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Torres, Anália Cardoso, Divórcio em Portugal. Ditos e Interditos: Uma Análise Sociológica
Viegas, José Manuel Leite, e Sérgio Faria, As Mulheres na Política

I TI TA EDITORA
i '«dm* / 2001
© Adelino Cardoso e Maria Luisa Ribeiro Ferreira, 2001
ÍNDICE
Adelino Cardoso (n. 1950) e Maria Luísa Ribeiro Ferreira (n. 1944) (organizadores)
Medicina dos Afectos: Correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabeth da Boémia

Primeira edição: Março de 2001


Tiragem: 600 exemplares

Tradução do francês: Inês Cardoso e Paulo de Jesus


Revisão científica: Adelino Cardoso e Maria Luísa Ribeiro Ferreira

ISBN: 972-774-105-3
Depósito legal: 164141/01

Composição (em caracteres Palatino, corpo 10): Celta Editora


Capa: Mário Vaz | Arranjo e imagem: Paula Neves
Impressão e acabamentos: Grafis, CRL, Portugal
Consultando Descartes ................................................................................. 1
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa, Mnria Luísa Ribeiro Ferreira
de acordo com a legislação em vigor, por Celta Editora, Lda.

Celta Editora, Rua Vera Cruz, 2B, 2780-305 Oeiras, Portugal


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Fax: (+351) 214 467 304
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Página: www.celtaeditora.pt
( orrespondência entre Descartes e a princesa Elisabeth da Boémia .... 27

Elisabeth a Descartes [Haia, 6/16 de Maio de 1643] ............................... 29


Descartes a Elisabeth [Egmond de Hoef, 21 de Maio de 1643]................ 31
Elisabeth a Descartes [Haia, 10/20 de Junho de 1643]............................ 34
Descartes a Elisabeth [Egmond de Hoef, 28 de Junho de 1643] .............. 36
Elisabeth a Descartes [Haia, 1 de Julho de 1643]..................................... 39
DEDALUS - A cervo - FFLCH Descartes a Elisabeth [Egmond de Hoef, Novembro de 1643] ................ 41
Elisabeth a Descartes [Haia, 21 de Novembro de 1643].......................... 45
Descartes a Elisabeth [Egmond de Hoef, Novembro de 1643] ............... 46
Descartes a Elisabeth [Paris, Julho de 1644 ? ] .......................................... 49
Elisabeth a Descartes [Haia, 1 de Agosto de 1644] .................................. 51
20900115455 Descartes a Elisabeth [Le Crévis, Agosto de 1644] .................................. 53
J Descartes a Elisabeth [Egmond, 18 de Maio de 1645] ............................. 55
Elisabeth a Descartes [Haia, 24 de Maio de 1645] ................................... 58
Descartes a Elisabeth [Egmond, Maio ou Junho de 1645] ....................... 61
Elisabeth a Descartes [Haia, 22 de Junho de 1645] .................................. 64
I lescartes a Elisabeth [Egmond, Junho de 1645] .................................. 66
A tradução da correspondência entre Descartes e a Princesa Elisabeth da Boémia foi Ilescartes a Elisabeth [Egmond, 21 de Julho de 1645]............................. 68
efectuada a partir da edição das Oeuvres de Descartes promovida por Adam Hi Tannery, Paris, Ilascar tes a Elisabeth [Egmond, 4 de Agosto de 1645]............................ 70
PUF, 1974, reimp., tomos III e IV. Esta edição será referendada pela sigla AT,
Elisabeth a I)escarte» [Haia, 16 de Agosto de 1645] ................................ 73
VI M E D IC IN A D O S A F E C T O S

Descartes a Elisabeth [Egmond, 18 de Agosto de 1645] ............................ 75 CONSULTANDO DESCARTES


Elisabeth a Descartes [Haia, Agosto de 1645]............................................. 79 As cartas de Elisabeth
Descartes a Elisabeth [Egmond, 1 de Setembro de 1645]........................... 81
Elisabeth a Descartes [Haia, 13 de Setembro de 1645] ............................... 85 Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Descartes a Elisabeth [Egmond, 15 de Setembro de 1645] ......................... 87
Elisabeth a Descartes [Riswick, 30 de Setembro de 1645].......................... 90
Descartes a Elisabeth [Egmond, 6 de Outubro de 1645] ............................ 92
Elisabeth a Descartes [Haia, 28 de Outubro de 1645]................................. 99
Descartes a Elisabeth [Egmond, 3 de Novembro de 1645] ........................ 102
Elisabeth a Descartes [Haia, 30 de Novembro de 1645]............................ 105
Elisabeth a Descartes [Haia, 27 de Dezembro de 1645]............................. 107
Descartes a Elisabeth [Egmond, Janeiro de 1646] ................................... 109
Elisabeth a Descartes [Haia, 25 de Abril de 1646]................................... 113
Descartes a Elisabeth [Maio de 1646] ...................................................... 115
Descartes a Elisabeth [Egmond, Maio de 1646]....................................... 118 Filosofar por correspondência
Elisabeth a Descartes [Haia, Julho de 1646] ............................................ 119
Descartes a Elisabeth [Egmond, Setembro de 1646] ................................ 120 Embora as cartas sejam secundarizadas na literatura filosófica como docu­
Elisabeth a Descartes [Berlim, 10 de Outubro de 1646] .......................... 124 mentos de segundo plano, elas são muitas vezes a chave que nos permite ace­
Descartes a Elisabeth [Novembro de 1646]............................................... 127 der à globalidade de um pensamento.1 De facto, é nelas que este melhor se
Elisabeth a Descartes [Berlim, 29 de Novembro de 1646] ......................... 130 revela, esclarecendo conceitos, respondendo a dúvidas e tirando ilações de
Descartes a Elisabeth [Egmond, Dezembro de 1646] ................................ 132 I nvssupostos fundantes. Nas cartas, liberto de exigências formais, o filósofo
Elisabeth a Descartes [Berlim, 21 de Fevereiro de 1647] ............................ 134 iexponde directamente às solicitações que lhe são feitas, procurando tor-
Descartes a Elisabeth [Haia, Março de 1647] ............................................. 136 II.h se inteligível ao leitor e permitindo-se alguns desabafos que um pensa­
Elisabeth a Descartes [Berlim, 11 de Abril de 1647]................................... 139 mento mais elaborado não consentiria. É em diálogos deste tipo que se abrem
Descartes a Elisabeth [Egmond, 10 de Maio de 1647] ............................... 141 ihivos rumos. Ao tentar clarificar conceitos e calar objecções, as teses defendi-
Elisabeth a Descartes [Crossen, Maio de 1647].......................................... 144 Ilas ganham nitidez pois o olhar do outro evidencia-lhes dificuldades até
Descartes a Elisabeth [Haia, 6 de Junho de 1647] ..................................... 146 eu Ião insuspeitas ou mesmo incongruências não detectadas. E quando o in-
Descartes a Elisabeth [Egmond, 20 de Novembro de 1647] ...................... 148 Iei locutor é alguém inteligente e culto, cujo objectivo é aprofundar, testar ou
Elisabeth a Descartes [Berlim, 5 de Dezembro de 1647] ............................ 150 implesmente questionar, o resultado é particularmente feliz. Até porque as
Descartes a Elisabeth [Egmond, 31 de Janeiro de 1648]............................ 151 I In vidas do correspondente são em geral as nossas e os textos que delas resul-
Elisabeth a Descartes [Crossen, 30 de Junho de 1648]............................... 153 l.nn constituem um auxiliar precioso para um melhor entendimento dos
Descartes a Elisabeth [Paris, Junho ou Julho de 1648] .............................. 155 mestres. Estes tomam-se mais próximos mostrando fragilidades que parti­
Elisabeth a Descartes [Crossen, Julho de 1648] ......................................... 156 li i.im com o homem comum. Se no dizer de Hegel não há filósofo que resista
Elisabeth a Descartes [Crossen, 23 de Agosto de 1648] ...... :..................... 158 ■in olhar do seu criado de quarto, perante os correspondentes acontece um
Descartes a Elisabeth [Egmond, Outubro de 1648].................................... 160 I hmeo o mesmo. Levado pelo desejo de se fazer entender, o filósofo humani-
Descartes a Elisabeth [Egmond, 22 de Fevereiro de 1649]......................... 162 .1 no, revela-se e acessibiliza-se. Por um lado porque a escrita epistolar está
Descartes a Elisabeth [Egmond, 31 de Março de 1649] ............................. 165 I M'i'1Mssada das inquietações de um viver diário; por outro porque o autor de
Descartes a Elisabeth [Egmond, Junho de 1649] ....................................... 166 m 11 sistema é obrigado a repensar as suas teses de molde a tomá-las compre­
Descartes a Elisabeth [Estocolmo, 9 de Outubro de 1649]......................... 167 ensíveis a quem lhes levanta problemas. Hobbes defende que "quem fala a
Elisabeth a Descartes [4 de Dezembro de 1649] ........................................ 169

I I sto primeira secçflo da introdução reproduz algumas das ideias desenvolvidas no meu
ai ligo "Filosofar por correspondência", em A Poiética do M u n d o , Lisboa, Colibri, 2000.
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uma outra pessoa tenciona com isso entender o que diz",2ciente de que nem estabelece cumplicidades. Escritor e leitor são colocados face a face e mesmo
sempre os filósofos cumprem este propósito trivial. Daí a correspondência quando há desinteligências elas não se expõem abstractamente mas antes se
apresentar-se como complemento didáctico, como texto descodificador de direccionam para um opositor concreto, numa tentativa de com ele estabele­
quem pretende explicar, clarificar, expor, corrigir excessos ou mesmo anular cer elos comuns.
contradições. A exigência de rever certas teses de modo a serem compreendi­ E sobretudo quando não visam uma publicação imediata que as cartas
das por terceiros leva a um maior cuidado na formulação das mesmas. E o re­ melhor revelam o pensamento profundo de um autor. Sem dúvida que o tor­
sultado é precioso para hermeneutas e estudiosos. Norteados pela busca de nam mais vulnerável pois a liberdade formal que as caracteriza acentua am­
uma leitura fiel, eles sabem que as cartas se apresentam como oportunidade biguidades, revela tiques, enfatiza hesitações. E o que acontece na correspon­
óptima para solucionar problemas a que os textos "oficiais" nem sempre per­ dência entre Elisabeth e Descartes, um marco imprescindível para quem pre­
mitem dar resposta. tenda mergulhar no coração do pensamento cartesiano. As cinquenta e oito
Assim, a carta não é um mero completamento de informação nem tão cartas de que dispomos permitem-nos perceber como o autor das Meditações
pouco se circunscreve a uma descoberta de idiossincrasias íntimas. Longe de tomou a sério as objecções da princesa palatina e como para lhes responder
constituir um texto menor, ela torna-se o lugar por excelência da inter acção cabalmente abriu novos caminhos que talvez sem elas não tivesse explorado.
entre o pensamento e a vida. É nos trechos epistolares que percebemos o ver­ C) que, para além de confirmar a excelência das cartas como instrumento filo­
dadeiro alcance do pensamento de um autor bem como as diferentes dimen­ sófico, nos abre uma outra porta: a do papel da mulher como interlocutora
sões que ele integra pois está em causa um homem concreto, situado num es­ epistolar. E é La Bruyère que realça esta vocação feminina ao considerar as
paço e habitando um corpo. A intimidade, a subjectividade e o carácter fron­ mulheres inexcedíveis na tarefa de correspondentes, aceitando que, neste
tal são por demais evidentes na correspondência. E longe de se afastarem do campo, possam mesmo ultrapassar os homens: " Ce sexe va plus loin que le
terreno filosófico antes o enriquecem, mostrando-o no seu "fieri", nos proble­ notre dans ce genre d'écrire".4
mas que levanta, nos obstáculos que transpõe, nas dificuldades que revela.
O carácter abstracto que usualmente acompanha um pensar sistemático,
recobre-se agora de uma concreticidade que de modo algum o diminui. Pelo Filosofar no feminino
contrário, a pertinência e pregnância das teses defendidas são relevadas nesta
permuta de posicionamentos. É no diálogo inter pares que os excessos se anu­ Sabei que tenho o corpo imbuído de uma grande parte das fraquezas do meu
lam e as teses se desenham, separando-se o essencial do mero adorno. sexo que se ressente muito facilmente das aflições da alma...
Diz-nos Isahiah Berlin que as grandes filosofias falam a todos e que a estra­ [Elisabeth a Descartes, 24 de Maio de 1645]
nheza e dificuldade que o vulgo sente quando com elas se confronta apenas
reside na linguagem por vezes esotérica em que se expressam.3A correspon­ ( )s "estudos sobre mulheres", nomeadamente os anglo-americanos women
dência entre filósofos ou entre estes e não especialistas, constitui uma boa studies, originaram uma vasta literatura da qual sobressai uma vertente prá-
oportunidade para provar tal afirmação pois nela o pensamento é reduzido Xica e reivindicativa, mais ligada aos campos sociológico e político do que à fi­
ao núcleo duro das suas teses essenciais, procurando torná-las inteligíveis e losofia.5Deixaremos para outra altura o questionamento de uma filosofia fe­
reciprocamente congruentes. minista na multiplicidade das suas diferentes orientações e na relação/con-
Enquanto género filqsófico, o género epistolar situa-se num território Ir.iste que estabelece com uma filosofia no feminino. Tomamos como ponto
híbrido onde se cruzam factores reflexivos e afectivos. A meio caminho entre de partida a constatação de que as mulheres fizeram e fazem filosofia, com o
a oralidade e a escrita, entre o ensaio e o tratado, pressupondo a obra mas Intuito de vir a encontrar algumas constantes desse filosofar no feminino.
libertando-se dela, a carta é um escrito em que um indivíduo revela a sua inti­ ( ) que é um terreno polémico pois, mesmo entre aqueles/as que se empenham
midade intelectual, quer por iniciativa própria quer porque a tal é obriga­ na divulgação de textos filosóficos escritos por mulheres, há divergências
do. Destinada a alguém cuja identidade se conhece, com ele (ou com ela)
1.0 Bruyère, Les Caractères ou les Moeurs de ce Siècle, Lausanne, La Guilde du Livre, 1964,
2 "... whosoever speaketh to another, intendeth thereby to make him understand what he p. 95.
saith...", Hobbes, Elements of Law, cap. 13, §10, EW IV, p. 76. Relevamos, no que respeita à bibliografia portuguesa, o trabalho exaustivo de Maria
3 Isaiah Berlin, "An introduction to philosophy", em Bryan Magee, Men of Ideas, Oxford, Regina Tavares da Silva, A Mulher: Bibliografia Portuguesa Anotada (1518-1998), Lisboa,
- J ' i. i ------ 1*... n ------ i out) •»* I díçOes Cosmos, 1999,
4 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O N S U L T A N D O D ESC A R T ES 5

fundas quanto à especificidade de um pensamento filosófico feminino. Con­ .i princesa da Baviera endereçou ao autor das Meditações Metafísicas, verifica­
sideremos os casos de Mary Warnock e de Geneviève Lloyd, duas referências mos que nelas, o traço mais pregnante é a concretude. Quer os temas aborda­
incontornáveis para quem se debruça sobre a produção das mulheres filóso­ dos se situem no universo da metafísica quer no da antropologia ou mesmo
fas e que no entanto desenvolvem os seus percursos a partir de posiciona­ no da matemática, eles são sempre referenciados a um ser concreto que ine­
mentos bem diferenciados. Para Warnock, que muito contribuiu para a divul­ quivocamente se define como mulher: "tenho o corpo imbuído de uma gran-
gação de filósofas desconhecidas do grande público, é inegável que as mulhe­ Ih' parte das fraquezas do meu sexo..." E é essa assunção de um corpo na par-
res fazem filosofia.6Contudo ela discorda quer da especificidade de uma filo­ IUtilaridade e diferença que lhe são próprias que leva Elisabeth a questionar
sofia feminina quer mesmo de um pensamento feminino. Para a autora de i d cses cartesianas sobre um homem ao qual basta pensar para ser cabalmen-
Women Philosophers o pensamento filosófico, para se poder classificar como II ■«liTinido. Ao sujeito abstracto identificado pelo pensamento, opõe ela o ser
tal, tem de cumprir exigências. Destaca entre outras a racionalidade, a capaci­ i iiucreto que se aflige com os padecimentos do corpo. As perturbações da
dade de generalização, o carácter argumentativo, o grau de abstracção. Cum­ .limn a que Elisabeth dá realce (até porque constantemente as suporta) reme-
pridos tais requisitos, entende que é lícito falar de filosofia. Mas para ela não 11 in nos para essa dialéctica pensar/viver, ou antes, para um pensamento
tem sentido procurar afinidades nos textos escritos por mulheres pois as se­ qlio emerge de um quotidiano banal: " Desde que escrevo esta carta fuiinter-
melhanças que eventualmente se encontrem são esporádicas, ligando-se ao 11impida mais de sete vezes por visitas in c ó m o d a s .queixa-se Elisabeth ao

modo de ser de cada autora. Assim, quaisquer convergências de pensamento ••ti amigo na epístola de 30 de Setembro de 1645. E se tal pensamento entre-
ou de escrita nada têm a ver com o sexo ou com o género. As distinções entre ■iirtado dificulta o encadeamento sistemático de teses, exacerba-se nele uma
filósofos e filósofas são irrelevantes: o que conta é o indivíduo. O que não im­ acuidade crítica, manifesta no desejo sempre crescente de perceber, de detec-
pede Mary Warnock de se debruçar sobre o pensamento de filósofas do pas­ i.ii Iragilidades, de aplainar arestas.
sado e do presente, às quais pretende fazer justiça, divulgando-lhes as teses. A princesa é perspicaz ao analisar a doutrina cartesiana. As questões
Como tal, o livro que referimos, Women Philosophers, inclui textos de dezasse­ que lhe coloca, nomeadamente as que se referem à relação corpo / alma, man-
te mulheres que vão da modernidade ao século XX. |t‘iti ainda hoje a sua actualidade pois continuamos a perfilhá-las. Embora o
Diferente é a posição da australiana Geneviève Lloyd, para quem a ra­ 11li mofo lhe mereça a maior admiração e respeito, nem sempre as suas teses a
zão ocidental foi construída por filósofos e como tal, masculinizada. Em The ■on vencem. Delas exige não só a proclamada clareza e distinção como tam-
Man of Reason,7 Lloyd procura outros modos de interpretar o real, que não liein a consistência interna e a operacionalidade. Seguidora do Discurso do
passem exclusivamente pela sobrevalorização da racionalidade. É sua preo­ AIelodo, habituou-se a pensar racionalmente, a argumentar com agilidade e
cupação enfatizar aproximações mais consentâneas com a imaginação ou ■III ácia, a ser rigorosa no percurso intelectual, a conceptualizar e a teorizar.
com os afectos. Ora acontece que as visões do mundo onde não predomina I ..li ) precisamente estas exigências que a levam a questionar certas soluções.
uma razão estrita, têm sido identificadas com perspectivas femininas, e, I Hríamos que, falando ao filósofo a partir de um corpo, ela obriga Descartes a
como tal, têm sido secundarizadas ou mesmo desprezadas. Há que as revalo­ ei cartesiano e ao mesmo tempo a aceitar o corpo. Porque Elisabeth recusa a
rizar, mostrando as suas marcas na tradição ocidental. i 'ili* o estatuto de máquina. Baseada na experiência íntima do seu corpo "que
Esta dissidência, patente em duas perspectivas que inequivocamente i e a tão perturbado que para o recompor precisa de vários meses",8 interes-
valorizam a produção filosófica feminina, levanta-nos questões quanto à le­ I lhe perceber a parte que ele tem nas paixões da alma.
gitimidade de sexualizar o pensamento. Será que homens e mulheres pensam E esta vivência do corpo próprio, são as pequenas incomodidades que
diferentemente pelo facto de serem homens e mulheres? Terá sentido falar "lie lodos os dias que levam Elisabeth a formular perguntas e a revelar in-
num pensamento feminino? Haverá uma razão feminina? São questões a que qlllotações. A antropologia é por ela radicada num espaço real, numa prática
não pretendemos responder directamente mas para as quais a correspondên­ «IVIda, num universo situado. Deste modo a metafísica cartesiana é testada
cia entre Elisabeth e Descartes pode dar algum contributo. Na verdade, as quer na congruência interna das suàs teses quer no confronto das mesmas
cartas da primeira apresentam constantes que permitem identificar a sua au­ i um a experiência.
tora como mulher. Se considerarmos atentamente as vinte e seis missivas que

6 Mary Warnock (org.), Women Philosophers, Londres, Everyman, 19%.


Geneviève Llloyd, The Mim of Reason: Mole mule Female in Western Culture, Londres, Rou­ I
tledge, 1993. Curto ile lilliabtth du 22 de Junho de 1645.
6 M E D IC IN A D O S A F E C T O S
C O N S U L T A N D O D ESC A R T ES 7

Uma princesa melancólica ■o ili u m da febre lenta é a tristeza". A terapia recomendada é mental—procu-
i,n ,i lodo o custo contentar a alma "apesar das desgraças da fortuna". E em-
Elisabeth da Boémia é uma princesa errante, uma "exilada" ou "refugiada" Iaira o filósofo tenha consciência de quão difícil é "querer persuadir a ser ale-
que embora mantenha uma certa tranquilidade material e social está à mercê p1n>a uma pessoa a quem a fortuna envia todos os dias novos motivos de des-
de quem lhe dá guarida, a ela e à família. Forçada a abandonar Praga aos dois I o a/,er", está ciente de que a princesa pertence aos grandes espíritos, capazes
anos de idade, passa sucessivamente pela Alemanha, a Holanda e o Brande­ do dominar a paixão por meio de raciocínios.
burgo. A correspondência com Descartes apanha-a num período de agitação Aresposta de 24 de Maio corrobora o diagnóstico cartesiano mas reforça
política, que se repercute na sua vida pessoal. Ligada a algumas das casas rei­ i Ideia de um corpo frágil, em tudo conforme aos estereótipos coevos sobre a
nantes da Europa, as oscilações das mesmas, nomeadamente as dos Stuarts, i h IiiIidade feminina. Posteriormente, a 22 de Junho, surge uma referência à
perturbam uma situação já de si instável. Esta é agravada pelas vicissitudes iiii•I,incolia. Esta é constantemente agravada pelas inevitáveis contrariedades
dos seus parentes mais próximos que lhe causam problemas. As peripécias , lu vida. E as receitas propostas seguem sempre a mesma norma — tratar do
II h I«o distraindo a mente.
rocambolescas dos seus irmãos afectam-lhe o equilíbrio físico e psíquico, pro­
vocam-lhe mal estar e somatizam-se em febres, distúrbios e outros padeci­ li esse desejo de ocupar o espírito, mantendo-o permanentemente acti-
mentos de que se queixa a Descartes. Grande parte das suas cartas ao filósofo ' ii,i ine leva Elisabeth a questionar Descartes entremeando as questões filosó-
menciona doenças. As responsabilidades da corte — "os interesses da minha Ili its com referências aos males físicos. Mau grado a consideração que de­
casa", como escreve a 20 de Junho de 1643 — as obrigações sociais e as inquie­ monstra pelos conselhos do autor das Meditações, o critério para os validar é
tações pela subsistência (quer a própria quer a dos familiares com os quais i l.ii lo pelo recurso às vivências concretas. E se Elisabeth reconhece melhoras
constantemente se preocupa) agravam a tendência melancólica de um tem­ ihis seus padecimentos, aceitando que elas se devem à psicoterapia iniciada
peramento depressivo. Desconfiando dos médicos e admirando profunda­ nino filósofo,10a eficácia do processo é posta em causa sempre que ocorrem
mente o autor das Meditações, Elisabeth resolve confiar-lhe os seus padeci­ ,n iintecimentos fatídicos (o que é frequente). O cuidado de Elisabeth pelos
mentos. Para além de dilemas morais, de questões antropológicas e de pro­ i*ns familiares — uma preocupação que permanentemente a acompanha —
blemas geométricos, a medicina (quer do corpo quer da mente) é um tema i li"il rói um equilíbrio precário conseguido à custa de autodomínio: " Eu cria
central, concretizada em sintomas pontuais que constantemente descreve e i|iu* uma resolução firme de procurar a beatitude somente nas coisas que de-
questiona. De onde um verdadeiro tratado de psicossomática que se vai dese­ I 'i ndem da minha vontade, me tornaria menos sensível às que me chegam de
nhando ao longo das cartas. "li Iras partes, antes de a loucura de um dos meus irmãos me ter manifestado a
De que se queixa a princesa? minha fraqueza. Com efeito, ela perturbou-me mais a saúde do corpo e a tran-
No período inicial da correspondência, situado entre Maio de 1643 e •111iIidade da alma do que todas as infelicidades que já me aconteceram", es-
Agosto de 1644, Elisabeth lamenta-se por possuir um espírito fraco, referin­ • reve a 30 de Novembro de 1645.
do-se à sua estupidez e raciocínio deficiente.9 A ignorância e a imprudência Embora sujeita a reparos, a medicina de Descartes é sempre considera-
são outros dos defeitos que se atribui na carta de 1 de Julho de 1643. Descartes ■la superior à dos médicos "Tive todas as dificuldades do mundo para me li-
discorda da severidade deste olhar e não regateia elogios à beleza física e es­ i*ii' das mãos dos médicos, para não pagar pela ignorância dos mesmos"
piritual da princesa. Mas leva a sério as queixas dos seus males físicos, men­ '11/, nos ela a 29 de Novembro de 1646. E se o optimismo do filósofo quanto ao
I 'i ii 1er da alma sobre as paixões do corpo não convence totalmente Elisabeth,
cionando-os concretamente na carta de Julho de 1644. Por ela sabemos que
Elisabeth se auto-medica e que as prescrições que a si mesma receita — dieta e i 11facto não a impede de consultar Descartes nos grandes e nos pequenos ma­
exercício — merecem a aprovação do filósofo. li 1, us abcessos que menciona na carta de 21 de Fevereiro 1647, os inchaços de
Passado um interregno epistolar de quase um ano (não conhecemos car­ , |iio se queixa na missiva de 30 de Junho de 1648, etc., etc.
tas entre Agosto de 1644 e Maio de 1645) o tema da doença é retomado, vol­ ( ) interesse clínico desta correspondência é realçado pelo carácter tera-
I "‘illico nela atribuído à filosofia e aos debates filosóficos. Estes são um meio
tando Descartes a assumir o papel de médico, embora confesse não ser essa a
sua profissão (carta de 18 de Maio). É neste escrito que o filósofo se refere ao ■I' esconjurar a doença, uma verdadeira sublimação das angústias sofridas.
papel das paixões no aparecimento de certos males corpóreos: "A causa mais I li île se que nem sempre Descartes partilha do ardor filosófico demonstrado

>) ui ( ’artu ili’ 2H ili' (Hitubro di’ IMS,


(...) uniu pessoa estúpida como eu,..", caria de 20 de lunho de lo i t
8 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O N S U L T A N D O D ESC A R T ES 9

pela sua pupila. Na carta de 28 de Junho de 1643, sugere-lhe o relaxamento do Jean-Marie Beyssade, num comentário introdutório ao volume das car-
espírito e o repouso dos sentidos, aconselhando-a a moderar-se nos estudos. Dn, diz-nos que o filósofo teve sorte em encontrar uma correspondente que
Elisabeth não se dá por vencida pois o jogo que mais a distrai é o debate de imo fazia batota.12Na verdade o jogo é limpo e as dúvidas são colocadas fron-
ideias. Embora o filósofo lhe assegure que apenas dedica algumas horas por Idlmente ao autor das Meditações. O que não impede a utilização de uma certa
ano à metafísica,11 a princesa continua a questioná-lo praticando filosofia i >11ii ia por parte da princesa, tanto mais interessante quanto consegue plena-
como se esta fosse uma "medicina mentis". E Descartes responde-lhe para a inente os seus objectivos - levar Descartes a revelar-se. Trata-se de uma estra-
distrair, primeiro, um pouco a medo, como se desconfiasse das capacidades II 'gin hábil que seguindo um ritmo próprio, desenrola objecções, adoçando a
intelectuais de uma mulher; depois, reconhecendo os seus dotes de espírito I " iMsível impertinência das mesmas com uma capa de humildade. É um diá-
e de carácter, prossegue o diálogo num jogo de avanços e recuos, de delica­ II igti em que o primeiro tempo é negativo: longe de se situar como igual, Elisa-
deza e de determinação. Há um momento em que o filósofo hesita em conti­ I»'I I) desculpa a sua ousadia escudando-a numa alegada fraqueza, quer física,
nuar neste desvelamento das teses próprias, sugerindo temáticas mais neu­ quer intelectual, quer mesmo sexual. Assim, todas as dúvidas que coloca são
tras, talvez menos perigosas. Em 21 de Julho de 1645 propõe a Elisabeth uma MinIi ficadas, devendo-se as mais das vezes à insignificância da leitora ("um
mudança de registo, sugerindo o comentário a um texto de Séneca. O pouco Mirpo tão fraco..." na carta de 24 de Maio d e i645), outras à sua indocilidade
interesse demonstrado pela princesa na leitura de De Beata Vita, bem como i uma pessoa indócil" na carta de 30 de Setembro de 1645) outras mesmo à
as críticas que faz às teses dos antigos, reencaminham a correspondência ■u11 es tupidez ("uma pessoa estúpida como eu..." na carta de 28 de Outubro
para o tema da ética tal como a entende o autor das Paixões da Alma. De facto, l' l645). O possível impacte negativo de uma palavra mais dura ou de uma
o comentário às obras do passado não tocam a eleitora palatina nem provo­ i lllcn incisiva é neutralizado pela culpabilidade explícita que a princesa as-
cam nela efeitos terapêuticos. São as dificuldades e as aporias do pensamen­ ume — as dificuldades e incongruências apontadas nunca se devem ao filó-
to de Descartes que a fazem esquecer os seus achaques, proporcionando-lhe •i 'fo mas sim à inabilidade da interlocutora. Só que a acentuação dos defeitos
alguma tranquilidade de espírito e apaziguando-lhe os males do corpo. As I 'i oprios é um mero pretexto para justificar a pergunta. Esta é sempre certeira
águas do Spaa e os remédios tradicionais não conseguem contentar uma 11go rosa, evidenciando as teses mais frágeis e os conceitos menos trabalha-
princesa melancólica que só se sente bem quando estuda filosofia. E assim ■li Como se Elisabeth quisesse disciplinar o filósofo, forçando-o a cumprir
Descartes vê-se forçado a reflectir sobre temas aparentemente secundários i ■ Ideais de clareza e de distinção por ele impostos como critério de verdade.
no seu sistema mas que devido a esta correspondência ganham crescente­ I i«orque nem sempre as respostas obtidas a convencem, o cerco continua até
mente importância. |ur a confusão se dissipe, ou seja, até que a solução, por vezes sacada a ferros,
11 uuvença.
As cartas terminam numa plataforma de apaziguamento ou mesmo de
Pela mão de Elisabeth: um outro Descartes U unja. Recorrendo às habituais fórmulas palacianas, as despedidas subli-
■ilt,un sempre a gratidão desta princesa tão "afeiçoada em vos servir"13e que
A correspondência que temos vindo a comentar mostra-nos as preocupações icnte grata pela benevolência do filósofo que com ela perdeu tempo. Um
de Elisabeth, o seu desejo de progredir intelectualmente, a monotonia e o de­ 1 mpo que nos beneficiou, facultando-nos outras chaves e outros textos a par-
111 i li is quais um outro Descartes se descobre. De facto, a estratégia epistolar
sinteresse de uma vida centrada nas intrigas da corte, os padecimentos de
quem se sente frágil de corpo e de espírito. Mas também nos deixa antever um I' I Iisabeth provocou um alargamento do pensamento cartesiano, obrigan-
Descartes diferente, dialogante e compassivo, interessado em fazer-se enten­ ' Ii i o a desocultar aspectos que sem esta provocação não seriam do domínio
I 'Ultlico. Por ela acedemos a algumas facetas da vida, personalidade e interes-
der, esboçando confidências, confessando terrores, denunciando obsessões,
enfim, um Descartes mais humano e mais próximo de nós. De facto, na carta • i ilo filósofo que sem a insistência da princesa não nos seriam revelados.
de 15 de Setembro de 1645 o defensor do "cogito" como verdade primeira, ad­ I iii*l*i mão de Elisabeth que Descartes retoma o propósito feito no fim da pri-
mite que os nossos interesses se imiscuem com os dos outros e que "não pode­ ....Iia parte do Discurso do Método:viajar não só pelo mundo mas através de si
ríamos subsistir sozinhos".
i' "A ce jeu de hasard, le philosophe (...) eut le bonheur de rencontrer en face de lui une
princesse qui ne trichait pas", Jean-Marie Beyssade, Descartes, Correspondance avec Elisa­
II A análise desta carta foi por mim feita no artigo "Filosofar por correspondência", acima beth et antres lettres, Paris, Garnier-Flammarion, 1989, p. 36.
trum rinnnH n.
11 F a fórmula recorrente nos cumprimentos finais.
10 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O N S U L T A N D O D ESC A R T ES 11

mesmo, enriquecendo com reflexões inéditas — mais significativas do que ilmolutos e que pretende preservar em todas as circunstâncias. Assim, a ami­
sistemáticas — o percurso linear traçado noutras obras. zade que é "uma coisa demasiado santa para se abusar dela... " Com o mesmo
Directamente posto em causa. Descartes disserta sobre o seu eu e sobre o ■«lat uto de valor intocável coloca o respeito pelos compromissos, a dignida­
mundo, de um modo que por vezes nos surpreende ou mesmo desconcerta. de, a privacidade e a firmeza na actuação.
Assim, uma carta de Maio ou Junho de 1645, um dos raros textos em que men­ Note-se que o defensor de uma razão universal desenvolve uma teoria
ciona a sua mãe, faz-nos conhecer um Descartes débil à nascença, marcado • urlosa sobre a inevitabilidade de um tratamento diferenciado perante a lei.
pela doença da sua progenitora e pelo diagnóstico de uma morte precoce. < i lllcando o realismo e o utilitarismo maquiavélicos que considera incompa-
É um texto que nos ajuda a compreender a quase obsessão do filósofo pela sa­ bveís com a moral, não deixa no entanto de implicitamente lhes fazer cedên-
úde bem como o seu interesse pela medicina. Corroborando este medo à do­ • N., Assim apresenta-nos um conceito de justiça que nada tem de objectivo.
ença, presente em toda a correspondência, a carta de 1 de Setembro de 1645 I 'I nos ele que "a justiça entre os soberanos tem outros limites que entre os
mostra-nos alguém que teme acima de tudo o descontrolo do corpo: " nada de I■111iculares" e que "Deus dá o direito àqueles a quem dá a força". E também o
mais terrível do que estar ligada [a alma] a um corpo que a priva completa­ h iilismo político que leva Descartes a estabelecer estratégias desiguais para
mente de liberdade", até porque "é menos perder a vida do que perder o uso 1■ súbditos, os amigos ou aliados, e os inimigos, que serão tratados de manei-
da razão". 111 11iferente. Se é lícito usar do "artifício e da força" quando se trata de ele-
Se o tema da doença é central, não menos o é o tema da morte. Esconju­ IIlentos potencialmente perigosos para o Estado, há que cumprir as promes-
rada nos cuidados que devemos ao corpo ela mantém-se como permanente 1 1 lei tas quando lidamos com aliados, relativamente aos quais urge ponde-
ameaça, tanto mais que, como Descartes deixa escapar em desabafo, a 3 de i iii .is vantagens e desvantagens no estabelecimento das amizades. No que
Novembro de 1645, nada sabemos acerca de uma vida futura pois dela "pela " spei ta aos súbditos, há que estabelecer diferenças entre os grandes e o povo.
mera razão natural podemos fazer muitas conjecturas em nosso proveito e ter \i ui primeiros, ou seja " a todos aqueles que podem formar partidos contra o
belas esperanças mas nenhuma garantia". É o intuito de viver sem temer a I'i Incipe", é lícito tratar com dureza, dado que frequentemente estão "predis-
morte, como relata a outro correspondente, que o leva a desejar uma vida boa Ihl’.los a perturbar o Estado". Quanto aos segundos, há que respeitar as leis,
- a beata vita que exaltará à Rainha Cristina. O que implica uma permanente i| 'III ando-as com justiça, de modo a "evitar o seu ódio e desprezo". De qual-
atenção ao corpo e um comprazimento no lazer e nas distracções. Daí este tra­ |iiri modo, a justiça de um acto mede-se pela intenção que a ele presidiu.
balhador infatigável confessar que dedica poucas horas por ano à metafísica e \ niii fé é sempre condenável e a consciência de agir rectamente é critério de
muitas ao repouso dos sentidos (Carta de 28 de Junho de 1643) alertando a mural. A ética continua a fundamentar a política.
princesa para os malefícios de um trabalho racional excessivo (Carta de 6 de If também de ética que as cartas nos falam, e o modo como o filósofo
Outubro de 1645). in íii* se descobre não mais permite que classifiquemos a sua moral como pro­
Estas e outras confidências permitem-nos consolidar e ampliar conheci­ lui ui, i. Na correspondência com Elisabeth Descartes aborda temáticas que
mentos sobre o pensamento cartesiano em certos domínios talvez deliberada- h ili cipam o tratado de As Paixões da Alma, admitindo que ensaiou nas cartas
mente não desenvolvidos em textos mais formais. É o que acontece no que tlguns dos temas que desenvolverá nesta obra. As vertentes biológica, hedo-
- respeita à política, à ética e à antropologia. Senão vejamos. Quando a 25 de "I Iu e voluntarista presentes no Tratado, fazem-se sentir no diálogo com a
Abril de 1646 Elisabeth pede a Descartes que lhe enuncie algumas máximas I u Ince,sa. Aqui a saúde é considerada um bem maior que comanda a nossa
sobre a vida civil, ela obriga o filósofo a situar-se no campo político. A primei­ " '.ao, a felicidade coincide com o supremo bem e a vontade é entendida
ra reacção é de recusa. Pretextando uma vida isolada e o afastamento dos cen­ "inoa faculdade moral por excelência, atribuindo-se-lhe a responsabilidade
tros de poder, o filósofo manifesta o seu acordo com o empirismo da princesa iiiiilor na gestão das paixões.
e escusa-se a fazer considerações. Até porque, segundo ele, os homens rara­ As cartas de Agosto a Outubro de 1645 são particularmente reveladoras
mente se comportam de um modo racional quando vivem em comunidade. I" 'Iu o filósofo abandona a perspectiva estóica em que se escudara e desenvol-
Contudo, a insistência da sua correspondente que lhe solicita uma opinião so­ •' il m Ihui,sarnento próprio no campo moral. Na carta de 15 de Setembro Des-
bre O Príncipe de Maquiavel, faz com que fiquemos a saber algo mais sobre o II h's Inventaria os conceitos que permitem ao homem fortificar o entendi-
Descartes político. Pela carta a Elisabeth de Setembro de 1646, verificamos iiii'iiloc agir correctamente. A tríade — Deus, alma e mundo — que colocara
que o filósofo censura o instrumentalismo de Maquiavel bem como a ausên­ 1mm base da sua metafísica, é transferida para o plano ético. Da perfeição di-
cia de escrúpulos que levam o florentino a fundamentar a governação na Mii extrai como consequência que tudo o que nos acontece decorre dos de-
eficácia. Embora defenda uma moral provisória, há valores que considera Ii,i nos de Ileuse sc destina â Sua glória. Como tal, o próprio sofrimento pode
12 M E D IC IN A D O S A F E C T O S

ser gratificante. No que respeita à alma, defende que, por ser "muito mais no­ OS CONSELHOS DO FILÓSOFO-MÉDICO
bre que o corpo", não se realiza totalmente nesta vida. O que nos leva a viver
de um modo distanciado as vicissitudes do quotidiano e a concluir que não Adelino Cardoso
devemos temer a morte. Finalmente do mundo, conclui que é vasto e bom e
que dele somos parte. E essa consciência que nos obriga a salvaguardar o inte­
resse geral sobre o particular.
É precisamente na relação com o mundo e com os outros que as paixões
se manifestam, constituindo a chave quer da moral quer da antropologia car­
tesianas. Elisabeth intuiu que as paixões não são meras perturbações da alma,
compreendendo a força potencial que representam para a obtenção de uma
acção racional e livre (carta de 13 de Setembro de 1645). Ao interrogar Descar­
tes sobre a utilidade das paixões e sobre a sua possível aliança com a razão,
obriga-o a posicionar-se. Na carta de 6 de Outubro do mesmo ano, o filósofo
define as paixões, considerando-as quer num sentido lato ("todos os pensa­
mentos excitados na alma sem o concurso da sua vontade") quer num sentido Oxalá os médicos filosofassem ou os filósofos medicinassem; creio que se podia ir
restrito em que se revestem de uma tonalidade emotiva. Em ambos os casos a muito longe, mas a verdade é que preguei em vão a esse respeito surdisfabulam.
paixão é um processo que ocorre na alma, em função de uma acção do corpo. I Leibniz ao matemático Hospital, 1696]
Mas quer num sentido quer noutro, a paixão é algo de inevitável à condição
humana que se afirma na dualidade mas também na inter-actividade de uma
alma e de um corpo. Este pode ser beneficiado pelas paixões de alegria, que Cuidar e cogitar
desempenham um papel catártico. Há que conhecer o mecanismo dos afectos
para os controlarmos e deles tirarmos dividendos. E assim se inicia o caminho 1 111d a r e cogitar provêm de um mesmo étimo latino: cogitare. A etimologia co­
para uma verdadeira pedagogia das paixões. nnu n dos dois termos pelos quais se designa o acto médico e o exercício filo-
Pela mão de Elisabeth, é todo o humanismo cartesiano que se consolida. I'I iu> é um bom motivo de reflexão. Nos Diálogos de Amor (Roma, 1535) de
I i io I lebreu, a cogitação recobre todo esse vasto campo semântico e ocupa
uma posição central na actividade do sujeito. No quadro da antropologia
acopla tónica de Hebreu, em que se considera a hierarquia corpo-alma-inte-
Ici lo, a cogitação exerce-se no ponto de ligação entre a alma — por sua vez
Iun ilada ao corpo — e o intelecto.1E também essa a interpretação que julgo
m im adequada da cogitatio cartesiana: um pensamento confuso em virtude
In i opertença íntima do corpo e da alma aí inscrita.2
A saúde é um objecto privilegiado de cogitação. Na ordenação dos bens,
I I lebreu adopta a distinção habitual: útil, agradável, honesto. Os dois pri­
meiros constituem o âmbito da moral em sentido estrito, regulada pelo prin-
iplo do justo meio, o último situa-se no âmbito de uma espiritualidade cujo
IhU'' próprio é o excesso. Com efeito, que limite se poderia pôr ao mais puro
h u i ir? Aí, peca-se sempre por defeito. Ora, a saúde é um bem que não cansa.

"lista [luz divina], reduzindo-o de potência a acto e iluminando espécies e formas das
misas, procedentes do acto cogitativo que é meio entre o intelecto e as imagens da fanta­
sia, torna-o actualmente capaz de entender, prudente e sapiente, inclinado a todas as coi-
sas honestas e relutante iis desoestas; e como lhe tira toda a obscuridade, fica em acto per­
lei lamente límpido" (Leito I lebreu, Dldlogos ih’ Amor, Lisboa, INK', 1083, p, 28),
14 MEDICINA DOS AFECTOS I >S CONSELHOS DO FILÓSOFO-MÉDICO 15

não é nunca fastidioso, é útil e agradável, mas, acima de tudo é honesto: um " li >ivcobre as duas operações. Invertendo a formula de um célebre opúsculo
bem que é sentido como afectando o estado anímico do eu e não simplesmen­ lut ht Uino, traduzido por Erasmo nos alvores da modernidade,5o filósofo óp-
te o corpo. A saúde diz respeito ao homem todo enquanto unidade integrati- Ioiin l.imbém é médico. O caso de Elisabeth apela a uma medicina nova, in-
va e é como tal que é sentida e vivida. É esse o lugar próprio da cogitação. II au iável de uma reformulação do cartesianismo.
Vale a pena transcrever uma das mais belas páginas de toda a literatura
acerca da saúde: "A saúde, ainda que se identifique com o útil, tem, contudo, Ç) relacionamento entre Descartes (1596-1650) e Elisabeth (1618-1680)
a característica do deleitável. Nem há inconveniência em algumas das coisas .... em 1642, um ano após a publicação das Meditações, num momento em
deleitáveis serem úteis, assim como muitas das úteis são deleitáveis, e numas I* • n filósofo está ocupado com os Princípios dafilosofia, que serão editados
e noutras se encontram várias honestas. Principalmente a saúde, pois, tem >11 I(i43. Nesse momento culminante da actividade filosófica do autor, a jo­
algo de deleitável proporcionado ao prazer que dá, e não somente é útil, mas ui I Iisabeth, princesa da Boémia, nos seus 24 anos de infortúnios e preocu-
também coisa honesta, e por isso a sua saciedade não enfada nem enfastia ■■»- interessa-se pelas questões árduas da filosofia na busca de uma orien-
como as outras coisas meramente deleitáveis que, quando se possuem, não se • ui que a cure do cepticismo que a tentou a ela como a tantos outros dos
estimam como quando faltam e se desejam. Há ainda uma outra causa pela h ii i nntemporâneos.
qual a saúde não é coisa que aborreça, nem que redunde em fastio, e é que a Informado dos interesses filosóficos de Elisabeth, Descartes toma a ini-
percepção do seu prazer não se relaciona apenas com os sentidos materiais II'.t de um relacionamento pessoal através de Pollot,6um amigo comum.
exteriores, como o paladar em relação às coisas que se comem, ou o tacto, 1>'lini se de um encontro feliz do qual resultou uma amizade duradoura até
como o prazer carnal ou o olfacto, como os cheiros que depressa nos provo­ ' ih'i le tio Filósofo, ocorrida a 11 de Fevereiro de 1650. A correspondência
cam enjoo, mas também está ligada aos sentimentos espirituais, que se sa­ hla entre ambos é um capítulo notável na elaboração do cartesianismo.
ciam menos rapidamente. Porque o prazer da saúde não consiste em ouvir, questões certeiras colocadas pela sua dócil amiga suscitam uma reformu­
como no caso das doces harmonias e suaves vozes, nem tão-pouco em ver, lo mirpreendente do pensamento cartesiano.
como no das figuras formosas e bem proporcionadas, mas sente-se, pelo contrá­ Na sua primeira carta, Elisabeth dirige-se a Descartes como "o melhor
rio, com todos os sentidos humanos, tanto exteriores como interiores, e ainda nafanta­ ■Ili 11 da sua alma". Médico que trata a sua vulnerabilidade ao cepticismo,7
sia; e quando se não tem, não só se deseja com apetite sensitivo, mas tamhém com a o *'liera e fortalece a sua mente com princípios inteligíveis e tratará igual­
própria vontade governada pela razão. De sorte que é uma deleitação honesta, muito ai, as afecções do corpo. Médico da alma. Descartes alarga o âmbito da
embora com a continuação da posse costume ser subestimada" [it. meus] (op. , liilervenção terapêutica, substituindo-se aos médicos em sentido estrito.
cit., pp. 23-24). 1, aráção da moral à medicina opera-se insensivelmente. Moral e medicina
Há múltiplos pontos de contacto entre os Diálogos de Leão Hebreu e o 111li ui tronco comum. Ora, qual é esse tronco? Instado por Elisabeth, Des­
pensamento cartesiano, nomeadamente na Correspondência com Elisabeth. it Imi vai seguir o caminho desta questão.
Um deles diz respeito à saúde, "o fundamento de todos os outros bens que se I >i■lacto, é muito duvidoso que esse tronco comum à medicina e à moral
podem ter nesta vida"23e cuja conservação Descartes afirma, noutro lugar, ter • 11 i lisica, tal como consta da versão apresentada na carta-prefácio que
sido sempre "o objective principal dos meus estudos".4
Descartes cogita e cuida, sem transição de uma coisa à outra: o mesmo
i iiili'lio, "Quod optimus medicus sit quoque philosophus". Opera Omnia, I, pp. 53-63.
I in i.irln de 6 de Outubro d el 642, escreve Descartes a Pollot: "Eu já ouvira contar tantas
ia,ir,IV,Ilhas do espírito excelente da Senhora Princesa da Boémia que não fiquei tão es-
2 Sob este aspecto, concordo inteiramente com a leitura de Richir: "Por conseguinte, é mui­ I,,ii iludo por saber que ela lê escritos de metafísica quanto me considero feliz por ela, ten­
to notável que, na experiência do cogito, o pensamento seja no estado nascente tudo isso di, se dignado 1er os meus, testemunhar que não os desaprova; e ligo muito mais ao seu
[pensamento, querer, desejo, imaginação e sentir] ao mesmo tempo, na indiscernibilida- |lll/o do que ao desses Doutores que tomam como regra da verdade mais as opiniões de
de entre realidade e aparência, verdade e ilusão, o que será determinado no seguimento UInIiHoles do que a evidência da razão. Não deixarei de ir a Haia logo que saiba que lá es-
como relevando da alma e também do corpo. Decerto que esse pensamento — Descartes i,ii,, ,i 11m de poder, por vosso intermédio, ter a honra de a obsequiar e receber as suas or-
vai começar a mostrá-lo, sempre na segunda Meditação —, é um pensamento 'confuso', , loi i n " (AT III, pp. 577-578).
onde tudo está misturado, mas essa confusão é precisamentefusão entre a alma e o corpo na Nili 1110 ÇOdesculpa por confundir a noção da alma com a do corpo pela mesma razão que
experiência íntima da certezafactícia de existir" (Marc Richir, Le Corps: Essai sur l'Intériorité, II vulgo, mas isso não me livra da primeira dúvida e desesperarei de encontrar alguma

Paris, Hatier, 1993, p. 64). , oi lo.',i em algo do mundo, se não ma derdes, vós que fostes o único que me impediu de ser
3 Carta de Maio/Junho de 1645. •, plu a, para onde mo levava o meu primeiro raciocínio" [itálico meu | (carta de 1de Julho
4 Carta no marquês de Newcastle, Outubro de 1645, AT IV, p. 329. do 1643),
16 MEDICINA DOS AFECTOS OS CONSELHOS DO FILÓSOFO-MÉDICO 17

antecede o texto da edição francesa dos Princípios (1644). Se bem interpreto o O adensamento de um enigma: a natureza paradoxal do homem
crescendo de animosidade entre Descartes e Regius8— que atinge o auge no
Verão quente de 1645 —, a sua significação filosófica reside primacialmente 1• Ihlitéde l'Homme, escrito em 1633, é uma obra de fisiologia que se pauta pe-
aí: Regius assume por inteiro o intento de uma medicina fundada na física, ao b•'» cânones do mecanicismo típico da abordagem cartesiana da extensão.
passo que para Descartes a Medicina remete para uma ciência do homem \ questão com que se defronta o Filósofo é se essa a abordagem é ajustada
como seu princípio. A antropologia deduz-se da física ou é uma ciência hete­ i oi t limdar o acto médico ou se este requer um novo ponto de vista. O episó-
rogénea à extensão geométrica? O que está em jogo é o carácter unitário da »Ili *Kogius é particularmente elucidativo a este respeito.
mathesis cartesiana. Na referida carta-prefácio, dirigida ao abade Picot, a si­ ( ) fogoso Regius intentou, num meio hostil às novidades do mecanicis-
tuação era clara: o saber constituía um todo homogéneo, assente na uniformi­ III moderno, a Universidade de Utreque, onde era professor de Anatomia e
dade do método. M"li)nica, o estabelecimento de uma medicina inspirada no cartesianismo,
Ora, decorridos dois anos, nos meses de Junho/Julho de 1646, nota-se 1"ii i.uido-se alvo dos ataques de Voetius, que com ele se envolveu numa que-
uma significativa alteração de tom no discurso cartesiano, pondo em causa a ■• la explosiva nos anos de 1642-1645. Descartes acompanhou e apoiou o es-
unidade e coerência interna da nova ciência. Em carta a Clerselier, de Junho •" ii,'iulo seu discípulo, também ele amigo de Elisabeth. Em carta a Mersenne,
ou Julho desse ano, o autor refere-se ao primeiro princípio da sua filosofia em I llósofo manifesta o maior apreço pelo entusiasmo que Regius põe na sua
termos que diminuem o seu alcance e significação: mantém-se a exigência de 111 -'iida contra o tradicionalismo.12Há no entanto um ponto de divergência
que o primeiro princípio seja uma verdade primitiva, que não dependa de ne­ "i ■iníiVel e que não deixará de toldar o ambiente entre os dois homens até os
nhuma outra, mas abandona-se o desiderato de que ele seja o fundamento do ir no antagonismo. Trata-se de uma questão que está no cerne da funda-
qual se possam deduzir todas as verdades.9A carta a Chanut, de 15 de Junho I» nlnçào da medicina e que diz respeito ao ser do homem. Em duas cartas
de 1646, insere-se nessa mesma linha de autoquestionamento: "Porquanto, já •11111111 próximas uma da outra — de meados de Dezembro de 1641 e de Janei-
que vos apraz ter o incómodo de rever os meus Princípios e de os examinar, es­ I I Ir 1642, respectivamente —, Descartes corrige a tese do Professor de Utre-
tou certo de que notareis neles muitas obscuridades e muitas falhas, que me I »n 'togundo a qual, em conformidade com o dualismo antropológico, o ho-
importa muito saber e a cujo respeito não posso esperar ser tão bem advertido 'I' ui enquanto tal não passa de um ser acidental, desprovido de verdadeira
por nenhum outro como por vós."10Não me parece que Descartes escreva es­ illiliide. Na primeira dessas cartas, a argumentação do Filósofo limita-se a
tas palavras por razões meramente formais, de cortesia para com o seu respei­ ■I»ui la r a incoerência do seu amigo, já que ele afirmara que o corpo e a alma
tável interlocutor. Com efeito, algumas linhas adiante, vai mais longe ao afir­ ....liderados em si mesmos eram substâncias incompletas (AT III, p. 460);
mar a existência de um abismo ou uma discontinuidade entre afísica anterior­ • egu nda, vai mais longe e afirma a substancialidade do composto de corpo
mente delineada e o estudo do homem na sua realidade distintiva. Nos termos de 11111,i, em virtude da união real que os liga.13A questão que se coloca é a de
Descartes, há um intervalo enorme entre um domínio e o outro: "Mas, além
de que eu de modo nenhum pretendo nem prometo que tudo aquilo que es­
crevi fosse verdadeiro, há um intervalo muito grande entre a noção geral do Nessa carta, de 11 de Novembro de 1640, Descartes adopta um tom absolutamente triun-
céu e da terra, que eu intentei fornecer nos meus Princípios, e o conhecimento lallsta, influenciado talvez pela posição favorável do poderoso Mersenne: "Agrade-
particular da Natureza do Homem, da qual ainda não tratei."11É este intervalo i-vos as notícias sobre Voetius; não vejo aí nada de estranho, a não ser que ele tenha ig­
norado o que vos sou; porquanto não há ninguém aqui, por muito pouco que me conheça,
que se intenta focar aqui. i|Uti o não saiba. Ele é o mais franco pedante da terra e morre de despeito por haver na sua
Academia de Utreque um Professor de Medicina que professa abertamente a minha filo-
IIIil la, e dá inclusive lições particulares de Física, e em poucos meses toma os seus discí­
8 Henri de Roy (1598-1679), professor de Medicina e Botânica na Universidade de Utreque, pulos aptos a troçarem inteiramente da velha Filosofia" (AT III, pp. 230-231).
autor de Fundamenta Physices (1646). I de uma maneira geral, onde quer que a ocasião se apresente, tanto em privado como
9 "Acrescento igualmente que não é uma condição que se deva requerer para o primeiro etn público, deves aproveitar para crer que o homem é um verdadeiro ser por si e não um ser
princípio, que ele seja tal que todas as outras proposições se possam reduzir a ele e provar /W acidente (hominem esse verum ens per se, non autem per accidens), e que o espírito está
por seu intermédio, basta que ele possa servir para encontrar algumas e que não haja ne­ i ea Ie substancialmente unido ao corpô, não por posição (situs) ou disposição, como cons­
nhuma outra da qual ele dependa e que possa encontrar-se antes dele. Efectivamente, ta do teu último escrito (uma vez mais isto merece repreensão e em meu entender não é
pode acontecer que não haja no mundo nenhum princípio único ao qual se possam redu­ verdade), mas por um verdadeiro modo de união (per verum modum unionis), que vulgar-
zir todas as coisas" (A Clerselier, Junho ou Julho de 1646, AT IV, pp. 444-445). oietiU' todos admitem, embora ninguém explique que modo seja esse (qualis sit), e por-
10 AT IV, p. 441. iiiiilo também tu nflo tentas explicar; mas podes, como eu na Metafísica, explicá-lo pelo
11 AT IV. d . 441. lai lo île que percebemos que os sentimentos de dor, e todos os outros, nflo sflo puros
18 MEDICINA DOS AFECTOS OS CONSELHOS DO FILÓSOFO-MÉDICO 19

saber se dualismo e união são duas teses compatíveis, que é possível conciliar, •|tie lhe cabe. Mas escolheu uma via diferente, cujo ponto de partida é o reco-
ou se é forçoso decidir entre uma e a outra. 11hecimento da principialidade da união entre a alma e o corpo. E esse o primeiro
Regius vai evoluir de um dualismo estrito, do qual inferia o carácter aci­ 0Mil ta do do questionamento certeiro de Elisabeth, que pergunta, na sua pri­
dental do ser humano, para uma tese monista: a alma é um simples modo do cor­ mi ' ira carta, "como é que a alma do homem (sendo uma mera substância pen-
po, destituída de realidade própria. Descartes reage com muita violência a diite) pode determinar os espíritos do corpo a fazer as acções voluntárias".
esta última tese, acusando Regius de ir de mal (o homem é um ser por aciden­ 1lescartes responde prontamente, acolhendo muito favoravelmente a ques-
te) a pior (dada a união alma/corpo, a alma é tão-só um modo do corpo).*14 i.lo colocada: "posso dizer com verdade que a questão que Vossa Alteza pro­
Não se trata, contudo, de uma posição arbitrária do médico cartesiano. Com põe me parece ser aquela que mais fundadamente se me pode colocar" [it. meu],
efeito, se nos mantivermos no plano da simples razão natural, é essa a solução la sua resposta, a união ganha o estatuto de noção primitiva, indedutível de
coerente para a união entre corpo e alma. Aunião exige proporção mútua en­ 111ia Iquer outra, a par da alma e do corpo: "Em primeiro lugar, considero que
tre as partes a unir. Descartes confirmará, em carta a Elisabeth, o acerto da tese Iui em nós certas noções primitivas, que são uma espécie de originais, sobre
de Regius, se admitirmos que a questão é racionalmente elucidável. Nos ter­ iijo padrão formamos todos os nossos outros conhecimentos. E tais noções
mos de Descartes, a única maneira de concebermos a união consiste em consi­ ilo muito poucas; com efeito, a seguir às mais gerais, do ser, do número, da
derar a alma como material.15O reduccionismo materialista é a solução racional­ duração, etc., que convêm a tudo o que podemos conceber, só temos, para o
mente coerente para explicar o composto humano. E foi esse o caminho trilha­ iiipo em particular, a noção da extensão, da qual decorrem as da figura e do
do por Regius, numa atitude plenamente consequente do ponto de vista movi mento; e, para a alma sozinha, temos apenas a do pensamento, na qual
lógico. 'Ho compreendidas as percepções do entendimento e as inclinações da von-
O risco da materialização da alma, no que respeita à moral e à teologia, é I hle; finalmente, para a alma e o corpo juntos, só temos a da sua união, da
evidente: se a alma é um modo do corpo, isso significa a sua mortalidade e a ' 11ia Idepende a da força que a alma tem de mover o corpo e o corpo de agir so-
negação da espiritualidade como forma suprema da acção. No enfrentamen- l'ie n alma causando os seus sentimentos e paixões".
to desta dificuldade, Regius adopta um procedimento típico de uma orienta­ O que há de novo, do ponto de vista do ideal cartesiano de mathesis, é a
ção médico-filosófica oriunda do Renascimento e que se consubstancia na ....ilalidade epistemológica da evidência consubstanciada na união. Nos ter-
doutrina da dupla verdade, acusando de vaidade temerária a tentativa de pe­ IIh ui da carta de 28 de Junho de 1643, "noto uma grande diferença entre estes
netrar nos segredos de Deus e conhecer a alma tal como ela é, independente­ 1" '■<lipos de noções, já que a alma só se concebe pelo entendimento puro; o
mente da sua condição actual — a única que nos é naturalmente acessível —, " 11'0, ou seja, a extensão, as figuras e os movimentos, também se podem con-
de união indissociável com o corpo.16 •'! ht pelo mero entendimento, mas muito melhor pelo entendimento auxili-
Tal como Regius, Descartes está consciente da limitação do saber huma­ I' I" pela imaginação; e, finalmente, as coisas que pertencem à união entre a
no e partilha com ele a exigência que se coloca ao homem de ocupar o lugar •Inia e o corpo só obscuramente se concebem pelo mero entendimento, ou
un hno pelo entendimento auxiliado pela imaginação, mas conhecem-se mu-
••" iJuramente pelos sentidos". Trata-se, pois, de uma evidência sensível, um
pensamentos de um espírito distinto do corpo, mas percepções confusas desse mesmo 1" lue, tal como será dito em carta a Arnauld, umfacto paradoxal, que só obscu-
espírito realmente unido [ao corpo]" (AT III, p. 493). • •ciuos ao tentar explicá-lo racionalmente.17
14 AT IV, p. 250.
15 Descartes afirma-o com toda a precisão num parêntesis absolutamente significativo, na No final da vida, em carta ao jovem neoplatónico de Cambridge H. Mo-
sua carta de 28.06.1643: "... ainda que se queira conceber a alma como material (o que é "i I >escartes adensa a dificuldade inerente à sua antropologia, ao conside-
propriamente conceber a sua união com o corpo), não se deixa de conhecer, posteriormente, 'I until dualidade funcional na alma, à qual correspondem dois princípios
que ela se pode separar dele" [it. meu]. A iniciativa da elucidação cartesiana deste tópico It IIulos: uma almacorpórea (anima corporea) e uma alma intelectiva (mens).'8
crucial pertence a Elisabeth, na sua carta de 20.06.1643. Diz ela: "E confesso que me seria
mais fácil conceder matéria e extensão à alma do que a capacidade de mover um corpo e
de ser movido por ele a um ser imaterial." O Filósofo confirma inteiramente esta observa­
ção da Princesa, reafirmando a tese que tanto criticará em Regius: "Mas, como Vossa AT V, p. 222.
Alteza nota que é mais fácil atribuir matéria e extensão à alma do que atribuir-lhe a capa­ devem distinguir-se dois princípios diferentes dos nossos movimentos: um inteira-
cidade de mover um corpo e de ser movida por ele, sem ter matéria, peço-lhe que atribua mento mecânico e corporal, que depende exclusivamente da força dos espíritos animais e
livremente essa matéria e essa extensão à alma; porquanto isso mais não do que concebü-la i l.t conformação dos membrose pode ser denominado alma corpórea; e o outro, o espírito
unida ao corpo" [itálico meu], i ui aquela alma que eu defini como substância pensante" (carta a Morus de 5 de fevereiro
IX AT i\/ .le I(>49, AT V, p. 276).
20 MEDICINA DOS AFECTOS OS CONSELHOS DO FILÓSOFO-MÉDICO 21

A medicina exercida pelo Filósofo no tratamento de Elisabeth remete, julgo, impressionar a aima, em que "ponto" tocá-la? Cartesianamente, a alma é uma rea­
para esta nova antropologia. lidade unitária, mas exercendo uma pluralidade de funções hierarquicamen-
lf ordenadas: sensações ("sentimentos", no léxico cartesiano), imaginação,
entendimento e vontade. Não se pode nunca dispensar o papel da vontade
Os remédios do filósofo ■ihpianto potência suprema mediante a qual a alma se autodetermina a tal ou
1.11pensamento. A pergunta reside em saber que função da alma de Elisabeth
O caso de Elisabeth é um daqueles em que a influência do psíquico sobre o fí­ deve a sua vontade estimular de modo a curar a sua tristeza e apreensão. Ora,
sico é evidente. Infortúnios pessoais e familiares provocam nela múltiplas i resposta do Filósofo-médico é muito precisa: a imaginação é a potência pela
afecções cuja etiologia psicológica Descartes afirma expressamente, quando ilUitl a alma pode influenciar o corpo. Na carta de 6 de Outubro de 1645, Descartes
diz, por exemplo, na sua carta de 18.05.1645: "A causa mais comum da febre 111 preende-nos com esta afirmação que julgaríamos inteiramente desajusta-
lenta é a tristeza; e a obstinação da fortuna em perseguir a vossa casa dá-vos >lit do seu pensamento: " Mas quando ela [a alma] utiliza a vontade para se de-
continuamente motivos de aborrecimento, que são tão públicos e tão eviden­ Iei minar a algum pensamento que não é meramente inteligível, mas imaginá-
tes, que não é preciso fazer muitas conjecturas nem perceber muito destes as­ ' d, esse pensamento produz uma nova impressão no cérebro, isso não é nela
suntos para julgar que é nisso que consiste a causa principal da vossa prtlxão, mas uma acção, que se chama propriamente imaginação". A imagina­
indisposição". li i designa uma função positiva da alma, de certo modo correlativa da pai-
O Filósofo propõe à sua paciente uma cura radical, que não se limite a .Vi, definida esta como o sentimento interno que a alma experienda enquan-
afastar os sintomas, mas ataque as próprias causas do mal.19 Sem dúvida I' i ligada ao corpo.20Assim, o remédio para a tristeza geradora de afecções fi­
que a dieta e o exercício físico ajudam a melhorar a saúde da desafortunada lms não está no cultivo da filosofia e da metafísica, que devem ser tomadas
Princesa, mas é preciso agir sobre a alma, dispô-la favoravelmente para as­ < ii i d oses suaves, mas no exercício da fantasia. O que se visa é regenerar o cor­

sim influenciar o corpo: "Os remédios que escolheu, ou seja, dieta e exercí­ po pelo poder fortificante da alegria.
cio, são, na minha opinião, os melhores de todos, mas só depois dos da alma, A sua maneira. Descartes retoma um adágio em voga no seu tempo, se-
que tem sem dúvida muita força sobre o corpo, tal como mostram as gran­ i,inulo o qual a medicina começa onde acaba a física. Com efeito, a medicina
des mudanças que a cólera, o medo e as outras paixões excitam nele." (carta ml roduz um novo ponto de vista na consideração da vida, que não é, então.
de Julho de 1644). Imples acontecimento de um corpo extenso dotado de propriedades físi-
A estadia de Elisabeth em Berlim, onde o impacte do movimento para- ■i geométricas, mas uma experiência subjectiva à qual se liga indissociavel-
celsiano se mantinha activo, fornece a Descartes a oportunidade de se demar­ ...... te uma tonalidade afectiva. Alegria e tristeza constituem uma dualidade
car de uma prática clínica em que o tratamento das afecções era habitualmen­ i Iginária da experiência de si do vivo. A alegria exprime a adesão à vida, ela
te feito recorrendo a químicos, no pressuposto de que a doença é originada 11'Vigorante do vivo, ao passo que a tristeza exprime o desconforto da alma
por um agente patogênico exterior ao organismo. Nesse contexto. Descartes o i hia habitação corporal e é factor de enfraquecimento anímico. Aprimor-
reforça a desconfiança da sua paciente — expressa em carta de 29.11.1646 — I IIi111dade do par alegria / tristeza está bem expressa na génese das paixões tal
em relação às "drogas" receitadas pelos "químicos", contrapondo as vanta­ ■imo é apresentada na carta a Chanut de 1 de Fevereiro de 1647.21
gens de uma dieta adequada (carta de Março de 1647).
O que acaba de ser dito é por si mesmo interessante em virtude das
preocupações que evidencia e das indicações que fornece relativamente à
evolução intelectual do autor, mas não é o mais decisivo. O aspecto mais re­ 11 Na carta de 6 de Outubro de 1645, Descartes explicita o sentido de alguns termos, entre os
levante da psicoterapia cartesiana está contido na resposta à pergunta: como quais, sentimento e paixão: "Posto isto, pode-se, em geral, chamar paixões a todos os pen­
sa mentos que são assim excitados na alma sem o concurso da vontade (e, por conseguin-
te, sem nenhuma acção que venha dela) pelas meras impressões que estão no cérebro,
pois tudo o que não é acção é paixão. Mas, por via de regra, restringe-se este nome aos
19 A este respeito, importa assinalar o interesse dos clínicos pela melancolia e outras doen­ I icii,sarnentos que são causados por alguma agitação particular dos espíritos. Com efeito,
ças do amor na transição do século XVI ao XVII. Entre outras obras, destacam-se: Jean oh que võm dos objectos exteriores, ou das disposições interiores do corpo, como a per­
Aubery, L'Andidote de l'Amour, Paris, 1599; André du Laurens, Second Discourse au quel est cepção das cores, dos sons, dos odores, a fome, a sede, a dor e outras semelhantes, cha-
Traictédes Maladies MelanchoUques et du Moyen de les Guarir, Paris, 1597; François Alleriola, iiiam-se sentimentos, uns exteriores, outros interiores."
Observationum Medicinalium Libri Sex (cf. Observatio 7, lib. II), Lugduni, 1588; Joan de Vey- • IVini melhor explicitação, remeto para a minha tradução e comentário dessa carta no nú­
i'Ii'm t h r.iht^nlnoie de l'Amour. Paris. 1609. mero 21 da revista Análise, pp. 191-206.
22 MEDICINA DOS AFECTOS ( >S CONSELHOS DO FILÓSOFO-MÉDICO 23

Uma moral não intelectualista: uma arte da decisão . IIII' o estoicismo é contrário à razão e à natureza25e, mais próximo de Descar-
h E Senault em De l'Usage des Passions (1641), ataca o ideal estóico porque
A alegria tem uma função regeneradora do corpo enquanto parte integrante •■U*Implica a negação da humanidade do homem e o seu modo particular de
do todo psicossomático. Diferentemente do prazer fugaz e momentâneo, a 111(iiçào com Deus e com os outros homens: o amor e a piedade. O cristianismo
alegria é um contentamento duradouro no qual se vive a experiência da felici­ uma religião do sentimento, pelo que o ideal da apatheia, por muito angélico
dade (cf. cartas de 4 e 18 de Setembro de 1645). Ora, a questão que o caso de *1*1**se apresente, é destituído de valor moral. Em tom programático, exclama
Elisabeth coloca é esta: pode ser-se feliz quando tudo corre mal, quando a for­ •’imu 11, no final do "I Discurso" do IV Tratado da sua obra, significativamente
tuna só nos contempla com infortúnios e desgraças? O modo de posição da 11il IItilado "Em como as paixões são sementes das virtudes": "Usemos as pai-
questão é típico da moral estóica, que conheceu uma voga considerável na *"’H, ensinemos aos estóicos que a Natureza não produz nada em vão".26
Europa do Renascimento: a felicidade obtém-se pela capacidade de resistir às Estimulado pelas dificuldades propostas pela sua discípula, o Filósofo
intempéries da fortuna volúvel e inconstante. i>m.irca-se do estoicismo, afirmando que não defende a insensibilidade do
O estoicismo é uma moral que não está ao alcance do vulgo, exigindo Mblo — "não sou desses filósofos cruéis que querem que o seu sábio seja in-
uma grande sabedoria. Sábio é aquele que aprende a suportar todas as prova­ ii'tivel"27—, que os melhores espíritos estão sujeitos a paixões mais violen-
ções da vida, sem se deixar afectar no seu íntimo. A tolerância ao sofrimento e 1i e mais fortes. Amoral cartesiana é, ao gosto do século, uma moral das pai-
à adversidade é a pedra de toque da sabedoria estóica. Consiste nisso o ideal 1• do bom uso das paixões, porque ela se dirige ao homem todo, não ape-
de apatheia. " ' no espírito tomado isoladamente. Sob este aspecto, a confissão que Des-
A medicina mentis praticada por Descartes tem uma indelével marca es­ ui*** faz a Chanut de que tem paixões não é o reconhecimento de uma fra-
tóica: a contrariedade faz parte da economia da felicidade, que não está ao al­ I ui v,n, mas da via humana para a perfeição e a felicidade.28
cance de todos, mas apenas das almas superiores, que são capazes de encon­
trar consolação em tudo o que lhes acontece e se sentem gratificadas por ven­
cerem a difícil prova de suportar a dor. Acarta de 18.05.1645 afirma muito ex­ "li, além disso, não nos faltam razões para combater e inverter a opinião dos Estóicos.
pressamente estas teses estóicas.22 A sugestão que Descartes faz a Elisabeth ( 'um efeito e antes de mais, a Virtude, por muito eminente que seja, de modo nenhum
para que leia o De Vita Beata (A Vida Feliz) de Séneca, na expectativa da adesão ilestrói o que é plenamente conforme à razão. Mas há alguma coisa mais racional do que
da sua discípula — "se eu vir que o aprovais (como espero)"—,23 acentua a ver o homem tocado de piedade e compaixão pelas misérias do seu semelhante? Do seu
amigo? Do seu pai? Que desumanidade não seria para uma mãe ver o seu filho nas garras
marca estóica desta Correspondência. i le um animal selvagem, ou exposto a um naufrágio, estendido numa roda, ou dilacerado
O estoicismo deu um impulso muito forte à reflexão moral no decurso I >or algum outro suplício, ou simplesmente vitimado por uma doença violenta, sem ficar
do século XVII. O início deste assinala um momento de renovação do estoicis­ t om o coração enternecido de dor? Querer-se-ia que um homem virtuoso se não como-
mo, através de um leque diversificado de autores, entre os quais sobressaem: Vesse com nenhuma indignação, ao ver os crimes honrados e os maus enaltecidos ou dig-
nlficados? Querer-se-ia condenar os aguilhões de uma honesta emulação, que afecta
Justo Lipso, cujas obras principais. De Constantia (1584) e Manuductio ad Stoi­ aquele que lê na história as gloriosas descobertas ou os virtuosos excessos (deportements)
cam Philosophiam (1604) tiveram grande impacte; Guillaume du Vair, autor de de uma infinidade de grandes homens que o precederam? Querer-se-ia que aquele que
Consolation ès Calamités Publiques (1594); Pierre Charron, autor de De la Sagesse deve a vida, a honra e tudo quanto tem ao seu melhor amigo, ficasse insensível aos ofícios
(1601). No entanto, julgo que o retrato do estoicismo na primeira metade do tia sua amizade? Querer-se-ia que as lágrimas de uma mulher honesta não tivessem po-
11er algum sobre um marido que estivesse prestes a abandoná-la? Por conseguinte, sendo
século XVII é predominantemente negativo. S. Francisco de Sales no Traité de lodos esses movimentos tão justos, não seria crueldade excessiva querer suprimi-los,
l'Amour de Dieu (1616) defende a incompatibilidade visceral entre cristianis­ como que a despeito da natureza? Mas quem não sabe que estas paixões são para nós
mo e estoicismo,24Coëffeteau no Tableau des Passions Humaines (1620) afirma exercícios de Virtude?" (F.N. Coëffeteau, Tableau des Passions Humaines, de leurs Causes et
île leurs Effects, Lyon, Chez Claude Prost, 1642, pp. 40-41).
F. Senault, De l'Usage des Passions, Paris, 1664, p. 122.
22 "... assim estas almas maiores, de que falo, têm satisfação nelas mesmas com todas as coi­ Caria de 18 de Maio de 1645.
sas que lhes acontecem, mesmo as mais aborrecidas e insuportáveis. Assim, sentindo dor l'in carlo de 1 de Novembro de 1646, respondendo à inferência que Chanut fizera de queo
no seu corpo, exercitam-se a suportá-la pacientemente e é-lhes agradável esta prova que ■"itudo que Descartes fizera das paixões devia tê-lo tornado imune à influência delas, es­
fazem da sua força..." (carta de 18 de Maio de 1645). creve o Filósofo: "De resto, parece que inferis, do facto de eu ter estudado as paixões, que
23 Carta de 21 de Julho de 1645. eu já não devo ter nenhuma; mas dir-vos-ei, pelo contrário, que, ao examiná-las, as achei
24 Para uma explicitação da incompatibilidade entre a espiritualidade salesiana e o estoicis­ quase todas boas e de tal maneira Citeis à vida, que a nossa alma não teria motivo para
mo, veja-se Carole Talon-Hugon, "Affectivité stoïcienne, affectivité snlésicnne", em , P.-F. querer permanecer junta ao seu corpo um único momento, se não pudesse senti-las" (AT
Moreau (org,), Le Stoïcisme an XVI et un XVII Siècle, Paris, A. Michel, 1999, pp. 175-188. IV, p. 538).
r
( >S CONSELHOS DO FILÓSOFO-MÉDICO 25
24 MEDICINA DOS AFECTOS

A moral é uma via de interioridade, não um código universal de condu­ i«ilMles se formam em nós insensivelmente, escapando ao eventual controlo
ta. É uma arte de viver que se aprende e se apura pelo exercício. I i consciência (carta de 30 de Setembro de 1645).
O ponto de partida da moral cartesiana não é uma verdade evidente e A moral é uma arte da decisão cujo intento é o de levar ao cume a capaci-
universalmente válida, mas a urgência da acção. No Discurso do Método como i elo de aperfeiçoamento e crescimento interior do sujeito. O critério, neces-
nos Princípios da Filosofia, a moral é subtraída à ordem das razões em virtude II liimente subjectivo, é esse: é bom o que aumenta a perfeição do sujeito; é
dessa urgência: na vida corrente, a decisão não pode esperar por um juízo i ui aquilo que a diminui. Aconsciência da falta, expressa no remorso e no
certo e infalível, baseado numa análise exaustiva dos prós e contras de cada uiopondimento,nasce dairresolução — "Comefeito, só a irresolução causa
opção possível. No articulado do texto francês dos Princípios, a própria ra­ • iinontações e arrependimentos" —,32da impotência do sujeito para enfren-
zão impõe a necessidade de uma deliberação em muitas situações em que os I 11 as situações, decidir e ser consequente com as decisões tomadas. Daí que a
argumentos se equivalem.29De facto, o juízo plenamente esclarecido só re­ ui Hill seja também uma via de beatitude. A felicidade pressupõe a perfeição
trospectivamente seria viável, na maioria dos casos. Aassimetria entre ciên­ "'lai do agente, ao mesmo tempo que a indicia.
cia e moral é inultrapassável. O erro faz parte da moral, o juízo moral atesta ( ) ethos para que apela a moral cartesiana não é a de um eu submisso à
a falibilidade do saber humano. Errar é humano, o erro de avaliação não di­ i ma, refreando a sua potência, mas o estado exaltante de um eu que vive no
minui a qualidade moral do acto. O erro do juízo, quando acompanhado de i' i i sso de bens. A discussão com Elisabeth acerca deste tópico do excesso
uma intenção recta, não produz forçosamente imperfeição moral: "Pare- • Hisbordante como medida da moralidade é um dos momentos excitante-
ce-me igualmente que não temos motivo para nos arrependermos, quando •Hi nlo saborosos da Correspondência que nos ocupa.33O excesso cartesiano
fizemos o que julgámos ser o melhor no tempo em que tivemos de nos deci­ i i"I >õe, num quadro filosófico distinto do neoplatonismo de Leão Hebreu,
dir à sua execução, ainda que, posteriormente, ao repensar com mais vagar, •ui Ideal de perfeição análogo ao do amante que se converte na coisa amada,
julguemos ter falhado. Mas, deveríamos antes arrepender-nos, se tivésse­ |tniI, numa relação ajustada, é sempre superior ao amante. Tal como o
111nu ile entra em transe e se transporta perante a imagem da amada, também
mos feito algo contra a nossa consciência, mesmo que reconhecêssemos, de­
pois, termos feito melhor do que tínhamos pensado: porquanto só temos de In hiuun moralmente superior de que fala Descartes afirma exuberantemen-
responder pelos nossos pensamentos; e a natureza do homem não é saber tudo I Iuirtícula de Infinito que o habita e indica o justo lugar do seu eu.
[it. meu] nem julgar sempre tão bem imediatamente como quando temos
muito tempo para deliberar."30
Não é possível tipificar as situações e fornecer regras de conduta porque
a vivência da situação faz parte intrínseca do mesmo: os sentimentos for­
mam-se em nós espontaneamente e configuram o modo da nossa vivência
das situações.31Muito finamente, Elisabeth observa que a maioria dos nossas

29 "Com efeito, é certo que, no que respeita à conduta da vida, somos obrigados a seguir mui­
tíssimas vezes opiniões que são meramente verosímeis, devido a que as ocasiões de agir
nas questões práticas passariam quase sempre, antes de podermos libertar-nos de todas
as nossas dúvidas. E quando deparamos com múltiplas opiniões assim [verosímeis] acer­
ca de um mesmo assunto, mesmo que não apercebamos porventura mais verosimilhança
numas do que noutras, se a acção não admite nenhum atraso, a razão quer que escolhamos
uma e que, depois de a termos escolhido, a sigamos constantemente, como se a tivéssemos julgado
muito certa" (Princípios da Filosofia, I parte, art. 3, AT IX-2, p. 26).
30 Carta de 6 de Outubro de 1645.
31 Descartes exprime-o lapidarmente em carta ao marquês de Newcastle, de 23 de Novem­ • 'arta de 15 de Setembro de 1645.
bro de 1646: "Quanto aos movimentos das nossas paixões, embora eles sejam acompa­ t >excesso que Descartes defende é aquele que significa desmedida na realização do bem,
nhados em nós de pensamento, devido a que temos a faculdade de pensar, todavia é mui­ lias paixões boas, não o excesso que desnatura e altera a qualidade do acto: "Porquanto
to evidente que eles não dependem do pensamento porque ocorrem muitas vezes apesar lia dois tipos de excessos: um que, mudando a natureza da coisa e tornando má a boa, im-
de nós e, por conseguinte, podem existir nos animais, e inclusive mais viloentos do que I iede que ela continue submetida á razão; outra que se limita a aumentar a medida e só
nos homens, sem que, por isso, se possa dizer que eles tenham pensamentos." (AT IV, lui im melhor a boa" (carta de 3 de Novembro de 1645).
CORRESPONDÊNCIA ENTRE
DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA
l ORRESPONDÊNCIA ENTRE
DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA
■ - IMMI BPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 29
r

I lis.ibeth a Descartes
I Mill, 6/16 de Maio de 1643

' h'iilior Descartes,

ni io, com muita alegria e pena, da intenção que tivestes de me ver, há al-
ttii'i dias, e senti-me igualmente tocada pela caridade de quererdes comu-

« 11 in com uma pessoa ignorante e indócil e pela infelicidade que me furtou a


Hl".' conversação tão proveitosa. O senhor Pallotti aumentou grandemente
i n u ll ima paixão ao repetir-me as soluções que lhe fornecestes das obscuri-
il.i•Icn contidas na física do senhor Regius, acerca das quais teria sido me-
||i..| li istruída pela vossa boca, tal como acerca de uma questão que coloquei
• 1111o professor, quando ele esteve nesta cidade, a cujo respeito me reme-
ii mp.mi vós a fim de receber a satisfação pretendida. A vergonha de vos
....’.Irar um estilo tão desordenado impediu-me até agora de vos pedir esse
|,n m por carta.
I loje, porém, o senhor Pollot1deu-me tanta segurança da vossa bonda-
HP cm relação às pessoas e, particularmente, em relação a mim, que afastei
l<i ilquer outra consideração do espírito, salvo as que me dão algum proveito,
I*. i h'il ir-vos que me digais como é que a alma do homem (sendo uma mera
ui "ilAncia pensante) pode determinar os espíritos do corpo2a fazer as acções
'Iimtíirias. Efectivamente, parece que toda a determinação de movimento
In/, pela impulsão da coisa movida, segundo o modo pelo qual é impelida
.......iquela que a move, ou conforme a qualificação e a figura da superfície
.li .la iillima. O contacto é exigido às duas primeiras condições e a extensão à
Inn cira. Excluís esta inteiramente da noção que tendes da alma e aquele

A, Pollot (1602-1668), personagem influente na corte holandesa, onde procurou favore­


cer Descartes.
lispfritos tem aqui o sentido corrente na tradição médico-filosófica: corpúsculos ínfimos,
"um certo vento subtil", nos termos do Traité de l'Homme, que acompanha o movimento
do sangue, Influenciando o estado dos órgãos.
r 30 MEDICINADOS AFECTOS l 'ORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 31

parece-me incompatível com uma coisa imaterial. Por isso, peço-vos uma de­
finição da alma mais particular do que na vossa Metafísica, ou seja, da sua
substância, separada da sua acção, do pensamento. Pois, ainda que os supo­
nhamos inseparáveis (o que é no entanto difícil de provar noventre da mãe e
nos grandes desfalecimentos), como os atributos de Deus, podemos, conside­
rando-os à parte, adquirir uma ideia mais perfeita dos mesmos.
Conhecendo-vos como o melhor médico para a minha alma, revelo tão
livremente as fraquezas das suas especulações e espero que, observando o ju­
ramento de Hipocrates, as remediareis, sem as divulgar publicamente; o que I íescartes a Elisabeth
vos peço que façais e, bem assim, que suporteis estas importunidades da Hgmond de Hoef, 21 de Maio de 1643
Vossa amiga afeiçoada a servir-vos.

Elisabeth

Senhora,

11 ivor com que Vossa Alteza me honrou, ao transmitir-me por escrito os seus
jMIolos, é maior do que alguma vez ousara esperar; e consola melhor os meus
i 11os do que aquele que eu desejara com paixão, que era recebê-los de viva
i•Iivesse podido ser admitido na honra de vos obsequiar e vos oferecer os
h 11ui ito humildes préstimos, quando, recentemente, estive em Haia. Efec-
...... h'ille, teria tido demasiadas maravilhas para admirar ao mesmo tempo; e,
ii lo sair discursos mais que humanos de um corpo tão semelhante aos que
111111ores dão aos anjos, teria ficado extasiado do mesmo modo que me pare-
• *111 lever ficar aqueles que, vindo da terra, acabam de entrar no céu. O que me
11 ala menos capaz de responder a Vossa Alteza, que, sem dúvida, já notou
ni 1111ni este defeito, quando tive anteriormente a honra de lhe falar; e a vossa
iiii'iu ia quis aliviá-lo deixando-me os traços dos vossos pensamentos num
i ■'I onde, relendo-os várias vezes e acostumando-me a considerá-los, fico
I h leiramente menos ofuscado, mas a minha admiração por eles é cada vez
■i" i iiolando que não só se revelam engenhosos à partida, mas tanto mais ju-
1 in'ii in o sólidos quanto mais os examinamos.
I i>osso dizer com verdade que a questão que Vossa Alteza propõe me
i • i ■iiT aquela que mais fundadamente se me pode colocar, no seguimento
i.......ritos que publiquei. Porquanto, havendo duas coisas na alma humana
•11ui is depende todo o conhecimento que podemos ter da sua natureza
mia delas é que ela pensa, a outra que, estando unida ao corpo, ela pode
' i iuidecer com ele —, não disse quase nada desta última e apliquei-me
i ii i a elucidar a primeira, dado que o meu desígnio principal era provara
1 "i h lo que existe entre a alma e o corpo; para o que só esta pôde servir e a
" i leria sido prejudicial. Mas, como Vossa Alteza vê tão claro que se lhe
I "i*le esconder nada, vou tentar explicar aqui de que maneira concebo a
......i l.i .lima com o corpo e como é que ela tem a força de o mover.
r 32 MEDICINA DOS AFECTOS

Em primeiro lugar, considero que há em nós certas noções primitivas,


que são como originais, sobre cujo padrão formamos todos os nossos outros
conhecimentos. E tais noções são muito poucas; com efeito, a seguir às mais
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 33

ii i supor que o peso é uma qualidade real, de que não temos qualquer outro
ímhecimento senão que possui a força de mover o corpo, no qual está, em di-
Iat çào ao centro da terra, não temos dificuldade em conceber como é que ele
IIhive esse corpo, nem como é que está junto dele; e não pensamos que isso se
gerais, do ser, do número, da duração, etc., que convêm a tudo o que podemos
conceber, só temos, para o corpo em particular, a noção da extensão, da qual i iça por um contacto real de uma superfície com outra, pois experimentamos,
decorrem as da figura e do movimento; e, para a alma sozinha, temos apenas ui nós mesmos, que temos uma noção particular para conceber isso; e creio
a do pensamento, na qual estão compreendidas as percepções do entendi­ -|i ia usamos mal esta noção ao aplicá-la ao peso, que não é nada de realmente
mento e as inclinações da vontade; finalmente, para a alma e o corpo juntos, 11 .1Into do corpo, como espero mostrar na Física, mas que nos foi dada para
só temos a da sua união, da qual depende a da força que a alma tem de mover ■mceber o modo pelo qual a alma move o corpo.
o corpo e o corpo de agir sobre a alma causando os seus sentimentos e Demonstraria não conhecer suficientemente o incomparável espírito de
paixões. i 'ma Alteza, se utilizasse mais palavras para me explicar, e seria demasiado
Considero igualmente que toda a ciência dos homens consiste apenas I •( • • n u nçoso, se ousasse pensar que a minha resposta vos devesse satisfazer in-
em distinguir bem estas noções e em atribuir cada uma delas somente às coi­ 1"I rii mente; mas tentarei evitar ambas as coisas, não acrescentando mais nada
sas a que pertencem. Com efeito, quando queremos explicar alguma dificul­ " |HÍ senão que, se for capaz de escrever ou de dizer algo que vos possa agra-
dade através de uma noção que não lhe pertence, não podemos evitar enga­ bii, cederei sempre ao muito grande favor de pegar na pena ou de ir a Haia
nar-nos; tal como quando queremos explicar umh destas noções por uma ou­ i 11a esse efeito, e que não há nada no mundo que me seja tão caro como poder
tra; já que, sendo primitivas, cada uma delas só pode ser entendida por si <!"'decer aos vossos pedidos. Mas, aqui, não sou capaz de encontrar lugar
mesma. E visto que o uso dos sentidos nos tornou as noções da extensão, das I su n a observância do juramento de Hipocrates que Vossa Alteza me prescre-
figuras e dos movimentos, muito mais familiares do que as outras, a causa 1 l'orque não me comunicou nada que não mereça ser visto e admirado por
principal dos nossos erros está em querermos servir-nos ordinariamente des­ '"los os homens. Posso dizer apenas, a este propósito, que, estimando infini-
tas noções para explicar as coisas às quais elas não pertencem, a exemplo do 1imente a carta que me enviastes, utilizá-la-ei como os avarentos fazem com
que acontece quando queremos servir-nos da imaginação para conceber a na­ eus tesouros, que escondem tanto mais quanto mais os estimam e, causan-
tureza da alma, ou quando queremos conceber o modo como a alma move o I' 1 1hveja ao resto do mundo, colocam o seu contentamento soberano em con-
corpo pelo modo como um corpo é movido por um outro corpo. 1 mplâ-los. Assim, serei muito feliz por fruir sozinho do bem que é vê-la; e a
Por esse motivo, dado que, nas Meditações que Vossa Alteza se dignou "iiili.i maior ambição é poder dizer-me e ser verdadeiramente, etc.
1er, procurei levar a conceber as noções que pertencem só à alma, distinguin-
do-as das que pertencem só ao corpo, a primeira coisa que tenho de explicar
em seguida é o modo de conceber as que pertencem à união da alma com o
corpo, sem as que pertencem só ao corpo ou só à alma. Para tal, parece-me que
pode ser útil o que escrevi no fim da minha Resposta às sextas objecções; por­
quanto não podemos procurar estas noções simples fora da nossa alma, que,
pela sua natureza, as possui todas em si, mas que nem sempre as distingue su­
ficientemente umas das outras ou não as atribui aos objectos aos quais deve­
mos atribuí-las.
Assim, creio que anteriormente confundimos a noção da força com que
a alma age sobre o corpo com aquela com que um corpo age sobre um outro; e
que atribuímos ambas, não à alma, pois ainda a não conhecíamos, mas às di­
versas qualidades dos corpos, como ao peso, ao calor e às outras que imaginá­
mos serem reais, isto é, terem uma existência distinta da do corpo e, por con­
seguinte, serem substâncias, embora as tenhamos denominado qualidades.
E servimo-nos, para as conceber, umas vezes das noções que existem em nós
para conhecer o corpo, outras vezes das que existem em nós para conhecer a
alma, conforme lhes atribuímos algo de material ou imaterial. Por exemplo,
34 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 35

11nnterial do que a demonstração de uma verdade contrária (que prometeis na


iissa física) nos deve confirmar na opinião da sua impossibilidade: princi-
ImImente porque esta ideia (não podendo aspirar à mesma perfeição e reali-
. I.h le objectiva que a de Deus) pode ser forjada pela ignorância daquilo que
onladeiramente move esses corpos para o centro. E, porque nenhuma causa
Mi.ilerial se apresentava aos sentidos, ter-se-ia atribuído ao seu contrário, o
iiniilerial, o que todavia nunca pude conceber senão como uma negação da
nuiléria, que não pode ter nenhuma comunicação com ela.
Elisabeth a Descartes Econfesso que me seria mais fácil conceder matéria e extensão à alma do
Haia, 10/20 de Junho de 1643 |iir a capacidade de mover um corpo e de ser movido por ele a um ser imate-
m.iI, Iifectivamente, se o primeiro se fizesse por informação, seria preciso que
i . espíritos, que produzem o'movimento, fossem inteligentes, o que não con-
t'ilt'is a nada de corpóreo. E, ainda que, nas vossas Meditações Metafísicas,
munireis a possibilidade do segundo, é, porém, muito difícil compreender
Senhor Descartes, 1111■11ma alma, tal como a descrevestes, depois de ter tido a faculdade e o hábi-
I<1111•bem raciocinar, possa perder tudo isso por via de alguns vapores e que,
A vossa bondade não se manifesta somente ao mostrar-me e ao corrigir-me os I 'i »lendo subsistir sem o corpo e não tendo nada de comum com ele, seja tão
defeitos do meu raciocínio, como eu entendera, mas também em que, para me dirigida por ele.
tornar o seu conhecimento menos penoso, procurastes consolar-me, em detri­ Mas, desde que começastes a instruir-me, só cultivo estes sentimentos
mento do vosso juízo, com falsos louvores que teriam sido necessários para nino amigos que não creio manter, assegurando-me que me explicareis tanto
me encorajar a encontrar remédio, se a minha criação,3num meio onde a ma­ «inil ureza de uma substância imaterial e o modo das suas acções e paixões no
neira usual de conversar me acostumou a ouvir pessoas incapazes de fazer ■Mipo como todas as outras coisas que quisestes ensinar. Peço-vos também
louvores verdadeiros, não me tivesse feito julgar que não podia enganar-me Ii.h',1crerdes que não podeis fazer essa caridade a ninguém que seja mais sen-
ao crer no contrário do seu discurso e, com isso, me não tivesse tornado tão fa­ ivel â obrigação que vos tem do que
miliar a consideração das minhas imperfeições, que já não me dá tanta emo­ A vossa muito afeiçoada amiga.
ção como precisaria para o desejo de me desfazer delas.
Isso leva-me a confessar, sem vergonha, que encontrei em mim todas as Elisabeth
causas de erro, que notais na vossa carta, e que ainda as não pude banir intei­
ramente, porque a vida que sou obrigada a levar não me deixa tempo disponí­
vel suficiente para adquirir um hábito de meditação segundo as vossas re­
gras. Umas vezes, os interesses da minha casa, que não devo negligenciar, ou­
tras vezes, as conversações e os comprazimentos, que não posso evitar, aba-
tem-me tão pesadamente, com desgosto ou tédio, este espírito débil, que ele
fica, durante um tempo considerável, inútil para qualquer outra coisa: o que
servirá, espero, como desculpa para a minha estupidez de não ser capaz de
compreender a ideia pela qual temos de julgar o modo como a alma (não
extensa e imaterial) pode mover o corpo através daquela ideia que, outrora,
tivestes do peso; nem por que é que este poder que, então, falsamente lhe atri -
buístes, sob o nome de uma qualidade, de impelir o corpo para o centro da ter­
ra, nos deve persuadir mais que um corpo pode ser impelido por algo de

3 No original, nourriture, no sentido do oducaçAo.


36 MEDICINA DOS AFECTOS 1 ORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 37

. i vem para nos tornar familiar a noção da alma; e o estudo da matemática,


|iie exercita principalmente a imaginação na consideração das figuras e dos
•Movimentos, habitua-nos a formar noções do corpo bem distintas; e, final-
...... é tão-só ao viver a vida e as conversações ordinárias, e ao abster-se de V
•iirditar e de se aplicar às coisas que exercitam a imaginação, que se aprende a ;
<meober a união entre a alma e o corpo.
Tenho quase receio de que Vossa Alteza pense que eu não esteja aqui a
i iltir com seriedade, mas isso seria contrário ao respeito que lhe devo, e que
Descartes a Elisabeth 1111 uca deixarei de lhe ter. E posso dizer com verdade que a regra principal que
Egmond de Hoef, 28 de Junho de 1643 . mpre observei nos meus estudos e que julgo ter sido a que mais me serviu
I■n a adquirir algum conhecimento foi que sempre dispensei muito poucas
Ihinis por dia aos pensamentos que ocupam a imaginação e muito poucas ho­
ir por ano aos que ocupam o simples entendimento e que dediquei todo o
II "11o do meu tempo ao descanso dos sentidos e ao repouso do espírito ; conto,
Senhora, inclusive, entre os exercícios da imaginação, todas as conversas sérias e tudo
h|ililo a que é preciso ter atenção. Foi o que me fez retirar para o campo, por­
Tenho uma enorme obrigação para com Vossa Alteza porque, depois de ter ex­ quanto, ainda que na cidade mais ocupada do mundo pudesse ter tantas ho­
perimentado que me expliquei mal nas minhas cartas precedentes, sobre a ir. para mim como as que emprego agora no estudo, não poderia contudo
questão que vos aprouve colocar-me, ainda vos dignais ter a paciência de me ui pregá-las aí tão utilmente, quando o meu espírito estivesse cansado pela
ouvir sobre o mesmo assunto e de me dar oportunidade de constatar as coisas iilenção que a agitação da vida requer. O que tomo a liberdade de escrever
que omitira. As principais das quais me parecem ser que, depois de ter distin­ u|tii a Vossa Alteza, para lhe testemunhar que admiro verdadeiramente que,
guido três géneros de ideias ou de noções primitivas que se conhecem cada . nt re as ocupações e os cuidados que nunca faltam às pessoas que são simul­
uma de uma maneira particular e não pela comparação de umas com as outras, ei neamente de grande espírito e de grande nascimento, ela tenha podido
a saber, a noção que temos da alma, a do corpo e a da união que existe entre a ipllcar-se às meditações que se exigem para conhecer bem a distinção que
alma e o corpo, devia explicar a diferença que existe entre estes três tipos de no­ • •>iste entre a alma e o corpo.
ções e entre as operações da alma pelas quais as possuímos, e dizer os meios de Mas julguei que foram estas meditações, mais do que os pensamentos <
nos tornar familiar e fácil cada uma delas; depois, tendo dito por que é que me ■1111• requerem menos atenção, que vos fizeram encontrar obscuridade na no-
servira da comparação do peso, mostrar que, ainda que se queira conceber a « tu i|ue temos da sua união; não me parecendo que o espírito humano fosse
alma como material (o que é propriamente conceber a sua união com o corpo), • iipaz de conceber muito distintamente e ao mesmo tempo a distinção entre a
não se deixa de conhecer, posteriormente, que ela se pode separar dele. O que é, IIIna e o corpo e a sua união, dado que é preciso, para isso, concebê-los como
segundo creio, toda a matéria que Vossa Alteza me prescreveu aqui. uma só coisa e, simultaneamente, concebê-los como dois, o que é contraditó-
Em primeiro lugar, portanto, noto uma grande diferença entre estes três Iui, li, para esse efeito (supondo que Vossa Alteza tinha ainda as razões que
tipos de noções, já que a alma só se concebe pelo entendimento puro; o corpo, I 'invam a distinção entre a alma e o corpo muito presentes ao espírito, e não
ou seja, a extensão, as figuras e os movimentos, também se podem conhecer •111crendo pedir que se desfaça delas para se representar a noção da união que
pelo mero entendimento, mas muito melhor pelo entendimento auxiliado i h la um experimenta sempre em si mesmo sem filosofar; a saber, que é uma
pela imaginação; e, finalmente, as coisas que pertencem à união entre a alma e ■11 lessoa que tem conjuntamente um corpo e um pensamento, que são de tal
o corpo só obscuramente se conhecem pelo mero entendimento, ou mesmo iialu reza que este pensamento pode mover o corpo e sentir os acidentes que
pelo entendimento auxiliado pela imaginação, mas conhecem-se muito clara­ IIli* acontecem), recorri anteriormente à comparação do peso e das outras
mente pelos sentidos. Daí que aqueles que nunca filosofam e só se servem dos i|iialidades que comummente imaginamos estarem unidas a alguns corpos,
sentidos não duvidem que a alma mova o corpo e que o corpo aja sobre a lai como o pensamento está unido ao nosso; e não me inquietei que esta com-
alma, antes considerem ambas as coisas como uma só, isto é, concebam a sua I 'a ração fraquejasse por estas qualidades não serem reais, tal como as imagi­
união; pois conceber a união que existe entre duas coisas é concebê-las como nam, pois acreditei que Vossa Alteza já estava inteiramente persuadida de
uma só. E os pensamentos metafísicos, que exercitam o entendimento puro, que a alma ó uma substância distinta do corpo.
38 MEDICINA DOS AFECTOS ( ( >11RESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 39

Mas, como Vossa Alteza nota que é mais fácil atribuir matéria e extensão
à alma do que atribuir-lhe a capacidade de mover um corpo e de ser movida
por ele, sem ter matéria, peço-lhe que atribua livremente essa matéria e essa
extensão à alma; porquanto isso mais não é do que concebê-la unida ao corpo.
E, depois de ter concebido bem isso e de o ter experimentado em si mesma,
ser-lhe-á fácil considerar que a matéria que terá atribuído a esse pensamento
não é o próprio pensamento e que a extensão dessa matéria é de uma natureza
diferente da extensão desse pensamento, em virtude de a primeira estar de­
terminada a um certo lugar, do qual exclui qualquer outra extensão de corpo, lilisabeth a Descartes
o que a segunda não faz. E, assim. Vossa Alteza não deixará de convir facil­ I laia, 1 de Julho de 1643
mente no conhecimento da distinção entre a alma e o corpo, apesar de ter con­
cebido a sua união.
Finalmente, como creio que é muito necessário ter compreendido bem,
uma vez na vida, os princípios da metafísica, porque são eles que nos dão o
conhecimento de Deus e da nossa alma, creio também que seria muito preju­ Senhor Descartes,
dicial ocupar muitas vezes o entendimento a meditá-los, porque não poderia
ocupar-se tão bem das funções da imaginação e dos sentidos; mas o melhor é 1 . elo que não recebais tanto incómodo pela minha estima das vossas instru-
contentar-se em reter na memória e na crença as conclusões a que se chegou «....pelo meu desejo de tirar proveito delas como pela ingratidão daqueles
uma vez e, depois, empregar o resto do tempo que se tem para o estudo, nos ..... si mesmos se privam delas e queriam privar delas o género humano; e
pensamentos em que o entendimento age com a imaginação e os sentidos. .....vos enviaria um novo efeito da minha ignorância antes de vos saber liber­
A extrema devoção, que tenho no serviço de Vossa Alteza, faz-me espe­ ia obstinação deles, se o senhor Van Bergen não me tivesse obrigado a isso
rar que a minha franqueza não lhe seja desagradável e ela ter-me-ia levado a ills eedo, pela sua gentileza de querer ficar nesta cidade até eu lhe dar uma
um discurso mais longo no qual, desta vez, teria procurado esclarecer todas Is mta à vossa carta de 28 de Junho, que me faz ver claramente os três tipos
as dificuldades da questão proposta, mas uma notícia aborrecida que acabo h noções que temos, os seus objectos e como devemos utilizá-las.
de receber de Utreque, onde o magistrado me cita para verificar o que escrevi Acho também que os sentidos me mostram que a alma move o corpo,
acerca de um dos seus ministros,4 embora seja um homem que me caluniou h i i 111ie não me ensinam (como tão-pouco o entendimento e a imaginação) o
muito indignamente e o que escrevi sobre ele para minha justa defesa seja ....do como ela o faz. E, para isso, penso que há propriedades da alma, que
mais do que óbvio para toda a gente, obriga-me a terminar aqui, a fim de ir • ' -ifio desconhecidas, que poderão talvez inverter aquilo de que as vossas
consultar os meios para sair destas contendas o mais rapidamente que puder. i itltaçõcs Metafísicas me persuadiram, por muito boas razões, da inextensão
Sou, Senhora, o muito humilde e muito obediente servidor de V.A., i i ilma. E esta dúvida parece fundar-se na regra que aí apresentais ao falar-
1 do verdadeiro e do falso e que todo o erro nos vem de formarmos juízos
Descartes • na do que não percebemos suficientemente. Ainda que a extensão não
111 locessária ao pensamento, o que não repugna nada, ela poderá convir a
1 uma outra função da alma que lhe não é menos essencial. No mínimo, ela
IIa por terra a contradição dos Escolásticos, que ela está toda em todo o tòr-
*■ I ■ toda em cada uma das suas partes. Não peço desculpa por confundir a
ili i da alma com a do corpo pela mesma razão que o vulgo, mas' íêso não
h livra da primeira dúvida e desesperarei de encontrar alguma certeza em
il|',u do mundo, se não ma derdes, vós que fostes o único que me impediu de
i i óptica, para onde me levava o meu primeiro raciocínio.
Ainda que vos devesse esta confissão, para vos agradecer, conside-
4 Referência à Epistola ml Voetium, publicada em finais de Maio de 1643, que suscitou ime I l i la demasiado imprudente, se não conhecesse a vossa bondade egenero-
diatamente em Utreque reacçfles públicas contra Descartes. "I nie, igual aos vossos outros méritos tanto pela experiência que já tive
40 MEDICINA DOS AFECTOS
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 41

deles como pela reputação. Não a podeis manifestar de um modo mais pres­
tável do que pelos esclarecimentos e conselhos que me confiais e que estimo
acima dos maiores tesouros que pudesse possuir.
A vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.

Elisabeth

Descartes a Elisabeth
Egmond de Hoef, Novembro de 1643

Senhora,

Iundo sabido pelo senhor Pollot que Vossa Alteza se deu ao trabalho de inves-
Iigar a questão das três circunferências5e que encontrou o meio de a resolver,
supondo apenas uma quantidade desconhecida, pensei que o meu dever me
obrigava a apresentar aqui a razão pela qual propusera várias e a maneira
como as distingo.
Ao investigar uma questão de Geometria, procedo sempre de tal modo
que as linhas, de que me sirvo para a resolver, sejam, tanto quanto possível,
Iniralelas ou se cruzem formando ângulos rectos; e não considero quaisquer
outros teoremas senão que os lados dos triângulos iguais têm, entre si, uma
proporção igual e que, nos triângulos rectângulos, o quadrado da base é igual
aos dois quadrados dos lados. E não receio supor várias quantidades desco­
nhecidas para reduzir a questão a tais termos, porquanto ela depende tão-só
desses dois teoremas; pelo contrário, prefiro supor mais do que menos. Com
eleito, por este meio, vejo mais claramente tudo o que faço e, ao distingui-las,
encontro melhor os caminhos mais curtos e evito multiplicações supérfluas;
tio passo que, se se traçam mais linhas, utilizam-se mais teoremas; embora
IXissa acontecer, por acaso, que o caminho encontrado seja mais curto que o
meu, no entanto acontece quase sempre o contrário. E não se vê tão claramen-
le o que se faz, a não ser que se tenha a demonstração do teorema a que se re-
I o i re bem presente no espírito; e, neste caso, verifica-se quase sempre que de-
Imude da consideração de alguns triângulos que são ou rectângulos ou iguais
entre si e, assim, vem-se ter ao caminho que eu sigo.
Por exemplo, se se quiser investigar esta questão das três circunferências,
i <im a ajuda de um teorema que ensine a encontrar a área de um triângulo pelos

i Dadas ti l's circunferência», encontrar a quarta que toque as três anteriores.


r 43
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA
42 MEDICINA DOS AFECTOS

B uma para DF, outra para DG e outra para o raio da circunferência a encontrar,
lenho todos os lados dos três triângulos rectângulos ADF, BDG, CDF, que me
11Ao três equações, visto que, em cada um deles, o quadrado da base é igual
lios dois quadrados dos lados.
Depois de, assim, ter feito tantas equações quantas as quantidades des-
I onhecidas que supus, verifico se, para cada equação, posso encontrar uma
em termos bastante simples; e, se não puder, procuro chegar ao fim juntando
iluas ou mais equações por adição ou subtracção; e, finalmente, quando isso
B mV) é suficiente, examino apenas se não será melhor mudar os termos de al­
guma maneira. Pois, ao fazer este exame com atenção, encontra-se facilmente
im caminhos mais curtos e pode-se tentar uma infinidade deles em muito
pouco tempo.
Assim, neste exemplo, suponho que as três bases dos triângulos rectân-
gulos são

AD = a + x
BD = b + x
seus três lados, basta unicamente supor uma quantidade desconhecida. Pois, CD = c + x
se A, B, C forem os centros das três circunferências dadas e D o centro da circun­
ferência a encontrar, os três lados do triângulo ABC são dados e as três linhas e, fazendo
AD, BD, CD são formadas pelos três raios das circunferências dadas, juntos ao
raio da circunferência a encontrar, de tal modo que, supondo-se x para este AE = d, BE = e, CE = / , DF ou GE = y, DG ou FE = z
raio, se tenha todos os lados dos triângulos ABD, ACD, BCD; e, por conseguin­
te, podem-se ter as suas áreas que, todas juntas, são iguais à área do triângulo lenho para os lados dos mesmos triângulos
dado ABC; e pode-se, com esta equação, chegar ao conhecimento do raio x, o
AF = d - z e FD = y
único que é necessário para a solução da questão. Mas este caminho parece-me
levar a tantas multiplicações supérfluas que não ousaria deslindá-la em três BG = e - y e DG = z
meses. É por isso que, em vez das duas linhas oblíquas AB e BC, traço as três CF = / + z e F D = y
perpendiculares BE, DG, DF, e, considerando três quantidades desconhecidas,
I >epois, fazendo o quadrado de cada uma destas bases igual ao quadrado dos
dois lados, tenho as três equações seguintes:

aa +2ax +xx =dd - 2dz +zz + yy


bb + 2bx + xx = ee - 2ey + yy + zz
cc +2cx +xx =ff +2fz +zz +yy

t■vejo que, só com uma delas, não posso achar nenhuma das quantidades des­
conhecidas sem calcular a raiz quadrada, o que complicaria demasiado a
questão. É por isso que sigo a segunda possibilidade, que consiste em juntar
duns equações, e apercebo-me imediatamente de que, sendo os termos xx, yy
e zz iguais nas três equações, se retirar uma de uma outra, à minha escolha,
eles desaparecerão e, assim, não terei mais termos desconhecidos para além
(los simples x, y e z. Vejo também que, se retirar a segunda da primeira ou da
44 MEDICINA DOS AFECTOS
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 45

terceira, terei os três termos x, y e z, mas, se retirar a primeira da terceira, só


terei x ez. Escolho portanto este último caminho e obtenho

cc + 2cx - a a - 2ax = ff + 2fx -d d + 2 dz

ou
CC-CM+ dd - ff + 2cx - 2ax
z = -------------------------- —------------------------
2d+ 2f
Elisabeth a Descartes
ou Haia, 21 de Novembro de 1643
CC-CM+ 2cx - 2ax
2d + 2/
Depois, retirando a segunda equação da primeira ou da terceira (já que elas se
equivalem) e colocando no lugar de z os termos que acabo de achar, tenho Senhor Descartes,
pela primeira e a segunda:
' io eu tivesse tanta habilidade para seguir os vossos conselhos como tenho
aa + 2 ax - b b - 2bx = d d - 2dz - ee + 2ey vontade de o fazer, encontraríeis já os efeitos da vossa caridade nos progres-
>8que teria realizado no raciocínio e na álgebra, de que, neste momento, só
ou vos posso mostrar as falhas. Mas estou tão habituada a vo-las mostrar, que me
ccd - aad + 2cdx - 2adx acontece, como aos velhos pecadores, perder completamente toda a vergo­
2ey = ee + aa + 2ax - b b - 2bx-dd + d d - d f +
nha. Pelo que fizera tenção devos enviar a solução da questão que me tínheis
J+J
•olocado, pelo método que me haviam ensinado outrora, tanto para vos obri-
ou c.ar a dizer-me as suas falhas como porque não sou tão versada no vosso. Pois
_ 1 bb bx df ccd + aaf + 2cdx + 2afx notava de facto que as havia na minha solução, não vendo suficientemente
y ~ 2 e ~2e~~ê~~2e+ 2ed + 2ef i laro para daí deduzir um teorema; mas nunca teria encontrado a sua razão
i•in a vossa última carta, que me dá toda a satisfação que eu pedia e me ensina
Por último, voltando a uma das três primeiras equações e colocando no lugar mais do que teria conseguido em seis meses com o meu mestre. Devo-vos
de y ou de z as quantidades que lhes são iguais, e os quadrados destas quanti­ muito por isso e nunca teria perdoado ao senhor Pollot se ele tivesse usado a
dades por yy e zz, obtém-se uma equação onde só xexx são desconhecidos; de ' tissa carta segundo a vossa ordem.6No entanto, só ma quis entregar com a
tal modo que o problema fica simples e não há necessidade de ir mais longe. ■i mHlição de que vos enviaria o que fizera. Por conseguinte, não acheis mal que
Efectivamente, o resto não serve para cultivar ou recrear o espírito, mas uni­ \ i is dê um incómodo supérfluo, porque há poucas coisas que eu faria para ob-
camente para exercitar a paciência de um calculador laborioso. Mesmo assim, i*t estes efeitos da vossa boa vontade, que é infinitamente estimada pela
receio ter-me tornado aqui aborrecido a Vossa Alteza, porque me limitei a es­ Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos,
crever coisas que seguramente sabia melhor do que eu, e que são fáceis, mas
que contudo são os pontos chave da minha álgebra. Peço-vos muito humilde­ Elisabeth
mente para acreditardes que é a devoção que tenho em honrar-vos que me
levou a isso e que sou.
Senhora,
O muito humilde e muito obediente servidor de V.A.,

Descartes
r* Iiescartespedira a Pollot para n8o entregar a carta anterior a Elisabeth, se ela ainda prefe­
risse encontrar sozinha a soluçío.
46 MEDICINA DOS AFECTOS
r CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 47

li idas as letras que se puseram no início; ou então, se se mudam algumas delas


I <ara facilitar o cálculo, é preciso repô-las mais tarde, para que estejam no fi­
nal, já que, por via de regra, várias se apagam umas às outras, o que não se
IMhle ver, quando as mudámos.
Também é bom observar que as quantidades, que são denominadas pe-
I i letras, tenham, tanto quanto possível, uma relação semelhante umas com
II nutras. Isso torna o teorema mais belo e mais curto, porque o que se enuncia
li uma destas quantidades se enuncia, da mesma maneira, das outras e im-
Descartes a Elisabeth I'■'<le que se possa falhar no cálculo, porque as letras, que significam quanti-
Egmond de Hoef, Novembro de 1643 I,ules que têm uma mesma relação, devem-se encontrar distribuídas do mes­
mo modo e, quando isso falta, reconhece-se o seu erro.
Assim, para encontrar um teorema que ensine qual é o raio da circunfe-
i.'ncia que toca os três dados por posição, não se precisaria de pôr, neste
o Mnpio, as três letras a, b, c para as linhas AD, DC, DB, mas para as linhas AB,
Senhora, \l e BC, porque estas últimas têm, cada uma delas, a mesma relação com as
iii'n AH, BH e CH, o que não têm as primeiras. E, continuando o cálculo com
A solução, que aprouve a Vossa Alteza conceder a honra de enviar-me, é tão tias seis letras, sem as mudar e sem acrescentar outras, pelo caminho que
exacta que não se pode desejar mais nada a esse respeito; e não fiquei somente \ i issa Alteza seguiu (pois é melhor para isso do que aquele que eu propuse-
admirado ao vê-la, mas não posso abster-me de acrescentar que fiquei também ■i ), tem de se chegar a uma equação muito regular que dará um teorema bas-
cheio de alegria e tive a vaidade de ver que o cálculo, de que Vossa Alteza se ser­ I hile curto. Pois as três letras a, b, c estão aí dispostas do mesmo modo, e tam-
ve, é inteiramente semelhante ao que eu propus na minha Geometria. A expe­ Ii i *i n as três d, e,f.
riência dera-me a conhecer que a maior parte dos espíritos que têm facilidade em Mas, porque o seu cálculo é aborrecido, se Vossa Alteza desejar experi-
entender os raciocínios da metafísica não são capazes de conceber os da álgebra, Iiienlar fazê-lo, ser-lhe-á mais fácil se supuser que as três circúnferências da­
e, reciprocamente, que os que compreendem facilmente estes são normalmente te tsa o tangentes e se utilizar, em todo o cálculo, somente as quatro letras d, e,
incapazes de compreender os outros; e só conheço o espírito de Vossa Alteza i, que, sendo os raios das quatro circunferências, têm uma relação seme­
para o qual todas as coisas são igualmente fáceis. É verdade que já tinha tantas lhante entre si. E, em primeiro lugar, encontrará
provas disso que não podia ter qualquer dúvida; receava apenas, porém, que lhe
faltasse a paciência, que é necessária no início para ultrapassar as dificuldades . . . dd + df + d x - fx
AK =---------------
do cálculo. Trata-se, efectivamente, de uma qualidade que é extremamente rara d +f
nos espíritos excelentes e nas pessoas de condição elevada. $
Agora que esta dificuldade foi vencida, terá muito mais prazer no resto
e, ao substituir várias letras por uma só, tal como fez aqui imensas vezes, o . ». dd + df + de - fe
AD = --------------- —

cálculo não lhe será aborrecido. É uma coisa que se pode fazer quase sempre, d +f
quando se quer ver somente qual a natureza de uma questão, ou seja, se ela se " 111le já pode notar que x está na linha AK como e está na linha AD, porque se
pode resolver com a régua e o compasso ou se é preciso utilizar algumas ou­ 11111n t ra pelo triângulo AHC como o outro pelo triângulo ABC. Depois, final-
tras linhas curvas do primeiro ou do segundo género, etc., e qual o caminho Ilien te, terá esta equação,
para a encontrar; que é, normalmente, tudo o que me interessa a respeito das
questões particulares. Já que me parece que o excesso, que consiste em procu­ ddceff = Ideffxx + Ideeffx + ddeexx + Ideefxx + Iddeffx + ddffxx +
rar a construção e a demonstração pelas proposições de Euclides, esconden­ I Iddefxx + Iddeefx + eeffxx
do o procedimento da álgebra, é apenas um divertimento para os pequenos ■Ia quai se tira, para teorema, que as quatro somas, que se produzem multipli-
geómetras, que não requer muito espírito nem muita ciência. Mas, quando há II hlo em conjunto os quadrados de três destes raios, dão o dobro de seis, que
alguma questão que se quer acabar para se fazer dela um teorema que sirva ■ iiroduzem multiplicando dois destes raios um pelo outro e pelos quadra-
de regra geral para resolver outras semelhantes, é preciso reler ale ao final hmios outros dois; o que basta Dara servir de ream nara encontrar o raio da
r 48 MEDICINA DOS AFECTOS
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA

Descartes a Elisabeth
Paris, Julho de 1644 ?

Senhora,

A minha viagem não podia ser acompanhada de nenhum infortúnio, porque


maior circunferência que pode ser descrita entre as três dadas que são tangen­ lui feliz ao fazê-la a ponto de ficar na memória de Vossa Alteza; a carta muito
tes. Pois, se os raios destas três dadas são, por exemplo, d/2, e/3e //4 , terei liivorável, que me transmite sinais disso, é a coisa mais preciosa que eu podia
576 para ddeeffe 36xx para ddeexx e assim em relação aos outros. ii-ceber neste país. Ela ter-me-ia tornado inteiramente feliz, se não me infor-
Donde acharei IIlusse que a doença que Vossa Alteza tinha, já antes de eu ter partido de Haia,

156 31104 llic deixou ainda alguns restos de indisposição no estômago. Òs remédios!
X = ----- + ------- , III ie escolheu, ou seja, dieta e exercício, são, na minha opinião, os melhores de
47 2209
lodos, mas só depois dos da alma, que tem sem dúvida muita força sobre o
se não me enganei no cálculo que acabo de fazer. 11>i|>o, tal como mostram as grandes mudanças que a cólera, o medo e as ou-
E Vossa Alteza pode ver aqui dois procedimentos muito diferentes 11u h paixões excitam nele. Mas não é directamente pela sua vontade que ela
numa mesma questão, conforme os diferentes objectivos que nos propomos. I onduz os espíritos aos lugares onde eles podem ser úteis ou prejudiciais; é
Pois, se quiser saber de que natureza é a questão e de que modo pode ser re­ umente ao querer ou ao pensar em alguma outra coisa. Com efeito, a cons-
solvida, tomo como dadas as linhas perpendiculares ou paralelas e suponho II tição do nosso corpo é de natureza tal que certos movimentos seguem certos
diversas quantidades desconhecidas, para não fazer nenhuma multiplicação I iuisa mentos: como se vê que o corar do rosto segue a vergonha, as lágrimas a
supérflua e ver melhor os caminhos mais curtos; ao passo que, se a quiser aca II impaixão e o riso a alegria. E não conheço nenhum pensamento mais pro-
bar, tomo como dados os lados do triângulo e suponho apenas uma letra des pi lo para a conservação da saúde do que aquele que consiste numa forte per­
conhecida. Mas há uma quantidade de questões, onde o mesmo caminho con iiUHâo e numa firme crença de que a arquitectura dos nossos corpos é tão boa
duz a um e a outro, e não duvido de que, em breve. Vossa Alteza veja até onde •|i H-, uma vez que se está são, não se pode adoecer facilmente, a não ser que se
pode alcançar o espírito humano nesta ciência. Considerar-me-ia extrema luç.i qualquer excesso notável ou que o ar ou as outras causas exteriores nos
mente feliz, se pudesse contribuir alguma coisa para isso, pois um zelo muiti > hiçiim mal; e que, tendo uma doença, se pode facilmente recuperar pela sim-
particular me leva a ser. I •!«•** força da natureza,7principalmente quando ainda se é jovem. Esta per­
Senhora, ii limão é, sem dúvida, muito mais verdadeira e mais razoável do que a de certas
O muito humilde e muito obediente servidor de V.A., I h"inoas, que, a partir do relatório de um astrólogo ou de um médico, se con-
11'iu'om falsamente de que devem morrer dentro de algum tempo e adoecem
Descartes

A id fin di* m i* • n«hin**/n t\ r \ i \ A n r A m «mim. á — *■- Ul — —iU —


50 MEDICINA DOS AFECTOS

devido exclusivamente a isso, e até morrem disso com bastante frequência,


tal como vi acontecer a diversas pessoas. Mas não poderia deixar de estar ex­
tremamente triste, se pensasse que a indisposição de Vossa Alteza ainda du­
rava; prefiro acreditar que já passou completamente; e, contudo, o desejo de
r CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 51

me certificar disso faz-me ter paixões extremas de regressar à Holanda.


Proponho-me partir daqui dentro de quatro ou cinco dias para passar
em Poitou e na Bretanha, onde estão os assuntos que me têm conduzido; mas
logo que os tenha conseguido ordenar um pouco, não há nada que eu deseje
tanto como voltar aos lugares onde fui tão feliz por ter a honra de falar algu­ Elisabeth a Descartes
mas vezes a Vossa Alteza. Pois, embora haja aqui muitas pessoas que eu hon­ Haia, 1 de Agosto de 1644
ro e estimo, ainda não vi nada que me consiga deter. E sou mais do que as mi­
nhas palavras possam exprimir, etc.

Senhor Descartes,

( ) presente que o Senhor van Bergen me entregou, da vossa parte, obriga-me a


agradecer-vos e a minha consciência acusa-me por não poder fazê-lo segun-
Ilo os vossos méritos. Mesmo que tivesse recebido apenas o bem que convém
u<) nosso século, devendo-vos este tudo o que os anteriores pagaram aos in­
ventores das ciências, porque só vós demonstrastes a sua efectiva realidade,
.ilé que proporção não subirá a minha dívida, a quem dais, com a instrução,
uma parte da vossa glória, no testemunho público8 que me fazeis da vossa
amizade e da vossa aprovação? Os pedantes dirão que sois obrigado a cons­
itu ir uma nova moral para que me façais digna dela. Mas assumo-a como
uma regra da minha vida, sentindo-me apenas no primeiro degrau que aí
aprovais: o desejo de informar o meu entendimento e de seguir o bem que ele
conhece. É a essa vontade que devo a inteligência das vossas obras que só são
iibscuras para aqueles que as examinam através dos princípios de Aristóteles
ou com muito pouco cuidado, como os mais razoáveis dos nossos doutores
neste país me confessaram que não as estudavam, porque são demasiado ve­
lhos para começar um novo método, tendo usado a força do corpo e do espíri­
to no antigo.
Mas temo que retractareis, com justiça, a opinião que tivestes da minha
compreensão, quando souberdes que não entendo como é que o mercúrio se
lorma, tão cheio de agitação e tão pesado todo junto, contrário à definição que
destes do peso; e, ainda que o corpo E, na figura da página 225, o pressione,
quando ele está por baixo, por que é que reagiria a este constrangimento,
quando está por cima, mais do que o ar ao sair de um vaso onde foi
pressionado?

H A princesa refere .1 dedicatória dos Princípios.


52 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 53

A segunda dificuldade que encontrei é a de fazer passar essas partícu­


las, transformadas em concha, pelo centro da terra, sem serem dobradas ou
desfiguradas pelo fogo que aí se encontra, como foram no princípio para for­
mar o corpo M. Só a sua velocidade as pode salvar disso e dizeis, nas páginas
133 e 134, que ela não lhes é necessária para irem em linha recta e que, por con­
seguinte, são as partes menos agitadas do primeiro elemento que se retiram
assim pelos glóbulos do segundo. Admiro-me igualmente que dêem uma
volta tão grande ao saírem dos pólos do corpo M e que passem pela superfície
da terra para voltar ao outro, visto que podem encontrar um caminho mais Descartes a Elisabeth
próximo pelo corpo C. Le Crévis, Agosto de 1644
Não vos apresento aqui as razões das minhas dúvidas em relação ao
vosso livro; sendo inúmeras as razões da minha admiração, tal como as da mi­
nha obrigação, entre as quais conto ainda a bondade que tivestes de me infor­
mar com notícias vossas e de me dar alguns preceitos para a conservação da
minha saúde. Aquelas traziam-me muita alegria pelo bom sucesso da vossa Senhora,
viagem e pela continuação do propósito que tendes de voltar, e estes tra­
ziam-me muito proveito, dado que já experimento a sua bondade em mim I ) lavor, que Vossa Alteza me concede, de não achar desagradável que eu te­
mesma. Não mostrastes ao senhor Voetius o perigo que corre ao ser vosso ini­ nha ousado testemunhar em público quanto a estimo e honro, é maior e obri­
migo, como a mim a vantagem da vossa benevolência; de outro modo, ele evi­ ga me mais do que qualquer um que pudesse receber de outra parte. E não re-
taria tanto esse título, como eu procuro merecer o de Ifio ser acusado de ter mudado algo na moral para fazer ouvir o meu senti­
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos, mento sobre este assunto; pois o que escrevi é tão verdadeiro e tão claro que
estou certo de qu.e não haverá homem razoável que o não confesse. Mas re­
Elisabeth miu que aquilo que inseri no resto do livro seja mais duvidoso e mais obscuro,
visto que V.A. encontra aí dificuldades.
A que diz respeito ao peso do mercúrio é muito considerável e procu-
Iiiria esclarecê-la, se, não tendo examinado ainda suficientemente a nature-
,i deste metal, não temesse fazer algo de contrário ao que poderia aprender
mais tarde. Tudo o que posso dizer agora é que me persuado de que as partí-
I nias de ar, de água e de todos os outros corpos terrestres têm vários poros
por onde pode passar a matéria muito subtil; e isso explica-se suficiente-
mente pela maneira como eu disse que eram formadas. Ora, basta dizer que
as partes do mercúrio e dos outros metais têm menos poros para fazer enten­
der por que é que estes metais são mais pesados. Pois, por exemplo, ainda
ijuo julgássemos que as partes da água e as do mercúrio tinham o mesmo vo-
lume e a mesma figura, e que os seus movimentos eram semelhantes, se su-
Iui sermos tão-só que cada uma das partes da água é como uma pequena cor-
Ila muito macia e muito folgada, mas que as do mercúrio, tendo menos po­
ms, são como outras pequenas cordas muito mais duras e mais apertadas,
Isso basta para fazer entender que o mercúrio tem de pesar muito mais do
quo a água.
Quanto às partículas transformadas em concha, não é surpreendente que
f las não sejam destruídas pelo fogo que está no centro da terra. Com efeito, esse
logo, sendo composto apenas de matéria muito subtil, pode transportá-las
54 CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 55
MEDICINA DOS AFECTOS

muito depressa sem as fazer chocar com quaisquer outros corpos duros; o que
seria necessário para que se rompessem ou dividissem.
De resto, essas partes em concha não dão uma volta demasiado grande
para regressarem de um pólo ao outro. Pois suponho que a maior parte passa
pelo interior da terra; de modo que só as que não encontram uma passagem
mais baixa é que voltam pelo nosso ar. E é a razão que apresento para que a
virtude do diamante não nos pareça tão forte em toda a massa da terra como
nas pequenas pedras de diamante.
Mas peço muito humildemente a Vossa Alteza que me perdoe, se tudo o Descartes a Elisabeth
que escrevo aqui é muito confuso. Ainda não tenho o livro cujas páginas se Egmond, 18 de Maio de 1645
dignou marcar e estou permanentemente em viagem, mas espero, dentro de
dois ou três meses, ter a honra de a obsequiar em Haia. Sou, etc.

Descartes
Senhora,

I Iqiiei extremamente surpreendido ao saber, pelas cartas do senhor Pollot,


•(lit* V.A. esteve muito tempo doente, e maldigo a minha solidão porque é a
■.lus.i de não o ter sabido mais cedo. É verdade que, apesar de estar tão retira-
i lo do mundo que não sei nada do que aí se passa, o zelo que tenho pelo servi-
i.ode Vossa Alteza não me teria permitido estar tanto tempo sem saber o esta-
•lo da sua saúde e deveria ter ido a Haia de propósito para me inteirar, mas o
cubor Pollot, tendo-me escrito muito à pressa, há uns dois meses, prometera
i civver-me de novo; e como ele nunca deixa de me informar sobre o estado
' m que Vossa Alteza se encontra, enquanto não recebi dele nenhuma carta,
tupiis que estáveis sempre no mesmo estado. Mas soube, pelas suas últimas
h t.is, que Vossa Alteza teve, durante três ou quatro semanas, uma febre len-
111, acompanhada de uma tosse seca, e que, depois de se ter libertado disso por
111 ico ou seis dias, o mal voltou e que, todavia, no momento em que ele me en-
loi ui sua carta (que esteve cerca de quinze dias pelo caminho). Vossa Alteza
muinçava de novo a sentir-se melhor. Noto aí os sinais de um mal tão conside-
I ici'lu ao qual me parece, contudo, que Vossa Alteza pode certamente reme-
. lio i, que não posso abster-me de lhe escrever o meu sentimento a esserespei-
I>i I'ois, embora não seja médico, a honra que Vossa Alteza me concedeu, no
■i .to passado, de querer saber a minha opinião sobre uma outra indisposi­
ti i que tinha naquele momento, faz-me esperar que a minha liberdade não
IIh \i >rá desagradável.
Acausa mais comum da febre lenta é a tristeza; e a obstinação da fortuna
■1111h■rseguir a vossa casa dá-vos continuamente motivos de aborrecimento,
que mV) tão públicos e tão evidentes, que não é preciso fazer muitas conjectu-
II. nom perceber muito destes assuntos para julgar que é nisso que consiste a
ui ..i principal da vossa indisposição. E é cie temer que não possais liber-
i.tr vos completamente dela, a menos que, pela força da vossa virtude,
r

CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 57


56 MEDICINA DOS AFECTOS

contenteis a vossa alma, apesar das desgraças da fortuna. Sei bem que seria retirados, com aqueles de que a fortuna a despojou e as desgraças com que a
imprudente querer persuadir a ser alegre uma pessoa a quem a fortuna envia na pessoa dos seus próximos; pois, então, verá o grande motivo q u e
Il e r s e g u e

todos os dias novos motivos de desprazer, e não sou desses filósofos cruéis lem para estar contente com os seus próprios bens. O zelo extremo que tenho
que querem que o seu sábio seja insensível. Sei também que Vossa Alteza não por ela é a causa pela qual me deixei levar a este discurso, de que lhe peço
é tão tocada pelo que lhe diz particularmente respeito como pelo que diz res­ muito humildemente desculpa por vir duma pessoa que é, etc.
peito aos interesses da sua casa e das pessoas por quem tem afecto; o que esti­
mo como a virtude mais amável de todas. Mas parece-me que a grande dife­
rença que existe entre as almas maiores e as que são baixas e vulgares, consiste
principalmente no facto de as almas vulgares se deixarem levar pelas suas
paixões e de serem felizes ou infelizes apenas conforme as coisas que lhes
acontecem são agradáveis ou desagradáveis; ao passo que as outras têm ra­
ciocínios tão fortes e tão poderosos que, embora tenham também paixões e
muitas vezes até mais violentas que as do comum, a sua razão permanece,
todavia, sempre a mestra e faz com que as próprias aflições as sirvam e contri­
buam para a perfeita felicidade de que gozam já nesta vida. Efectivamente,
por um lado, considerando-se imortais e capazes de receber muito grandes
contentamentos, depois, por outro lado, considerando que estão juntas a cor
pos mortais e frágeis, que estão sujeitos a muitas enfermidades e que não po
dem deixar de perecer dentro de poucos anos, elas fazem bem tudo o que está
em seu poder para que a fortuna lhes seja favorável nesta vida, mas esti
mam-na tão pouco, em comparação com a eternidade, que é como se tives
sem, para os acontecimentos da vida, a mesma consideração que se tem para
com as comédias. E como as histórias tristes e lamentáveis, que vemos repro
sentar num teatro, nos proporcionam muitas vezes tanta recreação como as
alegres, se bem que nos façam correr lágrimas dos olhos; assim, estas almas
maiores, de que falo, têm satisfação nelas mesmas com todas as coisas que
lhes acontecem, mesmo as mais aborrecidas e insuportáveis. Assim, sentindi >
dor no seu corpo, exercitam-se a suportá-la pacientemente e é-lhes agradável
esta prova que fazem da sua força; assim, vendo os seus amigos em algum,i
grande aflição, compadecem-se com o seu mal e fazem tudo o que está ao sei i
alcance para os libertar e não temem sequer expor-se à morte por este motivo,
se for necessário. Mas, no entanto, o testemunho, que lhes dá a sua consciên
cia de que cumprem desse modo o seu dever e fazem uma acção louvável r
virtuosa, torna-as mais felizes do que as aflige toda a tristeza que lhes dá .1
compaixão. E, finalmente, como as maiores prosperidades da fortuna num a
as embriagam, nem as tornam mais insolentes, também as maiores adversi
dades não conseguem abatê-las ou entristecê-las de modo que adoeça o coq >,>
ao qual estão juntas.
Recearia que este estilo fosse ridículo, se o utilizasse para escrever a
qualquer outro; mas, porque considero Vossa Alteza como tendo a alma mar
nobre e mais elevada que conheço, creio que ela deve ser também a mais fel t
e que o será verdadeiramente, contanto que lhe apraza olhar o que está abobo
dela e comparar o valor dos bens que possui, e que jamais lhe poderiam sei
r

58 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 59

Confesso-vos igualmente que, embora não coloque a minha felicidade


em nada que dependa da fortuna ou da vontade dos homens nem me julgue
il 'solutamente infeliz, se nunca vir a minha casa restabelecida ou os meus pa-
Ientes fora da miséria, não poderia considerar os acidentes nocivos que lhes
,u on tecem sob uma outra noção que não seja a do mal, nem os esforços inúteis
i|iii' faço para os servir, sem qualquer espécie de inquietação, que logo que é
,ii,ilmada pelo raciocínio vê produzir-se outra devido a um novo desastre.
I iH*nso que, se conhecêsseis inteiramente a minha vida, acharíeis mais estra-
Elisabeth a Descartes nlio que um espírito sensível como o meu se tenha conservado tanto tempo,
Haia, 24 de Maio de 1645 nn meio de tantas contrariedades, num corpo tão fraco, sem outro conselho
que não o do seu próprio raciocínio e sem outra consolação que não a da sua
•i msciência, do que achais as causas da presente doença.
Consagrei o inverno passado a tarefas tão desagradáveis que me im-
Ilediram de me servir da liberdade, que me tínheis concedido, de vos apre­
Senhor Descartes, sentar as dificuldades que encontrar nos meus estudos, e trouxeram-me
mitras, que, para me desembaraçar delas, precisava ainda de mais estupi­
Vejo que os encantos da vida solitária não vos privam das virtudes necess.i dez que a que tenho. Durante a minha indisposição, só tive um pouco de
rias à sociedade. Ficaria desgostosa se essas atenções generosas, que tende tempo para 1er a filosofia do cavaleiro Digby,9 que a escreveu em inglês,
para com os vossos amigos e que me testemunhais nos cuidados que tende donde esperava aproveitar alguns argumentos para refutar a vossa, já que
para com a minha saúde, vos tivessem levado a fazer uma viagem até aqui 0 nu mário dos capítulos me mostrava duas passagens em que ele pretendia
depois de o senhor Pollot me ter dito que julgais o repouso necessário para n le lo feito; mas, ao chegar aí, fiquei muito admirada por ver que ele não ti­
vossa conservação. E asseguro-vos que os médicos, que me viram todos (>■> nha compreendido nada do que aprova no vosso sentimento da reflexão e
dias e examinaram todos os sintomas do meu mal, não encontraram a causa 1lo que nega no da refracção, não fazendo distinçãó alguma entre o movi­
respectiva nem prescreveram remédios tão salutares como fizestes de longe mento duma bala e a sua determinação, e não considerando porque é que
Mesmo se eles tivessem sido bastante sábios para suspeitarem da parte que i> llin corpo mole que cede retarda um outro, nem considerando que um cor-
meu espírito tinha na desordem do corpo, eu não teria tido a franqueza de IIi.i Ilo duro apenas resiste ao outro. Quanto a uma parte do que diz acerca do
confessar. Mas a vós, senhor, faço-o sem escrúpulos, estando certa que um n movimento do coração, é mais desculpável, se não tiver lido nada do que
lato tão ingénuo dos meus defeitos não me retirará a parte que tenho da vossa escrevestes ao médico de Lovaina. O doutor Jonson disse-me que vos tra-
amizade, antes ma confirmará ainda mais, porque vereis aí que ela me i >Iuzirá esses dois capítulos; e penso que não tereis grande curiosidade pelo
necessária. •esto do livro, porque é do calibre e segue o método desse padre inglês que
Sabei, portanto, que tenho o corpo imbuído duma grande parte das li .i I I,i pelo nome de Albanus,10apesar de conter belíssimas meditações e de di-
quezas do meu sexo que se ressente muito facilmente das aflições da alm.i , Ilei Imente se poder esperar mais dum homem que passou a maior parte da
não tem a força para se reconciliar com ela, sendo dum temperamento sujciú • VIda a prosseguir desígnios de amor ou de ambição. Nunca terei desígnios
às obstruções e ficando numa atmosfera que contribui muito para isso; as pi­ in,iis fortes nem mais constantes que o de ser toda a minha vida.
soas, que não podem fazer muito exercício, não precisam duma longa opre
são de coração pela tristeza para obstruir o baço e infectar o resto do corpo pi u
intermédio dos seus vapores. Imagino que vêm daí a febre lenta e a tosse sei •i
que ainda não me deixaram, apesar de o calor da estação e os passeios qm Knelm Digby, filósofo inglês que concilia atomismo e aristotelismo. Publicou dois trata­
dos sobre a natureza do corpo e sobre a imortalidade da alma, respectivamente, sob o tí­
dou restabelecerem um pouco as minhas forças. É isso que me faz conseille tulo: Two Treatises (London, 1644).
na opinião dos médicos de beber, daqui a um mês, as águas de Spa (que 11.i Ill Elizabeth refere-se a Thomas White (1593-1676), também chamado Albius e Anglus, sa­
zem até aqui sem se deteriorarem), tendo descoberto, por experiência, que e - cerdote católico, teólogo, filósofo natural, teórico político, fundador de um movimento
pulsam as obstruções. Mas não as tomarei antes de saber a vossa opinião, vi da Contra-reforma em Inglaterra, o que lhe trouxe dissabores. Foi Presidente do English
College de Lisboa em 1631-1633. É autor de De Mando Dialogi Tres (Paris, 1642), que foi
to que tendes a bondade de me querer curar o corpo com a alma. objecto de uma crítica violenta de Thomas Hobbes.
60 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 61

A vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos,

Elisabeth

Ao reler o que vos envio a meu próprio respeito, apercebo-me de que esqueci
uma das vossas máximas, que é a de não pôr nada por escrito que possa ser
mal interpretado por leitores pouco caridosos. Mas confio tanto no cuidado
do senhor Pollot que sei que a minha carta vos será bem entregue, e na vossa Descartes a Elisabeth
discrição, que a furtareis, pelo fogo, da eventualidade de cair em más mãos. Egmond, Maio ou Junho de 1645

Senhora,

Não pude 1er a carta que Vossa Alteza me deu a honra de me escrever sem um
11".sentimento extremo por ver que uma virtude tão rara e tão completa não é
ai <impanhada pela saúde nem pelas prosperidades que merece, e concebo fa-
I ilmcnte a multidão dos desprazeres que se lhe apresentam continuamente e
que são tanto mais difíceis de ultrapassar quanto são frequentemente de tal
m.iI tireza que a verdadeira razão não manda que nos oponhamos directamen-
li' .i eles e que procuremos expulsá-los. São inimigos domésticos que, ao ser­
mos forçados a relacionar-nos com eles, ficamos sempre obrigados a acaute-
I h nos a fim de impedir que eles prejudiquem; e só vejo um único remédio
I sim isso, que é desviar deles o mais que for possível a imaginação e os senti-

los (>empregar apenas o entendimento a considerá-los, quando a prudência


.i isso nos obriga.
l’arece-me que se pode observar aqui facilmente a diferença que existe
• nl ie o entendimento e a imaginação ou os sentidos (le sens); pois ela é tal que
• leio que uma pessoa que tivesse todos os motivos para estar contente, mas
que assistisse continuamente à representação de tragédias cujos actos fossem
II " los funestos e que só se ocupasse a considerar objectos de tristeza e de pie-
'I "le, mesmo que soubesse serem fictícios (feints) e fabulosos, de tal modo
III" 'ió fizessem sair lágrimas dos olhos e comover a imaginação, sem afectar
" 1iUt>ndimento, creio, digo, que isso bastaria para acostumar o seu coração a
•'iilmir-se e a suspirar; ficando, em seguida, a circulação do sangue atrasada
» I•*11In, as pa rtes mais grosseiras deste sangue, unindo-se umas às outras, po-
IU'11>im facilmente obstruir-lhe o baço, embaraçando-se e detendo-se nos seus
I " " i >w;e as mais subtis, retendo a sua agitação, poderiam alterar-lhe o pulmão
i' <.iimar-lhe uma tosse, que, com o tempo, seria muito de temer. E, pelo con­
i' iili », uma pessoa que tivesse uma infinidade de verdadeiros motivos dedes-
I •■• *u, mas que se aplicasse com tanto cuidado a desviar deles a imaginação
62 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 63

que nunca pensasse neles senão quando a necessidade das ocupações a força ii las que me enviam pelo mensageiro de Alkmar nunca deixam de me ser en-
va a tal, e que empregasse todo o seu tempo restante a considerar apenas os 111 gués e, como não há nada no mundo que deseje com tanta paixão como poder
objectos que lhe podiam dar contentamento e alegria, para além de que isso ,'t vir Vossa Alteza, também não há nada que me possa tomar mais feliz do que
lhe seria imensamente útil para julgar de modo mais saudável as coisas quo lo a honra de receber as suas ordens. Sou, etc.
lhe interessavam, porque as consideraria sem paixão, não duvido de que, poi
si só, isso seria capaz de lhe devolver a saúde, ainda que o baço e os pulmões
estivessem já muito perturbados pelo mau temperamento do sangue que a
tristeza causa. Principalmente, se também recorresse aos remédios da mediei
na para tratar esta parte do sangue que provoca obstruções; para o que julgo
que as águas de Spa são muito apropriadas, sobretudo se Vossa Alteza obser
var, ao tomá-las, o que os médicos costumam recomendar, a saber, que so
deve libertar completamente o espírito de todo o tipo de pensamentos tristes,
e até mesmo de todo o tipo de meditações sérias a respeito das ciências, o
preocupar-se apenas em imitar os que, ao contemplar a verdura dum bosque,
as cores duma flor, o voo dum pássaro e coisas que não exigem nenhum,i
atenção, se persuadem que não estão a pensar em nada. O que não é perdei
tempo, mas empregá-lo bem; pois, pode, contudo, ficar-se satisfeito com ,i
esperança de, por este meio, recuperar uma saúde perfeita, que é o fund.i
mento de todos os outros bens que se podem ter nesta vida.
Sei bem que não escrevo aqui nada que Vossa Alteza não saiba melhoi
do que eu, e que não é tanto a teoria, mas a prática, que é difícil nisto; todavi.i,
a benevolência extrema, que teve em testemunhar que não lhe era desagradá
vel ouvir os meus sentimentos, leva-me a tomar a liberdade de os escrever tais
como são e concede-me ainda a de acrescentar aqui que experimentei em mim
mesmo, que um mal quase semelhante e mesmo mais perigoso se curou com
o remédio de que acabei de falar. Pois, tendo nascido duma mãe que morreu
poucos dias após o meu nascimento com uma doença nos pulmões causada
por alguns desprazeres, eu herdara dela uma tosse seca e uma cor pálida, que
conservei até à idade de mais de vinte anos e que fazia com que todos os méd i
cos que me viram antes desse tempo, me condenassem a morrer jovem
Mas creio que a inclinação que sempre tive para olhar as coisas que se apre
sentavam pelo ângulo que mas podia tornar mais agradáveis e para fazer com
que o meu contentamento principal dependesse apenas de mim, é a causa dr
esta indisposição, que me era como que natural, se ter extinguido progressi
vamente por completo.
Estou muito grato a Vossa Alteza porque lhe aprouve comunicar-me o seu
sentimento acerca do livro do Cavaleiro de Igby que não serei capaz de 1er eu
quanto não for traduzido para latim; o que o senhor Jonson, que esteve ontem
aqui, me disse que alguns querem fazer. Disse-me também que eu podia enviai
as minhas cartas para Vossa Alteza pelos mensageiros ordinários, o que não oi i
sei fazer sem ele e tinha adiado escrever esta, porque estava à espera que um
amigo meu fosse a Haia para vo-la dar. Lamento infinitamente a ausência do se
nhor Pollot, porque, por ele, podia saber o estado da vossa disposição; mas as
64 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 65

i lígmond, para aí aprender as verdades que extraís no vosso novo jardim.


No entanto, consolo-me com a liberdade que me concedestes de, de vez em
<|iiando, vos pedir notícias delas, na qualidade de
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos,

Elisabeth

Elisabeth a Descartes "tube com muita alegria que a Academia de Groningen vos fez justiça.
Haia, 22 de Junho de 1645

Senhor Descartes,

Mesmo que não me instruíssem, as vossas cartas servir-me-iam sempre de


antídoto para a melancolia, desviando o meu espírito dos objectos desagr.i
dáveis, que lhe aparecem todos os dias, para o fazer contemplar a felicidade
que possuo na amizade duma pessoa com o vosso mérito, a cujo conselho
posso confiar a orientação da minha vida. Se, além disso, a pudesse confor
mar aos vossos últimos preceitos, não há dúvida de que me curaria pront.i
mente das doenças do corpo e das fraquezas do espírito. Mas confesso que
tenho dificuldade em afastar dos sentidos e da imaginação coisas que aí são
continuamente representadas por discurso e por cartas, que não poderia evi
tar sem pecar contra o meu dever. Considero que, ao apagar da ideia dum tr.i
balho tudo o que o torna aborrecido (que não creio ser-me representado uni
camente pela imaginação), eu julgaria a seu respeito de um modo igualmen 11■
saudável e acharia logo os remédios como faço com a afeição que lhe presto
Mas nunca o soube fazer, senão depois de a paixão ter desempenhado o sou
papel. Há algo de surpreendente nas desventuras, mesmo nas previstas, de
que só sou senhora depois dum certo tempo, em que o meu corpo fica tão poi
turbado que, para o recompor, preciso de vários meses, que não passam sem
algum novo motivo de perturbação. Para além de ser forçada a governar o
meu espírito com cuidado, para lhe dar objectos agradáveis, a mínima indo
lência (fainéantise) fá-lo voltar aos motivos que tem para se afligir e observo
que, se a não usar enquanto tomo as águas de Spa, já não se torna melancólict >
Se conseguisse aproveitar, como fazeis, tudo o que se apresenta aos meus sen
tidos, divertir-me-ia, sem me contristar. É nesta altura que sinto o incómodo
de ser um pouco razoável. Pois, se o não fosse, acharia prazeres comuns com
aqueles entre os quais tenho de viver, para tomar esta medicina com proveito
E, se estivesse no ponto em que estais, curar-me-ia como fizestes. Com isso, a
maldição do meu sexo priva-me do contentamento que me dnrhuimn viagem
r 66 ( 'ORRESPONDÊNC1A ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 67
MEDICINA DOS AFECTOS

in mna chamar absolutamente bem, também não há nenhum mal do qual, ten-
Ilo bom senso, se não possa retirar algum proveito.
I’rocurei até aqui induzir Vossa Alteza a ser negligente, pensando que as
tu tipações demasiado sérias enfraquecem o corpo ao cansarem o espírito;
. . m i não queria com isso dissuadi-la dos cuidados que são necessários para
itenV iar o seu pensamento dos objectos que podem entristecê-la; e não duvido
de que os divertimentos de estudo, que seriam muito penosos a outros, lhe
Ihinn.im, por vezes, servir de descanso. Considerar-me-ia extremamente feliz,
Descartes a Elisabeth I» pudesse contribuir para lhos tornar mais fáceis; e tenho um desejo muito
Egmond, Junho de 1645 ina lor de ir a Haia aprender quais as virtudes das águas de Spa do que conhe-
■i<i aqui as das plantas do meu jardim, e também muito maior do que o cuida-
, In que tenho pelo que se passa em Groningen ou em Utreque, para minha
aniagem ou desvantagem. Isso obrigar-me-á a seguir esta carta dentro de
, piatro ou cinco dias e serei todos os dias da minha vida, etc.
Senhora,

Suplico muito humildemente a Vossa Alteza que me perdoe por não conse
guir lamentar a sua indisposição, quando tenho a honra de receber carl.r
suas. Pois, noto sempre nelas pensamentos tão claros e raciocínios tão firme
que não me é possível persuadir-me de que um espírito capaz de os concebei
esteja alojado num corpo fraco e doente. Como quer que seja, o conhecimento
que Vossa Alteza testemunha possuir do mal e dos remédios que o podem
vencer certifica-me de que não lhe faltará possuir também a sagacidade que i
necessária para os aplicar.
Sei bem que é quase impossível resistir às primeiras perturbações que,r
novas infelicidades excitam em nós e, inclusivamente, que são, por via de re
gra, os melhores espíritos aqueles cujas paixões são mais violentas e agem
com mais força sobre os seus corpos; mas parece-me que no dia seguin li­
quando o sono acalmou a emoção que acontece nõ sangue em tais ocorrên
cias, pode começar-se a restabelecer o espírito e a tranquilizá-lo; o que se fu.
aplicando-se a considerar todas as vantagens que se podem retirar da coisa
que, no dia anterior, se tinha tomado por uma grande infelicidade, e a desvim
a atenção dos males que aí se tinham imaginado. Pois não há, segundo o juí/i >
do povo, acontecimentos tão funestos nem tão absolutamente maus que uni.i
pessoa de espírito os não possa olhar por um ângulo que fará com que lhe pn
reçam favoráveis. E Vossa Alteza pode tirar esta consolação geral das desgra
ças da fortuna: talvez elas tenham contribuído muito para a fazer cultivar o
seu espírito tanto quanto o fez; é um bem que deve estimar mais do que um
império. Muitas vezes, as grandes prosperidades cegam e embriagam de t.il
modo que possuem os que as têm em vez de serem possuídas por eles, e em
bora isso não aconteça aos espíritos da têmpera do vosso, elas fornecem-lhes
sempre menos ocasiões para se exercerem do que o fazem as adversidades
E creio que, como não há nenhum bem no mundo, salvo mbom mmun «mn ....
68 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 69

leleito do meu espírito que não consegue produzir nada por si mesmo, que
. 11 |i iIgue merecer ser lido por Vossa Alteza e, para que as minhas cartas não
n|um completamente vazias e inúteis, proponho-me, doravante, enchê-las
Mini as considerações que extrairei da leitura de um certo livro, a saber, da­
quele que Séneca escreveu de vita beata,11se não preferirdes escolher um outro
<n ne este intento vos for desagradável. Mas, se eu vir que o aprovais (como
i ipero) e, principalmente, se vos aprouver conceder tão grande favor quanto
■Mle me confiardes as vossas observações sobre o mesmo livro, além de apro-
Descartes a Elisabeth I citarem muito para me instruir, proporcionar-me-ão uma ocasião para tor­
Egmond, 21 de Julho de 1645 nai' as minhas mais exactas, e cultivá-las-ei com tanto mais cuidado quanto
me parecer que esta conversa vos será mais agradável. Pois não há nada no
11111 nd o que deseje com mais zelo do que testemunhar, em tudo quanto puder,
quo sou,
Senhora,
Senhora, O muito humilde e obediente servidor de Vossa Alteza,

O clima foi sempre tão inconstante, desde que não tive a honra de ver Vossa Descartes
Alteza, e houve dias tão frios para a estação que muitas vezes me inquietei o
temi que as águas de Spa não fossem tão saudáveis nem tão úteis como seriam
num tempo mais sereno; e porque me concedestes a honra de testemunhar
que as minhas cartas vos poderiam servir para alguma recreação, enquanto
os médicos vos recomendam que não ocupeis o espírito com nada que o inco­
mode, seria mau administrador do favor que vos aprouve conceder-me ao
permitirdes que vos escrevesse, se deixasse de aproveitar as primeiras oca­
siões para o fazer.
Imagino que a maior parte das cartas, que recebeis de outros locais, vos
dão emoção e, mesmo antes de as lerdes, receais encontrar nelas notícias que-
vos desagradem, devido a que a maldade da fortuna vos acostumou, há mui­
to, a receber tais notícias com frequência; mas quanto às que vêm daqui, po­
deis estar segura pelo menos de que, se não vos derem nenhum motivo de ale­
gria, também não vos darão nenhum motivo de tristeza, e de que podereis
abri-las a qualquer hora sem temer que elas perturbem a digestão das águas
que estais a tomar. Pois, não sabendo nada, neste deserto, do que se passa no
resto do mundo e não tendo pensamentos mais frequentes do que aqueles
que, representando-me as virtudes de Vossa Alteza, me fazem desejar vê-la
tão feliz e contente quanto merece, não tenho mais nada para vos propor a não
ser os meios que a filosofia nos ensina, a fim de alcançar esta felicidade supre­
ma, que as almas vulgares esperam em vão da fortuna e que só poderíamos
receber de nós mesmos.
Um desses meios, que me parece dos mais úteis, consiste em examinar o
que os antigos escreveram e procurar ultrapassá-los acrescentando algo aos
seus preceitos, porquanto, assim, podemos tornar entes preceito» perfeita­
mente nossos e dispor-nos a praticá-los. É por isso une, a lim de remediar n A vida fell/,.
70 MEDICINA DOS AFECTOS ( ORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 71

I hi*iíáo dependem, como as honras, as riquezas e a saúde. Com efeito, é certo


|i io um homem bem nascido, que não é doente, a quem não faita nada e que,
mi isso, é tão sábio e tão virtuoso como um outro que é pobre, doente e sem
l" '.i iioarência, node eozar um contentamento mais perfeito do eue este. Mo
t ' X «-/ X X

uiBnto, tal como um vaso pequeno pode estar tão cheio como um grande,
'tutIn que contenha menos líquido, também, tomando o contentamento de
nIn um pela plenitude e a realização dos seus desejos regulados segundo a
• no, não duvido de que os mais pobres e os mais desfavorecidos pela fortu-
Descartes a Elisabeth II i ou pela natureza possam estar inteiramente contentes e satisfeitos, tanto
Egmond, 4 de Agosto de 1645 i' inu lo os outros, ainda que não gozem de tantos bens. E é apenas deste tipo
■I' i oiitentamento que se trata aqui; porquanto, já que o outro tipo de conten-
1'tuento não está ao nosso alcance, seria supérfluo procurá-lo.
( )ra, parece-me que cada um pode ficar contente por si mesmo e sem es-
I i i »ir nada de fora, contanto que observe apenas três coisas, às quais se refe-
Senhora, • ni ns três regras de moral que apresentei no Discurso do Método.
A primeira é que procure sempre utilizar o melhor possível o seu espíri-
Quando escolhi o livro de Séneca, De Vita Beata, para o propor a Vossa Alte/a 1 • imi a conhecer o que deve ou não fazer em todas as ocorrências da vida.
como um tema de conversa que lhe poderia ser agradável, olhei somente à n A segunda, que tome uma resolução firme e constante de fazer tudo o
putação do autor e à dignidaae da matéria, sem pensar na maneira como .i •|IU' n razão lhe aconselhar, sem que as suas paixões ou apetites o afastem dis-
trata, a qual, tendo-a considerado posteriormente, não acho suficientemenlr " e é a firmeza desta resolução que julgo dever ser tomada como sendo a vir-
exacta para merecer ser seguida. Mas, a fim de que Vossa Alteza possa julg.ii " hIr, apesar de eu não saber se alguém alguma vez a explicou assim; mas di-
mais facilmente a esse respeito, procurarei explicaraqui de que modo me [>.i 1111i'am-na em várias espécies a que foram dados diversos nomes, por causa
rece que esta matéria deveria ter sido tratada por um filósofo como ele, qtir •I' i *i iliversos objectos aos quais se estende.
sem estar esclarecido pela fé, só tinha a razão natural como guia. A terceira, que considere que, enquanto proceder assim, tanto quanto
Ele diz muito bem, no início, que vivere omnes beate volunt, sed ad pervi i ' hIt*, segundo a razão, todos os bens, que não possui, estão totalmente fora
dendum quid sit quod beatam vitam efficiat, caligant.12Mas é preciso saber o qui•< ...... ti alcance e que, deste modo, se habitue a não os desejar; pois só o desejo
vivere beate,1213diria em francês vivre heureusement, se não houvesse uma dil< i lamentação ou o arrependimento é que nos podem impedir de estar con-
rença entre a boa sorte e a beatitude, pois a boa sorte só depende das coisa', 1 iîles: mas, se fizermos sempre o que a nossa razão nos dita, nunca teremos
que estão fora de nós, daí que sejam julgados mais felizes do que sábios aqui ■ ne nlui m motivo para nos arrependermos, ainda que os acontecimentos nos
les a quem aconteceu algum bem sem que o tivessem procurado, enquanlo ,i I n am ver, depois, que nos enganámos, porque não foi por culpa nossa. E o
beatitude consiste, segundo me parece, num perfeito contentamento do espl II ie Iaz com que não desejemos ter, por exemplo, mais braços ou mais línguas
rito e numa satisfação interior, que não têm por via de regra os que são mai ■I' •*|iu* temos, mas que desejemos muito ter mais saúde ou mais riquezas é so-
favorecidos pela fortuna e que os sábios adquirem sem ela. Assim, vivere beaIr 111e o facto de imaginarmos que estas coisas poderiam ser obtidas pela nos-
viver em beatitude não é senão ter o espírito perfeitamente contente r I II nid uta ou que se devem à nossa natureza e que não se passa o mesmo com
satisfeito. i ia 11ras coisas: opinião de que nos podemos libertar considerando que, visto
Considerando, depois disto, o que é quod beatam vitam efficiat,14 isto i 111 ms seguido sempre o conselho da nossa razão, não omitimos nada do que
quais as coisas que nos podem dar esse supremo contentamento, observo qtu Ia va em nosso poder, e que as doenças e os infortúnios não são menos natu-
são de dois tipos: as que dependem de nós, como a virtude e a sabedoria, c .r II i ao liomern do que a prosperidade e a saúde.
I )e resto, nem todos os tipos de desejo são incompatíveis com a beatitu-
I' 11i.is tão-só aqueles que são acompanhados de impaciência e tristeza. Tam-
12 Todos querem viver duma maneira feliz, mas quando se trata de ver claramente o qur • 1" ui não é necessário que a nossa razão se não engane; basta que a nossa cons-
que faz a vida feliz, ficam nas trevas.
13 Viver duma maneira feliz. • li’nrlii nos testemunhe que nunca nos faltou resolução e virtude para execu-
14 O q u e t o r n a a v id a fe liz . Irii iodas as coisas que julgámos serem as melhores e, assim, a mera virtude é
72 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 73

suficiente para nos tornar contentes nesta vida. Mas, não obstante, porque,
quando ela não é esclarecida pelo entendimento, pode ser falsa, isto é, a von
tade e a resolução de agir bem podem levar-nos a coisas más, quando as julga
mos boas, o contentamento que daí vem não é sólido; e porque se opõe, por
via de regra, esta virtude aos prazeres, aos apetites e às paixões, ela é muito
difícil de pôr em prática, ao passo que, ao fornecer um verdadeiro conheci
mento do bem, o uso recto da razão impede que a virtude seja falsa e torna, in
elusive, o seu uso muito fácil ao associar a virtude aos prazeres lícitos e, ao ro
velar-nos a condição da nossa natureza, limita de tal modo os nossos desejos Elisabeth a Descartes
que é preciso reconhecer que a maior felicidade do homem depende do uso Haia, 16 de Agosto de 1645
recto da razão e que, por conseguinte, o estudo que serve para o adquirir é a
ocupação mais útil que se pode ter, como é também sem dúvida a mais agra
dável e a mais doce.
Daí que me pareça que Séneca deveria ter-nos ensinado todas as verda
des principais, cujo conhecimento se requer para facilitar a prática da virtude Senhor Descartes,
e regular os nossos desejos e as nossas paixões e, assim, gozar da beatitude na
tural; o que teria feito do seu livro o melhor e o mais útil que um Filósofo pa Ao examinar o livro que me recomendastes, encontrei uma porção de belos
gão poderia ter escrito. Trata-se, contudo, apenas da minha opinião que sub períodos e de sentenças bem imaginadas para me dar assunto para uma
meto à apreciação de Vossa Alteza; e se me fizer tão grande favor como o de meditação agradável, mas não para me instruir acerca do assunto de que
me advertir das minhas falhas, ficar-lhe-ei imensamente grato e, ao corri I rata, porque elas não têm método e o autor não se limita a seguir aquele
gir-me, testemunharei que sou. Senhora, que se propusera. Com efeito, em vez de mostrar o caminho mais curto
O muito humilde e obediente servidor de Vossa Alteza, para a beatitude, ele contenta-se em mostrar que as suas riquezas e o seu
luxo de modo nenhum o incapacitam de a alcançar. O que me obrigou a es­
Descartes crever-vos para que não crêsseis que sou da vossa opinião por preconceito
ou por indolência. Também não vos peço que continueis a corrigir Séneca,
I>orque o vosso modo de raciocinar é mais extraordinário, mas porque ele é
0 mais natural que encontrei e parece não me ensinar nada de novo, senão
que posso tirar do meu espírito conhecimentos de que ainda não me
tipercebi.
E é assim que ainda me não conseguiria desenvencilhar da dúvida, se se
1iode chegar à beatitude de que falais sem a assistência daquilo que não de­
pende absolutamente da vontade, porque há doenças que tiram completa­
mente o poder de raciocinar e, por conseguinte, o de gozar duma satisfação
razoável, e há outras que diminuem a força e impedem de seguir as máximas
que o bom senso terá forjado e que tornam o homem mais moderado susceptí­
vel de se deixar levar pelas suas paixões e menos capaz de se libertar dos aci­
dentes da fortuna, que requerem uma resolução pronta. Quando Epicuro se
a fadigava, nos seus acessos de cálculos renais, para assegurar aos seus ami­
gos que não sentia dor alguma, em vez de chorar como o vulgo, levava a vida
ile filósofo, não a de príncipe, de capitão ou de cortesão, e sabia que não rece-
Iteria nada de fora para lhe fazer esquecer o seu papel e deixar de o cultivar se­
gundo as regras da sua filosofia. E é nestas ocasiões que o arrependimento me
parece inevitável, sem que o conhecimento de que errar é tão natural ao
74 MEDICINA DOS AFECTOS I I IKRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 75

homem como estar doente, nos possa defender disso. Pois, também não s<•m
nora que era possível livrar-se de cada falta particular.
Mas estou certa de que me esclarecereis estas dificuldades, e muitas ihi
tras, de que não me apercebo agora, quando me ensinardes as verdades <|n
devem ser conhecidas a fim de facilitar a prática da virtude. Por consegu ini
peço-vos, não abandoneis o intento de me ajudar com os yossos preceili >
acreditai que os estimo tanto quanto merecem.
Há oito dias que o mau humor dum irmão doente me impede de vos <.<
zer este pedido, retendo-me sempre junto dele para o obrigar, median le I )escartes a Elisabeth
complacência que tem para comigo, a submeter-se às regras dos médicos, un Iigmond, 18 de Agosto de 1645
para lhe testemunhar a que tenho para com ele, procurando distraí-lo já i | im
ele se persuade de que sou capaz de o fazer. Desejo ser capaz de vos garanlii
que serei durante toda a vida. Senhor Descartes,
A vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.
Senhora,
Elisabeth
pesar de não saber se as minhas últimas cartas foram entregues a Vossa
Ile/,a e de não poder escrever nada — sobre o assunto que tinha tomado
pai a Ier a honra de vos falar—que não deva pensar que sabeis melhor do que
■ii, não deixo, porém, de continuar, na convicção de que as minhas cartas vos
iiiVi serão mais importunas do que os livros que estão na vossa biblioteca;
puis, visto que não contêm nenhumas novidades que vos interesse saber
pu mtamente, não vos convirá nada lê-las nas horas em que tiverdes alguns
d.i / eres, e considerarei bem empregue tempo que levo a escrevê-las, se lhes
■Hs ties tão-só o tempo que quiserdes perder.
Ilisse anteriormente o que me parecia que Séneca deveria ter tratado no
i*Mi livro; vou examinar agora, o que ele trata. Em geral, noto aí apenas três
■' iIníis: a primeira é que ele procura explicar em que consiste o soberano bem e
■la diversas definições dele; a segunda, que disputa contra a opinião de Epi-
■uro; e a terceira, que responde aos que objectam aos filósofos que eles não vi-
I•m segundo as regras que prescrevem. Mas, para ver, mais particularmente,
•i miineira como ele trata estas coisas, deter-me-ei um pouco em cada capítulo.
No primeiro, retoma os que seguem o costume e o exemplo em vez da
iii/áo. Nunquam de vita judicatur, semper creditur,15diz ele. Contudo, acha bem
■|i H' se peça conselho àqueles que se crê serem os mais sábios; mas quer tam­
bém que se use o seu próprio juízo para examinar as opiniões deles. Nisto,
um francamente do seu parecer; pois, ainda que muitos não sejam capazes
de encontrar por si mesmos o caminho recto, todavia, há poucos que não
I 'i Issam reconhecê-lo suficientemente, quando lhes é mostrado claramente
por alguém; seja como for, temos motivo para estarmos satisfeitos na nossa

I'1 Nunca se julga acerca da vida, lempre se crê.


76 MEDICINA DOS AFECTIIS • IIIIIISI'ONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 77

consciência e seguros de que as nossas opiniões sobre a moral são as moll hu. M u I ii'inque me parece ter sido melhor sucedido é no quinto capítulo onde diz
que se possa ter, quando, em vez de nos termos deixado conduzir cega mi m HM1' alus est qui nec cupit nec timet beneficio rationis e que beata vita est in recto certo
pelo exemplo, tivermos o cuidado de procurar o conselho dos mais háhol ut Imllrio stabilita.22Mas, enquanto não ensina as razões pelas quais não deve­
utilizado todas as forças do nosso espírito a examinar o que devíamos siyiiu. ni' 11 mer nem desejar nada, tudo isso nos ajuda muito pouco.
Mas, enquanto Séneca se aplica aqui a ornamentar a sua elocução, não 6 sem i Justes mesmos capítulos, ele começa a argumentar contra aqueles que
pre suficientemente exacto na expressão do seu pensamento, como, ao dm i ni consistir a beatitude na volúpia, e continua nos seguintes. É por isso
Sanabimur, si modo separemur a coetu,16parece ensinar que basta ser exti.n .' |«m 1111(-s de os examinar, direi aqui o meu sentimento acerca desta questão.
gante para ser sábio, o que não é, porém, a sua intenção. líin primeiro lugar, noto que há diferença entre a beatitude, o soberano
No segundo capítulo, quase se limita a repetir, noutros termos, o q m Mu »' o fim último ou o fim para o qual devem tender as nossas acções: com
disse no primeiro; e acrescenta apenas que o que comummente se julg.i ■■i i Ho, a beatitude não é o soberano bem, mas pressupõe-no e é o contenta-
bem não o é. iin 1111 (ni a satisfação de espírito que vem do facto de o possuirmos. Mas, pelo
Em seguida, no terceiro, depois de ter utilizado muitas palavras sti| " i .... las ilossas acções, pode-se entender ambas as coisas; pois o soberano bem
fluas, diz, finalmente, a sua opinião sobre o soberano bem: a saber, que rei un I». ui dúvida a coisa que devemos propor-nos como alvo em todas as nossas
naturae assentitur e que ad illius legem exemplumqueformari sapientia est1718c <11< M>l,ih"i e o contentamento de espírito que daí nos vem, sendo o móbil que faz
beata vita est conveniens naturae suae™ Todas estas explicações me parei i h "ui que o busquemos, é também, de direito, chamado nosso fim.
muito obscuras; pois sem dúvida que, por natureza não pretende signifie. 11 . Noto, além disso, que a palavra volúpia foi tomada por Epicuro num
nossas inclinações naturais, já que elas nos levam por via de regra a seguli ui Ido diferente daquele dos que argumentaram contra ele. Pois todos os
volúpia, contra a qual ele argumenta; mas a continuação do seu discurso lei •• ii . adversários restringiram a significação desta palavra aos prazeres dos
a pensar que, por rerum naturam,19ele entende a ordem estabelecida por Deu • nl ii los, ao passo que ele a alargou a todos os contentamentos do espírito,
em todas as coisas que existem no mundo e que, considerando esta orden t n> ■iiio se pode julgar facilmente pelo que Séneca e alguns outros escreveram a
falível e independente da nossa vontade, diz: rerum naturae assentiri et ad Him le respeito.
legem exemplumque formari sapientia est,20 ou seja, é sabedoria aquiescer á ih ( )ra, entre os filósofos pagãos, há três opiniões principais no que respei-
dem das coisas e fazer aquilo para que julgamos ter nascido, ou, para fai.h I i .to si iberano bem e ao fim das nossas acções, a saber: a de Epicuro, que disse
como cristão, é sabedoria submeter-se à vontade de Deus e segui-la em toi lu |iu em a volúpia; a de Zenão, que pretendeu que fosse a virtude; e a de Aris-
as nossas acções; e que beata vita est conveniens naturae suae, isto é, que a bai I I I I. les, que o compôs de todas as perfeições, tanto do corpo como do espírito,
tude consiste em seguir assim a ordem do mundo e levar a bem todas as cois, i i 1,1111rês opiniões podem, segundo me parece, ser aceites como verdadeiras
que nos acontecem. O que não explica quase nada e não se vê bem a ligaç.n ■imediadas entre si, posto que sejam favoravelmente interpretadas.
com o que acrescenta logo a seguir, que esta beatitude não pode acontecer ui Hfectivamente, tendo considerado o soberano bem de toda a natureza
sana mens est,21etc., a não ser que entenda também que secundum naturam vive 111mnina em geral, isto é, aquele que o mais perfeito de todos os homens pode
re é viver seguindo a verdadeira razão. II i, Aristóteles teve razão ao compô-lo com todas as perfeições de que a natu-
No quarto e quinto capítulo, dá algumas outras definições do sobem mi .. i humana é capaz; mas isso não serve para nosso uso.
bem, que têm todas alguma relação com o sentido da primeira, mas nenhum.i Pelo contrário, Zenão considerou aquele bem que cada homem em par-
delas o explica suficientemente; e revelam, pela sua diversidade, que Séneca n.n i I ii utar pode possuir; pelo que teve toda a razão ao dizer que ele consiste ape-
entendeu claramente o que queria dizer, pois, quanto melhor se concebe uma 11,r i na virtude, porque, entre os bens que podemos ter, só ela depende inteira-
coisa, tanto mais se está determinado a exprimi-lo de uma única manei m Iiumile do nosso livre arbítrio. Mas representou esta virtude tão severa e tão
1111miga da volúpia, tornando todos os vícios iguais, que me parece que só me-
l.iiu olicos, ou espíritos completamente desligados do corpo, é que puderam
16 Curar-nos-emos, se de algum modo nos separarmos da multidão. >n'i' seus seguidores.
17 A sabedoria consiste em conformar-se à sua lei e ao seu exemplo. Por fim, Epicuro não se enganou ao dizer que a volúpia em geral, ou
18 A vida feliz ajusta-se à sua natureza.
1'jn, o contentamento do espírito é aquilo em que consiste a beatitude e o
19 A natureza das coisas.
20 A sabedoria consiste em assentir à natureza das coisas e conformar-se il sua lei e ao seu
exemplo.
21 Se o espírito não estiver são. I I
A vida feliz encontra a estabilidade na rectidBo de um juízo certo.
78 MEDICINA DOS AFECTO'.
i IMHÜSPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 79

motivo ou o fim para o qual tendem as nossas acções; pois, ainda que o nn >
conhecimento do nosso dever nos pudesse obrigar a fazer boas acções, Imh
contudo, não nos faria gozar de nenhuma beatitude, se daí não nos viesst■in
nhum prazer. Mas, porque se atribui muitas vezes o nome de volúpia a
prazeres, que são acompanhados ou seguidos de inquietação, de tédios oi i.l.
arrependimentos, houve quem julgasse que essa opinião de Epicuro ensin.i
o vício; e, de facto, ela não ensina a virtude. Mas como, quando há algures nn
prémio para atirar ao alvo, isso gera vontade de atirar àqueles a quem se num
tra o prémio, mas eles não podem ganhá-lo se não virem o alvo, e aqueles i|in l linabeth a Descartes
vêem o alvo não são levados a atirar, se não souberem que há um prémio j *.«i I Irtlit, Agosto de 1645
ganhar: do mesmo modo a virtude, que é o alvo, não se faz desejar mut!'
quando é vista completamente só, e o contentamento, que é o prémio, ii.s
pode ser alcançado se não for perseguido.
Daí que eu creia poder concluir que a beatitude consiste unicamen le m
contentamento do espírito, ou seja, no contentamento em geral; pois, embt >t Senhor Descartes,
haja contentamentos que dependem do corpo e outros que não dependeu
dele, não há nenhum a não ser no espírito: ora, para ter um contentamenti) Nil " " >que já tereis visto, na minha última carta do dia 16, que a vossa do dia 4
lido, é preciso seguir a virtude, isto é, ter uma vontade firme e constante dei,' mi i "l entregue. E não preciso de acrescentar que ela me forneceu mais luz,
zer tudo o que julgarmos ser o melhor e de aplicar toda a força do nosso en Ie11 <nI 'i e 11 assunto em causa, do que tudo o que pude 1er ou meditar a esse respei-
dimento para julgar bem a seu respeito. Guardo para uma outra ocasião c<>n ii i i i mIteceis bem o que fazeis, aquilo de que sou capaz, e examinastes muito
siderar o que Séneca escreveu sobre isto; pois a minha carta já vai demasiml lu ni o que fizeram os outros para poderdes duvidar deles, embora, por um
longa e só me resta o espaço necessário para escrever que sou. Senhora, ■- ■ iso de generosidade, queirais ignorar a extrema obrigação que tenho
O muito humilde e obediente servidor de Vossa Alteza, h i convosco, por me haverdes concedido uma ocupação tão útil e tão agra-
I . d como a de 1er e considerar as vossas cartas. Sem a última, não teria en-
Descartes nd Ulo tão bem o que Séneca pensa da beatitude, como creio entender agora.
11lluil a obscuridade que se encontra no dito livro, como na maior parte dos
."! ici is, ao modo de se explicar, completamente diferente do nosso, a que as
■inns coisas, que são problemáticas entre nós, podiam passar por hipóte-
' i nIre eles; e a pouca ligação e ordem que ele observa, no intuito de, surpre-
■i. 11■nd o a imaginação, ganhar admiradores em vez de, informando o juízo,
i 11nlia r discípulos; a que Séneca utilizava boas palavras, como os outros utili-
' itin poesias e fábulas, para atrair a juventude a seguir a sua opinião.
I I !n Klo como refuta a de Epicuro parece apoiar este sentimento. Ele confessa
i■ .peito do dito filósofo: quam nos virtuti legem dicimus, eam ille dicit volupta-
I,, nm pouco adiante, diz em nome dos seus seguidores: ego enim nego
e niquant posse jucunde vivere, nisi simul et honeste vivat.24Donde transparece
I 11.imente que davam o nome de volúpia à alegria e satisfação do espírito, a
II n• d e chama consequentia summum bonum.25 E, contudo, no resto do livro.

Aquilo que dizemos que a lei é para a virtude, ele diz que ela é para a volúpia (De Vita Ben­
in, XIII).
! Nego, efectl vnmente, que alguòrn possa viver agradavelmente, se simultaneamente não
v i v e r hllMI'Ml.lim'Iltl' íiliid 1X1.
80 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 81

fala dessa volúpia epicurista mais como sátiro do que como filósofo, como se
ela fosse puramente sensual. Mas quero-lhe muito bem, a partir do momento
em que isso é causa de terdes tido o cuidado de explicar as suas opiniões e re­
conciliar os seus diferendos, melhor do que eles teriam conseguido fazê-lo, e,
mediante isso, eliminar uma poderosa objecção contra a procura deste sobe­
rano bem, que nenhum desses grandes espíritos conseguiu definir, e contra a
autoridade da razão humana, já que ela não esclareceu esses excelentes perso­
nagens no conhecimento do que lhes era mais necessário e mais querido.
Espero que continueis, com o que Séneca disse ou com o que devia dizer, a en­ Descartes a Elisabeth
sinar-me os meios de fortalecer o entendimento, a fim de julgar acerca do me­ Egmond, 1 de Setembro de 1645
lhor em todas as acções da vida, que me parece ser a única dificuldade, pois é
impossível não seguir o bom caminho, quando ele é conhecido. Peço-vos aim
da, que tenhais a franqueza de me dizer se estou a abusar da vossa bondade,
ao reclamar tanto do vosso tempo, para a satisfação da
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos, Senhora, i

Elisabeth Iístando em dúvida ultimamente se Vossa Alteza estava em Haia ou em Rhe-


non, mandei a minha carta por Leyde, e a que me concedestes a honra de me
escrever só me foi entregue após a partida do mensageiro que a trouxera a
AIckmar. O que me impediu de poder testemunhar-vos mais cedo quanto me
•luto honrado pelo facto de o juízo, que fiz do livro que tivestes o incómodo
île 1er, não ser diferente do vosso e de o meu modo de raciocinar vos parecer
Iinstante natural. Estou certo de que, se tivésseis tido tempo para pensar nas
■nisas de que ele trata, tal como eu fiz, não poderia escrever nada que não ti-
VIviseis notado melhor do que eu; mas, porque a idade, o nascimento e as ocu-
Imções de Vossa Alteza não puderam permitir-lhe isso, talvez que o que escre-
\ i*possa servir para vos poupar algum tempo e que mesmo as minhas faltas
. iis dêem ocasião para notar a verdade.
Como, quando falei duma beatitude que depende completamente do
ihisso livre arbítrio e que todos os homens podem adquirir sem nenhuma as-
«hlência exterior, notais muito bem que há doenças que, privando do poder
. li raciocinar, privam também do de gozar de uma satisfação de espírito ra­
il null; e isso ensina-me que o que eu dissera em geral de todos os homens só
»I*•V**entender-se daqueles que têm o livre uso da razão e que, com isso, sa-
I riu o caminho que se deve tomar para chegar a essa beatitude. Com efeito,
inii i há ninguém que não deseje tornar-se feliz, mas muitos não conhecem o
h ii'lo de o fazer; e muitas vezes a indisposição que está no corpo impede que a
•ui lade seja livre. Como também acontece quando dormimos, porquanto o
melhor filósofo (le plus philosophe) do mundo não poderia impedir-se de ter
Miiinn sonhos, quando o seu temperamento o dispõe a isso. Contudo, a expe-
Ih in ia fa/, ver que, se se teve muitas vezes algum pensamento enquanto se
leve ii espírito em liberdade, ele regressa também depois, seja qual for a indis-
25 Conseciuênelns do Soberano Bem (ibid. XV). IMi ii.ao Que o corno tenha: assim, nosso Hljurm wntmam onntmí >«■< /io
82 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 83

apresentam nada de horrível, e, sem dúvida, que é uma grande vantagem seus defeitos e resultam daí os desdéns, lamentações e arrependimentos.
ter-se habituado, há muito tempo, a não ter pensamentos tristes. Mas só pode­ Ii por isso que o verdadeiro ofício da razão consiste em examinar o justo valor
mos responder em absoluto por nós próprios enquanto estamos na posse de ile todos os bens cuja aquisição pareça de algum modo depender da nossa con-
nós mesmos, e é menos perder a vida do que perder o uso da razão; porquan I Iuta, para que nunca deixemos de usar todos os cuidados para tentar alcançar
to, mesmo sem os ensinamentos da fé, a mera filosofia natural leva a nossa aqueles que são, de facto, os mais desejáveis; no que, se a fortuna se opuser aos
alma a esperar um estado mais feliz depois da morte que aquele em que se en nossos desígnios e impedir a sua realização, teremos pelo menos a satisfação de
contra presentemente; e não a leva a temer nada de mais horrível do que estai não termos perdido nada por falta nossa e não deixaremos de gozar de toda a
ligada a um corpo que a priva completamente da liberdade. beatitude natural cuja aquisição tenha estado ao nosso alcance.
No que toca às outras indisposições, que não incomodam nada os senti Assim, por exemplo, a cólera pode, às vezes, excitar em nós desejos de
dos, mas apenas alteram os humores e levam a que nos achemos extraordina vingança tão violentos que nos fará imaginar mais prazer em punir o nosso
riamente inclinados à tristeza ou à cólera ou a alguma outra paixão, sem dúvi inimigo do que em conservar a honra ou a vida e levar-nos-á a expor impru­
da que elas causam dor, mas podem ser ultrapassadas e, inclusive, fornecem à dentemente uma e outra por causa disso. Ao passo que, se a razão examinar
alma matéria para uma satisfação tanto maior quanto mais difíceis foram de i| uai o bem ou a perfeição na qual se funda esse prazer que se retira da vingan­
vencer. E estou convencido de algo de semelhante a respeito de todos os im ça, ela não encontrará nenhuma outra (pelo menos quando essa vingança não
pedimentos exteriores, como o fausto duma ascendência nobre, os galanteios serve para impedir que nos ofendam novamente), a não ser que isso nos faz
da corte, as adversidades da fortuna e também as suas grandes prosperida Imaginar que temos algum tipo de superioridade e alguma vantagem sobre
des, que, por via de regra, impedem mais que se possa desempenhar o papel aquele de quem nos vingamos. O que, muitas vezes, não passa de uma imagi­
de filósofo do que o fazem as suas desgraças. Pois, quando temos tudo o que nação vã que não merece ser estimada em comparação com a honra ou com a
desejamos, esquecemo-nos de pensar em nós, e quando, depois, a fortuna vida, ou mesmo em comparação com a satisfação que teríamos em dominar­
muda, ficamos tanto mais surpresos quanto priais confiáramos nela. Final mos a cólera, ao abstermo-nos de vingança.
mente, pode dizer-se, de uma maneira geral, qué não há nada que nos possa E acontece algo semelhante em todas as outras paixões; pois não há ne-
privar completamente do meiò dé nos tornarmos felizes, contanto que nada 11huma que não nos represente o bem para que tende, com mais brilho do que
perturbe a nossa razão; e que nem sempre as coisas que nos parecem mais de­ merece, e que não nos faça imaginar, antes de ós possuirmos, prazeres muito
sagradáveis são as que mais prejudicam. maiores do que os achamos depois, quando os possuímos. O que leva a que
Mas, a fim de saber exactamente em que medida é que cada coisa pode t omummente se acuse a volúpia, porque só se utiliza esta palavra para signi­
contribuir para o nosso contentamento, é preciso considerar quais as causa- ficar prazeres que nos enganam muitas vezes com a sua aparência e nos fa-'
que o produzem, e é também um dos principais conhecimentos que podem /em negligenciar outros muito mais sólidos, mas cuja espera não nos toca tan-
servir para facilitar a prática da virtude; porque são virtuosas todas as acções lo, tais como são normalmente aqueles que pertencem apenas ao espírito.
da nossa alma que nos trazem alguma perfeição e todo o nosso contentamen I )igo normalmente; pois nem todos os do espírito são louváveis, porque po­
to consiste meramente no testemunho interior que temos de possuir alguma dem fundar-se em alguma opinião falsa, como o prazer que se tem em maldi-
perfeição. Assim, nunca praticaríamos nenhuma virtude (isto é, fazer o que .1 zer, que se funda meramente no facto de se pensar que se deve ser tanto mais
nossa razão nos persuade que devemos fazer), se daí não recebêssemos satis estimado quanto menos o forem os outros; e também nos podem enganar
fação e prazer. Mas há dois tipos de prazeres: uns que pertencem só ao espíi 1 com a sua aparência, quando os acompanha alguma paixão forte, como se vê
to e outros que pertencem ao homem, ou seja, ao espírito enquanto unido .111 naquele que a ambição dá.
corpo; e estes últimos, apresentando-se confusamente à imaginação, parece n1 Mas a diferença principal que existe entre os prazères do corpo e os do
frequentemente muito maiores do que são, principalmente antes de os pos espírito consiste em que, estando o corpo sujeito a mudança perpétua e de-
suirmos, sendo esta a fonte de todos os males e de todos os erros da vida Ilendendo mesmo a sua conservação e o seu bem-estar dessa mudança, todos
Com efeito, segundo a regra da razão, cada prazer deveria ser medido pela os prazeres que se referem ao corpo duram pouco; pois eles advêm unica­
grandeza da perfeição que o produz e é assim que medimos aqueles cujas e.i mente da aquisição de algo que é útil ao corpo no momento em que os recebe­
usas nos são claramente conhecidas. Mas, muitas vezes, a paixão faz-nos erei mos e, logo que cessa de lhe ser útil, os prazeres cessam também, ao passo que
certas coisas muito melhores e mais desejáveis do que na realidade são; dop< > os da alma podem ser imortais como ela, contanto que tenham um funda­
is, quando nos demos ao trabalho de as adquirir e no entanto perdemos a oe.i mento tão sólido que nem o conhecimento da verdade nem nenhuma falsa
sião de possuir outros bens mais verdadeiros. .1 fruição faz-nos conhecer o-. persuasão destruam.
r

84 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 85

De resto, o verdadeiro uso da nossa razão para a conduta da vida consis


te apenas em examinar e considerar desapaixonadamente o valor de todas as
perfeições, tanto do corpo como do espírito, que podem ser adquiridas pela
nòssa conduta, a fim de que, estando normalmente obrigados a privar-nos do
algumas para ter outras, escolhamos sempre as melhores. E, porque as perfei­
ções do corpo são as menores, pode-se dizer em geral que, sem elas, há possi
bilidade de se ser feliz. Todavia, não sou de opinião que as devamos despre­
zar completamente, nem mesmo que devamos isentar-nos de ter paixões;
basta submetê-las à razão e, quando as tivermos assim domadas, elas serão, Elisabeth a Descartes
por vezes, tanto mais úteis quanto mais inclinadas ao excesso. Nunca terei ne­ Haia, 13 de Setembro de 1645
nhuma mais excessiva do que aquela que me leva ao respeito e à veneração
que vos devo e me faz ser. Senhora,
O muito humilde e obediente servidor de Vossa Alteza,

Descartes Senhor Descartes,


■i
Se a minha consciência ficasse satisfeita com os pretextos que dais à minha ig­
norância, como remédios, devef-vos-ia muito e estaria isenta do arrependi-
11lento por ter empregue tão mal o tempo em que gozei do uso da razão, que
me foi tanto mais longo, do que a outros da minha idade, quanto mais cedo o
11ieu nascimento e a minha fortuna me obrigaram a utilizar o meu juízo, para
,i conduta duma vida assaz penosa e livre das prosperidades que me podiam
IIn pedir de pensar em mim, como da sujeição que me obrigaria a confiar-me à
prudência de uma governanta.
Não são, contudo, essas prosperidades, nem as lisonjas que as acompa­
nham, que julgo serem absolutamente capazes de tirar a força de espírito às
IIImas bem nascidas e de as impedir de aceitar a mudança de fortuna à manei­
r a dos filósofos. Mas convenço-me de que a multidão de acidentes que sur­
preendem as pessoas que governam o público, sem lhes dar tempo para exa-
minar o expediente mais útil, as leva frequentemente (por mais virtuosas que
in‘jam) a praticar acções que causam depois o arrependimento, que dizeis ser
h m dos principais obstáculos à beatitude. É verdade que úm hábito de esti­
mar os bens segundo a sua capacidade de contribuir para o contentamento,
ile medir este contentamento segundo as perfeições que fazem nascer os pra-
/eres e de julgar sem paixão estas perfeições e estes prazeres, salvá-los-á de
imensas falhas. Mas, para estimar assim os bens, é preciso conhecê-los perfei­
ta mente; e para conhecer todos aqueles entre os quais se é obrigado a escolher
numa vida activa, seria necessário possuir uma ciência infinita. Direis que
nílo se deixa de estar satisfeito quando a consciência testemunha que usámos
Iodas as precauções possíveis. Mas isso nunca acontece, quando não se chega
no seu termo. Com efeito, voltamos sempre a pensar em coisas que faltava
considerar. Para medir o contentamento segundo a perfeição que o causa, se­
ria preciso ver claramente o valor de cada uma, se são preferíveis as que só
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 87
86 MEDICINA DOS AFECTOS

nos servem a nós ou as que também nos tornam úteis aos outros. Certos con
tentamentos parecem ser avaliados com excesso por um humor que se in­
quieta por outrem e alguns outros por quem vive unicamente para si mesmo,
E, no entanto, cada um deles apoia a sua inclinação com razões suficiente
mente fortes para a fazer continuar durante toda a vida. O mesmo se passa
com as outras perfeições do corpo e do espírito, que um sentimento tácito, .1
que se não deve chamar paixão, porque ele nasceu connosco, leva a razão a
aprovar. Por favor, dizei-me, portanto, até onde devemos segui-lo (sendo um
dom da natureza) e como corrigi-lo. Descartes a Elisabeth
Egmond, 15 de Setembro de 1645
Queria ainda ver-vos definir as paixões a fim de as conhecer bem; por
quanto aqueles que as denominam perturbações da alma me persuadiriam de
que a sua força consiste apenas em cegar e submeter a razão, se a experiência
me não mostrasse que há algumas que nos levam às acções razoáveis. Mas es
tou certa de que me proporcionareis mais luz, quando explicardes como é que a
força das paixões as torna tanto mais úteis, quando estão sujeitas à razão. Senhora,
Receberei este favor em Riswyck, onde vamos ficar até que esta casa seja
Vossa Alteza notou de um modo tão exacto todas as causas que impediram
limpa, na do príncipe de Orange; mas, para isso, não precisais de mudar o en
dereço das vossas cartas para Séneca de nos expor claramente a sua opinião acerca do soberano bem e des-
li's-vos ao trabalho de 1er o seu livro com tanto cuidado que eu recearia tor-
A vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos,
n.ir-me importuno, se continuasse a examinar aqui ordenadamente todos os
m«us capítulos, e isso fez-me adiar a resposta à dificuldade que vos aprouve
Elisabeth
Iimpor-me, acerca dos meios de se fortalecer o entendimento para discernir o
qué é melhor em todas as acções da vida. É por isso que, sem me deter agora a
ni 'guir Séneca, procurarei tão-só explicar a minha opinião sobre esta matéria.
Ao que me parece, só pode haver duas coisas que sejam necessárias para se
■star sempre disposto a julgar bem: uma é o conhecimento da verdade e a outra o
Ilábito que leva a que nos lembremos e aquiesçamos a esse conhecimento, todas
,is vezes que a ocasião o exige. Mas, porque só Deus sabe perfeitamente todas as
coisas, devemos contentar-nos em saber as que usamos mais.
Entre as quais, a primeira e a principal é que há um Deus de quem depen-
Ilom todas as coisas, cujas perfeições são infinitas, cujo poder é imenso, cujos de-
• retos são infalíveis: efectivamente, isso ensina-nos a receber favoravelmente to-
ILis as coisas que nos acontecem, como sendo-nos expressamente enviadas por
I )eus; e porque o verdadeiro objecto do amor é a perfeição, quando elevamos o
iUisso espírito para o considerar tal como ele é, achamo-nos naturalmente tão in-
clinados a amá-lo que tiramos alegria inclusivamente das nossas aflições, ao
pensarmos que a sua vontade se executa quando as recebemos.
A segunda coisa, que importa conhecer, é a natureza da nossa alma en-
quanto ela subsiste sem o corpo e é muito mais nobre do que ele e capaz de
Iruir duma infinidade de contentamentos que se não encontram nesta vida:
pois isso impede-nos de temer a morte e desliga de tal modo a nossa afeição
i l.is coisas do mundo que nos limitamos a olhar com desprezo para tudo o que
1'slá em poder da fortuna.
88 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 89

Para isto, também pode ser muito útil julgar dignamente as obras de Deus lemos satisfações de espírito e contentamentos que valem incomparavelmente
e ter essa ideia ampla da extensão do universo, que procurei levar a conceber no mais do que todas as pequenas alegrias passageiras que dependem dos sentidos.
3.° livro dos meus Princípios:com efeito, se se imagina que, além dos céus, não há Além destas verdades, que respeitam em geral a todas as nossas acções,
nada senão espaços imaginários e que todos estes céus se fizeram meramente importa também conhecer algumas outras que se referem mais particularmente
para o serviço da terra, e a terra só para o do homem, isso leva a que nos incline ■11 ada uma delas. As principais das quais me parecem ser as que notei na minha
mos a pensar que esta terra é a nossa morada principal e que esta é a nossa vid.i 1111ima carta: a saber, que todas as nossas paixões nos representam os bens, a cuja

melhor; e que em vez de se conhecer as perfeições que estão verdadeiramenlr Inisca nos incitam, muito maiores do que verdadeiramente são; e que os prazeres
em nós, se atribuam às outras criaturas imperfeições que elas não têm, para nos ilo corpo não são nunca tão duradoiros como os da alma, nem tão grandes, quan­
elevarmos acima delas e, entrando numa presunção impertinente, queiramos do os possuímos, como parecem, quando os esperamos. O que devemos notar
ser do conselho de Deus e tomar com ele o múnus de conduzir o mundo, o que • iiidadosamente, a fim de que, quando nos sentimos excitados por alguma pai-
causa uma infinidade de inquietações vãs e de maçadas. tflo, suspendamos o nosso juízo até que ela se acalme, e para que não nos deixe­
Depois de assim se ter reconhecido a bondade de Deus, a imortalidade das mos enganar facilmente pela falsa aparência dos bens deste mundo.
nossas almas e a grandeza do universo, há ainda uma verdade cujo conhecimen A isto, não posso acrescentar mais nada, a não ser que também se deve
to me parece muito útil: a qual consiste em que, embora cada um de nós seja uma examinar em particular todos os costumes dos lugares onde vivemos no in­
pessoa separada das outras e, por conseguinte, cujos interesses são de cert<> tuito de sabermos até onde devem ser seguidos. E embora não possamos ter
modo distintos dos do resto das pessoas, devemos, contudo, pensar que não p<^ ■lemonstrações certas de tudo, devemos, no entanto, tomar partido e abraçar
deríamos subsistir sozinhos e que somos, efectivamente, uma das partes do uni i’i opiniões que nos parecem ser as mais verosímeis, sobre todas as coisas que
verso e, mais particularmente ainda, uma das partes desta terra, uma das parte ' "ilão em prática, a fim de que, quando se tratar de agir, nunca sejamos irreso-
deste Estado, desta sociedade, desta família, à qual estamos unidos pela morad.i liilos. Com efeito, só a irresolução causa lamentações e arrependimentos.
pelo juramento, pelo nascimento. E devemos preferir sempre os interesses d<> De resto, disse mais acima que, para estar sempre disposto a julgar bem,
todo, de que somos parte, aos da nossa pessoa em particular; mas com medida < ilem do conhecimento da verdade, se requer também o hábito. Pois, visto que
discrição, pois seria errado expormo-nos a um grande mal no mero intuito cl» Háo podemos estar continuamente atentos à mesma coisa, por mais claras e
conseguirmos um pequeno bem para os nossos pais ou para o nosso país; e s< evidentes que tenham sido as razões que anteriormente nos persuadiram de
um homem vale mais, sozinho, que todo o resto da sua cidade, ele não teria ra/.nt > ilguma verdade, podemos, depois, ser desviados de acreditar nela por falsas
em querer perder-se para a salvar. Mas se só atendêssemos a nós mesmos, não n• aparências, a menos que, por uma meditação longa e frequente, a tenhamos
cearíamos prejudicar muito os outros homens, quando daí redrássemos alguma impresso de tal modo no nosso espírito que ela se tenha transformado num
pequena comodidade e não teríamos qualquer amizade verdadeira nem qu.il habito. E, neste sentido, tem-se razão ao dizer, na Escola, que as virtudes são
quer fidelidade nem em geral qualquer virtude; ao passo que, considerando-n< >• habitos; porquanto, de facto, quase não se erra por não se ter, em teoria, o co-
uma parte do público, temos prazer em fazer bem a toda a gente e não receanu>• IIheci mento do que se deve fazer, mas somente por não se ter na prática, isto é,
inclusive expor a vida para serviço de outrem, quando a ocasião se apresenta por não se ter um hábito firme de crer nele. E porque, enquanto examino aqui
quereríamos até perder a alma, se fosse possível, para salvar os outros. De m.t • Nias verdades, aumento também em mim o hábito respectivo, tenho uma
neira que esta consideração é a fonte e a origem de todas as acções mais heróie. i i'brigação particular para com Vossa Alteza por me permitir que a entretenha
que os homens possam realizar; pois, quanto aos que se expõem à morte por v.n ■"in isto e não há nada em que considere mais bem empregue o meu tempo do
dade, porque esperam ser louvados, ou por estupidez, porque não receiam o | '< • | U t " em poder testemunhar que sou. Senhora,
rigo, creio que são mais de lamentar que de louvar. Mas quando alguém se exp<'< O muito humilde e obediente servidor de Vossa Alteza,
à morte, porque crê que é o seu dever, ou quando sofre algum outro mal para-qm
daí advenha algum bem para os outros, ainda que porventura não considen Descartes
com reflexão que faz isso porque deve mais ao público, de que é parte, do que a m
mesmo, ele fá-lo, porém, em virtude desta consideração que está confusamenh
no seu pensamento. E somos naturalmente levados a tê-la, quando conheceiru > *luando fechava esta carta, recebi a de V. A. do dia 13; mas encontro nela tan­
e amamos a Deus como é devido: pois, então, abandonando-nos totalmente ,\ ins coisas a considerar que não ouso empreender responder-lhe imediata-
sua vontade, despojamo-nos dos nossos próprios interesses e não temos nenhii Inente eestou certo que V. A. preferirá que eu leve algum tempo a pensar nela.
ma outra paixão senão a de fazer o que cremos ser-lhe agradável; depois disto
90 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O R R E S P O N D Ê N C IA E N T R E D E S C A R T E S E A P R IN C E S A E L IS A B E T H D A B O É M IA 91

males que se aceitam em favor do público, contra o bem que deles advirá, sem
que nos pareçam maiores, visto que a sua ideia é mais distinta? E que regra te­
remos para a comparação das coisas que não nos são igualmente conhecidas,
como o nosso mérito próprio e o daqueles com quem vivemos? Um natural
arrogante fará pender a balança para o seu lado e um modesto estimar-se-á
menos do que vale.
Para tirar proveito das verdades particulares de que falais, é preciso co­
nhecer exactamente todas estas paixões e todas estas preocupações, a maior
Elisabeth a Descartes parte das quais são insensíveis. Ao observar os costumes dos países onde es­
Riswick, 30 de Setembro de 1645 tamos, encontramos, por vezes, alguns muito absurdos, que é necessário se­
guir para evitar inconvenientes maiores.
Desde que estou aqui, tenho uma experiência bastante desagradável em
relação a isso; pois, esperava aproveitar a estadia no campo, como tempo que
empregaria no estudo, e encontro, sem comparação, menos tempo livre do
Senhor Descartes, 11ue tinha em Haia, devido às diversões daqueles que não sabem o que fazer; e
embora seja muito injusto privar-me de bens reais para lhes dar bens imagi­
Embora as vossas observações a respeito dos sentimentos que Séneca tinha nários, sou obrigada a ceder às leis impertinentes da civilidade que estão esta-
acerca do soberano bem me tornassem a sua leitura mais proveitosa do que Iiclecidas, a fim de não arranjar inimigos. Desde que estou a escrever esta car­
poderia achar por mim própria, não estou descontente por as ter trocado pui ia, fui interrompida mais de sete vezes por estas visitas incómodas. É uma
verdades tão necessárias como as que compreendem os meios de fortalecei' t> IHindade excessiva que defende as minhas cartas dum predicado semelhante
entendimento para discernir o que é o melhor em todas as acções da vida ji into de vós e vos obriga a querer aumentar o hábito dos vossos conhecimen-
com a condição de que aí acrescenteis ainda a explicação de que a minha est 11 los, comunicando-os a uma pessoa indócil como
pidez precisa, sobre a utilidade dos conhecimentos que propondes. A vossa muito afeiçoada a servir-vos,
O da existência de Deus e dos seus atributos pode-nos consolar das in I<
licidades que nos vêm do curso ordinário da natureza e da ordem que ele ai Elisabeth
estabeleceu, como perder um bem com a tempestade, a saúde com a corrup
ção do ar, os amigos com a morte; mas não daquelas que nos são impostas | ><
los homens, cujo arbítrio nos parece inteiramente livre, não havendo senát i .>
fé que nos possa persuadir de que Deus cuida de reger as vontades e que ili
terminou a fortuna de cada pessoa antes da criação do mundo.
A imortalidade da alma, e saber que ela é muito mais nobre do que o c<n
po, é capaz de nos fazer buscar a morte, bem como desprezá-la, já que sei...
poderia duvidar de que viveremos de um modo muito mais feliz, isentos da
doenças e paixões do corpo. E espanto-me por aqueles que se diziam penai.'
didos desta verdade e viviam sem a lei revelada, preferirem uma vida peru ' •
a uma morte vantajosa. . , •*
A grande extensão do universo, que mostrastes no terceiro livro tin
vossos Princípios, serve para desligar as nossas afecções do que vemos cl<
mas também separa esta providência particular, que é o fundamento da >l>*
gia, da ideia que temos de Deus.
A consideração de que somos uma parte do todo, cuja vantagem dm •
mos procurar, é realmente a fonte de todas as acções generosas; mas .u I"
muitas dificuldades nas condições que lhes prescreveis. Como medli
r
92 MEDICINA DOS AFECTOS
T CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA

Mas quando pode haver diversas considerações igualmente verdadei­


93

ras, umas das quais nos levam a estar contentes, e outras, pelo contrário, no-lo
impedem, parece-me que a prudência quer que nos detenhamos principal­
mente naquelas que nos dão satisfação; e inclusive, visto quase todas as coisas
do mundo serem de tal modo que as podemos olhar por um lado que as faz
IMrecer boas e por algum outro que faz com que nelas notemos defeitos, çreio -
que, se devemos usar a nossa habilidade em alguma coisa, é principalménte
Descartes a Elisabeth em saber olhá-las pelo lado que as faz parecer mais vantajosas para nós, con­
Egmond, 6 de Outubro de 1645
tanto que seja sem nos enganarmos.
Assim, quando Vossa Alteza nota as causas pelas quais pôde ter mais
lempo livre, para cultivar a sua razão, do que muitos outros da sua idade, se
lhe aprouver considerar também quanto aproveitou mais do que essés ou-
Iros, estou certo de que terá motivos de contentamento. E não vejo por que é
Senhora, que prefere comparar-se a eles, naquilo em que tem motivo para se lamentar
do que naquilo que lhe poderia dar satisfação. Com efeito, sendo a constitui­
Por vezes, apresentei-me uma dúvida: saber se é melhor estar alegre e contei i ção da nossa natureza tal que o nosso espírito precisa de muito descanso, a
te, imaginando serem os bens que possuímos maiores e.mais estimáveis du IIm de que possa empregar utilmente alguns momentos na procura da verda-
que são, e ignorando ou não nos detendo a considerar aqueles que faltam, ou Ile, e que ele se enfraqueceria, em vez de se aperfeiçoar, se se aplicasse dema-
ter mais consideração e saber, para conhecer o justo valor de ups e outros, r IIlado no estudo, não devemos medir o tempo que pudemos empregar a ins-
tornarmo-nos mais tristes. Se eu pensasse que o soberano bem era a alegria Iui ir-nos, pelo número de horas que tivemos para nós, mas antes, segundo
não duvidaria que se devesse procurar ser alegre, qualquer que pudesse sei " me parece, pelo exemplo do que vemos acontecer comummente aos outros,
preço, e aprovaria a brutalidade dos que afogam as suas magoas no vinho ou i nmo sendo uma marca do alcance normal do espírito humano.
as atordoam com tabaco. Mas distingo entre o soberano bem, que consiste mi Parece-me igualmente que não temos motivo para nos arrependermos,
exercício da virtude ou (o que é o mesfho) na posse de todos os bens cuja aqu i quando fizemos o que julgámos ser o melhor no tempo em que tivemos de
,BSição depende4do nbsso livre arbítrio, e a satisfação de espírito que résulta nos decidir à sua execução, ainda que,‘posteriormente, ao repensar com mais
« dessa aquisição. É por isso que, vendo que é urqa perfeição maior conhecer ,i vagar, julguemos ter falhado. Mas, dèveríamos antes à/repender-qos, sq-ti-u .
verdade, ainda que ela nos seja desfavorável, do que ignorá-la, confesso qu< véssemos feito algo contra a nossa consciência, mesmo que reconhecêssemos,'
vale mais ser menos alegre e ter mais conhecimento. Também nem sempn depois, termos feito melhor do que tínhamos pensado: porquanto só temos
quando se tem mais alegria, se tem o espírito mais satisfeito; pelo contrário, 11 ile responder pelos nossos pensamentos; e a natureza do homem não é saber
grandes alegrias são, por via de regra, mornas e sérias, e só as medíocre:, e IUd o nem julgar sempre tão bem imediatamente como quando temos muito
passageiras é que são acompanhadas de riso. Assim, não aprovo que procu n lempo para deliberar.
mos enganar-nos, alimentando-nos com imaginações falsas; pois todo o piu De resto, embora a vaidade, que leva a que se tenha melhor opinião de si
zer que daí advém, apenas pode tocar a superfície da alma, a qual sente no e 11 ilo que se deve, seja um vício que pertence unicamente às almas fracas e bai­
tanto uma amargura interior, ao aperceber-se de que elas são falsas. E ainda es, isso não significa que se devam desprezar as mais fortes e generosas; mas
• I ireciso fazer justiça a si mesmo, reconhecendo tanto as suas perfeições
que pudesse acontecer que ela estivesse tão continuamente divertida26no,u (i<>
lugar, que jamais se apercebesse disso, não gozaríamos, com isso, da beatil ti i nmo os defeitos; e se a circunspecção impede que os publiquemos, não impe­
de em questão, porque ela deve depender da nossa conduta e isso viria npr di', porém, que os sintamos.
nas da fortuna. Finalmente, embora não tenhamos uma ciência infinita, para conhecer
I H'i'feitamente todos os bens entre os quais devemos escolher nas diversas si-
11mçÔes da vida, devemos, ao que me parece, contentar-nos com uma ciência
mediana das coisas mais necessárias, como são as que enumerei na minha úl-
26 O termo divertida tem aqui o sentido moral de distracção, isto é, a desatençflo do cupful"
àquilo que deveria ser para ele realmente importante.
tlma carta.
Na qual já exprimi a minha opinião acerca da dificuldade que Vossa
94 M E D IC IN A D O S A F E C T O S
C O R R E S P O N D Ê N C IA E N T R E D E S C A R T E S E A P R IN C E S A E L IS A B E T H D A B O É M IA 95

Alteza propõe: saber se aqueles que referem tudo a si mesmos têm mais razão alma pensamentos que não dependem da sua vontade. Posto isto, pode-se,
do que aqueles que se inquietam por causa dos outros. Efectivamente, se só em geral, chamar paixões a todos os pensamentos que são assim excitados na
pensássemos em nós mesmos, só poderíamos fruir dos nossos bens particula­ alma sem o concurso da sua vontade (e, por conseguinte, sem nenhuma acção
res; ao passo que, se nos considerarmos como partes de algum outro corpo, que venha dela) pelas meras impressões que estão no cérebro, pois tudo o que
participamos também nos bens comuns, sem sermos, com isso, privados de não é acção é paixão. Mas, por via de regra, restringe-se este nome aos pensa­
nenhum dos que nos pertencem. E não se passa o mesmo com os males;,pois, mentos que são causados por alguma agitação particular dos espíritos. Com
segundo a filosofia, o mal não é nada de real, mas tão-só uma privação; e efeito, os que vêm dos objectos exteriores, ou das disposições interiores do
quando nos entristecemos por causa de algum mal que acontece aos nossos corpo, como a percepção das cores, dos sons, dos odores, a fome, a sede, a dor
amigos, não participamos, com isso, na falta em que consiste esse mal; e por e outras semelhantes, chamam-se sentimentos, uns exteriores, outros interio­
maior que seja a tristeza ou a pena que tenhamos em tal ocasião, ela não pode­ res. As que dependem tão-só do que as impressões anteriores deixaram na
ria ser tão grande como a satisfação interior que acompanha sempre as boas memória, e da agitação ordinária dos espíritos, são devaneios, quer venham
acções e principalmente aquelas que procedem duma pura afecção por ou­ em sonhos, quer também quando se está acordado, e quando a alma, não se
trem, que não se refere a si mesmo, ou seja, da virtude cristã a que chamamos determinando a nada por si mesma, segue negligentemente as impressões
caridade. Assim, podemos, mesmo quando choramos e sofremos muito, ter que se encontram no cérebro. Mas, quando ela utiliza a vontade para se deter­
mais prazer do que quando rimos e descansamos. minar a algum pensamento que não é meramente inteligível, mas imaginá­
E é fácil provar que o prazer da alma em que consiste a beatitude não é vel, esse pensamento produz uma nova impressão no cérebro, isso não é nela
inseparável da alegria e do bem-estar do corpo, tanto pelo exemplo das tragé­ uma paixão, mas uma acção, que se chama, propriamente, imaginação. Final­
dias que nos agradam tanto mais quanto mais tristeza excitam em nós, como mente, quando o curso ordinário dos espíritos é tal que excita comummente
pelo dos exercícios do corpo, como a caça, o jogo da péla e outros semelhan pensamentos tristes ou alegres, ou outros semelhantes, não se atribui à pai­
tes, que não deixam de ser agradáveis, mesmo que sejam muito custosos; o xão, mas à natureza ou ao humor daquele em quem são excitadas, e isso leva a
.vemos inclusive que frequentemente são o cansaço e a dor que aumentam o dizer que esse homem é duma natureza triste, aquele outro dum humor ale-'
prazer respectivo. E a causa do contentamento que a alma recebe nestes exer gre, etc. Assim, restam apenas os pensamentos, que vêm de alguma agitação
cicios consiste no facto de eles lhe fazerem notar a força ou a destreza ou aigri particular dos espíritos e cujos efeitos sentimos como que na própria alma,
ma outra perfeição do corpo a que ela está junta; mas o contentamento que ela <|iie sejam propriamente chamados paixões.
tem ao chorar, quando yê representar alguma acção deplorável e funesta num E verdade que não temos quase nunca nenhumas paixões que não de­
teatro, vem principalmente de lhe parecer que faz uma acção virtuosa ao pendam de várias das causas que acabo de distinguir; mas damos-lhes a de­
compadecer-se dos aflitos; e, em geral, compraz-se em sentir paixões excitan nominação daquela que é a principal ou daquela que temos principalmente
do-se em si, qualquer que seja a sua natureza, contanto que se mantenha se em vista: o que leva muitos a confundirem o sentimento da dor com a paixão
nhora delas. da tristeza e o do contacto agradável com a paixão da alegria, a que chamam
Mas importa examinar mais particularmente essas paixões a fim de as também volúpia ou prazer, e os da sede ou da fome com os desejos de beber
poder definir; o que me será mais fácil aqui do que se escrevesse a qualquer on de comer, que são paixões: pois, por via de regra, as causas que produzem
outra pessoa; pois tendo tido Vossa Alteza o incómodo de 1er o tratado que em .i dor, agitam igualmente os espíritos da maneira que é requerida para excitar
tempos27esbocei sobre a natureza dos animais, já sabeis como concebo que B<■ ,i tristeza, e as que fazem sentir algum contacto agradável agitam os espíritos
formam diversas impressões no cérebro deles, umas pelos objectos exteriore;• il.i maneira que é requerida para excitar a alegria, e o mesmo relativamente às
que tocam os sentidos, outras pelas disposições interiores do corpo, ou pelo1, outras.
vestígios das impressões anteriores que permaneceram na memória, ou pela. Por vezes, confundem-se também as inclinações ou hábitos, que dis-
agitação dos espíritos que vêm do coração, ou ainda, no homem, pela acç.u i IHiem a alguma paixão, com a própria paixão, o que, no entanto, é fácil de dis-
da alma, que tem alguma força para modificar as impressões que estão no o ■ llnguir. Com efeito, por exemplo, quando se diz, numa cidade, que os inimi­
rebro, tal como, reciprocamente, essas impressões têm a força para excitar na gos vêm sitiá-la, o primeiro juízo que os habitantes fazem a respeito do mal
•|iiu 1hes pode acontecer, é uma acção da sua alma, não uma paixão. E embora
este juízo seja semelhante em muitos, eles não são porém tocados do mesmo
27 "Há mais de quinze anos", segundo a carta ao marquês de Newcastle, de Outubro d> modo, mas uns mais, outros menos, conforme têm mais ou menos hábito ou
1645. Inclinação para o temor, li antes de a sua alma receber a emoção, na mml
96 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 97

unicamente consiste a paixão, é preciso que ela faça este juízo ou então que, ensina que, mesmo entre os acidentes mais tristes e as dores mais torturantes,
sem julgar, ela conceba ao menos o perigo e imprima a sua imagem no céro Iiode-se estar sempre contente, contanto que se saiba usar a razão.
bro, o que se faz mediante uma outra acção que se chama imaginar e que, poi ‘ Quanto à extensão do universo, não vejo como é que, ao considerá-la.
este meio, determine os espíritos, que vão do cérebro pelos nervos para os M om os instigados a separar a providência particular da ideia que temos de
músculos, a entrar naqueles nervos que servem para apertar as aberturas do Deus: porquanto as potências finitas são algo completamente distinto de
coração, o que retarda a circulação do sangue; e, posto isso, todo o corpo fic.t I)eus, as quais podendo ser esgotadas, temos razão, ao vermos que são em-
pálido, frio e trémulo, e os novos espíritos, que vêm do coração para o céro Iiregues para múltiplos efeitos relevantes, para julgar que não é verosímil que
bro, são agitados de tal modo que só podem ajudar a formar imagens que c\ elas se estendam também até aos mais pequenos efeitos; mas, quanto mais
citam na alma a paixão do temor: todas aquelas coisas se sucedem umas iv. consideramos maiores as obras de Deus, tanto melhor notamos a infinitude
outras de tão perto que parece ser uma única operação. E assim, em todas tr ilo seu poder; e, quanto melhor conhecemos essa infinitude, tanto mais temos
outras paixões, acontece alguma agitação particular nos espíritos que vêm di i a garantia de que ela se estende a todas as mais particulares acções dos
coração. homens.
Era isso que, há oito dias, pensava escrever a Vossa Alteza e era meu de Também não creio que, por essa providência particular de Deus, que
sígnio acrescentar aí uma explicação particular de todas as paixões; mas ten Vossa Alteza disse ser o fundamento da teologia, entendais alguma mudança
do encontrado dificuldades para as enumerar, fui obrigado a deixar parti r 11 II ue acontece nos seus decretos por ocasião das acções que dependem do nos-
mensageiro sem a minha carta e, tendo recebido entretanto a que Vossa Alti' III) livre arbítrio. Com efeito, a teologia de modo nenhum admite essa mudan­
za me concedeu a honra de me escrever, tenho uma nova ocasião de respon ça; c quando ela nos obriga a implorar a Deus, não é para lhe ensinarmos de
der, que me obriga a adiar para outra vez este exame das paixões, para dizei 11ile é que temos necessidade nem para procurarmos obter dele a mudança de
aqui que todas as razões que provam a existência de Deus e que ele é a causa algo na ordem estabelecida desde toda a eternidade pela sua providência:
primeira e imutável de todos os efeitos que não dependem do livre arbítrio ambas as coisas seriam condenáveis; mas unicamente a fim de obtermos o
dos homens, provam do mesmo modo, segundo me parece, que ele é tambéi 11 que ele quis desde toda a eternidade que fosse obtido pelas nossas orações,
a causa de todos os efeitos que dele dependem. Com efeito, só se poderia de lí creio que todos os teólogos estão de acordo quanto a isto, incluindo os
monstrar que ele existe, considerando-o como um ser soberanamente perlei Ar minianos,29que parecem ser os que cedem mais ao livre arbítrio.
to; e não seria soberanamente perfeito, se pudesse acontecer alguma coisa m> Confesso que é difícil medir exactamente até onde é que a razão ordena
mundo, que não viesse inteiramente dele. É verdade que só a mera fé nm 11lie nos interessemos pelo público; mas também não é uma coisa em que seja
pode ensinar o que é a graça, pela qual Deus nos eleva a uma beatitude sobri • necessário ser muito exacto: basta satisfazer a nossa consciência e, nisso, po-
natural; mas a mera filosofia basta para conhecer que não poderia entra r 11 Ilemos ceder muito à inclinação. Pois Deus estabeleceu de tal modo a ordem
menor pensamento no espírito dum homem, a menos que Deus quisesse e Ii d.is coisas e juntou os homens numa sociedade tão estreita que, ainda que
vesse querido desde toda a eternidade que ele aí entrasse. E a distinção da cada um referisse tudo a si mesmo e não tivesse nenhuma caridade para com
Escola, entre as causas universais e particulares, não tem aqui lugar: pois o iis outros, não deixaria de se dedicar normalmente a eles em tudo o que esti­
que faz com que o sol, por exemplo, sendo a causa universal de todas as flores vesse ao seu alcance, contanto que fosse prudente, principalmente se vivesse
não seja, por isso, a causa pela qual as tulipas diferem das rosas, é que a sua num século em que os costumes não estivessem corrompidos. E, além disso,
produção depende também de algumas outras causas particulares que n.lt « como é uma coisa mais elevada e gloriosa fazer bem aos outros homens do
lhe estão subordinadas; mas Deus é de tal modo a causa universal de tudo. I Ine buscá-lo para si mesmo, também são as almas maiores que têm mais incli-
que é da mesma maneira a sua causa total; e assim não pode acontecer na<l.i n.tção para isso e que estimam menos os bens que possuem. Só as almas fracas
sem a sua vontade. ' r baixas é que se consideram mais do que devem e são como os vasos
E igualmente verdade que o conhecimento da imortalidade da alma ■■
das felicidades de que ela será capaz quando estiver fora desta vida, pòdcrí.i
dar azo àqueles que nela se aborrecem, a quererem deixar, se estivessem sogi i 'M Hegésias foi um filósofo grego da época helenística, que exerceu a sua actividade pelos
ros de que, depois, gozariam de todas essas felicidades; mas nenhuma raz.h > finais do séc. IV, início do III a. C. Ptolomeu, rei do Egipto, fechou a sua escola e expul­
sou-o de Alexandria.
os certifica disso, e só a falsa filosofia de Hegésias,28cujo livro foi proibido | >ih Teólogos que seguem o pensamento de Arminius, teólogo protestante holandês, que
Ptolomeu, porque muitos se tinham matado depois de o terem lido, é que in acentuava o papel do livre arbitrio e da iniciativa individual, contra os defensores da pre-
tenta persuadi-los de que esta vida é má; bem pelo contrário, a vml.ulcn.i dtitinaçflo.
r

98 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 99

pequenos que três gotas de água podem encher. Sei que Vossa Alteza não est.i
entre esse número e que, enquanto só se pode incitar essas almas baixas a te­
rem bondade por outrem fazendo-lhes ver que daí retirarão algum proveito
para elas mesmas, é preciso, para bem de Vossa Alteza, mostrar-lhe que não
poderia ser útil, por muito tempo, àqueles que estima, se se desprezasse a si
mesma, e pedir-lhe para cuidar da sua saúde. É o que faz. Senhora, è
O muito humilde e obediente servidor de Vossa Alteza,

Descartes Elisabeth a Descartes


Haia, 28 de Outubro de 1645

Senhor Descartes,

Depois de ter fornecido razões tão boas para mostrar que mais vale conhecer­
mos verdades para desvantagem nossa do que enganarmo-nos agradavelmen­
te e que só as coisas que admitem diversas considerações igualmente verdadei­
ras é que nos devem obrigar a deter-nos naquela que nos trará mais contenta­
mento, admiro-me por quererdes que me compare aos da minha idade, mais
naquilo que me é desconhecido do que naquilo que não poderia ignorar, ainda
que o primeiro me seja mais favorável. Não há nada que me possa esclarecer se
aproveitei mais a cultivar a minha razão do que outros a cultivar as coisas que
lhes interessavam, e não duvido minimamente de que, com o tempo de repou­
so que o meu corpo exigia, ainda me tenha restado algum para ir mais longe do
que fui. Se medíssemos o alcance do espírito humano pelo exemplo do comum
dos homens, achá-lo-íamos de extensão diminuta, porque a maior parte só se
serve do pensamento relativamente aos sentidos. Mesmo entre aqueles que se
dedicam ao estudo, há poucos que utilizem outra coisa que não a memória ou
que tenham a verdade como fim do seu trabalho. Se há algum vício em não me
agradar considerar se ganhei mais do que essas pessoas, não creio que seja o ex­
cesso de humildade, que é tão nocivo como a presunção, mas não tão habitual.
Somos mais inclinados a desconhecer os nossos defeitos do que as nossas per­
feições. E evitando o arrependimento das faltas cometidas, como um inimigo
da felicidade, poderíamos sujeitar-nos à sorte de perder a vontade de nos corri­
girmos, principalmente quando alguma paixão as produziu, visto que gosta­
mos naturalmente de ser excitados por ela e de seguir os seus movimentos;
só os incómodos que procedem dessa sequência é que nos ensinam que elas po­
dem ser nocivas. E é, segundo julgo, o que faz com que as tragédias agradem
tanto mais, quanto mais tristeza provocam, porque sabemos que ela não será
su ficientemente violenta para nos levar a extravagâncias, nem suficientemente
duradoira para corromper a saúde.
T
100 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 101

Mas isso de modo nenhum basta para apoiar a doutrina contida numa E esta prudência é o todo, de que vos peço apenas uma parte. Pois, ao pos-
das vossas cartas precedentes, que as paixões são tanto mais úteis, quanto suí-la, não se poderia deixar de fazer justiça aos outros, como a si mesmo, e é a
mais tenderem para o excesso, quando estão submetidas à razão, porque pa­ sua falta que é a causa de um espírito franco perder por vezes o meio de servir
rece que elas não podem ser excessivas e submetidas. Mas creio que esclarece­ a sua pátria, entregando-se com demasiada ligeireza aos seus interesses, e de
reis esta dúvida, tendo o incómodo de descrever como esta agitação particu­ 11m tímido se perder com ela, por não arriscar o seu bem e a sua fortuna para a
lar dos espíritos serve para formar todas as paixões que experimentamos e de conservação dela.
que maneira ela corrompe o raciocínio. Não ousaria instar-vos a esse respeito, Estive sempre numa condição que tornava a minha vida muito inútil às
se não soubesse que não deixais nenhuma obra imperfeita e que, empreen­ pessoas que amo; mas procuro a sua conservação com muito mais cuidado,
dendo ensinar uma pessoa estúpida, como eu, vos preparastes para os incó­ desde que tenho a felicidade de vos conhecer, porque me mostrastes os meios
modos que isso vos traz. I>ara viver de um modo muito mais feliz do que eu vivia. Só me falta a satisfa­
É isso que me faz continuar a dizer-vos que de modo nenhum estou per­ ção de vos poder testemunhar quanto esta obrigação é sentida pela
suadida, pelas razões que provam a existência de Deus e que ele é a causa Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.
imutável de todos os efeitos que não dependem do livre arbítrio do homem,
que o é também dos que dele dependem. Da sua perfeição soberana segue-se Elisabeth
necessariamente que ele poderia sê-lo, isto é, que poderia não ter dado livre
arbítrio ao homem; mas, visto que sentimos tê-lo, parece-me que repugna ao
senso comum crê-lo dependente nas suas operações, como o é no seu ser.
Se estivermos bem persuadidos da imortalidade da alma, é impossível
duvidar de que ela será mais feliz depois da separação do corpo (que é a ori­
gem de todos os desprazeres da vida, como a alma é dos maiores contenta ­
SBD/FFLCH/USP

mentos), sem a opinião do senhor Digby, pela qual o seu preceptor30(cujos es­
critos lestes) lhe fez crer a necessidade do purgatório, persuadindo-o de que
as paixões que dominaram a razão, durante a vida do homem, deixam ainda
alguns vestígios na alma, depois do falecimento do corpo, que a atormentam
tanto mais quanto elas não encontram nenhum meio para se satisfazerem
numa substância tão pura. Não vejo como é que isso joga com a sua imateriali­
dade. Mas de modo nenhum duvido de que, embora a vida não seja má por si,
deve ser abandonada por uma condição que saberemos ser melhor.
Por essa providência particular, que é o fundamento da teologia, enten­
do aquela pela qual Deus, desde toda a eternidade, prescreveu meios tão es
i tranhos, como a sua incarnação, para uma parte do todo criado, tão insignifi
cante em comparação com o resto, como nos representais este globo na vossa
física; e isso, para ser glorificado, o que parece um fim imensamente indigno
do criador deste grande universo. Mas, nisto, eu apresentava-vos mais a
objecção dos nossos teólogos do que a minha, tendo julgado sempre muito
impertinente, para pessoas finitas, julgar a respeito da causa final das acções
de um ser infinito.
Não credes que seja preciso um conhecimento exacto, até onde a razão
ordena que nos interessemos pelo público, porque, ainda que um qualquer
referisse tudo a si, ele trabalharia também para os outros, se fosse prudente,

30 Elizabeth refere-se a De Mundo Dialogi Tres (Paris, 1642), deTIiomas White.


r

CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 103


1102
02 MEDICINA DOS AFECTOS

Nestes dias, tenho pensado no número e na ordem de todas estas pai­


xões a fim de poder examinar mais particularmente a sua natureza; mas ainda
não digeri suficientemente as minhas opiniões a este respeito para ousar es­
crevê-las a Vossa Alteza e não deixarei de o fazer o mais cedo que me for
possível.
Quanto ao livre arbítrio, confesso que, ao pensarmos apenas em nós
mesmos, não podemos deixar de o considerar independente; mas quando
Ilensamos no poder infinito de Deus, não podemos deixar de acreditar que to­
Descartes a Elisabeth das as coisas dependem dele e que, por conseguinte, o nosso livre arbítrio não
Egmond, 3 de Novembro de 1645 está isento dele. Com efeito, implica contradição dizer que Deus criou os ho­
mens de uma natureza tal que as acções da sua vontade não dependem da
sua, porque isso é o mesmo que dizer que o seu poder é simultaneamente fini­
to e infinito: finito, dado que há algo que não depende dele, e infinito, dado
ipie ele pôde criar essa coisa independente. Mas, tal como o conhecimento da
Senhora, existência de Deus não deve impedir-nos da certeza do nosso livre arbítrio,
porque o experimentamos e sentimos em nós mesmos, assim também o co­
Acontece-me tão raramente encontrar bons raciocínios, não só nos discursos nhecimento do nosso livre arbítrio não nos deve levar a duvidar da existência
daqueles que frequento neste deserto, mas também nos livros que consulto, de Deus. Efectivamente, a independência que experimentamos e sentimos
que não posso 1er os que constam das cartas de Vossa Alteza, sem ter um sen em nós, e que basta para tornar as nossas acções louváveis ou condenáveis,
timento de alegria extraordinário; e acho-os tão fortes que prefiro confessai II áo é incompatível com uma dependência que é de outra natureza, segundo a

que sou vencido por eles do que tentar resistir-lhes. Com efeito, embora a qual todas as coisas estão sujeitas a Deus.
comparação, que Vossa Alteza se recusa a fazer em seu benefício, possa sei No que se refere ao estado da alma depois desta vida, tenho muito me­
bem verificada pela experiência, é contudo uma virtude tão louvável julgai nos conhecimento do que o senhor dTgby; pois, deixando de lado o que a fé
favoravelmente os outros e concilia-se tão bem com a generosidade que vos itos ensina, confesso que, pela mera razão natural, podemos fazer muitas con­
impede de querer medir o alcance do espírito humano pelo exemplo do co jecturas em nosso proveito e ter belas esperanças, mas nenhuma garantia.
mum dos homens, que não posso deixar de estimar extremamente uma e Ii, porque a mesma razão natural nos ensina igualmente que temos sempre
outra. mais bens do que males nesta vida, e que não devemos deixar o certo pelo in­
Também não ousaria contradizer o que Vossa Alteza escreve sobre o ar certo, ela parece-me ensinar-nos que não devemos temer verdadeiramente a
rependimento, já que é uma virtude cristã que serve para fazer com que nos morte, mas que também não devemos nunca procurá-la.
corrijamos, não só das faltas cometidas voluntariamente, mas também da Não preciso de responder à objecção que podem fazer os teólogos sobre
quelas que fizemos por ignorância, quando alguma paixão nos impediu de a vasta extensão que atribuí ao universo, porque Vossa Alteza já lhe respon­
conhecer a verdade. deu por mim. Acrescento tão-só que, se essa extensão pudesse tornar os mis­
E reconheço bem que a tristeza das tragédias não agradaria, como agra térios da nossa religião menos credíveis, aquela que os astrónomos desde
da, se pudéssemos temer que ela se tornasse tão excessiva que fôssemos inco­ sempre atribuíram aos céus poderia ter feito o mesmo, porque eles considera­
modados por ela. Mas, quando disse que há paixões que são tanto mais úteis ram os céus tão grandes que a terra, em comparação com eles, é apenas um
quanto mais tenderem para o excesso, apenas quis falar das que são inteira ponto; e, no entanto, isso não lhes é objectado.
mente boas; o que testemunhei ao acrescentar que elas devem estar sujeitas à De resto, se a prudência fosse senhora dos acontecimentos, não duvido
razão. Porquanto, há dois tipos de excessos: um que, mudando a natureza da île que Vossa Alteza levasse a bom termo o que queria empreender; mas seria
coisa e que de boa a torna má, impede qúe ela continue submetida à razão; oi i ilecessário que todos os homens fossem perfeitamente sábios a fim de que, sa-
tra que se limita a aumentar a medida e só torna melhor a boa. Assim, a ousa I>endo o que devem fazer, se pudesse estar seguro de que o farão. Ou então se­
dia só tem por excesso a temeridade quando vai além dos limites da razão; ria necessário conhecer particularmente o humor de todos aqueles com os
mas, enquanto os não ultrapassa, pode ter ainda um outro excesso que consis quais temos algo para debater; e ainda não seria suficiente, porque eles têm,
te em não ser acompanhada de nenhuma irresohiçãonerrule nenhum receio. além disso, o seu livre arbítrio, cujos movimentos só Deus conhece. E porque
r

104 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 105

normalmente julgamos o que os outros farão, pelo que queríamos fazer se es


tivéssemos no seu lugar, acontece frequentemente que os espíritos ordinário'
e medíocres, sendo semelhantes àqueles com os quais têm de tratar, penetra 111
melhor nos seus conselhos e logram mais facilmente alcançar o que empreen
dem do que os mais elevados que, tratando apenas com os que lhes são mui lo
inferiores em conhecimento e em prudência, julgam as questões dum modo
completamente diferente do deles. Isso deve consolar Vossa Alteza quando ,1
fortuna se opõe aos vossos planos. Peço a Deus que os favoreça e sou,
Senhora, Elisabeth a Descartes
O muito humilde e obediente servidor de Vossa Alteza, Haia, 30 de Novembro de 1645

Descartes

Senhor Descartes,

Tendes razão para vos admirardes de que, depois de me haverdes testemu­


nhado que o meu raciocínio vos não parecia completamente ridículo, eu con-
linue durante tanto tempo sem tirar o proveito que as vossas respostas me
dão. E é com vergonha que vos confesso a causa disso, já que ela alterou tudo
0 que as vossas lições pareciam ter estabelecido no meu espírito. Eu cria que
uma resolução firme de procurar a beatitude somente nas coisas que depen­
dem da minha vontade, me tomaria menos sensível às que me chegam dou-
1ras partes, antes de a loucura de um dos meus irmãos31me ter manifestado a
minha fraqueza. Com efeito, ela perturbou-me mais a saúde do corpo e a tran­
quilidade da alma do que todas as infelicidades que já me aconteceram.
Se vos derdes ao incómodo de 1er a gazeta, não podereis ignorar que ele caiu
nas mãos de um certo tipo de pessoas, que têm mais ódio pela nossa casa do
que afeição pelo seu serviço, e se deixou enredar no seu laço ao ponto de mu­
dar de religião para se tornar católico romano, sem o menor sinal que pudesse
Iicrsuadir os mais crédulos de que o fazia movido pela sua consciência. É pre­
ciso que eu veja uma pessoa, de quem gostava com tanta ternura quanta po­
il ia, abandonada ao desprezo do mundo e à perda da sua alma (segundo a mi­
lllia crença). Se não tivésseis mais caridade que beatice, seria uma impertinên­
cia ocupar-vos com este assunto, e não me livraria disso se não estivesse nas
minhas mãos dizer-vos todos os meus defeitos como à pessoa do mundo mais
capaz de mos corrigir.
Confesso-vos também que, embora não compreenda que a independên­
cia do livre arbítrio não repugne menos à ideia que temos de Deus do que a

31 Elisabeth refere-se il abjuração de seu irmîio Eduardo (1624-1663), príncipe palatino, que
h o converteu aparatosnmcnte no catolicismo.
106 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 107

sua dependência à liberdade; é-me impossível ajustá-las, sendo tão impossi


vel, para a vontade, estar ao mesmo tempo livre e vinculada aos decretos d.i
Providência, como, para o poder divino, ser simultaneamente infinito e limi
tado. De modo nenhum vejo a compatibilidade, de que falais, nem como
que essa dependência da vontade pode ser de uma natureza distinta da sua 11
berdade, se não tiverdes o incómodo de mo ensinar.
No que respeita ao contentamento, confesso que a posse presente é mui
to mais segura do que a expectativa do futuro, por melhor que seja a razão na
qual se funde tal expectativa. Mas tenho dificuldade em me persuadir de qu< Elisabeth a Descartes
na vida, temos sempre mais bens do que males, já que é preciso mais para pro Haia, 27 de Dezembro de 1645
duzir aqueles do que estes; de que o homem tem mais ocasiões para recebo i
desprazer do que prazer; de que há um número infinito de erros, para uma
verdade; tantos meios de se extraviar, para um que segue o caminho certo
uma quantidade de pessoas com intenção e com poder para prejudicar, pai a
poucos que têm ambas as coisas para servir. Finalmente, tudo o que dependi Senhor Descartes,
da vontade e do curso do resto do mundo é capaz de incomodar; e segundo 11
vosso próprio sentimento, só o que depende absolutamente da nossa v o n t , u h t ) filho do falecido professor Schooten entregou-me hoje a carta que me escre­
é que é suficiente para nos dar uma satisfação real e constante. vestes em seu favor, para me impedir que eu me comprometa a favorecer o
Quanto à prudência, no que respeita à sociedade humana, não espoo • 1U«11 concorrente. E como lhe testemunhei que não só estava sem intenção de o
regra infalível, mas ficaria muito contente ao ver as que queríeis dar àquolo Iirejudicar, mas obrigada a servi-lo, tanto quanto puder, a partir do momento
que, vivendo unicamente para si, numa qualquer profissão, não deixasse de em que me mandais estimá-lo e querer-lhe bem, pediu-me para o recomendar
trabalhar também para outrem, se ousasse pedir-vos mais luz, depois de In iios Curadores. Conhecendo apenas dois, os senhores Wimenon e Bewen, e o
empregue tão mal a que já destes à li Itimo fora da cidade, comecei por falar ao primeiro, que me promete dar
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos, lodo o seu auxílio ao dito senhor Schooten, apesar do desígnio de abolir intei-
Mmente esta profissão como supérflua, que parece ser a única dificuldade
Elisabeth que ele terá de combater, o seu concorrente não sendo considerado, junto
dele, a não ser por alguns escrupulosos que temem que este introduza os er­
ros da religião arminiana nas suas lições de matemática. Se me tivesse dado
tempo para lhe pedir que viesse junto de mim, para saber o sucesso das mi­
nhas recomendações, eu teria tido maneira de o informar das coisas que creio
deverem servir-lhe para as suas pretensões; mas teve tanta pressa em reti­
rar-se que fui obrigada a segui-lo até à porta, para lhe perguntar a quem devia
dirigir os meus ofícios em seu favor. Sei que, se ele me tivesse considerado
lipenas como vossa amiga, sem pensar nos títulos que confundem os que não
i'NtSo habituados a eles, ter-se-ia comportado de outra maneira, julgando bem
111 ie eu não poderia agir, numa questão que sabia ser-vos agradável, com cui-
Il.idos ordinários. E peço-vos que acrediteis que nunca perderei uma ocasião
i m que possa testemunhar-vos, de facto, que sou verdadeiramente, Senhor
I )o»cartes,
A vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.

Elisabeth
108 MEDICINA DOS AFECTOS
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 109

Receio que não tenhais recebido a minha última carta do dia 30 do mês pass.i
do, porque não lhe fazeis nenhuma referência. Ficaria descontente se ela cat.
se nas mãos de algum daqueles críticos que condenam como heresias todas 11
dúvidas que se têm sobre as opiniões aceites.

Descartes a Elisabeth
Egmond, Janeiro de 1646

Senhora,

Não posso negar que fiquei surpreendido por saber que Vossa Alteza teve um
desgosto tal que afectou a sua saúde, devido a uma coisa que a maior parte
das pessoas consideraria boa, e que várias razões fortes podem tornar descul­
páveis perante as outras. Com efeito, todos aqueles da religião a que pertenço
(que são, indubitavelmente, a maioria na Europa), são obrigados a aprová-la,
mesmo que aí vissem circunstâncias e motivos aparentemente censuráveis;
porque nós acreditamos que Deus se serve de diversos meios para atrair as al­
mas a si, e que alguém que entrou no convento, com má intenção, acabou por
levar, posteriormente, uma vida muito santa. Quanto àqueles que são de ou­
tra crença, se falam mal disso, pode recusar-se a sua opinião; porque, como
em todos os outros assuntos, em relação aos quais há diversos partidos, é im­
possível agradar a uns, sem desagradar aos outros. Se consideram que não se­
riam da religião de que são, se eles, ou os seus pais, ou os seus antepassados
não tivessem abandonado a religião romana, não terão motivo para troçar,
nem para apelidar de inconstantes os que deixam a sua.
No que diz respeito à prudência nos assuntos correntes da vida,32é ver­
dade que aqueles que têm a sorte consigo, têm razão em se manter todos à
volta dela, e em juntar as suas forças para impedir que ela fuja; mas aqueles de
cuja casa ela anda arredada, parece-me que não fazem mal nenhum ao con­
cordar em seguir diferentes caminhos, a fim de que, se nem todos a puderem
encontrar, haja pelo menos alguém que a encontre. E no entanto, visto acre-
d ilarmos que cada um deles tem vários recursos, tendo amigos em diferen­
tes partidos, isso torna-os mais consideráveis do que se estivessem todos

42 No original lô-se prudência do século (.prudence du siècle), entendido este último termo na
sua contraposição a eternidade, isto é, o domínio das coisas temporais que o homem nSo
pode ignorar.
110 MEDICINA DOS AFECTOS
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 111

comprometidos num único. O que me impede de poder imaginar que aqiul< mIinidade de curvas com as quais comparamos os males. É neste sentido que
que foram autores desse conselho tenham com isso querido prejudicar a vi» ifi filósofos costumam dizer que bonum est ex integra causa, malum ex quovis de­
sa Casa. Mas de modo nenhum pretendo que as minhas razões sejam capa/ >« tain.™ Mas quando se consideram os bens e os males que podem estar numa
de impedir o ressentimento de Vossa Alteza; espero apenas que o tempo o I• mesma coisa, para saber a avaliação que devemos fazer dela, como eu fiz
nha diminuído, antes de esta carta vos ser apresentada, e recearia avivá-lo . quando falei da avaliação que devemos fazer desta vida, tomamos o bem por
me alongasse mais acerca deste assunto. II ulo o que aí se encontra de que podemos ter alguma vantagem, e não consi-
E por isso que passo à dificuldade que Vossa Alteza apresenta no qiii Ilêramos mal senão aquilo de que podemos receber desvantagens; porque
diz respeito ao livre arbítrio, cuja dependência e liberdade tentarei expli< .11 quanto aos outros defeitos que possam aí existir, não os contamos. Assim,
mediante uma comparação. Se um rei que proibiu os duelos, e que sabe com quando se oferece um emprego a alguém, ele considera por um lado a honra e
toda a certeza que dois fidalgos do seu reino, vivendo em cidades diferenh I I Itenefício que daí pode esperar, como bens, e por outro a dificuldade, o peri-
estão em disputa, e de tal modo incitados um contra o outro, que nada pode )',(), a perda de tempo, e outras coisas semelhantes, como males; e ao comparar
ria impedi-los de lutar se se encontrassem; se, digo, este rei der a um deles .11 entes males com esses bens, aceita ou recusa o emprego consoante considera
guma ordem para ir num determinado dia à cidade onde está o outro, e tin untes maiores ou menores do que aqueles. Ora, o que me levou a dizer, neste
também ordem a este outro para ir no mesmo dia ao local onde está o primei u11imo sentido, que há sempre mais bens do que males nesta vida, foi o pouco
ro, sabe que muito certamente eles não deixarão de se encontrar, e de lutar, 1 i aso que eu penso que devemos fazer de todas as coisas que estão fora de nós,
assim de transgredir a sua proibição, mas de modo nenhum os obriga a íhmi e que de modo nenhum dependem do nosso livre arbítrio, em comparação
nem o seu conhecimento, nem mesmo a vontade que teve de os obrigar des! a com aquelas que dele dependem, que podemos sempre tornar boas, se as sou-
forma, impede que seja tão voluntária e tão livremente que eles se confim 1 Iicrmos usar bem; e podemos impedir, por meio delas, que todos os males que
tam, quando acabam por se encontrar, como teriam feito se ele não tivesse sa venham de fora, por maiores que possam ser, penetrem mais fundo na nossa
bido de nada, e se se tivessem encontrado noutra ocasião qualquer, e podem alma do que a tristeza que provocam os comediantes, quando representam
também ser justamente punidos, uma vez que desobedeceram à sua proibi iliante de nós algumas acções muito funestas; mas confesso que é preciso ser
ção. Ora, o que um rei pode fazer neste caso, no que diz respeito a algumas,u muito filósofo, para chegar a este ponto. E, todavia, acredito que mesmo
ções livres dos seus súbditos. Deus, que tem uma presciência e um poder in 11 aqueles que mais se deixam levar pelas suas paixões, julgam sempre, no seu
nito, fá-lo infalivelmente no que diz respeito a todas as acções dos homem. intimo, que há mais bens do que males nesta vida, embora eles próprios se
E antes de nos ter enviado a este mundo, soube exactamente quais seriam It 1 não apercebam deles; porque embora chamem algumas vezes a morte em seu
das as inclinações da nossa vontade; foi ele próprio que as colocou em nós, foi socorro, quando sentem grandes dores, é apenas a fim de que ela os ajude a
também ele que dispôs todas as outras coisas que estão fora de nós, para fazei t ,irregar o seu fardo, tal como na fábula,34e não querem perder a vida por cau­
com que estes ou aqueles objectos se apresentassem aos nossos sentidos nes 11 sa disso; ou na verdade, se há alguns que a querem perder, e que se matam a si
ou naquele momento, por ocasião dos quais ele soube que o nosso livre arbí próprios, é por um erro do seu entendimento, e não por um juízo bem ponde­
trio nos conduziria a esta ou àquela coisa; e ele qui-lo assim, mas não quis des rado, nem por uma opinião que a natureza tenha impresso neles, como seja
sa maneira obrigá-lo a isso. E como podem distinguir-se neste rei dois graus aquela que faz com que prefiramos os bens desta vida aos seus males.
diferentes de vontade, um pelo qual ele quis que estes nobres se confrontas A razão que me leva a acreditar que aqueles que não fazem nada que
sem, uma vez que fez com que eles se encontrassem, e outro pelo qual não não seja para sua utilidade particular, devem trabalhar para o próximo tanto
quis, uma vez que proibiu os duelos; assim os teólogos distinguem em Deus i omo os outros, e encarregar-se de dar prazer a alguém, tanto quanto estiver
uma vontade absoluta e independente, pela qual ele quer que todas as coisas ao seu alcance, se querem usar de prudência, é que se constata frequentemen­
ocorram tal como ocorrem, e outra relativa, e que se relaciona com o mérito ou te que aqueles que são considerados prestáveis e sempre prontos a agradar,
demérito dos homens, pela qual ele quer que se obedeça às suas leis. recebem igual quantidade de bons préstimos por parte dos outros, mesmo
É necessário também que eu distinga dois tipos de bens, para conciliai i laqueies a quem nunca fizeram favores, os quais não receberiam, se fossem
aquilo que escrevi anteriormente (a saber, que nesta vida temos sempre mais julgados de outro temperamento, e que as dificuldades que eles têm para dar
bens do que males) com o que Vossa Alteza me objecta no que respeita a todos
os incómodos da vida. Quando se considera a ideia de bem para servir de re
gra às nossas acções, tomamo-lo por toda a perfeição que pode estar na coisa VI Obem provém da causa plena, o ninl dc alguma falha.
que designamos boa, e comparamo-la à linha recta, que é única entre uma VI Kofcrénda íi fábula dc Esodo.
112 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 113

prazer, não são de forma nenhuma tão grandes como as vantagens que lhes
dá a amizade daqueles que os conhecem. Porque não se espera de nós senão
os préstimos que podemos fazer comodamente, e não esperamos mais do que
isso dos outros; mas acontece frequentemente que aquilo que lhes custa pou
co nos beneficia muito, e pode mesmo valer-nos a vida. É verdade que, às ve
zes, se perde tempo ao fazer o bem, e pelo contrário ganha-se fazendo o mal;
mas isso não pode mudar a regra da prudência, a qual só diz respeito às coisas
que acontecem mais frequentemente. E quanto a mim, a máxima que mais ob
servei em toda a conduta da minha vida, foi seguir apenas o caminho princi Elisabeth a Descartes
pal, e acreditar que a principal subtileza é não querer de forma nenhuma usar Haia, 25 de Abril de 1646
subtileza. As leis comuns da sociedade, que tendem todas para fazer o bem
uns aos outros, ou pelo menos para não fazer o mal, estão, parece-me, tão bem
estabelecidas, que quem quer que as siga francamente, sem nenhuma dissi
mulação nem artifício, leva uma vida muito mais feliz e segura do que aque­
les que procuram a sua utilidade por outras vias, que, na verdade, têm às ve Senhor Descartes,
zes êxito devido à ignorância dos outros homens, e à ajuda da sorte; mas acon
tece muito mais frequentemente que eles falham, e que, pensando estabele­ 0 tratado que o meu irmão Filipe concluiu com a República de Veneza fez-me
cer-se, se arruinam. É com esta ingenuidade e esta franqueza, que professo 1er, logo após a vossa partida, uma ocupação muito menos agradável do que
observar em todas as minhas acções, que professo também particularmenlo aquela que me havíeis deixado, relativamente a uma matéria que ultrapassa a
ser, etc. 1 n inha ciência, à qual eu não fora chamada senão para suprir a impaciência do
jovem a quem ela se dirigia. Isso impediu-me, até aqui, de tirar partido da au­
torização, que me havíeis dado, de vos apresentar as obscuridades que a mi­
nha estupidez me leva a encontrar no vosso Tratado das Paixões, embora elas
sejam em número restrito, porque seria preciso ser impassível, para não com­
preender que a ordem, a definição e as distinções que dais das paixões, e final­
mente toda a parte moral do tratado, ultrapassa tudo o que alguma vez foi
dito sobre este assunto. »
Mas, uma vez que a sua parte física não é assim tão clara para os igno­
rantes, não vejo como é que se podem conhecer os diversos movimentos do
sangue, que causam as cinco paixões primitivas, já que elas nunca existem so­
zinhas. Por exemplo, o amor é sempre acompanhado de desejo e de alegria,
ou de desejo e de tristeza, e à medida que ele se-fortalece, os outros crescem
também35, pelo contrário. Como é, então, possível notar a diferença da pulsa­
ção, da digestão das carnes e outras mudanças do corpo, que servem para
<lescobrir a natureza destes movimentos? Do mesmo modo aquela que obser­
vais, em cada uma das paixões, não é igual em todos os temperamentos: e o
meu faz com que a tristeza me tire sempre o apetite, mesmo que ela não seja
acompanhada de nenhum ódio, vindo-me apenas da morte de algum amigo.
Quando falais dos sinais exteriores destas paixões, dizeis que a admira­
ção, unida à alegria, faz inchar o pulmão com diversas sacudidelas, para

W I lã um n Incurui no m anim crlto.


11 4 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 115

causar o riso. A que vos peço que acrescenteis de que forma é que a admiração
(que, segundo a vossa descrição, parece agir apenas sobre o cérebro) pode
abrir tão prontamente os orifícios do coração para produzir esse efeito.
Estas paixões, que assinalais como causa d'os suspiros, não parecem
sempre sê-lo, já que o hábito e a obesidade do estômago também as
produzem.
Mas considero ainda menos difícil entender tudo o que dizeis das pai
xões do que tomar os remédios que receitais contra os seus excessos. Pois,
como prevenir todos os acidentes que podem acontecer na vida, que é impos­ Descartes a Elisabeth
sível enumerar? E como impedirmo-nos de desejar com ardor as coisas que Maio de 1646
tendem necessariamente à conservação do homem (como a saúde e os meios
para viver), que todavia não dependem pada do seu arbítrio? Para o conheci­
mento da verdade, o desejo é tão legítimo que existe naturalmente em todos
os homens; mas seria necessário ter um conhecimento infinito, para saber o
justo valor dos bens e dos males que costumam comover-nos, porque há mu i ' Senhora, '
tos mais do que uma só pessoa poderia imaginar, e seria necessário, para isso,
conhecer perfeitamente todas as coisas que existem no mundo. Reconheço, por experiência, que tive razão em incluir a glória no número das
Uma vez que já me dissestes as principais, no que diz respeito à vida paixões; porque não pude deixar de me sentir tocado, ao ver o juízo favorável
particular, eu contentar-me-ia em saber ainda as vossas máximas no que res que Vossa Alteza faz do pequeno tratado que escrevi. E não estou minima­
peita à vida civil, embora esta nos torne dependentes de pessoas tão pouco ra mente surpreendido por notardes aí também defeitos, porque não tive a me­
zoáveis, que até agora julguei sempre melhor servir-me da experiência do nor dúvida de que os houvesse em grande número, sendo uma matéria que
que da razão, nas coisas que lhe dizem respeito. nunca tinha estudado antes, e da qual mais não fiz do que esboçar os primei­
Fui tantas vezes interrompida, ao escrever-vos, que sou obrigada a en ros traços, sem lhes juntar as cores e os ornamentos que seriam necessários
viar-vos o meu rascunho, e a servir-me do mensageiro de Alcmar, tendo para a patentear a olhos menos clarividentes do que os de Vossa Alteza.
esquecido o nome do amigo a quem queríeis que envie as minhas cartas; Também não escrevi nele todos os princípios de física de que me servi
por isso não ouso reenviar-vos o vosso tratado, até que o saiba, não podendo para decifrar quais os movimentos do sangue que acompanham cada paixão,
decidir-me a arriscar nas mãos de um bêbedo uma peça de tão grande valor, porque não saberia deduzi-los bem sem explicar a formação de todas as par­
que deu tanta satisfação à tes do corpo humano; e é uma coisa tão difícil que não ousaria ainda empreen-
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos. dê-la, embora quase me tenha satisfeito a mim mesmo no que diz respeito à
verdade dos princípios que supus neste escrito. Os principais dos quais são:
Elisabeth que o trabalho do fígado e do baço é conter sempre sangue de reserva, menos
purificado do que aquele que está nas veias; e que o fogo que está no coração
precisa de ser continuamente mantido, ou pelo suco das carnes, que vem di-
rectamente do estômago, ou, na sua falta, pelo sangue que está em reserva,
porque o outro sangue, que está nas veias, dilata-se demasiado facilmente;
e que há uma ligação tal entre a nossa alma e o nosso corpo, que os pensamen­
tos que acompanharam alguns movimentos do corpo, desde o começo da
nossa vida, acompanham-nos ainda no presente, de modo que, se os mesmos
movimentos são de novo excitados no corpo por alguma causa exterior, exci­
tam também na alma os mesmos pensamentos e, reciprocamente, se temos os
mesmos pensamentos, eles produzem os mesmos movimentos; e, por fim,
que a máquina do nosso corpo é feita de tal forma que um único pensamento
ile alegria, ou de amor, ou outro semelhante, é suficiente para enviar os
116 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O R R E S P O N D Ê N C I A E N T R E D E S C A R T E S E A P R IN C E S A E L IS A B E T H D A B O É M IA 117

espíritos animais pelos nervos a todos os músculos que são necessários para que uma convulsão dos nervos da face. E assim pode por vezes suspirar-se
causar os diversos movimentos do sangue que eu disse acompanharem as por hábito, ou por doença, mas isso não impede que os suspiros sejam sinais
paixões. É verdade que tive dificuldade em distinguir os que pertencem a exteriores da tristeza e do desejo, já que são estas paixões que os causam.
cada paixão, porque elas nunca estão sozinhas; mas, no entanto, porque nem Eu nunca tinha ouvido dizer nem notado que eles fossem também, por vezes,
sempre as mesmas andam juntas, procurei notar as mudanças que ocorriam provocados pela obesidade do estômago; mas, quando isso acontece, creio
no corpo, quando elas mudavam de companhia. Assim, por exemplo, se o que é um movimento de que a natureza se serve para fazer com que o suco das
amor andasse sempre junto com a alegria, não saberia a qual dos dois se deve­ carnes passe mais rapidamente pelo coração e assim que o estômago seja de
ria atribuir o calor e a dilatação que eles fazem sentir à volta do coração; mas, preferência aliviado. Pois os suspiros*, agitando o pulmão, fazem com que o
dado que ele está também, às vezes, ligado à tristeza, e que então se sente ain­ sangue que contém, desça mais rapidamente pela artéria venosa no lado
da esse calor mas já não essa dilatação, supus que o calor pertence ao amor, e a esquerdo do coração, e deste modo que o novo sangue, composto pelo suco
dilatação à alegria. E embora o desejo esteja quase sempre com o amor, eles das carnes, que vem do estômago pelo fígado e pelo coração até ao pulmão,
não estão, contudo, sempre juntos no mesmo grau: porque, mesmo que se possa ser aí facilmente recebido.
ame muito, deseja-se pouco, quando se não concebe nenhuma esperança; Quanto aos remédios contra os excessos das paixões, confesso que são
e porque não se tem então a diligência e prontidão que se teria, se o desejo fos­ difíceis de praticar, e mesmo que não são suficientes para impedir as desor­
se maior, pode considerar-se que é dele que ela vem, e não do amor. dens que acontecem no corpo, mas apenas para fazer com que a alma não seja
Creio realmente que a tristeza tira o apetite a muitos; mas como sempre perturbada, e que possa manter o seu juízo livre. Razão pela qual não consi­
experimentei em mim que ela o aumenta, tinha-me regulado por isso. E consi­ dero que seja necessário ter um conhecimento exacto da verdade de cada coi­
dero que a diferença que acontece a esse respeito vem do facto de o primeiro sa, nem mesmo ter previsto em particular todos os acidentes que podem so­
motivo de tristeza que alguns tiveram no começo da sua vida ter sido não re­ brevir, o que seria sem dúvida impossível; mas é suficiente ter imaginado em
ceberem comida suficiente, e que o dos outros foi o de lhes ser prejudicial a geral alguns mais desagradáveis do que os que acontecem, e estar preparado
que recebiam. E nestes o movimento dos espíritos que tira o apetite permane­ para os suportar. Também não creio que se peque muito por excesso ao dese­
ceu depois sempre ligado à paixão da tristeza. Vemos também que os movi­ jar as coisas necessárias para a vida; é tão-só em relação às más ou supérfluas
mentos que acompanham as outras paixões não são inteiramente semelhan­ que os desejos precisam de ser regrados. Porque aqueles que tendem apenas
tes em todos os homens, o que pode ser atribuído a uma causa parecida. para o bem são, parece-me, tanto melhores quanto maiores forem; e embora
Quanto à admiração, se bem que tenha origem no cérebro, e assim que o eu tenha querido favorecer o meu defeito, colocando uma não sei que langui­
simples temperamento do sangue não a possa causar, do mesmo modo que dez em relação às paixões desculpáveis, aprecio contudo muito mais a dili­
pode frequentemente causar a alegria ou a tristeza, contudo ela pode, por gência dos que se entregam sempre com ardor a fazer as coisas que acreditam
meio da impressão que produz no cérebro, agir sobre o corpo tanto como ser de certa forma o seu dever, ainda que não esperem daí muitos frutos.
qualquer das outras paixões, ou mesmo mais, de certa forma, já que a surpre­ Levo uma vida tão isolada, e estive sempre tão afastado da gestão dos ne­
sa que ela contém causa os movimentos mais rápidos de todos. E como se gócios, que não seria menos impertinente do que aquele filósofo que queria en­
pode mover a mão ou o pé quase ao mesmo tempo que se pensa em movê-los, sinar o dever de um capitão na presença de Aníbal, se tentasse escrever aqui as
uma vez que a ideia deste movimento, que se forma no cérebro, envia os espí­ máximas que se devem observar na vida civil. E não tenho dúvida nenhuma de
ritos para os músculos que servem para este efeito; assim a ideia de uma coisa que aquela que Vossa Alteza propõe seja a melhor de todas, a saber, que vale
agradável que surpreende o espírito, envia imediatamente os espíritos aos mais regular-se pela experiência do que pela razão, porque raramente se lida
nervos que abrem os orifícios do coração; e a admiração não faz nisto outra com pessoas perfeitamente racionais, como todos os homens deveriam ser, a
coisa senão, pela sua surpresa, aumentar a força do movimento que causa a fim de que pudéssemos julgar o que eles farão, pela mera consideração daquilo
alegria, e fazer com que, estando os orifícios do coração dilatados repentina­ que eles deveriam fazer; e frequentemente os melhores conselhos não são os
mente, o sangue que entra pela veia cava, e que sai pela artéria pulmonar, in­ mais felizes. É por isso que somos forçados a arriscar, e a abandonarmo-nos à
che subitamente o pulmão. sorte, que desejo tão obediente aos vossos desejos como eu sou, etc.
Os mesmos sinais exteriores, que costumam acompanhar as paixões,
podem também por vezes ser produzidos por outras causas. Assim, o rubor
da face não vem sempre da vergonha; mas pode também vir do calor do fogo,
ou de se fazer exercício. E o riso que denominamos sardónico mais não 6 do
118 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 119

Descartes a Elisabeth Elisabeth a Descartes


Egmond, Maio de 1646 Haia, Julho de 1646

Senhora, Senhor Descartes,

A oportunidade que tenho de dar esta carta ao Senhor de Beclin, que é um muito Uma vez que a vossa viagem se mantém para 3/13 deste mês, importa que vos
íntimo amigo meu, e em quem confio tanto como em mim mesmo, é o motivo represente a promessa que me fizestes de abandonar a vossa agradável solidão,
pelo qual tomo a liberdade de confessar uma falha assinalável que cometi no Tm para me dar a felicidade de vos ver, antes que a minha partida daqui me faça per­
tado das Paixões, dado que, para favorecer a minha negligência, coloquei, entre as der a esperança disso por seis ou sete meses, que é o final mais distante que a au­
emoções da alma que são desculpáveis, uma não sei que languidez que nos im­ torização da Rainha minha mãe, do senhor meu irmão, e o sentimento dos ami­
pede por vezes de executar as coisas que foram aprovadas pelo nosso juízo. E o gos da nossa casa prescreveram para a minha ausência. Mas ser-me-ia ainda de­
que me deu mais escrúpulos nisto, foi lembrar-me que Vossa Alteza notou parti­ masiado longo, se não me assegurasse de que continuareis a caridade de me dei­
cularmente essa passagem, como significando não desaprovar a sua prática xar aproveitar das vossas meditações através das vossas cartas, já que, sem a sua
numa matéria em que eu não posso ver que ela seja útil. Confesso que temos assistência, os frios do norte, e o calibre das pessoas com quem eu poderia con­
muita razão em perder tempo para deliberar, antes de começar coisas que são de versar, apagariam este pequeno raio de senso comum que tenho por natureza, e
importância; mas logo que uma tarefa foi iniciada, e que estamos de acordo no de que reconheço o uso pelo vosso método. Prometem-me na Alemanha ócio e
principal, não vejo que haja algum benefício em procurar demoras discutindo as tranquilidade suficientes para poder estudá-lo, e não levo tesouros maiores, de
condições. Porque se a tarefa, não obstante isso, for bem sucedida, todas as pe­ onde pretenda tirar mais satisfação, do que os vossos escritos. Espero que me
quenas vantagens que poderíamos ter adquirido por esse meio não servem tanto permitais levar o das paixões, se bem que ele não tenha conseguido acalmar
como pode prejudicar o aborrecimento que causam habitualmente essas demo­ aqueles que a nossa última desgraça excitara. Seria necessário que a vossa pre­
ras; e se não for bem sucedida, tudo isso não serve para mais do que dar a conhe­ sença trouxesse a cura, que nem as vossas máximas nem o meu raciocínio
cer ao mundo que tivemos projectos que falharam. Além de que acontece muito tinham conseguido aplicar. Os preparativos da minha viagem e os assuntos do
mais frequentemente, quando a tarefa que empreendemos é muito boa, que, en­ meu irmão Philippe, aliados a uma condescendência pelos prazeres da minha
quanto adiamos a sua execução, ela evade-se, o que não acontece quando ela é tia, impediram-me, até aqui, de vos enviar os agradecimentos que vos devia pela
má. E por isso que eu me convenço de que a resolução e a rapidez são virtudes utilidade desta visita; peço-vos que os recebais neste momento da
muito necessárias para as tarefas já começadas. E não temos motivo para temer t> Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos,
que ignoramos; porque frequentemente as coisas que mais receámos, antes de as
conhecermos, revelam-se melhores do que aquelas que desejámos. Assim, o me­ Elisabeth
lhor a este respeito é confiar na providência divina, e deixar-se conduzir por ela.
Estou convencido de que Vossa Alteza entende muito bem o meu pensamento,
ainda que eu o explique muito mal, e que perdoa o zelo extremo que me obriga .1 Sou obrigada a enviar esta pelo mensageiro, porque a sua rapidez me é mais
escrever isto; porque sou, tanto quanto posso ser, etc. necessária, neste momento, do que a sua segurança.
120 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 121

Mas é um tema muito mau para fazer livros, tentar dar tais preceitos
que, no fim de contas, não poderiam tranquilizar aqueles a quem ele os dá;
porque, como ele próprio confessa, eles não podem defender-se do primeiro que
quiser desprezar a sua vida para se vingar deles. Ao passo que, para instruir um
bom príncipe, ainda que recentemente entrado num Estado, me parece que se
lhe devem propor máximas totalmente contrárias, e supor que os meios de
que ele se serviu para se estabelecer foram justos; como, efectivamente, penso
que são quase todos, quando os príncipes que os praticam os consideram
Descartes a Elisabeth como tal; porque a justiça entre os soberanos tem outros limites que entre os
Egmond, Setembro de 1646 particulares, e parece que nestas ocorrências Deus dá o direito àqueles a
quem dá a força. Mas as mais justas acções tornam-se injustas, quando aque­
les que as praticam as consideram como tal.
Deve igualmente distinguir-se os súbditos, os amigos ou aliados e os
inimigos. Porquanto, em relação a estes últimos, tem-se quase permissão de
Senhora, fazer tudo, desde que daí se tire alguma vantagem para si ou para os seus súb­
ditos; e não desaprovo, nessa ocasião, que se acasale a raposa com o leão, e
Li o livro a respeito do qual Vossa Alteza me pediu para lhe escrever a minha que se junte a manha à força. Além disso incluo, sob o nome de inimigos, to­
opinião, e encontro nele vários preceitos que me parecem muito bons; como, dos aqueles que não são amigos ou aliados, dado que se tem o direito de lhes
entre outros, no 19.° e 20.° capítulos: Que um soberano deve sempre evitar o ódio e t> mover guerra, quando se vê vantagem nisso, e que, começando a tornar-se
desprezo dos seus súbditos, e que o amor do povo vale mais do que asfortalezas. Mas suspeitos e temíveis, há motivos para desconfiar deles. Mas ressalvo uma es­
nele há também outros que eu não poderia aprovar. E creio que aquilo em que pécie de embuste, que é de tal modo directamente contrária à sociedade, que
o autor falhou mais, foi em não ter feito suficiente distinção entre os sober, i não creio que seja alguma vez permitido servir-se dela, se bem que o nosso
nos que adquiriram um Estado por vias justas, e aqueles que o usurparam poi autor a aprove em diversas passagens, e ela seja demasiado praticada: é fingir
meios ilegítimos; e ter dado a todos, em geral, os preceitos que são próprio:, ser amigo daqueles que se quer afundar, a fim de melhor os poder surpreen­
unicamente destes últimos. Porque como, ao construir uma casa cujos alicci der. A amizade é uma coisa demasiado santa para se abusar dela deste modo;
ces são tão maus que não poderiam sustentar muralhas altas e espessas, se o e aquele que tiver conseguido fingir amar alguém, para o trair, merece que
obrigado a fazê-las fracas e baixas, assim os que começaram a estabelecer-si • aqueles que ele quiser em seguida amar verdadeiramente, não acreditem em
através de crimes são por via de regra obrigados a continuar a cometê-los, o nada disso e o odeiem.
não poderiam manter-se se quisessem ser virtuosos. No que diz respeito aos aliados, um príncipe deve respeitar exactamente
Foi em relação a tais soberanos que ele pôde dizer, no capítulo 3: Que eles a sua palavra, mesmo quando isso lhe for prejudicial; porque isso não o seria
não poderiam deixar de ser odiados por vários; e que têmfrequentemente mais vanlu tanto, como lhe é útil a reputação de nunca deixar de fazer o que prometeu; e
gem em fazer muito mal do que emfazer menos, dado que as ofensas ligeiras bastam não pode adquirir essa reputação a não ser em tais ocasiões, em que há alguma
para provocar vontade de se vingar, e que as grandes tiram o poder de ofazer. Depois, perda para ele; mas naquelas que o arruinariam inteiramente, o direito das pes­
no capítulo 15: Que, se eles quisessem ser pessoas de bem, seria impossível que não se soas dispensa-o da sua promessa. Deve também ser muito cauteloso, antes de
arruinassem entre o grande número de malvados que se encontram em todo o lado prometer, a fim de poder sempre manter a sua palavra. E ainda que seja bom ter
E no capítulo 19: Que se pode ser odiado tanto por boas como por más acções. amizade com a maioria dos seus vizinhos, creio no entanto que o melhor é não
Sobre tais fundamentos ele assenta preceitos muito tirânicos, como ter quaisquer alianças estreitas, a não ser com aqueles que são menos podero­
querer que se arruine todo um país, afim de se manter o soberano; que se exerçam sos. Porque, qualquer que seja a fidelidade que se tencione ter, não se deve es­
grandes crueldades, desde que sejam rápidas e todas ao mesmo tempo; que se tente perar a mesma dos outros, mas estar certo de que se será enganado, todas as ve­
parecer homem de bem, mas que não se seja verdadeiramente; que não se mantenha zes que o acharem vantajoso para si; e aqueles que são mais poderosos podem
a palavra a não ser enquanto elafor útil; que sefinja e se traia; e, finalmente, que, achá-lo, quando querem, mas não aqueles que o são menos.
para reinar, se despoje de toda a humanidade, e se torne o mais selvagem de todos <>■■ Quanto aos súbditos, há dois tipos: a saber, os grandes e o povo. Englo­
animais. bo, sob o nome de grandes, todos aqueles que podem formar partidos contra
122 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 123

o príncipe, de cuja fidelidade este deve estar muito seguro; ou, se não está, pública à dos particulares. Só há dificuldade quando se é obrigado a satisfa­
todos os políticos estão de acordo em como deve aplicar todos os cuidados a zer dois partidos que avaliam diferentemente a respeito do que é justo, como
rebaixá-los, e que quando estão predispostos a perturbar o Estado, deve con quando os imperadores romanos tinham de contentar os cidadãos e os solda­
siderá-los pura e simplesmente como inimigos. Mas, quanto aos outros súb dos; caso em que é razoável conceder alguma coisa a uns e a outros, e não se
ditos, deve sobretudo evitar o seu ódio e desprezo; o que julgo que ele pode deve tentar fazer chegar de repente à razão aqueles que não estão acostuma­
sempre fazer, desde que cumpra exactamente a justiça ao modo deles (quoi dos a entendê-la; mas é preciso tentar pouco a pouco, seja mediante escritos
dizer, seguindo as leis às quais eles estão acostumados), sem ser demasiado públicos, seja pelas vozes dos pregadores, seja por outros meios, levá-los a
rigoroso com as punições, nem demasiado indulgente com os perdões, e que concebê-la. Porque, finalmente, o povo suporta tudo o que podemos persua­
não confie tudo aos seus ministros, mas que, deixando-lhes apenas o ónus dai. di-lo de que é justo, e ofende-se com tudo o que imagina ser injusto; e a arro­
condenações mais odiosas, demonstre ter ele próprio o cuidado de tudo o res gância dos príncipes, isto é, a usurpação de alguma autoridade, de alguns di­
to; depois, também, que conserve de tal modo a dignidade, que não renuncii ■ reitos, ou de algumas honras que ele crê não lhes serem de forma nenhuma
a nenhuma das honras e deferências que o povo crê serem-lhe devidas, ma', devidas, só lhe é odiosa se a considerar como uma espécie de injustiça.
que não exija nada de mais, e que não mande tornar públicas senão as suas ac De resto, também não sou da opinião desse autor, naquilo que ele diz no
ções mais sérias, ou aquelas que podem ser aprovadas por todos, reserva n seu prefácio: Que, da mesmaforma que é preciso estar na planície, para melhor ver o
do-se o gozo dos seus prazeres em privado, sem que isso seja nunca à custa 11»■ aspecto das montanhas, quando se quer desenhá-las a lápis, deve ser-se de condição
alguém; e, por último, que seja imutável e inflexível, não nos primeiros desíg privada, para conhecer bem o ofício de um príncipe. Porque o lápis apenas repre­
nios que tiver formado em si mesmo, porquanto, na medida em que não podi ■ senta as coisas que se vêem de longe; mas os principais motivos das acções
ter olhos para tudo, é necessário que peça conselho, e ouça as razões de va dos príncipes são frequentemente circunstâncias tão particulares que, se não
rios, antes de se resolver; mas que seja inflexível no que diz respeito às cois, i formos nós próprios também príncipes, ou então se não tivermos sido duran­
que tiver demonstrado ter resolvido, mesmo que elas lhe sejam préjudiciai1, te muito tempo participantes dos seus segredos, não poderemos imaginá-los.
porque dificilmente podem sê-lo tanto como seria a reputação de ser superi i É por isso que eu mereceria ser desprezado, se pensasse poder ensinar
ciai e variável. alguma coisa a Vossa Alteza nesta matéria; também não é esse o meu intento,
Assim, desaprovo a máxima do capítulo 15: Que, estando o mundo imensa mas tão-só fazer com que as minhas cartas lhe dêem uma espécie de diverti­
mente corrompido, é impossível que não nos arruinemos, se quisermos ser sempre lu> mento, que seja diferente daqueles que eu imagino que tenha na sua viagem,
mens de bem; e que um príncipe, para se manter, deve aprender a ser malvado, quamí > a qual lhe desejo perfeitamente feliz: como será sem dúvida, se Vossa Alteza
a ocasião o requer; a não ser talvez que, por homem de bem, ele entenda um lu» se resolver a praticar essas máximas que ensinam que a felicidade de alguém
mem supersticioso e simples, que não ousa lutar no dia do Sabbat, e cuja cotv. depende de si mesmo, e que é preciso de tal modo permanecer fora do impé­
ciência não pode estar descansada, se não mudar a religião do seu povo. M.r. rio da fortuna, que, ainda que não se percam as oportunidades de usufruir as
pensando que um homem de bem é aquele que faz tudo o que lhe dita a vm vantagens que ela possa dar, não se pense contudo ser-se infeliz quando ela as
dadeira razão, é certo que o melhor é procurar sê-lo sempre. recusa; e visto que em todos os assuntos profanos há uma quantidade de ra­
Também não creio no que está no capítulo 19: Que se pode ser odiado hmIr zões a favor e contra, que nos detenhamos principalmente a considerar aque­
pelas boas acções, como pelas más, a não ser enquanto a inveja é uma espécie ili las que servem para fazer com que se aprovem as coisas que vemos acontecer.
ódio ; mas não é esse o sentido do autor. E os príncipes não costumam ser in v<• Tudo o que considero o mais inevitável são as doenças do corpo, das quais
jados pelo comum dos seus súbditos; são-no apenas pelos grandes, ou polo' peço a Deus que vos preserve; e sou com toda a devoção que posso ter, etc.
seus vizinhos, a quem as mesmas virtudes que lhes provocam inveja, provi i
cam também receio; é por isso que nunca devemos abster-nos de fazer o bem
para evitar este tipo de ódio; e não há nenhum que possa prejudicá-los m.ii'
do que aquele que vem da injustiça ou da arrogância que o povo julga exislli
neles. Porque vemos que mesmo aqueles que foram condenados à morte, n.li >
costumam odiar os seus juízes, quando pensam tê-la merecido; e sofrenu".
também com paciência os males que não merecemos, quando acreditamos t |i n
o príncipe, de quem os recebemos, é de certa forma obrigado a fazê-los e lem
desgosto nisso; porque consideramos que é justo que ele prefira a utiliil.ul.
124 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 125

I)e igual modo, quando as violências vêm prontamente e todas de uma vez, ir­
ritam menos do que espantam, e são também mais suportáveis para o povo do
que uma longa sequência de misérias que as guerras civis provocam.
Parece-me que ele acrescenta ainda, ou melhor ensina, pelo exemplo do
sobrinho do papa Alexandre, que apresenta como um político perfeito, que o
príncipe deve utilizar nessas grandes crueldades algum ministro que possa
depois sacrificar ao ódio do povo; e embora pareça injusto ao príncipe fazer
perecer um homem que lhe teria obedecido, eu julgo que pessoas tão bárbaras
Elisabeth a Descartes e desnaturadas, que se querem dedicar a servir de carrasco a todo um povo,
Berlim, 10 de Outubro de 1646 por qualquer motivo que seja, de modo nenhum merecem melhor tratamen­
to; e quanto a mim, preferiria a condição do mais pobre camponês da Holan­
da à do ministro que quisesse obedecer a semelhantes ordens, ou à do prínci­
pe que fosse obrigado a dá-las.
Quando o mesmo autor fala dos aliados, supõe-nos, do mesmo modo,
Senhor Descartes, tão malvados quanto possam ser, e as questões tão extremadas, que é preciso
perder toda uma república, ou faltar à palavra com aqueles que a guardam
Tendes razão em considerar que a distração (divertissement) que as vossas ou apenas enquanto ela lhes for útil.
tas me proporcionam é diferente daquela que tive na viagem, já que ela met I.i Mas, se ele não tem razão em fazer máximas gerais daquilo que não se
uma satisfação maior e mais duradoira; embora eu tenha encontrado nela deve praticar a não ser em muito poucas ocasiões, peca nisso igualmente com
tudo o que podem dar-me a amizade e o carinho dos meus parentes, conside quase todos os santos padres e os antigos filósofos, que fizeram o mesmo; e
ro-os como coisas que poderiam mudar, ao passo que as verdades que aquele creio que isso vem do prazer que têm em dizer paradoxos, que podem depois
me ensina deixam no meu espírito impressões que contribuirão sempre pare explicar aos seus alunos. Quando este homem diz que nos arruinamos, se qui­
o contentamento da minha vida. sermos ser sempre pessoas de bem, creio que ele não supõe que, para ser pes­
Tenho muita pena de não ter levado por via terrestre o livro, que tivestes >> soa de bem, seja preciso seguir as leis da superstição, mas essa lei comum, se­
incómodo de examinar para me comunicar o vosso sentimento, deixando-im gundo a qual é preciso fazer a cada um, como gostaríamos que nos fizessem a
persuadir de que a bagagem que enviasse por mar para Hamburgo estaria aqu i nós: o que os príncipes não saberiam quase nunca observar a um dos seus
mais cedo do que nós; e ainda não está cá, apesar de já termos chegado no dia sixbditos em particular, que é preciso perder todas as vezes que a utilidade
7/17 de Setembro passado. Pelo que não poderia reproduzir máximas desse pública o exige. E uma vez que, perante vós, ninguém disse que a virtude con­
autor a não ser do modo que uma memória péssima me pode fornecer de um Ii siste apenas em seguir a razão recta, mas prescreveram-lhe algumas leis ou
vro para o qual não olhei nos últimos seis anos. Mas lembro-me que então apn > regras mais particulares, de modo nenhum é preciso admirar-se de terem fa­
vava algumas delas, não por serem boas em si, mas porque causam menos mal lhado em defini-la bem.
do que aquelas de que se servem uma quantidade de ambiciosos imprudentes, Acho que a regra, que observais no seu prefácio, é falsa, porque ele não
que eu conheço, que não tendem senão a confundir, e deixar o resto à fortuna; « conheceu pessoa clarividente em tudo o que se propõe, como vós sois, por
as do referido autor tendem todas para a estabilidade (établissement). consequência que, em particular e retirada da confusão do mundo, seria não
Parece-me também que, para ensinar o governo de um Estado, ele tem obstante capaz de ensinar aos príncipes como devem governar, como ressalta
em vista o Estado mais difícil de governar, em que o príncipe é um novo usu r naquilo que escreveis.
pador, pelo menos na opinião do povo; e neste caso, a opinião que ele próprio Pela minha parte, que tenho unicamente o título, esforço-me apenas por
terá da justiça da sua causa poderia servir para descanso da sua consciência, me servir da regra que propondes no final da vossa carta, tentando tornar as
mas não para o dos seus negócios, em que as leis contrariam a sua autoridade, coisas presentes o mais possível agradáveis. Aqui não encontro nisso muita
em que os grandes a ameaçam e em que o povo a maldiz. E quando o Estado é dificuldade, estando numa casa em que fui amada desde a infância e em que
assim regulado, as grandes violências fazem menos mal do que as pequenas, toda a gente concorre para me acarinhar. Ainda que eles me afastem por vezes
porque estas ofendem tanto como aquelas, e dão motivo para uma longa guer de ocupações mais úteis, suporto facilmente esse incómodo, pelo prazer que
ra; aquelas tiram a coragem e os meios aos grandes que poderão empreendê-la. há em ser se amado pelos parentes. Aí está, Senhor, a razão pela qual não tive
126 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 127

antes tempo para vos dar conta do bom sucesso da nossa viagem, como ela se
passou sem nenhum transtorno, com a rapidez que vos disse acima, e da fon
te miraculosa de que me falastes em Haia.
Estive a menos de uma légua dela, em Cheuningen, onde encontrámos
toda a família desta casa que vinha de lá. O Senhor Eleitor queria levar-me lá
para a ver; mas como o resto da nossa companhia opinava por um outro di
vertimento, de modo nenhum ousei contrariá-los, e contentei-me em ver o
provar a água, de que há diversas fontes de diferente sabor; mas servem-se
principalmente apenas de duas, a primeira das quais é clara, salgada, e um.i Descartes a Elisabeth
purga forte; a outra, um pouco esbranquiçada, sabe a água misturada com lei Novembro de 1646
te, e é, pelo que se diz, refrescante. Fala-se duma quantidade de curas mila
grosas que elas fazem; mas não pude ouvi-lo de ninguém credível. Dizem que
este lugar está cheio de pobres; que apregoam ter nascido surdos, cegos, co
xos ou corcundas e encontrado a cura nesta fonte. Mas uma vez que são pes
soas mercenárias, e que têm pela frente uma nação bastante crédula em mila Senhora,
gres, não creio que isso deva persuadir as pessoas razoáveis. De toda a corti'
do Senhor Eleitor meu primo, apenas o seu escudeiro-mor se deu bem com Recebi um favor imenso de Vossa Alteza, por ter querido que eu soubesse pe­
ela. Tinha uma ferida sob o olho direito, devido à qual perdeu a vista de um las suas cartas o êxito da sua viagem, e que chegou felizmente a um lugar
lado, por meio de uma pequena pele, que lhe nasceu por cima desse olho; e a onde, sendo grandemente estimada e querida pelos seus parentes, me parece
água salgada desta fonte, ao ser aplicada sobre o olho, dissipou a dita pele, d<■ que tem tantos bens quantos se pode razoavelmente desejar nesta vida. Por­
tal modo que ele consegue, neste momento, reconhecer as pessoas fechando i> que, sabendo a condição das coisas humanas, seria importunar demasiado a
olho esquerdo. Além de que, sendo um homem de constituição forte e de ma fortuna, esperar dela tantas graças que não se pudesse, mesmo imaginando,
dieta, uma boa purga não poderia prejudicá-lo, como fez a alguns outros. encontrar nenhum motivo de descontentamento. Quando não há nenhuns
Examinei o número36 que me enviastes e considero-o muito bom, mas objectos presentes que ofendam os sentidos, nem nenhuma indisposição no
demasiado prolixo para escrever todo um sentido; e se escrevermos apen.r corpo que o incomode, um espírito que segue a verdadeira razão pode facil­
poucas palavras, descobri-las-iam pela quantidade das letras. Valia mais la mente contentar-se. E não é necessário, para isso, que ele esqueça ou negli­
zer uma chave das palavras pelo alfabeto, e depois marcar alguma distinç.u > gencie as coisas afastadas; basta que procure não ter nenhuma paixão por
entre os números que significam letras e os que significam palavras. aquelas que podem desagradar-lhe: o que não repugna nada à caridade, já
Tenho aqui tão pouco tempo para escrever, que sou obrigada a enviar-vi d que podemos frequentemente encontrar mais facilmente remédios para os
este rascunho, onde podeis notar, pelas diferenças da pena, todas as vezes que males que examinamos sem paixão, do que para aqueles com os quais esta­
fui interrompida. Mas prefiro aparecer diante de vós com todas as minhas í.il mos preocupados. Mas, como a saúde do corpo e a presença dos objectos
tas do que dar-vos motivos para acreditar que tenho um vício tão afastado do agradáveis ajudam muito o espírito, para expulsar de si todas as paixões que
meu natural, como é o de esquecer os meus amigos na sua ausência, princip. 11 participam da tristeza, e a dar guarida àquelas que participam da alegria, as­
mente uma pessoa que eu não poderia deixar de estimar, sem deixar de sei sim, reciprocamente, quando o espírito está cheio de alegria, isso contribui
também racional, como vós. Senhor, a quem serei toda a minha vida. muito para fazer com que o corpo passe melhor e os objectos presentes pare­
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos, çam mais agradáveis.
E também ouso crer que a alegria interior tem alguma força secreta para
Elisabeth tomar a sorte mais favorável. Não escreveria isto a pessoas que tivessem o es­
pírito fraco, por medo de as induzir em alguma superstição; mas, a respeito
de Vossa Alteza, receio apenas que troce de ver que eu me torno demasiado
crédulo. Contudo, tenho uma infinidade de experiências, e com elas a autori­
36 Trata-se de um código proposto por Descartes no intuito de garantir o segredo da convi
dade de Sócrates, para confirmar a minha opinião. As experiências são que
pondêncin. notei frequentemente que as coisas que fiz com o coração alegre, e sem
128 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O R R E S P O N D Ê N C IA E N T R E D E S C A R T E S E A P R IN C E S A E L IS A B E T H D A B O É M IA 129

repugnância interior, costumam correr-me bem, até mesmo nos jogos de azar, Como quer que seja, a qualidade de purgar que existe numa dessas fontes, e a
em que a fortuna reina sozinha, senti-a sempre mais favorável, tendo, além cor branca com a doçura e a qualidade refrescante da outra, dão motivo para
disso, motivos de alegria, do que quando os tinha de tristeza. E o que é co­ julgar que elas passam por minas de antimónio ou de mercúrio, que são duas
mummente designado como o génio de Sócrates, não foi sem dúvida outra drogas nocivas, principalmente o mercúrio. E por isso que eu não aconselha­
coisa, senão que ele se tinha habituado a seguir as suas inclinações interiores, ria ninguém a bebê-la. O vitríolo e o ferro das águas de Spa são bem menos de
e pensava que a ocorrência daquilo que empreendia seria feliz, quando tinha temer; e porque um e outro diminuem o baço e fazem purgar a melancolia,
algum sentimento secreto de alegria, e, pelo contrário, que seria infeliz, quan­ aprecio-os.
do estava triste. É verdade, contudo, que seria ser supersticioso acreditar tan­ Efectivamente, Vossa Alteza permitir-me-á, por favor, que acabe esta
to nisso como se diz que ele fazia; porque Platão conta dele que até ficava em carta por onde a comecei, e desejar-lhe principalmente satisfação de espírito e
casa, todas as vezes que o seu génio não o aconselhava a sair. Mas, no que diz alegria, como sendo não só o fruto que se espera de todos os outros bens, mas
respeito às acções importantes da vida, quando elas se acham tão duvidosas, também frequentemente um meio que aumenta as graças que se tem para os
que a prudência não pode ensinar o que se deve fazer, parece-me que é muito adquirir; e embora eu não seja capaz de contribuir com nada que diga respeito
fundado seguir o conselho do génio, e que é útil ter uma forte persuasão de ao vosso serviço, a não ser apenas com os meus desejos, ouso contudo assegu­
que as coisas que empreendemos sem repugnância, e com a liberdade que por rar que sou mais perfeitamente que nenhum outro que esteja no mundo, etc.
via da regra acompanha a alegria, não deixarão de nos correr bem.
Assim, ouso aqui exortar Vossa Alteza, já que se encontra num lugar em
que os objectos presentes apenas lhe dão satisfação, que lhe agrade também
contribuir com a sua parte para tentar tornar-se contente; o que pode, pare­
ce-me, facilmente, detendo o seu espírito tão-só nas coisas presentes, e não
pensando nunca nos negócios, a não ser nas horas em que o correio está pres­
tes a partir. E calculo que é uma felicidade que os livros de Vossa Alteza não
tenham podido ser-lhe levados tão cedo quanto os esperava; porquanto a sua
leitura não é tão adequada para manter a alegria, como para fazer vir a triste-
za, principalmente a do livro deste Doutor dos Príncipes,37que, representan­
do apenas as dificuldades que eles têm em manter-se, e as crueldades ou per
fídias que ele lhes aconselha, faz com que os particulares que o lêem, tenham
menos motivo para invejar a sua condição, do que para ter pena dela.
Vossa Alteza notou perfeitamente bem as suas falhas, e as minhas; por
que é verdade que foi o intento que ele teve de elogiar César Borgia, que o
levou a estabelecer máximas gerais, para justificar acções particulares que
dificilmente podem ser desculpadas; e li depois os seus discursos sobre Tito
Livio, onde não notei nada de mal. E o seu principal preceito, que é destru it
inteiramente os seus inimigos, ou então torná-los amigos, sem seguir nunca a
via do meio termo, é sem dúvida sempre o mais seguro; mas, quando não se
tem nenhum motivo para temer, não é o mais generoso.
Vossa Alteza também notou muito bem o segredo da fonte milagrosa:
é que há vários pobres que apregoam as suas virtudes, e que são talvez contra
tados por aqueles que esperam lucro disso. Porque é certo que não há no
nhum remédio que possa servir para todos os males; mas, tendo vários usado
aquele, os que se sentiram bem dizem bem dele, e não se fala nada dos outros.

37 Maquiavel.
130 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 131

particularmente dos doutos, que são ainda mais pedantes e supersticiosos do


que qualquer um dos que conheci na Holanda; e isso vem do facto de todo o
povo ser aí tão pobre, que ninguém estuda ou raciocina, a não ser para viver.
Tive todas as dificuldades do mundo para me livrar das mãos dos médi­
cos, para não pagar pela ignorância dos mesmos, sem ter estado doente, ape­
nas porque a mudança de ar e de dieta me deu, em vez de sarna, alguns apos­
temas38 nos dedos. Donde estes senhores julgaram que havia ainda matéria
maligna escondida, que era demasiado grosseira para se evacuar por aí, à
Elisabeth a Descartes qual era necessário opor purgas e sangria; mas sentindo-me, pelo contrário,
Berlim, 29 de Novembro de 1646 tão bem disposta que engordo a olhos vistos, fiz valer a teimosia, onde a razão
me era inútil, e não tomei nada até este momento. Receio tanto mais as medi­
cinas daqui, porque toda a gente se serve de extractos químicos, cujos efeitos
são rápidos e perigosos.
Aqueles que investigaram os ingredientes da fonte de Hornhausen crê­
Senhor Descartes, em que a nascente salgada não contém mais do que sal vulgar; e quanto à ou­
tra, não há meio de se entenderem. Atribuem também (principalmente os lu­
Não estou tão acostumada aos favores da sorte que espere dela algo de extra teranos) o seu efeito mais ao milagre do que à composição da água. Pela mi­
ordinário; basta-me quando ela me não envia muito frequentemente desas nha parte, tomarei o partido mais seguro, segundo a vossa opinião, e não me
très que dariam motivo de tristeza ao maior filósofo do mundo. E uma Vez servirei dela.
que não me aconteceu nada de semelhante, desde a minha estadia aqui, qu< Espero também não estar nunca em estado de seguir os preceitos do
os objectos presentes me são todos agradáveis, e que o ar do país não se <la doutor dos príncipes, uma vez que a violência e a desconfiança são coisas
mal com a minha compleição, encontro-me em estado de poder praticar ai. contrárias ao meu temperamento. Ainda que não censure aos tiranos senão o
vossas lições a respeito da alegria, embora não espere dela, na condução dos primeiro propósito de usurpar um país, e a primeira iniciativa; porque de­
meus afazeres, os efeitos que vós experimentastes nos jogos de azar, porque.i pois, a via que serve para os estabelecer, por mais violenta que seja, faz sem­
felicidade que encontrastes neles, na altura em que estáveis mesmo disposto pre menos mal ao público do que uma soberania contestada pelas armas.
à alegria, provinha, aparentemente, do facto de considerardes então mais 11 Este estudo também de modo nenhum me ocupa o suficiente para me
vremente todas as vantagens que habitualmente fazem com que se ganhe. desgostar, uma vez que emprego o pouco tempo que me sobra das cartas que
Mas, se eu tivesse condições para dispor da minha pessoa, não me deteri, i tenho para escrever, e dos favores que devo fazer aos meus parentes, a reler as
tão facilmente numa situação arriscada, estando num lugar onde encontrei vossas obras, em que aproveito mais numa hora, para cultivar a minha razão,
motivo de contentamento, como naquele de onde venho. E quanto aos interea do que faria toda a minha vida com as outras leituras. Mas não há ninguém
ses da nossa casa, há muito tempo que os confio ao destino, vendo que a pr< > aqui suficientemente razoável para as compreender, ainda que eu tenha pro­
pria prudência, se não fosse socorrida por outros meios que nos restam, esfoi metido ao velho duque de Brunswick, que está em Wolfenbuttel, conseguir
çar-se-ia em vão. Seria necessário um génio mais forte que o de Sócrates, para arranjar-lho, para decorar a sua biblioteca. De modo nenhum creio que elas
trabalhar em tal coisa com sucesso; porque, uma vez que ele não lhe consegu i11 lhe sirvam para decorar o seu cérebro catarroso já completamente ocupado
evitar a prisão nem a morte, não há motivo para se orgulhar muito dele. Tam pelo pedantismo. Deixo-me ir aqui pelo prazer de conversar convosco, sem
bém observei que as coisas em que seguia os meus próprios movimentos, cot me lembrar que não posso, sem pecar contra o género humano, fazer-vos per­
reram melhor do que aquelas em que me deixava conduzir pelo conselho dr der o tempo (que vós empregais em coisas úteis) na leitura das tolices da
mais sábios do que eu. Mas não o atribuo tanto à ventura do meu génio, comi ■ Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos,
ao facto de, tendo mais afeição do que qualquer outra pessoa por aquilo que nic
diz respeito, ter examinado também melhor as vias que me podiam prejud ica i Elisabeth
ou beneficiar, do que aqueles sobre cujo juízo eu me detinha. Se quereis qtir
atribua ainda alguma parte disso à natureza oculta da minha imaginação, creii >
que o fazeis para me ajustar ao temperamento das pessoas deste país, e 38 AbCONNOH,
132 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 133

fazer melhor, pode mudar inteiramente as suas qualidades, e fazer com que
em vez de medicamentos sejam venenos.
É quase a mesma coisa com a ciência, nas mãos daqueles que a querem
debitar sem a conhecer bem; porque, pensando corrigir ou acrescentar algu­
ma coisa àquilo que aprenderam, convertem-na em erro. Parece-me que vejo
a prova disso no livro de Regius, que veio finalmente à luz do dia. Assinalaria
aqui alguns pontos, se pensasse que ele o tivesse enviado a Vossa Alteza; mas
é tão longe daqui a Berlim, que penso que terá esperado pelo vosso regresso
Descartes a Elisabeth para vo-lo oferecer; e eu esperá-lo-ei também, para vos comunicar o meu sen­
Egmond, Dezembro de 1646 timento a respeito dele.
Não me espanto por Vossa Alteza não encontrar nenhuns sábios no país
em que está, que não estejam inteiramente preocupados com as opiniões da
Escola; porque vejo que, mesmo em Paris e em todo o resto da Europa, há tão
poucos, que, se eu o tivesse sabido antes, talvez não tivesse nunca mandado
Senhora, imprimir nada. Todavia, tenho esta consolação de, ainda que esteja seguro de
que muitos não tiveram falta de vontade de me atacar, ainda não houve con­
Nunca encontrei tão boas notícias em nenhuma das cartas que tive anterior­ tudo ninguém que tenha entrado em discussão; e recebo mesmo cumprimen­
mente a honra de receber de Vossa Alteza, como nestas últimas de 29 de No­ tos dos Padres Jesuítas, que sempre julguei serem aqueles que se sentiriam
vembro. Porque elas fazem-me pensar que tendes agora mais saúde e mais mais interessados na publicação de uma nova Filosofia, e que menos me per­
alegria do que alguma vez vos vi antes; e penso que depois da virtude, que doariam, se pensassem poder censurar aí alguma coisa com razão.
nunca vos faltou, são os dois principais bens que se podem ter nesta vida. Ponho entre as obrigações que tenho para com Vossa Alteza, a promessa
De modo nenhum tomo em consideração esse pequeno mal, pelo qual os mé­ que fez ao Senhor duque de Brunswick, que está em Wolfenbuttel, de lhe ar­
dicos pretenderam que lhes désseis que fazer; porque, embora seja por vezes ranjar os meus escritos: porque me convenço de que antes de vós terdes esta­
um pouco incómodo, sou de um país em que ele é tão comum naqueles que do nessas paragens, não tinha a honra de aí ser conhecido. É verdade que não
são jovens, e que além do mais passam muito bem de saúde, que não o consi­ prefiro sê-lo por muitos, mas a minha principal ambição é poder demonstrar
dero tanto como um mal, mas como uma marca de saúde, e um preventivo que sou com uma inteira devoção, etc.
contra as outras doenças. E a prática ensinou bem aos nossos médicos remé­
dios certos para o curar, mas eles não aconselham que nos procuremos livrar
dele noutra estação que não seja a Primavera, pelo facto de então, estando os
poros mais abertos, se poder melhor eliminar a causa respectiva. Assim, Vos­
sa Alteza tem muita razão em não querer usar remédios para isso, principal­
mente à entrada do Inverno, que é o tempo mais perigoso; e se este incômodo
durar até à Primavera, então será fácil afastá-lo com alguns purgantes ligei­
ros, ou caldos refrescantes, em que não entre nada mais do que ervas que se­
jam conhecidas na cozinha, e abstendo-se de comer carnes em que haja dema­
siado sal ou especiarias. A sangria também poderia ser muito útil; mas, visto
que é um remédio em que há algum perigo, e cujo uso frequente encurta a
vida, não lhe aconselho a servir-se dela, a não ser que esteja habituada; por­
que, quando nos fizemos sangrar na mesma estação três ou quatro anos se­
guidos, somos quase obrigados, a partir de então, a fazer todos os anos o mes­
mo. Vossa Alteza faz também muito bem em não querer usar remédios da
química; por mais que se tenha uma longa experiência da sua eficácia, a mais
pequena mudança que se faça na sua preparação, mesmo quando se pensa
134 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 135

imprimir, já que é impossível que finalmente eles não acabem por ser aceites e
trazer utilidade ao público.
Encontrei há pouco aqui um único homem que tinha visto alguma coisa
deles. É um doutor em medicina, chamado Weis, muito sábio também.
Ele disse-me que Bacon lhe tornou primeiro suspeita a filosofia de Aristóte­
les, e que o vosso método a fez rejeitar inteiramente, e convenceu-o da circula­
ção do sangue, que destrói todos os antigos princípios da sua medicina; é por
isso que ele confessa ter consentido nisso a custo. Emprestei-lhe neste mo­
Elisabeth a Descartes mento os vossos Princípios, em relação aos quais prometeu dizer-me as suas
Berlim, 21 de Fevereiro de 1647 objecções: se encontrar algumas, e valerem a pena, enviar-vo-las-ei, a fim de
que possais julgar a capacidade daquele que considero ser o mais racional
entre os sábios deste lugar, já que é capaz de apreciar o vosso raciocínio;
mas asseguro que ninguém poderia estimar-vos mais do que faz a
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.
Senhor Descartes,
Elisabeth
Estimo a alegria e a saúde tanto quanto o fazeis, se bem que prefira a vossa
amizade tanto como a virtude, uma vez que é principalmente daquela que
recebo uma e a outra, junto com a satisfação de espírito que ultrapassa ain­
da a alegria, tendo-me ensinado o meio de a ter. Também não podia falhar
na resolução que tomara de não usar nenhum remédio para o pequeno in­
cómodo com que continuava, já que ela obteve a vossa aprovação. Estou
neste momento tão bem curada destes abcessos, que creio não ter necessi­
dade de tomar medicamentos para purificar o sangue na Primavera, ten­
do-me por isso livrado bastante de maus humores, e dispensado, pelo que
creio, das congestões que o frio e os fogões de aquecimento me teriam de
outro modo dado.
Aminha irmã Henriqueta esteve tão doente que pensámos perdê-la. Foi
isso que me impediu de responder mais cedo à vossa última carta, obrigan­
do-me a estar sempre junto dela. Desde que ela está melhor, fomos obrigados
a seguir a Rainha Mãe da Suécia, todos os dias em trenó, e nos serões às festas
e aos bailes, que são divertimentos muito incómodos para aqueles que po­
dem entregar-se a melhores, mas que incomodam menos, quando se fazem
para e com pessoas das quais não se tem qualquer motivo para desconfiar.
É por isso que eu tenho mais satisfação aqui do que tinha em Haia.
No entanto, estaria mais contente se pudesse empregar o meu tempo na
leitura do livro de Regius e dos vossos sentimentos a esse respeito. Se não re­
gressar a Haia no Verão que vem, o que não posso assegurar, ainda que não te­
nha mudado de decisão, porque isso depende em parte da vontade de outrem
e dos negócios públicos, encarregar-me-ei de fazer vir este nos navios que vão
de Amesterdão a Hamburgo, e espero que me façais o favor de me enviar
aqueles pelo meio habitual. Todas as vezes que leio os vossos escritos, não con
sigo imaginar que possais, efectivamente, arrepender-vos de os ter mandado
136 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 137

de modo que parecem paradoxos, e que o que é posto no princípio não pode
ser provado senão pelo que está perto do fim. Ele não inseriu aí quase absolu­
tamente nada que seja seu, e poucas coisas do que eu não mandei imprimir;
mas não deixou de faltar àquilo que me devia, dado que, fazendo declaração
pública de amizade para comigo, e sabendo bem que eu não queria nada que
o que tinha escrito, no que diz respeito à descrição do animal, fosse divulga­
do, até porque não quisera mostrar-lhe, e me desculpara dizendo que ele não
conseguiria deixar de falar disso aos seus discípulos, se o tivesse visto, ele não
Descartes a Elisabeth deixou de se apropriar de várias coisas, e tendo arranjado forma de obter uma
Haia, Março de 1647 cópia, sem o meu conhecimento, transcreveu particularmente toda a passa­
gem em que falo do movimento dos músculos, e em que considero, por exem­
plo, dois dos músculos que movem o olho, de que ele tem duas ou três pági­
nas, que repetiu duas vezes, palavra a palavra, no seu livro, tanto isso lhe
agradou. E todavia, ele não entendeu aquilo que escrevia; porque omitiu o
Senhora, principal, a saber, que os espíritos-animais que correm do cérebro para os
músculos, não podem voltar pelos mesmos canais por onde vêm, observação
A satisfação que me apercebo que Vossa Alteza recebe no lugar em que está, sem a qual tudo o que ele escreve não vale nada; e dado que não tinha a minha
leva a que não ouse desejar o vosso regresso, ainda que tenha muita dificulda figura, fez uma que mostra claramente a sua ignorância. Disseram-me que ele
de em impedir-me disso, principalmente neste momento em que me encontn > tem presentemente mais um livro de medicina no prelo, no qual fico à espera
em Haia. E por notar, pela vossa carta de 11 de Fevereiro, que não devemos es que tenha posto todo o resto do meu escrito, conforme tiver conseguido dige­
perá-la aqui antes do fim do Verão, tenciono fazer uma viagem a França para ri-lo; teria sem dúvida extraído daí muitas outras coisas; mas soube que não
tratar dos meus assuntos particulares, com o propósito de regressar por altu conseguiu uma cópia, a não ser quando o seu livro acabava de ser impresso.
ra do Inverno; e não partirei antes de dois meses, a fim de que possa previa Mas visto que ele segue cegamente aquilo que acredita serem as minhas opi­
mente ter a honra de receber as ordens de Vossa Alteza, que terão sempre niões, em tudo o que diz respeito à física ou à medicina, se bem que as não en­
mais poder sobre mim do que qualquer outra coisa que exista no mundo. tenda; assim contradiz cegamente, em tudo o que diz respeito à metafísica, de
Louvo Deus por estardes agora de perfeita saúde; mas peço-vos que me que eu lhe pedira que não escrevesse nada, dado que isso não adianta nada ao
perdoeis, se ouso contradizer a vossa opinião, no que diz respeito a não usai seu assunto e que eu estava convencido que ele não seria capaz de escrever
nenhuns remédios, pelo facto de o mal que tivestes nas mãos ter passado; por nada sobre esse assunto que não fosse mal. Mas não consegui nada dele, a não
que pode temer-se, tanto em relação a Vossa Alteza como à Senhora vossa ser que, não tencionando dar-me satisfação, não se importou de me ofender
irmã, que os humores que se purgavam desta forma tenham sido parados, também noutra coisa.
pelo frio da estação, e que na Primavera voltem a trazer o mesmo mal, ou vos Não deixarei de levar amanhã à Menina P. S.39um exemplar do seu livro,
coloquem em perigo de qualquer outra doença, se não remediardes isso com cujo título é Henrici Regifundamenta Physices, com um outro livrinho do meu
uma boa dieta, usando apenas carnes e bebidas que refresquem o sangue, o bom amigo Senhor Hogelande,40 que fez exactamente o contrário de Regius,
purguem sem nenhum esforço. Pois, quanto às drogas, seja dos boticários, dado que Regius não escreveu nada que não fosse plagiado de mim, e que não
seja dos empíricos, tenho-as em tão má consideração, que não ousaria nunca fosse desse modo contra mim, ao passo que o outro não escreveu nada que
aconselhar ninguém a servir-se delas. seja propriamente meu (porque não creio sequer que ele tenha alguma vez
Não sei o que possa ter escrito a Vossa Alteza, no que diz respeito ao li lido bem as minhas obras), e contudo não tem nada que não seja a meu favor.
vro de Regius, que vos dê motivo para querer saber o que aí observei; talvez
não tenha dito a minha opinião, a fim de não influenciar o vosso juízo, no cast >
39 Princesa Sofia.
de já terdes o livro; mas, uma vez que sei que ainda o não tendes, dir-vos-ei 40 Cornells van Hogelande, médico amigo de Descartes, a quem dedicou a sua obra Pensées
aqui sinceramente, que não considero que ele mereça que Vossa Alteza se dê i/nns lesquelles l'existence de Dieu, la spiritualité de lâme, et son union possible avec le corps sont
ao trabalho de o 1er. Não contém nada, no que diz respeito à física, a não ser as démontrées, avec une brève description de Véconomie du corps animal et son explication mécani­
minhas asserções colocadas em má ordem e sem as suas verdadeiras provas, que (1646).
138 MEDICINA DOS AFECTOS
7 CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 139

dado que seguiu os mesmos princípios. Pedirei à Senhora L.41 que mande
acrescentar estes dois livros, que não são volumosos, aos primeiros pacotes
que se digne enviar por Hamburgo, a que eu juntarei a versão francesa das
minhas Meditações, se puder tê-las antes de partir daqui, porque já há bastante
tempo me mandaram dizer que a impressão está concluída. Sou, etc.

Elisabeth a Descartes
Berlim, 11 de Abril de 1647

Senhor Descartes,

Não lamentei nada a minha ausência de Haia, a não ser desde que me comu­
nicastes ter aí estado, e que me sinto privada da satisfação que queria ter na
convivência convosco, durante a estadia que aí fizestes; parecia-me que par­
tia cada vez mais razoável, e embora o descanso que encontro aqui, entre pes­
soas que me estimam e apreciam muito mais do que mereço, ultrapasse todos
os bens que possa ter noutro lado, não chega perto daquele, que eu não pode­
rei contudo esperar em vários meses, nem predizer o número, uma vez que
não vejo que a Senhora Eleitora, minha tia, esteja na disposição de permitir o
meu regresso, e que eu não tenho nenhum motivo para o apressar, antes que o
Senhor seu filho esteja junto dela, o que, segundo ele próprio pede, será ape­
nas no mês de Setembro; e talvez os seus afazeres o obriguem a voltar mais
cedo ou a demorar-se mais tempo. Assim, posso esperar, mas não conven-
cer-me de que terei a felicidade de vos rever na altura em que indicastes o vos­
so regresso de França. Desejo que possais encontrar nesta viagem o sucesso
que procurais, e, se não conhecesse a firmeza das vossas resoluções, temeria
ainda que os vossos amigos vos obrigassem a ficar aí. Peço-vos contudo que
deis uma morada à minha irmã Sofia, a fim de que eu possa ter por vezes notí­
cias vossas, que não deixarão de me ser agradáveis, seja qual for o tempo que
demorem pelo caminho.
Depois da Páscoa, iremos a Crossen, que é a propriedade da Senhora
minha tia, nas fronteiras da Silésia, para aí permanecermos três semanas ou
um mês, em que a solidão me dará mais tempo livre para a leitura, e que em­
pregarei todo nos livros que tivestes a bondade de me enviar, pelos quais vos
peço que recebais os meus agradecimentos. Tive vontade de ver o livro de Re­
gius, mais pelo que sei que ele aí incluiu de vosso, do que pelo que é seu.
Já que, além de ir um pouco depressa, se serviu do auxílio do doutor Jonson,
41 Segundo Adam e Tannery, tratar-se-ia da princesa Sofia (AT IV, p. 62H). que, como ele próprio me disse, é capaz de o confundir ainda mais, tendo ele o
140 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 141

espírito tão baralhado, e não se dando ao trabalho de compreender as coisas


que leu ou ouviu. Mas ainda que eu desculpasse todos os outros erros do dito
Regius, não poderia perdoar-lhe a ingratidão que demonstra para convosco,
e o torna completamente desprezível, já que o vosso convívio não foi capaz de
lhe dar outros sentimentos.
O Sr. Hogelande terá tido seguramente êxito naquilo que mandou im­
primir, uma vez que seguiu os vossos princípios, que eu não seria aqui capaz
de fazer entender a um único dos sábios de Berlim, de tal modo estão preocu­
pados com a Escola. E aquele que nomeei na minha última carta ainda não me Descartes a Elisabeth
viu, desde que lhe emprestei a vossa física, o que é um sinal seguro de que to­ Egmond, 10 de Maio de 1647
dos estão bem aqui, visto que ele é um dos médicos da casa.
Quando vos dizia que de modo nenhum queria servir-me de remédios
para os abcessos que tive no Outono, pensava nos que vêm do boticário, já
que as ervas refrescantes e que purificam o sangue me servem de alimento na
Primavera, não tendo habitualmente apetite nesta estação para outra coisa. Senhora,
Pretendo também fazer-me sangrar dentro de poucos dias, dado que apanhei
esse mau costume, que não poderia mudar neste momento sem ser incomo­ Ainda que eu possa encontrar ocasiões que me convidem a permanecer em
dada pela dor de cabeça. Teria medd de vo-la provocar com este aborrecido França, quando lá estiver, não haverá contudo nenhuma suficientemente for­
relato de mim mesma, se a vossa atenção para com a minha saúde não me ti­ te para me impedir de voltar antes do Inverno, desde que a vida e a saúde se
vesse levado a isso. Dar-me-ia ainda muita vaidade, se eu pudesse encontrar mantenham, já que a carta que tive a honra de receber de Vossa Alteza me faz
nisso outra causa além da extrema bondade que tendes pela esperar que volteis a Haia pelo final do Verão. Mas posso dizer que é a princi­
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos, pal razão que me leva a preferir a permanência neste país em vez dos outros;
porque, no que diz respeito ao descanso que antes aqui viera procurar, preve­
Elisabeth jo que doravante não o poderei ter tão inteiramente como desejava, devido a
que, não tendo ainda tirado toda a satisfação que devia ter das ofensas que re­
cebi em Utreque, vejo que elas atraem outras, e que há um grupo de teólogos,
pessoas da Escola, que parecem ter feito uma aliança visando oprimir-me me­
diante calúnias; de modo que, enquanto eles maquinam tudo o que podem no
intuito de me prejudicar, se eu não estivesse atento também para me defen­
der, ser-lhes-ia fácil fazer-me algumas afrontas.
A prova disto é que, desde há três ou quatro meses, um certo Regente do
Colégio dos Teólogos de Leyde, chamado Regius, mandou discutir quatro dife­
rentes teses contra mim, para perverter o sentido das minhas Meditações, e fazer
crer que coloquei nelas coisas muito absurdas, e contrárias à glória de Deus:
como, que é preciso duvidar de que exista um Deus; e mesmo, que eu pretendo
que se negue absolutamente por algum tempo que exista um, e coisas semelhan­
tes. Mas, como este homem não é hábil, e inclusive a maior parte dos seus alunos
troçava das suas maledicências, os amigos que tenho em Leyde nem sequer se
dignaram avisar-me do que ele fazia, até que outras teses foram também feitas
por Triglandius, o seu primeiro professor de teologia, em que ele inseriu estas pa­
lavras nempe eum esse blasphemum, qui deum pro deceptore habet, ut male Cartesius,42
A propósito disto, os meus amigos, mesmo aqueles que também são teólogos,
iukaram aue u intenção destas pessoas, ao acusarem-me de um crime tão
142 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 143

grande como é a blasfémia, não era menor do que tentar fazer condenar as mi­ meus inimigos vão mais longe. Creio, todavia, que não seguirei essa opinião;
nhas opiniões como muito prejudiciais, primeiramente, por algum Sínodo em pedirei apenas justiça; e se não a puder obter, parece-me que o melhor será
que eles seriam os mais fortes, e depois, tentar também censurar-me pelos ma­ que me prepare muito lentamente para a retirada. Mas, o que quer que eu
gistrados, que acreditam neles; e que, para evitar isso, era necessário que eu me pense ou faça, e em qualquer lugar do mundo que vá, não haverá nunca nada
opusesse aos seus intentos: motivo pelo qual, há oito dias, escrevi uma longa car­ que me seja mais querido do que obedecer às vossas ordens, e testemunhar
ta aos Curadores da Academia de Leyde, para exigir justiça contra as calúnias com quanto zelo sou, etc.
destes dois teólogos. Ainda não sei qual a resposta que vou ter; mas pelo que co­
nheço do humor das pessoas deste país, e quanto veneram, não a honestidade e a
virtude, mas a barba, a voz e o sobrolho dos teólogos, de modo que aqueles que
são os mais desaforados, e que sabem gritar mais alto, têm aqui mais poder
(como por via de regra em todos os Estados populares), ainda que tenham me­
nos razão, não espero daí mais do que alguns emplastros, que, não eliminando a
causa do mal, só servirão para o tomar mais longo e mais aborrecido; ao passo
que, pela minha parte, penso estar obrigado a fazer o meu melhor, para tirar uma
satisfação completa destas injúrias, e também, ao mesmo tempo, das de Utreque;
e no caso de não conseguir obter justiça (como prevejo que será muito difícil ob­
ter), retirar-me completamente destas Províncias. Mas, uma vez que todas as coi
sas ocorrem aqui muito lentamente, convenço-me de que passará mais de um
ano, antes de isso acontecer.
Não tomaria a liberdade de ocupar Vossa Alteza com estas pequenas
coisas, se o favor que me faz de querer 1er os livros do Sr. Hoguelande e de
Regius, em virtude do que eles escreveram que me diz respeito, não me fizes­
se acreditar que não lhe seria desagradável saber de mim mesmo aquilo que
me diz respeito; além de a obediência e o respeito que vos devo me obrigarem
a dar-vos conta das minhas acções.
Louvo a Deus por esse doutor, a quem Vossa Alteza emprestou o livro
dos meus Princípios, ter estado muito tempo sem vos tornar a ver, já que é um
sinal que não há doentes na corte da Senhora Eleitora, e parece que temos um
grau de saúde mais perfeito, quando ela é geral no lugar em que estamos, do
que quando estamos rodeados de doentes. Esse médico terá tido ainda ma is
tempo para 1er o livro do que aprouve a Vossa Alteza conceder-lhe, e ter-vos-. i
podido dizer melhor o seu parecer.
Enquanto escrevo isto, recebo cartas de Haia e de Leyde, que me dizem
que a assembleia dos Curadores foi adiada, de modo que ainda não lhes do
ram as minhas cartas; e vejo que se faz de uma zanga uma grande questão.
Diz-se que os teólogos querem ser juízes dela, ou seja submeter-me aqui ,i
uma inquisição mais severa do que foi alguma vez a de Espanha, e tornar-mo
o adversário da sua religião. Pretendia-se a esse respeito que eu utilizasse .1
confiança do Senhor Embaixador de França, e a autoridade do Senhor Prini i
pe de Orange, não para obter justiça, mas para interceder e impedir quo os

42 íi blnsfemndor quem considera Deus enganador, como n rmlnmonte IV/1Jescnrlcs.


144 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 145

Há agora em algumas aldeias uma tão grande quantidade dessas moscas a


que chamamos melgas, que vários homens e animais se asfixiaram ou fica­
ram surdos e cegos. Elas vêm em forma de nuvem e vão-se da mesma forma.
Os habitantes acreditam que isso é devido a bruxedo; mas eu atribuo-o à
cheia extraordinária do afluente do Oder, que este ano foi até ao fim de
Abril, e já fazia muito calor.
Recebi, há dois dias, os livros do Sr. Hogelande e de Regius; mas a cor­
respondência comercial impediu-me de 1er mais do que o começo do primei­
Elisabeth a Descartes ro, em que apreciaria muito as provas da existência de Deus, se não me tivés­
Crossen, Maio de 1647 seis acostumado a exigi-las dos princípios do nosso conhecimento. Mas as
comparações, pelas quais ele mostra como a alma está unida ao corpo e obri­
gada a acomodar-se à sua forma, a participar no bem e no mal que lhe aconte­
ce, ainda não me satisfazem; uma vez que a matéria subtil, que ele supõe estar
envolvida numa mais grosseira pelo calor do fogo ou da fermentação, é não
Senhor Descartes, obstante corporal e recebe a sua pressão ou o seu movimento pela quantidade
e superfície das suas pequenas partes, o que a alma, que é imaterial, não pode­
Há três semanas que me enviaram o corolário impertinente do professor Tri ria fazer.
glandius, acrescentando-lhe que aqueles que disputaram a vosso favor de O meu irmão Filipe, que mandou que me enviassem os ditos livros, avi­
modo nenhum foram vencidos com razão, mas obrigados a calar-se devido sou-me de que vêm outros dois a caminho; e uma vez que não mandei vir ne­
ao tumulto que se gerou na academia, e que o professor Stuard (homem de nhum, creio que serão as vossas Meditações e os vossos Princípios defilosofia em
grande leitura, mas de um juízo muito medíocre), tencionava refutar as vos­ francês. Estou impaciente principalmente pelo último, já que acrescentastes
sas Meditações Metafísicas. Creio bem que isso vos daria o mesmo pesar que aí alguma coisa que não está no latim, o que penso será no 4.° livro, já que os
produziu a calúnia do estudante de Voetius, mas não a resolução de deixar a outros três me parecem tão claros quanto é possível torná-los.
Holanda, como manifestáveis na vossa carta de 10 deste mês, já que é indigno O médico de que vos falei anteriormente disse-me que tinha algumas
de vós ceder o lugar aos vossos inimigos, e que isso surgiria como uma espé objecções no que diz respeito aos minerais, mas que não ousaria envi­
cie de exílio, que vos traria mais prejuízo do que tudo o que os Senhorès teólo ar-vo-las, antes de ter examinado uma vez mais os vossos princípios. Mas a
gos possam fazer contra vós, já que a calúnia não é considerável num lugar rotina impede-o muito. O povo daqui tem uma crença extraordinária na sua
onde aqueles que governam não conseguem eles próprios isentar-se dela, profissão; e não fosse a grande sujidade da comuna e da nobreza, creio que
nem punir aqueles que a produzem. O povo paga aí esta grande contribuição teriam menos necessidade disso do que qualquer povo do mundo, uma vez
pela mera liberdade da língua, e sendo a dos teólogos privilegiada em todo o que o ar aqui é muito puro. Eu também tenho neste lugar mais saúde do que
lado não poderia receber restrições num Estado popular. Daí que me pareça tinha na Holanda. Mas não quereria ter estado sempre aqui, já que não há
que tendes razão para estar contente, se obtiverdes aquilo que os vossos ami mais nada além dos meus livros para me impedir de ficar estúpida em último
gos na Holanda vos aconselham a pedir, se bem que de modo nenhum devais grau. Teria inteira satisfação, se conseguisse testemunhar a estima que faço da
seguir a sua opinião na petição, sendo a resolução que tomastes mais conven i- bondade que continuais a ter por
ente a um homem livre e seguro de si. Mas, se mantiverdes a de deixar o país, Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.
eu abandonarei também a que tinha tomado de aí voltar, se os interesses da
minha casa não me tornarem a chamar, e esperarei antes aqui que a saída dos Elisabeth
tratados de Munster ou qualquer outra conjuntura me levem à minha pátria.
Apropriedade da Senhora Eleitora tem uma localização que não causa
qualquer dano à minha compleição, situando-se dois graus mais próximo
do sol do que Berlim, rodeada pela ribeira do Oder, e a terra é extremamente
fértil. O povo já se refez aí melhor da guerra do que este, apesar de os exérci­
tos lá terem permanecido mais tempo e terem feito mais estragos pelo fogo.
146 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 147

tempo; mas receio que esse tempo durará sempre, e que se lhes deixará ga­
nhar tanto poder, que eles ficarão insuportáveis.
Está a ser acabada a impressão dos meus Princípios em francês; e quanto
à Epístola, que será a última coisa a ser impressa, envio aqui a cópia a Vossa
Alteza, a fim de que, se houver alguma coisa que não lhe agrade, e que julgue
dever ser colocada de outra maneira, se digne fazer-me o favor de aconselhar
aquele que será toda a sua vida, etc.

Descartes a Elisabeth
Haia, 6 de Junho de 1647

Senhora,

Ao passar por Haia com destino a França, uma vez que não posso ter a hon­
ra de receber as vossas ordens, e cumprimentar-vos, parece-me que sou
obrigado a traçar estas linhas, a fim de assegurar a Vossa Alteza que o meu
zelo e a minha devoção não mudarão nada, se bem que eu mude de terra.
Recebi há dois dias uma carta da Suécia, do Senhor Representante de Fran­
ça que está nesse país,43em que ele me apresenta uma questão da parte da
Rainha, a quem me deu a conhecer mostrando-lhe a minha resposta a uma
outra carta que ele me enviara antes. E a forma como descreve esta Rainha,
com os discursos que relata dela, fazem-me estimá-la de tal modo, que me
parece que vós seríeis dignas da convivência uma da outra; e que há tão
poucas no resto do mundo que sejam dignas disso, que não seria difícil a
Vossa Alteza contrair uma muito estreita amizade com ela, e que além da
alegria de espírito que teríeis, isso poderia ser desejável para diversas con­
siderações. Eu escrevera antes a este meu amigo Representante na Suécia,
respondendo a uma carta em que ele falava dela, que não achava incrível o
que ele me dizia a seu respeito, porque a honra que tinha de conhecer Vossa
Alteza, me ensinara quanto as pessoas de grande nascimento podiam ul­
trapassar as outras, etc. Mas não me recordo se foi na carta que ele lhe mos­
trou, ou antes numa outra precedente, e uma vez que é verosímil que ele
lhe mostre, doravante, as cartas que receber de mim, tentarei sempre intro­
duzir nelas alguma coisa que lhe dê motivos para desejar a amizade de
Vossa Alteza, a não ser que mo proibais.
Mandaram calar os teólogos que me queriam prejudicar, mas favore­
cendo-os, e evitando o mais possível ofendê-los, o que se atribui agora ao

43 Referéncln n Chanut.
148 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 149

Estes escritos que envio ao Senhor Chanut, são as cartas que tive a honra
de escrever a Vossa Alteza acerca do livro de Séneca De vita beata, até meio da
sexta, em que, depois de ter definido as paixões em geral, escrevo que encon­
tro dificuldade em enumerá-las. No seguimento do que lhe envio também o
pequeno Tratado das Paixões, que tive bastante dificuldade em transcrever de
um rascunho muito confuso que tinha guardado; e comunico-lhe que de
modo nenhum lhe peço para apresentar de início estes escritos à Rainha,
dado que recearia não guardar suficientemente o respeito que devo a Sua Ma­
Descartes a Elisabeth jestade, se lhe enviasse cartas que escrevi para uma outra, em vez de lhe escre­
Egmond, 20 de Novembro de 1647 ver a ela mesma o que eu poderia julgar ser-lhe agradável; mas que, se ele
achar bem falar-lhe disso, dizendo que foi a ele que as enviei, e se depois disso
ela desejar vê-las, eu estarei livre desse escrúpulo; e que me persuadi de que
lhe será talvez mais agradável ver aquilo que foi assim escrito a uma outra
pessoa, do que se lhe tivesse sido dirigido, dado que ela poderá certificar-se
Senhora, melhor que eu não mudei ou dissimulei nada em sua consideração.
Não julguei oportuno incluir mais nada de Vossa Alteza, nem mesmo
Uma vez que já tomei a liberdade de avisar Vossa Alteza da correspondência exprimir o nome, o qual todavia ele não poderá ignorar por causa das minhas
que comecei a ter na Suécia, penso ser obrigado a continuar, e dizer-lhe que cartas precedentes. Mas considerando que, não obstante ele ser um homem
recebi há pouco cartas do amigo que tenho nesse país, pelas quais ele me in­ muito virtuoso e grande apreciador das pessoas de mérito, de modo que não
forma que, estando a Rainha em Upsala, onde está a Academia do país, quis duvido nada que ele honre Vossa Alteza tanto como deve, contudo ele só rara­
ouvir uma arenga do professor de eloquência, que ele considera o mais hábil e mente me falou de vós nas suas cartas, ainda que eu lhe tenha escrito alguma
o mais racional desta Academia, e que ela lhe tinha dado como tema discorrer coisa em todas as minhas, pensei que ele talvez tivesse escrúpulos em falar de
sobre o Soberano Bem nesta vida; mas que, depois de ter ouvido essa arenga, vós à Rainha, dado que não sabia se isso agradaria ou desagradaria àqueles
ela dissera que aquelas pessoas se limitavam a aflorar as matérias, e que seria que o enviaram. Mas, se eu tiver doravante oportunidade de escrever à pró­
necessário saber a minha opinião. Ao que ele lhe respondera que sabia que eu pria Rainha, não terei necessidade de intérprete; e o objectivo que tive desta
era muito comedido a escrever sobre tais matérias; mas que, se agradava a vez, ao enviar-lhe estes escritos, foi tentar fazer com que se ocupe mais nestes
Sua Majestade que ele mo pedisse da sua parte, não acreditava que eu deixas­ pensamentos, e que, se eles lhe agradarem, assim como espero, ela tenha
se de tentar satisfazê-la. Ao que ela o incumbira muito expressamente de mo oportunidade de conferenciar sobre isso com Vossa Alteza. Da qual eu serei
pedir, e lhe tinha feito prometer que me escreveria no próximo correio; de toda a minha vida, etc.
modo que me aconselha a responder, e a dirigir a minha carta à Rainha, à qual
ele a apresentará, e diz que ele é garantia de que ela será bem recebida.
Pensei não dever desperdiçar esta ocasião, e considerando que, quando
ele me escreveu aquilo, não podia ainda ter recebido a carta em que eu falava
daquelas que tive a honra de escrever a Vossa Alteza acerca da mesma maté­
ria, pensei que o meu intento tinha falhado, e que era preciso retomá-lo a par­
tir de um ângulo diferente; foi por isso que escrevi uma carta à Rainha, na
qual, depois de ter escrito brevemente a minha opinião, acrescento que omito
muitas coisas, porque, tendo em conta o número de afazeres que se encon­
tram na condução de um grande reino, e de que Sua Majestade toma ela pró­
pria os cuidados, não ouso pedir-lhe uma audiência mais longa; mas que en­
vio ao Senhor Chanut alguns escritos, em que coloquei mais minuciosamente
os meus sentimentos acerca da mesma matéria, a fim de que, se lhe agradar
vê-los, ele possa apresentar-lhos.
150 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 151

Elisabeth a Descartes Descartes a Elisabeth


Berlim, 5 de Dezembro de 1647 Egmond, 31 de Janeiro de 1648

Senhor Descartes,
Senhora,
Uma vez que recebi, há alguns dias, a tradução francesa das vossas Meditações
Recebi as cartas de Vossa Alteza de 23 de Dezembro quase ao mesmo tempo
Metafísicas, que me enviastes, sou obrigada a agradecer-vos por meio destas li­
que as precedentes, e confesso que estou em cuidados no que diz respeito ao
nhas, ainda que não conseguisse exprimir o meu sentimento de reconhecimento
que devo responder a essas precedentes, porque Vossa Alteza aí demonstra
pelas vossas atenções, sem pedir uma nova [atenção] para desculpar o incómodo
querer que eu escreva o Tratado da Erudição, de que tive outrera a honra de lhe
que vos dou em 1er e responder às minhas cartas, que vos desviam tão frequente­
falar. E não há nada que eu deseje com mais zelo do que obedecer às vossas or­
mente de meditações úteis, para assuntos que, sem a parcialidade de amigo, não
dens; mas direi aqui as razões pelas quais abandonei o projecto desse tratado,
poderiam ser-vos consideráveis; mas recebi tantas provas da que tendes por
e se elas não satisfizerem Vossa Alteza, não deixarei de o retomar.
mim, que a presumo suficiente para não obstar a dizer-vos com que satisfação li a
A primeira é que eu não conseguiria incluir nele todas as verdades que
tradução acima mencionada, uma vez que ela toma os vossos pensamentos tan­
lá deveriam estar, sem incitar demasiado contra mim as pessoas da Escola, e
to mais meus quanto os vejo bem expressos numa língua de que me sirvo geral­
que não me acho em condição de poder desprezar inteiramente o seu ódio.
mente, ainda que acredite tê-los compreendido anteriormente.
A segunda é que já abordei alguma coisa do que tinha vontade de aí incluir,
A minha admiração aumenta todas as vezes que releio as objecções que vos
num prefácio que está no início da tradução francesa dos meus Princípios, a
foram feitas, como é possível que pessoas, que empregaram tantos anos na medi­
qual penso que Vossa Alteza agora recebeu. A terceira é que tenho agora um
tação e no estudo, não pudessem compreender coisas tão simples e tão claras, que
outro escrito entre mãos, que espero poder ser mais agradável a Vossa Alteza:
a maioria, discutindo o verdadeiro e o falso, pareça não conhecer como é preciso
distingui-los, e que o senhor Gassendi,44que tem a maior reputação pelo seu saber, é a descrição das funções do animal e do homem. Com efeito, aquilo que eu
esboçara, há doze ou treze anos, que Vossa Alteza viu, tendo chegado às mãos
tenha feito, depois do Inglês,45objecções menos razoáveis do que todos os outros.
de vários que o transcreveram mal, julguei ser obrigado a passá-lo mais a lim­
Isso mostra-vos quanto o mundo precisa do Tratado da Erudição, que ou­
po, quer dizer, a refazê-lo. E aventurei-me mesmo (mas apenas há oito ou dez
trera quisestes fazer. Sei que sois demasiado caritativo para recusar uma coisa
tão útil ao público, e que, por isso, não preciso de vos fazer recordar a palavra dias) a querer explicar aí a maneira como se forma o animal desde o princípio
de honra que destes à da sua formação. Digo o animal em geral; porque, quanto ao homem em par­
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos, ticular, não ousaria tentá-lo, por me faltar experiência suficiente para o efeito.
De resto, considero o que me resta deste Inverno, como o tempo mais
Elisabeth tranquilo que porventura terei na vida; motivo pelo qual prefiro empregá-lo
neste estudo, do que num outro que não requeira tanta atenção. A razão que
me faz temer ter daqui em diante menos tempo livre, é que sou obrigado a
44 Pierre Gassendi (1592-1665), filósofo atomista, autor das Quinina Objecções (6s Meditações). voltar a Erança no próximo Verão, e aí passar o Inverno que vem; os meus as­
45 Referência a Thomas Hobbes, autor das Terceiras Obecções. suntos domésticos e várias razões obrigam-me a isso. Fizeram-me também a
CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 153
152 MEDICINA DOS AFECTOS

honra de me oferecer uma pensão da parte do Rei, sem que eu a tenha pedido;
o que de maneira nenhuma será capaz de me prender, mas num ano podem
acontecer muitas coisas. Não poderá contudo acontecer nada que possa im­
pedir-me de preferir a felicidade de viver no lugar em que estiver Vossa Alte­
za, se a ocasião se proporcionasse, à de estar na minha própria pátria, ou em
qualquer outro lugar possível.
Não espero que demore muito a resposta à carta a respeito do Soberano
Bem, já que ela ficou perto de um mês em Amsterdão, por falha daquele a
Elisabeth a Descartes
quem a tinha enviado para a apresentar; mas, logo que tenha algumas novi­
Crossen, 30 de Junho de 1648
dades, não deixarei de o comunicar a Vossa Alteza. Ela não continha nada de
novo que merecesse ser-vos enviado. Recebi, depois, algumas cartas daquele
país, pelas quais me comunicam que as minhas são esperadas, e segundo o
que me escrevem dessa princesa, ela deve ser extremamente propensa à vir­
tude, e capaz de bem julgar as coisas. Comunicam-me que lhe apresentarão a
Senhor Descartes,
versão dos meus Princípios, e asseguram-me que ela lerá a primeira parte com
satisfação, e que seria bem capaz do resto, se os afazeres não lhe tirassem o
tempo livre. O inchaço que tive no braço direito, por culpa de um cirurgião que me cortou
parte de um nervo ao sangrar-me, impediu-me de responder mais cedo à vos­
Envio com esta carta um livrinho de somenos importância, e não o en­
sa carta de 7 de Maio, que me representa um novo efeito da vossa perfeita ge­
cerro no mesmo pacote, porque ele não vale o porte; foram os insultos do
nerosidade, pela pena que tendes de deixar a Holanda por aí poderdes espe­
Senhor Regius que me obrigaram a escrevê-lo, e foi impresso antes de eu o sa­
rar fazer-me desfrutar da utilidade da vossa convivência, que é verdadeira­
ber; juntaram-lhe mesmo versos e um prefácio que eu desaprovo, se bem que
mente o maior bem que esperava e o único motivo que me fez reflectir sobre
os versos sejam do Senhor Heydanus, mas que não ousou inserir aí o seu
os meios de regressar, para o que a conciliação dos negócios da Inglaterra me
nome, como também não o devia. Eu sou, etc.
teria servido tanto como o desespero de ver os da Alemanha.
Entretanto fala-se da viagem que propusestes anteriormente, e a mãe da
pessoa a quem o vosso amigo deu as vossas cartas recebeu ordens para a levar
a bom termo, sem que se saiba no seu país que ela vem de mais longe do que
do seu próprio movimento. Escolheram mal a mulherzinha para guardar um
segredo, ela que nunca os teve. Todavia faz o resto da sua incumbência com
muita paixão, e queria que um terceiro46 fosse urgentemente lá; o que de
modo nenhum tenciona fazer, mas colocou-o à vontade dos seus pais, que
será sem dúvida a favor da viagem, e se eles enviarem o dinheiro que é neces­
sário, ele está decidido a empreendê-la, já que nesta conjuntura terá porven­
tura meios de assim prestar serviço àqueles a quem o deve, e que poderá re­
gressar com a mulherzinha acima mencionada, que também não pretende de-
morar-se aí. A única alteração nas razões que vos foram escritas contra a dita
viagem é que as mais óbvias para a impedir são: a morte desta mulher (que é
muito doente) ou que ela seja obrigada a partir antes que a resposta dos pais
do outro chegue. Recebi, há três semanas, uma carta muito delicada do lugar

46 IínIii "ton «'Iro" r ii própria Elizabeth, que aguarda autorização da família e dinheiro para
fa/or n viagem
1 54 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 155
1
em questão, cheia de bondade e de manifestações de amizade, mas que não
faz nenhuma menção das vossas cartas, nem do que foi dito acima; também
não a mandaram à mulherzinha senão de boca por um portador.
Ainda não vos dei conta da minha leitura da versão francesa dos vossos
Princípios defilosofia. Embora haja qualquer coisa no prefácio, acerca da qual pre­
ciso da vossa explicação, não a acrescento aqui, porque alongaria demasiado a
minha carta. Mas pretendo conversar de novo convosco a este respeito, e prome­
to que, mudando de morada, conservareis sempre a mesma caridade pela
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos, Descartes a Elisabeth
Paris, Junho ou Julho de 1648
Elisabeth

Senhora,

Embora eu saiba bem que o lugar e a condição em que estou me não poderiam
fornecer ocasião para ser útil ao serviço de Vossa Alteza, não satisfaria o meu
dever, nem o meu zelo, se, depois de ter chegado a uma nova morada, deixas­
se de vos renovar as ofertas da minha muito humilde obediência. Encon­
trei-me aqui numa conjuntura de incumbências, que toda a prudência huma­
na não teria conseguido prever. O Parlamento, junto com as outras Cortes
soberanas, reúne-se agora todos os dias, para deliberar acerca de algumas de­
terminações que eles sustentam deverem ser colocadas nas mãos das finan­
ças, e isso faz-se actualmente com a autorização da Rainha, de modo que pa­
rece que o negócio irá avante; mas é difícil julgar sobre o que daí resultará.
Diz-se que tencionam arranjar dinheiro suficiente para continuar a guerra, e
sustentar exércitos numerosos, sem para isso sobrecarregar o povo; se conse­
guirem esse expediente, convenço-me de que será o meio de chegar finalmen­
te a uma paz geral. Mas, ao esperar que isso aconteça, teria feito bem em man­
ter-me no país em que já há paz; e se estas tempestades não se dissiparem den­
tro em pouco, tenciono voltar para Egmond dentro de seis semanas ou dois
meses, e fixar-me aí até que o céu de França esteja mais sereno. Contudo, man­
tendo como faço, um pé num país, e outro no outro, considero a minha situa­
ção muito feliz, dado que é livre. E creio que aqueles que têm sorte diferem
muito dos outros, pelo facto de os contratempos que lhes acontecem lhes se­
rem mais sensíveis, não porque gozem de mais prazeres, porque todos os con­
tentamentos que possam ter, sendo-lhes habituais, não os tocam tanto como
as aflições, que não lhes ocorrem senão quando menos o esperam, e porque
não estão de todo preparados para elas; o que deve servir de consolação àque­
les que a fortuna acostumou à sua desgraça. Quereria ela que ele fosse tão
obediente n todos os vossos desejos, como eu serei toda a minha vida, etc.
•156 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 157

contrariedades que lhes acontecem lhes serem mais sensíveis, que não no fac­
to de gozarem de mais prazeres, porque há poucos que dêem objectos verda­
deiros aos seus prazeres (mas se fazer bem ao público e particularmente às
pessoas de mérito, fosse uma condição que lhes desse uma quantidade de
meios, daria também mais prazeres do que poderiam ter aqueles a quem a for­
tuna recusa essa vantagem), eu não pediria nunca maior vantagem do que po­
der provar-vos, com efeito, a estima que sinto pela vossa bondade para com a
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.
Elisabeth a Descartes
Crossen, Julho de 1648 Elisabeth

Senhor Descartes,

Não conseguiríeis estar em nenhum lugar do mundo em que o trabalho que


tivésseis de me mandar notícias vossas não fosse útil para minha satisfação.
Porque me convenço de que elas serão sempre a vosso favor, e que Deus é
demasiado justo para vos enviar desgraças tão grandes que a vossa prudên­
cia não saiba livrar-vos delas, como das desordens inesperadas em França,
que conservam a vossa liberdade obrigando-vos a regressar à Holanda, já
que sem isso a Corte ter-vo-la-ia roubado, qualquer que fosse o cuidado que
tivésseis podido tomar para vos opordes a tal; e quanto a mim, recebo delas
o prazer de poder esperar a felicidade de vos voltar a ver na Holanda ou
noutro lugar.
Creio que tereis recebido a carta em que se vos fala de uma outra via­
gem, que se devia fazer, se os amigos a aprovassem, acreditando ser ela para
serviço deles nesta conjuntura; e depois, eles pediram-na, suportando as des­
pesas que era preciso. Todavia, aqueles que estão onde isso deve começar, im­
pediram de dia para dia os preparativos necessários, movidos a tal por razões
tão fracas que eles próprios não ousariam confessá-las. No entanto dá-se nes­
te momento tão pouco tempo para isso, que a pessoa em questão de modo ne­
nhum poderá estar pronta. Para uns, ela terá faltado à palavra contra-vonta­
de; para outros, os seus amigos julgarão que ela não teve vontade ou coragem
de sacrificar a sua saúde e o seu descanso pelo interesse de uma casa, pela
qual ela entregaria até a vida, se lhe fosse pedido. Isso aborrece-a um pouco,
mas não poderá surpreendê-la, já que ela está acostumada a ser censurada pe­
las faltas de outrem (mesmo em ocasiões em que não queria livrar-se disso), e
a procurar a sua satisfação apenas no testemunho que a consciência lhe dá de
ter cumprido o seu dever. Contudo isso desvia os seus pensamentos durante
algum tempo de matéria mais agradável; e embora tenhais razão em dizer
que aqueles que têm mais sorte diferem muito dos outros no facto de as
158 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 159

crise. Tivemos um episódio engraçado há três dias, no entanto muito incómo­


do. Ao passearmos sob um carvalhal, a Senhora Eleitora com os da sua comi­
tiva, veio-nos de repente como que uma espécie de sarampo por todo o corpo,
excepto na cara, sem febre nem outro mal para além de uma comichão insu­
portável. Os supersticiosos julgavam-se embruxados; mas os camponeses di­
ziam-nos que há por vezes um certo orvalho venenoso sobre as árvores, que,
descendo sob a forma de poeira, infecta assim os transeuntes. E é de notar que
todos os diferentes remédios que cada um utilizou para um mal tão novo,
Elisabeth a Descartes como os banhos, a sangria, as ventosas, as sanguessugas e a purga, não servi­
Crossen, 23 de Agosto de 1648 ram de nada. Relato-vos isto, porque presumo que aí encontrareis com que
confirmar algumas das vossas doutrinas.
Eu sou perfeitamente, Sr. Descartes,
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.

Senhor Descartes, Elisabeth

Falava-vos, na minha última carta, de uma pessoa que, sem ter errado, estava
em perigo de perder a boa opinião e talvez a benevolência da maior parte dos
seus amigos. Agora ela encontra-se livre disso de uma forma assaz extraordi­
nária, uma vez que essoutra a quem ela tinha comunicado o tempo que lhe era
necessário para seguir para junto dela, lhe responde que ela a teria esperado,
se a sua filha não tivesse mudado de decisão, julgando que achariam mal que
ela estivesse rodeada tão de perto por pessoas de outra religião. É um proce­
dimento que, na minha opinião, não corresponde aos elogios que o vosso
amigo faz àquela que deles se serve, pelo menos se isto é inteiramente seu e
não vem, como eu suspeito, do espírito fraco de sua mãe, que esteve acompa­
nhada, desde que este assunto está em discussão, por uma irmã que tira o seu
sustento do partido contrário ao da casa da pessoa acima mencionada. O vos­
so amigo poderia esclarecer-vos a este respeito, se achardes conveniente
mandar-lhe dizer alguma coisa. Ou pode ser que ele vos escreva por sua pró­
pria iniciativa, já que se diz que ele governa inteiramente o espírito ao qual faz
tantos elogios. Não poderia acrescentar nada a isto, a não ser que não incluo o
acidente acima mencionado entre o número de desgostos da pessoa a quem
ele acontece, uma vez que ele a afasta de uma viagem em que o mal que lhe
pudesse acontecer (como a perda de saúde e de repouso, juntamente com as
coisas aborrecidas que lhe seria necessário sofrer de uma nação brutal), era
muito certo, e o bem que outros daí poderiam esperar, muito incerto. Se há
afronta no procedimento, penso que ele recairá inteiramente sobre aqueles
que a fizeram, uma vez que é uma marca da sua inconstância e ligeireza de es­
pírito, e que todos aqueles que a conhecem sabem também que ela não contri­
buiu nada para nenhum destes caprichos.
Quanto a mim, pretendo permanecer ainda aqui até saber o resultado
das questões da Alemanha e da Inglaterra, que parecem estar agora numa
160 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 161

Não recebi nenhumas cartas, desde há cinco meses, do amigo sobre


quem tinha escrito anteriormente a Vossa Alteza. E porque na última carta ele
me informava muito pontualmente das razões que tinham impedido a pessoa
a quem ele tinha dado as minhas cartas, de dar resposta, julgo que o seu silên­
cio se deve apenas a que ainda aguarda essa resposta, ou então talvez ele te­
nha vergonha por não ter nada para me enviar, como imaginara. Evito tam­
bém ser o primeiro a escrever-lhe, para que não lhe pareça censurar isso pelas
minhas cartas, e não deixei de saber frequentemente notícias suas, enquanto
Descartes a Elisabeth estava em Paris, através dos seus parentes, que as recebiam de oito em oito
Egmond, Outubro de 1648 dias. Mas logo que eles lhe tiverem comunicado que estou aqui, não duvido
de que me escreva e explique o que souber do procedimento que diz respeito
a Vossa Alteza, porque ele sabe que tenho muito interesse nisso. Mas aqueles
que não tiveram a honra de vos ver, e que não têm um conhecimento muito
particular das vossas virtudes, não poderiam conceber que se possa ser tão
Senhora, perfeitamente como eu sou, etc.

Tive finalmente a felicidade de receber as três cartas que Vossa Alteza fez a honra
de me escrever, e elas não passaram por más mãos. Mas a primeira, de 30 de Ju­
nho, tendo sido levada a Paris, enquanto eu já estava a caminho para voltar a este
país, aqueles que a receberam por mim esperaram notícias da minha chegada
antes de ma enviarem, e assim não a pude ter senão hoje, que recebi também a úl­
tima de 23 de Agosto, pela qual tomo conhecimento de um procedimento inju­
rioso que me espanta; e quero crer, com Vossa Alteza, que ele não vem da pessoa
a quem é atribuído. Como quer que seja, não creio que se deva estar aborrecido
por não fazer uma viagem em que, como Vossa Alteza nota muito bem, os incó­
modos eram infalíveis e as vantagens muito incertas. Por mim, graças a Deus,
acabei aquela que me tinham obrigado a fazer a França, e não estou aborrecido
por lá ter ido, mas estou ainda mais contente por ter regressado. Não vi ninguém
cuja condição me tenha parecido digna de inveja, e aqueles que se mostram com
mais ostentação pareceram-me ser os mais dignos de piedade. Não poderia ter lá
ido num tempo mais propício para me aperceber bem da felicidade da vida tran­
quila e retirada, e da riqueza dos mais pequenos revezes (fortunes). Se Vossa Alte­
za comparar a sua situação com a das Rainhas e das outras Princesas da Europa,
encontrará a mesma diferença que entre aqueles que estão no porto, onde des­
cansam, e aqueles que estão no mar alto, agitados pelos ventos de uma tempesta­
de. E ainda que se tenha sido lançado no porto por um naufrágio, desde que não
faltem coisas necessárias para a vida, não se deve estar aí menos contente, do que
se se tivesse chegado de outra forma. Os encontros desagradáveis que aconte­
cem às pessoas que estão em actividade, e cuja felicidade depende toda de ou­
trem, penetram até ao fundo do seu coração, ao passo que este vapor venenoso,
que desceu das árvores sob as quais Vossa Alteza passeava amenamente, não to­
cou, espero, senão o exterior da pele, a qual, se tivesse sido lavada de imediato
com um pouco de aguardente, creio que se teria eliminado todo o mal.
162 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O R R E S P O N D Ê N C IA E N T R E D E S C A R T E S E A P R IN C E S A E L IS A B E T H D A B O É M IA 163

algum sentimento humano. E é certo que, sem esta prova, a clemência e as ou­
tras virtudes do último Rei morto não teriam sido nunca tão notadas nem tão
estimadas como são e serão no futuro por todos aqueles que lerem a sua histó­
ria. Certifico-me igualmente de que a sua consciência lhe deu mais satisfação,
durante os últimos momentos da sua vida, do que o aborrecimento que lhe
provocou a indignação, que é a única paixão triste que se diz ter sido notada
nele. E no que diz respeito à dor, não a tomo de maneira nenhuma em conta;
porque ela é tão curta, que, se os assassinos pudessem empregar a febre, ou
Descartes a Elisabeth qualquer outra das doenças de que a natureza costuma servir-se para elimi­
Egmond, 22 de Fevereiro de 1649 nar os homens do mundo, ter-se-ia motivos para os considerar mais cruéis do
que são, quando matam com uma machadada. Mas não me atrevo a deter-me
mais tempo num assunto tão horrível; acrescento apenas que vale muito mais
ser inteiramente liberto de uma falsa esperança do que ser nela conservado
inutilmente.
Senhora, Enquanto escrevo estas linhas, recebo cartas de um lugar de onde não ti­
nha recebido nenhuma há sete ou oito meses e uma entre outras, que a pessoa
Entre múltiplas notícias desagradáveis que recebi simultaneamente de diver­ a quem eu tinha enviado o Tratado das Paixões, há um ano, escreveu pelo seu
sos lugares, aquela que me atingiu mais vivamente, foi a doença de Vossa punho para me agradecer. Uma vez que ela se lembra, depois de tanto tempo,
Alteza. E embora tenha sabido também da cura, não deixam de permanecer de um homem tão pouco importante como eu sou, é de crer que não se esque­
ainda marcas de tristeza no meu espírito, que não poderão ser apagadas tão cerá de responder às cartas de Vossa Alteza, ainda que tenha demorado qua­
cedo. A inclinação para escrever versos, que Vossa Alteza tinha durante a tro meses a fazê-lo. Comunicam-me que ela deu a alguém dos seus a tarefa de
doença, faz-me lembrar Sócrates, que Platão diz ter tido uma vontade seme­ estudar o livro dos meus Princípios, a fim de lhe facilitar a leitura respectiva;
lhante, enquanto estava na prisão. E penso que essa disposição de espírito não creio, porém, que arranje suficiente tempo livre para se dedicar a isso,
para fazer versos, vem de uma forte agitação dos espíritos-animais, que po­ ainda que pareça ter vontade para tal. Ela agradece-me, expressamente, o Tra­
deria perturbar inteiramente a imaginação daqueles que não têm o cérebro tado das Paixões; mas não faz nenhuma menção das cartas às quais ele estava
muito tranquilo, mas que não faz mais do que aquecer um pouco mais os fir­ junto, e não me mandam dizer daquele país absolutamente nada que diga res­
mes, e dispô-los para a poesia. E tomo esse arrebatamento por uma marca de peito a Vossa Alteza. De onde não posso adivinhar outra coisa, a não ser que,
um espírito mais forte e mais distinto do que o comum. não sendo as condições da paz da Alemanha tão vantajosas para a vossa casa
Se eu não conhecesse o vosso como tal, temeria que ficásseis extraordi­ como poderiam ter sido, aqueles que contribuíram para isso estão em dúvida
nariamente preocupada por saberdes a triste conclusão das tragédias da se vós não lhes querereis mal por isso, e inibem-se, por esse motivo, de vos
Inglaterra,47mas espero que Vossa Alteza, estando acostumada às desgraças testemunhar amizade.
da fortuna, e tendo-se visto a si própria há pouco em grande perigo de vida, Estive sempre em cuidados, desde a conclusão desta paz, por não saber
não se tenha surpreendido nem perturbado tanto, por saber da morte de um que o Senhor Eleitor vosso irmão a tinha aceite, e teria tomado a liberdade de
dos seus parentes, como teria se não tivesse recebido anteriormente outras escrever mais cedo o meu sentimento a Vossa Alteza, se tivesse podido imagi­
aflições. E ainda que esta morte tão violenta pareça ter qualquer coisa de mais nar que ele colocou isso em deliberação. Mas, porque não sei as razões parti­
horrível do que aquela que esperamos na nossa cama, todavia, afinal de con­ culares que o podem mover, seria temeridade da minha parte fazer algum juí­
tas, ela é mais gloriosa, mais feliz e mais doce, de maneira que aquilo que afli­ zo a esse respeito. Posso apenas dizer, em geral, que, quando está em questão
ge particularmente nisto o comum dos homens, deve servir de consolação a a restituição de um Estado ocupado ou disputado por outros que têm as for­
Vossa Alteza. Porque é muita glória morrer numa ocasião que faz com que se ças sob a sua alçada, parece-me que aqueles que não têm mais do que a equi­
seja universalmente lamentado, elogiado e lastimado por todos os que têm dade e o direito das gentes que advoga por eles, não devem nunca planear
conseguir todas as suas pretensões, e que têm muito mais motivos para
aplaudir aqueles que lhes mandam restituir alguma parte, por mais pequena
47 Descartes refere-se iï decapitaçfio do rei Carlos I, ocorrida n 'I. 02, 1049. que ela '.r|a do quo para querer mal àqueles que lhes retêm o resto. E ainda
164 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O R R E S P O N D Ê N C IA E N T R E D E S C A R T E S E A P R IN C E S A E L IS A B E T H D A B O É M IA 165

que não se possa achar mal que eles disputem o seu direito o mais que podem,
enquanto aqueles que têm a força deliberam a esse respeito, penso que, quan­
do se chega a uma conclusão, a prudência os obriga a demonstrar que estão
contentes, ainda que não o estejam; e a agradecer não só àqueles que lhes
mandam entregar alguma coisa, mas também àqueles que não lhes tiram
tudo, a fim de granjear, por esse meio, a amizade de uns e de outros, ou pelo
menos de evitar o seu ódio: porque isso pode ser muito útil, depois, para se
manter. Além de que ainda falta um longo caminho para passar das promes­
sas aos actos; e que, se aqueles que têm a força se conciliam sozinhos, é-lhes Descartes a Elisabeth
fácil encontrar razões para partilhar entre si aquilo que talvez não tivessem Egmond, 31 de Março de 1649
querido entregar a um terceiro a não ser por inveja uns dos outros, e para
impedir que aquele que enriqueceria com os seus despojos fosse demasiado
poderoso. A menor parte do Palatinado vale mais que todo o Império dos
Tártaros ou dos Moscovitas, e após dois ou três anos de paz, a estadia será tão
agradável aí como em qualquer outro lugar da terra. Por mim, que não estou Senhora,
afeiçoado à permanência em nenhum lugar, não teria nenhuma dificuldade
em trocar estas Províncias, ou mesmo a França, por aquele país, se aí pudesse Há cerca de um mês, tive a honra de escrever a Vossa Alteza, e informá-la de
encontrar um descanso também seguro, ainda que nenhuma outra razão a que tinha recebido algumas cartas da Suécia. Acabo de receber de novo algu­
não ser a beleza do país me fizesse lá ir; mas não há nenhuma morada no mun­ mas, pelas quais sou convidado, da parte da Rainha, a viajar até lá nesta Pri­
do, por mais rude ou incómoda, na qual não me considerasse feliz por passar o mavera, a fim de poder regressar antes do Inverno. Mas respondi de tal ma­
resto dos meus dias, se Vossa Alteza aí estivesse, e eu fosse capaz de lhe prestar neira que, embora não recuse ir, creio todavia que não partirei daqui senão
algum serviço; porque sou inteiramente, e sem nenhuma reserva, etc. por volta do meio do Verão. Pedi este prazo por várias razões, e particular­
mente a fim de poder receber as ordens de Vossa Alteza antes de partir. Já de­
clarei tão publicamente o zelo e a devoção que tenho ao vosso serviço, que
teriam mais motivos para ter má opinião de mim, se notassem que eu fosse in­
diferente ao que vos diz respeito, do que terão, se virem que eu procuro cuida­
dosamente as ocasiões de cumprir o meu dever. Assim suplico muito humil­
demente a Vossa Alteza que faça o favor de me instruir acerca de tudo aquilo
em que julgar que lhe posso prestar serviço, a si ou aos seus, e assegurar-se de
que tem sobre mim tanto poder, como se eu tivesse sido toda a minha vida seu
criado. Rogo-lhe também que me faça saber aquilo que lhe agrada que eu res­
ponda, se acontecer que se lembrem das cartas de Vossa Alteza sobre o Sobe­
rano Bem, que eu mencionara no ano passado nas minhas, e se tiverem a curi­
osidade de as ver. Tenciono passar o Inverno naquele país, e não voltar senão
no próximo ano. É de crer que a paz se terá nessa altura estendido a toda a
Alemanha, e se os meus desejos se realizarem, tomarei no regresso o meu
caminho pelo lugar onde estiverdes, a fim de poder mais particularmente
testemunhar que sou, etc.
166 MEDICINA DOS AFECTOS CORRESPONDÊNCIA ENTRE DESCARTES E A PRINCESA ELISABETH DA BOÉMIA 167

Descartes a Elisabeth Descartes a Elisabeth


Egmond, Junho de 1649 Estocolmo, 9 de Outubro de 1649

Senhora, Senhora,

Já que Vossa Alteza deseja saber qual é a minha resolução a respeito da via­ Tendo chegado há quatro ou cinco dias a Estocolmo, uma das primeiras coi­
gem à Suécia, direi que persisto no propósito de lá ir, no caso de a Rainha con­ sas que considero ser meu dever é renovar as ofertas do meu muito humilde
tinuar a testemunhar que quer que eu vá, e o Senhor Chanut, nosso Represen­ serviço a Vossa Alteza, a fim de que possa saber que a mudança de ar e de país
tante naquele país, tendo passado aqui, há oito dias, para ir a França, fa­ não é capaz de mudar nem diminuir nada a minha devoção e o meu zelo. Ain­
lou-me tão favoravelmente desta Rainha maravilhosa, que o caminho já não da não tive a honra de ver a Rainha mais do que duas vezes; mas parece-me
me parece tão longo nem tão aborrecido como anteriormente; mas não parti­ conhecê-la já o suficiente, para ousar dizer que ela não tem menos mérito e
rei antes de ter recebido ainda uma vez mais notícias daquele país, e procura­ tem mais virtude do que a fama lhe atribui. Com a generosidade e a majestade
rei esperar pelo regresso do Senhor Chanut para fazer a viagem com ele, por­ que se manifestam em todas as suas acções, vê-se uma doçura e uma bonda­
que espero que o enviem de novo para a Suécia. Além disso, considerar-me-ei de, que obrigam todos aqueles que amam a virtude e que têm a honra de se
extremamente feliz, se, quando lá estiver, for capaz de prestar algum serviço a aproximar dela, a ser inteiramente dedicados ao seu serviço. Uma das primei­
Vossa Alteza. Não deixarei de procurar com cuidado as ocasiões para isso, e ras coisas que me perguntou foi se sabia notícias vossas, e eu não deixei de lhe
não temerei escrever abertamente tudo o que tiver feito ou pensado sobre esse dizer antes de mais o que pensava de Vossa Alteza; porquanto, ao notar a for­
assunto, porque, não podendo ter nenhuma intenção que seja prejudicial ça do seu espírito, não receei que isso lhe provocasse nenhum ciúme, como te­
àqueles por quem serei obrigado a ter respeito, e tendo por máxima que os nho a certeza também que Vossa Alteza não poderá ter, por eu lhe escrever li­
meios justos e honestos são os mais úteis e os mais seguros, ainda que as car­ vremente os meus sentimentos acerca desta Rainha. Ela é extremamente de­
tas que eu escrever sejam vistas, espero que elas não possam ser mal interpre­ dicada ao estudo das letras; mas, dado que não sei se ela já viu alguma coisa
tadas, nem cair nas mãos de pessoas que sejam tão injustas, que achem mal de filosofia, não posso julgar o gosto que ela terá, nem se poderá empregar
que eu cumpra o meu dever e professe abertamente ser, etc. tempo nela, nem por conseguinte se serei capaz de lhe dar alguma satisfação,
e de lhe ser útil em alguma coisa. Este grande ardor que ela tem pelo conheci­
mento das letras, incita-a agora sobretudo a cultivar a língua grega, e a reunir
muitos livros antigos; mas pode ser que isso mude. E mesmo que não mudas­
se, a virtude que noto nesta princesa, obrigar-me-á sempre a preferir a utilida­
de do seu serviço ao desejo de lhe agradar; de modo que isso não me impedirá
de lhe dizer francamente os meus sentimentos; e se eles não lhe forem agradá­
veis, o que eu não penso, tirarei daí pelo menos a vantagem de ter satisfeito o
meu dever, e Isso dar-me-á ocasião de poder tanto mais cedo voltar á minha
solidão, lorn dn qual é difícil que eu possa avançar alguma coisa na procura
168 M E D IC IN A D O S A F E C T O S C O R R E S P O N D Ê N C IA E N T R E D E S C A R T E S E A P R IN C E S A E L IS A B E T H D A B O É M IA 169

da verdade; e é nisso que consiste o meu principal bem nesta vida. O Senhor
Freinshemius48 convenceu Sua Majestade que eu não vá nunca ao castelo, a
não ser nas horas que lhe agradar conceder-me para ter a honra de lhe falar; SBD / FFLCH/ USP
assim não terei muita dificuldade em fazer a minha corte, e isso ajusta-se mui­ Bib. Ftorestan Fernandes Tombo: 348767
to ao meu humor. Afinal de contas, porém, ainda que eu tenha uma veneração Aquisição. DOAÇÃO / FAP-LiVROS V!
Proc. 2009/16720-7 / C & N LOGISTICS
muifo grande por Sua Majestade, não creio que nada seja capaz de me reter
N.F 10052010/LOTE / LIS 39,02 23/5/2011
neste país mais tempo do que até ao próximo Verão; mas não posso responder
absolutamente pelo futuro. Posso apenas assegurar-vos que serei toda a mi­
nha vida, etc. Elisabeth a Descartes
4 de Dezembro de 1649

Senhor Descartes,

A vossa carta de 29 de Setembro /9 de Outubro passeou-se por Clève; mas


mesmo antiga ela não deixa de ser muito agradável e uma prova muito
delicada da continuação da vossa bondade para commigo, que me garan­
te também o bom sucesso da vossa viagem, uma vez que o motivo vale a
pena e que encontrais ainda mais maravilhas na Rainha da Suécia do que
a sua reputação faz supor. Mas é preciso confessar que vós sois mais ca­
paz de as conhecer do que aqueles que se juntaram até agora para as pro­
clamar. E parece-me saber mais, pelo pouco que dizeis, do que por tudo o
que soube doutro lado. Não acrediteis todavia que uma descrição tão
vantajosa me dê motivos de ciúme, mas antes de me considerar um pouco
mais do que fazia antes de ela me ter levado a formar a ideia de uma pes­
soa tão acabada, que livrou o nosso sexo da imputação de imbecilidade e
de fraqueza que os Srs. pedantes lhe costumavam dar. Convenço-me de
que, logo que ela tiver experimentado uma vez a vossa filosofia, a preferi­
rá à filologia deles. Mas admira-me que seja possível a esta princesa apli-
car-se no estudo como ela faz, e também aos cuidados do seu reino, duas
ocupações tão diferentes, que exigem cada uma delas uma pessoa inteira.
A honra que me fez, na vossa presença, de se lembrar de mim, atribuo-a
inteiramente ao propósito de vos obsequiar, dando-vos motivo para
exercer uma caridade que haveis testemunhado ostentar em muitas ou­
tras ocasiões, e devo-vos esta vantagem, como também se eu obtiver a de
ter alguma parte na sua aprovação, que poderei conservar tanto melhor
quanto não terei nunca a honra de ser conhecida por Sua Majestade de
modo diferente do que vós me representais. Sinto-me no entanto capaz
de um crime contra o seu serviço, estando muito contente por a vossa ex­
48 Johann Freinsheim (1608-1660), filólogo, professor de política e retórica na Universidade irem. i veneração por ela não vos obrigar a permanecer na Suécia. Se par­
de Upsala, onde proferiu, na presença da rainha Cristina, a 17 de Setembro de 1642, uma tirdes ncile Inverno, espero que seja na companhia do Senhor Kleist, em
conferência sobre o soberano bem.
170 MEDICINA DOS AFECTOS
*

quem encontrareis a melhor comodidade para dar a alegria de vos ver


novo à
Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos.

Elisabeth

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