra “O Príncipe” afirmando que o ideal inédito de ambos seria a criação de uma nova
estratégia de Estado, uma estratégia baseada em armas de cunho psicológico, utilizando de um
raciocínio lógico, claro e frio.

XII - O renascimento do estoicismo e as teorias do Estado do “Direito


Natural”
A Renascença dos séculos XV e XVI ainda mostrava-se permeada de objetos míticos e
mágicos nas concepções científicas da época. É somente em Galileu e Descartes e sua estrita
ligação com o racionalismo que esses elementos mágicos findam em influenciar as ciências.
Entretanto, apesar do apreço ante as teorias matemáticas de Galileu, não era possível
submeter às mesmas leis geométricas as relações humanas, sejam sociais, sejam na área da
ciência política. É dessa forma que os pensadores dos séculos XVII assumem a posição de
racionalistas determinados, acreditando que seguindo o método dedutivo e analítico [ao
contrário do histórico e psicológico], conseguiriam formular teorias realmente significativas
nas ciências humanas, nisso vemos a semelhança de Hobbes e Grotius, apesar de suas
proposições completamente distintas. Temos nesses autores um mesmo início metafísico, mas
que estaria desamparado sem a matemática, temos então Leibniz [e sua escrita racional sobre
a sucessão do trono polonês], Spinoza [com seu sistema ético pelo método geométrico] e
Wolf, com seu direito natural por um método estritamente matemático.
Entretanto se era possível crer numa política euclidiana era necessário encontrar os
postulados incontroversos e perpétuos na política assim como existem na matemática. Tal
tarefa não era vista com dificuldade visto que para encontrá-los bastava retirar das mentes a
nuvem quem impedia o racional. Temos então esse movimento intelectual como uma
retomada do pensamento estoico, os direitos naturais surgem como senso-comum, desde
Lipsius e Grotius.
É importante ressaltar, afirma Cassirer, quais as causas da utilização prática dos ideais
estoicos dentro da política ao se abandonar aquela antiga concepção apenas teórica, visto que
a retomada do pensamento estoico vai contra os ideais intelectuais do século XVII. O motivo
de retomada dessa filosofia remete ao desmembramento da filosofia medieval escolástica, que
obriga a teóricos encontrarem preceitos filosóficos que possam reunir o homem novamente,
reunir todas as seitas cristãs sob preceitos inquestionáveis, daí retoma-se o estoicismo.
O estoicismo firmar-se-á então na autarquia da razão, ou seja, a razão é autônoma o
suficiente, tendo encontrar por si só o caminho a ser percorrido, eliminando assim a
necessidade de submissão à moral cristã [no caso apresentado, à moral jesuíta, visto que
tratava do embate entre jansenismo e jesuitismo].
Temos essa afirmação do preceito da razão logo no início de “De jure belli et pacis”,
onde o direito natural afirma aquilo irrevogável até mesmo num painel sem a existência de
Deus. Temos também, a confluência dos valores iniciais das teorias racionalistas do século
XVII, apesar do absolutismo de Hobbes e Bodin ser contrário aos defensores do direito
popular e da soberania do povo, ambos partem de um mesmo ponto, uma hipótese
fundamental, a doutrina do Estado contrato torna-se um axioma evidente do pensamento
político.
A teoria do Estado-contrato não pode ser admitida como histórica, visto que no
pensamento racionalista “origem” é tida por um sentido lógico e não cronológico. Temos em
Hobbes expoente dessa forma de investigação, ao buscar conhecer não somente o objeto, mas
também sua geração, sua origem, através da dedução e dos processos racionais.
Hobbes compreende o fenômeno da formação do Estado como a abdicação dos
direitos individuais do homem enquanto indivíduo dotado de direitos naturais. Após a
submissão ao líder absoluto, tal não poderá ser desfeita, o homem deixa de ser apenas um para
viver em sociedade, cria-se o Leviatã. Isso cria notável paradoxo com a teoria do direito
natural, portanto, cria-se o direito à personalidade, bastião de todos os direitos.

XIV - A filosofia do iluminismo e os seus críticos românticos


O iluminismo apresenta-se como um dos períodos mais férteis do pensamento político,
entretanto Cassirer nos mostra que não há grandes novidades ou teorias completamente novas
criadas na teoria política nessa época.
Temos que isso advém da busca dos pensadores iluministas pela “vida política”, ao
contrário da “doutrina política”, seu interesse estava focado na aplicação das ideias criadas a
partir da metafísica do século XVII, repetindo ideias que para eles, faziam parte do mundo
desde o início.
As ideias então procuravam serem colocadas em prática, todas as ações eram
subordinadas a princípios gerais e eram julgadas de acordo com os modelos teóricos, tal
característica deu ao século XVIII sua unidade e força nas reverberações políticas.
Todavia, tais ideais passariam por duras críticas logo no início do século XIX, visto as
desilusões causadas pela Revolução Francesa que culminou no período Napoleônico,
tornando a ordem política e social da Europa num caos. O romantismo alemão mostrava-se
muito mais vivo no mundo do “espírito” (poesia e arte) do que no mundo político, nenhuma
teoria era clara e coerente, os escritores oscilavam entre polos opostos, como Friedrich
Schlegel, defendendo ideias liberais e conservadores, convertendo-se do republicanismo à
monarquia.
Seriam dois pontos responsáveis por essa derrocada do iluminismo, o novo interesse
pela história e a nova concepção e valorização do mito. Quanto à história, o pensamento do
século XVIII comportava-se de uma forma diferente dos românticos germânicos. Sob
acusações irreais de nunca terem dado importância à história os iluministas tinham no
conhecimento histórico apenas uma forma de experiência antecipada, para preparar melhor
seu futuro, utilizando a história bússola, guia e exemplo.
O romantismo pelo contrário era profundo admirador do passado, via no
conhecimento histórico a justificação daquilo presente no mundo contemporâneo. Os
fundadores da Escola Histórica do Direito afirmavam a história como origem e verdadeira
fonte do direito. Savigny e posteriormente seus seguidores, afirmaria que o direito não é
criado pelo homem, mas sim originado de uma “mais alta necessidade”, metafísica, um
espírito natural que inconscientemente trabalha e cria.
O mito também revelava grandes abismos entre as duas correntes de pensamento,
enquanto o iluminismo observava no mito barbaridade, incoerência e aglutinação incorreta de
ideias, afirmando que o mito era incompatível à Filosofia, pois uma começava quando a outra
acabava, o romantismo dá ao mito o caráter de assunto com alto interesse intelectual, além de
culto e veneração, pois é do mito que surgem arte, história e poesia. O filósofo romântico ao
procurar a origem da poesia, encontrava e se apaixonava pelo mito.
É, portanto evidente, apesar de seu aparente afastamento do mundo político, que o
romantismo contribuiria para a maior fonte do mito na ciência política do século XX. Dele
advêm algumas concepções, como a de Estado totalitário e a preparação de todas as outras
formas de imperialismo agressivo, ressaltando-se o ideal romântico de totalitarismo da
cultura, da poesia, onde tudo devia permear-se dela.
O nacionalismo romântico surge então de um pressuposto de conservação e não de
conquista, como seria feito no século XX, tal concepção surge em Herder que tinha uma
concepção de individualismo bem formada, o individualismo tornar-se-ia uma característica
marcada do romantismo. Em Herder, cada nação era somente uma voz do universalismo
global, uma harmonia universal, deste sairia o conceito de Goethe Weltliteratur, literatura
universal.
Desse também nasce o conceito de universalismo religioso, onde se amava a Idade
Média e sua capacidade de reunir num só signo, numa só religião, no império universal
cristão. Amava-se essa ideia, amava-se a Europa novamente reunida novamente, num
universalismo religioso. Friedrich Schleiermacher, um dos maiores teólogos do romantismo
foi além, admitindo a que todas as espécies de credos e ritos fazem parte desse universalismo
religioso, sendo a religião amor, mas um amor pelo Universo, pelo Infinito.
Toda essa concepção ajuda-nos a compreender o nacionalismo romântico, produto de
tal amor, os ideais políticos dos primeiros românticos encontravam-se repletos de amor, mas
não eram capazes de resolver os problemas da vida política, tendo essa teoria cedendo.
Alguns poetas então, entenderam a necessidade do realismo nas relações políticas, Heinrich
von Kleist, trocaria amor por um ódio amargo e A.W. von Schlegel, sentia o mesmo; apesar
disso, esses nunca renunciariam os ideais universais da cultura humana.
PARTE III - O MITO NO SÉCULO XX
XV - A preparação: Carlyle
Cassirer aponta para o caráter explosivo e revolucionário para a ciência política das
conferências de Carlyle, sendo o próprio Carlyle desconhecedor do caráter revolucionário das
mesmas, sua teoria do culto ao herói e o heroico na história serviriam para estabilizar a ordem
política, pois acreditava ser o culto ao heroico, aquilo de mais permanente na história da
humanidade. As influências de Carlyle seriam vistas não em sua época, mas sim no século
XX, como germinadoras do fascismo, algumas releituras ainda creditavam ao inglês toda a
base ideológica do nacional-socialismo. A obra de Carlyle passou por grande influência do
romantismo germânico, através de uma tendência prussiana, levando-o “à divinização dos
chefes políticos e à identificação do poder com o direito” (p. 209).
Cassirer adverte a necessidade do conhecimento da vida, influências e obra do autor
inglês, antes de julgá-lo de acordo com o senso atual da intelectualidade. Afirma então que
Carlyle não criara uma base filosófica para o estudo da história, vendo-a como paisagem,
acreditava a mesma ser biográfica. Sua ideia de liderança credita aos homens de poder as
mudanças na história, a história é a história dos grandes homens. Mas como discernir o real
herói do falso?
Carlyle afirma que tal distinção se dá no mundo em que o herói está, sendo assim as
pessoas devem mudar, não podemos ter um mundo de servos. Apesar disso, Carlyle não
afirma uma ideia, um tipo específico de herói, isso seria lógico, aquilo odiado pelo autor.
Dessa ideia, advém sua concepção mística do herói, aquilo que deve surgir da intuição
e não da lógica, o autor usa da história como um painel de retratos, criando uma síntese não
racional, mas firmada em outros poderes intuitivos. Através de exemplo passa a ideia de
herói, nunca criando um exemplo genérico, o caráter heroico através da história também
permanece o mesmo, não há divisibilidade.
Em suas conferências o autor tinha um estilo muito mais oratório do que filosófico,
permitindo unir as imagens, quase paradoxais, de seres completamente distintos, como Odin e
Rousseau, afirmando que todos eram iguais, sendo o curso da vida responsável por sua
ocupação. Declarando ser o herói um “homem universal”, afirmava exageros e
inconsistências, mas Cassirer adverte que um homem deve ser julgado pela sua concepção de
história, sendo a de Carlyle focada no “todo”, um todo individual que posteriormente foi
alcunhada de filosofia existencial.
Goethe é apresentado como grande influência sobre a obra de Carlyle, “Wilhelm
Meister Lehrjahre”, mostrou-o que a dúvida só é satisfeita pela ação. A princípio é notável a
completa não convergência das ideias de ambos. Mas em Wilhelm Meister temos uma
interpretação inovadora de Carlyle, onde o Infinito reside no homem. Sendo a insistência na
atividade do homem, na sua vida e deveres práticos a característica não romântica de Carlyle,
seu ideal era prático e não mágico. O caráter ilusório do conhecimento desaparece na
aproximação da esfera da ação e da nossa vida e ética.
Ao contrário do romantismo e sua elevação da preguiça, Carlyle firmava suas
proposições na ideia do trabalho, seu imperativo categórico é o de produzir. É o trabalho que
gera o conhecimento verdadeiro, sendo a especulação mental apenas uma hipótese a ser
fixada pelo trabalho. Desse modo o trabalho e a produção ganham valor, tornando a
introspecção desnecessária, o Conhece-te a ti mesmo, passa a ser Sabe aquilo em que podes
trabalhar (p. 224).
A concepção de natureza será então idêntica à do próprio homem, se concebemos o
homem como não criador e agente não determinantes, teremos a natureza passiva,, tal
pensamento nos remete à crítica dos enciclopedistas franceses “Système de la nature”, de
Holbach, e o “L’homme machine, de La Mettrie, são apresentados como muito parecidos. O
homem só descobre a grandeza da natureza se descobre a sua própria grandeza. O dinamismo
dentro do homem será então a chave para a concepção de uma natureza sob o símbolo e a
veste do Infinito.
A religião é outro ponto de choque entre Carlyle e seu maior influenciador. Apesar de
o primeiro ter abandonado a fé puritana, ele não poderia aceitar o paganismo de Goethe, sua
religião era moral e não da natureza, não apresentava um teísmo, mas se não necessitava de
um Deus pessoal, precisava num herói pessoal.
A história também aparece numa distinção de significação entre Goethe e Carlyle.
Para Goethe, a história nada tinha de Divino [como a natureza e a arte o tinham], tratava-se
apenas de dar fragmentos da vida humana, diferente do Todo Infinito da natureza. Numa outra
concepção temos na história os fatos dos grandes homens, emanados do divino, permitiam
vislumbrar o visível de Deus. Desse modo não poderia se basear em Goethe quanto ao
pensamento histórico, tendo então que partir de um próprio princípio, cujo qual tinha de
modificar ou pelo menos alterar sua “Filosofia Vital” que geraria sua teoria do culto a herói.
Cassirer partirá então para o embasamento metafísico de Carlyle, afirmando que é no
alemão Fichte que será buscada uma metafísica apropriada ao pensamento do autor. Todavia,
Cassirer aponta que a primeira vista o “idealismo subjetivo” de Fichte e o “idealismo
objetivo” de Goethe são contraditórios.
As teorias dos dois influenciadores de Carlyle tocam-se na afirmativa “qualquer
espécie de dúvida só pode ser aclarada pela ação” (p. 230). Em Fichte teremos a base de uma
concepção filosófica da história, onde a história não é meramente um subproduto, afirmando
não ser possível encontrar o “Absoluto” concentrando-se apenas na natureza. O Ich de Fichte
requer um mundo sobre o qual agir, sua atividade é a sua própria essência e significado. Desse
modo, temos em Fichte que a igualdade de razão prática não é real, logo os homens que muito
as possuíssem seriam os primeiros heróis da humanidade.
Analisadas as bases e influências de Carlyle, temos, segundo Cassirer, a capacidade de
compreender o significado e influência da teoria do autor escocês, ao que tange o governo
político. Para ele o herói, aquele que deve guiar e comandar todos os homens de seu povo
representa o somatório de todas as figuras de heroísmo. O herói era um ser moralmente justo,
mantendo-se completamente longe da falsidade, repudiada pelo autor.
Quanto ao imperialismo, temos que muitos autores conferem à Carlyle o título de “pai
do imperialismo britânico”, Cassirer aponta, nesse ponto, há especificidades do pensamento
daquele. Seu nacionalismo via a grandeza de uma nação na intensidade e profundidade da
vida moral e realizações intelectuais. A questão de poder sendo direito, tinha outra conotação,
poder assume um sentido mais moral que físico em Carlyle. Seu culto ao herói seria levado ao
fim, o culto à moralidade.
É aí que Cassirer conclui seu capítulo sobre o autor escocês, afirmando que toda a sua
concepção de história, de cultura e de vida política e social baseia-se na moralidade. Carlyle
apresenta uma descrença na natureza humana, mas crê que o homem sempre cederá à
grandeza moral.

XVI - Do culto do Herói ao culto da Raça


Segundo Cassirer, as políticas do século XX criam uma aliança entre o culto da raça e
o culto do herói, formando quase a mesma coisa, por seus interesses e tendências. Entretanto,
tal concepção de semelhança entre as teorias é errônea, sendo necessário separar a teoria do
culto do herói e a teoria do culto da raça.
Analisando a teoria do culto da raça chegamos a Gonibeau e seu “Essai sur l’inégalité
des races humaines”. Onde sua intenção é criar um tratado histórico e filosófico e não
político. Sua filosofia apresenta-se como fatalista, o homem não modifica seu destino, mas
tem o direito de saber de onde vem e para onde vai. Gobineau considerava de extrema
importância para o fator essencial na história humana. O fato moral e intelectual das raças é
óbvio, mas havia o desconhecimento da importância desse fato.
Gobineau afirmava com seu Essai uma posição de um novo Copérnico do mundo
histórico, visto que toda a verdade da história confluía para sua teoria, fato inverídico, visto a
debilidade e fraqueza de argumentação apresentada em seu livro, segundo Cassirer. Onde a
falácia e a arbitrariedade dos fatos históricos são muitas vezes aliados à ocultação ou
minorização dos fatos contrários à tese, criando assim alicerces débeis.
Cassirer apresenta com veemência críticas à teoria de Gobineau, partindo para um
exemplo da argumentação e raciocínio do mesmo. O autor de Essai afirma a raça branca como
a única que tem vontade e poder de edificar uma vida cultural e, portanto fazer história, as
raças amarelas e negras seriam apenas materiais inertes na mão dos senhores brancos, deste
modo temos a história apenas no contato com o homem branco. Sua argumentação tenta
explicar, sem sucesso, como por exemplo, a China apresentou tão rica cultura na antiguidade
ou então como os índios americanos eram capazes de se organizar nos âmbitos social, cultural
e político. Gobineau afirma um contato com a raça branca deve ter ocorrido, mesmo não
apresentando fatos críveis de tal contato. O autor francês acreditava nos sentimentos pessoais
como mais convincentes do que os argumentos lógicos.
As diferenças entre as duas teorias são então apresentadas por Cassirer. O culto do
herói surge do culto à moralidade que se encontra no herói, ser individual emanado do divino,
uma nova encarnação do uno e sempre do mesmo poder da “Ideia divina”, o culto da raça
desconsidera tanto o individual quanto esse caráter divino, pois homem só está ligado à terra
nativa, sua força provém daí, as melhores qualidades de um homem são apenas as das suas
raças.
Praticamente falando, Gobineau apesar de apresentar uma obra notavelmente
metafísica, apresentava-a longe do intelectualismo, da arrogância e quase que inteligibilidade
da metafísica do século XIX, seus sistemas intricados e sofisticados. Sua tese era diferente,
apregoava ser uma ciência natural, utilizando exemplos e experiências simples, como a raça e
o sangue.
O reconhecimento das raças como importante fator histórico já era conhecido, “Esprit
des Lois” de Montesquieu já apresenta tais estudos. A façanha de Gobineau era a de colocar a
raça como caráter único e governante da história humana.
Desse modo Cassirer nos mostra os inimigos de Gobineau, em primeiro lugar a
religião, pois a sua teoria das raças afirma a tentativa, de destituir todos os outros valores além
do racial, onde “A raça é tudo; todas as outras forças nada são” (p. 251).
O primeiro adversário seria a concepção religiosa da origem e destino do homem. O
cristianismo pregava a origem única da humanidade, fator que seria completamente negado
em “Essai sur l’inégalité des races humaines”. Tal embate era pessoal, pois o autor também se
submetia ao catolicismo e aos dogmas da Igreja, ante tal questionamento, adotou a postura de
se retirar formalmente do embate, afirmando ser o cristianismo responsável por guiar o
espiritual humano, não tendo o poder para guiar o homem em seu caminho histórico, de certa
forma, o cristianismo abdica de seus direitos e curva-se ante o novo Deus da raça.
As doutrinas humanitárias também seriam inimigos à derrotar por Gobineau. Tais
doutrinas surgiriam no século XVIII afirmando a igualdade de dignidade e direitos de toda a
raça humana, tendo Kant como maior expoente desse pensamento. O autor em estudo não
somente não compreende tal ideal, como também o considera intolerável. Agir de acordo com
o imperativo categórico de Kant, de acordo com leis que valham para todos, seria agir sob o
nada em Gobineau, pois não existe a universalidade, pelo simples fato de não existir o homem
universal.
A argumentação de tais pressupostos é classificada por Cassirer com falácia e ingênua,
uma lógica circular, em que “se faz o bem por ser bem nascida”, a ontologia precede a moral
e é seu fator principal.
Atenta-se então para a crítica feita por Gobineau ao nacionalismo e patriotismo, para
quebrar o senso-comum que até então via completa confluência dos mesmos com o racismo.
Nesse autor, a noção de pátria, de Nação é falsa, pois abriga sobre seu nome uma multidão de
outras raças e classes, gerando muitas vezes a pior das coisas: a mistura de raças. Através do
método do autor e aristocrata francês temos também na genética uma forma de valorar teorias.
Logo vemos a ideia de nação desvinculada da raça germânica, a mais superiora de todas,
recaindo tais conceitos em raças semíticas, mestiças de romanos e gregos.
Suas críticas caem sobre os gregos e romanos, sendo a polis grega e o sistema de
códigos romano, meras abstrações sem vida. No caso romano, forma de abarcar sob o mesmo
código uma multidão de “detritos de raças”.
No campo da arte, que seria algo universal em todas as raças, Gobineau cria uma
forma de escape a esse dilema surpreendente, afirma a derivação da arte de raças negras, por
seu caráter imaginativo a arte descenderia então da raça negra, que é excessiva, predominante
e exuberante nos negros. A arte seria uma mancha negra no sangue das outras raças, por isso
era correto manter-se longe de tal nódulo, a arte deveria ser admirada mas de longe, como
uma sereia, que tenta engodar os dotes morais e intelectuais.
Cassirer indaga sobre “algum” subjetivo que uniria as diferentes raças, se o homem
ariano teria a compreensão de que as outras raças deveriam rastejar aos seus pés. Gobineau
responde que o homem germânico tinha plena consciência de si e do papel que desempenha
nesse mundo, porque era de direito um senhor feudal ou um proprietário, dono de um pedaço
do mundo.
Gobineau no final de sua vida acadêmica passaria a se desinteressar pela história e
escreveria livros sobre sua própria biografia. Cassirer conclui seu capítulo sobre o autor
francês criando uma análise total da obra. Ao propor a raça como principal motor da história
humana acaba por selar seu fim, sendo a raça ariana a mais pura e mais poderosa de todas as
raças caberia a esse grupo então guiar a humanidade para a extrema prosperidade, a aparição
da raça ariana fora um evento grandioso, até para os Deuses.
Mas essa expectativa logo é destruída com um simples fato: ao guiar o mundo, a raça
pura inerentemente acaba por misturar-se com as impuras, torna-se escrava do seu próprio
escravo. Desse fim trágico, temos a morte do Deus da raça, o Deus que foi dado no lugar de
todos os outros valores humanos, padece pela mistura humana, culminando numa sociedade
sem a energia que move as grandes conquistas e batalhas, uma sociedade feliz em completa
letargia.

XVII - Hegel
Hegel nos é apresentado como um dos maiores filósofos da história, seu sistema,
diferentemente dos outros, não ficou submetido apenas ao mundo das ideias sem influenciar a
vida política, exercendo em grande parte a política moderna. Entretanto, adverte Cassirer, o
sistema hegeliano ao atingir tanta grandeza na vida política dilatou-se de forma a não se
manter o mesmo, segundo o autor, “Bolchevismo, fascismo, nacional-socialismo, todos eles
desintegraram e cortaram aos pedaços o sistema hegeliano” (p. 268).
A filosofia hegeliana assume um papel de canonizar “o existente como tal”, sendo
contrária ao ideal democrático, mas como tal concepção se tornou base para uma das forças
mais revolucionárias no pensamento político moderno e como o mesmo influencia Marx e
Lênin?
Entretanto, o conservantismo não é o único aspecto na filosofia hegeliana. Hegel
assume um papel de falar da história como um todo, quebrando a dualidade oriente-ocidente,
tentando dessa maneira criar em seu sistema não o espírito de uma nação, mas um espírito
universal.
Contudo, o sistema político de Hegel não permaneceu nesse universalismo, pelo
contrário, com o tempo passou a se restringir ao seu mundo presente, e Hegel passou a se
preocupar com a Alemanha e a Prússia, num nacionalismo e quase provincialismo. Para
compreender o verdadeiro caráter da filosofia de Hegel, Cassirer afirma necessária a
compreensão de todas as bases desse teórico.
A metafísica de Hegel resume-se em duas questões, a religião e a história. Em Hegel
temos inovação na questão da teodiceia, onde em primeiro lugar, temos a conceituação do mal
como um produto do caráter fundamental que se desprende da própria definição de realidade.
A então vigente concepção era a de separação entre o mundo real e um mundo moral,
elevado de forma sublime, pelo pensamento idealista que vai de Platão até Kant e Fichte,
nesse mundo, o desejo de bem e moral afirmam um desejo universal, igualmente abstrato.
Todavia o curso do mundo frustra esse desejo universal e nossos desejos particulares [lei do
coração], nossa consciência não aceita tal fato, separando-se da realidade a ponto de atacar e
destruir a ordem atual das coisas.
Hegel escreve sobre tal destruição em “Fenomenologia do Espírito”, ao citar a
Revolução Francesa, que se inicia com os mais elevados valores morais e ao apresentar-se
diante de uma ordem do mundo violenta, passa a atacar essa realidade. O indivíduo ao tentar
impor “a lei do coração” ao mundo atual encontra resistência, essa resistência só pode ser
vencida a partir de uma revogação da ordem natural da história das coisas. A partir daí, a “lei
do coração” torna-se um princípio destrutivo e subversivo.
Hegel busca uma reconciliação na sua Filosofia da História, ao colocar o real numa
aceitação, uma aceitação da ordem das coisas contendo uma verdadeira substância ética.
Nessa aceitação Hegel aceitaria também o mal, uma encarnação e atualização da razão, sendo
essa razão oposta à “razão prática” de Kant, mas uma “razão que vive no mundo histórico em
que o organiza”.
Na síntese hegeliana encontramos a interdependência entre o histórico e o religioso,
uma inovação que vai de contra a distinção então em voga do “mundo sensível” e o “mundo
inteligível” presente desde Platão até Kant. A própria Metafísica tratava dessa distinção que
fora perpassada por Hegel. A dualidade, presente em Platão [a concepção de encontrar a
verdade somente no mundo das ideias e não no mundo terreno]; em Kant [opôs-se à
concepção de Platão, afirmando que o conhecimento estava confinado ao mundo empírico];
em Spinoza [onde apesar de uma concepção monista entre Deus e a Natureza, há o grande
abismo entre a ordem do tempo e a ordem da eternidade]; e em S. Agostinho [com o
afastamento da ordem divina e a ordem temporal], é retirada por Hegel em suas proposições a
cerca da metafísica.
Para o autor alemão, temos na história o fim da divisão entre o “tempo” e a
“eternidade”, ambos interpenetram-se. Por fim, no sistema hegeliano “a história não é uma
mera aparência de Deus, mas a sua realidade; Deus não só “tem” história, ele é história” (p.
281)..
Cassirer parte então em direção a uma análise do estado na filosofia de Hegel,
afirmando que o mesmo é nesse autor não somente uma parte da história, mas um todo, é o
próprio núcleo da vida histórica. O Estado é perfeita realidade, é a própria encarnação do
“espírito do mundo”, é a “Ideia divina” presente na terra.
Dessa forma, o Estado aparece como algo sem qualquer obrigação moral, pois a
moralidade tem valor somente no mundo individual e não no mundo universal do Estado,
sendo seu único dever a própria conservação [essa concepção é notavelmente oposta a de
Kant, onde a moralidade, o reino dos fins, opunha-se ao mundo das causas de dos efeitos, o
indivíduo nessa concepção para cumprir o seu dever deve negar o mundo e destruir a si
mesmo, pois sua natureza moral é incompatível com a sua natureza física]. O Estado então
não conhece o bem nem o mal, sendo absoluto e infalível.
Hegel propõe inovações em seus pressupostos a cerca do Estado, diferenciados de
todos os ideais da época, a ideia de “todo orgânico” de Novalis, por exemplo, onde o autor
sonha com a unidade de todas as nações cristãs sob a direção de uma autoridade universal de
uma Igreja, é substituída por uma concepção orgânica dialética em Hegel, uma unidade de
contrários. Nessa unidade, é necessário afirmar o papel negativo da vida política: a guerra.
E nesse momento, temos uma concepção para as relações internacionais, em Hegel,
acabar com a guerra seria matar a vida política, os Estados buscam garantir seus interesses, a
ideia de uma Liga das Nações kantiana seria contingente, pois no fim ultimo, todos os Estados
agem de acordo com seu próprio interesse, “o conteúdo particular da vontade do Estado é a
sua prosperidade, essa prosperidade particular é a lei suprema na relação de um Estado com o
outro” (p. 285).
O Estado possui no sistema hegeliano verdade, essa verdade não é de forma alguma
moral, mas tem base no poder. Cassirer nos mostra como essa concepção, advinda de 1801,
propõe a teoria fascista mais “brutal” já feita.
Dando continuidade à sua análise, vimos em Hegel a junção do culto ao Estado e do
culto ao Herói, que da mesma forma assenta-se no poder. Sendo a paixão, um dos agentes do
processo histórico, a virtù de Maquiavel é aceita, significando força, não existindo mais forte
e poderoso motivo na vida humana do que as grandes paixões.
É notável que a linha de pensamento hegeliana marque uma linha de divisão entre as
filosofias do século XVIII e as do século XIX, Hegel tinha completa consciência de que o
pensador individual não podia ultrapassar seu tempo. Essa concepção remonta ao historismo
presente em seu sistema, onde a história não pode ser criada ou transformada pelo pensamento
filosófico, mas sim descrita e exprimida.
Quanto ao Iluminismo, Cassirer nos mostra a relação de Hegel com o mesmo. A
crítica hegeliana parte ao caráter do iluminismo de criar um “dever ser” que perde contato
com a realidade, passar a ser uma “formalidade”, a filosofia não tem o papel de desenhar um
ideal da natureza das coisas contra o mundo histórico, não pode se vincular num idealismo
“subjetivo”.
Em oposição a esse idealismo, Hegel propõe um idealismo objetivo, procurando as
ideias no curso dos acontecimentos históricos e não na mente do homem. E analisando esses
acontecimentos temos de distinguir o “real” da “existência histórica”, para tal temos apenas
um artifício, a história do mundo. Nesse julgamento conclui-se então que na história universal
cada nação tem a sua vez de dominar; essa é uma das mais contundentes proposições na teoria
hegeliana que culminariam numa preparação do fascismo e imperialismo na idade moderna.
Todavia, Cassirer nos mostra que há um ponto na teoria Hegeliana que diferenciam a
mesma das modernas teorias do Estado Totalitário, esse é a não submissão da Arte, da
Religião e da Filosofia ao Estado, pois tais formas de vida cultural possuem um sentido e um
valor independentes, tendo um sentido em si.
No fim do capítulo, Cassirer afirma mais um ponto de distinção entre Hegel e o
totalitarismo, dessa vez na questão do Gleichschaltung, a eliminação de todas as formas
culturais de vida a fim de evitar distinção, objetivando uma unidade orgânica. Hegel, não
admitiria tal fato, pois se tais eliminações acontecessem acabariam por gerar uma unidade
abstrata, retirando a liberdade de vida, que repousa na diferenciação de ideias. Hegel exalta e
glorifica o Estado, fazendo até mesmo sua apoteose, mas difere nessa idealização do poder do
Estado da idolatria pregada pelo totalitarismo moderno.

XVIII - A técnica dos mitos políticos modernos


Cassirer passará então para a análise dos mitos políticos na modernidade, afirmando
que em quase nada apresentavam inovações, sendo em sua maioria releituras das teorias de
autores aqui apresentados, como Carlyle e Gobineau. Afirmando que algumas condições
gerais contribuíram para o desenvolvimento dos mitos.
O principal dessas condições estava na Alemanha pós-primeira guerra mergulhada
num caos político e social. Pois o pensamento mítico surge somente em situações especiais,
quando o pragmático e o empírico não podem mais contribuir para a solução. “Em situações
desesperadas o homem socorreu-se sempre de meios desesperados” (p. 297). O mito nunca é
destruído pelas forças políticas e sociais, ele aguarda sua hora, esperando num escuro. Sua
hora chega quando as outras forças unificadoras da vida social do homem perdem sua força e
não são capazes de lutar contra o mito.
Relacionando o conceito de Doutté, onde mito é “a personificação do desejo coletivo”,
Cassirer afirma que da mesma forma comportam-se os homens modernos, entretanto, ao
contrário dos selvagens, os homens modernos não cedem completamente à irracionalidade,
atentando à racionalidade, por isso precisam de uma teoria. Nesse ponto, assim como com os
selvagens, o homem moderno pode creditar a somente um homem a tarefa de satisfazer o
desejo coletivo, tornamos então a Carlyle, sua teoria tentou racionalizar um impulso
selvagem.
Os mitos políticos do século XX apresentam-se então numa combinação entre o
primitivo e o moderno, os homens políticos são uma mistura do “homo magus” e “homo
faber”, propagam por meios racionais as conclusões mais irracionais. Entretanto, é importante
atentar que o mito moderno é fabricado, ou seja, descende de um plano e não do simples
imaginário. Sobre a Alemanha, afirma que antes do rearmamento de 1933, o armamento
mental por mitos políticos já fora feito.
Sobre a linguagem, afirma sua faceta mística e semântica e no caso alemão demonstra
como as palavras foram submetidas ao nazismo, assumindo um caráter mágico, que causam
certos efeitos e certas emoções, padrões e sentimentos violentos. As palavras ganharam
caráter mágico através de uma propaganda e articulação políticas.
Sobre os ritos, afirma-os como componentes essenciais para a perda do individual e a
criação de uma sociedade coletiva, a vida coletiva passa a ser importante, quando os mesmos
grilhões dos ritos, presentes no mundo selvagem, apregoam o homem moderno.
Os valores também são destruídos para que juntamente da linguagem recriem
condições para a propagação do mito político, tal destruição foi apoiada na teoria das raças de
Gobineau. Para entender tal questão Cassirer parte para a análise da liberdade ética, ou seja, a
capacidade de autonomia do homem, que se torna um encargo, expressamente retirado pelos
partidos políticos, eximindo o indivíduo de qualquer responsabilidade pessoal.
Passamos para mais um paralelo entre a cultura e o misticismo selvagem e o moderno,
a previsão do futuro. Para o selvagem, o feiticeiro não assumia somente o papel de “homo
magus”, mas também de “homo divinans”, da mesma forma comporta-se o chefe totalitário.
Promete-se ao povo um futuro glorioso, a dominação do mundo pela Alemanha. Compara
esse fato com o sucesso do livro de Spengler “Untergang des Abendlandes”, uma “nova forma
de prever” a história humana, apresentada como um fim degradante, em seu livro. Sua
conclusão, da necessidade de reinvenção do homem ocidental, na técnica, fez de sua obra
importante referência para o nazismo.
Sobre a política, Cassirer demonstra sua primitividade ante as demais formas de
ciência, por estar, ainda, intrinsecamente ligada ao pensamento mítico. Afirma também que é
na filosofia temos um grande aliado na luta contra os mitos políticos, por permitir a sua
compreensão e a verdadeira medida de seus poderes.

Conclusão
O autor termina sua obra aferindo a inconstância da cultura humana, sua debilidade
em certos momentos e sua luta interminável com o pensamento míticos, subjugado na
presença das forças intelectuais, éticas e artísticas, mas seu poder é prontamente reacendido
quando tais forças afrouxam.
A obra de Cassirer contém grande riqueza teórica nas mais amplas áreas do
conhecimento, antropologia, sociologia e história são exemplos de abordagens utilizadas pelo
autor para gerar a compreensão do fenômeno mítico e sua aplicação nos tempos modernos,
todavia é na filosofia política que as grandes considerações do autor são lançadas, através de
um embasamento que passa pelas filosofias políticas pré-socrática, platônica, escolástica,
renascentista, contratualista e romântica, tocando nas temáticas do Estado e do poder,
ressaltando sempre a presença dos elementos míticos.
Para culminar em seu capítulo final e conclusão, Cassirer cria desde a primeira parte
de seu livro um paralelismo entre o desenvolvimento do pensamento filosófico político em
um permanente processo de luta contra o pensamento mítico - dito selvagem. Para tal, utiliza
na “Parte I” de seu livro de uma ampla interdisciplinaridade para conceituar o pensamento
mítico e sua estrutura culminando tal apropriação de conteúdo com excelência no capítulo “IV
- A função do Mito na Vida Social do Homem”.
Por fim, apesar de poucas referências diretas ao modo de agir do regime totalitarista
alemão, Cassirer dialoga constantemente com tal fato em seu livro, sobretudo na terceira parte
(cap. XVIII) de seu livro, onde há maior referência ao regime nazifascista. A excelência com
que a condução das ideias, teorias e períodos históricos é feita pelo autor culminam num
capítulo final onde o aprofundamento teórico feito através do livro gera uma compreensão
completa, na medida do possível, do totalitarismo e de suas origens míticas, através da ótica
da filosofia.

BIBLIOGRAFIA

CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: ZAHAR
Editores, 1976.

Você também pode gostar