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força de uma obra sobre um filósofo

tão fundamental como Martin


Heidegger está em sua capacidade
de revelar os elementos estruturadores
de seu pensamento, sem se perder em
um mero desdobramento de conceitos
e em um mimetismoestéril de seus
modos de expressão. Exatamente essa
força pode ser aqui encontrada no livro
Martin Heidegger: fenomenologia
+
da /fberdade. Günter Figal convida-nos
aqui a tomar parte no rico diálogo
heideggeriano com a tradição. Com isso.
ele nos leva a perceber a singularidade
da filosofia de Martin Heidegger.ao
mesmotempo que nos abre para a vida
do conhecimento. Nessesentido. a edição
dessatradução pela Forense Universitária
vem contribuir decisivamentepara o
aprofundamento dos estudos da obra
de Martin Heidegger no Brasil.

Goethe -lnstitut enter Nationes


l lll
São Paulo FENOMENOLOGIA
11
sap$00007153
11 DA LIBERDADE
ÍSijR'ã5:7ÍR:0nF6

97 8 8 5 2 11i8 0 3 7 99
.K.g - g . oS
À }l.e.L; é'q '{ R.g.éS,ao
er e tempo é. com certeza. a obra
central do pensamento de Martin
Heidegger.assim como um dos livros
mais importantes de toda a filosofia
contemporânea.Estranhamente.porém.
ainda hoje não há senão muito poucos
textos de referência que propiclem uma
visualização clara dos problemas
complexospresentesnessaobra e que
reconstruam simultaneamente as redes MARTIN HEIDEGGER
conceituais próprias ao amplo diálogo
heídeggeriano com a tradição. /Warfír7
FENOMENOLOGIA DÀ LIBERDADE
Heidegger: fenomenologia da liberdade
tem exatamente essaqualidade. e vem
com isso contribuir de maneira decisiva
para o aprofundamento dos estudos de
Heidegger no Brasíl. Partindo da fixação
de um âmbito temático que nos permita
perceber a singularidade máxima do
projeto heideggeriano de uma ontologia
fundamental e que seja assim capaz de
alçar o autor desseprojeto à categoria
de um clássicoda filosofia. Günter figas
apresenta-nos gradualmente a génese
própria a cada um dos conceitos
fundamentais de Ser e tempo.
Nessesentido. o presente livro funciona
como uma excelente porta de entrada
parao ainda enigmático caminho
heideggeriano de pensamento e para
a conquista de uma basesólida
indispensável à realização da leitura de
todo grande filósofo. Mas Günter Figal
não se restringe à construção dessabase.
Por meio de uma assunção inicial do
caráter decisivo da questão da liberdade
no pensamento heideggeriano e de uma
consideraçãodo modo como essaquestão
se articula essencialmentecom o traço
fenomenológicodessepensamentoe
/
Gtinter Figas

MÁRTIR HEIDEGGER

FENOMENOLOGIA DA LIBERDADE

TRADUÇÃO:
Marco Antânio Casanova

FORENSE
UNIVERSITÁRIA
lü edição -- 2005

© Col)yriSilt!
2000, Beltz VerIaS, Weinheim t.tndBasal

T'iaduziclo de
Martin Heidegger: Phiinomenologie der Freiheit

A edição desta obl'a .fol .fuit\enfada pelo Gocthe-htstitut enter Narioltes

C:iPu: Mcl & N4:t)-


Editoruçãc}elctrí iicu: Rit Text

CIP-Brasil. Catalogação-nl-R)nte
Sindicato Nacional dos Editores de Livrtl RJ

F481n Figul. Gtiilter, 1949-


Nlürtin l-leideggct: tciltlilw )longada litwrcludc / Giintcr Figul; tradução N'luic
Atttõnio Cusunovü. - Rio dc J: :ito: Fot'crise Uttiversitária, 2(X)5.

I'raduçãtl de: lvlattin }lcidegger: Pll nlologie der Frcilwit


ISBN85-218-0379-6

l . l-lcitlegger, Mttrtin, 1889-1976. 2. Libcrducle - }listcSriu- Século XX. 3. Espuç-


tcmp) - História - Século XX. 4. Filosofia tnodemü - Século XX. 1.Título

CDD 123.50924
05-1293.
CDU 123.1

Para Bárbara e Sebastião

Proit)ida i\ reproduçãotou\l ou piucial, clequalquer forma


ou por qualquer meio eletrõnico ou mecânico, sem permissão
expressado Editor(Lci ne9.610, de 19.2.1998)

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Impresso no Brusil
Pi'iiltcd in Bra:.it
/
SUMÁRIO

PKil:rácio. 9

INTKOOUÇÃO 11

CAPÍTULOI
O Ponto de Partida Heideggeriano para unia
Filosofia da Liberdade 29

$]. O conceito
defenomenologia
. . . . . . . . . . . . . . . . . 29
$ 2. Ser como ser-aí. Da mesmidade à auto-evidência . 50
CAPÍTULOII Ser-aí como Ser-no-Mundo. Determinações
Se há tlnt sentido de realidade, Fundamentais da Liberdade e da Ausência
é preciso tatltbétn qLte hcÜa um sentido de possibilidade.
de Liberdade 69
Robert Musil
$ 3. Auto-evidência e liberdade
$ 4. Consideração intermediária. Comportamento
livre, liberdade como causalidade e a abertura
do ente
$ 5. Ser-com e co-ser-aí. O "impessoal" como
determinação fundamental da não-liberdade . . 122

CAPITULO111 A Diferença da Liberdade 141

$6.Descerramento
ecomportamento
. . . . . . . . . . . . . ]41
g 7. Impropriedade ou a posição do comportamento. . 156
$ 8. Propriedade ou a negação do comportan#nto . . . 172

CAPÍTULolV LiberdadeeTemporalidade........... ..........248


$9. Sere tempo. . 248
$ 10. Tempo e ser. 307

ÍNDICE DOS ESCRITOS CITADOS . 371


/

PREFÁCIO

A presente investigação foi apresentada em 1 987 à Faculdade de Filoso-


fia e História da Universidade de Heidelberg como escrito de habilitação à
docência. Gostaria de agradecer nessemomento de coração a todos aqueles
que me incentivaram, que me deram conselhos e me ajudaram. Meu agrade-
cimento vai inicialmente para os professores naus Georg Gadamer, Naus
Friedrich Fuma, assim como para Reiner Wiehl e Wolfgang Wieland em
particular; tenho igual gratidão pelo professor Dr. Hermann Braun, que for-
neceualgumas indicações preciosas para a versão definitiva do texto. Além
disso, gostaria de agradecer a Dominic Kaegi, por sua ajuda com a leitura e
correção do texto, bem como pela confecção do índice onomástica. Por fím,
a todos os amigos e estudantesde Heidelberg e Bielefeld, que me impeliram,
por meio de seu interessee de suasperguntas, a formular meus pensamentos
de maneira tão clara quanto possível.

Günter Final

f
/
INTRODUÇÃO

Apesar de Heidegger se mostrar indiscutivelmente como um dos fi lóso-


fos mais importantes do século XX, quase não conseguiremos dizer que seus
trabalhos estão presentes nos debates üilosóflcos atuais de uma maneira evi-
dente. Em verdade, Heidegger é lido e discutido. No entanto, não é tratado
incontestavelmente como um clássico da filosofia. Mesmo onde ele é assim
designado, ' isso não acontece sem considerações ulteriores; e parece que se
está mesmo obrigado à primeira vista a compartilhar essas hesitações. Não
argumentamos em última instância com Heidegger como argumentamos
com Aristóteles e Kant, Fremee Wittgenstein; não argumentamoscom ele
nem mesmo como o fazemos com Husserl. Além disso, não interrogamos
seustextos como interrogamos os textos dos autores sz/pra e de outros auto-
resquando não conseguimos prosseguir no esclarecimento e na resolução de
problemasfilosóficos com outros meios conceituais. Heideggel' também
não nos coloca diante de prol)lemas da mesma maneira que Kant sempre
continua nos colocando; não há quase trabalhos sobre Heidcgger que o to-
mem seriamente como companheiro dc discussão.2 Sente-se igualmente fal-
ta de comentários capazes de facilitar a compreensão de seus textos que são
certamente carentes de elucidação tal como o fazem os grandes comentá-
rios sobre Kant e Aristóteles.: E certo que tudo isso se deve em parte ao fato

'Cf. Haellner (1981)


:Tugendhat (1 970-1 97 1) e Tugendhat (1 979) formam uilaa exceção
'V. Herrmann está até mesmo convencido de que, ''depois de quase50 anos, Se/ e /e/7zpoainda
não foi quaseapropriado de uma maneira que corresponda plenamente ao que é requisitado pela
obra". Cf. v. Herrmann ( 1985), p. 12. Entrementes, v. Herrmann apresentou o primeiro volume
de uma obra abrangente sobre STi v. Herrmann ( 1987). No entanto, essa oÚa é expressamente
desj3nadapelo autor não como t.i]]]comentário, idas colmouma "explicitação", uma vez qt.ie
paraele um comentário parece antes uma "conversa científica soó/e o texto", enquanto a ''expli-
citação se co;apreende como uma conversa interpretativa co/?zo texto"; v. Herrmann ( 1987),
XIII. De acordo com isso, v. Herrinann se detém também rigorosamente na construção do texto
e na sua terminologia, de modo que a interpretação tem o caráter de uma realização paralela em
verdade sutil, mas em última instância para.haseadora. Tal procedimento é naturalmente legíti-
mo. Todavia, a renúncia da distância em relação ao texto de S7 paga certamente o preço de os
pensamentosde Heidegger não poderem ser discutidos em um contexto sistemático que os
abarquee de a ligação objetiva permanecerlimitada a um apelo à própria ''visão fenomenológi-
ca" do leitor; v. Hem)lann(1987), Xlll
12 Günter Figal Martin Heidegger; Fenomenologia da Liberdade 13

de Heidegger ser um autor do século XX. No entanto, também é certo qt..{ o sentido do ser plenamente significativa ou se fizermos isso simplesmente
essanão é a única razão para tanto. Há uma série de trabalhos sobre Frege e semtermos jamais duvidado de seu sentido, então estamospróximos de
Wittgenstein que são comparáveis, em incisividade e amplitude analíticas, acompanhar a elaboração dessa pergLmtanas fases singu lares do desenvolvi-
às investigações correspondentes sobre Kant e Aristóteles. Em contraparti- mento de Heidegger. Um grande número de intérpretes agiram assim e che-
da, parece ser difícil alcançar em relação a Heidegger a distância necessária garam a resultados totalmente diversos por meio desseprocedimento. Não
para que um autor possa ser compreendido exemplamlente em suas coloca- obstante,se está amplamente de acordo quanto ao fato de que só é possível
ções dos problemas e em suas soluções, para que ele possa ser tomado como descrever o desenvolvimento filosófico de Heidegger adequadamente se se
um clássico. Isso não tem, por Him,sua razão de ser no estilo da própria filo- consegue esclarecer a relação entre STe os escritos tardios. Uma vez que Sr
sofia heideggeriana.No que concernea essefilosofar, temos o mínimo de é um fragmento, tende-se por Hinoa perguntar se os escritos posteriores, ]lo
distanciamento da busca de uma objetividade analítica justamente onde ele quediz respeito à coisa mesma, devem ser lidos ou não como um prossegui-
se apresenta com sua pergunta central: a pergunta sobre o ser. Heidegger não mento dessefragmento. Se se coloca a pergunta dessamaneira, então seper-
se cansou de apontar para o esquecimento dessa pergunta e para o esqueci- gunta reconhecidamentepelo modo como a "virada" precisa ser interpretada
mento antes de tudo do sermesmo, assim como de identiHlcar esse esque- no pensamentode Heidegger. No que concerne às respostasa essapergunta,
cimento em seustextos posteriores com a HilosoHiaem seu transcurso desde
a menos plausível é certamente a tese de William Richardson de que depois
Platão até Nietzsche. O pensamento heideggeriano aparece, assim, como deS7tem lugar uma ruptura, de modo que se poderia diferenciar entre "Hei-
crítica da HilosoHia, cujo flm é mesmo expressamente constatado; o programa degger1" e "Heidegger 11";e ela não é em verdade a menos plausível apenas
dessepensamento é, com isso, "superação" ou "transpassamento" da tradi- em virhide do que o próprio Heidegger expôs.5Não restamais quasenenhu-
ção filosóHlcadenominada metafísica. Segundo sua avaliação, essatradição ma possibilidade de contestar que uma série de temas centrais de STse man-
chega ao seu acabamento na instalação técnica axial do mundo. Se lemlos tém nos escritos posteriores. Somente porque os escritos posteriores a ST
Heidegger sob esseaspecto,parece impossível não assumir nenhuma posi- não apresentam nenhuma homogeneidade de imediato evidente, não é forço-
ção ante seus escritos. Ou bem se aceita sua tese, e, então, é necessário acei- so diferenciar apenasentre duas fases do pensamento heideggeriano.ó
tar tambén] suas conseqiiências e abdicar do desenvolvimento de questões A consonância em relação ao fato de haver na obra de Heidegger una
filosóficas segundo as vias academicamente reconhecidas e abertas pela 'caminho de pensamento" ao menos fundamentalmente uno não envolve
"metafísica"; no ]ugar de um questionamento e de lula argumentação f] losó- em absoluto, uma decisão prévia quanto ao modo como esse"caminho de
ficos entra em cena um procedimento próximo da poesia, cujos resultados pensamento" precisa ser interpretado. As duas altemativas extremas são
parecemapontar freqüentemente para a "utopia de um entendimento semi- aqui certamente as concepções desse caminho de pensamento como o cami-
poético" (Obra c0/7ip/efa13, 84).4Ou bem não se aceita a tese filosófi- nho de um sucessoao menos priilcipial ou como o caminho de um declínio
co-crítica de Heidegger, e, então, parece no mínimo muito difícil ainda co- ante as intenções originárias de Heidegger. Se dissemlos que nos escritos
meçar alguma coisa com os textos posteriores de Heidegger. tardios de Heidegger "as intenções do antigo ponto de partida" alcançam
Vista cona mais exatidão, porém, essadificuldade já diz respeito tam- pela primeira vez sua meta própria",7 então parece difícil querer compreen-
bém ao livro sobre "ser e tempo". Não é possível negar, por nim, que se trata der Heidegger primariamente a partir de ST. Nesse caso, é preciso antesten-
nesselivro de um primeiro e por issomesmoainda incompleto desenvolvi- tartomar compreensível o passo para além de S7'. Com isso, em sintonia com
mentoda pergunta sobre o ser, de modo que parecemos obrigados a achar a orientação pelos escritos posteriores, podem-se reencontrar os pensamen-
essapergunta plenamente signoHlcativase quisermos conquistar lula via de tos que em atestavam ou apenas insinuados, ou não estavam sequer elabo-
acesso ao pensamento de Heidegger. Somente assim parece ser possível rados, ou se encontravam elaborados de maneira meramente incompleta.8
também evitar uma interpretação HllosóHlco-existencial ou antropológica
das análises de ST, uma interpretação que contradiz a autocompreensão hei- 'Cf. Richardson (1963) e o prefácio de Heidegger a esse livro

deggeriana. Se nos decidirmos em algum momento a achar a pergunta sobre "Assim, O. Põggeler defendeu a possibilidade de diferenciar três fases do desenvolvimento de
Heidegger. Comparar Põgge]er ( ]963) e Põggeler ( 1983)
'V. Herrmann(] 964), 41 ; ct. também v. Herrmann(í981)

'Quanto à lbrma de citação dos escritos heideggerianos,cf. o Índice dos Escritos Citados. E assim que procedem, por exemplo, Bretschneider (1965), v. Herrmatln (1964). Müller
(1964), Pugliese( 1965), Sinn(1967) e Schtirmann( 1982).
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 15
14 Günter figas

dependeriatão-somente de colocar uma pergunta de um tipo tal "que não ti-


Em contrapartida, se nos orientarmos em primeira linha por STe avaliarmos
os escritos posteriores como uma decadência, então também nos ORgremos, véssemos a mais mínima representação do modo como se poderia decidirso-
ao adotarmos essaatitude, à idéia de que é necessário subordinar totalmente bre respostase argumentos diversos",'' para deixar para trás a concepção
as análises e discussõesdo antigo livro à "questão do ser", tal como foi ela- problemática da filosofia como um discurso objetivo e comprometido com
argumentos.
borada posteriormente por Heidegger. Uma tal oposição encontra-se à base
da suspeita "de que a virada não é nenhuma virada autêntica, porquanto não Como quer que se possam defender essas duas perspectivas de interpre-
tação, elas permanecem, em última instância, de qualquer forma insuficien-
interpreta de maneira nova o mesmo âmbito fenomenal, mas se atém a uma
nova interpretação que conduz ao desaparecimentodesse âmbito fenome- tes. Em verdade, as duas perspectivas estão sobrepostasa uma orientação
nal".9 De início, não é tão importante saber se essa suspeita é justificada ou desprovida de distanciamento e por vezes mesmo ingénua pela "questão da
não. Importante é muito mais a defesade que, com a pergunta sobre o "âmbi- ser", mas se chocam de uma maneira problemática com a autocompreensão
to fenomenal" de ST, não devemos nos orientar em primeira linha pela de Heidegger. Se tomarmos efetivamente por inexeqüível a tentativa de
questão do ser", mesmo no que diz respeito a esselivro. Há seguramente compreender o pensamento heideggeriano em sua unicidade, então só pode-
uma boa razão para se assumir uma postura cénicaante a pergunta sobre o remos considerar a requisição filosófica de Heidegger como uma au-
ser". A análise do verbo "ser" pode muito bem mostrar que "ser" possui to-ilusão. E se articularmos Heidegger com uma filosofia "conformadora" e
uma série de significações irredutíveis umas às outras e incapazes de consti- 'periférica", oposta à filosoHla "sistemática",i4 então não desprezaremos
tuir exclusivamente as significações desseverbo. Seaceitarmos a irredutibi- apenaso fato de Heidegger mesmo nunca ter feito uma tal diferença. Há algo
lidade de"ser" a uma significação fundamental, certamentecontinuaremos a ainda mais importante: desprezaremos também o fato de que o que estava em
ter a possibilidade de compreender uma significação como fundamental e de jogo para Heidegger não era somente dar adeus à tradição filosófica, mas,
ordenar sistematicamente as outras em função dela.to De acordo com a ob- em um diálogo supremamente rico em tensões com essatradição, conduzir
servação de quais outras expressões lingtlísticas podem possuir a mesma pela primeira vez para a questão que a mobiliza e mantém em curso. Essa
questão é uma vez mais a questão do ser, e, assim, parece que só podemos
significação de "ser", em contrapartida, é possível contestar a posição proe-
minente do verbo "ser" na linguagem cotidiana, assim como na filosofia; e nos inserir na autocompreensão de Heidegger na medida em que supomos
se as coisas são realmente assim, então "os autos enl relação à 'questão do essaquestão como plenamente sigilinicativa.

ser' podem ser de fato fechados".'' Contudo, levar a sério a autocompreensãode um autor sem dúvida não
Juntamentecom esseprocesso,também se acabacertamente por arqui- significa deixar que ele simplesmente nos entregue apr/orf os conceitos ou
var a tentativa de compreender o pensamentode Heidegger em sua unicida- intuições diretrizes. Seagirmos assim, não chegaremos a realizar uma inter-
de; o que permanece, então, é a possibilidade de acolher diversas questões e pretaçãol se é que lula interpretação sempre é motivada, afinal, pela descon-
análises heideggerianas no contexto de outras questões filosóficas e de ou- fiança ante o texto tal como ele se apresentaimediatamente. Justamenteem
tras concepções,frutiülcando-as a partir daí.iz Senão nos decidimos por esse relação a un] autor como Heidegger, é necessário atentar para que, em meio à
tentativa de interpreta-lo, seu próprio nível de interpretação não sqa subava-
passoe tomamos, apesardisso, a pulso o quefoi descoberto sobre as diversas
liada: assim como o próprio Heidegger investigou os textos dú tradição filo-
significações de ser, então só resta, por fim, a alternativa de verjá na pergun-
ta heideggeriana sobre o ser como tal a recusa a um discurso filosófico tradi- sófica em função do "não dito" neles, a Him de descobrir as opiniões prévias
cional. Com isso, a pergunta sobre o ser seria semmais substituível pela per- que suportam a compreensão dos conceitos fundamentais e dirigem o curso
gunta acercada linguagem como tal ou acercado pensamento como tal; tudo de pensamento, nós também só fazemosjus a ele mesmo se não nos conten-
tamos com uma interpretação imanente, mas procuramos esclarecer as opi-
niões prévias que são diretrizes para ele. Somente desse modo parece possí-
PTugendhat(1970-1971),p. 399
vel se orientar em meio às mudanças de suasterminologias e não identificar
lonasdiscussõesantológicas mais recentes,Ch. Kahn defendeuessasolução originariamente
aristotélica. Cf. Kahn ( 1973), especialmente p. 371
' 'Tugendhat (1977), p. 176
':Rorty (1984), p. 15
ZEm Tugendhat mesmo, esse ponto de partida levou a análises extraordinariamente interessan-
Rorty ( 1979)
tes. Cf. Tugendhat (1979).
16 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 17

simplesmente o que estáemjogo em seu pensamentocom suaspróprias elas 'ser", não se chegar a apreender o que está emjogo para Heidegger. O termo
borações com fteqüência apenasevocativas, que, correspondendo ao lema ser" não éjustamente apenas o inHlnitivo substantivado de um verbo, cuja
daobra completa, também querem ser compreendidas,por nim, como "cami- significação é passível de análise. Ao colltrário, ele aponta para lml proble-
nhos", e não como obras. E somente dessemodo parece ser efetivafÍlente ma filosófico que se subtrai ao instrumentário da análise semântica. Porque
possível iluminar o sentido da pergunta sobre o ser ao menos lmapassoalém. Schulz liga sua interpretação à HilosoHiade Heidegger como um todo e não
Em relação à sua unicidade, a mais importante tentativa de tmla tal interpre- apenas à fase de Ser e re/npo, torna-se, além disso, compreensível a posição
tação não imanente do pensamento de Heidegger talvez tenha sido feita por heideggeriana ante a tradição filosóHlca, uma posição que se altera em meio à
Walter Schulz.is Dito de maneira sucinta, a estratégia interpretativa de virada": enquanto no contexto ontológico fundamental de STHeidegger ra-
Schulz consisteem levar a sério o distanciamento heideggeriano ante a tradi- dicaliza a moderna filosofia da subjetividade e a pensa até o âm, na medida
ção filosófica, ligando-o aomesmo tempo a essatradição. A Hilosofia de Hei- em que apresenta o fracasso de unia tentativa de autofilndamentação da sub-
degger, tal çonlo Schulz a compreende, marca o Hmldessa tradição. Desta for- jetividade, os escritos posteriores a STpraticam um pensamento que é supor-
ma, ela pode ser em verdade compreendida por um lado a partir dessatradi- tado pela intelecção da impossibilidade de uma tal autoftlndamentação.
ção, mas não deve ser, por outro, simplesmente uma nova variante teórica Apesar de o curso de pensamento de Senão ser nenhuma mera variante da fi-
dela. Porque, de acordo com Schulz, a tradição da filosofia ocidental deve losofia da subjetividade, ele ainda se mantém em sua perspectiva. Em seus
ser concebida como a "realização significativa de um acontecimento" que escritos tardios, Heidegger abandona esse liame perspectiva e, coerente-
produz "a passagem de uma dação ingênua de numdo para o sqeito que se mente, como a filosofia culmina na filosofia da subjetividade, não fala mais
coloca sobre si mesmo", a filosofia de Heidegger aparece mais exatamente agora de sua "nilosonia", mas de seu "pensamento"
como o fim da HllosoHiada subjetividade;ió esse Himnão é instaurado além E um mérito de Schulz ter apresentado com clareza sua interpretação de
disso arbitrariamente, mas estáacoplado à tradição, uma vez que ela mesma Heidegger a partir da filosofia da subjetividade cor-lo uma interpretação e Ler
impele a um fim. Não há como deixar de ver que esseponto de partida inter- ao menos refletido fundamentalmente sobre seus pressupostos.Nisso ele é
pretativo é debitário dos esforços filosóficos de Hegel, assim como das di- superior a muitos intérpretes de Heidegger, mesmo a alguns intérpretes proe-
versasarticulações de uma crise do programa hegeliai)o. Por isso, ele é con- minentes, como Lévinas e Sartre, que, sem hesitação, supõem que, ao menos
dicionado por uma série de decisões prévias que Schulz nem pode nem quer em S7, se trata em Heidegger de uma concepção própria à filosofia da subje-
resgatarno âmbito de sua interpretação de Heidegger. Com certeza, seria ne- tividade. Justamente porque a interpretação de Schulz se dá a conhecer aber-
cessáriodiscutirjustamente essasdecisõesprévias a fim de formar uma clara tamente como interpretação, ela acaba, porém, por provocar uma série de
opinião acerca da plausibilidade da interpretação de Schulz. A atratividade ponderaçõesante a tentativa de compreender Heidegger a partir da filosoHla
dessainterpretação é, contudo, evidente mesmo semuma tal discussão. Com da subjetividade. Para duvidarmos de que a modema filosofia da subjetivi-
a tesede que "o ser no sentido de Heidegger" é "um conceito que foi levado a dade ofereça o âmbito adequado para uma interpretação do pensamento hei-
termo pela primeira vez por meio da HilosoHiada subjetividade",17 Sçhulz deggeriano em sua unicidade, não é preciso se inserir de modo incondicio-
consegue ainda assim dar uma resposta à pergunta: o termo "ser" deve se nal em uma discussão da pergunta sobre se há realmente um desenvolvimen-
mostrar como um termo para-quê lias escritos de Heidegger? to dessafilosofia tão homogêneo quanto Schulz o supõe.
Caso Schulz tenha razão, "ser" designa a subjetividade a ser pensada De início, é mais do que suficiente apontar para unia simples circunstân-
como ato, uma vez que ela não é capaz de uma autofündamentação; ou, dito cia: Heidegger não desenvolveu a concepção de grão menos exclusivamen-
de outro modo: "ser" implica levar a cabo a própria realidade efetiva não res- te, e, com certeza,tampouco em primeira linha, a partir da ocupaçãocom au-
gatável no pensamento. Se essatese procede, então ao que parece também se tores que podem ser tomados como representantesclássicos da filosofia da
toma compreensível o porquê de, no contexto de análise da significação de subjetividade. Desses autores, nem Hegel, nem Fichte, nem Schelling de-
sempenhamlml papel decisivo para Heidegger na fase de desellvolvimento
deS7. Em contraposição a essesautores, está presente em verdade Kierke-
sSchulz(1969). gaard, de quem Heidegger assume uma série de temas e conceitos. No entan-
i'Schulz (1969), P. 68.
to, em meio a tudo o que Heidegger aprendeude Kierkegaard, continua sen-
t7Sçhulz(1969), P. 136.
18 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 19

do questionável se ele também compartilhava em sua filosofia dos pensar Se acentuámos que os autores clássicos da Hilosofia grega têm uma fun-
mentes fundamentais de Kierkegaard. O mesmo vale para a filosofia de Hus- ção-chave para a compreensão de Heidegger, esseacento não implica abso-
serl, que aparece freqüentemente representado sob o pseudân imo de De.scar- lutamente contestar a significação da moderna fllosoHia da subjetividade
tes.iB E, no que diz respeito a Kant, Heidegger tenta se apropriar de ta)zmodo para Heidegger. Dito de maneira mais exata, não contestamos que temas
do que está emjogo em seu pensamento que o resultado não possa maisjus- centrais da filosofia da sulÚetividade também são importantes para Heideg-
tamente ser denominado característico da "filosofia da subjetividade". Em ger, mas sim muito mais que Heidegger se mantenha em meio ao desenvol-
contrapartida, Heidegger se deteve intensamente em uma discussão com vimento de sua própria concepção sob a perspectiva da HilosoHia da subjetivi-
Platão e Aristóteles, e, aí, desenvolveu, ao menos em seu primeiro despon- dade.Caso queiramos fazer uma tentativa de caracterizar a perspectiva da Hl-
tar, as figuras de pensamento mais importantes e mais ricas em desdobra- losofia da subjetividade, apesar da simplificação que aí necessariamente tem
mentos para toda a sua Hilosofia. A tentativa heideggeriana de ir além da con- lugar, então se pode dizer: intrínsecos à filosofia da subjetividade são todos
cepção de seu professor se constrói sobre a base dessas discussões. Ê conhe- os conceitos que se orientam a partir de processose, quer expressamenteou
cido o fato de essas interpretações da Antigüidade apresentadas em suas pre- não, esperamdessaorientação a chance paralula teoria consistente da cons-
leções terem dado sustentação à fama de Heideggerjá anos antes do apareci- ciência e dos objetos que Ihe são correlatos. De acordo com isso, uma teoria
mento de ST, e, como se pode depreender desde a publicação das P/zd/70/zze- filosófico-transcendental da subjetividade seria caracterizada pela suposi-
no/ogisc/ze/27ferp/'e/a//one/7
zz/.4/'fs/ofe/es(Interpretações fenomenológicas ção de um processo não mais identiHlcável com pensamentossingulares ou
de Aristóteles -- OC 61 ), temas centrais de ST pertencem originariamente ao com uma ação singular, um processo que torne pela primeira vez compreen-
contexto de uma publicação maior sobre Aristóteles que tinha sido planejada sível a correlação da consciência com seusobjetos. Por levantar essarequisi-
por Heidegger.i9 Se levarmos isso em consideração,então se torna evidente ção, uma teoria filosóõco-transcendental também precisa fazer a tentativa
o quão pouco Heidegger se deixa compreender primariamente a partir do de mostrar como é necessária sua suposição de lml ato principiam, não impor-
contexto da moderna filosofia da subjetividade. Será muito mais necessário tando como é que esse processo tenha de ser tomado.
proceder com Heidegger como elemesmo procede com Hegel: é preciso que Naturalmente, nem todas as teorias nas quais a descrição de processos
tentemos "manter seustextos como que ante uma fonte de luz clara", a flm de mentais e de realizações do agir desempenhaum papel importante são mar-
tornar visível por trás deles os textos de Aristóteles e Platão.20Seos textos de cadaspela filosofia da subjetividadeou se mostramcomo filosófi-
Heidegger só se tornam compreensíveis dessamaneira, então estáclaro que co-transcendentais. Se se quisesse afirmar isso, então também seria necessá-
ele não pode viger simplesmente como aquele que supera a tradição HilosóRi- rio designar, por exemplo, as doutrinas da alma de Platão e de Aristóteles
ca, tal como ela começa conaPlatão e Aristóteles, mas que ele mesmo só é como filosofias da subjetividade e, com isso, o conceito perderia toda a capa-
produtivo justamente a partir do recurso a essecomeço.:' cidade de produzir uma distinção incisiva. Desta feita, é preciso refinar a ca-
racterização dada. SÓse pode falar de filosofia da subjetividade se uma teo-
ria tentar depreender a correlação entre os processos e seus olÜetos a serem
pensadosda maneira mais ampla possível no interior de uma orientação
'i'Se essa tese estiver carreta, então também há poucas perspectivas de se alcançar uma com-
preensão dos pensamentosRindamentais de Heidegger antes de tudo ou mesmo exclusivamente
que privilegie os processos. Pode-se dizer, assim, sem dúvida alguma, que
em conexão com Husserl. E bem provável que se mostre muito mais como impossível integrar a um traço característico de todas as teorias interessadaspela (descriçãode pro-
concepção de Seno âmbito sistemático da f'enomenologia husserliana, como O. Becker tentou. cessossetoma dominante em meio à filosofia da subjetivitlade. Dessama-
Ct Beçker (1929), assim como outras interpretaçõesde Heidegger que recorrem a Husserl: neira, é possível tornar compreensível ao menos em esboço a relação da Hilo-
Theunissen(1965), Tugendhat(1970/1) e Waelhens(1965). soHia da subjetividade com outras teorias filosóficas sem que se necessite su-
'9Cf., quanto a isso, Gadainer(1983), p. 31 e 131 :

:"Fuma/Henrich
( 1973),p.28. por, como Schulz, um desenvolvimento histórico da filosofia em si dotado
'A retêrência produtiva de Heidegger a autores clássicos da filosofia grega só foi até hoje con- desentido. Todavia, somente a idéia de um tal desenvolvimento torna possí-
sideradapropriamentepor H. G. Gadamer;compararGadamer(1983). Mesmo a W. Marx vel para Schulz interpretar o filosofar heideggeriano como o Himda HilosoHia
(196]), a única coisa que interessa é mostrar a distância de Heidegger diante da tradição clássi- da subjetividade.
ca, em especialde Aristóteles. Com isso, os múltiplos pontos temáticose sistemáticos em co-
mum permanecem sem consideração.

.\
20 Günter Final

Em contrapartida,se não perguntarmospelo "lugar histórico-filo-


sófico de Martin Heidegger" e mantivermos apesar disso em vista a ligação
[ Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade

buscar distanciamento de "filosofia transcendental". Não obstante. as duas


coisas podem ser esclarecidas a partir da indicação de uma dupla peculiari-
dadedos textos heideggerianos. A compreensão dessestextos é muito me-
21

de Heidegger com a perspectiva da üilosofla da suUetividade, então/estará


dado através daí o ponto de partida para uma interpretação de Heidegger, nos dificultada pelos conhecidos neologismos de Heidegger do que pelo
cujo interesse é primariamente de natureza sistemática e descritiva. Na acolhimento freqilente de termos tradicionais que são aí utilizados de uma
presente investigação, defenderemos e tentaremos tomar compreensiva a maneira nova, na maioria das vezes dificilmente controlável. A isso se alia
tese de que é peculiar à filosofia heideggeriana o abandono da orientação ainda a dificuldade oriunda do fato de Heideggermuitas vezesdesdobrar
pelos processos,uma orientação intrínseca à filosofia da subjetividade. seuspróprios pensamentos, na medida em que os lê nos autores clássicos
Porque Heidegger não se orienta mais pelos processos, ele também pode que interpreta. Por meio disso surge a impressão de que Heidegger se iden-
perguntar pelo contexto no qual eles se encontram sem que com isso seja tifica com a concepçãodos autoresinterpretados,o que com freqüência
colocada a pergunta sobre sua condição de possibilidade no sentido da filo- certamente não é o caso ou se mostra, de qualquer modo, como objetiva-
sofia transcendental. Se se diz isso, então se compreende naturalmente a ü- mente inadequado. Um bom exemplo para o segundo caso é o livro Kan/
losoüia transcendental como uma variante da Hilosoüiada subjetividade, na zrnddas Proa/e/7?der À4erapÀys/#(Kant e o problema da metafísica). No
medida em que se presume que a pergLmtaHllosófico-transcendental sobre que concerne a esse livro, Heidegger mesmo se convenceu de que, ao espe-
a condição de possibilidade dos processossó podeser feita por intermédio lhar sobre Kart sua própria concepção, tinha "obstruído e tornado passível
da distinção de um processo absoluto, pura e simplesmente constituído, e de má interpretação" seu próprio caminho (KPÀ/, Xlll).2' Portanto, tam-
da conseqüente diferenciação desse processo ante todos os outros proces- bém respeitamos a auto-interpretação de Heidegger quando não o interpre-
sos. Não se consegue, além do mais, ver que sentido poderia ter a interpre- tamoscomo um filósofo transcendentale tentamos expor de maneira di-
tação de Heidegger como um filósofo transcendental se ela não comparti- versa a pergunta sobre a conexão entre os processos.
Ihassedessa caracterização da filosofia transcendental. O ensaio diferen- Para uma tal tentativa, o mais auspicioso é com certeza se manter em
ciado de C. F. Gethmann sobre Compreensão e /nrerpre/açõo, por exemplo, primeira linhajunto ao livro Ser e fen2po.Mesmo embora alguns manuscri-
quedesenvolve lmla interpretação filosófico-transcendental de Heidegger, tos bastante abrangentes da obra póstuma de Heidegger ainda não tenham
persegue no fundo a mesma intenção da interpretação orientada pela üilo- sido publicados até agora, pode-se considerar essaobra, sem dúvida algu-
soHiada subjetividade que é levada a termo por Schulz. Gethmann quer ma, com razão, o seu texto fundamental; a compreensão de seus escritos
mostrar que se pode compreender Heidegger, na medida enl que o entende- posteriores é em muito impossível se não conseguimos tornar claros para
mos como um filósofo transcendental,como aquele que leva ao mesmo nós anteriormente o curso de pensamento e as teses centrais de ST. No âm-
tempo a filosofia da subjetividade ao acabamento e a supera;zze isso lmaa bito de uma interpretação de Heidegger não orientada pela filosoHta da sub-
vez naais só é possível se se supõe que Heidegger compartilha a perspectiva jetividade, manter-se junto a STtambém não traz além disso problema al-
característica dessa filosofia. O fato de Gethmann ser dessa opinião fica, gum, contanto que não precisemos mais realmente tomar não apenas a fi lo-
por exemplo, comprovado, uma vez que, em relação à concepção do sofía do segundo Heidegger, mas também a concepção aqui elaborada por
'ser-aí" em S7, ele se achano direito de falar de uma "ação originária trans- filosófico-subjetivas ou filosóHlco-transcendentais. Para o intuito de uma
cendental do sujeito.":3 Em contrapartida, se se mostrasseque não se pode interpretação não filosófico-transcendental de Heideggeri cai por terra,
falar deuma tal "ação originária" no contexto da concepção heideggeriana, também, a obrigação olÜetivamente pouco rentável de reconstruir a Hiloso-
então também seria aconselhável abdicar de conceitos como o da filosofia fla "propriamente" heideggeriana a partir dos textos das décadas de 1930
transcendental para a caracterização dessaconcepção. Em verdade, o pró- ou 1940, considerando S7' apenas como um estágio prévio. Ao contrário,
prio Heidegger reconhecidamente tentou tornar frutífera para a apresenta- podemos recorrer à riqueza descritiva de ST e desenvolver o pensamento
ção de seu pensamento a expressão "transcendental", e falou mesmo sem central do filosofar heideggeriano, na medida em que investigamos as des-
criçõesde STe em parte também aslevamos além. O valor conjuntural sis-

Z:Gethmann
(1974),p 145
:3Gethnlann
(1974),p 141 :'Cf., quanto a isso, também Gadamer (1983), p. l ll
22 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 23

temático dessepensamentocentral pode ser determinado agora: Heideg- contexto da interpretação de Schulz, também haveria então pouco sentido
ger, ao perguntar sobre a conexão entre os processos, desenvolve, segundo em adentrar a significação do termo "ser" para assim compreender melhor o
a coisa mesma, uma nova concepção de liberdade ante a tradição HilosóHi- que está em jogo em Heidegger. Todavia, essa impressão seria falsa. De-
ca. A concepção heideggeriana é nova porque não é mais caracteriFãda por ve-se mostrar muito mais que Heideggerjustamente se depara cona o concei-
uma orientação pelos processosmesmos. O interessesistemático da pre- to de l iberdade peculiar à sua fi losofia na medida em que se dedica à e)abora-
sente investigação consiste em desenvolver e tornar apreensível essacon- ção da pergunta sobre o ser em conexão com Platão e Aristóteles. Por meio
cepçãoda liberdade en] conexãocom Heidegger." dessademonstração, fica claro, mais uma vez, o papel-chave do recurso hei-
Agora estáclaro que não se pode desenvolver um pensamento sistemá- deggeriano à fllosoHia antiga: o fato de Heidegger sempre ter compreendido
tico em conexão com um autor sem que se formule ao mesmo tempo uma a pergunta sobre o ser como o centro de seu filosofar não pode ser simples-
tese interpretativa sobre ele. Em relação às intenções sistemáticas que se per- mente abandonado à sua própria sorte, a flm de perguntar então pela descri-
seguem, essatese pode ser uma vez mais periférica; e ela o é mesmo, então, ção e análise de fenómenos singulares levadas a termo em seus textos. A per-
se se assumem os pensamentos de lml autor para continuar seguindo a ele gunta sobre o ser é muito mais o pressuposto para que Heidegger tenha podi-
mesmo, sem perguntar pela coerência da própria argumentação com o con- do pensar em geral fora da perspectiva da filosofia da subjetividade. Pode-
texto de pensamentosdo autor interpretado. Ou é possível ainda que se afir- mos ver facilmente o quão importante isso se mostrajustamente no contexto
me que, no desdobramento de uma argumentaçãosistemática, se tornam ao da problemática da liberdade: essa problemática não é em verdade nem espe-
mesmo tempo mais claras e distintas as intenções do autor interpretado do cificamente moderna, nem está ligada em particular à HilosoHiada subjetivi-
que foi possível para ele mesmo alcançar. No que concerne ao conceito de li- dade. No entanto, ela alcançou pela primeira vez uma significação central no
berdadedo qual tratamos nessainvestigação, isso significa: ou bem se pensa interior das diversas teorias da subjetividade e sempre continuou sendo arti-
como possível encontrar em Heidegger simplesmente pontos de apoio para culada nessas teorias de uma maneira rica em consequências. Com isso, se
uma üilosoHiada liberdade que vale a pena desenvolver autonomamente, ou Heidegger desenvolve uma nova concepção de liberdade em conexão com a
se afirma que a filosofia heideggeriana como um todo deve ser lida como pergunta sobre o ser, então ele assume um problema central da filosofia da
uma filosofia da liberdade. A presente investigação se empenha radicalmen- subjetividade e oferece uma alternativa para ele.
te na defesa da segunda alternativa mencionada. O interesse diretivo é, por Paratornar claro o valor conjuntural dessaalternativa, é certamente ne-
conseguinte, um interesse em sugerir um acesso sistemático a Heidegger, a cessárioapresentartambém a posição para a qual ela é uma altemativa. Nes-
fim de que sua filosofia não sda apenasdiscutível criticamente em compara- se caso, teremos a oportunidade de ver como Heidegger trata apropriada-
ção com outras teorias, mas se torne também plausível em sua força originá- mente até mesmo de uma peculiaridade da problemática da liberdade, na
ria. Se há lmla coisa ao menos que podemos aprender dessa filosofia mais do medida em que a desenvolve ontologicamente. Todo e qualquer conceito de
que de qualquer outra, então também podemos denominar Heidegger, com liberdade tem, em verdade, implicações ontológicas, por meio das quais se
razão. um filósofo clássico. detemlina previamente de que maneira são respondidas as perguntas que
Caso queiramos interpretar a filosofia heideggeriana como um todo cada concepção de liberdade tem de responder. Por isso, somente mediante
como uma filosofia da liberdade, então isso diz respeito naturalmente antes uma alteração das suposições antológicas fundamentais pode-se mesmo al-
de tudo à pergunta compreendida por Heideggcr mesmo como central: à per- cançar um novo conceito de liberdade. Esse estado de coisos torna-se um
gunta sobre o ser. Com isso, poderíamos ter a impressão de que se deveria pouco mais distinto se alcançámos inicialmente uma clareza quanto ao tipo
tentar tomar essapergunta não pelo signo da idéia de uma subjetividade em de perguntas que uma concepção de liberdade tem de responder. Podemos
si incapaz de fundamentação, mas sim da idéia de liberdade -- como quer que dizer genericamente que essasperguntas concernem à significação do termo
venhamos a apreender mais exatanlente essa idéia. Do mesmo modo que no "livre". Esse termo pode ser usado como adjetivo ou como advérbio e serve,
na linguagemcotidiana, para a caracterizaçãotanto de pessoasquanto de
»A significação sistematicamente central do problema da liberdade em Heidegger só foi vista e modos de comportamento.Assim, uma concepçãode liberdade não deve
investigada pela bibliografia secundária até aqui eln Guiléad ( 1965). No entanto, Guiléad não apenasesclarecer o que se tem em vista propriamente quando designamos
alcança um ponto para além da ordenação de Fleidegger em conexões tradicionais de pensa-
lmla pessoaou um modo de comportamento como "livre": ela também tem
mento e descuida do que em Heidegger é novo e diverso ante essa tradição.
24 Günter Figal Martln Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 25

de esclarecer como se relacionam essasduas possibilidades de caracteriza- ponto decisivo. Seestácorreta atesede que apergunta heideggerianasobre o
ção uma diante da outra. Desse modo, podemos ser da opinião de que uma ser tem de ser compreendida como pergunta sobre a liberdade, então sua
pessoasó pode ser chamada de "livre" na medida em que se comporta de concepção de verdade não possui apenas implicações ontológicas. Ao con-
uma maneira que pode ser caracterizada pelo predicado "livre" ou pó menos trário, ela mesma não é nada além de antologia. Isso tem uma vez mais unia
estáem condições de fazê-lo. Ou então afimlamos que modos de comporta- consequênciaimportante para a interpretação da analítica do ser-aí, tal como
mento só podem ser denominados "livres" se eles são os modos de compor- ela é elaborada em S7'.Não se poderá conceber a expressão "ser-aí" de ma-
tamento de pessoasque precisam ser caracterizadascomo tais pelo predica- neira alguma por analogia à noção de "pessoa" ou a outras noções similares
do "livre". Sese defende a segundatese mencionada, então se tem de eluci- senão se quiser perder ao mesmo tempo o foco da filosofia de Heidegger. A
dar o que significa o fato de pessoas como tais precisarem ser caracterizadas análisedo "ser-aí" não equivale à descobertadas implicações antológicas de
pelo predicado "livre". O termo "livre" é, além disso, uma palavra de con- uma deter\mação como "pessoa", mas é nessadescoberta uma elaboração
traste; ou seja: só se pode empregar o termo "livre" de maneira signiHlcativa da pergunta sobre o "ser em geral",27 uma vez que essapergunta não pode ser
se também se tem uma compreensão ao menos vaga do termo "não livre". completada por meio de antologias regionais quaisquer. Do mesmo modo
Por isso, toda concepção de liberdade é ao mesmo tempo uma concepção da que a concepção de liberdade em Heidegger não possui apenasimplicações
não-liberdade. Nas duas possibilidades de concepçãoda liberdade citadas, a antológicas, há nele uma ontologia que não é õilosoHiada liberdade. Com
explicitação da significação de "não livre" diferencia-se essencialmente. Se isso, a Hilosoüia da liberdade também abarca a pergunta sobre o "ser do ente'
se compreende o predicado "livre" em primeira linha como um predicado que não é dotado do modo de ser do ser-aí
comportamental, então é suficiente fornecer um critério segundo o qual se Se se afirma isso, então também se levanta ao mesmo tempo a reivindi-
apresentasob que circunstâncias se deve falar de um comportamento livre e caçãode poder explicar o valor coi\juntural da "virada" em Heidegger a par-
sob que circunstâncias se deve falar de um comportamento não-livre. Se, ao tir da interpretação de sua concepção de liberdade. Na verdade, Heidegger
contrário, se compreendem as pessoasessencialmentecomo livres, então é nunca disse de maneira suHlcientementeclara e distinta como ele queria ver
preciso levar em conta, além disso, a circunstância de que as pessoas nem compreendido esse termo. Não obstante, uma interpretação dos contextos
sempre se comportam de maneira livre sem que a razão para isso esteja nas correspondentestoma possível mostrar que o que está em questão na "vira-
circunstâncias de seu comportamento. Por conseguinte,em sua liberdade es- da" é uma pergunta sistemática, em vista da qual os textos posteriores de Hei-
sencial, as pessoas também são no mínimo possivelmente não livres, de degger não oferecem nenhuma alternativa à analítica do ser-aí. Segundo a
modo que é necessáriauma resposta à pergunta sobre como se relacionam coisa mesma,a analítica do ser-aí presente na antiga obra capital não é posta
aqui lula com a outra liberdade e não-liberdade e como as pessoasse com- em dúvida em suas passagenscentrais pelo que Heidegger tem a dizer nos
portam em sua liberdade e em sua não-liberdade.ZÓ textos que surgiram depois de STsobre a pergunta acercado ser. Heidegger
As implicações antológicas dos problemas citados tomam-se imediata- simplesmente altera sua openião acerca de que problemas precisam ser apre-
mente apreensíveisse se alcançauma clareza quanto a uma certa impossibi- sentados conjuntamente com os conceitos que foram trabalhados eú Sêde
lidade de se falar semmais de pessoase "modos de comportamento" no âm- maneira analítico-existencial e que problemas não. Dito de maneira ainda
bito de uma teoria filosófica. E preciso muito mais poder dizer como se pre- mais exala: nos anosposteriores a Sr, Heidegger não acredita mais em poder
tende diferenciar pessoasde outros seresvivos, assim como modos de com- tomar compreensivo o filosofar propriamente dito da maneira como ele ti-
portamento de outras ocorrências. Ou sda: precisa-se poder dizer em que nha tomado antes como possível. Ele certamente chegOUâqcssãposição na
medida eles sâo pessoase modos de comportamento. Por mais que essaper- medida em que fracassou na elaboração da seção sobre "Tempo e Ser". A
gunta não sda claramente respondida em concepçõeselaboradasde liberda- 'virada" consiste, sem dúvida, menos nas conseqüênciasque Heidegger ti-
de, estar-se-áseguramente em condições de reconstruir uma tal resposta.No rou desse fracasso e muito mais na "inversão" da problemática de "Ser e
caso de Heidegger, contudo, as coisas se mostram um tanto diversas en] um Tempo" para a problemática "Tempo e Ser". Seessatese estiver correra, en-
tão Senão se diferencia dos escritos posteriores primariamente porque Hei-
:'As duas posições esboçadasnão equivalem às concepçõesde liberdade elaboradas no interior
da tradição filosófica. Em prillcípio, porém, àprimeira posiçãocorrespondeateoria aristotélica
da liberdade, e, à segunda, a teoria kantiana. !'F. W. v. Herrmann também defendeu essatese com veeillência. Cf. v. Hermlann(1985). p. 21
26 Günter Fígal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 27

degger realizou unl.desenvolvimento filosófico. Na verdade, é certo que.tal na é a mais forte mesmo ante essasteorias ($ 4). Como dissemos, uma teoria fi-
desenvolvimento não se deixa contestar. No entanto, ele permanece periféri- losófica da liberdade só é possível se ela também é uma teoria da não-
co ante os problemas objetivos e sistemáticos. A diferença entre a analítica liberdade; para compreender como se deixa pensar segundo Heidegger a
do ser-aí de STe os escritos posteriores consiste, então, muito mais ndfato de não-liberdade, somos remetidos para a sua análise do "impessoal", que, por
Heidegger investigar em ST o ser-aí não filosófico, ou, dito com suas pró- sua vez, só é compreensívelse tivermos clareza prévia do significado do
prias palavras: o ser-aí "pré-ontológico", enquanto ele se concentra em seus 'ser-com" e do "co-ser-aí" em S7'($ 5). No contexto dessapergunta,teremos
escritos posteriores totalmente na discussão do filosofar mesmo. A favor de assumir um tema central da fílosoHiada subjetividade, a saber,a pergunta
dissojá fala por si só o papel central do pensamentode uma "história do ser' sobreo "eu", a Himde elucidar qual valor conjuntural ele detém na concepção
no Heidegger tardio. Portanto, se se afirma que a filosofia heideggeriana heideggeriana. Com isso, conquistámos todos os pressupostos para nos voltar-
como um todo pode ser compreendida como uma filosofia da liberdade. en- mos à pergLmtacentral para Heidegger, a pergunta sobre a relação entre liber-
tão é preciso discutir o problema da "virada", na medida em que se esclarece dadee não-liberdade. No capítulo IJI, investiga-se primeiramente como Hei-
qual é o papel diferenciado que a concepção heideggeriana de liberdade de- degger pretende pensar essarelação mesma ($ 6); em seguida, é possível mos-
sempenha em meio à discussão do ser-aí não HilosóHico e do ser-aí filosófico. trar como liberdade ($ 7) e não-liberdade ($ 8) precisam ser descritas com
Mostrar-se-áque Heídeggertambém se movimenta aqui em um contexto mais exatidão. Se se interpreta a pergunta sobre o ser em Heidegger como a
que se apresentapreviamente para ele por intermédio da filosofia antiga, e, pergLmtasobre a liberdade, e se se leva em conta que interessa precipuamente
na verdade, especialmente por intermédio de Platão. a Heidegger apresentaro tempo como o "horizonte" do ser, então bica claro
No que diz respeito agora à estruturação da presente havestigação, o capí- que uma investigação da concepção heideggeriana da liberdade precisa se di-
tulo l serve a uma exposição da filosoHla heideggeriana como uma Hilosofia da rigir para a pergunta sobre a conexão entre tempo e liberdade. O capítulo IV se
liberdade. Aqui interessa mostrar inicialmente como o programa Hllosóüicode ocupa dessa questão. AÍ, discute-se hlicialmente como Heidegger desdobra o
Heideggerjá é marcado desde o começo pela idéia de liberdade ($ 1). Isso problema do tempo em S7' ($ 9). A investigação finalmente se conclui com
também diz respeito à maneira como Heidegger caracteriza esse programa uma discussãoda virada de "Ser e Tempo" para "Tempo e Ser" e com a per-
mesmo. Se sua HllosoHiaé "fenomenologia", então se pode designa-la como gunta sobre como Heidegger desdobra o filosofar mesmo como um modo da
uma fenomenologia da liberdade, e, então, também precisa ser possível inter- liberdade($ 10).
pretar o conceito de fenomenologia em conexão com a problemática da liber-
dade.28
Em seguida,desenvolveremosa discussãoontológica na qual Heideg-
ger conquista seu conceito de liberdade ($ 2). Uma compreensão mais exala
desseconceito resulta da análise heideggerianado "mundo" e do "ser-no-
mundo", à qual o capítulo ll é dedicado. Depois de se ter mostrado como Hei-
degger quer ver compreendido o tempo "livre" e em que contexto segui)do ele
essetermo pode ser empregado ($ 3), podemos dar ao seu conceito de liberda-
de um contorno mais agudo, na medida em que, em contraste com ele e com as
teorias da lil)erdade certamente mais hlfluentes da tradição filosófica, são
apresentadas as teorias de Aristóteles e Kart. Em meio à discussão de prol)le-
mas que resultam antes de tudo do ponto de partida de Kant para teorias mo-
dernas da liberdade, interessa compreender como a concepção heideggeria-

'z'Se caracterizamos a filosofia de Heidegger na totalidade como fenomenologia, então parece-

de S7',A questão é que é necessário atentar para o fato de Heidegger continuar acolhendo positi-
vamente esse título em suas publicações mais tardias e compreendo-lo aí exatamente como nos
anos de 1920
/ Capítulol

O PONTO DE PARTIDA HEIDEGGERIANO


PARA UMA FILOSOFIA DA LIBERDADE

g 1. 0 conceito de fenomenologia
Se aHirmamlosque o problema da liberdade é o centro do pensamento
heideggeriano, então teremos de contrapor inicialmente a isso a pergunta so-
bre como é que esseproblema não se acha tematizado desde o princípio em
Heidegger. Ao menos no que concerne à sua fllosoHia no âmbito deST, Hei-
degger não a denominou lula filosofia da liberdade humana. Mesmo que
nãopossahaver nenhuma dúvida quanto ao papel importante da problemáti-
ca da liberdade em ST, a "liberdade" só se torna um conceito operativo a par-
tir do escrito Z)a essênc/a da.áundanzen/o e só vem à tona em sua signiHtcação
peculiar ao pensamento de Heidegger em Z)a essênc/a da verdade. Certa-
mente, a ideia de liberdadejá se acha presente na fasepreparatória de S71na
fase, portanto, que também está para Heidegger sob o signo da discussão
com a filosofia de seu mestre Husserl. Se estudarmos as preleções que Hei-
deggerproferiu nos anos de 1920 na Universidade de Marburg como docu-
mentos dessadiscussão, então poderemos ter inicialmente a impressão de
que Heidegger ainda está aí totalmente comprometido com o programa filo-
sófico de Husserl: Heidegger compreendeseu próprio trabalho Hilosóflco
como uma contribuição à fenomenologia. No entanto, em uma consideração
maispróxima, fica claro que ele emprega esseconceito de uma maneira nada
usual para Husserl. A melhor forma de elucidar o que HeHegger mesmo
compreende por fenomenologia tem lugar quando se acompanha inicial-
mente sua apresentaçãoda concepção husserliana.

Fenomenologia catno repetição

De acordo com Heidegger, o mérito de Husserl consiste antesde tudo


em ter lançado luz sobre a estrutura dos processosmentais a partir da noção
de intencionalidade. Processosmentais como percepção ou pensamento só

l
30 Günter Figas
Martín Heldegger: Fenomenologia da Liberdade 31

são compreendidos adequadamente se se concebe o ponto para o qual elos


programa de investigação husserliano. Sem que fique claro inicialmente o
estãodirecionados não como algo dado previamente de maneira extrínseca. que designa o temia "ser" no discurso sobre a "consciência em seu ser", po-
mas como um momento integral das ocorrências mesmas. Inversamente, os
der-se-ia,de qualquer forma, supor que se trataria de contestar a capacidade
objetos em sentido maximamente amplo também só podem ser aí apreendi- de demonstraçãoque Husserl exige da consciência, mas não de abandonara
dos em meio ao "modo do ser intencionado" (OC 20, 60); isto é, dês só po- orientação pela consciência mesma. Por flm, Heidegger diz que a "concre-
dem ser diferenciados e descritos na medida em que se recorre à maneira de ção das vivências" (OC 20, 146) pemtaneceria sem ser levada em conta na
seu ser-dado no processomental correspondente.Heidegger, ao se apropriar concepção de Husserl, e, com isso, ele parece pensar então que se desconsi-
dessasidéias, não aceita, porém, as conseqüências dualistas que Husserl tira derada completamente em Husserl o que significa em última instância /er vi-
dela. Husserl toma o fato de os processos mentais que possuem o caráter de vências. Dois argumentos inteiramente plausíveis podem ser mencionados
intencionalidade poderem se tornar eles mesmostema do pensamentocomo em favor desseestadode coisas: se se compreende a consciência como cons-
um ensejopara tomar a consciência como um "ser imanente" ' e para cinde-la ciência absoluta, então é impossível continuar considerando-a uma "singu-
do que não é consciência. Mediante a reflexão acerca dos processos mentais larização concreta e em sua ligação com os seres vivos" (OC 20, 145); só se
em sua intencionalidade, essesprocessos não se tornam, na verdade, despro- visualizam aí, na melhor das hipóteses, momentos estruturais, cujas "reali-
vidos de objeto se assinafosse, eles não seriam intencionais. Contudo, a dadee realização" encontram-se obnubiladas. Caso se tome, por outro lado,
consciência se mostra de qualquer fomta como um âmbito que não carecede a consciência mesma como objeto de reflexão, então ela é a princípio objeto
nenhum objeto exterior para existir;: a reflexão mostra que a consciência damesma maneira que as outras coisas que também estão dadas na consciên-
continua tendo objetos, mesmo que não haja nadaexterior a ela, e que, além cia, e, com isso, seu traço característico, a intencionalidade, se perde. Hei-
disso, o que não é ele mesmo consciência só pode ser dado em geral intencio- degger, em contrapartida, poder-se-ia pensar, gostaria de se manterjunto à
nalmente. Na formulação heideggeriana: "0 ser real pode ser de outra ma-
descobertada intencionalidade e tornar tema da investigação fenomenológi-
neira ou não ser absolutamente. Apesar disso, a consciência consegueapre- ca o seu processo de realização.4Na medida em que a fenomenologia é para
sentar em si mesma um contexto ontológico fechado. Essa ponderação acaba Husserl a "doutrina essencial descritiva das vivências puras",s o conceito
por indicar: a consciência é absoluta no sentido de que ela é a pressuposição heideggerianode Hllosoflajá teria se alterado com isso em relação a Husserl.
ontológica em ftlnção da qual em geral a realidade pode se anunciar. Um ser Mas seu ponto de partida pem)aneceria sem dúvida alguma tão preso à filo-
transcendente é sempre dado na apresentação e ele se apresenta como objeto sofia da subjetividade quanto o ponto de partida de Husserl.
justamente da intencionalidade"(OC 20, 144). Conforme o ponto de partida Se nos contentássemos com essa informação, então não teríamos dado
husserliano, a consciência é o fundamento absoluto da realidade, e, se se leva atençãoao passodecisivo de Heidegger. Heidegger tem plena clareza quan-
em conta o fato de Heidegger, já nas PAdno/ Temo/og/scÀen/n/erpre/a//one/v
to à impossibilidade de modificar simplesmente um programa HilosóHicopor
zzr .4rfs/o/e/es (Interpretações fenomenológicas de Aristóteles), criticar a meio de uma determinação diversa do objeto da investigação filosófica e dei-
tentativa de uma ftuldamentação teorético-cognitiva da realidade,3 fica claro xando inalterada a maneira segundo a qual o objeto setorna tema. A "concre-
que ele não está em condições de seguir Husserl nesse ponto. Sua alternativa ção das vivências" que, segundo a opinião de Heidegger, permaneceu sem
não é certamente nenhuma variedade do realismo, mas aparentemente uma ser levada em conta por Husserl não é passível de ser considerada, como ele
radicalização do modo husserliano de colocação do problema, um modo in- pensa,na esfera de um exame das estruturas das vivências em geral. Em tal
trínseco à teoria da consciência. Contra a determinação de consciência tal exame "não se acentua senão o conteúdo qzf/d/da/ivo", scmasc perguntar
como é estabelecida por Husserl, Heidegger faz valer, em verdade, que ela pelo ser dos processosno sentido de sua existência" (OC 20, 15 1). Entre-
não é nenhuma determinação da consciência "em seu ser" (OC 20, 145), e tanto, caso se pergunte pela "existência" como pelo ser das vivências, então
essaobjeção ainda pode ser completamente compreendida no contexto do também não se pode empregar essetermo de uma maneira inquestionada. De

'Husserl. /deen (Idéias). Cf OC 20, p. 142


4
:iVu//a "re " fndlge/ adelfsre/7dum; comparar /dee/? / (Idéias 1), p. 115, e OC 20, p. 143. Se ascoisasse dessem dessa maneira, Heideggerjá perseguiria um prometosimilar ao que éper
'Isso significa: "Kant e Aristóteles têm em comum o fato de que para osdois o mundo exterior seguidona filosofia anualporT. Nagel. Cf. Nagel(1979), p. 165-180,assimcomo Nagel(1986)
estáaí. ParaAristóteles, o conhecimento do mundo não é um problema" (OC 61, 4). 'Husserl,/deen/ (Idéias1),p. 171
33
32 Günter Flgal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade

mais a mais, se acrescentamlosa isso o fato de a"existência" ou bem signifi- critérios do discurso atual.7 Para a segtmda variante da relação entre a üiloso-
car a mesma coisa que "ser" ou bem ser um aspecto do que se tem em vista õla atual e os textos antigos, estes funcionam como o contexto no interior do
com o termo "ser", Ricaclaro que a pergunta sobre a "concreção qps vivên- qual a HilosoHiaatual já se encontra porque ela não pode fazer outra coisa
cias" não pode ser respondida sem a pergunta sobre a significação de "ser". além de receber previamente seus questionamentos dos textos antigos. Vista
Nas palavras do próprio Heidegger: "Segundo seu impulso mais intrínseco, dessaforma, a filosofia é o empreendimento de uma consciência histórica
o questionamento fenomenológico conduz ele mesmo à pergunta sobre o efetiva que é determ inada pela tradição e como tradição: ela é o que é por in-
sentido do ser em geral." E Heidegger prossegue:"Assim, radicalizada em termédio da amarração no contexto do que foi legado; e, na medida em que
suapossibilidade mais própria, a fenomenologia não é nada além do questio- ela se atualiza em meio à compreensão e interpretação dessecontexto, ela
nar de Platão e Aristóteles que se tornou agora uma vez mais vital: a reperf- mesma setoma tradição.8 Se tivéssemos de pensar a "repetição" heidegge-
ção, a retomada do começo de nossa$1oso$a cientí$cd' ÇOC20, \ 84)' 'Ln\- riana segundo o primeiro modelo, ela equivaleria à integração dos modos de
cialmente, as coisas parecemse encontrar aqui da seguinte forma: tudo se dá colocação das questões de Platão e Aristóteles no próprio discurso inques-
como se Heidegger fosse simplesmente inserir a investigação fenomenoló- tionado da fenomenologia; e isso é uma vez mais incompatível com a crítica
gica na ordem mais abrangente da ontologia, depois de ter esclarecido ap/'íori evidente que Heidegger faz a Husserl. Do mesmo modo, Heidegger não en-
as "vivências concretas" como o seu tema próprio. Seessefosse o caso, en- tende os textos gregos herdados como o contexto no qual seu próprio questio-
tão o seu próprio programa poderia ser caracterizado como uma "antologia namentojá se encontra. Não se trata, para Heidegger, nem de empreender
da sulÚetividade", como a pergunta sobre o modo como precisamos apreen- uma investigação no interior de um programa previamente dado de fenome-
der exatamenteos processoslevados a termo pela consciência "em seu ser". nologia, nem de acolher uma vez mais um questionamento herdado. Seu in-
O recurso a Platão e Aristóteles teria, então,meramente a função de denomi- teressepor Platão e Aristóteles estáfundado muito mais na consideração de
nar os pontos de referência históricos paraa elaboraçãodessapergunta. Para seustrabalhos como o começo da "filosofia científica"; e essestrabalhos não
compreender como a significação de "fenomenologia" em Heidegger se al- são o "começo" porque neles a pergunta sobre o ser se tomou temática, mas
tera ante Husserl, é preciso atentar paraa sua caracterizaçãodo recurso a Pla- porque eles foram colocados em curso e dirigidos por essapergunta: "Se a
tão e Aristóteles como "repetição do começo de nossafilosofia científica". pergzlnfa/iínda/negra/ sobre o ser conquistada fenomenologicamente se ex-
Em verdade, não bica claro a partir do texto da preleção o que significa aqui plicitou como aquela pergLmta que a filosofia científica clássica dos gregos
exatamente"repetição". No entanto, se conseguirmos clarificar esseconcei- justamente fez com que se tomasse vital, então esse fato histórico não pode
to ao menos em traços largos, conquistaremos ao mesmo tempo uma primei- ser tomado, por exemplo, como uma demonstraçãode autoridade para a cor-
ra compreensão do que é fenomenologia para Heidegger. reção da pergunta. Isso só pode ser muito mais um aceno para o fato de esse
A partir tão-somente do que foi dito até aqui sobre a relação entre Hei- questionamento residir ele mesmo, evidentemente, na via do questionamen-
deggere Husserl, fica claro que "repetição" não significa simplesmente aco- to investigativo em geral" (OC 20, 186). A pergunta sobre o ser só é a "per-
lher uma vez mais um questionamento âilosóüicoherdado a fim de integra-lo gunta filndamental" se ela não for derivável de nenhum outro contexto relati-
no disco'rso de unia filosofia atual, nem tampouco inserir conscientemente vo a um problema, nem tampouco se se mostrar como uma pergunta histori-
lml filosofar atual em uma tradição. No que concerne à primeira hipótese, ela camente obrigatória. Mas se Heidegger acha que essa"pergunta fundamen-
tem por basea idéia de que textos antigos podem trazer alguma contribuição tal" é diretriz para a fenomenologia e precisa ser assim elaborava fenomeno-
para as discussões atuais com os seus questionamentos e com as suas solu- logicamente, então temos com isso um aceno para a sua compreensão de "fe-
ções dos problemas. Sese pensaassim, então se trata, por exemplo, Platão e nomenologia": a própria fenomenologia não é nada além de "repetição", e,
Aristóteles como contemporâneos, com os quais se pode aprender ou bem a se as coisas se dão dessa maneira, então também é preciso conquistarjunto à
colocar melhor uma questãoou bem a respondê-laum pouco além ou ao me-
nos de maneira completamente satisfatória para esseinstante; além disso, as cesseponto de partida é característico do modo como alguns autores do círculo da filosofia ana-
soluções dos problemas de autores antigos podem ser criticadas a partir de lítica interpretam textos antigos. E nessesentido que G. Hartmann coloca Aristóteles no contex-
to da modernaP#f/osopAy aÍmfnd, a ülm de discutir tanto os problemasdesta última quanta
Aristóteles em conexão com essesproblemas. Cf. Hartmann ( 1977)
'0 conceito de ciência em Heidegger é o obUetoda investigação de von Bast (1986). 'Cf. Gadamer. Herdade e mé/ado(Obra Conjunta l)
34 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 35

elucidação heideggeriana da fenomenologia lmla determinação mais próxi- do que estáobscurecido por essasperspectivas, insinua-se pela primeira vez
ma do que ele compreende por "repetição' a conexão entre a liberdade e a questão do ser.
No que se refere à fenomenologia, Heidegger diz: "A grandeza da des- Para alcançaragora uma determinação mais exata do modo como preci-
coberta da fenomenologia não reside nos resultados faticamenle conquista- samos pensar essa"apropriação orighaária", poder-se-ia tentar compreendo-la
dos, avaliáveis e criticáveis que produziram hoje, aliás, uma áansformação como uma modificação da bTroxá husserliana. O que se mostraria em Husserl
essencial no questionamento e no modo de trabalho, mas no fato de ela ser a comoa abstençãoante os modosintencionais naturaisde se portar teria se tor-
descoberta da possibilidade do investigar nalilosoÍia. 'todas\a, unampaís\- nadoem Heidegger uma abstenção ante asobviedades do dizer e do pensar nas
bilidade só é compreendida em seusentido mais próprio se for tomada como terminologias e nos padrõestradicionais. A ênoxã tambémjá era caracteriza-
possibilidade e permanecer retida como possibilidade. No entanto, retê-la da em Husserl pelo momento de uma apropriação originária dos modos natu-
como possibilidade não significa fixar um estado casual da problemática rais de se portar, na medida em que essesmodos não eram aniquilados pela
como definitivamente real e deixa-lo cristalizar-se, mas antesmanter aberta txoXTI --txoXtl não é nenhuma privaçãoP --, mas vinham aíjustamente à tona
a tendência para as coisas mesmas e libera-la dos atrelamentos inautênticos como modos hltencionais de se portar da consciência: enquanto no modo na-
constantemente emergentes e sorrateiramente atuantes. É justamente isso tural de nos portarmos estamosdirecionados paraum objeto, o modo intencio-
que diz o moto: às coisas mesmas, deixa-las rebater sobre si mesmas" (OC nal denos portamlos se toma pela primeira vez distinto como uma capacidade
20, 184). O que Heidegger denomina aqui "a tendência para as coisas mes- da consciência, e, com isso, ao mesmo tempo, fica claro que o objeto em geral
mas" e compreendecomo manutenção da possibilidade só se deixa determi- só é dado em um modo de se portar intencional. Da mesma forma, asperspec-
nar inicialmente de maneira negativa: essatendência é conquistada na libe- tivas lingüísticas efetivas em sua obviedade e os padrões de pensamento como
ração dos atrelamentos inautênticos emergentes e sorrateiramente atuantes. tais só se tornam expressos quando alguém consegue não falar e não pensar a
Não Ricaclaro a partir da citação em que consistem essesatrelamentos. Po- partir deles. Além disso, Husserl mesmo acentuaque atxoXvl "diz respeitoà
de-se recorrer, contudo, a uma outra passagemda preleção, na qual Heideg- nossaliberdade plena".'anão importa o quão convincente essaanalogia entre
ger fala da pergunta sobre o ser em Platão e Aristóteles. A pergunta sobre o Husserl e Heidegger possa parecer aqui, ela não toca absolutamente a concep-
ser, ele assim o diz, emudeceu desde Aristóteles, "e. em verdade. emudeceu ção heideggeriana de uma apropriação originária da questão do ser. Se se
de lula tal maneira que não se sabe que ela emudeceu porque se continua apontarpara a consideraçãoheideggerianado recurso expresso de Husserl a
constantemente tratando do ser nas determinações e perspectivas ligadas Descarnes justamente como exemplo de um atrelamento do qual vale se libe-
pelos gregos. Essa pergunta emudeceu a um tal ponto que se pensa em colo- rar, entãojá se deixa claro o quão problemático seria quererconthluar compre-
ca-la sem ao menos chegar faticamente em geral a alcança-la, sem se ver que endendoHeidegger no âmbito do programa husserliano. Se,juntamente com
com a mera aplicação dos antigos conceitos, dos conceitos expressamente Descarnes,Husserl se movimenta no pano de fundo da pergunta sobre como a
conscientes, dos mais tradicionais ou, ainda mais freqüentemente, dos in- consciência pode ser a região de uma ciência absoluta, então a relação do pen-
conscientes, auto-evidentes, ainda não se tem ejustamente não se tem a per- samento filosófico com a intencionalidade já está cunhada de uma maneira
gunta sobre o ser, ou seja, ainda não se assume uma atitude investigadora em contra a qual justamente Heidegger se volta. Parao pensamentocontemplati-
meio a esseâmbito"(OC20, 179). De acordo com Heidegger, os atrelamen- vo que se retém na tlroxã, os modos intencionais de se portar, como Husserl
tos dos quais interessa nos lideram)os são consequentemente os atrelamen- mesmo semprediz uma vez mais, são objetos; e isso significa: como quer que
tos na linguagem; mais exatamente, nas respectivas perspectivas e modos de se precise compreenderesseestado de coisas no particular, elas precisam se
pensar que estão apr/or/ dados lingilisticamente. Por isso, para poder colo- ac/zar s/mp/es/ en/e presen/es. 11 Se se compreende agora "achar-se simples-
car a pergunta sobre o ser como aquela pergunta que mobilizou o pensamen- mentepresente" como uma expressãocom a qual se designa a maneira de ser
to de Platào e Aristóteles, é necessário "recuar a um ponto a/?íer/or às per- dos processos de consciência, fica claro que a êxoxá husserliana ainda é mar-
guntas que foram colocadas no interiorda história"(OC20, 188). Portanto, é
necessãnorecuar a um ponto anterior às formulações nas quais a pergunta PCf. /dee/? /, p. 65
sobre o ser conquistou a sua configuração. Com a idéia de uma liberação dos '/deen /, 65. Quanto à história prévia desseconceito de liberdade en] Descartes e Kant, cí
atrelamentos ante as perspectivas linguísticas, cuja força de vinculação con- Simon(1977)e Simon(1978)
siste antes de tudo em sua auto-evidência, e de uma "apropriação originária llCf. Tugendhat
(1970-1971),
sobretudo,p.208
36 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 37

cada por um padrão de pensamento que só pode desenrolar em geral a sua efe- termo tendo em vista a sua significação religiosa, mas não nessa significa-
tividade porque permaneceóbvio e inquestionado. Sim, ainda mais: essepa- ção. O fato de precisarmos "acreditar" no caráter de possibilidade do que
drãode pensamentoexclui desdeo princ ípio o empreendimento dpfenomeno- estárealmente presente não deve dizer mais do que o fato de não conseguir-
logia no sentidode um desdobramentoda possibilidade, tal coam Heidegger o mos notar no que se encontra realmente presente o seu vir-a-ser e de que esse
exige. De acordo com a idéia de uma manutençãoda possibilidade, tudo de- seuvir-a-ser não pode, tampouco, ser conhecido imediatamente de nenhuma
pendejustamente de abandonar a orientação por um tal algo simplesmente outra maneira. A possibilidade precisa ser repetida por meio da crença, isto
presentee igualmente por outrase similares concepções,a Himde poder colo- é, ela precisa ser "tomada uma vez mais"."
car a pergunta sobre o ser como tal. Como se mostrará mais distintamente O significado de "o real" em Kierkegaard é interpretado inicialmente
adiante, é em geral a orientação do pensar Hilosóflco pelo real que obstaculiza por Heidegger como as perspectivas e os atrelamentos lingüísticos. Esses
a fenomenologia no sentido de Heidegger.Tal como Heidegger compreende, são reais em sua obviedade, em sua auto-evidência. Portanto, não como algo
a fenomenologia não pode consistir em descrevero queé dadocomo real, se é que se encontra presente, mas como algo em que nos achamos aprisionados.
que ela deve ser "retenção da possibilidade". Com isso,já em seu ponto de partida, fica ao mesmo tempo evidente o quão
Certamente não fica claro à primeira vista o que isso significa. Não obs- pouco a concepção heideggeriana de fenomenologia se deixa refletir em
tante,já sepode compreenderum pouco melhoro conceito heideggeriano de Husserl. Se, em vez de se falar de modos de portar-se intencionais, fala-se de
fenomenologia como retençãoda possibilidade se se esclarece o contexto ao atrelamentos lingtlísticos, então a liberação desses atrelamentos não pode
qual esseconceito está ligado aqui. Essecontexto aponta para a determina- mais conduzir para a liberdade de uma mera contemplação. A liberação dos
ção darelação entre possibilidade e realidade, tal como Kierkegaard a desen- atrelamentos linguísticos, pensada como "retenção da possibilidade", preci-
volveu. Em seu escrito sobre o Conceffo de angzix//a,Kierkegaard emprega sa ser levada a cabo muito mais em um modo de pensar e de fa lar que leve em
o termo "possibilidade" como uma determinação da liberdade. Liberdade é conta o caráter de possibilidade do pensar e do falar, o fato, em suma, de que
possibilidade para a possibilidade"liz e isso significa, por sua vez: liberda- eleveio a ser. Heidegger acredita ter encontrado uma tal maneira de falar e
de é a capacidadede experimentar a possibilidade como tal. Nesse sentido. a
pensar com a pergunta sobre o ser; e, na verdade, porque, segundo sua con-
liberdade é experimentada nessecontexto como "repetição".i3 Tendo como vicção, essa pergunta cunha o começo da filosofia. Assim, a repetição da
ponto de partida que o conceito de possibilidade é determinado em sua rela- pergunta sobre o ser é equivalente à tentativa de alcançar por si mesmo uma
ção com o de realidade, Kierkegaard apreendea experiência da possibilida- vez mais um novo nllosofar, não afetado pelos atrelamentos e perspectivas
de como a experiência do vir-a-ser de algo real. Como diz Kierkegaard, o habituais. Isso só é possível uma vez mais, como Heidegger pensa, em uma
que é só pode ser experimentado como possível na medida em que se "acre- discussãocom as manifestações do começo da filosofia nos textos platóni-
dita" que ele veio a ser. Não é a suposição de que ele pode ser algo diferente cos e aristotélicas. Para Heidegger, essestextos certamente não documen-
ou pode ser diferentemente que outorga o discurso acercade um "possível" tam apenas o começo do filosofar, masjá estabelecem também as perspecti-
pois aqu l é o outro e não o que se encontra presente que é possível. Ao contrá- vas para aquele filosofar do qual elas perfazem o começo. Por isso, a tentati-
rio, o que legitima o discurso acercade um "possível" é a suposição de que va de uma repetição do começo também envolve a tentativa de tomar distin-
ele era possível e, então, realmente veio a ser: "A possibilidade, da qual o tos como tais os atrelamentos e as perspectivas que já residem nos textos de
possível que se tomou o real proveio, acompanhaconstantementeo que veio Platão e Aristóteles mesmos, e, çom isso, dissolvê-los em iua efetividade.
a ser, e permanecejunto ao que passou -- mesmo que houvesse milénios entre Mas isso não significa que se poderia simplesmente inventar uma nova lin-
eles: logo que o posterior repete o fato de ter vindo a ser (e ele o faz quando guagem para a pergunta diretriz do filosofar de Platão e Aristóteles, pois isso
acredita nisso), ele repete a sua possibilidade, indiferentemente quanto a se já seria um atrelamento perspectivístico. A idéia de uma linguagem despro-
aqui pode ou não ter lugar o discurso acercade representaçõesmais exa vida de perspectivas é ilusória e tampouco é levada em conta por Heidegger.
tas." i4 Se Kierkegaard fala aqui de crença, então é certo que ele emprega esse Tudo depende, muito mais, de esclarecer o caráter perspectivístico e atrela-

'zConcei/o de angu.s//a, p. 40.


'Quanto ao conceito de repetição em Kierkegaard conferir Reimer ( 1968) 'sRepetir (}t'ieder#o/en) em alemão significa literalmente "tomar' pegar" (Ao/ePZ)
"uma vez
'Migalhaslilosólicas, p. \Q\
mais" (}p/eder). (N.T.)
l
38 Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 39

dor da linguagem mesma e encontrar aí um acessopara o que pemianece es- literal só se torna plenamente válida a partir da determinação do que diz o
quecido no interior dos atrelamentos e perspectivas lingüísticos. O que per- discurso" (ST, 32). Com isso, uma significação específica de Àóroç justa-
manece esquecido para Heidegger, comojá se sabe,é o ser, uma vçz que não mente não está dada; sim, se Heidegger contrasta a sua tradução, como ele
se pergunta mais por ele no interior dos atrelamentos e perspecti;úaslingüís- mesmo designa literal, com a concepção de XóToç como "razão,juízo, con-
ticos. Todavia, a pergunta sobre o ser não é para ser pensada hldependente- ceito, definição, fundamento, relação"(ST, 32), então se anuncia em sua tra-
mente do esclarecimento do caráter atrelador e perspectivístico da lingua- dução exatamente a intenção de apreender o XóToç da maneira mais ampla
gem, de modo que esse esclarecimento só seria uma preparação extrínseca à possível, de recusar, portanto, toda e qualquer identificação do XóToç com
questão do ser. A investigação da linguagem compertence de maneira tão es- um determ inado modo de discurso e mais ainda com um termo filosófico. Na
treita à questãodo ser quejá nos mantemoscom essainvestigação no âmbito preleção sobre "Lógica" do semestrede invemo de 1925- 1926, esseestado
dessaquestão. Ela conduz àquela compreensãode liberdade a partir da qual de coisas vem à tona de maneira ainda mais clara. Heidegger acentuaaí que
.#4

se pode tornar compreensível pela primeira vez a possibilidade de uma libe- se trata de "apreender o visado com XÓToç-- discurso -- (...) de maneira natu-
ração das perspectivas e dos atrelamentos lingüísticos. ral e aberta"(OC 21, 2); isto é, o "discurso" só deve ser compreendido ini-
cialmente "como falar um com o outro -- no e para o agir e o atuar um com o
Entlnciado e descoberta outro: essediscutir-um-com-o-outro circunstâncias,oporttmidades,meios,
pianos, tarefas, eventos, destinos"(OC 2], 2). De acordo com essaformula-
A fim de prosseguir na clarificação do ponto de partida heideggeriano, é
ção, XóToç é o termo grego para o discurso cotidiano, e esse discurso é con-
aconselhável, por conseguinte, analisar inicialmente sua concepção de lin-
cebido de maneira tão ampla que ele abarca mesmo o "falar-consigo-
guagem. A necessidadede tal análise para a compreensãodo prometoheideg-
mesmo" (OC 21, 2), portanto, o pensar. O que deve caracterizar corrente-
geriano fica evidentejá a partir da consideraçãode que Heidegger se vê obri- mente o discurso cotidiano, como Heidegger o entende aqui, é o fato de ele
gado a transformar a linguagem em tema na introdução a Separa elucidar a "tomar manifesto". "Tornar manifesto" é uma tradução do grego 8rlXouv.
significação do termo "fenomenologia". Ao se entregar à pergunta sobre o
Mas também se continua conquistando muito pouco com isso, pois 8qÀouv
significado do temia XóToç, Heidegger acredita poder tornar compreensivo
tem, ao menos em Aristóteles, uma significação tão ampla que ele não desig-
o ira/zn de seupróprio programaHilosóHico:
uma vez queS7'é "fenomenolo- na nada específico do discurso. Assim, Aristóteles pode dizer que os sons
gia", as investigações desenvolvidas nesse livro precisam poder se tornar
dos animais, que não dispõem de conceitos, torllam algo manifesto (Z)e ín-
compreensíveisem seu s/a/zlsmesmo a partir da significação de XóToç. Des-
rerpreraffone, 16a, 28-30): os sons dos animais expressamalgo. Porque Hei-
ta feita, não há nenhuma contradição no fato de a linguagem se tornar ainda
degger evidentemente pensa nessasignificação não específica de 8qXouv,
uma vez tema no âmbito da análise do ser-aí. Isso remete muito mais para o
ele também diz que Aristóteles "explicitou essafunção do discurso mais in-
caráterpróprio à linguagem mesma; dito de maneira mais exata, remete para
cisivamentecomo àxo(paÍvca aL", e, de maneira elucidativa, prossegue:
o fato de toda e qualquer fala ser empreendida em contextos não lingüísticos '0 ÀÓToçdeixa ver algo ((paÍvca al), a saber, issode que trata o discurso; e,
e de o esclarecimento dessescontextos acontecer, contudo, lingilisticamen-
em verdade, para o que discursa ou para os que falam uns com os outros. O
te. Devido ao fato de as investigações de STsempre serem lingüísticas, care- discurso "deixa ver ànó... a partir disso de que trata o discurso" (S7, 32)
ce-sede uma explicitação da linguagem paratornar compreensível em geral
Essedeixar ver do discurso pode ser elucidado inicialmente mediante a
pela primeira vez o caráler relativo de cada fala e visualizar o que não é evi-
indicação de que todo discurso é discurso acerca de. Quem'fala sobre ou de
dente primariamente por intermédio da linguagem.
algo torna essealgo "presente" na medida em que o diferencia expressamen-
Na introdução a S7, Heidegger expõe a pergunta sobre o ÀóToçao dizer:
te ou não de um outro; é impossível falar sem que o objetivo sobre o qual se
O conceito de XóToçé plurívoco em Plalão e Aristóteles, e, em verdade, de
fala se torne algo de algum modo especificado. Mas Heidegger não quer cla-
uma maneira que as significações saltam umas para fora das outras sem se-
rificar, por exemplo, o que significa em particular o fato de que o objeto de
rem conduzidas positivamente por uma significação ftlndamental. De fato,
que trata o discurso é especificado; ele lê a determinação aristotélica do
isso não passade aparência que só se mantém enquanto a interpretação não
XóToçàxo(pavTLxÓÇsob.um outro aspecto. Em Aristóteles, encontramos a
consegue apreender adequadamentea significação fündanlental. Se dize-
seguinte formulação: àxo(pcKV'ttxàç8ê ob vãç <ÀÓToç/GF>,àXÀ' bv Q 'tà
mos que a significação fundamental de XóToçé discurso, então essatradução
40 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 4

àÀvl aScLV H $cÜca al bvápXCL obx êv & aal 8ê bxdpXct, áov iÍ cüxà zer algo pela primeira vez à luz, mas em geral desentranhar algo que ainda está
XóToçpêv, àÀÀ'oi5't'àÀvPlkoi5TC
$cu81t(Z)e/n/erprefarfone,
17a,2-4). velado ou que foi velado uma vez mais". De acordo com essafomlulação, o
Essasentençapode ser interpretada a partir da afirmação de que somente os que é descobertojá precisa ser anteriormente passível de descoberta e ser aces-
ÀÓTOL que podem ser verdadeiros ou falsos deixam ver algo. Ess,e(ÀóTot são sível como algo passível de descoberta. Somente daí pode-se deduzir o fato de
então enunciados, e as sentenças tais como os pedidos e as ordens menciona- não se poder identiHlcaro descobrir no sentido de Heidegger com o enunciar,
dos por Aristóteles nãoteriam nenhum caráter apofântico. Heidegger não se tal como se precisa pensar em ligação com Aristóteles. Segundo Aristóteles,
interessa,porém, inicialmente, por uma tal diferenciação entre enunciados e "enunciar" é menos o descobrir de algo anteriormente velado e, nessevela-
outras sentenças. Para ele é muito mais decisivo que Aristóteles não fale de mento, de qualquer modo acessívelde alguma maneira, e muito mais a mos-
'verdadeiro" e "falso", mas empregue os verbos àÀvPcúcLV e $ctaca+at. traçãode algo que se acha diante de nós em sua determinabilidade, a mostra-
Segundo sua opinião, somente se levarmos em conta esseemprego ficará re- ção de uma oinía. ió Essa mostração é "verdadeira" quando como que confir-
almente claro também o significado do termo bnápXeLV nas frases citadas. ma o ente presenteem sua determinabilidade autónoma. E, çorrespondente-
Na preleção sobre Z,óg/ca, Heidegger nos diz que o bxápXCLV tem aÍ "o sen- mente, o ÀóToç mostrador tem a sua falsidade por ser Àóíoç de algo diverso
tido forte de um conceito HilosóHico" e designa "o que está de antemão sim- disso de que é o XóToç verdadeiro GcTépouil ou taTÜv àXrtaVjç/ À/ef.
plesmente dado, o que se encontra na base de algo, de tal modo que por meio 1024b27f.). O Xóroç sempre vai ao encontro de algo e é justamente falso
desse algo simplesmente dado de antemão todo o resto é suportado" (OC 2 1, quando não vai ao encontro do que se encontra presente diante de nós. O enun-
132). Todo o resto essessão aqui os enunciados, dos quais se pode dizer ciado falso é, por assim dizer, uma falsa conÊinnação.n
que são "verdadeiros" ou "falsos". "Na base" desses enunciados encon- Do mesmo modo como não se pode tomar o descobrir no sentido hei-
tram-se o àÀTPcÚcLV e o $a38ca+al como modos de co/a/20r/a/nen/o, e es- deggeriano como a nlostração de algo presente em sua determinabilidade
ses modos, consideradosrigorosamente,não são nada "simplesmente autónoma, também não se pode compreender o encobrir como uma tal con-
dado". Para Heidegger, por isso, o sentido próprio de bxápXCLV também é firmação falsa. Como diz Heidegger, encobrir é "iludir; por exemplo, iludir
fn-esse, ser-aí-dentro, pertencente à essência do discurso" (OC 2 ] , 132). um outro, no lugar do que ele acha estar vendo apresentar-lhe algo diverso
Para destacar o caráter inerente ao comportamento próprio do àÀv]0-cúetv e que parece ser exatamente como..." (OC 21, 132). Certamente, poder-se-ia
do $ei%cabal, Heidegger escolhe os termos "descobrir" e "encobrir". Em de início pensar que "o que parece ser exatamente como..." é "uma outra coi-
suatradução, a sentençaaristotélica diria então: "somente o discurso no qual sa": a própria formulação heideggeriana parece apontar que o iludido acha
o descobrir e o encobrir suportam e determinam o intuito discursivo próprio que estávendo "algo". Mas desde onde o iludido sabe que se trata de "uma
deixa ver de maneira mostradora (entmciado)" (OC 21, 133). O termo outra coisa"? Somente alguém que toma o que Ihe é dito por "verdadeiro"
"enunciado" inserido por Heidegger entre parêntesesnão significa, por sem assumir por si mesmo uma atitude descobridora pode ser iludido. Ele
exemplo, "proposição enunciativa", mas, como vem à tona claramente a par- toma o enunciado seja esseenunciado o comunicado feito por uma outra
tir do contexto, "o enunciar". Nesse sentido, também temos de diferenciar pessoa,soja a sua própria opinião exposta ou não pela expressão de um des-
entre o enunciar como um comportamento e o enunciado como a proposição cobrir sem descobrir por si mesmo. O que Ihe é comunicado ou o que ele
expressa ou escrita. acha não são nenhuma descoberta, mas um enunciado ao qual se atém.
Mesmo se ülcar claro que Heidegger pensa com o tempo "enunciado" pri- Entretanto, esseenunciado "parece exatamente como..." um descobrir. Em
mariamente um comportamento e que só se deve poder falar de "verdadeiro" conseqiiência dessaidéia, as pessoasnão se iludem ou iluddln um outro so-
ou "falso" em consideração a uma proposição porque essecomportamento é mente quando têm uma opinião falsa ou quando comunicam a alguém um
descobridor ou encobridor, ainda permaneceobscuro como ele apreende o falso enunciado. A ilusãojá consiste muito mais em se ater em geral a enun-
descobrir e o encobrir mesmos. Dito de outra maneira, permanece obscuro em ciados. Com certeza, isso soa estranho à primeira vista. Poder-se-ia por Him
que consiste para ele o "intuito discursivo propriamente dito" do enunciar, e. olÜetar que o que se acha ou o que nos é comunicado podem ser verdadeiros,
além disso, também não é necessáriodizer que o descobrir só pode ser levado a de tal modo que a determinação heideggeriana seria, sem dúvida, uma deter-
termo scb a forma do enunciar. "Descobrir', assim diz Heidegger, significa
"retirar o velamento de algo.. e, em verdade, não no sentido acentuado de tra- 'Essa ideia será desenvolvida mais detalhadamente no $ 2 deste capítulo
''Cf. quanto a isso Tugendhat (1958), p. 56.
42 Günter Fígal 43
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade
t
minação necessária,mas não suficiente da ilusão: só quem se atém a um preciso que mar-tenhamos um sentido específico de verdade, mesmo se não
enunciado pode se iludir, mas nem todo aquele que o faz se ilude. Essa obje- nos orientarmos mais pela forma do enunciado, e, quanto a isso, o conceito
ção é antes fortalecida do que enfraquecida quando Heidegger djz: "Primá- heideggeriano de fenómeno é um conceito-chave. A fim de fazerjus à pecu-
ria e originariamente não vemos tanto os oqetos e as coisas,maÜapenasfala- liaridade do ponto de partida heideggeriano, não se poderá mais certamente
mos sobre eles; mais exatan)ente, não expressamos o que vemos, mas vemos pensar na significação que o termo "fenómeno" possuía em Husserl. Porque
inversamente o que se fala sobre a coisa" (OC 20, 75). A questão, porém, é em Husserl o "fenómeno" é primariamente a "vivência" no sentido de um
que também se mostra nesse caso uma vez mais que Heidegger não quer pen- processo intencional, e por isso mesmo os objetos intencionais se inserem
sar simplesmente o falar como uma confirmação do "ver". E se assumimlos em uma descrição dós fenómenos, os fenómenos são por fim os objetos no
em algum momento que "ver" significa aqui o mesmo que "descobrir", en- modo de sua dação.iP A idéia de uma descrição dos fenómenos implica que
tão fica claro que Heidegger também está buscando se aproximar nesse con- as maneiras de dação mesmas são dadas uma vez mais para a reflexão, e,
texto da tese de que a orientação pelos enunciados como tal é um encobri- como acabamos de dizer, Heidegger se afasta radicalmente dessa idéia. Uma
mento do descobrir. Se dissermos isso, então isso acaba por introduzir a tese vez que Heidegger não parte mais de vivências intencionais que são dadas
mais ampla de que somente a verdade no sentido da verdade do descobrir. o para a reflexão, mas de perspectivas e atrelamentos lingüísticos, isso que ele
õcÀvltcúctv, portanto, deve ser por fim compreendida como verdade. A ver- denomina "fenómeno" também precisa poder se tomar compreensível em li-
dade enunciativa só é verdade em um sentido derivado, e, tomada rigorosa- gação com a idéia de lmaa liberação desses atrelamentos e perspectivas. O
mente, se mostra mesmo como "inverdade" ao nos atermos apenas a ela: "A emprego heideggeriano do termo "fenómeno" tem seu foco no fato de que
proposição não é o lugar em que a verdade se torna pela primeira vez possí- justamente a verdade no sentido do àÀrPcl3ctv e o ser verdadeiro e falso das
vel. Ao.contrário, a proposição só é possível na verdade... Precisamos sem- proposições são interpelados díscursivamente como fenómenos.
pre insistir no fato de que a proposição possui uma relação peculiar com a Em favor da compreensãoheideggerianado "fenómeno" a partir do
verdade, e ela possui uma tal relação na medida em que se encontra como àÀvl+ci3cLvjá fala por si só o fato de ele também se orientar uma vez mais em
verdadeproposicional necessariamenteem meio à seguinte altemativa: a meio à elucidação dessetemia pelo sentido verbal: "OctLvóp,cvov é o parti-
proposição não é o discurso que é verdadeiro como tal; ela tampouco é o dis- cípio de QctÍvca+al ; essa signiHiçação méd ia diz: mostrar-se; portanto, (paL-
curso falso como tal. Ao contrário, ela é o discurso que pode ser verdadeiro vópcvov é o que se mostra. O médio (paÍvca+al é uma das fomlas de
oz/falso"(OC21,135). Consequentemente,o que importa não é de maneira (paívu: trazer algo à luz, tornar visível nele mesmo, colocar na claridade.
alguma se uma proposição é verdadeira no casosingular, mas única e exclu- Como significação de fenõmel)o temos de manter conosco: (patvópcvov, o
sivamente se toda proposição também pode ser falsa. Por isso, ao se atirem a que mostra a si mesmo" (OC 20, 1 1 1). De acordo com esse esclarecimento.
proposições, as pessoas se iludem quanto ao que é propriamente a verdade: q)aívu é diretamente equivalente a àXnrPeiio, àÀvl+cúcLV. Um fenómeno se-
Verdade de um lado e ser verdadeiro ou falso de outro são fenómenos to- ria assim aquilo que é descoberto, e, no que é descoberto, se mostra para o
talmentediversos"(OC 21, 129). descobridor, assim como eventualmente também para os outros. Nesse sen-

Fenõmeno tido, diz Heidegger: "Os gatvópcva formam atotalidade disso quemostra a
si mesmo, o que os gregos também identificavam simplesmente com Tà
Mas o que significa dizer que averdade no sentido do àÀTI eÚcLV,assim í)VT(í, com o ente" (OC 20, 1 1 1). Com essa informação, Heidegger ainda se
como o ser verdadeiro ou o ser falso das proposições são «fenómenos"? So- movimenta completamente nas vias do pensamento husserliano: fenómenos
mente se conseguirmos responder a essapergunta poderemos invalidar tam- são objetos no modo de sua dação, e, se se diz isso, então é incompreensível
como o descobrir mesmo deve ser um fenómeno. Permanece aberto como o
bém a suspeitade que Heidegger se descuidado "conceito específico de ver-
dade" intrínseco à verdade enunciativa e também não tem assim nenhtmla descobrir mesmo pode se mostrar se ele não deve ser pensado analogamente
possibilidade de "determinar o sentido particular do falso. e. com isso. tam- ao objeto de um processo intencional. Uma solução para esseproblema é
preparada na medida em que Heidegger, partindo da identiHlcação dos fenâ-
pouco do verdadeiro".i8 Dito de outro modo, para invalidar essasuspeita, é

'Tugendhat(1970-1971), P.334.
Tugendhat(1970-1971), p. 172
44 Günter Figa Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 45
b

menos com o ente, introduz o conceito de aparénc/a: "0 ente pode sç mos- Tal como Aristóteles pensa em articulação com Platão, não se pode querer o
trar então de maneiras diversas nele mesmo, a partir dele mesmo, sempre a queé ruim. Isso com certeza significa apenasque é impossível querer algo, e,
cada vez segundo o tipo de acessoa ele. Subsiste a estranha possibilidade de não obstante, toma-lo como ruim. No entanto, não significa que também se
o ente se mostrar como algo que ele, porém, não é. Nós não desjénamos um toma em cada caso sua decisão da maneira correta e que se age, então, de
tal ente fenómeno, algo que se mostra em sentido próprio, mas sim aparên- acordo com ela. De acordo com Aristóteles, o que se dá com a maioria das
cia. Com isso, o termo (paLvópcvov assumeuma modificação significativa; pessoas é antes o seguinte: elas chegam até as metas de suas ações na medida
em relação ao àTaaóv fala-se por isso de um (paLvóp.cvov àTa+óv, de um em que se orientam pelo que vige universalmente como desejável, tal como
bem que apenas parece ser assim, mas faticamente não é, apenas 'aparece' o prazer, a riqueza e a honra (+)vovó,vÀoi3TOÇ,
TLpã/ E]V, 1095a23). Aristó-
como bom"(OC 20, 111). Aqui já se rompe a identificação dos fenómenos teles também denomina o que vice universalmente como desejável td
com o ente; por si só, o exemplo escolhido por Heideggerjá o conduz para tvapíà xat (pavcpá (EiV, 1095a22), o que se encontra manifesto no sentido
além de uma concepção objetiva dos fenómenos, pois como quer que se pos- do evidente. Desta feita, o discurso acerca do (paLvópevov àTa óv recebe
sadeterminar o bem ou o que é apenas aparentemente o bem, é certo de qual- um novo acento. O (patvópcvov àTa+óv não é mais agora apreensível ape-
quer forma que não se está lidando aqui com um ente no sentido de um obje- nas negativamente como algo que "somente se parece com" o bem. Ao con-
to. Em verdade, é possível dizer que aquilo que alguém quer é o objeto inten- trário, ele se toma muito mais plausível na medida em que isso mesmo que
cional de seu querer. No entanto, como Aristóteles, de quem Heidegger reti- 'somente se parece com..." pode ser apreendido como o que se manifesta:
ra seu exemplo,já tinha percebido, vemo-nos em dificuldades quando iden- sua manifestação é a manifestação do que é evidente. Heidegger também
tificamos o bem com o respectivo correlato intencional do querer. Se se querir além e seaproximar dessadiferenciação entre o que semostra em sen-
compreende o bem como o respectivo correlato do querer (l3ouÀvlTóv),então tido próprio e o evidente. Como ele diz, tudo "depende de ver a conexão en-
seprecisa dizer com Aristóteles que, quando alguém escolhe de maneira fal- tre a signiHlcaçãofundamental de (patvóAcvov, o que se revela, e a segunda
sa, ele não pode ter querido nada (aupj3aÍvcl 8ê TÓiÇ p.êv 'tà j3ouÀTTràv significação, aparência"(OC 29, 111). Ele determina essaconexão ao inter-
TàTa+àv XéTomt p,â dvcEL PouÀrltàv ó PoúXeTal b pà õp+i3ç dLPOÚpC- pretar a aparência como uma modificação do "que se revela": apenasporque
voç/ EN1,1113a17). A solução aristotélica do problema consiste em não (paívca+at diz mostrar-se, ele também pode designar: mostrar-se apenas
compreender àTa+óv e (patvópcvov àTCE+óvcomo dois correlatos diver- como, só ter a aparência de"(OC 20, ll 1). Segundo a interpretação da rela-
sos do querer, mas em ver a diferença entre ambos no querer mesmo: alguém ção entre àTa+Óv e (paLvopcvov aTa Óv em Aristóteles, essas sentenças
quer o que é verdadeiramente o bem quando, no contexto de suas diversas não oferecem mais nenhuma dificuldade principiam. O evidente, isso, portan-
possibilidades de ação, diferencia rota e seguramente (xpívcl bp+l:;ç/ E/V, to, "que se diz sobre a coisa", é um modo de manifestação dessacoisa mes-
1 1 13a30), isto é, não se deixa motivar por casualidades em suas ações. O ma, pois ela está efetivamente presente como coisa. Ao mesmo tempo, po'
bem não está, por conseguinte, dado, mas é rea/fiado. E podemos falar de rém, a coisa mesma também permaneceencoberta pelo que é dito sobre ela
um (pat'iópcvov àía+Óv quando alguém denomina a sua ação "boa" sem, porque precisa ser fundamentalmente experimentada de modo diverso do
no entanto, ter se decidido de maneira reta e segura por ela. Aristóteles pare- que é em meio ao seu debate.O caráter encobridor do enunciado não consis-
ce certamente tornar uma vez mais indistinta a diferenciação entre o bem e o te, com isso, em que algo falso é comunicado nos enunciados. O que é comu-
que é apenasaparentemente o bem ao dizer que para aquele que se decide se- nicado pode ser inteiramente "verdadeiro", e, assim, é uma questãode signi-
guramenteo verdadeiro apareceem tudo Gcvtxáa'tolo tàÀvl+êç ab'tã ficação secundária sabersegundo que critérios sejulga essaverdade.O bem,
(paÍvcTat/ E?V, 11 13a30), sendo aí o verdadeiro evidentemente idêntico ao tal como pensaAristóteles, pode ser interpretado como um fenómeno no
bem. Não obstante, não se trata aqui de um modo de falar irrefletido, mas de sentido heideggeriano: ele pode ser "descoberto" porque sempre"se tende'
uma passagem central para a determinação da relação entre verdade e apa- para algo pela estrutura do próprio agir, e, no entanto, se permaneceatrásdo
rência -- uma relação que também é significativa para Heidegger que significa propriamente o "agir". A descoberta do bem não é levada a
Logo no começo da Éf/ca a .V/cónzaco,Aristóteles caracteriza o bem cabo,porém, no enunciar, mas no fazer, de modo que também se poderia tor-
como aquilo para o que tudo tende (cb ]r(ívt' ê(píeTal/ E/VI,1094a3). Com nar compreensível em que medida o falar é derradeiramente inadequado ao
isso, está dito que mesmo o mau agir acontece sob a pressuposição do bem. fenómeno do bem. Em articulação com Aristóteles toma-se, além disso,
46 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 47

plausível a razão pela qual Heidegger não precisa circunscrever a sua deter-
mulado' não é este ou aquele ente, mas... o ser do ente"(ST, 35). O ser é ne-
minação da relação entre fenómeno e aparência aos enunciados, mas pode
cessariamentetema de uma mostração porque ele não se apresentade início
introduzir o ÀóToç em geral como expressão para o discurso c9(idiano. Mes-
e na maioria das vezes ou, porém, só se apresenta"dissimulado". E porque
mo proposições nas quais se expressa uma intenção, ou proposições prescri- isso uma vez mais é assim, a mostração também tem de partir das dissimula-
tivas, podem ser aparentes no sentido de que elas são formuladas a partir da ções. Mesmo o ser só pode chegar então a ser visualizado se essasdissimula-
orientação pelo que é evidente
ções forem comprovadas como dissimulações. Se se compreendem essas
Se afirmarmos ser em última instância inadequado aos fenómenos que
dissimulações como o evidente, então a fenomenologia no sentido heidegge-
interessam a Heidegger que essessejam transformados em objeto do enun-
riano é a descons/rzrçâo do ev/den/e; e, em lmaa tal desconstmção, interessa
ciado, então sc perguntará naturalmente como uma investigação e apresenta- mostrar que o evidente é em verdade uma modificação do fenómeno «ser'
ção fenomenológica desses fenómenos é então em geral possível. "Fenome-
Mesmo se ainda não estiver claro o que o termo "ser" significa exatamente,
nologia", como Heideggera compreende,é, por fjm, "ÀéTCLVtà (paL- pode-sedeterminar agora mais definidamente a relevância da pergunta so-
vÓP,cva - ãno(paÍvcaPal va (paLvópcva - deixar ver o que se revela nele
breo ser.Como seria preciso dizer com Heidegger, sem colocar essapergun-
mesmo a partir dele mesmo"(OC 20, 1] 7). Todavia, não se precisa ler essa ta é impossível ter clareza quanto a algo assim como uma ilusão no sentido
determinação de tml modo tal como se Heidegger quisesserevogar sua dife- de uma orientação pelo evidente em geral, e apenas se se consegue isso se
renciação entre o descobrir e o enunciar. Decisiva é muito maisjustamente a comprova também a possibilidade da existência da filosofia. A pergunta hei-
necessidadede visualização do que se revela a partir de si mesmo; e isso sig- deggeriana sobre o ser tem, consequentemente, o mesmo mote do debate on-
nifica certamente: assim como ele se mostra ao ser experimentado. A mos- tológico do diálogo platónico O s(Ús/a. Se estivesse claro como os sofistas
tração fenomenológica pressupõe nessamedida unia experiência do fenó- são capazes de aparecer como aqueles que sabem diante de seus estudantes
meno mesmo. No entanto, não está dito com isso que essa experiência tam- ou se não se tivesse razão nenhuma para perguntar se eles são realmente
bém pode ser comunicada sem rupturas em um enunciado. Por um lado. todo
aqueles que sabem, não se precisaria transfomlar o mostrar-se e o aparecer
conceito e toda sentença fenomenológica sempre se encontram "como enun-
em tema. No entanto, ainda se precisaria transformar o ser em tema (Tà Tdp
ado comunicado em meio à possibilidade da degeneração": "Ele é passado (paívca+al tonTO xaü tà 8oxct'u, avcxl 8ê ptl/ .S(Z/irra,236e).
adiante par.auma compreensão vazia, perde seu solo próprio e torna-se uma
Certamente, não se comprovou até aqui que a orientação pelo evidente é
tesequepaira livremente"(ST, 36). Poroutro lado, os fenómenos em geral só uma aparência que só pode ser esclarecida como tal por intermédio da colo-
sedeixam apresentarna medida em que partimos de seu encobrimento. Sem
cação da pergLmta sobre o ser assim como o fez Heidegger. O que se mostrou
isso, o conceito heideggeriano de descobertaperde seu sentido mais efetivo.
foi simplesmente que uma orientação pelo evidente não é nenhuma desco-
O fato de Heidegger pensar assim também fica claro na medida em que ele berta, de modo que a pergunta sobre o ser só pode ser colocada inicialmente
detemlina o seu modo de compreender o -- insigne -- fenân)eno20 da fenome-
como pergunta sobre o descobrir. Se se leva em conta aí que toda e qualquer
nologia: '0 que é isso que a fenomenologia deve 'deixar ver'? O que é isso descoberta pressupõe a possibilidade de ser descoberto do que foi então des-
que precisa ser denominado 'fenómeno' em um sentido insigne? Segundo coberto, Ricaclaro que o descobrir só pode ser visualizado completamente
sua essência, o que é necessariamente tema de uma mostração expressa?
em conexão com o que é passível de descoberta. Somente nessa conexão,
Claramente isso quejustamente não se mostra de início e na maioria das ve-
como se mostrará, o descobrir é fenómeno, de tal maneira que essaconexão
zes, o que estávelado ante o que se mostra de início e na maioria das vezes
deve mesmo dizer respeito primariamente à investigação fenomenológica
mas que, ao mesmo tempo, é algo que pertence essencialmente ao que se Se o descobrir da fenomenologia consiste agora em dar voz a essaconexão.
m ostra de início e na maioria das vezes; e de um modo tal em verdade que ele
então também bica ainda mais compreensível por que isso só pode acontecer
perfaz o seu sentido e f:andamento. Mas o que permanece velado em um sen-
em meio a uma objetivação por fim inadequada. Tomado estritamente. não é
tido particular ou recai uma vez mais no encobrimento ou só se mostra 'dissi-
possível fazer nenhum enunciado sol)re a conexão do que é passível de des-
coberta porque enunciados sempre mostram apenas algo detemlinado, ou
sqa, descoberto. Por isso, no que concerne ao contexto do que é passível de
desse6enâneinoggerutiliza o termo -lênõmeno" no plural, tem em vista geralmente aspectos
descoberta, é maximamente pertinente o que Heidegger diz no início de Ser
48 Günter Figal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 49
t
e /empa sobre o ser: "'Ser' não pode ganhar uma determinação de'tal modo nexões categoriais" (ST, 3). Como se poderia acrescentar de maneira eluci-
que um ente Ihe soja atribuído" (.ST,4); ou, formulado de uma maneira me-
dativa, Aristóteles trouxe à tona o fato de o verbo "ser" sempre ser usadojun-
nos equívoca: é impossível determinar o significado do temia.}8er" por meio
tamente com conceitos de gênero e de, por isso, com essesconceitos, serem
da remissão a termos com os quais um ente é especificado od caracterizado. mostrados determinados modos do "sendo", mas de o "sendo" mesmo não
De qualquer modo, isso não vale apenaspara termos singulares ou gerais, fi)ncionar como um conceito de género. Exatamente como o inHinitivo "ser".
mas tambén} para noções que designam a fomla, ou sda, a relevância estru-
o "é" de cada determinação predicativa dá a entender a presença de algo de-
tural de tais termos no contexto da linguagem. Tal noção, da qual Heidegger terminado. Apenas predicados com os quais é dito o que algo é apresentam
mesmo também chega a falar, é o "gênero": "(...) a universalidade do ser não
contudo, o que estápresente em sua autonomia (xa+'abTó).:: Nessa inter-
éa universalidade do género. 'Ser' não abarcaa região mais extrema do ente.
pretação do "sendo" reside em verdade uma correção de Platão, que no S(2/is-
uma vez que esse é articulado conceitualmente segtmdo gênero e espécie: caainda designao "sendo" como um Tévoç. Assim como Platão, porém,
oi5xc tà Óv Tévoç" (ST, 3). Para Aristóteles, que Heidegger cita aqui,zi o 6v Aristóteles permaneceorientado pelo que é mostrado (XcTó»cvov), ou, dito
não pode simplesmente ser Tévoç porque isso de que se diz que é -- no míni-
de maneira mais genérica, pelo que é descoberto, em meio à pergunta sobre o
mo--Jã pertence em verdade a um género, mas é diverso de um outro que per- "sendo". E por issoque Aristóteles pode tomar compreensívelcomo os di-
tence ao mesmo gênero. Se o "sendo" pudesseser compreendido como um
versos empregos do verbo "ser" se conectam uns com os outros; todos os
género, seria impossível dizer da diversidade que ela é, e, assim. também não
predicados são enunciados tendo-se em vista o que estápresenteem sua de-
haveria nenhuma diferença (oi)8c»Ía 8La(popa-. 6v -. lalal/ .A4ef.,998b26). terminabilidade autónoma, e exatamente isso é pensado com a unidade da
No entanto, se se quiser elaborar a pergunta sobre o ser como pergunta sobre
analogia. Não obstante, permanece sem consideração o que Heidegger de-
o contexto da descoberta, não se carece absolutamente em primeiro lugar do nomina "o obscuro dessasconexões categoriais" e, então, também "o pro-
argumento aristotélico para tornar plausível que o «ser" não é um género. A
blema da unidade do ser" (Sr, 3). É bem provável que isso signifique, no en-
idéia de que o "ser" pode ser compreendido como um gênero só chega efeti- tanto, o seguinte: os géneros supremos dos predicados, que Aristóteles deno-
vamente a termo se se concebeo "ser" como a determinação mais universal
mina "categorias", pemtanecem sem problematização em suapluralidade, e
disso que é, e, na terminologia heideggeriana, tal determinação só poderia Heidegger transforma essa plural idade em problema ao perguntar: "Qual é a
ser na melhor das hipóteses "o descoberto". Em contrapartida, as expressões
determinaçãouna e simples de ser que domina todas as múltiplas significa-
"contexto da descoberta" e "gênero" são tão pouco compatíveis uma com a ções?"" Tal pergunta só pode ser em geral colocada se não se aceita mais a
outra que não é fácil pensar na possibilidade de um erro categorias. Se se
tese aristotélica de que o emprego unívoco de "ser" consiste no emprego fei-
mostra que o discurso acerca do contexto da descoberta é no mínimo uma
to em vista de algo presente, a saber, do que está presente em sua determina-
possível explicitação do "ser", então também é preciso que se possa dizer bilidade autónoma. E se se leva em conta que a pergunta sobre o ser en] Hei-
sse contexto que "ele ultrapassa toda universalidade genérica e é nesse degger encontra-se no mínimo em uma estreita ligação com a pergunta sobre
sentido um '/ranscendens'" (ST, 3). Com isso, no que diz respeito ao ser,
o descobrir em seu contexto, então se está próximo de compreender o pro-
tem-se em vista em Heidegger o fato de ele não ser determinável em concei-
blema do ser como um problema da unidade do descobrir em seu contexto.
tos que têm seu sentido em um discurso sobre um ente. Mas mesmo com o
Com isso, também se poderia dizer sobre o descobrir em seu contexto que ele
termo "ente" não se apreende o que Heidegger quer pensar como "ser".
apareceem todo e qualquer emprego do verbo "ser". Isso silniHica uma vez
Como ele mesmo diz, Aristóteles ';reconheceu em verdade a unidade desse
mais: toda referência a algo que pode se articular em proposições enunciati-
universal transcendental ante a multiplicidade dos conceitos supremos de
vas só estáem condições de se tornar compreensível em meio à elaboração
genero pertinentes às coisas... como a unidade da analogia" e "colocou, com explicitativa do descobrir em seu contexto. O descobrir em seu contexto não
isso, apesarde toda a dependência ante o modo ontológico platónico de esta-
é nenhuma tomada de referência a algo, e, no entanto, tampouco simples-
belecimento da questão, o problema do ser sobre uma base fundamental-
mente diferente dela. Essa relação peculiar do fenómeno com sua aparição
mente nova. Todavia, ele também não lançou luz sobre o obscuro dessasco-
pode ser determinada como a'lgerençase,em conexão com Aristóteles, seto-

ziCf. À4e/., 998b22. C'i.Met.E].


z:Prefácio
a Richardson(1963),p. XI
Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 51

ar a "diferença ' como a diversidade disso que, contudo, é o rpesmo 430bl). QuandoAristóteles fala aqui de 'junção", tem em vista enunciados
(8Lá(popaXcícTat óa' gTcpá baTE Tà abtó TL 6vxa/ À/er., 1 0 18al 2).24 Se se daforma "a é F"; enunciados, portanto, nos quais um olãeto específico é ca-
reflete.além disso. sobre o fato de o fenómeno estarencoberto em,suaapan' racterizado por meio de no mínimo um predicado. Todavia, o entmciar não
çãoesó ser liberado pelo trabalho fenomenológico -- que é, por ?úavez, uma se deixa designar apenas como um juntar, mas também como um cindir:
liberação ante a orientação pelo que apareceno sentido do que é evidente -- êv8éXCTal 8ê xai 8tcEÍpcaLV(pával lávTa (Z)e a/7/ma,430b3): diz-se, por
então se pode compreendem adiferença entre aparição e fenómeno como a di- exemplo, de algo que ele é F, então isso implica que ele também nãoé G se G
ferençadaliberdade Antes que possaficar claro, porém, o que isso significa seencontra em contradição com F. Porque todo e qualquerjuntar visto assim
emoarticular precisamosdesenvolver em um primeiro momento o fenóme- envolve um çindir, o cindir também pode ser verdadeiro ou falso. Portanto,
no que está em jogo para Heidegger. uma subordinação da verdade aojuntar é tão impossível quanto uma subor-
dinação da falsidade ao cindir. De acordo com Heidegger, cai-se além disso
em dificuldades quando se concebe o juntar como atribuição ou afirmação
g 2. Ser como ser-aí. Da mesmidade à auto-evidência
(xatá(paaLÇ) e o cindir como recusa ou negação (àxÓ(paaLÇ).Como Hei-
Como se mostrou, fenomenologia no sentido heideggeriano é a des- deggerdiz, o atribuir é "como ligar também um cindir e o recusarcomo cin-
construção do que é evidente. Essadesconstrução só é possível na medida dir também lml ligar"(OC21, 139). Como umjuntar, todo e qualquer atri-
em que o evidente é demonstrado como uma modificação do fenómeno que buir implica um cindirporque também se diferencia aí o simplesmente deter-
se encontra" em sua "base". A tese de acordo com a qual precisamos com- minado ante o traço característico que Ihe é atribuído predicativamente, as-
preender aqui inicialmente sob o termo fenómeno o descobrir em seu con- sim como toda e qualquer recusa liga algo simplesmente determinado com o
texto também precisa poder se tornar compreensível, na medida em que se que essenão é, mas que, como tal, pode ser mostrado de qualquer maneira
mostra que o evidente é uma aparição do descobrir em seu contexto e que com o que é simplesmente determinado. A partir dessadiferenciação entre o
ele também encobre ao mesmo tempo o descobrir em seu contexto. O evi- atribuir e o recusar, por um lado, e ajuntar e o cindir, por outro, Heidegger
dente, no entanto, é o exposto, e isso uma vez mais tornou-se tema para conquista então uma ideia importante para o que se segue. Ele quer mostrar
Heidegger antes de tudo sob a forma do enunciado. Somente por issojá se que apenas as detem] mações"atribuir" e "recusar" dizem respeito à estrutu-
está perto de seguir também aqui uma vez mais a interpretação heideg- ra da proposição enunciativa, enquanto o "ligar" e o "cindir" denominam a
geriana do enunciado. AÍ também se mostrará então como o concerto cona/çâo do atribuir e do recusar. Se nos mantivermos junto a proposições
ser-aí", central para as análises de Ser e fe//zpo,pode ser desenvolvido no expostas, ligar e cindir não são compreendidos como essa condição: "Por
mínimo a partir de uma investigação fenomenológica da estrutura do enun- mais imediata e sedutora que sda a orientação pela proposição exposta e
ciado; no mínimo alguns aspectosdo que Heidegger denomina "ser-aí' pela configuração lingiiística da proposição", Heidegger quer abdicar dessa
aparecemnessaestrutura. Eles podem se desobstruir se se pergunta sobre o orientação a Himde "apreender" um fenómeno "que é nele mesmo ligação e
modo como enunciados podem ser propriamente falsos. Com a resposta a cisão, que se encontra antesdas relações lingüísticas de expressãoe de suas
essa pergunta, Heidegger quer dar "ao mesmo tempo um esclarecimento atribuições e recusas, e que é, por outro lado, o que torna possível que o
sobre as condições de possibilidade da verdade enunciativa, do descobrir XóToç possa ser verdadeiro ou falso, descobridor ou encobridor" (OC 21,
consonante ao Xóíoç" (OC 21, 136),
141),,Heidegger denomina esse"fenómeno estrutural" o "cimo 'hermenêu
ligo'" (OC 21, 143). De acordo com Heidegger, só uma analise do "como
Emtnciado e " coma" herjnenêtltico hermenêutico pode propiciar uma visualização clara do caráter condicionan-
De acordo com Aristóteles, a falsidade de enunciadossó é possível por- te do ligar e do cindir. Somente no contexto dessaanálise pode-se,além dis-
que o enunciado é umajunção: Tà Tàp $cu8oç tv auv+éael àci(Z)e a/z//z?a, so,mostrar o porquê de esse"como" ser denominado por Heidegger"herme-
nêutica
Heidegger articula expressamentecom a análise do "como" hermenêu-
:anos escritos de Heidegger publicados na fase de STe em STmesmo, o conceito de diferença, tico a determinação platónico-aristotélica do XóToç como XÓTOÇ TLvÓç.A
em verdade, ainda não se apresenta.De acordo com uma informação dada oralmente por H.-G. unidade de cada discurso consiste em ser "discurso sobre algo e de algo"
Gadamer, Heideggerjá falava, contudo, de "diferença ontológica", mesmo nos anos de 1920.

l
52 Günter
figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 53

(OC21, 142):2s "A unidade do discurso constitui-se a partir do que é discuti- Assim como Platão antesdele, Aristóteles também pensaa acessibilidade
do no discurso mesmo e é compreensível a partir daí"(OC21, 142). Para tor- desseum como apreender(voeiv)." Somente porque o mesmo é percebido
nar plausível o que setem em vista com a "unidade do discurso",/t:mbém se como um, ele também pode ser designado por uma expressão lingüística.3i
precisa esclarecer desta feita como "o que é discutido no discuyúo" pode ser Certamente,uma expressãolingüística não diz sem mais o que o apreendido
determinado. Para Platão e Aristóteles, "o que é discutido no discurso" é o em sua mesmidadeé: o um pode ser designado completamente por "nomes:
ente que é caracterizado em sua determinabilidade por meio da mes/27ldade; diversos. Portanto, não sepode decidir se setrata realmente a cada vez do mes-
Somente porque cada ente é "ele mesmo" ele pode ser em geral mostrado," mo pela simples orientação pelos nomes.12Por isso, é necessário circunscre-
e. como um mesmo, ele é ao mesmo tempo diverso do que Platão denom ina o ver o um em sua mesmidade; somente com essa delimitação GopLapoç)dada
:não-ser" (»à 6v/ s(2#sra, 257d-258c) em vista do ente mesmo. O "não-ser" no ÀÓToçsua mesmidadetoma-se compreensível.No que diz respeitoao con-
não é um nada, mas muito mais o que o respectivo ente, que mostramos, não texto atual, é agora particularmente interessante o modo como Aristóteles
é. Em verdade, Platão e Aristóteles pensam a presença do mesmo de um pensatal delimitação. De acordo com ele, obpLapoÇ traz consigo o queé isso
modo tal que permanece excluído dessa presença o que o mesmo não é. Cona que se mantém por meio das mudançasdas determinaçõesque advêm a ele e
isso, porém, não está dito que o mesmo não está l igado ao que ele não é. Para se afastam dele, o que ele e/a antes de suas respectivas detemlinações Ihe ad-
Platão, essa ligação consiste na "participação" do ente no Tévoç da diversi- virem ou seremretiradasdele. E issoque tem em vista a formulação aristotéli-
dade (tà gTcpov/ S(Úsra, 259a-b). Essa participação, por sua vez, só pode ca da mesmidade como 'tà TÍ ãv erLVaL;essaexpressão designa uma "posição
ser pensada a partir da pressuposição de que o ente tem em geral uma tal pos- vazia filncionalmente determinada"33que carece respectivamente de uma
sibilidade. Visto assim, o ente é 8Úvap.LÇ, e, em verdade, 8Úva LÇ xoLvu- concretizaçãono discurso. Isso não significa, conüldo, que a mesmidade do
víaç. A determinação do ente como 8úvaptç é assumida por Aristóteles. ente consZs/eem sua delimitação no bf)Lapóç. O pretérito hv não se encontra
Ele quer tornar compreensível aí a relação do mesmo ente com aqueles que, apenas em relação com o civat, que precisa ser lido no presente, uma vez que
em relação a ele, são outros sem interpretar ainda a própria diversidade como designa o ente na pluralidade a cada vez simplesmente dada de suas determi-
Tévoç. O pressuposto para tanto é a ideia de que o entejá se encontra aí como nações.Ao contrário, também está dito com essa fomla pretérita que o ente
um mesmo.27 Para ele, o gênero do ente em questão é segtmdo a possibilida- 'estava" em sua mesmidade antes de se tomar compreensível por intermédio
de (8uvápet).z' Esse gênero pode estar presente de diversas maneiras, ou dessadelimitação. De outra maneira não se poderia mesmo explicar como o
seja, pode assumir em si diversas determinações ulteriores e só se encontra ai ente pode ser sabido em geral sem a realização de uma delimitação; tal saber é
juntamente com essasdeterminações.29Todavia, essasdeterminações ulte- a pressuposiçãopara a delimitação mostradora. Aristóteles caracteriza esse
riores precisam ser pensadas igualmente como 8u'uáp,CL: somente na medida saber pressuposto para o bptapoç como "saber segundo a potência"
em que elas são 8uvápct podem ser deduzidas de um ente mesmo que se en- (imLaüã»TI...6Ú'.iclpct/ Ater({/h/ca, 1087al5); ele é determinado mais proxi-
contra aí presente.Em todo caso,contudo, o outro deduzido do mesmo ente, mamentecomo saberdo universal e do não delimitado ('taisxa.Puxouxat
assim como o caráter de 6úvaptç do gênero só podem ser pensados a partir âopíaTou/ Àde/cghfca, 1087a 17). O termo xa+óXou não designa aí o género do
do mesmo, que é determinado por seu gênern e pelas determinações por in- ente,mas deve ser compreendido como universalidade não genérica.34Pensa-
termédio das quais ele é diverso de um outro dç seu gênero, e que se encontra do a partir do bpLapoÇ, trata-se da universalidade indeterm inada. tal como ela
aí como algo assim determinado. Não obstante, ele não é composto por suas é mostradajuntamentecom cada"nome". Mesmo que esses"noves" não apa-
determinações genéricas e pelas respectivas detemünações de diversidade reçam como habitualmente de maneira isolada, mas soam completados por
em questão. Ao contrário, ele é um. determinações predicativas, a mesmidade do ente não setoma, por conseguin-
te, acessívela partir daí. Apesar disso, contudo, Aristóteles contestadao pri-

25Cf.,por exemplo,S(2Ps/a,
263a. :'Cf., por exemplo, À/e/c!#ufca, 1.052a l assim como Repúó//ca, 508ç
ZÚCf. S(Z#sla, 249b-ç. ''Cf. Àde/cgbfca, 1.006a28-b13
z'Cf. Tugendhat(1958), p. 117. 3zCf.S(2Pxra,217a
Z*Cf. Àdef(!#ufca, 1058a23. ::Wieland (1970), p. 175
29Cf.À4el({/isfca,1045a33. 3'Cf. Wieland (1970), p. 88
54 Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 55

made da8uvápcl bala'ri:i»vl ante o saberdelimitador. A 8uvápcl tvfarrtllrvt simplesmente as análises heideggerianas da lida com as coisas de uso, "uma
não é nenhum saber real porque ela não é o saber de algo del imitado em sua de- vez que elas não conduzem para além do que se acha elaborado no pragma-
terminidadee, nisso,real." tismo de Peirce até Mead e Dewey",3ó pode-se defender de qualquer modo
Em contraposição a isso, Heidegger se ocupa justamente/om a valori- com boas razões a opinião de que podemos aprender em outros autoress7tan-
zaçãoda 8uvápcl êxLa'nl»Q. Como ele diz: "Em meio à realização do dei- to quanto em Heidegger, senãomesmo melhor, sobre a estrutura dessalida.
xar-ver determinado é retido o sobre-o-quê do discurso; mais exatamente: A questão é que o que está emjogo primariamente não é de maneira alguma o
ele já está presente, e, a partir dele como presente, o enunciado mesmo... é que Heidegger descreve e analisa, mas o valor conjuntural dessa descrição e
como que alçado. No entanto, não como um novo objeto, por exemplo, mas dessaanálise no interior do curso de seu pensamento.No que diz respeito a
de início unicamente na tendência de que o alçar toma mais acessível o 'so- essecurso, é certo que o fato de a "descoberta" de uma coisa de uso em meio
bre-o-quê' no que ele é. Para que algo assim como um alçar e uma determi- à lida com ela não ser caracterizada pela bivalência peculiar aos enunciados
nação predicativa seja, porém, possível, o sobre-o-quê mesmojá precisa ter desempenha um papel para Heidegger: quem sabe lidar com algo não pode
se tomado acessível"(OC 21, 143). De início, em verdade, tudo parece aqui iludir nem a si mesmo nem a outros quanto a isso,'* e, visto assim, o saber
como se Heidegger não afirmasse absolutamentenada de diferente em rela- usar implica uma descoberta em unl sentido expressivo. Além disso, Hei-
ção a Aristóteles. Por nlm, ele também acaba por conceber o "sobre-o-quê" degger acredita poder tornar compreensível também a estrutura da própria
do enunciado como estando "acessível" nele. Todavia, ele só se torna acessí- predicação a partirda lida com as coisas de uso. A maneira como ele articula
vel no que ele é, e, com isso, não está dito que ele só se mostrou inicialmente essa idéia pode dar, sem dúvida algtmla, ensejo para incompreensões.
acessível de uma maneira indeterminadamente universal. De início, isso so- Assim, ele fala, por exemplo, de um "caráter pré-predicativo" da estrutura
bre o que se constroem enunciados é mesmo "descoberto... a partir do pa- hermenêutica do como e diz "que esse 'como' não é primariamente próprio à
ra-quê de sua serventia" (OC 21, 144); e isso significa: ele é descoberto a predicação qzra predicação, mas se encontra antes dela, de modo que viabili-
partir do modo "como é usado"(OC 21, 144): "o que inicialmente é 'dado' é za pela primeira vez a estrutura da predicação"(OC21, 145). Se isso signifi-
o para escrever para sair e entrar para iluminar para sentar; ou sela, es- casseque a estrutura gramatical e semântica dos enunciados poderia ser deri-
crever, entrar e sair, sentar e coisas do gênero são algo em que nos movimen- vada da lida com as coisas de uso, então a tese heideggeriana não poderia
tamos desdeo princípio: o que conhecemosquando nos veríamos sobre algo com certeza ser sustentada. Poder-se-ia objetar com razão que a estrutura da
e o que aprendemossão essespara-quis"(OC 21, 144). O que o ente sempre lida com ascoisas de uso mesmassó pode setornar compreensível a partir da
já "era" quando o determinamos em enunciados é amaneira de lidar com ele. estrutura da predicação, e, então, faz também muito pouco sentido falar do
Nessecontexto, ele é "algo como algo"; portanto, "algo como utilizável des- caráter "pré-predicativo" dessa estrutura.3P Antes de mais nada, contudo,
sa ou daquela maneira' precisamosatentar para que, exatamente como no caso do ãv na expressão
Certamente não se compreende à primeira vista por que Heidegger de- aristotélica tà TÍ ãv C'Leal, a formulação heideggeriana de que o "como
nomina o "como" segundo a fórmula "algo como utilizável dessaou daquela hermenêutico se acha "antes" da predicação também não pode ser compre-
maneira" o "como hemaenêutico". Ele chega,sem dúvida alguma, a essaex- endida de maneira ingenuamente temporal.40 Heidegger, certamente não
pressão,na medida em que traduz tppcvcÚcLV por "interpretar" e concebe quer dizer que se domina inicialmente anda cona as coisas de uso e desenvol-
interpretar" uma vez mais no sentido de exp//Gare,o que pode significar ve, então, a partir.dela a capacidade de construir enunciados. Ojlue Ihe inte-
tanto "dar sentido", "esclarecer", quanto "explicitar", "desenvolver" e "põr ressaé muito mais o fato de toda e qualquer predicação sempre envolver o
em obra". Vistas assim, as coisas de uso só são "desenvolvidas" como o quc como" hermenêutico, uma vez que é"predicação em meio a um experimen-
são na lida com elas e somente em uma demonstraçãodessa lida se poderia tar"(OC 21, 145): aquilo sobre o que se constroem enunciados pertence cor-
propriamente "esclarece-las" de maneira real. No entanto, se nos abstrair-
mos dessaterminologia peculiar, a coisa que está em jogo para Heidegger :''Habermas (1985), p. 176
não parece ser especialmente original. Mesmo se não se acredita poder saltar ''Ryle (1949), Po:anyi (1973)
'*Cf. quanto a esse ponto, \Xrieland (1982). especialmente p. 224
39Prauss
( ]977), p. 27
3sCf. À4e/c@s/c'a, 1087a18. '"Em relação a Aristóteles, çf. Tugendhat(1958), p. 18
56 Günter Figal Martin Heídegger: Fenomenologia da Liberdade 57

}
rentemente a um contexto quejá é familiar como tal a alguém e essa familia- dade('Úv 8uváp,ct (iLX(av XéTouatv/ À4e/clfkíca, 1043a15). Em contrapar-
ridade não apenasnão ganha expressãoem enunciados, mas enunciados só tida, somente quem a denomina um receptáculo que protege objetos de uso e
podem ser construídos se a familiaridade do contexto da experiê ,,ia estiver corpos a mostra em sua realidade efetiva (tvéPTcta);'z e isso significa tam-
ao menos minimamente perturbada. Heidegger tenta elucidar tíl estado de bém: em sua mesmidade. Ao mostrar que podem se inserir e frequentemente
coisas a partir do exemplo de um pedaço de giz: "Esse enunciado 'o giz é mesmo precisam se inserir no bota»oç de um ente determinações funcio-
muito arenoso' não é apenasuma determmaçãodo giz, masao mesmo tempo nais, Aristóteles abre fundamentalmente a possibilidade de apreendertam-
uma exegese de meu comportamento e de minha impossibilidade de com- bém o saber que precede o saber expressamente delimitador, o saber do uni-
portar-me de não poder escrever 'corretamente'. Nesse enunciado, não versal nãogenérico, como conhecimento de tais contextos ft)ncionais. Se se
quero determinar essacoisa que tenho na mão como algo que possui a pro- diz isso, então se precisa acrescentar certamente que uma coisa de uso tal
priedade do duro ou do arenoso. Ao contrário, quero dizer: ela me impede de como uma casa sempre possui sua detemlinabilidade tão-somente no con-
escrever. Portanto, o enunciado está ligado de maneira interpretativa ao texto com outras coisas de uso, e, então, também não se pode mais simples-
mentedelimita-la em sua mesmidade ante essasoutras coisas.
comportamento referente à escrita, isto é, à lida primária do escrever" (O(.'
21, 157). A ação de caracterização da predicação é, consequentemente, mo- Ê possível tornar compreensível como se tem de pensar uma tal delimi-
tivada pelo fato de a lida pura e simples esbarrar em um obstáculo, de modo tação, investigando agora as expressões aÚv+caLÇ e 8LaípcaLÇ mais exata-
que a situação antes não problemática carece de uma nova "exegese"; ou mente. De acordo com Heidegger, essesconceitos designam a estrutura do
sqa: pensa-se, agora, que só é possível chegar a um comportamento adequa- enunciado; e, como ele nos diz, "não compreendemos o enunciado -- a mos-
do nessasituação na medida em que se tornam compreensíveis para os ou- tração-- a determinação-como etc., se os caracterizamos como síntesee, em
tros as suasdiHlculdades para escrever no quadro. Dito na terminologia da conformidade com isso, os deixamos surgir como o traço característico pri-
teoria dos processosde fala, a teseheideggeriana é, em outras palavras, ini- meiro e derradeiro", pois aí se tateia "como que no escurojunto às estruturas
cialmente uma tese sobre o aspecto elocucional dos enunciados.4i A tese exteriores mais primordialmente concretas" (OC 2 1, 161). É possível que
também diz respeito certamente ao aspecto proposicional, uma vez que Hei- possaparecer desconcertante o fato de Heidegger denominar a aúv+caLÇ
degger quer mostrar sob que circunstâncias se é em geral motivado a cons- uma "estrutura exterior" depois de ter conquistado anteriormente o "como'
truir proposições e como, mediante a construção de proposições, a relação hemienêutico em uma interpretação da aúv+caLÇ. O que se tem em vista,
com algo se altera. Somente isso sobre o que seconstroem enunciados é "ob- porém, é apenas que a aÚv+caLÇ permanece uma "estrutura exterior" en-
jeto" em um sentido expressivo. quanto não a compreendemos como o "como" hermenêutico, pois, no mo-
Por meio disso, o próprio elemento central da interpretação heidegge- mento em que isso se dá, a aÚv+caLÇ passaa ser tomada como um traço ca-
riana do enunciado ainda não foi certamente nomeado. A indicação do con- racterístico do enunciado mesmo.Todavia, Heidegger estaria equivocado se
texto familiar da lida com as coisas de uso não é em verdade por si significa- concebesseessaidéia como uma crítica a Aristóteles. Em verdade, Aristóte-
tiva, mas sim para as conseqüênciasantológicas que podem ser retiradas les nãocompreendeu a aÚv+calç no sentido do "como" hermenêutico, mas
dela. Se se leva a sério a idéia de que essal ida é um descobrir mais originário ele tampouco a tomou por uma determinação do enunciado. EÚv+caLÇ e
do que o enunciar, então é impossível partilhar da tese aristotélica sobre a re- 8taípcaLÇ também são para Aristóteles determinações do ente mesmo; elas
lação da 6uvá cl ê kart\lirvl com o saber, uma relação que se deixa articular o são necessariamenteporque todo XóToç é um XóToç tLvÓÇ.Pof isso, a es-
em uma delimitação de algo. Daí, segue-seuma vez mais que a concepção trutura predicativa do enunciado também está fundada como Reidegger o
aristotélica da mesmidade também se tomou agora problemática. O próprio diria -- no que é "falado": toda ànócflaatç é mostração de algo que se encon-
Aristóteles com freqüência não estáabsolutamenteem condições de indicar tra presentede tal ou tal modo e o "é" também não tem por isso o sentido de
o mpla»óç de algo sem recorrer à lida com ele. Assim, a delimitação de uma uma cópula, mas dá a entender o encontrar-se presente do que está determi-
casanão consisteem dizer que há pedras,tijolos e madeiras; aqueles que ca- nado de tal e tal modo. Esse encontrar-se presente que, como dissemos, Aris-
racterizam uma casa dessa maneira só apontam para ela segundo a possibili- tóteles também designa com o inHlnitivo "ser", é mostrado nos diversos mo-

"Quanto a essaterminologia, çf. Searle ( 1969). ':Cf. Àíe/q#ufca, 1043a16-18

l
58 Günter Figa
r Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 59

totélica do ÀóToç àTro(pavttxoç, mas, com isso, ele acaba por se deparar, por
outro lado, com um limite da ontologia aristotélica, com o intuito de ultra-
passa-lo. Esse limite consiste no fato de Aristóteles interpretar aÚv+eaLÇ e
8taípcaLÇ como "encontrar-se conjuntamente presente" ou "não se encon-
trar conjtmtamente presente". Uma vez que o "não conjtmtamente'' não é ne-
nhum a ptesença, ele perinartece eÍetivamente indeterminado em seu ser. Par
meio do proibitivo pã, o "ser" é mantido afastado como que apenas do que
'não estáconjuntamente:
Isso se mostra de maneira particularmente clara em meio à determina-
ção aristotélica do óv àXvT8éç em À/ef({/7s/ca O 10. Se de acordo com Aristó-
teles não apenaso XóToç àxogavtLxoÇ, mas também o ente mesmo é
àÀTl+éç, então se tem em vista cona isso a acessibilidade do ente para o
XÓÍoç. Dito mais exatamente, o àÀrl+éç das coisas é a acessibilidade de seu
junto" ou "separado", e pode-sedizer que quem descobreé aqueleque asse-
vera o separadocomo separado e o que se encontra conjuntamente presente
como se encontrando coiduntamente presente (àXvl eÚcl pêv b Tà é;trp-
TW,évovdLÓpcvoç 8LDPTP al xai Tà aul'xcípcvov au-rxcia+at/ À/erc@s/-
ca, 105lb3-4). Quem se engana comporta-se em relação a isso de maneira
oposta ao ente(É+cuaTCEL 8ê b tvavTítoç Exuv l Tà xpaTPa'ta/ JWe/(!/bi-
ca, 105lb4-5). Desta feita, uma ilusão só é possível em vista de um tal ente
queou bem seencontra por vezes conjuntamente em sua respectiva detemli-
nação e outras vezes separado, ou bem está sempre em suas detemlinações
junto ou separado.No primeiro caso, a ilusão estáfündanlentada no fato de o
ente não precisar estar necessariamentepresente como está; no segundo
caso, no fato de ele não serapresentado em sua deternlinabilidade específica.
Portanto,o caráter ilusório da opinião(8óta/ ]t4ef(Z/7s/ca,
1051bl 4) que mos-
tra o ente que também pode ser diverso do que a cada vez é vem à tona no ente
mesmo, enquanto o perder de vista o ente em sua determinabilidade específi-
ca só vem a termo mediante a falta de apuro da mostração. Aqui temos a ver
o elemento de coesão, elas são pura e simplesmente "múltiplas". .
com a 8uvá»ct kxLa'rrl»vl no sentido aristotélico, que só designa o ente
É importante perseguir essa ideia se se quiser mostrar que Heidegger como lml universal indetemainado. Não se pode desconsiderar agora que a
se se sente contrariado em última instância pelo formalismo das determi-
concepção do6v àXTl+éç, tal como ela foi esboçada, é caracterizada por uma
nações auvacatç e 8taípcaLÇ, mas por seu valor ontológico conjuntural. E primazia da aúv+caLÇ. Essa primazia da aúV+CaLÇ resulta da detd-minação
em verdade indiscutível que, em um tal isolamento da estrutura fomlal dos
do "ser" como "encontrar-se presente". O ente nunca se encontra presente
enunciados, estes não são vistos mais como açõesde caracterização em um
como separado, mas certas determinações só são dele separadas para o
contexto de experiência. No entanto, paramostrar isso. Heidegger não premi'
XóToç,ou seja: só pode haver opiniões ou enunciados falsos se o ente não
sana ter discutido com Aristóteles. Essa discussão alcança seu ponto de ten-
está acessível apenas em sua presença, mas também em suas detemlinações

==H=1=::1':===:1Í;EU: :lH::===;=';:=: : que não se encontram presentes e não são senão possíveis. De acordo com a
definição aristotélica de verdade, a indicação dessa determinação que não se
encontra presente não poderia ser pensada senão de modo tal que ela se mos-
+:Cf. À/e/cÜs/ca, 1043b4-8
60 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 61

orassepertinente a algo diverso, pois /oda mostração é mostração de algo: bém diz, a coisa de uso é "interpretada" a partir dessa atividade. A estrutura
Além disso, também só se pode dizer uma vez mais que se tem a ver aqui com
dessainterpretação só pode ser apresentadauma vez mais apropriadamen-
uma determinação possível do ente que se encontra presente a partir da orien-
te se se recorre na mesma medida às expressões auv cale e 6LatpcaLÇ:
tação por esseente: possível é aquilo junto ao que, quando ele é reaJlznada Isso desde onde se dá a dotação de sentido precisa ser coligido, reunido ao
falta daquilo que se tinha designado como possível (hall 8ê luva.tàV -toi3'to, tema dessa dotação aúv+calç em cujajunção e reunião reside ao mesmo
â; ê(iv bxáptR h t'uépTeLa ou XéTCTal XCLV'Üv 8ÚvctpLV,oi)8êv êaTat tempo o fato de os dois, o desde onde da dotação de sentido e o seu tema. se-
à8úvaTov/ À/e/(!/h/ca, 1047a24-26). rem separadose mantidos apartados no decurso da dotação. A reunião. a
Para a interpretação heideggeriana de aúv+caLÇ e 8taípcaLÇ é então Junção mesma, só é possível em meio a esse manter apartado e, em contra-
característico o fato de esses dois termos designarem dois aspectos de um partida, o manter apartado mesmo só é possível uma vez mais como esse
contexto uno. Jssojá tinha se anunciado no momento em que se disse, acer- manter apartado determinado em um manter reunido abrangente. Assim se
ca do "como" hermenêutica, que ele é um fenómeno "que envolve nele mostra, portanto, que a significação precisa ser efetivamente apreendida
mesmo um ligar e um cindir"(OC 21, 141). O que isso significa fica com- em função de sua estrutura-como com o auxílio dessasdeterminações for-
preensível quando se remonta uma vez mais à interpretação heideggeriana mais da aiSv cale e 8taípcaLÇ" (OC 2 1, 148). Inicialmente, não é tão im-
da lida com as coisas de uso. Heidegger quer mostrar "que um assim cha- portante compreendercomo é que Heidegger não recorre aqui ao termo
mado puro e simples ter-aí e apreender como: o giz aqui, o quadro-negro, a mterpretação"já introduzido antes,mas fala em "dotação de sentido" e
porta, vistos estruturalmente, não nascem de maneira alguma de uma apre- em "significação".44É suficiente tomar aqui essa"dotação de sentido
ensão direta de algo; ele quer mostrar que, tomado estruturalmente, eu não como um sinónimo de "interpretação". Mais importante é tornar plausível
vou diretamente ao encontro do que é pura e simplesmente tomado, mas o a idéia mesma de uma aÚv+caLÇ que deve ser em si 8Laípcatç. Para tanto,
apreendede tal modo que eujá tinha lidado com ele como que de antemão; podemos nos articular com o emprego desses termos em Aristóteles. Em
eu o compreendo a partir daquilo para que ele serve. Portanto, nessa pura Aristóteles, tinha-se em vista por 8Laípcatç o fato de determinaçõesnas
apreensãodas coisas maximamente próximas do mundo circundante, eujá quais o ente é especificado e caracterizado não se encontrarem conjunta-
sempre fu i /zza/s/cingeno apreender e no compreender ante o que estájusta- mente presentes, e, como Heidegger pensa, a lida com as coisas de uso não
mente dado em um sentido extremo, Cuja estou sempre mais além na com- pode ser compreendida sem um tal "não se encontrar conjuntamente pre-
preensão disso para que e como o que a cada vez o que é dado é tomado. E sentes" em geral. Cada coisa de uso é efetivamente "interpretada" a partir
somente a partir desse como-o-que e desse para-que o que está em questão de pelo menos uma atividade, e essaatividade não é a coisa mesma. É'claro
serve, somente a partir desse para-quejunto ao qualjá sempre estou, retor- que uma tal formulação só teria sentido se também se pudesse dizer inver-
no ao que vem ao encontro"(OC 21, 146). De acordo com essas sentenças, samente que uma atividade "é" uma coisa, o que soa no mínimo estranho.
uma coisa de usojustamente não é descoberta em meio à lida com ela como No entanto, esseestranhamento não se dissipa se se deixa de falar de uma
algo que se encontra presente e determinado dessa e dessamaneira; o fato identidade das coisas com as atividades e se passaa dizer que uma ativida-
de uma caneta-tinteiro ser "algo para escrever" não pode ser observado pode ser determinada pelo fato de que uma coisa é dada expressamente
jLmto a ela, mas só se compreende se se sabe o que é escrever. SÓ se compre- nela. Visto assim, todo enunciado tem a ver com as coisas; ele só pode ser
ende mesmo a caneta-tinteiro de uma n)aneira apropriada ao sentido da lida descrito como essaenunciação determinada se se leva em conto o que a
pensada como descoberta quando se a utiliza para escrever; somente então cada vez é enunciado. Em contrapartida, é impossível conceber anda com
a descobrimos propriamente porque somente então não pode haver mais coisas de uso como ligação expressa com essas coisas: alguém que escreve
nenhuma ilusão sobre "para que" ela é. Heidegger também tenta tocar o
caráter peculiar dessadescoberta ao falarde um "retornar"(OC21, 147) à
Os termos "interpretação" e "dotação de sentido" correspondem no original alemão aos ter-
coisa de uso. O que isso signiHlcafica claro se se leva em conta que toda in-
mos .4z/s&gungeZ)eu/ang. Essestermos são correntemente tomados como sinónimos e traduzi-
terpretação é pensada a partir da perspectiva do uso: é preciso que se tenha
dos simplesmente por interpretação. Em Ser e /e//zpoe ein outras obras desse mesmo período,
empreendido inicialmente lmla determinada atividade para que se tenha contudo, Heidegger faz um uso bastantepeculiar do termo ,4us/egung, na medida em que detec-
em geral ocasião de pegar uma coisa de uso. Assim, como Heidegger tam- termo uma ligação com o verbo grego ÀéTctv. ,4ux/egung diz nesse contexto. antesde
mais nada, articulação do ÀÓToç. (N.T.)

J
62 Günter Figa

não está aí atento à sua caneta-tinteiro; ao menos não quando está realmen=
te concentrado em seu tema e em suas formulações. Nessa medida, seu fa-
r Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade

Como" hermenêttticoe análise do ser-aí

Em shltonia com a reinterpretação da mesmidade como auto-evidência


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zer e a coisa com a qual ele lida são "mantidos apartados um do outro"; só
assim a coisa pode ser usada para uma atividade. A "reunião" consi$1e, em também se pode compreender, então, como se alteram as outras suposições
contrapartida, no fato de a coisa ser"interpretada" a partir da ativida'de; e se ontológicas fundamentais em relação a Aristóteles. Enquanto em Aristóteles
quisermoscompreender o foco da argumentaçãoheideggeriana contra a nos deparamos com uma primazia da aúv cale ante a 8Laípcatç, teremos de
antologia aristotélica, assim como sua teseacerca do caráter derivado da falar agoraantesde mais nada, em Heidegger,de uma primazia da 8LctípcatÇ
estrutura predicativa, então tudo depende de se ter clareza quanto a que ante a aúvtcatç. Não se trata mais de que algo se encontra presente como um
concepção da coisa diversa da de Aristóteles se segue de uma tal orientação no contexto de suasdeterminações,mas de que algo é o que é justamente em
primária pelas coisas de uso. Comojá foidito, a utilização de algo para algo vista do que não se encontra presente nele. A manutenção conjunta de algo
não se acha presente nele mesmo. Em sintonia com uma expressão de Gil- com sua disposição essencialnão subsistemais "nele mesmo", mas somente
no fato de que ele é descoberto nessa disposição. Somente nesse descobrir ele
l)ert Ryle, pode-se mesmo dizer que, em meio à empregabilidade, trata-se
de uma propriedade disposicional que só é descoberta como tal na lida ou é o que é "nele mesmo". Por conseguinte, também temos de pensar, de manei-
ao menos em recurso à lida. Essa propriedade disposicional é de um tipo ra diversa da de Aristóteles, a relação entre possibilidade e realidade. Não se
particular porque não pode se tornar maxi festa por intermédio de um acon- poderá dizer que a disposição de uma coisa de uso "para algo" se concretiza da
tecimento casual, tal como, por exemplo, a fragilidade de um copo, mas so- mesmamaneira que acontece com outras possibilidades. Se nos orientásse-
mente por intermédio de uma atividade. Além disso, a propriedade disposi- mos pela análise da possibilidade, tal como Aristóteles a empreende en] Ade/a-
.#y/ca O, então a disposição "para algo" teria de ser concebida da maneira mais
cional da empregabilidade não é acidental em uma coisa de uso; ela é muito
mais essencialmente o que nessa coisa de uso não se encontra presente, ou, simples possível como uma 8l5vap,LÇTou VCt+eLV,como isso, portanto, que
dito de outra maneira: só sabemos em geral o que ela é quando não nos orien- pode suceder a uma.coisa correspondente em razão de sua constituição. Uma
tamos pelo que se encontra presente. Em verdade, poder-se-ia contrapor a 8ÚvapLÇTou va+civ é, por exemplo, a fragilidade do copo, e só sepode afir-
isso que uma coisa de uso também precisaria, de qualquer modo, encon- marjustiHlcadamente de um copo que ele é frágil se se faz a experiência de que
trar-se por fim presente para que pudesse ser em geral determinável como o vidro de fato estápartido; vista assim,a fragilidade nunca se toma acessível
essacoisa específica. O fato de, como Aristóteles mesmo atesta, só se po- senãopor meio do ter-se-partido. Poder-se-ia pensar que tudo se dá de uma
der determinar uma casa se se leva em conta sua função, e de, somente por- maneirasimilar com as coisas de uso. Tomado estritamente,o fato de algo ser
que se conhece a função, se saber o que é uma casa, ainda não parece falar "para escrever" nunca pode ser dito senão quando se escreve efetivamente
contra a idéia de que algo determinado não pode ser em momento algum com ele. Mas uma tal descriçãonão é, por flm, adequadaa esseestadode coi-
sas. Em primeiro lugar, o caráter disposicional de coisas de uso não é acessível
apreendido senão comiaalgo (jue se encontra presente. De acordo com Hei-
degger, porém, seria preciso objetar aqui que uma coisa de uso não é expe- apenas em razão do uso fático; se se quisesse afirmar isso, então não se poderia
rimentada na lida com ela como algo que se encontra presente. Em última mais tornar compreensível como se pode chegar em geral a um uso. Em verda-
instância, enquanto o ente tal como acontece com as coisas de uso não de, podemos nos enganar inteiramente quanto a para que algo deve ser a cada
for considerado expressamente,é impossível experimenta-lo como um vez usado,isto é, podemos fazer a experiência de sua imitilidade. Não obstan-
ente que se encontra presente. Somente o que é considerado expressamente te, ele precisa ser em todo caso compreendido como "algo para.-ii' quando o
manuseamos. Por outro lado, uma coisa de uso não é ao menos correntemente
pode ser, contudo, determinado como algo que, apesarda mudança das
ou não é essencialmente transformada no que a utilizamos. Se não fosse assim.
propriedades acidentais, permanece o mesmo. Com isso, fica claro que não
se pode falar mais da mesmidade de uma coisa de uso no sentido aristotéli- o uso seria do mesmo modo impossível. De lmla maneira diversa, por exem-
co. Porque uma coisa de uso só é o que é na lida com ela, sua mesmidade re- plo, do que acontece com um pedaço de madeira que talhamos, o caráter dis-
side na/ zes/ z/dada da//da. A lida, uma vezmais, só é experimentada como posicional de uma caneta-tinteiro ficajustamente mantido em meio ao uso. A
a mesma se é caracterizada por uma certa rotina, e, assim, pode-se dizer: a atividade da escrita anteriormente apenasplanejada torna-se em verdade real;
mesmidade de uma coisa de uso reside em sua azrfo-ev/dê/?cfa. mas essaatividade repousade qualquer modo sobre o caráter disposicional da
coisa de uso e é, vista assim, antes uma confirmação desse caráter do que sua
64 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 65

modificação para a realidade. Se as coisas de uso se mostram essencialmente fica uma vez mais: todo vir ao encontro de algo não é, no fundo, nadaalém de
como aquilo que não se acha presente nelas, então se altera, por fim, a relação uma possibilidade de comportar-se. Na situação escolhida por Heidegger
entre o que se encontra presente e o que não se encontra presente. O que não se como exemplo, só se chega a uma determinação exposta ou não do que vem
encontra presente não é mais agora apenas a determinação excluída,dó ente aoencontro porque o que vem ao encontro em verdade chamaa atenção,mas
que se encontra presente, mas o que ele essencialmente é. Se sediz isco, então nãoé, contudo, conhecido. Ele não consegueser interpretado em uma dispo-
duas coisas estão sendo ditas no fundo. Em primeiro lugar, o que não se encon- siçãodeterminada sem que se estejaao mesmo tempo em condições de abdi-
tra presente é mesmo a atividade para a qual algo é passível de ser utilizado. car de uma interpretação. SÓpodemos lidar com ele por meio do estabeleci-
Por outro lado, essaatividade mesma não é apenaspossível no uso dessa lín/ca
mento imediato de uma suposição quanto ao que ele é, e o fato de podermos
coisa, de modo que o que ela essencialmente é só é em conexão com um outro. fazer isso pressupõe que o experimentemos acima de tudo em função de uma
Pensado a partir do "como" hermenêutico, portanto, o que não se encontra
possibilidade. Também essapossibilidade é uma possibilidade "para algo'
presente como um não é apenas múltiplo em relação a ele, mas pertence, além mesmo se não se pensar no modo como se poderia utilizar o que vem ao en-
disso,ao que é. contro; ela é uma possibilidade para um comportamento em geral, ou seja:
Apesar de tudo isso, até aqui se poderia ter ainda a impressão de que as uma possibilidade de ser por si mesmo de uma maneira deterá inada. Assim,
análises heideggerianas são na melhor das hipóteses elucidativas, mas que, em meio à situação esboçadapor Heidegger, formamos uma opinião sobre o
de qualquer maneira, não trazem consequências tão sérias a ponto de se pre- quevem ao encontro, a fim de saber o que estáconosco nessasituação.Che-
cisar empreender uma modificação das suposições ontológicas fundamen- gamosa essaopinião na medida em que nos mantemos ligados às interpreta-
tais de Aristóteles. Sempre se poderia continuar pensando que as determina-
çõesque nos são conhecidas. Em princípio, não faz nenhuma diferença se se
ções conquistadas a partir das análises da coisa de uso se comportariam de trata da interpretaçãode algo ainda indeterminado que vem ao encontro
maneira complementar em relação às determinações, tal como elas vêm à 'como algo" ou da interpretação de algo que se poderia descrever em sua de-
tona a partir de uma orientação pelo modelo do enunciado. SÓse pode afir-
terminabilidade, algo "para algo". Nos dois casos,a interpretação é uma in-
mar que esse não é o caso se se consegue demonstrar o "caráter derivado" da
terpretação "para o comportamento". Isso só fica claro se se compreende o
estrutura enunciativa ante a lida com as coisas de uso. Heidegger tenta levar enunciado a partir da enunciação, e não apenas como uma proposição ex-
a temia essa comprovação ao discutir a pergunta sobre como entmciados em pressa. Se se leva em conta que todo enunciado não abstraído em uma propo-
geral podem ser falsos. Como ele pensa, só se pode esclarecer tal fato se se sição é um comportamento, então também se pode refletir a estrutura da pre-
generaliza a tese do caráter disposicional das coisas de uso e se se mostra que dicação sol)re a estrutura do "como" hermenêutica. A predicação se mostra,
tudo o que é é interpretado inicialmente em meio à estrutura do "como" her- assim,como un] preenchimento da estrutura do "como" hermenêutico: algo
menêutica. O que issosignifica talvez possaser clarificado damelhor maneira precisa ser experimentado em função de uma possibilidade, para que possa
possível em conexão com um exemplo dado pelo próprio Heidegger: "Ca- haver em geral uma interpretação dessapossibilidade. E essa interpretação
minho pela floresta escurae vejo entre os abetosalgo vindo em minha dire- pode ser uma vez mais de modo tal que ela sqa incompatível com lml com-
ção -- uma corça, digo eu. O enunciado não precisa ser explícito. Na medida portamento mais amplo em relação ao que vem ao encontro. Nessecaso, ela
em que me aproximo, vem à tona o seguinte não estou indo senão ao encon- encobre o que vem ao encontro. De acordo com isso, o enunciado falso está
tro de um arbusto; no lidar compreensivo, discursivo, comportem-mede ma-
neira encobridora, o enunciado inexpresso deixou ver o ente como algo di- fundamentado para Heidegger, assim como também estava para,qEistóteles,
no fato de o ente poder ser diverso. Para além de Aristóteles, porém, Heideg-
verso do que ele é"(OC21,1 87). O que vem ao encontro aqui como corça e, ger quer mostrar como o caráter de possibilidade do ente é experimentado.
então, como arbusto certamente não é uma coisa de uso no sentido de que Como ele pensa, somente se se recorre a essa experiência, pode-se tornar
pertenceria à atividade do passeiopela floresta da mesma maneira que uma tambén]plausível como se pode falar em geral do caráter de possibilidade do
caneta-tinteiro à atividade do escrever. Entretanto, se Heidegger fa la aqu i de ente, pois apenasen] uma tal experiência o que não se encontra presente pode
um "lidar", então essanoção é tomada de forma tão ampla que designa todo e ser.Logo que a experiência da possibilidade adquire essadominância e que
qualquer comportamento em relação a algo. Tal como Heidegger pensa, se experimenta a necessidadede falar de uma maneira diversa da de Aristó-
"algo" sempre vem ao ellcontro em meio a um comportamento; e isso signi- teles da 8uvápcl êxLaril»TI, dá-se, segundo a coisa mesma, o passo do "ser'
parao "ser-aí"
66 Günter Figa 67
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade

Seessainterpretação for elucidativa, a mudança heideggeriana dol"ser


"Algo determinado" em sentido eminente são em Platãojustamente as idéias,
como encontrar-se presente" para o "ser-aí" teria a mesma motivação que as e dessasnão se pode dizer que são primariamente correlatos de enuncia.
explicitações antológicas do S(ZPs/aplatónico. Exatamente como em rela- dos.4sEm contrapartida, "ser" é em Heidegger o indeterminado que, na me-
ção a Platão, o que interessava a Heidegger era tornar compreensível como o dida em que é experimentado juntamente com o determinado, se chama
não-ente pode ser. Certamente, não se pretende afirmar com isso que a res- "ser-aí". A "análise do ser-aí" é a análise dessaexperiência e de suaspressu-
posta de Heidegger a essapergunta seria idêntica à de Platão. Enquanto Pla- posiçõessob diversos aspectos
tão pensa o não-ente como o diverso do determinado e o determina como Com a interpretação do conceito heideggeriano de fenomenologiajá foi
algo que é, na medida em que é uma imagem essente(e'LxÜvÓvTOÇ/O soPs- mostradologo no começo como pode ser descrita uma tal experiência do in-
ía, 240b) do ente em sentido expressivo (6vToç 15v/O s(Ús/a. 240b), portan- detemlinado: se a experiência do indeterminado é "fenómeno" e fenómenos
to, um XóToç,Heidegger quer desenvolver o não-ente como a expor/ênc/a do sãocompreendidoscomo aquilo que não se mostra de início e na maioria das
itldetenninado e do passhel de descobertamesmo.Vot \xa\etnxêd\a
desse vezes,então a experiência do indeterminado só pode ser liberada mediante
passo, tanto a pergunta sobre a verdade quanto o termo "ser" passam a rece- uma desconstruçãodo determinado. SÓassim pode se tornar também inteli-
ber um novo valor conjuntural. No que concerne à pergunta sobre a verdade, gível o fato de o determinado ser uma aparição do indeterminado. De acordo
a interpretação da verdade enunciativa só serve em última instância, em Hei- com isso, o determinado e o indeterminado precisam ser desenvolvidos em
degger, para expor o fenómeno do descobrir no contexto do que é passível de sua essênciae isso significa uma vez mais: é preciso que se mostre como o
descoberta, e, então, para mostrar que o contexto do que é passível de desco- indeterminado é experimentado em sua diferença ante o determinado. Fica
berta é ele mesmo propriamente a "verdade". Por isso, a relação entre verda- claro que se trata, para Heidegger, de uma tal di ferença em meio à análise do
de e não-verdade também não pode mais ser pensada a partir da orientação 'ser-aí" quando ele introduz o termo. Em ST, isso estáformulado da seguinte
pelos enunciados. Ao contrário, ela precisa dizer respeito à possibilidade de maneira: "o ser-aí é marcado ontologicamente pelo fato de que, para esse
nos "fecharmos" ou de nos "abrimlos" para o contexto do que é passível de ente,ein seu ser, o que está emjogo é esseser mesmo": "Mas à constituição
descoberta. Como ainda se mostrará de maneira mais clara, a pergunta sobre ontológica do ser-aí pertence então a característica de em seu ser ele estabe-
a verdade não é, no ftlndo, outra coisa senão a pergunta sobre a liberdade. Em lecer lula relação de ser com esse ser. E isso diz uma vez mais: o ser-aí se
contraposição a isso, a verdade enunciativa se deixa determinar da maneira compreendede alguma maneira e com alguma dose de explicitação em seu
indicada "pragmaticamente'': um enunciado é "verdadeiro" quando é com- ser. E próprio desse ente que seu ser se Ihe abra e manifeste com e por meio
patível com um comportamento interpretativo mais amplo. Para evitar a de seu próprio ser. Compreensão de ser é ela mesma uma determinação do
confusão entre a verdade no sentido expressivo e a verdade enunciativa, Hei- surdo ser-aí"(Sr, 12). O que chama a atenção nessassentenças é inicialmen-
degger fez mais tarde uma diferença em Z)a essênc/a da verdade entre "ver- te a denominação heideggeriana do "ser-aí" como um ente. Com isso. ele
dade" e "correção", sem que o termo "correção" designe certamente apenas despertaa impressão de que seu termo só designa a "nós mesmos" de uma
a verdade enunciativa. Verdade enunciativa é muito mais apenas um caso es- maneira artificial e de quejá se saberia, se se tivesse c lareza quanto a isso, de
pecial da "correção". Com efeito, não se pode reduzir a concepção de verda- quetrata o discurso. Essaimpressão é intensificada ainda mais quando Hei-
de em Platão a uma concepção de verdade enLmciativa, pois mesmo nas ex- deggerdiz que o "ser-aí" tem em relação ao seu ser "uma compreensãode
plicitações de O s(Ús/a o que estáemjogo é trazer à tona a questionabilidade ser". SÓmuito dificilmente se consegueevitar pensaraqui essa.relaçãode
de uma orientação irrefletida pela linguagem. Apesar de todas as diferenças, maneira análoga a uma ligação objetiva, e, com isso, se perde co;lpletamen-
a "verdade" em Platão, assim como em Aristóteles, é, sem dúvida alguma, [e de vista o que estáefetivanlente em questão. É certo que o termo "ser-aí
pensada como a presença de algo determinado para o conhecimento, en- designa,em Heidegger, "nossa maneira de ser" e também é certo que somos
quanto Heidegger, como se mostrará, identifica "verdade" com o que está entesque se deixam determinar e se autodeterminam segundo um ou outro
paraalém do determinado. No que se refere à significação do termo "ser", as aspecto.Não se pode, contudo, comojá foi dito à guisa de introdução, con-
coisas se comportam de maneira similar. Em Platão também. "ser" é lmi ter-
fundir o "ser-aí" com determinadas pessoasagindo e ler a análise heidegge-
mo para a presença de algo determinado, ainda que essapresença não sqa
compreendida no sentido do que se encontra presente para um enunciado.
*sCf. Wieland( 1982), especialmente p. 95
68 Günter Figas

dana do ser-aí como unia descrição tmiversalizante de tais pessoas.Em vez


de falar de "compreensão de ser", também seria mais apropriado por isso
compreender o termo "ser-aí" como designação para aquele modo de ser que
écaracterizado pela realização da diferença entre determinação e inçléÍermi-
nação. Nesse caso, "ser-aí" é uma estniüira,junto à qual é preciso pensar con- Capítulo 11
comitantemente o comportar-se nessaestrutura. Porque isso é assim, Hei-
degger também pode denominar as determinações antológicas do "ser-aí
existenciais" e diferencia-las das "determinações dos entes que não são
marcados pelo caráter de ser-aí", denominadas "categorias" (Sr, 44). SÓse SER-AI COMO SER-NO-MUNDO. DETERMINAÇÕES
abre uma fenda ontológica com essa diferenciação,4ó porém, se se confun- FUNDAMENTAIS DA LIBERDADE E DA AUSÊNCIA DE LIBERDADE
dem "pessoa" e "ser-aí". E indiscutível que pessoas podem ser especificadas
e caracterizadas em enunciados; o "ser-aí", em contrapartida, só se deixa
conceber em meio a determinações ontológicas que tornam distintamente 1 3. Auto-evidência e liberdade
compreensível um comportamento, que também pode ser naturalmente des-
crito como comportamento de pessoas,como um comportamento em uma Parao programa filosófico deSe/' e /e//zpo,as análises do ser-no-mundo
estrutura. Essecomportamento é, então, determinado pela sua problematici- têm simplesmente um caráter preparatório. Nessasanálises, o "ser-aí" ainda
dade como comportamento nessaestrutura, pois a estrutura nâo é ape/7ases- não é considerado em verdade sob o ponto de vista da relação de liberdade e
trutura do comportamento.A "relação ontológica" de que fala Heidegger ausênciade liberdade. Dito na terminologia heideggeriana, há uma abstra-
não é, por conseguinte, para ser interpretada como "ligação a algo", mas não ção da diferença entre "impropriedade" e "propriedade", a Himde trazer à
tem em vista, por nim, senãoa experiência do comportamento em sua limita- tona o "ser-aí... no modo indiferente em que se encontra de início e na maio-
ção. Certamente, somente as interpretações que virão em seguida poderão ria dasvezes", o ser-aíem sua"cotidianidade"(ST, 43). Mas mesmo asanáli-
deixar claro o que isso significa. Não obstante,já podemos ver em que medi- ses em que o que está emjogo é o "ser-aí" na diferença entre impropriedade e

da é impossível compreender o "ser-aí" no sentido de um processo, pressu- propriedade não chegam ainda ao que Heidegger quer em última instância
posto que a tesecitada é pertinente. Realizaçõessão sempre modos de com- alcançar, pois elas não nos dão nenhum esclarecimento acerca do valor con-

portamento, e não se pode falar de lmla limitação do comportamento se to- juntural do filosofar mesmo e de como ele é possível. No fundo, a explicita-
dos forem interpretadosa partir do recursoa um "comportamento originá- ção da impropriedade e da propriedade só é uma explicitação menos abstrata
rio". "Ser-aí" designa uma coisa diversa da ação transcendental originária de do ser-no-mundo. Mas somente como ser-no-mundo não se consegueilumi-
um sujeito. Contra essaasserção se poderia agora buscar validar a interpreta- nar o filosofar, e, ao tentar fazer isso, Heidegger fracassou em ST. Todavia,
ção desenvolvida das suposições antológicas fundamentais de Heidegger. issocertamente não diz que o significado do fi losofar pudesseser apresenta-
Uma vez que todos os conceitos oncológicos fundamentais são conquistados do por meio de uma mera abstração do que Heidegger denomina o ser-aí
a partir da orientação pela descoberta, todos os entestambém são reconduzi- pré-ontológico"(ST, 12). As determinaçõesnas quais uma concepçãodo fi-
dos, como se poderia objetar, à capacidadede constituição de um SLljeitode- losofar pode ser desenvolvida só podem ser muito mais conquistadas na me-
nominado "ser-aí". Contra isso fala, sem dúvida alguma, o fato de não se dida em que adentramos inicialmente a análise do "ser-aí pré-(#tológico
conseguir absolutamente tornar inteligível o comportamento no ser-aí sem em sua indiferença e em sua diferença. Mesmo que a investigação da indife-
levar em conta as coisas. Dito de outra forma, contra uma interpretação fi- rença abstraia de determinações importantes, temos de qualquer modo de
losófico-subjetiva da análise do ser-aí heideggerianajá fala por si só a tese começar por ela se quisermos ter acima de tudo a chance de compreender de-
de acordo com a qual o "ser-aí" precisa ser caracterizado como "ser-no- terminações ulteriores e não apenastoma-las como os temposfamiliares que
mtmdo' elas entrementesse tornaram. Apenas em conexão com a investigação hei-
deggeriana da "indiferença" poden)os desenvolver a determinação funda-
mental da liberdade, sobre a qual se constrói a interpretação da liberdade em
"l'ugendhat(1979), p. 185.
suadiferença.
70 Günter Final Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 71

+
Sequisermos compreendero que Heidegger tem em vista com a expres- Utensílio e obra
"ser-no-mundo", nos veremos inicialmente remetidos para a sua expli-
Tal como a própria fórmula "ser-no-mLmdo"já dá a entender,"mundo:
caçãodo "em" presentenessafórmula. Tal como Heidegger quer mçlstrar em é uma determinação do ser-aí, ou, como Heidegger diz, "lml caráterdo ser-aí
articulação com uma derivação etimológica de J. Grimm: "EiJÍ"' (/n) não
mesmo"(ST, 64). Tanto mais espantosopode-se, então, considerar o fato de
possui originariamente nenhuma significação espacial, mas "provém de ü- Heidegger começar sua explicitação do "mundo" com a análise do ente que
nan-. morar, Aab/rara, manter-se; 'junto a' signinlca: estou acostumado, fa-
não possui o modo de ser do ser-aí e como ta] é denominado "intramunda-
miliarizado com, costumo cuidar de algo; ele tem a significação de co/o no
no". Como ele mesmo diz, o fato de o "mundo" ser um existencial não exclui
sentido de bebi/o e dí/fgo" (ST, 54). Como sempre acontece em meK) ao seu
que"o caminho da investigação do fenómeno 'mundo' prec/se ser tomado a
recurso à filologia, a idéia a que Heidegger chega aqui não é dependente da
partir do ente intramundano e de seu ser" (ST, 64).2 O esclarecimento desse
correção de sua derivação. Não se deveria ler Heidegger nesseponto de ma-
procedimento reside na determinação do "serjunto ao mundo" como fami-
neira diversa de Aristóteles ou Heráclito, para os quais etimologias e falsas
liaridade. O que a familiaridade é só pode ser esclarecido se mostrarmos com
etimologias têm uma função comparável.i A partir da derivação heidegge-
o que se pode estar em geral familiarizado. No entanto, comojá sabemos, fa-
riana do "em"(fn) resulta, portanto, uma primeira determinação do "ser" ci-
miliare auto-evidente é aquilo com que lidamos. Apesar disso, seria equivo-
tadona fórmula; «ser-em"significa: construir,empreender(co/o),e,em ver-
cado pensar que se acabaria por ter a ver uma vez mais com os mesmos pro-
dade. de uma tal maneira que essesmodos de comportamento são levados a
blemas que se apresentavamna interpretação heideggeriana do ÀóToçàxo-
termo como morar, pemlanecer (Aab//o), e são determinados por uma esco-
(pctvvLxÓç.Enquanto o que interessavalá era desenvolver uma outra concep-
lha do que é a cada vez apreciado (d///go). O mais importante é aí inicialmen-
ção do ente em conexão com a determinação da descoberta,trata-se aqui da
te a interpretação do ser-em como "morar", pois essainterpretação ainda é
pergunta sobre o contexto da descoberta,que não é articulado em enuncia-
complementada por un] aceno em direção à conexão entre "em" e "sou": "0
dos. Como Heidegger quer mostrar, só chegamos a conceber apropriada-
termo 'sou' está coligado ao 'junto a'; eu sou diz uma vez mais: eu moro...,
mente essa descoberta não proposicional se não nos orientamos primaria-
me mantenho no... mundo, como junto ao que é familiar desse e daquele
mentepelo que é sabido nela expressamente.Para dizê-jo por intermédio de
modo. Ser entendido como inüinitivo do 'eu sou'... significa morarjunto a...,
um exemplo: a caneta-tinteiro é, em verdade, interpretada no escrever. É a
estarfamiliarizado com..." (ST, 54). Se tentarmosdar uma formulação ao
caneta-tinteiro, porém, que possibilita pela primeira vez o escrever, e não
que Heidegger diz aqui, então se chega ao resultado de que o ser-em um
apenasela. Visto assim, Heidegger compreende a elaboração de seu concei-
mundo deve ser compreendido como serjunto ao mundo. De início isso é
to de "mundo" como uma correção do conceito de TéXvrl, tal como ele é de-
tudo menos claro; sobretudo porque, segundoa interpretação heideggeriana,
senvolvido por Platão e Aristóteles. A fim de elucidarmos em que sentido a
em" e "sou" significam o mesmo, a saber,"morar". Ê certo que Heidegger
TéXVTItambém tem de ser pensada a partir de uma 8uváp,CL cala'rTW.H, au-
oferece um ponto de sustentação para a diferenciação entre essas duas carac-
xilia bastante adentrar de início ao menos uma vez as determinações essen-
terizações, uma vez que só esclarece no segundo caso o "morar" como um
ciais de TéXvvl. TéXVTI é um saber produzir em sentido nlaximamente am-
estar familiarizado com...". Além disso, ele denomina o "ser-enl" uma ex-
plo. Mesmo o restabelecimento de algo, por exenl plo, da saúde pelo médico,
pressão"formal", enquanto o "'serjunto a' um mundo, no sentido a ser inter-
ou a apresentaçãoe a exibição musical podem ser compreendidos segundo o
pretado n\ais devidamente do emergir no mundo, deve ser 'fundado' no
modelo da téXvvl. O fazer do médico, do músico e do carpinteiro sãocompa-
ser-em" (ST, 54). Consequentemente,todo "serjunto a um mundo" é um
ráveis entre si na medida em que cada um dessescasos traz à tona em lula
ser no mundo", mas não o inverso, e serápreciso mostrar como essecontex-
obra (êpl'ov) uma habilidade, um saber disposicional. A obra não é nenhum
to fundacional precisa ser pensado. Como é fácil perceber que a familiarida-
resultado, que também poderia permanecer de fora, mas nela e apenas nela a
dedo "serjunto aum mundo" correspondeà "cotidianidade", é aconselhável
habilidade daquele que domina uma 'téXVTIé real. Assim, Aristóteles nos
começarpor ela.
fala que a arte do arquiteto se encontra no que é construído, vindo-a-ser e
sendo,portanto, ao mesmo tempojunto com a casa(h Tdp dcxo8ÓpTlaLÇêv

iEm Aristóteles, cf. .EN, 1140bl 1; em Heráclito, cf. Diels/Kranz B 2, p. 48. :Itálico estabelecido pelo autor. (N.T.)
72 Günter Figal Mártir Heidegger:Fenomenologiada Liberdade 73

.tÓ dLxo&)poupévy, xaÜ ãpcE TÍ-ÍvczcEtxai êa'tl -tR dLxÍa/ À/e/c!/h/ca.: no uso,masna consideração teórica, e que, então, também pode ser objeto de
1050a28). Indo além, a obra é também o ente rea!, a partir do qual os instru- enunciados.Seo produtor está familiarizado primariamente com o utensílio,
mentos que são necessáriospara a sua produção são determináveis em,sua entãoa ligação com a obra a ser produzida também precisa se tornar compre-
utilidade e as partes a partir das quais ele deve vir a ser são determiiíhveis ensível a partir da lida com o utensílio.
como partesdessetodo. Tomar a obra a ser produzida compreensível a partir da lida com o uten-
SeHeidegger se liga, por um lado, em suaspróprias análisesa essecon- sílio não significa agora derivar simplesmente da lida com o utensílio a re-
ceito de TéXVH,a obra não se acha,por outro, da mesma maneira no centro de presentaçãoda obra. Como Heidegger não tematiza absolutamenteessepro-
sua concepção. Não está em questão para Heidegger pensar a obra, tal como blema,é possível supor que, quanto à representaçãoda obra, ele concordaria
com a asserçãoplatónica de que o produtor está referido aqui ao usuário. O
Aristóteles, como meta e acabamento(téXoç/ À/e/(!/h/ca, ] 050a21). Ao
interesseheideggeriano volta-se muito m ais para o "modo de ser" do utensí-
contrário, ele se interessa muito mais pela obra "que se acha em trabalho'
pois ela é "a obra que vem ao encontro principalmente na lida ocupada"(ST, lio porque ele quer tornar compreensível a partir dessemodo de ser em que
medida o produtor pode dedicar sua atençãopara a obra em geral. O que ele
70). Se tivermos presenteainda uma vez que TéXvrl é uma forma do saber,
diz quanto a isso parece à primeira vistaj á ser conhecido a partir de sua prele-
não teremos dificuldade em perceber quais são as conseqüências dessa mu-
dança de acento. A 'téXVTI é saber. No entanto, ela é um saber acerca do &8oç ção sobre a Z.óg/ca. O "utensílio" é determinado como "algo para.-.", e, no
de uma obra a ser produzida, e, por isso, Aristóteles pode identificar a'téXVTI que concerne à "estrutura 'para'", isso significa que nela reside "lmla /'(:He-
rênc/a de algo a algo"(ST, 68). Poder-se-ia pensar que essa é apenasuma ou-
diretamente com o ã8oç (h T(ip TéXvvl xà d&)ç/ À/erc!/h/ca, 1034a24). Não
é fácil pensar,de mais a mais, que o quese precisater em vista en] meio à pro- tra formulação para o que foi denominado "interpretação" na preleção mais
dução de algo é apenas o "aspecto" de uma obra a ser produzida. Quando antiga sobre o conceito detempo. Considerado superficialmente, é claro que
setem a ver com a mesma coisa, e, não obstante, essacoisa é acentuada agora
Platão, no livro décimo da Repzíó//ca,a partir do exemplo do arreio, explicita
de maneira diversa. Isso alga claro quando Heidegger trata do caráter não
o que temos de compreender pelo ã8oç de uma obra a ser produzida, ele dei-
manifesto que é peculiar àlida com o utensílio: "A lida a cadavez talhada em
xa claro que o produtor precisa conhecer a função disso que ele quer fazer.
Não é aquele que faz os arreios, portanto, mas o cavaleiro quem sabe melhor função do utensílio, a lida na qual unicamente ele pode semostrar de maneira
genuína em seu ser, por exemplo, o martelar com o martelo, nem czpree/7de
como um arreio deve ser constituído, e o produtor deve confiar no que o ca-
esseente tematicamente como uma coisa que se dá, nem mesmo conhece o
valeiro Ihe diz acerca da constituição correra do arreio (Repzíó//ca, 60 ] c).
uso emjogo na estruturautensiliar como tal. O martelar simplesmentenão
Mesmo se o saber do d&)ç não tiver nada em comlml para o produtor com o
estabelecimento de uma relação intencional com um objeto, mas se mostrar tem ainda um saber sobre o caráter utensiliar do martelo, mas se apropriou
desseutensílio de tal modo que não é possível um uso mais apropriado. Em
como o saber não-proposicional de lula "imagem originária" que dirige o
unia tal lida imersa no uso, a ocupação se subordina ao para quê constitutivo
respectivo trabalho,' o que produz precisa representar para si de qualquer
do respectivo utensílio" (ST, 69). ''Ocupação" é aqui lml termo que designa
modo o uso da obra que ele faz. A concepção da TéXVTIem Platão e Aristóte-
lml "modo de ser" do "ser-no-mundo", a saber, todas as maneiras de com-
les é orientada por essarepresentação.A partir daí, também se pode tornar
portar-se que apontam para uma lida com um ente, que não se mostra como
plausível o sentido da mudançade acentoheideggeriana. Se a obra a ser pro-
duzida tem uma primazia no conceito de TéXVTI,então não se toca a au- ser-aí". Heidegger concebeessetermo de forma tão ampla, que chegames-
mo a abarcar concom itantemente os "modos deficientes deixar dç!fazer. des-
to-evidência peculiar do saber intrínseco à produção; permanecesem ser le-
cuidar, abdicar, descansar"(Sr, 57). Mesmo nessesmodos acabamospor li-
vado em conta com o que, afinal, o produtor estáfamiliarizado. Ele não está
dar de uma maneira ou de outra com utensílios; por exemplo, em meio ao
justamente familiarizado com a obra que efetivamente precisa representar
descansoem lmla poltrona. Justamente em meio a tais modos podemos tor-
para si. Ao contrário, ele está familiarizado com as coisas que ele mesmo
usa.Heidegger não fala, aliás, em Sêde "coisas" ou "coisas de uso". mas de nar presente para nós de forma particularmente boa o caráter não manifesto
do utensílio que está em questãopara Heidegger aqui. Heidegger leãoquer,
utensílios, a Hinode reservar o termo "coisa" para o que é experimentado não
em verdade, excluir o fato de que também se pode refletir sobre o caráter
apropriado de um utensílio para determinados modos de comportamento,
3Cf. Górg/ai, 503d6.
74 Günter Figal 75
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade

por exemplo, sobre a qualidade dos martelos ou o conforto da poltrona. Nãd


tar expresso a cada vez segundo várias perspectivas para o produtor porque
é porém em uma tal reflexão, mas sim na lida completamente não problemá=
o que está sendo feito o remete para esse contexto. Heidegger denomina o
tecaque se revela o "modo de ser" do utensílio, a "manualidade" (ST, 69). contexto que abrange a obra "totalidade referencial" e diz que essatotali-
Como o utensílio tem a peculiaridade de "como que se retrair" em sud'ma-
dadeé "suportada"pelaobra(Sr, 70).
nualidade(ST, 69), ele sempre"remete" aqueleque lida com ele para algo di-
O que isso significa não bica claro sem mais. Heidegger não diz aqui
verso. Em meio à produção de algo, ele o remete para a obra. Ele remete para
nem-- como em geral em Sr-- o que ele entende exatamente por um todo ou
além de si, sem se tornar, a partir disso, indiferente. Em articulação com essa
por uma totalidade, nem estáevidente, caso a obra seja interpretada a partir
idéia podemos tornar compreensível também por que Heidegger distingue
de uma multiplicidade de referências, em que sentido ela deve "suportar"
entre "referência" e "ligação". Enquanto "ligações" podem ser constatadas
essamultiplicidade que, além do mais, é uma totalidade. No que diz respeito
em proposições enunciativas e, para alguém que constata uma ligação, os aoprimeiro ponto, podemos compreender o que é um a "totalidade referen-
dois momentos da ligação são expressosda mesmamaneira, a "referência" é
cial" se compreendermos o "todo" em articulação com Aristóteles como o
pensadaa partir da perspectiva da experiência e designa um comportamento uno que é mantido junto (CiÀov XéTCTal... zà xcpLéXo\i 't(i vcpLCXÓp.eva
expresso,um comportamento em relação a algo expresso,para o qual o cará- 6a'tc gv 'tl erLVUL
tXCLva/À/e/({/h/ca,1023b26-28).O que mantémjunto
ter não manifesto de um outro é pressuposto. Por isso, seria preciso "mesmo
seria então a referência mesma, e o que é mantidojunto, a multiplicidade do
que fosse mostrado que a própria ' ligação', por causade seu caráter genéri- que está e do que não está expresso uma multiplicidade na qual se mantém
co-formal, tem sua origem ontológica em uma referência" (SZ, 77). Heideg-
a lida ocupada. A multiplicidade é "algo uno" porque tudo nela -- estala ou
ger denomina a "circunvisão" um comportamento que pode ser referido a
não expresso é determinado pela referência; e, em verdade, de um modo tal
partir de algo não manifesto para algo expresso:"circunvisão" é a visada que
que os momentos múltiplos referem-se uns aos outros e tudo pode ser algo
se direciona para a obra, seguindo a referência.
referencial ou algo que é referido a algo referencial. O texto de S7'não dá ne-
No sentido da manualidade, então, não apenas o utensílio, mas tam-
nhuma resposta para a segunda pergunta acerca de como a obra suporta essa
bém a obra possui um caráter não manifesto. Essaidéia deixa de ser espan- totalidade referencial. Certamente, é possíve] tomar como fundamento para
tosa se levarmos em conta o fato de Heidegger sempre se orientar a partir isso um impasse de Heidegger, uma vez que ele nem quer al)dicas do concei-
da obra que está sendo feita. Por isso, ele também pode decompora obra em to deobra nem quer aplica-lo no sentido aristotélico. Ele nãopode al)ditar do
uma série de referências. A obra remete o produtor ao "para quê de sua apli-
conceito de obra porque sem ele não se consegue tornar inteligível o caráter
cabilidade", pois "ela só é, por sua vez, sobre a base de seu uso" (ST, 70). não manifesto do utensílio, assim como a coordenação de determinadas refe-
Em meio à produção de algo não se está porconseguinte ligado ao que deve rências. Todavia, como Heidegger pensa a obra, por um lado, como algo ina-
ser produzido como a un] objeto, mas só se realiza alguma coisa se, a partir cabado e, por outro, a pensa a partir de seu uso futuro, ela minha é visualizada
do que se tem sob as mãos, se consegue alcançar a referência à representa-
como a realidade da produção. Logo que ela se torna real, ela se retrai para o
ção de seu uso. Para que se possa representar em geral seu uso possível, o interior da lida ocupada do usuário e tem então, "por sua vez, o modo de ser
que está sendo feito não pode ser ele mesmo manifesto. Além disso. reside
do utensílio"(S7, 70). O fato de a obra "suportar" a totalidade referencial só
na obra a "referência a materiais"(S7', 70); e, por fim, a obra "é talhada para pode significar que, como utensílio possível, ela é aquilo que a realização da
o corpo de quem a porta e utiliza, esse'está' concomitantemente presente ocupação circunvisiva coloca a cada vez em movimento. Mas cimo a obra
no surgimento da obra"(ST, 70). Nessa tríade composta a partir de uma for-
só é o que é "em razão de seu uso"(S7, 70), em meio à produção-das obras o
ma representada, de um material e de um usuário podemos perceber uma que está em questão não é nada menos do que a lida ocupada mesma, com a
vez mais sem muita dificuldade as "causas"(ofí'tta) concebidas por Aristó- diferença apenas de que essa não é a lida ocupada do produtor. Por isso,
teles, a saber, d&)ç, i3Xrle TéXoç(.l/e/c!/h/ca, 1013a24). No entanto, o que como Heidegger a pensa, a ocupação circunvisiva também não é nenhum
estáemquestãoparaHeideggernãoémostraraforma,omaterialeafinali- 'trabalho alienante" no sentido de Marx. SÓse pode falar de um tal trabalho
dade como aquilo de onde surge algo que se encontra realmente presente. se, de acordo com a concepção aristotélica, a produção tiver na obra a sua fi-
Ele quer chamar muito mais a atenção para o fato de que o que está sendo
nalidade e a sua realidade, mas a obra é retirada da disponibilidade do que a
feito só é possível em um contexto que o abrange, um contexto que pode es-
produz. Em sintonia com a concepção heideggeriana, em contrapartida, tra-
76 Günter Flgal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 77

ta-sejustamente de dissolver a realidade da obra uma vez mais na possibili- formar-se", e Heidegger pretende tornar claro inicialmente o que isso signi-
dade do utensílio.
fica lmla vez mais "de maneira antiga", portanto, em meio à realização sin-
Mesmo o termo "utensílio"já aponta para o seu caráterde possibilidade. gular de uma lida ocupada: "Deixar-conformar-se significa onticamente: dei-
Esse tempo é um s/ngzí/are /anrzrm, e, quando Heidegger diz que "tomado es- xar um manual ser de tal e tal maneira no interior de uma ocupação fatiga, dei-
tritamente" um utensílio nunca é(ST, 68), ele não tem em vista que uÚ uten- xa-lo ser co/zvoele é agora e co/ 7 0 gire ele é desse modo" (Sr, 84). Conse-
sílio é uma multiplicidade de entes que estariam à mão e seriam acessíveis qüentemente,deixamos o manual conformar-se com algo quando o deixa-
isoladamente em sua manualidade, de modo que o utensílio poderia ser apre- mos repousar sobre si mesmo, quando não Ihe atribuímos uma aplicação e
endido em sua multiplicidade como uma soma. Como Heidegger mesmo o estamos,por isso, em condições de usá-lo "para algo". Dito de outra manei-
faz em sua análise, se se especifica um utensílio singular, então a única coisa ra, não podemos interpretar algo de maneira disposicional se nos concentrar-
que se mostra no Rindo com isso é que a análise articulada necessariamente mos em sua constituição presente ou mesmo se o alterarmos em sua consti-
em proposições enunciativas não pode ser, em última instância, adequada tuição. Em sintonia com essaobservação, podemos também compreender
para o utensílio em sua manualidade. Na medida em que falamos sobre algo, como Heidegger chega em geral ao temia "conj untura". O termo "conjuntu-
o transformamos em objeto. No entanto, somentese se descreve como algo é ra" em alemão (Beba/7dfn/s) é, por um lado, equivalente a "propriedade" e
experimentado de maneira não objetiva pode-se tornar ao mesmo tempo dis- tem, por outro lado, o aspectodo deixar-conformar-se. O termo "proprieda-
tinto que ele não é, nele mesmo, nenhum objeto. de" é reservado por Heidegger para coisas e só designa, por isso mesmo, o
Para a descrição de um utensílio singular há, contudo, uma condição ne- que se pode constatar quando alguém se liga a algo(ST, 73). Em contraposi-
cessáriaque não foi levada em conta até agora. O utensílio precisa poder ser ção a isso, a conjuntura não diz o qz/ealgo é, mas co/lzo o qtre ele é. Portanto,
expresso justamente em sua não-objetualidade, se é que deve ser possível algo não éjustamente "descoberto" em sua conjuntura se nos ligamos a ele
tornar clara essasua não-objetualidade. Ele se torna manifesto quando se Ao contrário, a descoberta conj untural só se dá se nos abstraímos dele. Ele só
mostra como inutil izável ou inapropriado, quando não está presente ou obs- se deixa interpretar "como algo" quando o "deixamos ser", de modo que a
taculiza a lida ocupada.Nesse caso, a "referência constitutiva do para quê a realização da interpretação nunca pode ser pensada senão conjuntamente
lml para isso... é perturbada" (ST, 74), de modo que o utensílio não remete com um deixar.
mais para além de si. Assim, ele se torna um "ente simplesmente dado". Isso Essaidéia recebe ainda uma nova inflexão quando Heidegger interpreta
não significa, porém, uma vez mais que ele agora só se encontra presente. "0 o deixar-conformar-se "ontologicamente": "Deixar 'ser' antecipadamente
caráterde ente simplesmente dado" tem em vista aqui a privação da manuali- não diz trazer algo antesde tudo para o interior de seu ser e produza-lo, mas
dade; a manualidade "não desaparece simplesmente, mas como que se des- sempre a cada vezjá descobrir um 'ente' em sua manualidade e, assim, dei-
pede no fato de o inuti]izáve] saltar aos olhos" (ST, 74). O que antes não era xa-lo vir ao encontro como o ente desse ser. Esse deixar-conformar-se 'aprio-
manifesto mostra agora esseseu caráter não manifesto que foi perdido. rístico' é a condição de possibilidade para que o manual venha ao encontro,
de modo que o ser-aí, na lida antiga com o ente que vem assim ao encontro,
Conjuntura e liberação pode deixa-lo conformar-se aí no sentido antigo. O deixar-conformar-se
Ao introduzir o termo "conjuntura", Heidegger quer apreender mais compreendido em termos oncológicos, em contrapartida, diz respeito à libe-
exatamenteo caráter não manifesto e a não-objetualidade do utensílio: "0 ração de cada manual como manual, quer ele tenha aí, tomado dç maneira
antiga, sua conformidade, quer ele sqa muito mais um ente quejustamente
ente é descoberto na medida em que, como esseente que é, está referido a
algo. Essealgo tem a sua conformidade co/lí ele./tfn/o a algo. O caráter onto- aí nâo tenha onticamente a sua conformidade; quer ele sqa, em outras pala-
lógico do manual é a conyzrnr&íra.
Na conjuntura reside: deixar algo confor- vras, um ente com o qual de início e na maioria das vezes nos ocupamos, que
mar-se com algojunto a algo. A ligação do 'com...junto a... deve ser indica- não deixamos 'ser' como o ente descoberto, mas o elaboramos, o aprimora-
dapelo termo referência"(ST, 84). Uma vez que a "conjuntura" é aqui deter- mos, o decompomos. Ojá-sempre-ter-deixado-a-cada-vez-confomaar-se que
minada por lml recurso à referência, essas sentenças não oferecem nada de libera para a conjuntura é um apr/or&//co perde/fo, que caracteriza o modo
novo. Se a "conjuntura" não significa simplesmente a mesma coisa que a de ser do ser-aí mesmo. O deixar-conformar-se compreendido ontologica-
referência", isso se deve ao fato de na "conjuntura" residir um "deixar con- nlente é a líberação antecipada do ente para a sua manualidade intramundo-
78 Günterfiga Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 79

circundante" (ST, 85). Essapassagempossui uma significação central para. precisamosnos inserir agora na questãosobre se o "aberto", do qual fala Hei-
toda a argumentaçãoquesesegue.A partir dela, podemosconquistarjusta- degger,foi compreendido de fato pelo pensamento ocidental em seu come-
mente a determinação fundamental da liberdade; uma determinação que ço.5Mais importante do que isso é tornar plausível como o próprio Heideg-
também é significativa para o desdobramento da l iberdade em sua difefénça. ger pensa esse"aberto", para então clarificar a significação do dei-
De início, pode-sefacilmente clarificar por que Heidegger denomina ''onto- xar-conformar-se compreendido ontologicamente. No que diz respeito ao
lógica" a sua interpretação do deixar-conformar-se. Não se trata mais, agora, primeiro ponto, ainda não se pode pensar aqui o "aberto" e a "abertura" tal
apenas da interpretação em suas realizações singulares, mas da manualidade como aparecem mais tarde em conexão com a pergLmta sobre "Tempo e
como tal. Com o discurso acercado deixar-conformar-se compreendido on- Ser", isto é, sem levar em consideração o ente. O al)fartode que Heidegger
tologicamente, deve-se tornar compreensível como a manualidade em geral nos fala aqui não é nenhtmla propriedade do ente, mas o ente o traz "como
é possível. A "manualidade em geral" não é mais para ser pensada segundo o queconsigo", de maneira que "aberto" e "essente" são idênticos em ao me-
modelo da conjuntura, e isso também significa que, em meio à interpretação nos um aspecto:no aspectojustamente de "que o ente é". Como lma tal ente,
ontológica do deixar-conformar-se,não se tem a ver com lula concepção ele"se encontra inserido" na abertura, na medida em que é em geral passível
abstrata da mesma estrutura. Enquanto a manualidade do utensílio tem na dedescoberta.Seessainterpretação for pertinente, então o inserir-se no ente
lida com elejustamente a estrutura do deixar-conformar-se "com algojunto élm] inserir-se na possibilidade da descoberta. Sese compreende essapossi-
a algo", de modo que a realização da interpretação e o deixar-ser sempre se bilidade de descoberta como "ocultamento" no sentido da preleção sobre
compertencem, o deixar-conformar-se compreendido ontologicamente é Zóg/ca,' então não se conseguemais tornar apreensível como o oculto pode
;apriorístico" porque ele mesmo não pode mais ser compreendido como um em geral vir a ser descoberto, pois para tanto ele tambén] precisaria estar
descobrir". O "descobrir" é, por nlm, concebido por Heideggercomo um acessível em seu ocultamento como tal. O ente só se acha oculto no gire e/e é
processo no qual o velamento de algo é retirado(OC 21,131). Enl verdade, ou bem porque ele ainda não foi descoberto em lmla determinada perspecti-
algo manual pode ser descoberto nessesentido, uma vez que é interpretado, va, ou bem porque ele pemlanece encoberto inicialmente por meio de opi-
mas não a manualidade como tal. Heidegger também corrigiu mais tarde por niões e enunciados sobre ele. Não apenasdescobrir lml ente no que ele é ou
meio de uma glosa uma formulação inadequada, de acordo com a qual no em uma determinada propriedade ou então interpreta-lo em meio a lmla lida
deixar-ser prévio um ente é "descoberto" em sua manualidade, e, assim, deu a mastambém encobri-lo só são aros possíveis porque se "está inserido" antes
entender que o deixar-ser não deve ser compreendido como uma realização, de toda e qualquer descoberta na abertura do ente. Com isso, também se es-
mas como lml puro deixar. A questão é que não há nenhuma clareza agora clarece ao menos em princípio a significação do deixar-confomtar-se com-
quanto a como é que se tem de pensarum tal puro deixar. Heidegger diz, em preendidoontologicamente. O deixar-conformar-se compreendido ontolo-
sua glosa, que ele consiste em "deixar o ente se essencializar em sua verda- gicamentenão é nadaalém de um "inserir-se no ente", porquanto o inserir-se
de"(OC 2, 113). O significado dessaafirmação pode ficar claro se recorrer- é concebido sob o ponto de vista da lida ocupada com o ente. Sua abertura
mos à conferência de Heidegger Da essênc/ada verdade. Nessa conferên- nãoconsiste simplesmente no fato de "que ele é", mas sim no fato de "que ele
cia, o deixar-ser é explicitado expressamentecomo "inserir-se no ente"(OC é de uma maneira determinada" que tem de ser, ainda uma vez, diferenciada
9, 188). Esse inserir-se não é nenhuma "mera exploração, guarda, cuidado e disso"como o que ele é". Essainterpretação tem uma comprovação ulterior
planqjamento do ente que a cada vez vem ao encontro ou é buscado", mas na observação de Heidegger em Z)a essênc/a da verdade de que o inserir-se --
algo diverso. Em verdade, ele é um "inserir-se no aberto e em sua abertura, em contraposição a Sr-- é pensado "fundamentalmente e de maneira total-
em meio à qual se encontram todos os entes que aquela abertura como que mente abrangente para todo ente" (OC 2, 1 13). Também podemos tomar
traz consigo": "0 pensamento ocidental concebeu esseaberto em seu come- agoraplausível como o deixar-conformar-se compreelldido ontologicamen-
ço como Tà àXTI éa, o desvelado" (OC 9, 188). Podemos retirar o foco da te diz respeito a todo e qualquer manual como manual: independentemente
questãofrequentemente discutida acercade se Heidegger traduz ou nãos de de se interpretaralgo "como algo" ou de elabora-lo, aprimorá-lo, decom-
maneirajusta àÀTl+ctcl por "desvelamento", e, do mesmo modo, ainda não Põ-lo, é precisojá ter se inserido antes de tudo nele

'Cf. por exemplo Kamlah/Lorenzen(1967), p. 128, Friedlãnder( 1954), Schadewaldt( 1978), 'Ct, quantoa esseponto,o $ 10 dessainvestigação
Sne11(1978),p. 91 e também, indiretainente, Hõlscher(1976). 'Rosales(1970),P.47
80 Günter Figal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 81

A formulação heideggeriana relativa ao "inserir-se no ente" não é certa.


em última instância, uma vez mais acessível para lmaatal "ação originária",
mente isenta de problemas e o mesmo se dá com o seu discurso acerca de
e.com isso, repete-se o problema que precisava ser resolvido. O discurso hei-
uma certa "liberação". Os dois parecemcontradizer a tesede que se.trataria
deggerianoacercada liberação é metafórico e dever-se-ia buscar em meio a
aqui de um puro deixar e poderiam conduzir, ao invés disso, à opinião de que uma interpretação dissolver a metáfora, não se deixando enredar por ela. O
o inserir-se seria algo assim como um "processo originário", por conseguin-
queele quer dizer é, de qualquer forma, que a abertura do ente pertencees-
te, um processo que constitui primordialmente a relação com o ente.7A me- sencialmenteao ser-aí e junto a essa idéia mostra-se uma vez mais o quão
lhor fomla de decidimlos se essaopinião éjusta ou nãoé nos aproftlndarmos
pouco é para se pensaro "ser-aí" como um "processo". O discurso heidegge-
na significação do termo "livre" (/?e/) que compõe o conceito heideggeriano riano acercado "inserir-se no ente" pemtaneçe, assim, carente de esclareci-
de liberação (rrelgaóe). "Livre" não estáaqui em l igação com açõesou pes- mento. Com essa expressão, Heidegger quer apenas distinguir o "deixar-
soas.Ao contrário, "livre" é o ente, na medida em que ele é «liberado". Um ser" da "omissão e da indiferença"(OC 9, 188). Como o contexto da própria
tal emprego do termo "livre" está em sintonia plena com o uso corrente na lida com ele, o ente não pode ser indiferente. Visto assim, o "inserir-se" não
linguagem cotidiana. Fala-se aí, por exemplo, de espaços"livres" quando significa que nos ligaríamos a algo com o qual não nos encontrávamos ante-
essesespaços não estão ocupados com a construção de casasou com a pre- riomlente em nenhuma relação, mas tem de ser interpretado uma vez mais
sença de árvores. Fala-se também de mias"livres" uma vez que sua utilização no sentido do "apriorístico perfeito:
não foi obstruída ou tomada impossível por relaçõesde trânsito ou do tempo. Em sintonia com a idéia da liberação e da abertura do ente, também pode-
Da mesma maneira, uma máquina ou uma oRiGinapodem estar "livres' mos desenvolver agora a compreensão heideggeriana do "mundo". A abertura
quando nãohá no momento nenhum usuário. Em todos essesmodos de falar. do ente, assim o dissemos, só é considerada nas análises de S7 sob o ponto de
"livre" significa o mesmo que "acessível" ou «aberto". Em ligação com os vista da lida ocupada. Nesse sentido, isso também significa que o ente é libera-
exemplos.dados, também não há nenhtml problema em compreender o que da "para a totalidade conjuntural" (ST, 85); e Heidegger prossegue:"Isso en]
significa "liberação". Liberamos uma estrada, por exemplo, quando coloca- direção ao que o manual é liberada em meio ao mundo-circundante, e liberado
mos nosso carro no acostamento ou retiramos um obstáculo; liberamos uma de tal modo, em verdade,que se torna acessível pela primeira vez co/z?oente
oficina quando paramos de usá-la. Tais "liberações" são claramente ações. intramundano, não pode ser concebido ele mesmo como um ente dotado desse
No entanto, enquanto continuarmos a usar exemplos, também continuare- modo de ser descoberto.Ele não é essencialmentepassível de descoberta,se
mos a nos movimentar no plano "antigo". Por outro lado, se pensarmos a li- continuamlos a tomar a descobertacomo um termo paraa possibilidade onto-
beração do ente de maneira ontológica, então precisaremoslevar em consi- lógica de todos os entesque não são dotadosdo caráter de ser-aí. Mas o que
deração de início que também o ente com o qual se temjustanlente a ver pre- significa, então, a afirmação de que issoem direção ao que o ente intramunda-
ser chamado "livre"; sua liberdade se comprova na medida em que ele é no é inicialmente liberado precisar estar previamente descerrado?8Ao ser do
usado;nós o deixamos ser em meio ao uso sob o modo específico da abertura ser-aí pertence a compreensão de ser. Compreensão tem seu ser em um com-
na qual ele é. Se é essencial para as ações que haja alternativas para elas, en- preender. Se ao ser-aí advém essencialmente o modo de ser do ser-no-mundo,
tão a liberação não.é nenhuma ação. Mas também não é isso, por fim, que se então pertence à consistência essencial de sua compreensão de ser o compre-
tem en] vista quando se fala aqui de lmaaação. O que setem em vista é muito enderdo ser-no-mundo.O descerramentoprévio disso em direção ao que
mais que o liberar é um processo que constitui pela primeira vez a relação do ocorre a liberação do que vem ao encontro no interior do mundopão é nada
ser-ai com o ente. Com essatese.,contudo, acabamos por cair em uma difi- além da compreensãodo mundo, com o qual o ser-aíjá semprese relaciona
culdade que já foi comentada. É preciso que se possa dizer, em verdade (SZ,85). Os dois termos introduzidos por Heidegger aqui, "descerrar" e "com-
como se pretende pensar.ofechamento a partir do qual o enteé trazido pela preender", ainda serãointerpretados de maneira mais minuciosa. Não obstan-
prmteira vez para a sua abertura. Esse fechamento também precisaria estar te,essainterpretaçãojá pertenceao contexto da pergunta sobrea liberdadeem

'0 termo alemão para descerrar é er.scA//es.ye/z.


Central para aobra de Heidegger como um todo:
'Cf. Rosales ( 1970):.p. 47: No que concerne à concepção do ser-com e do co-ser-aí, na qual essetermo é um dos muitos termos utilizados pelo autor para designar abertura. Procuramos tra-
como veremos, a "liberação" também desempenhaum papel central l.õwith í 1981\ n 96 e
duzi-lo aqui pelo termo descerrar apenasparaencontrar alternativas capazesde impedir uma
Theunissen(1977),p.168defenderamamesmatese.
' ' -''-'"r-'-v
llomogeneização do texto heideggeriano. (N.T.)
82 Günter Figal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 83

são" de mundo é esse "poder-ser" mesmo. Se tivermos clareza uma vez mais
quanto ao fato de que com a abertura do ente se tem em vista "que ele é" e se
lermos issojuntamente com a determinação heideggeriana do "ser-aí" como
"descerramento" e "estar aberto", também poderemos entender que o termo
"ser" em Heidegger é equivalente a "possibil idade" e que ontologia é, então, a
Mostração conceptual da possibilidade em seus diversos aspectos. Vista assim,
a oncologia heideggeriana é uma variação e lula elaboração da tese do estran-
geiro de Eléia em O sopé/a, de acordo com a qual hldo o que é não é em seu ser
nadaalém de possibilidade (ulç êa'ttv obx áÀXo TL nXâv 6ÚvalLLÇ/ O s(ds/a,
247e). Isso é conHimiado pela sentença:"A possibilidade como existencial... é
a detemlinação ontológica mais originária e derradeiramente positiva do
ser-aí"(Sr, 143).
Com certeza,é importante desdobrar ainda mais o modo como deve ser
concebido aí em particular o termo "possibilidade". Por fim, só tivemos a
chancede perceber até aqui que a "possibilidade" no sentido da abertura do
ente não designa senão o fato de o ente ser passível de descoberta, assim
comoo caráterdisposicional do utensílio com o qual ele tem "sua conformi-
dade"na interpretação. Em contraposição a isso, a "possibilidade" como de-
terminaçãodo "ser-aí" está articulada com "o estar aberto" do "poder-ser'
Já em conexãocom a investigação do caráter disposicional do utensílio tinha
se mostrado que não sc pode mais compreender a possibilidade, tal como
Heidegger a tem em vista, em sua relação com a realidade, como em Aristó-
teles.Chega-seao mesmo resultado se se esclarece o que é visado mais exa-
tamenteçom a expressão"poder-ser" no contexto da determinação de "mun-
do". Em sintonia com Aristóteles, Heidegger também determina em verdade
o "poder-ser", em direção ao qual o ente é liberada sob o n)odo da totalidade
conjuntural, como "em-virtude-de": "A totalidade conjuntural... remonta
por Hima lml para-quê,junto ao qual não há mais tenaz//7ía conjuntura, a um
para-quêrelativo a um ente que não é ele mesmo um ente dotado do modo de
ser do manual intramundano, mas um ente cujo ser é determinado como
ser-no-mundo, um ente a cuja constituição ontológica pertence a própria
mundanidade. Esse para-quê primário não é nenhum para-isso Gemo um
Junto ao quê possível de uma conjuntura. O para-quê primário é um em-
virtude-de. O 'em-virtude-de' sempre diz respeito, porém, ao ser do ser-aí,
ao ser do ente que em seu ser tem essencialmente em jogo esse ser mesmo"
(ST,84). Heidegger chega à idéia de um tal ''para-quê" primário em razão da
observaçãode que aquilo junto ao que o ente pode ter a sua conformidade
com algo sempre pode ser uma vez mais o com o quê de uma conjuntura:
il:l:lÜllRI í=1': ;::=;:'=:=::: i: : 'por exemplo, com essemanual que denominamos por isso martelo, ele tem
'"Cf. Bast/Delfosse 1(1979). aconjunturajunto ao martelar, com essemartelar ele tem sua conjunturajun-
84 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 85

to à fixação, com essafixação junto à proteção contra as intempéries':(Sr, sobremaneira a con)preensão de sua concepção. Em meio à interpretação da
84).:Nao é muito elucidativo afirmar que o termo "conjuntura" está ligado
liberdade em sua diferença, ainda teremos de distinguir, aléns disso, o "po-
aqui também a atividades, enquanto Heidegger o reserva em todas a$outras
der-ser" mais amplamente. De início, porém, é suficiente esclarecer a rela-

[[ : [ à ::]E%E]]
ÜH
nar compreensível como é possível para alguém compor um texto na máqui-
ção entre "poder-ser" e "poder", tal como essa relação foi determinada até
aqui, a flm de desenvolver mais exatamente o conceito de mundo.

SignÜcâticia
escrever. Mas não está absolutamente em questão, para Heidegger, a
combmação característica da referência entre o caráter não manifesto e o ca- Heidegger tenta determinar a relação entre "poder-ser" e poder que resi-
ráter manifesto. Ele pensa muito mais no estadode fato descrito por Aristó- dena lida com o ente por meio dos conceitos de significância e de significar.
telesde que atividades podem ser subordinadasumasàs outras,'de modo que No texto de ST, a significância e o significar só são elucidados de maneira
somente aquilo em virtude do que elas são levadas a termo se mostra como extremamente concisa. Além disso, a preleção Pro/ego/ ze/7a;zrr GeicA/có/e
sua meta e seu acabamento.11Todavia, mesmo se tudo o que se faz for feito desZe//begrjÓ8es
(Prolegõmenos para a história do conceito de tempo) deixa
claro que Heidegger não estava muito satisfeito cona essesconceitos. Nessa
preleção,ele delimita "significância" inicialmente em contraposiçãoa
'grau" e "valor", a fim de excluir a opinião de que "coisas naturais" seriam
dotadasde predicados valorativos na significância. Todavia, o que Ihe inte-
ressaaí é antes se afastar das implicações antológicas para ele questionáveis
dessaconcepção.Ele nãorejeita o fato de algo assim como "valor" estarcon-
comitantemente visado na significância. Significância não corresponde nem
a "valor" nem à "significação" semanticamente tomada, ainda que essatam-
bém "estala ligada de certa maneira" com a significância (OC 20, 275). No
entanto, Heidegger rompe com essastentativas de determinação e diz: "Já o
fato de tais delimitações, tal como as levamos a cabo aqui de modo totalmen-
te formal em meio a meros termos, tornarem-se necessárias aponta para lml
certo impasse na escolha do termo carreto para o fenómeno complexo que
queremos designarjustamente com a signinlcância; eu concedo abertamente
queessetermo não é o melhor. Todavia, há muito tempo, há anos venho pro-
curando e ainda não encontrei nenhtml outro, ao menos nenhum que expres-
se uma conexão essencial do fenómeno com o que designamos como signifi-
caçãono sentido da significação da palavra, uma vez quejustamente o fenó-
meno se encontra em uma conexão interna com a significação da p.alavra,
com o discurso" (OC 20, 275). Apesar de ser bem provável que Heidegger
tenha assumido o conceito de significância de Dilthey, i3 sua reserva está an-
tes de tudo fundada no fato de a "significação" ser um conceito marcado pe-
las /aves//Rações/óg/cas de Husserl. Heidegger queria evitar .justamente
aqui uma proximidade com Husserl. Husserl emprega o conceito para a ca-
racterização dos processos de expressão: "significação" é o que é "visado
''Cfl .E.N1,
1094a9-22.
em uma expressão e que pode ser "preenchido" por um processo intuitivo ou
;Qsageo àequ lparação ernlcjmeta"aTi.30) e"'"i-virtude-de"((É gvcxa) em Aristóteles, cf. a
''Cf. W. Diltlley, Obra coavam/cz7, sobretudo p. 238
86 Günter Figas Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 87

permanecer "vazio".i4 Portanto, a "significação" é pensada em Hussdrl a sinais; o fato de os sinais saltarem aos olhos não diz que eles seriam buscados
partir da intencionalidade e, levando apenasisso em consideração, o concei- como objetos: "' Apreendido' propriamente, o sinal nâo éjustamente quando
to se mostra consequentementecomo problemático para Heidegger''Com a õlrmamosnele o olhar, quando o constatamos como uma coisa de indicação
ideia de referência e de conjuntura, o paradigma de lmla intencionalidade li- queaparece" (Sr, 79). Sem dúvida alguma, o sinal também não nos remete
gada a olÜetosjá tinha sido, por Him,abandonado por ele. A preleção supraci- Daráuma maneira determinada de lidar com ele: "Ele se volta para a circtm-
tada também é sintomática quanto ao afastamento de Heidegger em relação a visãoda lida ocupada; e ele o faz de tal modo que a circtmvisão que segue sua
Husserl, uma vez que o significar não é elucidado aqui em meio à localiza- indicação em um tal acompanhamento traz a respectiva abrangência do
ção de um objeto, mas em meio aos assim chamados indícios e sinais demar- mtmdo circundante para uma 'visão conjunta' expressa. O abranger cona a
catórios. Husserl tinhajustamente recusado signiHlcaçãoa eles.ts De acordo vista çircunvisivo não apreende o manual; ele conquista muito mais uma
com as análises de SZ, indícios e sinais demarcatórios tais como placas de orientaçãono interior do mundo circundante"(S7', 79). Dessaforma, na me-
trânsito ou nós nos lenços de bolso não passam de um caso especial de ma- dida em que dão a entender como a lida ocupada deve ser executada, os si-
nual, e, de maneira diversa da preleção sobre os "Prolegõmenos", não são nais remetem diretamente para essa lida; eles servem para orientar. Para que
mais mencionados na explicitação da significância em ST. Heidegger, as- possamçtmaprir uma tal função de orientação, tais sinais precisam ser então
sim pode-se supor, quer fazer frente, com isso, à circunstânciajá trabalha- interpretados em ftlnção da lida. Todavia, não apenas de um modo tal que
da por Husserl de que a significação mesma "nunca é lml sinal" (OC 20, não semostre na lida com eles senão como o que eles são, mas essencialmen-
279), evitando ao mesmo tempo que essa impressão surja. Junto à caracte- te de um modo tal que o comportamento mesmo sd a deterá inado no que ele
rização heideggeriana do sinal, contudo, tal como ela é assumida em S7' é. Toda lida com um utensílio que não sqa um sinal é interpretação do uten-
sem qualquer ligação com "significar" ou "significância", podemos escla- sílio: a lida com sinais é uma determinação do comportamento.
recerum pouco além como é que ele gostaria de falar aqui de "significar" e O que Heidegger denomina "significância" não é então, no filado, nada
de "significância" além da orientação pelos sinais ontologicamente interpretada. Visto assim,
Sinais são inicialmente utensílios como quaisquer outros, unhavez que todo manual é "significativo", uma vez que sempre sepode estarna lida com
eles "servem" para algo e são determinados aí mediante referência. Mas um elesde uma maneira determinada. Dito de outra forma, se está"aberto" para
sinal não remete apenasnessesentido. Ao contrário. mesmo o "indicar" do as diversas interpretações do manual e se alcança a determinação em razão
sinal pode ser concebido como un] referir: "Esse 'referir' como indicar não é desseestarabertoem meio à lida ocupada:"0 em-virtude-de significa um
a estrutura ontológica do sinal como utensílio", mas pura e simplesmente "a para-quê,esseum para isso, esseum junto ao quê do deixar-conformar-se,
concreção ântica do para-quê de uma serventia"(ST, 78); sinais são utensí- esseum com o quê da conjuntura"(ST, 87). O fato de se alcançar na lida ocu-
lios cuja serventia consiste em indicar. Essa determinação certamente só é padasua determinação com certeza não significa que essadeterminação re-
válida na medida em que um sinal vem ao encontro na lida ocupada. Heideg- sidiria apenasna respectiva realização anualda lida. A ela também pertence
ger não contesta absolutamente que haja também outros sinais= "rastro. resí- muito mais o que se pode fazer sem que ao mesmo tempo se esteja fazendo
duo, monumento, documento, testemunho, símbolo, expressão, aparição, nesse instante. Nesse caso, "poder" precisa ser lido no sentido do compreen'
significação" precisam ser, como ele diz, "cindidos" dos indícios e dos sinais der(entender) tal como setem em vista na linguagem cotidiana. Mais ainda,
demarcatórios(ST, 78). No entanto, mesmo se a análise tiver de se restringir porém : o fato de ser em geral possível estar na interpretação do manual como
aossinais que vêm ao encontro na lida ocupada,a determinação heideggeria- alguém determinado perfaz concomitantemente a significância. Significati-
na do sinal como utensílio não parece ser à primeira vista plausível. Sinais vo é tudo aquilo que pode perfazer como interpretado a determinaçãodo
não são, afinal, caracterizados pela discrição, como é o caso dos utensílios. ser-aí. A gente "se compreende" na totalidade do naanualinterpretável, uma
Mas cumprem sua função tanto melhor quanto mais saltam aos olhos. Consi- vez que essatotalidade pode ser determinação própria e realidade; o inter-
derado exatamente, porém, o fato de saltar aosolhos não contradiz seu cará- pretável é signinlcativo e/lzvfs/a dessadeterminação e dessa realidade. Os
ter utensiliar. Ele perfaz muito mais o "emprego privilegiado" (ST, 79) dos dois aspectosconjuntamente perfazem "o fenómeno do mundo" em sua es-
trutura. a "mundanidade": "0 fenómeno do mundo é o em quê do compreen-
i4Cf./aves//gaçõe.ç
/óg/cas11/1,p. 37
der que se estabelece referencialmente como o em direção ao quê do dei-
iSCF./aves//Rações/óg/cas 11/1,p. 23.
88 Günter Final
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 89

ente,e, na capacidade das possibilidades de interpretação, o estar aberto do


ser-aí. Vista assim.l a auto-evidência ]la qual o ser-aí tem sua determinação é
uma aparição da liberdade

g 4. Consideração intermediária. Comportamento livre,


liberdade como causalidade e a abertura do ente
Tal como a exposição até aqui perm ite pensar, a concepção de liberdade
éaconcepçãode um estaraberto para a abertura do ente. O predicado "livre"
estáaí paraessaabertura mesma, e o fato de esseser um emprego possível e
usualpodese tomar compreensível a partir de um recurso à linguagem coti-
diana.Não obstante, poder-se-ia tomar esseemprego como um emprego an-
tesperiférico e objetar que ele não traz muito para a solução dos problemas
queseligam normalmente ao conceito de liberdade. Essesproblemas dizem
respeito,em verdade, à pergunta sobre se se pode denominar uma ação "li-
vre". e, caso a resposta sqa afirmativa, sobre o que se compreende por "li-
berdade"das ações. Um argumento facilmente inteligível para a liberdade
dasaçõesé a indicação de que sempre há alternativas para ações; não se de-
nominam "livres" as ocorrências e os modos de comportamento nos quais
essenãoé o caso-- não os designamos nem mesmo como "ações". A questão
é que esseé, na melhor das hipóteses, um critério necessário, pois permanece
emaberto o que seentende aquimais exatamente por"alternativas". Por fim,
é possível pensar em uma série de ocorrências e de modos de comportamen-
to que não acontecem necessariamente ou, no mínimo, não necessariamente
do modo como acontecem sem que se fale no caso deles de "ações" e se os
caracterizam como "livres". Por conseguinte, é preciso responder à pergLmta
sobre o que são ações livres de lula outra maneira, e, como já foi notado à
guisa de introdução, isso pode ser feito de dois modos: ou bem se pode con-
cebero termo "livre" como um predicado das ações, ou sqa, como lml predi-
cadocom o qual toda e qualquer ação é caracterizadaem sua constituição, in-
dependentementede suas alternativas; ou bem se podem cone(+er ações
como modos de comportamento de seresvivos que, como tais, também me-
recem, no mmimo, ser chamados de "livres" porque eles m elmos causam ao
menosalguns de seusmodos de comportamento. No que se segue,pretende-
mos mostrar queos dois pontos de partida não dão conta do que efetivamente
deveriam dar. Com o primeiro ponto de partida é possível, em verdade, de-
senvolver uma teoria consistente sobre a significação do termo "livre", mas
essasignificação precisa ser então tomada de maneira tão ampla que acaba
por não ser específica para ações. Em contraposição, o segundo ponto de
partida ou conduz parao interior de uma oporia porque a idéia dc uma causa-
90 Günter Final
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 91

naturalmente válido: quando um cachorro destroça uma bola ao trazê-la con-


sigo, isso se dá de maneira "involuntária". Entretanto, essediscurso acerca
da falta de espontaneidadeé ainda precisado por Aristóteles, na medida em
que ele diferencia um comportamento involuntário(ã)cuv/ E/V, 1110b2 1) de
um comportamento não espontâneo(obX txtóv/E]V, 111 0b23). Um compor-
tamento é involuntário no sentido aí determinado quando alguém expressa
logo em seguida seu lamento quanto ao desfecho do comportamento. Assim,
a "involuntariedade" é definida pelo fato de a espontaneidade no sentido da
determinação da meta de um comportamento ser concedida e, em seguida,
desmentida como uma espontaneidadefática. Em meio ao comportamento
não espontâneo, em contrapartida, a diferença entre o desfecho fatiga e a
meta determinante do comportamento permanece não temática. Se se leva
em conta essa especificação mais precisa, então o comportamento dos ani-
mais só pode ser denominado "não espontâneo", mas nunca "involuntário"
Não obstante, se um comportamento é involuntário ou não espontâneo, isso
4risÍóteies é algo que não faz ao menos em um ponto nenhuma diferença, uma vez que
só é possível falar dos dois se o comportamento também puder ser funda-
mentalmente espontâneo. A espontaneidade no sentido aristotélico é uma
característica do comportamento mesmo, não de um ser vivo ou de laia pes-
soa como os autores do comportamento. Por isso, quando não pensamosem
um momento volitivo do comportamento, tal como a noção de "espontanei-
dade" parece indicar, mas só nos orientamos pela execução desobstruída do
movimento em direção à sua meta, também nos aproximamos ao máximo do
sentido do txoi3aLov
Todavia, o fato de a realização do comportamento em Aristóteles ser
pensadacomo um movimento direcionado para lmla meta não significa que
todos os movimentos desobstruídos ou imperturbados poderiam ser chama-
dos "livres", como sediria agoramelhor do quecom o termo "espontâneo'
O txoi3atov é uma característica exclusiva do comportamental a queda de
uma pedra, por exemplo, não pode ser denominada "livre" porque a pedra
não se movimenta de tal forma em direção a uma meta que essa meta pudesse
hulcionar como a concretização máxima de sua maneira de ier. Para que
possa ser livre, um movimento precisa ser um aspiração G6pc#LÇ). Tudo o
que se comporta de modo aspirante é em seu ser erigido rumo a uma meta e
tem, nessa medida, em si o começo de sua aspiração. Aristóteles determ ina a
alma como essecomeço. A alma é a contenção da meta de um corpo que, em
função de sua constituição orgânica, é capaz de ser lml movimento em dire-
ção a tais metas, por meio das quais ele é em sua vitalidade o que é (tvte-
XéXta h vpó'q a(ó»a'toÇ (puaLxoi3 8uvápcl tuâv eXovToç/ Z)e a/7/ma,
4 12a27). A alma é a stmla conceitual para modos determinados de compor-
92 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 93

lamento que perfazem a vitalidade de lml ser, sem sempre precisarei ser externas, se modos de comportamento podem ser denominados "livres'
realizados. Ao perfazerem a vitalidade de um ser vivo, essesmodos de com- essaliberdade é muito mais uma liberdade em meio ao ente que não se
portamento são o que um ser vivo é nele mesmo: a alma é obaía e3.,comotal, confunde ele mesmo com o comportamento. Essa idéia pode ser explicitada
O-tà .tÍ ãv erLVC[L.
Somente a partir daqui, o sentido do txot3atov d.ode ser de- ainda um pouco mais em meio à discussãodo txoiSaLov na E//ca a ]V/cÓ/lía-
terminado completamente. Um movimento pensado como comportamento co: sese denominassemas coisas belas e agradáveis, assim o diz Aristóteles,
só pode se chamar "livre" se nele o que se movimenta permanece o que é ao violentas porque elas obrigam alguém de fora a aspirar por elas, então tudo
chegar à meta que ele mesmo já "era". O que é o começo do movimento se seria vio]ento (E]V, 1 1 10b9-1 1), e, com isso, o discurso acerca da liberdade
mantém por meio do movimento.'' O conceito de txot3atov só é com isso do comportamento perderia todo o sentido. Do mesmo modo, encon-
derradeiramente compreensível sob a pressuposição do princípio ontológico trar-se-íam dificuldades se se recusassea liberdade ao comportamento pro-
da cvTcÀéXCLa. Mesmo se não se quiser acolher a ontologia aristotélica, essa vocado por um forte impulso (+u»l5ç) ou por lml desde GeTL+up,ía).Ness.e
pressuposição ontológica não se deixa senão enfraquecer, mas nunca afastar não se poderia dizer nem de crianças nem de animais que eles são li-
de uma vez por todas. Se nos recusarmos a pensar a meta de um comporta- vres, nem se poderia impedir que algumas das coisas mais essenciaispara os
mento como a sua concretização, então, na medida em que se compreende li- homens fossem consideradas extrínsecas para eles. Interessa pouco a Aristó-
berdade como ausência de coerção, mantém-se, de qualquer modo, a pressu- telesassegurar,aqui, tanto a capacidadede os modos de comportamento for-
posição sob a forma de que o comportamento pode atingir a cada vez sua marem um conjunto quanto, a partir daí, seu estatuto como ação. Como a
meta. Nesse caso, é certo que as metas só são consideradas como metas par- parte introdutória do terceiro l ívro da Efíca a iVícó/ Tacocomprova, isso tam-
ciais e não sãomais ligadas ao que o aspiranteé nele mesmo.No entanto, bém Ihe interessa. No entanto, Aristóteles quer antes de tudo lim ataro discur-
também só se pode falar das múltiplas possibilidades de se comportar se so acercada violência de um movimento. Setudo fosse violento ou se o que
cada uma dessas possibilidades for, em princípio, realizável: se alguém pode perfaz essencialmenteo comportamento precisasseser considerado extrín-
fazer A ou B, então não há, em princípio, nada que o pudesse impedir de fa- secapara ele, então o comportamento não poderia mais ser determinado ge-
zer A ou B, mesmo se, em função de sua constituição física e psíquica, ele nericamente como um movimento que tem em si mesmo sua meta e sepreen'
precisassetender antes para B. Uma tal constituição pode ser, em verdade, che nessa meta. O conceito aristotélico de txoÚaLov assegura, portanto, a
constatada por um observador, mas é irrelevante no instante da decisão.i7 0 idéia da Ente/ec#efa.
conceito de "liberdade em relação ao poder de escolher", tão usual na flloso- Com certeza, não se conseguetornar de maneira alguma compreensível
Hiahoje e com certeza também visto de maneira extremamente ampla como o que significa "agir" apenas a partir do txoi3atov. Exatamenle como em
não problemático, vive, portanto, em última instância, da noção aristotélica Aristóteles é preciso introduzir para tanto a noção de "escolha preferencial"
de En/e/ec/ze/a e da determinação ligada a essa idéia da relação entre realida- como uma detemlinação ulterior.i9 A proas/res/s não é lml simples querer
de e possibilidade. no sentido de um desejar; também se pode querer nessesentido o que não se
O fato de os modos de comportamento serem movimentos que têm seu podealcançar por si mesmo (E/V, 1111b23), enquanto só se pode fazer lmla
começo em si mesmos não significa que eles não são condicionados por algo escolha a partir daquilo que se encontra a cada vez em nosso poder (td
que se encontra fora deles. O comportamento de um ser vivo jamais é puro ê(p'+llãv/E/v, llllb30). Levamos a termo o que se encontra sol) o nossopo-
automovimento. Ao contrário. ao se moverem. os sel-esvivos também sem- der quando aspiramos por algo e refletimos sobre o que se :lticula com a
pre são ao mesmo tempo movimentados.i8 Não obstante, porque o modo meta aspirada (Tà vpàç 'tâ TéXvl/E/V, 1112b12). Essa reflexão (liouÀcúca-
como os movimentos perfazem a vitalidade de algo nunca pode ser determi- +al) não deve ser entendida como se fosse empreendida como que ao lado
nado essencialmente por meio de condições externas, o condicionamento da aspiração; é por isso que,junto ao que Aristóteles denomina 'td xp(iç td
extemo do comportamento não produz nenhuma quebra em sua liberdade no
sentido do txoi3aLov, mas muito pelo contrário. Apesar de terem condições 'Ante esseconceito e a relação enLrepra/ralresfr e liberdade, cf. também Kuhn ( 1960). Os pro-
blemas que Kuhn vê no conceito aristotél ico depro/ra/res/s têm, entre outros aspectos,a sua ra-
tóCf. quanto a isso, Picht (1980), p. 299. zão de ser no fato de Kuhn tentar compreender ap/'o/za//.esls como condição de possibilidade
t7Cf quanto a isso, Potjlast (1980), p. 391 paraa liberdade. SÓentão, porém, há também a dificuldade de conceberjuntamente com Aristó-
tttCf quanto a isso, Wieland(1970), p. 23 1-254. '.elesum comportamentoafêtivo como "livre'
94 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 95

TéÀvl,também é equivocado pensarem "meios" que seriam utilizados como


instrumentos manuais para alcançar uma meta. Tct xpoç 'tà véÀT] são muito
mais os modos da própria aspiração: os modos como certamenFeíee
pode pre-
cisar, então, de uma coisa ou outra. Desta feita, a Trpoa(pcaLÇ e a aspiração na
medida em que é determinada pela ponderação;é isso que está em .jogo em
meio a sua caracterização como a comunidade de pensamento sensato e aspi-
ração (xoLvàv 6tavoíaç xat bpéYcuç).zo Essa unidade entre aspiração e pon-
deraçãotambém é clara para Aristóteles pelo fato de que no contexto do com-
portamento cotidiano ninguém enalteceou condena apenasa aspiração ou a
ponderação por si mesmas, mas a ponderação uma vez que ela é asp ração. So-
mente se a ponderaçãoé aspiração,podemosser bem ou mal constituídos por

com isso, de a meta que o comportamento tem em si estarem disponíveis; de-


cisivo é apenas se lml comportamento pensado como exteriorização vital
mento do comportamento ou para o comportamento mesmo. Além disso. o atinge sua meta de maneira desprovida de obstruções ou não. Alguém que,
que se dá não é que só se têm inicialmente metas e se refletiria, então, sobre os semqualquer ponderação,simplesmente se encaminha para o que desça não
meios para alcança-las; escolhe-se muito mais uma determinada meta porque se comporta de modo não livre, mas sim apenas senoponderação; isso tam-
se é constituído de tal ou tal maneira (Tg lroLoÍ VLvcÇ CLVal tà TéÀoç xotÓv8e bém pertence à sua vitalidade e seria, portanto, absurdo denominar as ocor-
tl é;n od E/V, 1 1 14b23). Aqui Aristóteles faz um uso modificado da deter- rências desprovidas de pensamento ('tà áXoTa vá+ll/ ÉllV, l l l lb 1) involun-
minação da aspiraçãocomo En/e/ec/ze/a.Por um lado, a aspiraçãoé deõulida tárias.Se um servivo se comporta livremente, então não há nada que impli-
porse plenificarem uma meta. Por outro lado, porém, a meta é por isso m esmo queuma ação necessária.A pergunta sobre uma liberdade específica do agir
constituída a cada vez de tal modo que só pode ser visualizada por meio de permanece, por conseguinte, sem resposta enl Aristóteles. .A partir dele,
uma forma da aspiração em geral. A aspiração sob o modo da ponderação abre além disso, não se alcança nenhuma elucidação quanto ao modo como se é li-
suas metas concretas primeiro; para a execução de uma aspiração, a meta só vre. A pergunta sobre um tal modo é, porém, ao menos co-pensada quando se
estànaponderaçãoquedeterminaaaspiração. ' ' ''' consideraa liberdade do agir em geral como um problema. Seessapergunta
não tivesse conseqtlências para o modo como se pode compreender a si n\es-
mo, não seria preciso coloca-la.

Kant
a

A partir da perspectiva de Kart, o conceito de txoi3auov não podeapare'


cer senão como um conceito "comparativo" de liberdade e gse conceito é
um "subterfúgio", "um mísero expediente" e uma "pequena logomaquta
(Crer, A171). Segundo lml tal conceito comparativo, aquele designa um
"efeito livre (...), do qual o fundamento determinado da natureza reside /n-
fer/7a/17enfena essênciaatuante"(CJ?Pr, A 171). Como diz Kart, denomina-
mos livre nessesentido o movimento de um corpo "porque ele, durante o
tempo em que se encontra em vâo, não é impelido por coisa alguma de fora
ouo movimento de lml relógio "porque ele impele por si mesmo seuspontei-
-"Z)e mo/u anima/fu//z, 700b22. ros, que com isso não podem ser movidos por uma força exterior" (Crer,
:'Cf. Warnach(1972), Coluna, p. 1.068.
A171). Fala-se do mesmo modo dos processosde um homem, ao denomi-
96 Günter Figas
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 97

permanente e apenas seu estado muda"(Crer, B230/AI 87). O que se sente


ao seexperimentar uma lnudailça é, por conseguinte, a mudança de dois aci-
dentesjunto a uma substância. O modo segundo o qual uma substância é re-
presentada sensivelmente é a 'persistência'; a 'persistência' é a razão pela
qual empregamos a categoria da substância no fenõlneno" (C'RPr,
B227/AI 84). Entretanto, a experiência de uma mudança ainda não permite
falar de uma mudança. N a medida ein que, para Kart, tudo o que experimen-
tamos,ou, dito de outro modo, tudo o que conhecemos empiricamente sem-
pre são fenânlenos, portanto, percepções sintetizadas eln conceitos, as mu-
dançasdos acidentessó são palpáveisinicialmente como mudançadas
apreensões", do respectivo conceber dos fenâinenos. Essas apreensões su-
cedem Lulas às outras, ou seja, são ordenadas no tempo pensado como série
{einporal segundo asrelações dc "antes" e "depois", sem que essaordem seja
necessariamente também a ordem dos acidentes. Kant deixa isso claro por
meio de um exemplo: se se considera uilla casa, então essa consideração
selllpre teta de ser pensada como uma sequência de apreensões; pode-se to-
mar primeiro o telhado, então a fachada, no fim o solo sobre o qual a casa se
encontra; mas essa seqiiência e a mudança das apreensões não é nenhuma se-
quência e nenhuma mudança de modos diversos de a casa existir, e, com
isso, não é nenhuma mudança. Essa tbi definida, sim, como mudança dos
acidentes,e, por collseguinte, dos diversos modos de o objeto existir. Para
poderpensar a "mudança", precisa-se,portanto, perguntar "que tipo de liga-
ção no tempo advém ao múltiplo junto aos fenómenos Incsmos" (C/{Pr,
B235/AI 90). Esse discurso acerca dos "fenómenos mesmos", ou seja, a di-
ferenciação entre fenÕJncno e apreensão, soa à primeira vista paradoxal. Po-
der-se-ia perguntar coillo os fenómenos poderiam ser algo além de fenóme-
nos "apreendidos". A questão é que se os fenõinenos não fossem senão fenõ-
lnenos apreendidos, e, portanto, fossem idênticos às apreensões, então não
haveria nenhum critério para diferencia-los de ilusões. Os ''fenómenos", tal
colmo Kant os pensa, sempre têm dois aspectos: eles são fenómenos para nós,
e, com isso, apreensões, do mesmo modo que são fenómenos das coisas eln
si. Devido à inacessibilidade das coisas em si para o conhecimento:jamais se
podecontabilizar mais do que "formalmente" o fato dc os fenâmebos serem
fenâlnenos de algo, isto é: só se pode falar de uma mudança quando a conse-
quência da apreensão "se encontra sob o domínio de uma regra, que(...) tor-
nEInecessário uin modo de ligação do múltiplo"(CRP, B236/A 191). A regra
que garante a objetividade do tempo segundo os fenómenos que seguem
uns aos outros está expressano "princípio da relação causal" (CRP:
B247/A202). Esseprincípio diz que em meio a toda experiência de uma mu-

#alEil;;E=&Hi.1111?
l :::===:,:==m dança "está pressuposto algo no estado precedente, ao que algo(...) segueeln
98 Günter Fígal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 99

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o inverso? A questão é que não é isso de maneira alguma o que Kant quer
afirmar. O princípio da relação causal não exclui a ação recíproca das subs-
tâncias fenonlenais e não pode exclui-la, pois sem lmla tal ação recíproca a
:lÚI.«.id,d.«,i, imp';;:"-;" 'p"''"'" d«fe"âm"';-""" p''''
riam suceder, nesse caso, senão em uma direção após a outra e só seriam,
além disso, a cada vez apreensõesde z///?fenómeno. Com isso, também seria
impossível conhecer em geral relações causais. Se o conhecimento de rela-
çõescausais implica a simultaneidade dos fenómenos e a simultaneidade
nãopode ser pensadasem a ação recíproca, então "cada substância(...) pre-
cisa conter em sí a causalidade de certas determinações na outra, e, ao mes-
mo tempo, os efeitos da causalidade da outra, isto é, elas precisam se encon-
trar em uma comunidade dinâmica"(CRP, B259/A2 12). Com a idéia da si-
multaneidade, portanto, Kant não se abstrai, por exemplo, da idéia da série
temporal; a simultaneidade consiste muito mais no fato de que as substân-
ciasfenomenais atribuem-se reciprocamente sua "posição no tempo"(CRP,
B259/A2]2), uma vez que são a cada vez tanto causasquanto efeitos. Elas
não podem certamente ser efeito como substâncias, pois o efeito é mudança
e não constância. Mas cada fenómeno é, sim, fenómeno de uma substância
em um determinado modo de existir, isto é, cada substância existe aciden-
talmente, e, se não se levasse isso em conta, então também já não se teria
como tornar inteligível a mudança dos acidentes, pois "somente o constan-
te(a substância) é transformado"(CRP, B230/A 187); com certeza não como
constante, mas em seus acidentes. Por conseguinte, a ação recíproca das
substânciastambém não consiste simplesmente no fato de substânciasatua-
rem sobre substâncias; cada substância sofre muito mais transformações em
seusacidentes e transforma os acidentes das outras substâncias.
Essaidéia tem, agora, conseqüênciasdecisivas paraa concepção kantia-
nado agir de início, exatamentecomo no caso do "sujeito", amado de ma-
neira totalmente genérica -- e de sua liberdade. Em verdade, um agir não
pode residir em um sujeito que ele mesmo mude. Cada agir não é, porém,
apenasa mudança de algo no sujeito agente diante de um outro. Ao contrá-
rio, ele é sempretambém lmla mudançado SL\jeitoagente: no SL\jeito,muda o
estadodo não agir para o estado do agir. Justamente porque o agir é compre-
endido como causa de um efeito;justamente porque ele é pensado, portanto,
em sua realidade efetiva exclusivamente segundo o princípio da relação cau-
sal, um princípio que envolve por sua vez a idéia da ação recíproca, o movi-
100 Günter Figas Mártir Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 101

mento do agir também precisa ser pensado como mudança de seu modo de conhecida empiricamente, pois o conhecimento empírico de substâncias é
existir. Desta feita, contudo, todo agir é acidental e estásubmetido a condi- sempre apenas o conhecimento de lmla permanência relativa. O fato de a
çõesque não estão, elas mesmas, sob o poder do agente. Isso significa uma ação dever se mostrar como um critério empírico para a substancialidade
vez mais: o agir é desprovido de liberdade. De acordo com a coféepção kan- também não pode significar que a ação seja fenómeno dessa substancialida-
tiana, toda ação empreendida que aparece como mudança do agente é, como de; o que seprecisa ter en] vista é muito mais que algo que conhecemosem-
se poderia dizer com Aristóteles, "violenta" porque seu começo não reside piricamente só pode ser chamado de "ação" se for pressupostaa sua substan-
nela mesma. Fica claro, agora, que essaidéia conduz o conceito de ação cialidade que, ela mesma, não pode mais ser conhecida empiricamente. O
ao absurdo: a ação fenomenal não é propriamente nenhuma ação se ações discurso kantiano acerca de um critério empírico precisaria ser, assim, cor-
"sempre são a primeira razão de toda mudançados fenómenos"(C/?P, respondentementeinterpretado como a indicação de um critério para o co-
B250/A205), ou sda, se o conceito de ação exige que ações sempre precisem nhecimento empírico, e isso significaria uma vez mais que o conceito de
ser pensadascomo começo de alterações, mas não elas mesmas como altera- açãodependeria de uma condição não empírica e somente por isso taml)ém
ções. Unia vez que aquilo que não está submetido ele mesmo a nenhuma mu- poderia ser empregado empiricamente. A condição não empírica do concei-
dança é a substância, ações como ta] só podem sersubstanciais, e é nesse sen- to de ação, porém, é a idéia transcendental de liberdade.
tido que, diz Kant, a açãodemonstra, "como um critério empírico suficiente, Na CTÍf/ca da ra:ão parra, a idéia de liberdade é"introduzida para com-
a substancialidade, sem que eu tivesse necessariamente de buscar sua cons- pletar o princípio da causalidade. Elajá se relaciona com esseprincípio de
tância primeiramente por meio de percepçõescomparadas": "Pois uma con- maneira 'antinâmica' porque o princípio da causalidade expressa lmla regra
clusão certa que se impõe necessariamentea partir do fato de o primeiro su- geral que, ao menos à primeira vista, não pode carecer absolutamente de uma
jeito da causalidade de todo surgir e perecer não poder ele mesmo(no campo tal complementação. A dissolução da antinomia consiste, então, em tornar
dos fenómenos) surgir e perecer é a que conduz à necessidade empírica e à plausível em que medida a necessidade de uma complementação não contra-
permanência na existêJlcia, e, por conseguinte, ao conceito de lmla substân- diz a universalidade da lei causal. Kailt fundamenta a necessidadede uma
cia como fenómeno" (CRP, B25 1/A206). É digno de nota que a força com- complementaçãoda lei causal ao mostrar o seguinte:justamente semlula tal
probatória da ação para a substancialidade, tal como Kant a requisita aqui, complementação,a animlação de uma causalidadeuniversal contradiria a si
não deva residir na persistência sensivelmente experienciável da ação, mesma em sua "universalidade ilimitada" (CRP, B474/A446). O princípio
mas no fato de a ação precisar ser pensada filndamentalmente como o "pri- da causalidadeafinlaa, sim, uma causalidade universal "segundo leis da na-
meiro sujeito da causalidade": como todo e qualquer discurso acercade uma tureza''(CRP, B473/A445) e "natureza" é a "suma conceitual dos objetos da
ação envolve a idéia de substancialidade, não se precisa buscar a permanên- experiência" (CRP, B XIX), isto é, a suma conceitual de "todos os fenóme-
cia primeiramente por intermédio de "percepções comparadas", ou sqa, por nos" (CRP, B 163/A 114). Conseqilentemente, segundo as leis da natureza, a
intermédio da experiência de algo que permanece em relação a algo que se causalidadenunca poderia ser pensada senão como efeito de um fenómeno
altera. Além disso, é decisivo que a ação não sqa requisitada para a demons- sobre um outro; tudo o que aparece, contudo, aparece no tempo, ou, se ele
tração da substância, mas da substancialidade. No que diz respeito a esse permanece, como "substrato de todas as determinações temporais" (CRP,
ponto, a formulação de acordo com a qual nos deparamoscom a "conclusão B227/A 183); como aquilo, portanto, que é pressuposto "em qualquer tem-
certa" de que o fato de o primeiro sujeito da causalidade não poder surgir e po" (CRP, B228/A 185) como existente. Todavia, essesubstrato não pode
perecer desembocano "conceito de uma substância em meio ao fenómeno' ser uma causa, pois se ele precisa ser pensado como existindo) em qualquer
induz em erro; a substância em meio ao fenómeno é sempre apenas experien- tempo, ele não pode, por isso mesmo, ser anterior a um outro, na medida em
ciável no interior do esquemada permanência,e, por conseguinte,sempre que indica para essea sua posição no tempo. O substrato da determinação
apenas relativamente. No entanto, onde o que está emjogo é a ação como um temporal não está submetido ele mesmo a nenhuma determinação temporal
primeiro sujeito, não se trata maisjustamente de uma tal permanência relati- e também não pode ser, assim, constitutivo para a ordem do tempo. Dessa
va. A ação só pode ser um primeiro sujeito se o agente puder ser pensado forma, a causado que é anterior em relação ao que é produzido precisa ser
como pura e simplesmente constante. Antes que isso possa ser discutido, po- pensadacomo um "estado precedente", e isso significa, como o modo de
rém, é preciso reter o seguinte: a substancialidade da ação não pode mais ser uma substânciaexistir como acidente: tudo o que acontece pressupõelml
102 Günter Final Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 103

estado anterior"(CRP, B473/A445), e esseestado anterior precisa jer algo mas sim pensar uma causa qz/e /7âo é nada se/7ão caz/sa, e, porra/7ro, a/go
'que aconteceu(veio a ser no tempo, uma vez que antes ele não era)"(CR/' pzl/.a e sf/np/es/7ze/7reszrós/s/e/7/e. Mesmo se esse algo pura e simplesmente
B473/A445). Seesseestadoar4erior não tivesse vindo a ser -- como mudan- subsistentefor incognoscível, ele precisa ser de qualquer modo pensadose é
ça do não agir para o agir --, então "sua consequênciatambém ngá poderia ter que se deve falar de um começo em geral. Por isso, pode-se dizer: logo que
antes de tudo surgido", mas sempre "teria existido" (CRP, B473/A445) designamos como lml começo algo conhecido enquanto fenómeno, ou, o
Como "algo que ac0/7feceu" (Cl?P, B473/A455), porém, o estado anterior quesignifica o mesmo, o sujeito de uma ação e, com isso, uma causa, nós o
pressupõe,"segundo a lei da natureza, uma vez mais, um estado ainda mais pensamoscomo pura e simplesmente subsistente, mesmo que ele só possa
antigo (...) e assim por diante" (CRP, B473/A445). Segundo a lei da nature- serconhecido de modo acidental. A fomiulação kantiana do "começo subal-
za, a causalidadeé apenasuma corrente de acidentes, e, por isso, de acordo terno" é aqui completamente equívoca: em sentido estrito, não pode haver
com a lei da natureza,"só há todo o tempo um começo sul)alterno, mas nunca nenhumcomeço subaltemo, mas apenasfenómenos que pensamoscomo co-
um primeiro começo, e, portanto, não há em geral nenhuma completude da meços, sem poder determina-los, contudo, positivamente. Toda afirmação
série por parte das causasque provêm umas das outras"(CRP, B473/A445). de uma relação causal na natureza pressupõealgo pura e simplesmente sub-
Nesse sentido, a idéia da causalidade como uma lei natural carece da com- sistenteporque sem essealgo não sepoderia falar de nenhum começo, e, por
plementação pela idéia de liberdade: é "preciso assumir uma causalidade. conseguinte, também de nenhuma ação. A //be/Jade cona/sfe nesse co//?efo
por hltermédio da qual algo acontece segundo leis necessárias, sem que a cau- pz//.ae s/n2p/es//?en/es /bs/s/e/?/e.Na medida em que não há nada que possa
sa sda detemlinada a partir daí ainda mais além por uma outra causa prece- ser conhecido como um tal começo, porém, a liberdade é uma "pura idéia
dente, isto é, é preciso assumir unia espon/a/7e/dadaaóso/irra das causas. transcendental" (CRP, B561/A533), "um conceito necessário da razão'
uma série de fenómenos que, segundo leis naturais, se encaminha para co- 'para o qual não pode ser dado nenhum objeto congruente nos sentidos'
meçar por s/ /lhes/?a, portanto, uma liberdade transcendental, sem a qual (CRP, B383/A327). Tomado estritamente, nada que é dado "nos sentidos:
mesmo no curso da natureza a sequência das séries dos fenómenos nunca po- pode ser algum dia começo de uma alteração, e, por isso, para aquele que
deria ser completada por parte das causas" (CRP, B474/A446). Tal como quiser abdicar da idéia de liberdade, "mesmo a possibilidade de uma altera-
Kant apresentaaqui o problema, pode surgir a impressão de que a dita com- ção em geral se tornará escandalosa" (CRP, B479/A451). Em meio a essa
plementação consistiria em estabeleceruma causacomo o começo de uma sentença,o valor conj untural da ideia de liberdade no contexto de pensamen-
corrente de causas, uma causa que seria então a causa derradeira, na medida to de Kant se torna particularmente evidente: a idéia de liberdade possibilita
em que não poderia mais ser pensadacomo tendo surgido nem poderia ser falar de "alteração", "começo", "ação", e, com isso, de causalidade em geral
remetida a uma anterior. Mas não é isso que se tem em vista. Mais ainda: não de maneira significativa. A liberdade não é nenhum conceito "por meio do
pode ser isso que se tem en] vista se o pensamento deve permanecer consis- qual lml objeto é em geral pensado" (Cl?P, B 146). e, por conseguinte, não é
tente. Uma tal causa pressupostapara uma corrente de causas fenomenais nenhuma categoria no sentido kantiano de uma "forma de pensamento:
não pode ser anterior a essasno sentido de uma série temporal, pois logo que (CRP, B 150), na qual a multipl icidade da intuição é sintetizada em função de
ela fosse coordenada às causas que Ihe são subseqüentes por meio da expres- modos sempre determinados e inexcedíveis, que permitiriam que todojuízo
são relacional "antes", nada impediria de Ihe atribuir também. do mesmo sobreobjetos particulares pudesseser subsumido a, no mínimo, uma dessas
modo, por meio da expressão "depois" uma posição na série temporal: ela formas de pensamento. Como idéia transcendental, a liberdade é uma cate-
permaneceria inserida na série temporal e seria ela mesma apenas um aci- goria "ampliada até o incondicional"(CRP, B436/A409); e, em verdade, ela
dente porque sua posição na série do tempo seria determinada por uma outra é a categoria da causalidade ampliada até o incondicional. Desta feita, na
pelo princípio da ação recíproca. Essa possível incompreensão é expressa- idéia da liberdade estápensadaa condição derradeira, e, com isso, elamesma
mente afastada na "ol)servação para a terceira antinomia". Como diz Kant. incondicionada, para a fomla de pensamento da causalidade; e isso, uma vez
não se trata aqui de maneira algtmla de "um começo absolutamente primeiro mais, pode ser interpretado, na medida em que se diz: precisamos recorrer à
segundo o tempo, mas segundo a causalidade"(Cl?P, B478/A450), ou seja, o noção de "liberdade" ou a lula noção que signifique o mesmo que ela, tal
que importa não é trazer à tona uma determinada posição como o começo da como a noção dc "espontaneidade", se quisermos dizer o que temos em vista
série temporal, o que seria impossível devido à inflnitude da série temporal, ao denominarmos algo o começo de uma alteração. Essa interpretação, no
104 Günter Figa
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 105

não é, em verdade, nenhuma idéia transcendental, mas a idéia transcendental


da liberdade não é nada além da noção do elemento substallcial como causa; a
princípio da relação causal conduz a essanoção porque o que produz efeito
não pode ser em última instância acidental, pois, sendo acidental, ele nunca é
considerado senão como algo produzido.
O elemento substancial que é pensado na ideia transcendental de liber-
dade como causa é "olãeto en] geral", e, portanto, a coisa em si. Na concep-
ção da liberdade como uma idéia transcendental, a causalidade, quejá repre-
sentaa coisa em si em vista dos fenómenos por ser o fundamento dos fenó-
menos, é combinada com a noção de uma série causal de fenómenos. Essa
combinação não é nada menos do que extrínseca e arbitrária: só é possível
falar em última instância de uma série causal de fenómenos, porquanto esses
fenâmenosjá sãoconcebidos como fenómenos dealgo, e, visto assim, a liga-
ção objetiva dos enunciados causais é garantida em última instâílcia porque a
coisa em si e causa.
Se o caráter causal de uma coisa en] si, ou seja, a liberdade, é a condição
derradeira para a ligação objetiva de enunciados causais, então também fica
claro em que medida nem a realidade nem a possibilidade da liberdade podem
ser demonstradas. Como categorias n)odais, "realidade" e "possibilidade" já
pressupõemjustamente aquela ligação objetiva. Isso Hlcaparticularmente cla-
ro quando Kant trata do conceito mais elevado "a partir do qual secosttmla co-
meçar uma filosofia transcendental" e designa como esseconceito "a divisão
no possível e no impossível" (C/?P, B346/A290). Todavia, essa divisão não
pode ser empreendida sem a noção de uma coisa en] si: "Uma vez que(...) toda
divisão pressupõe um conceito dividido, então um conceito mais elevado
aindaprecisa ser oferecido, e esseé o conceito de um objeto em geral(toma-
do problematicamente
e sem se definir se ele é algo ou nada)" (CRP,
B346/A290). O fato de esseconceito só poder ser tomado problematicamente
signiHtcaque ele pemlanece "vazio para nós" e não serve para nada senão
'para designar os limites de nosso conhecimento sensível e deixar um espaço
restanteque não podemos preencher nem por meio da experiência possível,
nem por meio do entendimento puro" (CRP, B345/A288). Em sintonia com a
diferenciação entre "limite" e "I)arreira", tal como Kart a empreende nos Pro-
/egó/lzenos,esseslimites do conhecimento sensível não podem ser tomados
apenasnegativamente; enquanto todas as barreiras só contêm "meras nega-
ções", há "em todo limite (.-) algo positivo também". Essemomento positivo
do limite consiste em que ele é "uma conexão real de algo conhecido conaalgo
comp[etamente desconhecido".23 Na medida em quc a coisa em si é ligada

" Proiegâtnertos
a todanleÍaPsica.futura,
À \]Q
106 Günter Figas 107
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade

asar-se-ia pensar o que aparecejustamente como aquele "algo", e, então, se


noderia conceder a relatividade dos conhecimentos e com igual razão afir-
mar que isso que conhecemos são as coisas. Em contrapartida, se a coisa em
si se torna causa dos fenómenos, então os dois são arrancados um do outro,
semque, porquanto só os fenómenos são efetivamente no tempo, ainda pu-
desseficar claro como precisa ser pensada a causação perfeita pelas coisas
em si. Desta feita, fica ao mesmo tempo incompreensível qual o significado
da designação kantiana das coisas em si como "sujeitos agentes''
Kant também constrói a teoria do agir livre, especiülcamentehtmlano, a
partir da premissa de que as coisas em si são causas e, com isso, como tais,
sujeitos agentes. "É sobretudo notável", assim escreve Kant, "que sobre essa
idéiatranscendental de lii)erdade se fundamente o conceito prático dessaúl-
tima e que seja essaidéia que constitui, nessaliberdade, o momento propria-
mente dito das di faculdades que cercaram desde sempre a pergunta sobre sua
possibilidade" (CRP, B56 1/A533); e isso é de fato notável se tivermos pre-
sentecom que problemas Kant se depara em meio à discussão do conceito
prático de liberdade. A esse conceito conduz a idéia de que o homem "conhe-
ce toda a natureza pura e simplesmente por intermédio dos sentidos", mas
tem de si mesmo um saber "por meio da mera apercepção", "e, elll verdade,
em ações e determinações internas que ele não pode de maneira algtmla con-
tar como impressõesdos sentidos". Assim, ele é "para si mesmo em unia par-
te certamentefenâmenol em outra parte, porém, a saber, em consideração a
certas faculdades. um obieto meramente inteligível, porque a sua ação não
pode ser absolutamente contada como receptividade da sensibilidade"
(CRP, B574/A546). As faculdades em vista das quais o homem é lml objeto
inteligível são o entendimento e a razão, e principalmente a última é diferen-
ciada de todas as forças condicionadas empiricamente, uma vez que pondera
em si e fenómeno, assim como à idéia de que os dois se encontram em uma seusobjetos meramente segundo idéias e determina a partir daí o entendi-
relação recíproca. Se é defensável dizer que não podemos conhecer as coisas mento. Esse,sim, faz, então, um uso empírico de seusconceitos (em verda-
como elas são em si" mesmasporque nossoconhecimento sempre é previa- de, também puros)" (CRP, B575/A547). A pergunta sobre se o saberde idéias

llWW:;: :smi;iiili$gi
incondicionadas e, por conseguinte, atemporais também precisa ser ele mes-
mo incondicionado e atemporal não precisa ser discutida aqui, eyatamente
como a pergunta sobre se a noção kantiana da "mera apercepção" possibilita
ções=por exemplo, com o empirismo de Locke ou de Russell a idéia da for- ou não uma teoria plausível da autoconsciência. Importante é apenasfirmar
mação prévia do conhecimento e da relatividade daí resultante,24a idéia de o fato de a razão ser um objeto inteligível por agir sem "receptividade" ; e isso
significa: sem poder ser alterada por uma outra causa. Portanto, o homem é
livre sob a pressuposiçãode que a liberdade pode ser concebida como causa-
lidade da coisa em si, na medida em que a razão tem causalidade. Kant expli-
cita essacausalidadeda razão ao dizer: "0 fato de a razão possuir causalida-
:'Cl:, quanto a isso, Strawson( 1966), p. 38.
de ao menos quando nos representamosuma causalidade dessegênero nela
T08 Günter Fígal
Martin Heídegger: Fenomenologia da Liberdade 109

fica claro a partir dos //apara//voi que entregamos como regras às forças em te, também não às condições da sucessão temporal" (CJ?/', B579/A551).
exercício em todas as coisas práticas. O dever expressaum tipo de necessi- Com essasentençatambém fica claro como precisa ser entendido o que apa-
dade e de ligação com razõesque não ocorren] na natureza como um todo O rece,na medida em que ele é provocado pela razão: ele não consistenas
entendimento só pode conhecer dessao que estáaí, ou esteve aí ou es arááí
ações,mas no sentido interno, no caráter empírico mesmo. Nele, uma ação
aparececomo o que se deve fazer. Todavia, nunca se conseguedizer se uma
ação é realizada por causa de sua obrigatoriedade ou se o agente também é
determinadoainda a agir por outros fatores: "Nossos cõmputos só podem es-
tar ligados ao caráter empírico. O quanto disso é efeito puro da liberdade e o
quanto precisa ser atribuído à mera naturezae ao erro imerecido do tempera-
mento (//?er/rotor/zrnae), ninguém pode ftmdamentar, e, com isso, também
não pode erigir segundo lmla justiça plena" (CRP, B579/A55 1; Obs.). Po-
der-se-ia agora concluir daí que, em Rtnção da contabilização de uma ação
como possuidorade caráter empírico, ninguém poderia ser responsabilizado
pelo que faz; em relação ao caráter empírico, permanece completamente
fora de questão o que o determinou em última instância a agir. Se Kart, con-
tudo, se atém à responsabilidade do agente,então isso tem a sua razão de ser
no fato de o caráter empírico nunca poder ser pensadocomo completamente
desprovido de liberdade. Kant procura deixar isso claro por meio de um
exemplo. Se alguém mente, então não se poderá torna-lo responsável por
essaação se se "investiga" a ação "segundo as causas determinantes que a
suscitaram" (CRP, B582/554), pois essassão condições que não se encon-
tram em sua maior parte sob o poder do agente no instante do agir; ele não
pode, por exemplo, alterar sua má educação no momento do agir. Mas mes-
mo que "se acredite que a ação foi assim determinada: não se deixa nem um
pouco de censurar o autor por isso" (Cl?P, B582/554): "Essa censura fun-
da-seem uma lei da razão, junto à qual se considera essaúltima como lmaa
causa,que poderia e deveria ter detemainadoo comportamento do homem de
maneira diversa, deixando de lado todas as condições ditas empíricas. E não
se considera essa causalidade da razão como plena simplesmente em con-
corrência com algo, mas em si mesma, mesmo se os impulsos sensíveis não
estiverem a seu favor, mas sim muito mais contra epala ação é referida ao ca-
ráter inteligível do homem; e esseé totalmente culpado no instante.Fm que
mente; portanto, sem levar enl conta todas as condições empíricas dõ feito, a
razão eracompletamente livre, e o que foi feito precisa ser atribuído comple-
tamente à sua omissão" (CRP, B583/A555). E estranho, a princípio, que
Kart fale aqui da ação como precisando ser contabilizada como pertencente
ao caráter inteligível, enquanto afirmara há pouco que todos os câmputos
sempre se encaminham para o caráter empírico. No entanto, não há aí nenhu-
ma contradição se o caráter empírico não for em verdade exclusivamente,
mas necessariamentetambém fenómeno do inteligível. E Kant aHlrmajusta-
] 10 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade l l l

mente isso ao reconduzir a censura pela mentira a uma "leí da razão". Essa
bém podemos dizer com Kart: a razão é "a condição permanente de todas as
lei é naturalmente a lei ética, que apareceenl meio ao caráter empmco sób a
açõesvoluntárias pelas quais o homem se manifesta" (CRP, B58 1/A553).
forma do imperativo categórico. Todo e qualquer caráter empinco está sub-
Ao falar de uma condição "permanente", Kant leva em conta a circunstância
metido ao imperativo categórico e somente em vista desse impera;silo tam-
de o cômputo das ações sempre se dar apenas em vista do caráter empírico. A
bém pode ser dito, como pensaKant, que alguém deveria ter aglão de um
pemlanência é aquia maneira como é experimentado que a razão é "presente
modo diverso do que faticamente agiu. Com isso, porém, o critério para a li-
e una para todas as ações do homem e em todas as circunstâncias temporais"
berdadedo agentejá não reside na ausênciade coerção, nem mesmo no fato
(CRP, B5 84/A556). Mas se a razão está presente sob a forma do imperativo
e que ele precisa estar em condições de articular razões quaisquer para seu
categórico para rodas as ações, então a pergunta sobre uma causalidade da
agir e ser correspondentemente capaz de reconstruir as fundanlentações que razão se tornaria obsoleta se Kant não tentasse interpretar novamente o cum-
vieram ao seu encontro para a preferência de uma ação ante outras. Tal como
primento do imperativo categórico mesmo como um agir. Essa interpreta-
estão formuladas em regras de pendência,tais fündamentações são sempre
ção, contudo, não é necessária para a idéia de uma liberdade do agir, e, além
relativas porque depe.ndemde condições, das quais o agentenão pode dispor disso, nãoé plausível. No que diz respeito ao primeiro ponto, a liberdade do
na própria situação de ação. O fato de Kart tornar a computabilidade das
agir, tal como a interpretação kantiana da mentira l)em o mostra,já consiste,
açõese com ela também a liberdade do agir exclusivamente dependentesda
sim, por si mesma, no fato de o agente estar submetido ao imperativo categó-
lei ética que apareceno caráter empírico também Ricaclaro a partir de uma rico. E seo imperativo categórico tem o sentido de garantira manutenção das
reflexão oriunda da obra póstuma; ele nos diz aí: "Nós possuímos ou nao
possibilidades de ação, então também se poderia pensar seu cumprimento,
uma expenencia em que somos livres? Nãos Pois senão precisaríamos expe- por fim, como uma determinada maneira de agir e não se precisaria dizer que
rmlentar ante todos os homens que eles podem resistir ao maior s/i lzr/o. Em
o agir moral é algo provocado de um modo particular. Dito de outra forma, o
contrapartida, a lei moral diz: eles devem resistir, por conseguinte é preciso problema da concepção kantiana reside en] pensar uma determ irada manei-
que eles possam faze-lo" (Reg. 5434). De acordo cona essassentellças, a re-
ra de agir co/ vo /no//v0/20ssíve/ para todas as ações pensáveis, e, somente por
quisição do. imperativo categórico ao qual se está submetido nunca poderia isso, a imoralidade também pode entrar em cena em concorrência com outros
ser resgatadano sentido de que se poderia qualificar "definitivamente" lula motivos para a ação. Todavia, não se consegue entender por que alguém, que
ação como "moral". Por outro lado, contudo, teria sentido pensar algo assim executa sua ação não apenas em razão de ela ser moral,já não age mais mo-
como uma lei ética em geral se fosse impossível corresponder a ela.'A per- ralmente em estrito senso. Por que não deveria ser possível dizer a verdade
gunta que decide tudo aqui é, sem dúvida, como temos de conceber uma tal
em interesse próprio e ao mesmo tempo por intelecção moral? De acordo
'correspondência". Sem adestrar nas fórmulas singulares do imperativo ca- com Kant, seria preciso abdicar do interesse em uma ação a fím de agir mo-
--l. lco, poder-se ia dizer que ele articula a exigência de só se querer o que ralmente a partir de uma nova motivação. Todavia, não foi senão em função
pode ser querido por.todos e de não querer nadaque, setodos quisessem. não desse interesse que se chegou inicialmente a essa ação. Se os homens que
seria mais realizável. O que isso significa pode ser explicitado de maneira
agem também são seres racionais por terem de se responsabilizar peia sus-
particularmente feliz a partir da mentira, e, por isso também. Kart mesmo
tentação de possibilidades de ação e por considerarem tanto a si mesmos
sempre se atam uma vez mais a esseexemplo: quem mente não precisa ape- quanto uns aos outros reciprocamente como livres porque essaresponsabili-
nas pressuporque os outros em geral dizem a verdade, mas também que eles dade não pode ser reconduzida a outras condições -- isso contragria o con-
tomam por verdadeiro o quedizem. No interessede sua mentira . o mentiroso ceito de responsabilidade--, então é de fato "estranho" que o corÊeito de li-
não pode de forma alguma querer que todos mintam, e isso indica que ele não berdadeprática deva estarfundado na ideia de liberdade como a causalidade
se comporta no sentido da manutenção de açõesdesejáveis e possíveis para deuma coisa em si. Quando pensa liberdade prática como responsabilidade,
todos 3 Porquanto a manutenção de possibilidades de ação é uma exigência Kant vai um pouco além de sua idéia de que a liberdade precisa ser concebida
necessáriae inteligível para todo agente, pode-se imputar tambén} que nin- como causalidade sem, certamente, jamais abandonar essa idéia na efetiva-
guém está em condições de se esquivar dessaexigência. Nesse sentido, tam- ção de sua üilosoHia prática. Mesmo em meio à tese de que o agir é motivável
pelo imperativo categórico, a idéia da responsabilidade permaneceligada ao
!SCf'.,quanto a isso, Final(1 982). modelo da causalidade.
T] 2 Günter Final
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 113

Não obstante,não é difícil tornar compreensível por que Kant, no âml;i-


afirmar que a liberdade não pode ser descrita adequadamenteem conceitos
to de sua concepção, não pede abdicar da idéia de uma causalidade específi-
causais. Essa afimlação pode ser defendida uma vez mais de uma forma
ca das ações humanas. Se a requisição da lei ética é imperiosa e ao mesmo
mais fraca ou mais forte, sendo a forma mais fraca conhecida sob o título «in-
tempo nunca pode ser, contudo, resgatadacom certeza, então resid:l nela
determinismo epistêmico" enquanto a mais forte é freqilentemente caracte-
uma determinação essencial do agente, da qual elejamaís pode se assegurar rizada como debate sobre "razões versa/scausas:
em ações singulares. "Poder" seguir a lei moral tampouco significa, por isso,
A tese do indeterminismo epistêmico encontra-se expressa da maneira
estar determinado a uma realidade e só concretizar plenamente a capacidade
mais significativa certamente por uma sentença de Wittgenstein: "A liberda-
para ela ao alcança-la. A teoria kantiana da liberdade prática não é teleológi- de da vontade consiste no fato de que açõesfuturas não podem ser conheci-
ca no sentido aristotélico, poisjá na requisição da lei ética, e não apenas em
das agora"." Sem precisar levar em conta as tentativas sutis e em parte ávi-
sua concretização, consiste a legalidade própria ao agir humano.zó Essa lega-
das por demonstrara plausibilidade dessatese,2Ppode-sedizer para a sua
lidade própria permanece sem conseqüências para as ações enquanto elas es-
elucidação: mesmo se leãofor impensável para um agente que suasaçõesfu-
tão sujeitas à lei natural da causalidade, e, se elas não estivessem sujeitas a
turas são condicionadas por fatores identificáveis, é de qualquer forma im-
essalei, então não se conseguiria tornar compreensível em geral no colltexto possível para ele deduzir o que fará a partir do que sabe sobre suas circuns-
de pensamento de Kart, porque algo pode ser alterado por meio de ações no tâncias vitais, sobre suas disposições e aspectos similares. No entanto, de
âmbito da natureza. A fim de poder pensar o agir humano, por conseguinte, acordo com essasargumentações, é claro que o modelo causal só é anulado
Kart precisa de fato da idéia de uma causalidade da razão. Se é que não deve
em meio ao respectivo instante da decisão e somente a partir da perspectiva
ser impossível corresponder ao imperativo categórico em geral, a causalida-
do agente.A liberdade da vontade, tal como Wittgenstein a pensa, repousa
de da razão também precisa ser vigente para ações que são faticamente leva-
sobre a inacessibilidade específica para as situações de decisão e apenas
das atermo, e, visto assim,é uma vez mais inteligível que Kart fundamente a
para elas dos esclarecimentos causais relativos ao próprio agir; e isso per-
liberdade prática na teórica, na idéia de uma causapura e simplesmente faz lmla dificuldade essencial para essaidéia: o esclarecimento causal seria
constante e, nisso, independente do tempo. Sem uma tal fundamentação não depois de se ter agido, o mais imediatamente compreensível, pois, conforme
pode ser dito que unia coisa qualquer é causa e não é tomada como tal apenas a posição do indeterminismo epistêmico, o modelo da causalidadecomo tal
a partir de razões pragmáticas. Porque a idéia transcendental de liberdade é
não é problemático. Por ser a respectiva situação de decisão determinada
introduzida no contexto da problemática da causalidade, a liberdade prática como situação de exceção em vista da aplicação de esclarecimentos causais.
também permanece ligada ao modelo da causalidade.
avalidade de esclarecimentoscausais é ratificada implicitamente para todas
Reformulações da concepção katltiana de liberdade as açõeslevadas a termo faticanlente. Com a tese do indeterminismo epistê-
mico não se diz nada acerca de se pode haver também outros esclarecimen-
Apesar de suas evidentes dificuldades, a teoria kantiana da liberdade tos para as ações. A autocompreensão de um agente seria, conseqüentemen-
continuou mantendo seupoder de atraçãonas discussõesfilosóficas mais re- te, caracterizadapor não poderjamais tornar inteligível conaargumentos
centes acercado problema da liberdade.27No contexto atual, o interesse não convincentes uma ação que foi uma vez levada a termo como uma ação real-
estátão voltado para apergunta sobre qual é, afinal, as ignificação do concei- mente desejada;ele nunca poderia dizer mais do que: "Outrora, quando me
to kantiano de liberdade prática para a discussãode problemas éticos. O que decidi assim, não sabia quais eram os fatores que determinavam dmeu agir
mteressa é muito mais a seguinte circunstância: a idéia kantiana de que a li- e, na medida em que não sabia isso, supunha que tinha uma escolha. Agora
berdadetem de ser concebida no âmbito do modelo da causalidade é ampla- contudo, percebo que tais e tais falares me determinavam, ou que, se minhas
mente aceita, sem que a tese de que a liberdade é ela mesma uma forma da cau- circunstâncias vitais e minhas disposições fossem investigadas mais minu-
salidade ainda seja assumida como plausível. Se se resguarda o modelo da ciosamente, se chegaria a tais e tais fatores". Com isso, permaneceobscuro
causalidade mesma e se contesta essatese, então só resta a possibilidade de como um agente pode se comportar ante as ações que foram levadas a termo
semse colocar exposr no ponto de vista de um observador desinteressado.A
!óCf quanto a isso, Beck(1960), p. 196. b

27Cfl
em relação a esseponto, Pothast(1980), P. 16. Flactattistogico-philosoplticusS, P. \ 362.
'Comparar,por exemplo, Hampshire/kart í 1958), MacKay( 1967) e Popper(1966)
1]4 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 115

ação empreendida não está mais, como Kart diria, sob o seu poder porque
ele nunca pode.se comportar em relação a elamais do que como em relação a
um momento de lml contexto causal indisponível; com a mudança dppers-

i ! ::::::::::i!:ll:l:l
adequadaparatomar inteligível uma autocompreensão
do agenteque inclua l=oescomo causasestá orientada por um tipo de açõesjunto às quais parece
impossível especificar a cada vez separadamente assuas razões. Quem sobe.
açõesempreendidascorrentemente,ou sqa, também fãticamente. Para fazer
frente a essafraquezapode-se então introduzir um critério, de acordo com o por exemplo, uma escada no escuro, pode ter a convicção de que haveria ain.
qual açõeslevadasa termo não podem ser apreendidasapenascomo momen- um degraujustamente no momento em que pisa no vazio. Dito de outro
tos de um contexto causal identificável a partir da perspectivado observador.
A possibilidade de fundamentaçãodas açõesaparececomo um tal critério: se
alguém esclarece ter agido outrora de tal e tal modo por ter achado melhor por
collvlcçao e ação -- se se recorre à determinação kantiana da relação causal.
ror urn, hani nao afirma que a causaprecisaria preceder o efeito segundo a
seqüênc/a /empa/'a/, mas apenas segundo a o/den2 fe/ 2po/ a/. Como foi mos-
trado, tem-se com isso em vista que só se pode falar de causae efeito a partir
da ineversibilidade de dois estados.Mesmo se a convicção de que haveria
ainda lml degrau não preceder temporalmente o passo no vazio, a convicção
e a açao precisam ser, de qualquer modo, anirnladas como irreversíveis se a

'oCl: Kenny (1975), P 119


''Kemly (1975), 120
1 1Ó Günter figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 1 17

um agente causoualgo não significa dizer que ele estava livre de determiiÍa- qual seria preciso compreender a causaçãode ações.O emprego de um voca-
dos tipos de influência causal; significa empregar um vocabulário causal bulário causalem meio à descrição de açõesé, em verdade, em geral inevitá-
para a descrição da relação entre razão e ação sem esclarecer ulteriormente o vel porque não temos tais leis: o que temos é apenasum "véu para a ignorân-
direito a esseemprego. Fazer issosignificaria ou bem recorrer à idéjaí'kantia- cia".33Se isso é assim,também não é preciso buscar nenhuma ligação miste-
na de uma causalidade a partir da liberdade, ou bem ao menos mostrar que o riosa entre o querer e o agir para que se possa falar de razões como causas;
en)prego do vocabulário causal não envolve nenhuma redução naturalista de pode-seaceitar o que alguém diz para esclarecer seu agir como causade seu
razõese ações. agir ou ao menos partir do fato de que a causa pode ser denominada ftJnda-
Esse último seria o caso se ações e razões fossem suficientemente expli- mentalmente na maneira como alguém filndamenta seu agir.
cáveis segundo leis naturais. Paratanto, seria necessáriomostrar, por exem- A força dessa argumentação é fácil de ser vista. Quando, assim como
plo, que convicções como estados psíquicos podem ser identificadas com Davidson, sejustifica o emprego do vocabulário causal em n)eio à descrição
acontecimentos descritíveis em termos físicos. Mas não é de maneira algu- de ações,evita-se tanto uma "naturalização" das açõesquanto um fosso on-
ma necessário,nem tampouco ao menosplausível, interpretar todos os enun- tológico entre o agir humano e a natureza. Em meio à descrição de açõeshu-
ciados causais como enunciados legais no sentido de que as noções neles manas, pode-se empregar a mesma categoria que em meio à descrição de
empregadastambém podem entrar em cena na fomlulação de lmla lei corres- acontecimentos físicos e passa-sea lidar aí tão-somente com lml "mundo:
pondente. Esseproblema foi minuciosamente discutido por Donald David- sem que seja preciso explicitar as ações segundo leis desse "mundo". Por ou-
son.Davidson fez valer o fato de haver enunciadoscausais singulares que só tro lado, precisa-se certamente ver que o problema, cuja solução importa a
contêm uma lei, na medida em que os acontecimentos neles descritos tam- Davidson, só se coloca a partir da perspectiva do observador desinteressado
bém podem ser apreendidos em outras descrições que são integráveis na for- que quer descrever açõesno contexto da natureza; e isso tem conseqilências
mulação de uma lei. O poder de esclarecimento de enunciadoscausais não é, paraa maneira como se pode estabeleceraqui o discurso acerca da liberdade
contudo, dependente do emprego de descrições que têm conformidade com Sese concebemrazões como causas,então a liberdade consiste em criar vali-
as leis. Assim, pode-se dizer sem problema algtml que um furacão causou dade sem entraves para as respectivas convicções e desejos em meio ao agir.
uma catástrofe sem se precisar buscar uma lei específica que ligue o furacão Um agente é livre para fazer algo quando escolhe fazê-lo34e um critério suül-
e a catástrofe um ao outro. As descrições nas quais eles nos interessam não ciente parao fato de ele ter escolhido é a possibilidade de dizer o que queria
são de um modo tal que permitam generalizações estritas, e, por isso, tam- fazer. A liberdade consiste no que se quer ou desejapode/' fazer. E fácil ver
bém não adquirimos por meio de enunciados causais sobre ações nenhtmla como Davidson recorre ao txotSaLov aristotélico em sua determinação da
elucidação sobre como as ações são causadaspor razões.Como Davidson o 'liberdade para agir". Dessaforma, também Ricaclaro que em sua caracteri-
expõe, é mais do que pensável que uma convicção produza uma ação sem zaçãoda liberdade não é dito nada sobre co/no éíser //vre. Se um agentequi-
que o agente faça intencionalmente algo em função de uma convicção. sessedescrever como compreende a si mesmo como livre, então ele não po-
Assim, um alpinista que segura um outro alpinista na corda pode ter a con- deria nem mesmo recorrer, para além disso, ao vocabulário causal. Não se
vicção de que poderia elevar a sua própria segurançase afrouxasse sua pega, sabe,em última instância, como ações são produzidas por razões. Quando
e essa convicção pode desconcerta-lode tal forma que ele efetivamente alguém diz que agiu de tal ou tal modo em função de lmla determinada con-
afrouxe sua pega, sem faze-lo, contudo, intencionalmente.': Se o emprego vicção, então ele pode empregar, em verdade, sem problema, umuvocabulá-
de vocal)ulário causal em meio à descrição de açõesnão envolve nenhum sa- rio causal. No fundo, porém, ele expressa mais ou menos distintamente um
ber exato sobre a maneira como se dá causação,então tampouco está ligada saber ou aponta ao menos para um saber, não usando apenas uma forma de
com ele a afirmação de que as ações precisam ser concebidas realmente descrição para informar que a ligação de sua convicção com sua ação não é
como acontecimentos no contexto de uma natureza dependente de leis cau- propriamente clara para ele porque ele não dispõe das leis exatas e detalha-
sais. Ao contrário: se designarmos as razões como causas para as ações, isso das que são correspondentes. A constituição do saber que o agente possui
acontece porque não possuímos nenhuma lei detalhada e exata segundo a

s:'Á cíoak:fol' igtioi'anca' Davidson (1980), p. 80


3:Davidson
(1980),p. 79. 3'Davidson (1980),p. 71

l
118 Günter Fígal
Martin Heidegger; Fenomenologia da Liberdade 119

não se deixa, evidentemente, tomar como algo determinado pela categt)ria 'livre" como um predicado comportamental pressupõe,como foi indicado, a
da causalidade. Esse saber não consiste no fato de que alguém "conecta" o idéia de Ente/ec/ze/a,e essaidéia não é mais aceitável para Heidegger como
que faz com a "posse" de um desejo ou de uma convicção, mas é m)Mo mais
princípio ontológico porque o ser-aí não se preenche como tal em nenhtmla
um saber d//'e/fvopa/'a a rea//cação dapr(ipr/a açâo. Pode ser que k.enny te- realidade. Em verdade, Heidegger certamente não contestada que também
nha em vista um tal saber em n)eio à sua tentativa de mostrar que razões não
sepode empregar a noção "livre" sob pontos de vista pragmáticos, tal como
são causas. No entanto, o que o impede de tomar efetivamente clara a diver-
Aristóteles emprega a noção de txot3aLov. Para o programa da analítica do
sidade desse saber em relação aos contextos que podem ser descritos sob a
ser-aí, contudo, esse emprego comece muito pouco, e, tomado estritamente,
categoria da causalidade é a suposição de que um agir a partir de razões não
é até mesmo inadequado, porque junto a ele permanecem obscurecidos a
pode ser um agir causado. Com essatese, contudo, o fato de razões desempe- perspectivade realização do descobrir e, com isso, também o contexto dessa
nharem um papel em meio ao agirjá é formulado uma vez mais de uma ma-
realização. Exatamente como para Kart, o que interessa a Heidegger não é
neira que sugere o recurso ao modelo causal porque não se diferencia clara-
apenasa liberdade de modos de comportamento, mas a liberdade do com-
mente entre a perspectiva interna e a extensa do agir. Não obstante, não é ab-
portar-semesmo.
solutamente necessário contestar que razõespodem ser tomadas como cau-
As respostasde Heidegger e de Kant à pergunta sobre como é ser livre
sasse sepode mostrar que a categoria da causalidade não possui nenhum va- diferenciam-se aí por um lado acentuadamente. No entanto, elas não são, por
lor de esclarecimento para o saber específico da ação; e o "causalista" Da-
outro lado, absolutamente irreconciliáveis. A concepção heideggeriana da
vidson oferece precisamente um argumento decisivo a favor disso ao mos-
liberdadepode ser compreendida completamente como uma reinterpretação
trar que descrições causais não dão nenhtml esclarecimento sobre a conexão
entre convicções e ações. daconcepçãokantiana, e essareinterpretação tem uma vez mais sua força no
fato de sobreviver bem sem a orientação problemática pela causalidade, tal
como essaorientação estápresente em Kart. Em uma preleção do semestre
Aristóteles, Kart e Heidegger
de verão de 1930, Heidegger estabeleceu uma discussão minuciosa com a
O saber que é característico do agente e que dirige a realização do agir concepçãokantiana da liberdade e criticou aí, antesde tudo, essaorientação
não é nada novo na discussãodo problema da liberdade tal como foi condu- pela causal idade. A crítica de Heidegger se constrói sobre a observação pre-
zida até aqui. Tomado em ternos aristotélicas, ele é um pensar que determi- cisa de que a causalidade para Kart não é pensável sem a liberdade. Não há
na na xpoatpcatç lmla aspiração; em tempos heideggerianos, ele é a «circun- dúvida de que Kant apresentou, como Heidegger tentou mostrar, a conexão
visão" fundada na significância. Se Heidegger mostra agora que a lida ocu- entre causalidade e liberdade sob a pressuposição da causalidade como lmla
pada com um utensílio nunca pode ser levada a termo senão porque o utensí- lei da naturezae também interpretou mal justamente por isso a liberdade
lio está aberto para essa lida, e que somente na medida em que surge uma como "causalidade da natureza absolutamente pensada"(OC 31, 215). Essa
confomlidade.com elajunto a algo é liberada a atençãopara algo, entãoele tesede Heidegger não se deixa senão ratificar mediante a interpretação que
nta inicialmente, exatamente como Aristóteles, pelo comportamento foi levada a termo aqui. Com certeza, porém,já pelo fato de Heidegger não
mesmo; "livre" não é mais, em verdade, nenhtml predicado do comporta- querer conceber por seu lado a liberdade "como uma espécie de causalida-
mento, mas ainda se mantém de qualquer modo um predicado, cuja signifi- de", mas sim a causalidade como um "problema da liberdade"(OC31, 300),
cação pode ser clarificada em uma análise do comportamento. Nisso reside ele também parece perder de vista o modo kantiano de colocação deoprol)le-
também a diferença fundamental entre a concepção de Heidegger e a de ma.Assim, tudo se mostra como se todas as categorias devessemser reduzi-
Kart: no campo do que precisa ser descrito imediatamente, não se consegue dasjuntamente com a causalidade à "compreensão de ser" no ser-aí, e, as-
encontrar, como Kart pen.sa,algo assim como a liberdade. Para ele, o que se sim, a pergunta kantiana sobre como é, afinal, possível agir em uma natureza
oferece a uma descrição imediata são sinaplesmenteos fenómenos e esses determinadapela lei causal sairia do campo de visão. Heidegger parece não
nunca podem ser, se forem interpretados no âmbito do prii)cípio da causali- ter visto pura e simplesmente o problema que taml)ém está em questão nas
dade, mais do que algo produzido. Por outro lado, como Heidegger não com- discussõesanuaissobre a liberdade, a saber,o problema da relação entre "li-
preende mais o predicado "livre" como um predicado comportamental, ele berdadee determinismo". "Causalidade", assim ele o diz, "é a categoria fu n-
também se movimenta na proximidade de Kart. A compreensãodo termo damental do ser como ser simplesmente dado" (OC 3 1, 300), e, com isso,
T20 Günter Figal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 121

um caráter da objetividade dos objetos. O ente é objeto, na medida em que é


nãoé senãoo possível no sentido do passível de descoberta. O ente em sua
acessívelna experiência teórica como uma experiência da essência Hlnitado
abertura não é a causa para descobertas, e, não obstante, não há descobertas
homem(...) Todavia, o ente só pode se mostrar a partir de si próprio e mesmo
sem ele. Tampouco há, certamente, descobertas sem o descerramento para o
se contrapor ao homem como objeto se o aparecer do ente, e, com/Kso. em
ente em sua abertura, e esse descerramento também não pode ser designado
primeira linha, o que possibilita no fiando um fenómeno desse gênero, a com-
como causa de descobertas. Ele não é, e6etivamente, nada além do ser-pos-
preensãode ser,tiverem em si o caráter do deixar algo objetivar-se"(OC 31.
sível que alcança na significância lula determinação respectiva. Somente se
302). "Deixar olÜetivar-se" é, agora, uma expressão que pode ser reconheci-
seobscurece que essadeterm mação é lmla aparição do ser-possível em meio
da facilmente por designar no mínimo algo semelhante ao term o "liberação
à abertura do ente, pode-se aplicar a ela a categoria da causalidade. Heideg-
em Ser e /em/20. E, do mesmo modo que em meio à interpretação das passa-
ger não precisaria, de maneira alguma, contestar que o emprego de um voca-
gens correspondentesem ST, aqui também parece estar sugerido uma vez
bulário causal também não é nada problemático em vista do homem; ele só
mais que devemos pensarem algo assim como uma constituição dos objetos
precisaria dizer que não se visualizada assim o modo específico de ser dos
a partir do ser-aí. Heidegger teria, então, abdicado de sua opinião positiva
homens e poderia, além disso, assumir üldo o que Davidson descobriu sobre o
quanto ao fato de que para Kant "o mundo exterior está aí"(OC 61, 4) e se de-
empregodessevocabulário. Vocabulário causal, assim ele poderia interpretar
cidido de qualquer modo de maneira diversa no que diz respeito à sua própria Davidson, tem o seu valor conjuntural em determinadas fomlas de interpreta-
filosofia. Assim como a consciência para Husserl, o ser-aí também seria com
ção.No entanto, como ele precisaria acrescentar, não faz nenhum sentido usar
isso caracterizado por não precisar de nada para existir. Mas as coisas não se
essevocabulário no contexto de uma determhlação da liberdade.
dão, contudo, dessa maneira. Se, de forma análoga ao «deixar-confor- Com isso, a pergunta sobre a relação entre "liberdade e determinismo"
mar-se", se interpreta o "deixar-objetivar-se" como a liberação pensada de
tambémjá estáa princípio respondida. Em articulação com Heidegger, não
unia determinada maneira, e, em verdade, mais exatamente, como liberação
seestaria obrigado a contestar que o comportamento pode ser restringido e
na medida em que essa é pensada a partir do conhecimento teórico. então fica
na maioria das vezes estámesmo restringido por fatores sociais e outros di-
claro que o que precisa estar em questão para Heidegger aqui também é a
versos,ou mesmo pela violência no sentido aristotélico. Todavia. tais restri-
abertura do ente. O fato de o ente estar aberto "nele mesmo" o perfaz como
ções sempre dizem respeito apenas ao comportamento determinado e não à
ente em geral, ou, em ressonância com Aristóteles: o ente é aberto porqt/an/o
estnitura mesma denominada "ser-aí". Se se diz isso, então parece que se
e/e é en/e. Se se reproduz essa idéia a partir da concepção kantiana, então o
aceitacertamentea inconseqijência prática do problema da liberdade; a per-
ente entra em cena em sua abertura no lugar da coisa em si, e, pormeio disso,
gunta sobre a responsabilidade, por exemplo, não se deixa, ao que parece,
uma vez mais, a idéia de coisa em si perde seu caráter dissonante.Tal como
nem mesmo discutir no âmbito de uma concepção de liberdade tomada de
foi apresentado, essa idéia é necessária se fenómenos devem ser fenómenos
maneira puramente ontológico-existencial. Para o cotidiano, essa concep-
de algo; se não pensássemos os mesmos olÚetos que se manifestam como coi-
ção só é desprovida de conseqiiências se a liberdade do ser-aí, tal como foi
sas em si, então "se retiraria daí a sentença absurda de que haveria um fenó-
desenvolvida até aqui, não for em nada problemática no ser-aí mesmo. No
meno sem algo que se manifesta"(CRP, B XXVI). Apesar de sua incognos-
entanto, teremos a oportunidade de ver que o conceito heideggeriano de li-
cibilidade, a coisa em si é pensada assim certamente como um determinado
berdade tem ao menos um aspecto similar ao de Kant, um aspecto que não se
olãeto, ou seja, a idéia de coisa em si é conquistada em meio à orientação pe- pode mais sem dúvida denominar"prático". Porque o ser-possível lü abertu-
los olhitos que se manifestam e são cognoscíveis, e nisso reside evidente-
ra do ente nunca pode ser transformado completamente em lula realidade
mente lmla analogia que não corresponde, tomada de modo estrito, ao que determinada, ele precisa ser interpretado mesmo que lula vez mais de ma-
esta em questão para Kant. Se Heidegger pensa, em contrapartida, o ente
neiratotalmente diversa da que se faz em sintonia com Kart como uma re-
nele mesmo como o aberto e nisso passível de descoberta, ele superou essa quisição à qual se pode e não se pode fazer frente. Dito de outra maneira, a
analogia. Com ela também cai por terra agora a obrigatoriedade de se conti-
aparição do ser-aí pode se tornar um encobrimento de sua liberdade. O que
nuar interpretandoliberdade em geral como causalidade.O ente em sua
temos de fazer agora é desenvolver,então, as pressuposiçõespara a
abertura, para a qual se está descerrado no ser-aí, não se deixa pensar como a 'não-liberdade" nesse sentido.
causa de um efeito, pois ele só poderiaser causa como algo real. Contudo, ele

J
122 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade t23

g 5. Ser-com e co-ser-aí. O "impessoal" como determinação, no fato de que a elaboração de concepções HilosóHicas freqiientemente impli-
fundamental da não-liberdade ca a estilização ou a interpretação unilateral de outras concepções; issojá é
característicoda crítica aristotélica a Platão. Além disso, o interessepor pro-
Na recepçãodo pensamento
de Heidegger,
as discussõelí'
sobreo blemasobjetivos conduz den)aneira igualmente frequente a que companhei-
ser-com , o "co-ser-ai" e o "impessoal" têm uma posição ambivalente. ros de discussão de um filósofo, ao se apresentarem como intérpretes de seus
Para intérpretesinteressadosem uma exegeseontológica ou filosófi- textos, esperem por respostas a perguntas que o autor não se coloca absoluta-
co-sulãetiva da estrutura do "ser-aí", essasdiscussões são subestimadas ou mente e mesmo nem precisaria colocar em seu contexto de pensamento. Pela
mesmo deixadas de lado sem consideração.3sPor outro lado. elas atraíram mesmarazão, respostasa pergLmtasque foram colocadas e lias quais o intér-
para si as críticas veementesde autores que, em uma dissensão distanciada pretereencontra suaspróprias perguntas podem ser alojadasde tal modo que
com Heidegger, estavam empenhados na epal)oração de uma concepção fi lo- não precisem ser então aceitas pelo intérprete. Por mais elevadamente que se
sóHiçaprópria. No texto de Se/' e re/lzpo podem ser indicadas razões muito possavalorizar o caráter produtivo de tais interpretações unilaterais, quase
boas para as duas posturas. No que diz respeito à primeira postura, a discus- nãose conseguirárecomenda-las como exemplares para a lida com textos ül-
são da convivência parece produzir uma estranha emenda ao capítulo central losóficos. Ao contrário, interpretações unilaterais normalmente tornam ne-
sobre a "mundanidade do mundo" e não acrescentar mais nada decisivo para cessáriasnovas interpretações e compreensões da relação entre o intérprete e
a clarificação do conceito de mundo; onde o que está em questão é uma ca- o autor interpretado. Uma característica essencial de tais compreensõesé o
racterizaçãodo "ser-aí", parece possível se contentar por isso com um par de fato de, para evitarem por si mesmastais unílateralidades, elas se empenha-
indicações sucintas. Se se compreende o "ser-aí" como "subjetividade", en- rem em indicar o valor conjuntural que determinados problemas e sua dis-
tão essasdiscussões são de qualquer modo marginais. Em contrapartida, o cussãotêm no contexto de pensamento de um autor. No que concerne'à dis-
que Heidegger diz é insatisfatório para autores que estão interessados pelo cussãodo ser-com e do co-ser-aí em Heidegger, isso significa inicialmente:
prol)lema da "existência alheia", do "ser do outro" ou do "próximo" e por não buscar nessadiscussãonem um esclarecimento psicológico do "conhe-
'contextos sociais"; é insatisfatório porque ou Heidegger diz pouco demais, cimento da existência alheia", nem uma filosofia do "próximo", nem uma
ou o que ele diz, no contexto de pensamento dos autores em questão, é toma- teoria de instituições sociais, e, então, não encontra-los. Significa, de início,
do por insatisfatório. Certamente, não é por acasoque alguns autores, como seperguntar em que medida as análises do ser-com e do co-ser-aí contribui-
Lõwith, Lévinas e Theunissen,3óargumentam a partir da tradição da assim riam para o desenvolvimento do curso de pensamentode Heidegger, tal
chamadafilosofia dialógica. Mas mesmoSartre,que nãoprovém dessatra- como essefoi elaborado e trazido à tona até aqui. Essacontribuição consiste
dição, faz valer o fato de, na concepção heideggeriana do ser-cona, o outro em uma compreensão não mais filosófico-subi etiva do "eu" e em uma deter-
não ser pensado em sua concreção, e, por isso, de essaconcepção tambén] minação ftuldamental da liberdade.
não ser apropriada para resolver o problema psicológico e concreto do co-
nhecimento dos outros.'' Em contraposição a isso, Tugendhat critica o fato A exposição da pergunta sobre o ser-com e pelo co-ser-aí
de "contextos sociais e institucionais'' não serem levados em conta em Hei-
Conforme foi dito, no que concerne à coisa mesma, a análise do ser-com
degger.'' O que precisamos lembrar, porém, é que, por mais elucidativa que
e do co-ser-aí ainda pertencem ao contexto da análise do "mundo". Isso se
possaser à primeira vista a listagem dos descuidos que se podem apresentar
mostra, entre outros aspectos, por Heidegger continuar trabalhando aqui
a Heidegger, é preciso ter clareza quanto aos pressupostosda crítica à análise
com os termos centrais do capítulo sobre o "mundo": "conjuntura", "signifi-
heideggeriana do ser-com e do co-ser-aí. Um dessespressupostos consiste
cância" e "em-virtude-de". O que está em questão na análise do ser-com e do
co-ser-aí é um aspecto do ser-no-mundo que ainda não fo i discutido até aqui.
"Cf, por cxenlplo, Bartels( 1976), Gethman(1 974), v. Hernnann(1 985). Schulz (1969) e Tu- Não obstante, i)ão é por acaso que Heidegger reserva um capítulo próprio
gelldllat (1970). para a análise do ser-com e do co-ser-aí. Em verdade, não está mais emjogo
"CI. Lijwith, 5ã//l//lc#e ScATÜe/z / (Escritos reunidos 1). Lévinas ( 1 979), Theun issen ( 1977). agora um ente que é descoberto no mundo, mas sim o "ser com" um ser-aí
..4instta }.elationdu '&fitsein' ne satlrait notassetvit' aucttnetltetltà tesotidle te pl'oblêllte
que não é a cada vez"o meu". Como Heidegger mesmo bem oviu, odiscurso
psychologique et concrer de [a i'econnatssanced'aulrul" ÇL'être et le itéant. 293)
:'Tugendllat(1979).p. 229 acerca do outro como um ente também pode conduzir a tala incompreensão,
124 Günter Figal Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 125

e éjustamente em relação aos outros que uma tal incompreensão pode se 'dar de que o "eu" designa uma tal "região fechada": "A obviedade õntica do
o mais facilmente possível. De acordo com a formulação heideggeriana pre- enunciado de que eu é que sou aquele que sempre a cada vez o ser-aí é não
sente na preleção Pro/ego/ lemazzr/'pesca/cÀ/e des Ze//bege/Ü®es (Prolegõ- deve induzir à opinião de que o caminho para uma interpretação ontológica
menos a uma história do conceito de tempo), não podemos pensar/aquando do assim 'dado' está inequivocamente prelineado. Permanece mesmo ques-
dizemos e, tomado de maneira própria, quando dizemos incorretamente, 'o tionável se o conteúdo õntico do entmciado acima transmite adequadamente
ente que tem o modo de ser do ser-aí', que esseente sqa algo assim como aconsistência fenomenal do ser-aí cotidiano. Podeser que o quem do ser-aí
uma coisa mundana simplesmente dadaque teria sua qüididade de inicio in- cotidiano não sdajustamente a cada vez eu mesmo"(ST, ] 15). Para compre-
dicada para si e que, em ftlnção de seu conteúdo qtiididativo, também teria endero sentido dessatese que soa à primeira vista paradoxal, é de qualquer
então lml modo determinado de ser tal como uma coisa, lmla cadeira. uma modo necessáriotornar clara inicialmente de modo pormenorizado a signifi-
mesa e outras coisas do gênero. Porquea expressão'o ente dotado do caráter cação dessesdois termos: "eu" e "si próprio". Por meio disso também se
de ser-aí' sempre já induz a algo assim, a expressão é, no fundo, errónea' mostrará,então, um outro aspecto do termo "auto-evidência'
(OC 20, 325). O fato de Heidegger, apesardessasconsiderações- e em Se/' e
renlpo sem qualquer problematização --, fa lar de um ente que possui o modo
de ser do ser-aí pode estar fundado em lmla dificuldade lingiiística: o tem)o
No que concerne ao termo "eu", uma peculiaridade de seu emprego
ser-aí em alemão (Z)ase/n) não possui nenhum plural, de modo que é quase
semprefoi acentuada uma vez mais desde Descartes: quem emprega esse
impossível falar dos outros e fazerjus ao fato de eles estarem "aí" e não esta-
termo de maneira significativa está imediatamente certo de sua própria exis-
rem apenas como entes simplesmente dados. Mas o problema que está em
tência. Como se sabe, essa certeza foi determinada mais exatamente por
questãopara Heidegger não é de um tipo terminológica. Esseproblema con-
siste muito mais no seguinte: segundo a sua estrutura, enunciados feitos so- Descartescomo a certeza do ego cog//o. De acordo com Descarnes,não é em
verdade certo o que eu penso, mas apenas que eu penso. SÓo pensamento
bre os outros não são diversos dos enunciados feitos sobre aquilo que vem ao
não pode ser cindido de mim39e não pode se tornar objeto de dúvida, pois,
encontro como "objeto". Isso poderia sugerir uma vez mais a opinião de que
atémesmo no casode um experimento muito amplo de dúvida, eu sou aquele
os outros também precisam ser pensadosno mínimo como olÚetos, ou, dito
que duvida.40Com certeza, o que é problemático é como precisamos com-
de maneira mais neutra, como entidades. Se se quiser recusar essaopinião,
preenderaqui mais exatamente acerteza do "eu sou". Paraclarificar isso, po-
então é preciso que se mostre que a determinação dos outros precisa ser cor-
de-se chamara atenção para o fato de que alguém que anilha que não pensa
cel)ida de modo diverso da deterá maçãodos objetos quevêm ao encontro.
profere lml enunciado que se contradiga por meio de sua realização; nisso se
Considerado exatamente, porém, o problema acerca de como é preciso
diferencia a proposição "eu penso", por exemplo, da proposição "eu escre-
pensara determinação do ser-aí não diz respeito apenasaos outros, mas tam-
vo".4i A certeza da própria existência reside no fato de a proposição "eu pen-
bém "ao indivíduo mesmo". É em verdade difícil, se não mesmo impossível,
so", ao ser dita, expressar necessariamenteum pensamento. A informação
abstrair completamente das próprias perspectivas de experiência, mas sem-
ainda é, certamente, insatisfatória. A certeza, ta l como foi elucidada até aqui,
pre se podeconstruir enunciados sobre si mesmo.E por isso que também ten-
só se liga efetivamente ao fato de "que um pensamento é" e não tambén] ao
demos a compreender a significação do termo "eu" a partir de tais enuncia-
lugar dessepensamento. Podemos esclarecer, agora, o significado da afir-
dos. O que o termo "eu" designa é pensado, então, "como o ente já sempre
maçãode que "eu" sou o lugar do pensamento se compreender#los o "eu:
simplesmente dado de maneira constante em uma região fechada e para essa
como uma palavra indexical ou como um termo demonstrativo. Se tomar-
região, como o que jaz no fundo em lml sentido excepcional, o sz/6#ecrzr/zz.
mos o "eu" como uma palavra indexical do mesmo modo que fazemos com o
Como um mesmo,esseente possoi o caráter de si próprio em meio à alterida-
'aqui", então precisarenaos certamente excluir que o "eu sou" dá a entender
de p[ura[" (Sr, 1]4). O termo "eu" não visa apenas.conseqtlentemente, lml
semmais a existência de uma determinada pessoa: "eu" não identifica pes-
determinado conjunto de propriedades, mas também a maneira específica
como qual se fala dessaspropriedades, o fato, portanto, de falarmos das pro-
priedades denominadas nas proposições que envolvem o «eu" como das nos- sota a }ne divelli neqlttt" iMeditações !f. 6 (ê.dannnatxtneq "V\\ . 21).
sas próprias propriedades. Mas Heidegger querjustamente contestar a tese 'ego /p:e siím. quf /a/n duó/role/e de onznfóui"/À/ed//anões r1. 9(Adam/Tanneíy Vl1, 28)
"Cf. Williams (1978),p. 74
126 Günter Figa
Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 127

soa alguma; quando alguém ao telefone se anuncia simplesmente com ã pa- não se pode mais, além disso, perguntar como os respectivos aros de pensa-
lavra "eu", não conseguimos saber quem ele é a não ser que o reconheçãmos mento podem ser identificados como os próprios; lula tal identificação seria
pelo timbre de sua voz. Todavia, porquanto todo aquele quediz "eu'l,é a prin- umavez mais um ato de pensamentoe a pergunta sol)re uma identificação de
cípio identificável, é de se supor que com o "eu sou" se tem em v,igíaa exis- aros de pensamento como os próprios daria provas de ser regressiva. No en-
tência de algo /denf #cáve/, e, em sintonia com isso, também podemos de- tanto, o porquê de essa pergunta sen]pre se co]ocarnovamente com uma per-
senvolver uma tesesobre em que perspectiva a declaração"eu sou" encerra sistência peculiar é fácil de ser esclarecido: quem coloca a pergunta parte da
em si a certeza imediata da própria existência: quem emprega significativa- pressuposição de que com o "eu" se faz referência a algo do qual se precisa
mente o termo "eu" remete com isso parauma "entidade existente no tempo dizer, então,já em função dessareferência, que pensa.Se se concebe o "eu
e no espaço"" que ele mesmo pode identificar e caracterizar a partir da pers- como uma pa]avra indexica], então se pode diferenciar em verdade o "eu" de
pectiva do observador, e, destafeita, da mesma forma que qualquer um ou- "aqui" e "isso", na medida em que se aponta para o fato de no caso do "eu
tro. Assim, essaentidade se mostra como o lugar do pensamento estarfora de questãoa possibilidade de a referência ser plurissignificativa
Em meio a uma tal interpretação não se atenta, porém, para o fato de para aquele que a empreende; enquanto se pode ter em vista com "aqui", por
Descarnester querido tornar compreensível a certeza da própria existência exemplo, "aqui em cima dessa cadeira", "aqui nesse quarto" etc., e, com
junto à realização do pensar. Foi nessesentido que Husserl, em seu recurso a isso", "esse livro", "essa mesa sobre a qual está o livro", o emprego de "eu
Descartes,compreendeua certeza imediata da existência do ego cog//o nãoé, segundo esseponto de vista, variável. Com certeza, todo falante pode
como "autopresença vital" e contestou energicamente a apreensão de que dizer "eu". No entanto, quem diz "eu" sempre tem em vista a "si próprio".4ó
com o ego sz//7zse teria salvado "um pequenino finzinho do mundo"43 ante a Mas o que pode significar "ter a si próprio em vista"? Se se concede que a
dúvida. Mesmo que Husserl penseos aios de consciência, na medida en] que proposição "eu penso" não carece de neilluma determinação ulterior para
nos ligamos a eles reflexivamente, uma vez mais então como un] dado. a cer- ser compreensível, então o "ter em vista a si próprio" só poderia significar
teza do ego cog/ro não reside para ele no encontrar-se presente indubitável que eu, no que penso a proposição, ao mesmo tempo faço referência ao meu
de uma entidade, mas sim no fato de que nunca é possível falar do pensar se- próprio pensamento.Na medida em que essaproposição não pressupõene-
não na medida em que ele é levado a termo; a txoXT} fenomenológica não é nhtmla determinação ulterior da pessoa pensante, fica claro que ela também
nada além da concentração nessarealização da "própria vida pura da cons- pode ser dita de alguém que sofre de amnésia e não sabe mais quem é.47
ciência"" e em abstração ante as "posüiras naturais", nas quais a realização Quem diz "eu penso" sempre diz em verdade algo determ inado. mas não tem
como tal não é expressa.Se nos articularmos com essainterpretação do ego em vista seu pensar. Ao contrário, o que ele pensa e a possibilidade de que
cog/ro, então poderemos alcançar uma clarificação do significado de "eu isso seja talvez un} estado ou uma propriedade da própria pessoasão total-
que se diferencia da apreensãodessetermo como uma palavra indexical. Se a menteiníquas para a significação de "eu
certeza imediata da existência consiste na indubitabilidade do ato de pensa- Se"eu" não é nenhum termo referencial, ele certamente parece não fa-
mentoe não apenas no fato de "que há um pensamento", então o "eu" em zermais do que dar a entender o puro ato de pensar, e, com isso, as teorias nas
Descartes pode conduzir à interpretação de que ele dá a entender esse caráter quais o que está em questão é lml tal ato puro sob o título de "subjetividade
do ato de pensar: porque só o pensar não é cindível de mim. meu ser não é ou, como diz Fichte, do "Eu", se tomam novamente atraentes. Temos. assim.
nadaalém da realização do pensar;mesmo se imaginarmos que tudo o que se dois caminhos aqui: conceber o "eu" como um termo que dá a eiVender o ato
pensa sobre a sua pessoae sobre os Duetos não passade insinuação de um dopensará seconcentra exclusivamente nesseato ou interpreta-lo de manei-
génio maligno e de fantasmagoria, não se consegue tornar compreensível o ra Hllosóflco-transcendental como lula ação originária. Se se toma essaúlti-
que poderia significar a afirmação de quc ter alucinações ou estar sujeito a ma opção, então se abstrai do contexto do ato de pensamento e se cai, além
ilusões não é pensamento. Se o fato de se pensaré idêntico ao fato de se ser,45 disso, no perigo de tomara "pensar" de tmla maneira que torna impossível os
dados específicos sobre o que o pensar a cada vez é. Já em Descartes, às cog/-
':Tugçildhat (1979),p. 79
Cat'tesiartisclte &fediÍationen, p. 62.
Cattesianische N'feditationen, p. 63 "CI'. Schoeinaker
( 1968)
4sAssim, Hegcl tambétn interpretou Descarnes.Cf. Obra.ç 21),p 131 "Anscombe ( 1975)
128 Günter Figal Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 129

far/odes pertencem também o querer, o representar e o sentir." Se se l(#a em lamente vêm ao encontro', os outros para os quais a 'obra' é determinada. No
conta também que a posição proeminente do ego cog//o se deve ao contexto modo de ser dessemanual, isto é, em sua conjuntura, reside uma referência
do experimento da dúvida, então é de se suspeitar que nem todas os ates essencial a possíveis usuários, para os quais a obra deve ser 'talhada em vista
mentais e nem todos os modos de comportamento são de tmaz\áalmaneira de seuscorpos' . Da mesma forma, no material empregado vem ao encontro o
que seriam dados a entender expressamentepor meio de um dizer-"eu". A seu produtor ou o seu 'distribuidor' como aqueles que 'servem' bem au mal
idéia de que o "Eu" é um princípio talvez só tenha setornado possível porque O campo, por exemplo, ao longo do qual passeamos'lá fora', mostra-se
se abstraiu do contexto literário das À/ed//anões. Por isso, as tentativas de como pertencendo a esse ou àquele homem, em ordem por ele, o livro usado
clarificação analítico-linguísticas talvezjá tenham o seu direito por se trata- é comprado por..., presenteado por... e coisas do gênero"(ST, ll 7). Tudo pa-
rem pura e simplesmente do "eu" como um termo lingtlístico.49 Se se tenta rece aqui como se os outros fossem "apresentados" primariamente por meio
agora compreender o emprego dessetermo de maneira diversa da referen- do utensílio descoberto, e, com isso, se turvaria lula vez mais a diferença
cial, sem se chegar a uma sobrestimação HllosóHlco-subjetiva do ego cog/ro, fundamental entre os entes que não possuem o modo de ser do ser-aí e o
então pode-se dizer de início que, com certeza, ninguém está em condições co-ser-aí." Heidegger mesmo viu essadificuldade e estabeleceu o seguinte:
de formar uma sentençacom "eu" semafenfa/ parao estadode fato especifi- A característica do vir ao encontro dos outros se orienta, porém, uma vez
cado e caracterizado por intermédio da sentençae sem dar expressão fa/zí- mais pelo ser-aí a cada vez propriamente dito. Será que não se parte também
bé/ z a essa arençâo. Esse último ponto designa a diferença entre sentenças de uma distinção e isolamento do 'eu', de modo que então precisa ser busca-
na terceira pessoa e as na primeira pessoa. Quem cunha sentenças do tipo "a da uma ponte desse sujeito isolado para os outros?" (ST, 1 1 8). A questão é
é F" não dize mesmo que alguém que diz: "eu vdo que a é F". Nem todos os que essasuposição é para Heidegger uma incompreensão, e, "para evitar
enunciados de sentenças-"eu" são auto-evidentes e, obviamente, essas sen- essaincompreensão, é necessário notar em que sentido se fala aqui dos 'ou-
tenças não têm apenas o sentido de dar expressão à atenção em relação a tros'. 'Os outros' não dizem aqui o mesmo que: todo o resto dos que sobram
algo. No mínimo, porém, elas também fazem isso, e, em verdade, na maioria além de mim, a partir do que se distingue então o eu. Ao contrário, os outros
das vezes no contexto das conversas com os outros. No entanto, falar é um são muito mais aqueles dos quais nós mesmos na maioria das vezes /?âo nos
modo de comportar-se em que estamosmais ou menos manifestos uns para diferenciamos, entre os quais também nos encontramos. Esse tam-
os outros; e isso pressupõe uma vez mais que possamos nos ton)ar em geral bém-estar-aícom eles não tem o caráter ontológico de um 'co'-estar-sim-
manifestos uns para os outros, de modo que a maneira em que estamos uns plesmente-dadono interior de um mundo. O 'com' é algo consoante com o
conaos outros também precisa ser caracterizada pelo caráter não manifesto. modo de ser do ser-aí, o 'também' tem em vista a igualdade do ser como
Essa convivência não manifesta é o fenómeno que aparece em meio ao di- ser-no-mundocircLmvisivamente ocupado"(ST. ] 18). O que Heidegger tem
zer-"eu". Ele é o fenómeno que estáem questãopara Heidegger quando in- em vista aqui pode ser facilmente explicitado se se evita o termo "conjuntu-
vestiga o "ser-com" e o "co-ser-aí' ra" e se se dizsimplesmente em articulação com o exemplo mencionado por
ele que toda e qualquer produção de algo acontece em função de seu possível
Ser-cota e co-ser-ai uso. Esseuso é normalmente um uso pelos outros. Com certeza, todo com-
portamentoé levado a termo "em-virtude" do próprio ser-aí no sentido de
Porque o que está em questão para Heidegger é inicialmente a convi-
que sempre se quer ser seu descerramento para a abertura do ente de lmaa ma-
vência não manifesta, também não pode causar maior espanto o fato de ele
neira deternl inada. Entretanto, um a série de atividades só pode'm ser realiza-
começar sua análise pela pergunta sobre como os outros "vêm conjuntamen-
das porque há outros para cujo fazer essasatividades são signiHlcativas. Em
te ao encontro" na lida cotidiana com o utensílio: "A descrição do mundo cir-
suasatividades, os outros têm lula vez mais sua determ mação, de modo que
cundantemais imediato, por exemplo, do mundo de trabalho do artesão,
o ser-ai como ser-com é "essencialmente em virtude dos outros" (Sr, 123).
trouxe à tona que, com o utensílio que se encontra em uso, os outros 'conjun'
Nós somos ao mesmo tempo um outro, porquanto possibílitanlos por meio
S

'*Cf. Meditações \\, 8 (AdallnHannery). " Sed quis igitursufti? Res cogtlans: quidesf hoc? Nein- 'É nesse sentido que Theunissen escreve: "'Vir ao encontro' quase nt.inca significa em Se/. e

pe dubitans, intelligens. afFrmans. negans. voterts. noíens. imagtnans qttoqlte et senttens. re/npo: nós vamos ao encontro uns dos outros, mas quase todo o tempo: o ente intramundano
'PTugendhatdenomina isso "a descidado Eu parao 'eu"'; Cf. Tugendhat ( 1979), p. 68. vçin ao encontro do ser-aí, que deixa vir ao encontro". Tlleunissen ( 1977), p. 170
130 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 131

de nossofazer também um outro fazer. O discurso acercados "outros" nunca questãoé, contudo, comparável. Somenteem função do caráter não manifes-
tem sentido senão a partir da perspectiva da primeira pessoa, e essaperspec- to dos outros seestá em condições de se concentrar por si mesmo em uma ati-
tiva é característica para qualquer um com quem se está. vidade, e, uma vez que essecaráter não manifesto não vem a termo por meio
Por conseguinte, o temia "ser-com" aponta por um lado papáo fato de, em de uma interpretação que descobre uma disposição, talvez o melhor que se
meio à ocupaçãocotidiana com os outros e com suasocupações,cadaun] estar possadizer é que os outros são essencialmente "retraídos" e os deixamos
nessaretração. Em sua retração, os outros são "co-seres-aí". Conforme a for-
referido ao contexto utensiliar em que se movimenta. Assim, se se utiliza aqui
o termo "referência", então também estádito com isso que os outros permane- mulação heideggeriana, esses "co-seres-aí" nunca são, tomados estritamen-
cem "de início e na maioria das vezes" nãomanifestos. Em geral, o distribui- te, "intramundanos". Ao contrário, eles só são eles mesmos "no mundo". e
dor de material, por exemplo, não atrai como tal para si neidluma atenção. Isso ser um com outro no mundo significa então primariamente deixar-se mutua-
mente assumir uma postura.
não significa, naturalmente, que não se matariam em absoluto os outros em ge-
ral: eles pemlanecem muito mais não manifestos sob o ponto de vista da ocu- Pode-se explicitar, ainda um a vez, o que significa deixarum ao outro as-

pação, enquanto essa se mantém como não problemática. No entanto, sumir uma poshtra por intemlédio de um exemplo. Contextos de ação são
''ser-com" não significa apenasestar referido ao trabalho propriamente dito freqtlentemente comparados com jogos ou ilustrados a partir dejogos.51 Jo-
gadoresde xadrez, por exemplo, não agem conjuntamente no sentido de se
por aquelesque entregam o material ou por aquelesque encomendam essetra-
balho. Também significa poder concebercomo utensílio aquilo que não per- ocuparem de maneira expressa uns com os outros, transformando suasjoga-
tence ao próprio "mundo de trabalho". Heidegger acena nessadireção com dasen] tema e comentando-asde modo crítico ou concordante. É claro que
mais um exemplo dos outros "vindo conjuntamente ao encontro": "0 barco eles também podem fazer isso. No entanto, quando o fazen}, eles nãojogam.
ancorado na praia refere-se em seu ser-em-si para um conhecido que empreen- Nojogo mesmo, porém, na concentração ante as respectivasjogadas, eles se
de com ele suas viagens. No entanto, mesmo como 'barco estranho', mostra os comportam uns em relação aos outros, e, em verdade, primariamente por dei-
outros" (ST, 118). A referência nãoconsisteaqui no fato de nos ocuparnlos ex- xarem lm] ao outro fazer umajogada. Com isso, não se tem em vista apenasa
pressamentecom o proprietário ou o usuário do barco, mas no fato de a lida circunstância de que enxadristas habiüialmente não impedem uns aos outros
de movimentar suas figuras nos tabuleiros. Deixa-se lml ao outro antes de
possível de um outro com essetornar compreensível sua manualidade; não se
tudo fazer uma jogada, na medida em que se dá um ao outro a chance de
precisa lidar pessoalmente com algo para saber que ele é um utensílio porque
adentrar em sua própria estratégia, porquanto as própriasjogadas abrem ou-
já há sempreoutros quc estãoem condição de lula tal lida.
Se se diz que os outros não estão de início e na maioria das vezes mani- trasjogadas de alguém. Enxadristas se referem reciprocamente à constela-
festos, então também se precisa dizer que eles são liberados: "0 mundo do ção de figuras, uma vez que dirigem a atençãodo companheiro por meio de
suasprópriasjogadas para uma constelação a cada vez nova, e, em meio à re-
ser-aí libera... lml ente que não é apenas diverso do utensílio e das coisas,
tração de sua própria pessoa, convidam a lidar com a nova constelação. Visto
mas que, de acordo com o seu modo de ser como ser-aí mesmo sob a forma
do ser-no-mundo, é 'no' mundo. Nesse mundo, ele vem ao mesmo tempo ao assim,o que torna possível primeiramente o jogo é a abertura e o reter aber-
encontro de maneira intramundana. Esseente não é nem simplesmente dado tasas possibilidades de ação.A um tal reter aberto pertence também o fato de
nem manua], mas é assim como o ser-aí ]iberador mesmo ele também ée quecada um se restringe aqui a ser umjogador: só se age no âmbito de cada
Jogoe somente em função dessaretração é possível agir em geral. Com isso,
também está conjuntamente aí. Seja se quisesse,pois, identificar mundo em
umjogo só é limitadamente comparável com contextos de ado cotidianos,
geral com o ente intramundano, então se precisaria dizer que 'mundo' tam-
umavez que lml jogo, diferentemente dessescontextos, tenscondições mar-
bém é ser-aí" (Sr, 118). A liberação dos outros pode ser inicialmente com-
ginais estandardizadas; dito de outro modo, está inequivocamente fixado
preendida de maneira análoga à liberação do utensílio. E, se isso é assim,
quetipo de ações pertencem aojogo e que tipo não. Mas contextos de ação
exatamente como essa última, ela precisa ser interpretável de modo "ântico'
cotidianos também só não se mostram como problemáticos quando há neles
e "ontológico". Se se reserva o termo "conjuntura" para entes do tipo do
utensílio, não se poderá em verdade dizer dos outros que se tem com eles delimitaçõessimilares. Essasdelimitações são certamente de lml tal gênero
sua conformidade"; e, em verdade, quanto mais não seja porque a liberação
tem de ser efetivamente pensadaaqui de maneira recíproca. Mas a coisa em Cf.. con]c]um texto clássico quanto a isso,as /nvesllgaçõei/f/os(Wcai de Wittgenstein
132 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 133

lida com o que precisa ser providenciado na ocupação. Dito de outra forma,
só se pode fazer algo para alguém se se recebe, a partir de sua retração, lmla
referência à respectiva atividade. Aquele em cuja posição nos apresentamos
também pode, naturalmente, reagir com desconfiança e resistência ao fato
de que se faz isso. Mas uma tal reação é sempre também a articulação do pró-
prio caráter não manifesto para aquele que se apresentou na própria posição.
Quem coloca a si mesmo em Jogo expressamente dá a entender, com isso,
que não estava antes expressamente emjogo. Mesmo a possibilidade contra-
postaà "substitutiva", a possibilidade "antepositora", não é nenhuma ocupa-

:R: Fli:Fi:ll:iIH $Bi:


apenas um "agir de um pelo outro". Exatamente como a "ocupação", a "preo-
çãoexpressacom o outro. Essemodo da preocupação diz respeito, em verda-
de, àoiistência do outro, mas o faz de uma maneira tal que aquele em relação
ao qual nos "antepomos" pode "se tornar(...) livre"(Sr, 122) para essa exis-
tência. SÓé possível tornar compreensível como precisamos entender esse
cupação" também abarca os modos deficientes,52e tais modos são o
movimento em particular a partir da interpretação do "existir próprio". Sem
ser-um-sem-o-outro, o passar-ao-largo-um-do-outro, o não-se-importar-
anteciparo existir próprio, porém, é possível ilustrar por intermédio de uma
nada-um-com-o-outro" (ST, 12 1). Senodúvida alguma, os modos deficien-
sentençada preleção heideggeriana sobre "Lógica" em que Heidegger pensa
tes da preocupação têm um valor conjuntural diverso dos modos deficientes
aqui. Os ouvintes de uma preleção nunca são, por exemplo, algo "providen-
da ocupação Eles perfazem conjunta e essencialmentea cotidianidade do
ciado en] meio à ocupação": "Comunicar e conduzir alguém à visualização
ser-aí, pois: "Esses modos de ser mostram(...) o caráter de discrição e de ob-
nuncasão uma ocupação, uma vez que o ver da coisa não pode ser propria-
viedade (auto-evidência)" (SZ, 121). Se "o ser-aí se mantém de início e na
mente produzido pela preleção, mas apenas despertado, liberada por ela
maioria das vezes nos modos deficientes da preocupação"(ST, 121), é certa-
(OC 21, 222). No fundo, Heidegger não faz aqui senãolula rápida referência
mente erróneo interpretar essesmodos no sentido de uma completa indife-
à arte socrática do diálogo. Mesmo que essaarte do diálogo consista à pri-
rença e contrapor então a isso formas expressas da lida um com o outro, nas
meira vista em se adaptar aos outros e ter em conta suas possibilidades de
quais se está "tocado" um pelo outro ou interessado um pelo outro. O acento
compreensão,ela não é nenhtmla ocupação expressa com eles. Não se con-
heideggeriano residejustamente em interpretar mesmo o que, considerado
duz ninguém a uma intelecção, mesmo que nós nem sempre nos abstraiamos
superficialmente, aparece como indiferença, como um modo da preocupa- deles e mesmo que lhes abramos a possibilidade de, em meio à concentração
ção: "cuidar" um do outro não significa, na maioria das vezes, se ocupar ex-
pressamente um com o outro. ' na coisa, alcançar uma relação própria com ela. Essetipo de "preocupação
também é essencialmente "consideração" e "to]erâllcia"(ST, ] 23), isto é, ele
Podemos ver até que ponto.as coisas se apresentam dessa formajusta- consiste em deixar o outro chegar a um comportamento.
mente a partir das duas "possibilidades extremas da preocupação"(ST. 122).
Mas a interpretação empreendida até aqui da liberação do co-ser-aí se
A primeira dessaspossibilidades consiste em assumir a posição de alguém
manteve unicamente no plano "6ntico". Se se puder compreender essalibe-
em meio â ocupação e, assim, substituí-lo"; aquele que é aíjogado "pal'a ração de maneira análoga à liberação do utensílio, então ela nãf) dependerá
fora de sua posição se retrai, a õim de receber ulteriomlente aquilo com que
deque se deixe alguém faticamente em sua retração. Os outros também pre-
cisam ser muito mais liberadosjustamente quando nos ocupamos expressa-
mente com eles; para que uma tal ocupação seja possível, precisamosjá nos
colocar em relação a eles como possíveis con)palheiros de ação: precisamos
Já sempreter nos colocado em lmla tal relação com eles. Está-se"com eles'
nhuma ligação a un} outro, uma vez que ela é, sim, levada a termo em meio à
uma vez que se está aberto para eles, e eles estão "conj untamente a í" lmla vez
que eles mesmos são, em geral, possíveis companheiros de ação para al-
saem relação a esses termos, cf. Harünann(1974). guém. A abertura recíproca é a pressuposição para poderem agir uns cona os
134 Günter Figal
Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 135

outros ou para se deixarem referir pelos outros ao seu agir e, comPlais ra


massedestacade outros e de seu modo de comportamento. Ele toma por ve-
zão, para se ligarem expressamente a eles.
zescompreensível o fato de requisitar expressamente para si determinadas
propriedadesou modos de comportamento como os seus, e, a partir daí, é ex-
Sipróprio" e " impessoal'' /'
plicável que se designe tanto a capacidadede constituição de tais proprieda-
Certamente, não ficou claro até aqui Qque significa se ligar expressa- dese modos de comportamento quanto a maneira como perfazem, então. a
mente aos outros. Como a lida ocupada é sempre marcada pelo caráter não personalidadede alguém como "o si próprio".ss Em todo caso, não podemos
manifesto dos outros e como todo agir um com o outro não é possível sem perder de vista que apenasno contexto do dizer "eu mesmo" o discurso
essecaráter não manifesto, é de se supor que só se está expressamente para acercados outros recebe o seu sentido expressivo. Contudo, o fato de o di-
o outro quando se fala lm] com o outro e lml sobre o outro. Com isso, so- zer "eu mesmo" sempre implicar um destacar-se diante dos outros certa-
mente no discurso se tem a possibilidade de determinar o comportamento mentenão diz que subsistiria uma diferença isenta de incompreensões en-
dos outros e compara-lo com o próprio comportamento. Isso faz com que a tre "mim mesmo'' e os outros. Se essadiferença subsistisse, não haveriane-
pergunta sobre como é preciso pensar o contexto das sentenças "eu" só nhuma necessidade de dizer ''eu mesmo". A declaração da sentença "eu
possa ser respondida satisfatoriamente se levarmos em conta seja o discur- mesmo quebrei o vaso'' só é significativa se subsiste alguma obscuridade
so explícito, seja o discurso implícito de um sobre os outros. Se se interpre- quanto a quem fez isso, afinal. É exatamente isso que se dá também quando
tam sentenças"eu" como articulações da atençãopara algo, então essas alguém diz que "ele mesmo" está convicto de p; ele não se volta apenas
sentenças se encontram, em verdade, no contexto da lida a princípio não contra alguém, que tinha afirmado q, mas dá a entender que ele não repete
linguística, e, uma vez que essalida é possibilitada conjuntamente pelos simplesmente a afirmação de p.
outros. também no contexto dos outros. Mas como os outros também estão O pressuposto das sentenças "eu mesmo" consiste, por conseguinte, em
em condições de formar sentenças "eu", essas sentenças sempre se encon- quenão há fundamentalmente nenhum modo de comportamento que só pu-
tram ao mesmo tempo no contexto de outras sentenças"eu". Assim, so- desseser levado a termo por a/gzíém.Além disso, modos de comportamento
mente se se leva em consideração esse contexto pode-se também compre- não se tornam expressos colllo tais enquanto os levamos a termo sem pertur-
ender em que medida Heidegger diz que o "quem" do ser-aí cotidiano não baçãoalguma, e, em meio a unia perturbação, não se presta atenção inicial-
sou "eu mesmo". "SI próprio" é nessecaso uma expressão que não faz ne- mente em seu comportamento, mas no que provoca a perturbação. Por exem-
nhuma referência a si, mas dá a entender o contexto das sentenças "eu". Ele plo, aoutensílio que falta ou que se mostra como defeituoso. Modos de com-
pertence à auto-evidência de ser nesse contexto. portamentovêm ao encontro inicialmente muito mais como modos de com-
Essa tese, que parece estranha à primeira vista, pode ser elucidada inicial- portamentodos outros, pois esses"são o que empreendem"(ST, 126); e isso
mente por meio de lula rápida consideraçãodo emprego cotidiano da ex- signinlca:com seusmodos de comportamento determinados, os outros tam-
pressão"si próprio" (mesmo).53O "si próprio" é designadona terminologia bém chegam aos nossos olhos como "esses determinados". Eles são esses
gramatical como lml "pronome demonstrativo".54 Todavia, isso pode con- determinados sempre que o que eles fazem é comparável com o próprio fa-
duzir ao erro porque a expressão não é absolutamente empregada demons- zer, e, em função da comparabilidade, tende-se uma vez mais a se destacar
trativamente, mas de modo contrastivo. O que se quer dar a entender com a lml do outro. Como Heidegger diz, o empreendimentocomum de coisas
sentença "Pedra mesmo quebrou o vaso", por exemplo, é o fato de não ter iguais e similares é caracterizado pelo "distanciamento": "Na oqtpação com
sido /ve/7bi//77a
ozr//a pessoa, ou, nesse caso, o cachorro, como Pedro tinlla o quese toma com, para e contra os outros repousa constantementeo cuidado
afirmado. O si próprio também tem essafunçãojunto com "eu". Por isso, há com lmla diferença em relação aos outros, mesmo que isso se faça apenas
lula diferença em dizer "eu mesmo estou convicto de p" e "eu estou convicto para nivelar a diferença em relação a eles ou para que o ser-aí possa seapro-
de p". Quem diz "eu mesmo" não expressa apenas a sua atenção para algo, ximar dos outros retraindo-se ante eles em meio à relação com eles ou ainda
para que o ser-aí esteja em condições de manter os outros sulÚugados em
meio à primazia sobre eles. Velada para si mesma, a convivência é inquietada
s3Emalemão, o termo se/ós/tanto pode indicar o que algo ou alguém propriamente é quanto hm.
clonar como um enfático: eu mesmo (lc/z se/ósr)ou a coisa mesma(das Z)//lg :e/óx/). (N.T.)
5qCt. DLtdett-Gt'attltitatik. 55

Quanto a esse emprego da expressão, cf. sobretudo Mean( 1934)


136 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 137

}
pelo cuidado cona esse distanciar-se. Expressa existencialmente, ela tFm ci mesmoque o faça, o que Ihe interessaem primeira linha é o que eles empre-
caráter do distanciamento. Quanto menossaltar aos olhos do ser-aí cotidiano endeme como o fazem. Na medida em que os outros só são considerados em
mesmo essemodo de ser, tanto mais tenaz e originariamente ele produz seu função do que empreendem, eles retêm um certo caráter não manifesto. Por-
efeito" (ST, 126). As relações com os outros que Heidegger teú em vista quetodo dizer "eu mesmo" nunca é marcado apenas por outros determina-
aqui são cotidiananlente conhecidas como "concorrência", "cobiça", dos, mas por uma alteridade por fim incontrolável em suaspossibilidades
opressão" e outras do gênero. Por isso, também parece estranho quando ele singulares,a abertura do co-ser-aí aparecena convivência expressa.A con-
diz que a inquietação e o distanciar-se em relação aos outros está "velado" vivência, na medida em que se conquista nela a sua própria determinidade
em meio ao ser-aí. Não é possível que se tenha em mente que não se saberia expressa,se chama assim em Heidegger o "impessoal". O "impessoal" é ca-
nada cotidianamente sobre concorrência, cobiça e opressão. Além disso, racterizado pelo "caráter discreto" e pela "não constatabilidade'' (ST, 126);
Heidegger menciona em um outro lugar que é possível fazer ou querer algo nisso sedesdobrando "sua própria ditadura"(ST, 126). Essa consiste em "se:
;efetivamente apenas a partir da cobiça" (OC 20, 337). Desta feita, o que ditar-- d/cfa/ que atividades são a cadavez dignas de falatório e como é pre-
precisa ser visado aqui é o seguinte: é-se caracterizado na convivência pelo ciso avaliar nessecaso essasatividades. Visto assim, o impessoal articula a
distanciamento" mesmo quando o que está em questão para alguém é su- significância, da qual Heidegger também tinha dito expressamenteque de-
postamente a concórdia com os outros. Justamente nesse momento l)usca-se pendedo discurso(OC 20, 275). Conforme essaposição, o impessoal é a au-
nivelar as diferenças em relação a eles, de modo que também aqui na convi- to-evidênciajá semprede algum modo expressa,e, como tal, a "compreensi-
vência estãoem jogo "uns contra os outros" (ST. 175). Uma vez que todo e bilidade de mim mesmo
qualquer comportamento que se leve a termo expressamente"por si mesmo" Quem quer ser "ele mesmo" melhor do que os outrosjá está exatamente
é detemlinado pelos outros, Heidegger pode falar do "domínio dos outros' por isso orientado pelo que se diz e faz em lml determinado aspecto. O que
(ST, 126). Esse domínio não consiste em que sempre estamos sujeitos a cada "se" diz e faz é "mediano": o impessoal seretém "faticamente na medianida-
vez à influência e ao poder de decisão dos outros; ele também pode se mos- dedo que é conveniente, do que se admite como válido e do que não, do que
trar, por fim, na dominação dos outros. O ponto decisivo é muito mais o fato concedesucessoe do que recusasucesso"(ST, 127). O "cuidado da mediani-
de todo e qualquer comportamento que se leva a termo expressamente "por dade"(Sr, 127) pode se tornar lmla vez mais compreensível se tivermos em
si mesmo" ser um comportamento na a//er/Jade. "Alteridade" nessesentido vista que o comportamento a cada vez próprio se torna expresso junto ao
não é "alterização".s6 A idéia de "alterização" implica que i)ão experimen- comportamentodos outros; ele é em última instância o cuidado com essaex-
támos primariamente a nós mesmos, nem experimentámos primariamente a pressividade, pois ninguém pode destacar a si próprio dos outros e aí ser ex-
nós mesmos na convivência, mas que também possamos ser um "puro eu de pressamente"ele mesmo" se o comportamento dos outros não permanecer
minhas puras cog//a//odes"'' e que só nos tornemos um "Eu" empírico na comparávelcom o próprio com portamento. Quem quer ser melhor do que os
comunidade com os outros. Abstraindo-se de que é difícil pensar essa"géne- outrosou no mínimo tão bom quanto eles, também precisa tomar por funda-
se" em geral, tal como estáexpressono dizer "eu mesmo", a própria alterida- mentalmenteatingível isso que eles empreendem. Sob a pressuposição de
de só subsiste acima de tudo sob a pressuposiçãodo ser-çom e do co-ser-aí. queo ser cotidiano dos outros só é visualizado como empreendimento, Hei-
Alteridade" designa pura e simplesmente o modo como o comportamento a degger também pode falar de um "nivelamento de todas as possibilidades de
cada vez próprio é expresso como essecomportamento determinado. ser" (ST, 127) com respeito à medianidade: as diversas possibilidades de se
Como o uso corrente do "eu mesmo" já demonstrou, essaexpressivida- comportar precisam ser niveladas segundo a medida da compara6ilidade.
denão está ligada a outros determinados.Quem diz que"ele mesmo" fez isso Em face das incompreensõesque sempre surgiram uma vez mais ante a
e aquilo não se destaca necessariamentede outros determinados; é mesmo concepçãoheideggeriana do "impessoal", precisa ser de início acenhiado
possível que ele não saiba absolutamente quem é que poderia ser, afinal. res- que nada disso é pensado em termos de "crítica cultural". O que está en]
ponsável pela ação em questão.O mesmo se dá quando alguém quer ser me- questãopara Heidegger não é a anónima sociedade de massas;as indicações
lhor do que os outros; ele não precisa pensar en] pessoas determinadas, e, referentes aos meios de transporte públicos e ao mundo das notícias não pas-
samde meras ilustrações da comparabilidade do comportamento caracterís-
sóCom relação a esse conceito, cf. Theunissen ( 1977). tica do "impessoal": como usuário de linhas férreas, automóveis e aviões,
s7Hussert,/dee/ílll(Idéias 111).p. 114B.
138 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 139

como espectadorde televisão e como leitor de jornais, "cada um;é como


ponto consiste em que o discurso trata de um "si próprio" do ser-aí cotidiano.
qualquer outro"(ST, 126). Mas não se carece dos meios de transporta moder- Se,como foi mostrado, esse"si próprio" não é nada além do que o que é ex-
nos e das técnicas modernas de infomlação para que as coisas sejam assim. A
presso no dizer "eu mesmo", então o ser-aí no "impessoal" não éjustamente
comparabilidade do comportamento também é a condição paga o prestígio nenhtml"deixar-se determinar". Ao contrário, ele é muito mais a maneira
público, e, nessa medida, o que Aristóteles descreve como xoXttLX(àÇ l3ÍoÇ, cotidiana de autodeterminação. Daí segue certamente que o "si próprio au-
um modo de vida no qual a única coisa que importa é a honra (TL»Ó), pode têntico" não pode mais consistir agora em agir "refletidamente, e isso signi-
ser reformulado a partir dos conceitos com os quais Heidegger determina o fica a partir de uma escolha fundamentada".5PSegundo Heidegger, isso diz
'impessoal". Mesmo na concepção hegellana da autoconsciência dependen- emverdade que o "impessoal" prescreve "todojuízo e toda decisão" e "retira
te do outro poder-se-ia ver a tentativa de levar em conta a estrutura que está de cada ser-aí a responsabilidade" (ST, 127); na medida em que nos deixa-
em questãotambém para Heidegger. Com essasindicações certamente não mos "desonerar" dessa maneira, somos caracterizados pela "falta de autono-
se estáquerendo, contudo, afirmar que a concepção hegeliana da autocons- mia". Mas isso também slgniHicaque as respectivas decisões ejuízos são to-
ciência e a análise aristotélica da honra seriam o mesmo que a concepção hei- madoscotidianamente sob a forma do dizer "eu mesmo" . Como o dizer "eu
deggeriana do "impessoal". A reelaboração de uma estrutura em meio às teo- mesmo" equivale a um comparar-se com os outros, e, com isso, um ser desa-
rias Hilosófícas está em tal medida vinculada aos conceitos fundamentais das
lojada por eles, ganha voz com essedizer uma dependência que pode ser en-
respectivas teorias que uma tentativa de, por exemplo, estabelecerlml diálo- tão denominada "falta de autonomia". Essa falta de autonomia é desonera-
go entre Heidegger e Hegel se veria de início obrigada a desenvolver os con- dora, uma vez que sempre há na cotidianidade possibilidades de comparação
ceitos filndamentais de Hegel. Não é isso que se intenta fazer aqui. Paradizer para juízos e decisões. Além disso, o aceno para o caráter reflexivo do agir
apenaso mínimo, haja uma grande diferença se se fala, como no caso de He- não consegue dar conta daquilo de que ele deveria dar conta porque o caráter
gel, em autoconsciência, ou se o que está em questão é, como no caso de Hei- reflexivo não é, por si só, nenhum critério para a "autonomia" ante o impes-
degger, o modo como o próprio comportamento é expressojunto ao compor- soal. Ações levadas a termo por inveja ou cobiça também podem ser, em
tamento dos outros. Na mesma medida que a concepção hegeliana da auto- uma grande medida, reflexivas. A isso se alia ainda o fato de toda reflexão
consciência, a concepção heideggeriana do "ser si próprio cotidiano" é cer- quedirige o agir estar, de uma maneira ou de outra, ligada aos outros.Na
tamente uma concepção âlosófica e, como tal, é diversa de todo diagnóstico medida em que ações sãojustificadas por meio de Rmdamentações, essasfun-
cultural ou crítico-socialjá pelo fato de requisitar parasi não ser plausível damentaçõesprecisam levar em conta o que "se" diz para que sejam em geral
apenasem vista de detemlinadas relações históricas.
aceitas, isto é, elas precisam se manter em meio à comparabilidade das ações.
Mas mesmo aí onde a requisição filosófica, ou, mais exatamente, a re- Sedetemlinarmos a autonomia do agente pelo caráter reflexivo das ações,só
quisição analítico-existencial da discussãodo "impessoal" é levada a sério, alcançaremosna melhor das hipóteses um conceito de autonomia concebido
essadiscussão é freqtlentemente mal compreendida. Uma tal incompreen- pragmaticamente e precisarenlos nos abstrair da falta estrutural de autonomia
são consisteem interpretar o "impessoal" como o modo de determinação do em meio à vinculação aos outros, junto ao dizer "eu mesmo". "Autonomia:
alheio e contrapâ-lo ao modo da autodeterminação. O fato de o "quem" do passa,então, a não poder significar mais do que alguém não faz o que faz pri-
ser-aí cotidiano ser o "impessoal" passaa significar, então: "eu deixo que o mariamente a partir da orientação pelos outros, e, nesse sentido, se denomina-
que eu a cada vez faço e tenho em vista, assim como o modo como me com-
daalguém "autónomo" mesmo seele agisse por cobiça, se ele $stivessejusLa-
preendo, sejam determ içados pelo que se toma por bom, não o deterá mando mente tomado por sua cobiça. A determinação do alheio consiste com isso em
por mim mesmo"." Essainterpretação se vale, em verdade, de lmla diferen- uma tal possessão,no fato de que "algo se realiza en] mim",óo e, visto assim,
ciação fundamental para o curso ulterior de pensamento em ST, a saber, a di- isso seria o mesmo que a concepção platónico-aristotélica do xaTci zà wá+oç
ferenciação entre o "si próprio do ser-aí cotidiano", "o impessoal mesmo", e {Tlv. A questão, porém, é que as xá0-vl em Heidegger possuem um valor con-
o "si próprio autêntico, isto é, autenticamente assumido" (ST, 129). No en- julltural completamente diverso do que têm em Aristóteles, e, além disso, seu
tanto, ela deixa sem consideração o ponto central dessadiferenciação. Esse
conceito de autonomia não é pensado pragnlaticamente.

1l'ugendhat
( 1979),p. 290
KTugendhat (1979), p. 231.
nTugendhat(1979),p. 277
140 Günter Figas

Até aqui certamente não ficou claro em que medida a concepção hei-
deggeriana do "impessoal" precisa ser compreendida como a detemlinação
fundamental da ausência de liberdade. Para alcançar uma resposta a essa
pergunta, talvez sda natural recorrer uma vez mais à interpretação do "im-
pessoal" como determinação alheia. No entanto, no âmbito dessainterpreta- Capítulolll
ção ainda não se pode chegar nem mesmo a lmla determinação da "ausência
de liberdade" no sentido aristotélico, pois Aristóteles não tem em geral ne-
nhuma hesitação em denominar "livre" mesmo um comportamento forte-
mente determinado de maneira afetiva. Se designarmos a concepção do "im- A DIFERENÇA DA LIBERDADE
pessoal" como determinação fundamental da ausência de liberdade, não es-
taremos dizendo aléns disso que o "impessoal" é idêntico à "ausência de li-
l)erdade". Se imputássenlos que o "ser si próprio autêntico" é um "ser livre'
g 6. Descerramento e comportamento
e identiHlcássemos o "impessoal" com a "ausência de lil)erdade". então o
ser si próprio autêntico" e o "impessoal" seriam alternativas estritas. Fica O termo "diferença" designa a relação entre fenómeno e aparição como
claro, porém, que Heidegger não afirma isso quando diz: "0 ser si próprio a diversidade do que, contudo, é o mesmo. Na medida em que "ser" significa
autêntico não reside em um estado de exceção do sujeito desligado do impes- em Heidegger "ser possível" e "ser-aí" o "estar aberto para a abertura do
soal, mas é uma modificação existenciária do impessoal como um existen- ente"; e na medida em que "ser" é fenómeno em um sentido insigne, "apari-
cial essencial"(Sr, 130). Mesmo no ser si próprio autêntico se está, por con- ção" é a maneira pela qual o possível tem sua realidade. Realidade e possibi-
seguinte, determinado pela estrutura do "impessoal", e, se isso não fosse as- lidade são "o mesmo", lmla vez que a realidade é sempre realidade do possí-
sim, seria preciso parar como "si próprio" autêntico de ser essedeterm içado vel; elas são "diversas" porque no real a possibilidade apenas aparece. No
entre outros. De mais a mais, sob a pressuposiçãode que o "impessoal" é ser-aí, a aparição da possibilidade no real é o comportamento: só se pode as-
idêntico à "ausência de liberdade", nunca se seria l ivre como esse determina- stmlir um modo de comportamento porque se está aboNOpara a abertura do
do entre outros. SÓsomos desprovidos de liberdade, contudo, quando nos ente e esse estar aberto é, uma vez mais, um estar aberto "para o comporta-
orientamos exclusivamente pela estrutura do "impessoal" e não queremos mento". Mas o fato de, visto assim, o estar aberto para a abertura do ente pre-
ser nada além de alguém detemlinado entre outros. AÍ fica encoberto como cisar aparecer em meio ao comportamento não significa que esseaparecer
se ê "propriamente", e, propriamente, se é caracterizado por descerramento também seja necessariamentelml encobrimento do estar aberto; signiHlca,
O fechamento do descerramentopressupõeessedescerramento:como se com certeza, que lml tal encobrimento está como que coligado com o estar
mostrará, ele é a predominância da aparição do descerramento diante desse aberto. Somente porque o encobrimento não é necessário, a diferença entre
descerramentomesmo. No entanto, a aparição do descerramento é o com- ser possível e realidade pode ser interpretada como diferença da liberdade;
portamento, e, se quisermos compreender como é possível chegar à predo- se o encobrimento está coligado com o estar aberto e o "estar aberto" designa
minância da aparição em geral, precisamos inicialmente investigar a relação a liberdade do ser-aí, então essa liberdade tem em si uma tendência para a
entre descerramento e comportamento. Essa relação é a diferença da liberda- não-liberdade. Liberdade e não-liberdade não são simples alternativas. Ao
de. O "impessoal" é uma aparição dessa liberdade, uma vez que os modos de contrário, o que a não-liberdade é só pode ser explicitado soISa pressuposi-
comportamentonele são conllecidos. Sem o "impessoal" não há nenhtml ção da liberdade: a ausência de liberdade só há na liberdade e contra ela
comportamento. Uma determinação mais exata da ausência de lil)erdade só pode ser, por con-
seguinte, desenvolvida sese determinar de início mais exatamente a liberda-
de do ser-aí. O discurso acerca do "estar aberto" não é senão metafórico e im-
porta mostrar o que se tem em vista propriamentecom essametáfora. So-
mente assim será possível tornar compreensível do que, animal, o mundo e a
convivência em meio à estrutura do "impessoal" são aparições, e, comi efei-
to, aparições que podem ou não ser aceitas como tais.
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 143
142 Günter Figa

Descerraln ente aristotélica do vouç, tal como é desenvolvida no escrito Z)eani/zza;e, em ver-
f
dade,mais exatamente, ele remonta à comparação aí apresentada entre voi3ç
Heidegger discute o significado propriamente dito dos termos "estar xoLHTLX(5çe a luz:' tal como segundo a capacidade a luz transforma pela pri-
aberto" e "descerramento"no quinto capítulo de Se/'e /e/lira, ql$etem por meira vez as cores em cores reais, assim o vouÇ noLrl'rLxÓÇ é a produção de
tema o "ser-em como tal". Não se trata mais, portanto, do "ser-em" no senti- tudo (taTLV (...) zg aNTa xoLciv/ l)e an//lza, 430a14). O xoLãv não visa
do da familiaridade e da autoevidência do mundo, nem tampouco da com- aqui à produção de algo diverso em relação ao vouç, mas à realidade dos
preensibilidade de"mim mesmo" tal como ela é garantida pelo "impessoal"; vovltá em meio à atividade do vociv. Por outro lado, a caracterizaçãodo
trata-se muito mais de "disposição", "compreensão" e "discurso" como os vouç como rico em capacidades (Z)e a/7//na, 429a22) aponta para o fato de
modos co-originários constitutivos de ser o aí" (ST, 133). Esse"aí" tem em todos os voTIva, ou seja, não apenas os que são a cada vez pensados, poderem
vista nessecaso o mesmoque "descerramento",de modo que Heidegger surgir nele(TíTvca al/ De an/nla, 430al 5). A interpretação aristotélica do
também pode dizer que o "ser-aí é (...) seu descerramento" (Sr, 133). Ga- voi3ç a partir do esquema da 8Úva LÇ e da êvéf)Tela não desdobra duas ma-
nha-se pouco com essa identificação entre "ser-aí" e "descerramento". Se neiras diversas do vociv, mas simplesmente dois aspectosdiversos do mes-
nos dedicássemos por isso diretamente a lmia interpretação dos "três modos mo fenómeno: por um lado, o vouç é pura êvépTCLaporque ele produz al-
co-originários constitutivos" do "aí" denominadospor Heidegger,teríamos gum efeito em um outro ou se altera por meio de sua atuação. Com isso, ele
abdicado de esclarecer co/?zoHeidegger quer pensara disposição a compre- não é nenhuma 8úvaJi.LÇ lou lroLCLV,mas também não é uma 8iSvapLÇ Tou
ensão e o discurso. No entanto, lula resposta à pergunta é necessária se pre- xáaXctv, que só seria transpostana realidadepor um outro; lml outro que
tendemos tornar inteligível o estatuto de suas análises singulares. também pode ser o mesmo ente sob um outro aspecto. Por outro lado, sob o
Para conceber o que Heidegger tem exatamente em vista com "descer- aspectodos Novita, o voi;ç também é uma capacidade (8ÚVapLÇ), pois o fato
ramento", pode-se tentar proletar essetermo sobre um conceito tradicional e de o vociv ser pura realidade não significa que todos os voTlvd são nele
interpreta-lo como um substitutivo de "consciência".t É certo que "descerra- atuais. Se Heidegger tem em vista essa conexão, e de outra forma não seria
mento" não visa ao mesmo que "consciência", uma vez que se compreende compreensível em que medida ele apreende o discurso acerca do /t//zlen na-
consciência como consciência de algo, portanto, de acordo com a estrutura fzfra/eem geral, então fica claro que o descerramento é para ser concebido
da intencionalidade; na mesma medida, contudo, não há como afirmar que o em verdade como um voeLV, como uma apreensão, mas não como pura reali-
descerramento" ocuparia a posição que tinha sido ocupada tradicionalmen- dadena qual tudo pode ser real. Descerramento é muito mais pura possibili-
te pelo termo "consciência". Já na preleção dos "Prolegâmenos",' o "descer- dade, e, em verdade, possibilidade que também é estabelecida em hulção de
ramento" é delimitado ante lma "saber temáticoparticular" e designado possibilidades determinadas. Se essa interpretação é pertinente, então o des-
como aquilo que "linda e viabiliza antesde mais nadatal saber" (OC 20, cerramento é uma apreensão que é pensada em articulação com Aristóteles,
349). Fica claro, então,de maneira indireta, qual é o termo tradicional que mas em lmla inversão da relação entre possibilidade e realidade.
Heidegger pensa em conexão com o "descerramento" quando ele diz: "0 A partir da relação entre possibilidade e realidade poder-se-ia concluir
discurso onticamente imagético acerca do /zl//íen /7a/zr/.a/eno homem não agora que o ser-aí precisaria ser compreendido em contraposição ao vouç
tem em vista senão a estrutura ontológico-existencial desseente que é sob o aristotélico como pura passividade. A "iluminação" da qual fala Heidegger
modo de ser seu aí. Ele é 'iluminado' significa: ele é iluminado nele mesmo. seria uma transparência (8La(pavllÇ) que só seria "iluminada" por intermé-
como ser-no-mundo aclarado, não por intermédio de um outro ente, mas de dio de um outro. Uma tal concepção, porém, é despropositada porque per-
tal modo que ele mesmo é a clareira. Somentepara um ente assim aclarado manecereferida auma inteQretação ativa da apreensão.Sese compreendes-
existencialmente, o simplesmente dado é acessível na luz, oculto na obscuri- se o ser-aí como pura passividade, também seria preciso assumir uma ativi-
dade" (ST, 133). O discurso acercado /zr/7?e/v /7afzlra/eremonta à concepção dade correlacionada com essa passividade; mesmo se se dissesse que essa
atividade é simplesmente um outro aspecto do mesmo fenómeno, isso seria
incompatível com a concepção heideggeriana, pois compreender-se-ia com
ITugendhat(1972), especiahnçntep. 726; Tugendhat(1979), p. 171
:Figastem em vista aqui a preleçãoPi'o/ego/arena
:lr einer Gesc/z/c/?fe
dei Zeffóegri#ês(Prole-
g6incnos para uma história do conceito de tempo), dada em Marburg no semestre de verão de
'Cf. Beierwaltçs( 1980). especialmente p. 547-549
1925. (N.T.)
144 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 145

isso o ser-aí como a execução de um processo. Se o ser-aí não é llenhuma


execução de um processo, também não se pode compreender o descerramen-
to de maneira "mediai"* -- verbos na voz média expressam um processo tanto
quanto verbos na voz aviva. Porquanto não se possa interpretar;eÓdescerra-
nlento nem atavanem passivamente,o que Heidegger tem em vista não se
ss:x Xii :iiEER:isa
l
dade o aí como ser-no-mundo", e a expressão "estarjogado" deve "indicar aí
a facticidade da entrega à responsabilidade"(ST, 135). "Serjogado" signifi-
torna, além disso, de maneira alguma enigmático. Já o modo como cotidia-
ca, conseqiientemente, que se é no n)findo, e a "facticidade", qu e não se pode
namente se compreende o "estar aberto" não descreve nem uma atividade
não ser no mundo, mas que se é caracterizado essencialmente pela abertura
nem um padecimento, mas simplesmente um modo de ser. Porque o estar
do ente no qual se pode ser. A "entrega à responsabilidade", tal como essa
aberto tomado ontologicamente não é nenhum modo determinado de ser,
entregase revela na tonalidade afetiva, consiste em term os de nos comportar
mas o ser-aí mesmo, é preciso pensa-lo como um "pretérito perfeito a/2r/o- no âmbito das possibilidades conhecidas de comportamento, e isso se torna
r/", de modo que seus "modos co-originários constitutivos" são aspectos di-
versos da liberdade. então manifesto na medida em que a tonalidade afetiva mesma não indica
previamente nenhum modo determinado de comportamento. Heidegger
também designa o que assim se mostra como "o caráter de fardo" do ser-aí:
Disposição
em meio à tonalidade afetiva experimenta-se o "ser como fardo"(Sr, 134). E
No que concerne agora à discussãoda apreensãodenominada "descer- isso não significa que em todos os casos é desconfortável ser "aí", mas unia
ramento", não é nada arbitrário que Heidegger comece pela "disposição' vez mais apenas que é impossível não asstmlir um modo de com portamento
Na preleção sobre os Pro/egó/zze/70s,o descerramentocomo tal só é mesmo Uma vez que as tonalidadesafetivas tomam manifesta a inacessibilidade
desenvolvidojunto à disposição que aí sechama o ap//or/ do descerramento do comportamento,elas mostram a "abertura de mundo do ser-aí" (ST, 137).
(OC 20, 354). Todavia, como Heidegger viu logo depois, essainterpretação "Abertura de mundo" não pode siga ificar nessecaso queo "ser-aí" estáaberto
não fazjus aos aspectosda compreensãoe do discurso, pois também eles são para un] mundo ou en} vista de um mundo. Se se dissesse isso, então ter-se-ia
ap//o/'/. O primado da disposição não estáfundado no fato de ela ser "mais a interpretadoo "ser-aí" e o "mundo" segundoo modelo do "st1leito" e do "olÜe-
pr/or/" do que os outros modos do descerramento;junto a ela, porém, pode- to". A "abeMira de mundo" designa muito mais que é possível se comportar na
mos deixar claro da maneira mais simples possível o que descerramento é com tml ente, e, cona isso, tem em vista a abertura do ente mesmo, por-
lula apreensão. quantoele seja tomado sol) o ponto de vista do comportaillento possível.'Con-
Por "disposição" tem-se em vista antes de Rido "a tonalidade afetiva, o sequentemente,as tonalidades afetivas não são nada além de maneirasdiver-
ser afinado" (ST, 134). Uma tonalidade afetiva não é, por sua vez, o mesmo sasde inserção na aberhra do ente; elas são experiências da liberdade a ser
que um sentimento ou lm] abeto.Heidegger quer tornar efetivamcnte com- pensadacomo "deixar ser". Se se interpretam as tonalidades afetivas como
preensível o fato de também os sentimentos e os abetosserem "modos" da apreensãodo ente em sua abertura,então também Ricacompreensível em que
disposição e não quer interpreta-los, por exemplo, como sinais de excitação. medida as tonalidades afetivas assim chamadas negativas desempenham um
No entanto, mesmo se sentimentos e abetosnão forem mais interpretados papel maior nas análises heideggerianas. Nelas essa abeMira se mostra de ma .

como indícios de um padecimentoprovocado por uma coisa qualquer ou negratanto mais distintajustamente porque não se pode chegar, por exemplo,
como essepadecimento mesmo, eles ainda continuam sendo caracterizados no tédio, a nenhum comportamento que satisfaça como uma determinação a
pelo fato de sermos afetados neles segtmdo um aspecto determinado e por cada vez própria. Mas também o alto astral ou a equanimidade quase nada
algo determinado. Por isso, eles também fixam o comportamento de lmla apreensívelpodem ser concebidos como a apreensãoda abertura. Quando se
maneira em verdade variada, mas determinada. Exatamente esse não é o estaequânime ou em alto astral, certamente é mais fácil comportar-se de uma
casoem meio a tonalidades afetivas. O que fica particularmente claro junto maneira familiar. Por um lado, porém, isso também não seria possível se o
aotédio vale paraas tonalidades afetivas em geral: elas deixam em aberto de ente nãofosse percel)ido como "livre" para um tal comportamento, e, por ou-
uma maneira peculiar a pergunta sobre como devemos nos comportar. Desta tro, essastonalidades afetivas também não indicam previamente o comporta-
mento mesmo; ser equânime significa exatamentenão se sentir obrigado em
+Tugendhat(1970-1971),p. 304.
relaçãoa nenhum comportamento determhlado, e mesmo uma euforia é carac-
146 Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 147

terizadapelo fato de que não se faz algo simplesmentede mai$ira au- sofrimento, então não se pode denominar as tonalidades afetivas lmasofrer.
to-evidente. Mesmo essastonalidades afetivas, por conseguinte, têm a peculi- uma vez que elas são a apreensãoda facticidade. Quem fala, porém, em so-
aridade para a qual Heidegger quer apontar com o termo "fardo') õer, por exemplo, de uma depressão,também não pensaefetivamenteem
Heidegger toma como um "apartar-se de" em contraposição a um "vol- um sofrer no sentido do xáaXctv aristotélico como uma determinação on-
tar-se para" o fato de as tonalidades afetivas não deixarem vir à tona com a tológica: ele pensa muito mais que depressões são sentidas como desagra-
mesma clareza e distinção o "caráter de fardo". Essas expressões podem, dáveis, e, como essenão é o caso em meio ao alto astral, hesita-se aqui em di-
contudo, conduzir a erro porque sugeremque as tonalidades afetivas são ati- zer que se está sofrendo dessa tonalidade afetiva. Tudo depende aqui tão-
tudes em relação ao caráter de fardo do ser-aí e seriam levadas a termo como somenteda pergunta sobre como é preciso tomar ontologicamente as tonali-
tais; uma formulação como "apartar-se por meio de um desvio" fortalece dadesafetivas, e, no que diz respeito à problemática ontológica, Heidegger
ainda mais essa impressão. É certo, agora, que manter reprimida uma tonali- não assume o esquema aristotélico do xoLeiv e do wáaXctv em meio à sua
dade afetiva implica a execução de um processo. Assim, poder-se-ia tentar interpretação das tonalidades afetivas. Quando Heidegger recorre aos ter-
esclarecerque detenninadas tonalidades afetivas são mantidas reprimidas e mos "abeto" e "sentimento" para mostrar como "os fenómenos" (ST, 138)
que se dá a primazia a outras tonalidades afetivas pelo fato de as tonalidades queele quer trazer à tona foram tratados na tradição, ele acaba certamente
afetivas já sempre serem em si "afastando-se de" ou "voltando-se para". E por deixar na obscuridade a diferença entre a sua própria concepção e a con-
nessesentido que Heidegger diz, por exemplo, que a tonalidade afetiva entu- cepção tradicional. Por intermédio de lmaa comparação entre a análise hei-
siasmada não se "volta" para o caráter de fardo do ser-aí(ST, 135). Mas essa deggeriana e a análise aristotélica do temor pode-se deixar claro que, apesar
afirmação é, por fim, apenasuma metáfora, e se ela quisesse ser mais do que disso, é legítimo interpretar os abetos a partir das tonalidades afetivas
isso não passaria de uma descrição inadequada. O sentido processual das ex- A partir do temor, Heideggerquer demonstrar"ainda mais concreta-
pressões"voltar-se para" e "apartar-se de" só pode ser articulado com o mente (...) o fenómeno da disposição" (ST, 140); e, em verdade, a partir do
modo como se lida com uma tonalidade afetiva. temor porque ele é contrastado posteriormente com a angústia como uma
Se se compreendem as tonalidades afetivas como o apreender do ente 'disposição fundamental ontológico-existencialmente significativa do
em sua abertura, em meio à qual se tem de assumir lml comportamellto, ou, ser-aí"(ST, 140). Nesse sentido, a análise da angústia permanece incessante-
dito com a terminologia de Heidegger, como o apreenderda facticidade sob mente no pano de fundo da anal ise do temor. Não obstante, há uma boa razão
o modo do estarjogado no mundo, então está efetivamente fora de questão para Heidegger não ter discutido a angústia imediatamente em detrimento
interpretar tonalidades afetivas como a execução de processos. Tanto mais do temor. Com isso, ele teria perdido a possibilidade de fazerjus ao valor
natural poderia ser agora, porém, atribuir-lhes um caráter passivo e apreen- coiÚuntural sistemático que a análise da angústia tem no desenvolvimento
dê-las aristotelicamente como Trá+D.Além disso, ainda poderíamos nos re- de seu pensamento.
portar aí ao fato de Heidegger se referir explicitamente a Aristóteles em suas Aristóteles detemlina o temor ((pól3oç)como uma afl ição ou lmla pertur-
análises das tonalidades afetivas. A questão é que a apreensão de tonalidades bação que precisaria ser descrita mais exatamente no caso singular; lmla afli-
afetivas como estados dos quais padecemos é tão problemática quanto a arti- ção ou uma perturbação que surgiriam a partir da aparição de lml mal imi-
culação entre Heidegger e Aristóteles. No que concerne ao primeiro ponto, nente que é pemicioso ou prqudicial (ÀÚlnl ILÇ $ xapaXTI tx (pavtcEaÍaÇ
fala-se em verdade que se "sofre" de depressão ou que se "padece" de tédio; H,éXXovtoçxaxoii (p+apTtxoÚã ÀunvpoÓ/Refór/ca 1382a2}). Essadefini-
não se diria isso sem mais da euforia ou mesmo da "equanimidade não per- ção mantém-se no esquema anteriormente estabelecido por'Aristóteles, de
turbada" (ST, 134). É possível que se tente explicar um tal estado de coisas acordo com o qual todo e qualquer ná8oç precisa ser determinado em lml
com a indicação de que não se tem normalmente nenhtml interesse em "re- aspectotriplo, a saber: 1) em função do modo como o vcíaoç mesmo é cons-
primir" ou evitar a equanimidade e menos ainda a euforia, de modo que aqui tituído, isto é, em fiulção do estado em que alguém se encontra; 2) em Ração
não permanece senão encoberto que sofremos deles. Todavia, essa explica- disso diante de que ele se acha; e 3) em função desse diante de quem ele ga-
ção tem vista curta porque se orienta pelo modo de lidar com tonalidades afe- nha corpo. O estado de temor é a aflição ou a perturbação e o "diante de quê:
tivas e não por essastonalidades mesmas.Se só podemos falar efetivamente é o mal iminente; a única coisa que ainda não é levada em conta na detemli-
de um "sofrer" em sentido expresso caso haja un] fazer correspondente ao nação citada é diante de quem nos atemorizamos. O temor é disparado agora
Martin Heidegger; Fenomenologia da Liberdade 149
148 Günter Figa

A maneira peculiar da lida com algo ameaçador também é elucidativa


por lula transformação (»CTaPc'ÀÉ)que acontecejuntamente com o ap're'
cer do mal na representação.Desta feita, bica claro em que medida o temor quantoa issope/o qz/eseteme: "0 pelo que o temor teme é o ente mesmo que
em geral pode ser um vá+oç. Ele nãoé provocado por aquele que sgptemori- se atemoriza, o ser-aí. Somente o ente para o qual em seu ser está em jogo
Ao contrário, ele repousa sobre um ser movido, indiferentemente quanto esseser mesmo pode se atemorizar. O temor descerra esseente em seu estar
a se o mobilizador, visto a partir da perspectiva do observador, é realmente em perigo, no abandono a si mesmo"(Sr, 141). Com certeza, só se está amea-
lml mal ou não. O movimento do temor é efetivo na (pavTaaía, e, em verda- çado no temor sob o aspecto do ser-no-mundo auto-evidente. É isso que Hei-
de, na naedida em que essa é mobilizada por algo que aparece na percepção deggertem em vista com a formulação algo inflexível "o ente que se atemo-
ou que foi anteriormente percebido e agora é apenas imaginado. Esse ser riza, o ser-aí". Nunca se visualiza algo ameaçador senão em relação ao que
movimentado só é ele mesmo determinável por meio de sua realidade, ou seé, de modo que mesmo o caráter de possibilidade do ser-aí só é considera-
do sob o aspecto do poder-fazer a cada vez constatável pela interpretação:
seja,por meio daafl ição e daperturbação. Como o qpe aparecena(pav'tanta
mesmo é que dispara o temor, não se pode, de acordo com a concepção aris- "Se tememos pela casa ou pela corte, isso não apresentanenhuma instância
totélica, cindir a representaçãoe o abeto. contrária à determinação anterior daquilo pelo que se teme. Pois o ser-aí é
Exatamente como Aristóteles, Heidegger também não pensa Q temor semprea cada vez, como ser-no-mundo, um serque se ocupajunto a. De iní-
cio e na maioria das vezes, o ser-aí é a partir disso com o que se ocupa"(ST,
como a composição de uma representaçãolivre de afetividade e de lml abeto
141); e, como poderíamos acrescentar: a partir disso com o que pode se ocu-
que segue a essa representação: "0 temer(...) é a liberação do ameaçador.que
se deixa e faz tocar. Não se constata primeiro um mal futuro (n7a/zr/nlzí/zí- par, pois também isso pode ser experimentado como ameaçador. Como os
assim chamados abetos, diferentemente das tonalidades afetivas, não descer-
rzrm) para em seguida temer. O temer também não constata primeiro o que se
ram o "puro fato de ser", ou sqa, a abertura do ente em relação ao qual temos
aproxima. Ao contrário, o descobre previamente em sua temeridade. E te-
de asstmlir um comportamento, mas apenas essa abertura segundo um as-
mendo que o temor pode ter claro para si o temível, visando-o expressamen-
te. A circunvisão vê o temível porque ela é na disposiçãodo temor" (ST, pecto determinado, eles também indicam previamente como se pode ver fa-
141). O ponto central dessassentençasconsiste em que o temer não é mais cilmentejunto ao temor, determinados modos de comportamento. E porque
pensado agora como movimento, mas sim como possibilidade: ele não é ne- o ameaçadoré a cada vez algo determ içado, também é possível se atemorizar
nhtml sofrer--real , mas o descobrirde algo a cada vezdeterminado em seu pelos "outros". Naturalmente, esse temer não "retira dos outros o temor'
caráter de possibilidade; e essedescol)rir só é possível porque no ser-aí a (ST, 141); ele consiste simplesmente em nossatransposição para a sua posi-
ente já é sempre também "apreendido" ou "liderado" para a visada caracte- ção em função da comparabilidade do comportamento e de determinadas
rística do temor: "0 temer como possibilidade dormitante do ser-no-mundo circunstâncias.Junto ao temorpode-se concretizar, por fim, ainda um aspec-
disposto, a 'temerosídade',já sempre descerrou o mundo en] Rinção do fato to da disposição que, então, em conexão com a análise heideggeriana da an-
deque apartirdelealgo assim como otemível pode se aproximar"(Sr, 141). gústia, ganhará uma significação central para a sua concepção da liberdade.
Na medida em que se experimenta no temora auto-evidência cotidiana como
Apesar de o temor tan\bém ser para Heidegger temor diante de algo detemli-
nado. ele não pode ser de qualquer modo tomado em meio à orientação ex- ameaçada,precisa-se, "quando o temor se atenua", "primeiramente assen-
clusiva por essealgo deterá irado. O temer sempre implica, en] verdade, um tar-seuma vez mais"(ST, 141). Na disposição, por conseguinte, o comporta-
deixar conformar-se que precisa ser tomado onticamente porque nele algo é mento encontra a cada vez um co/zzefo. Em Heidegger, a disposição entra em
descoberto em vista da disposição do caráter ameaçador. No entanto, esse cena naquelaposição que para Kant era ocupada pela idéia da razão em sua
deixar conformar-se pressupõeque o ente em geral seja aberto sob o modo espontaneidade e para Aristóteles pela ideia de en/e/ec/ze/a.
do caráter ameaçador.De maneira diversa da que se dájunto ao deixar con-
formar-se que precisa ser compreendido como ocupação, a conjuntura de Compreender

algo em meio ao temor não é certamentedescobertana lida auto-evidente A guisa de hltrodução, o compreenderjá foi disçutidojuntamente com a
(óbvia) com ele; o ameaçador "ainda não se acha em uma proximidade do- inteq)rotaçãodo mundo e foi determinado aí como "poder ser". Depois de ter
minável"(ST, 140), e, por isso, lidamos com ele quando Rigimos, por exem- ficado claro como Heidegger pensa o "descenamento", é possível determ mar
plo, dele ou quando buscamos ]m] outro meio de ficarmos em segurança. agoramais exatamenteesse"poder ser", na medida em que nos dedicarnlos à
150 Günter figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 151

pergunta sobre segundo que aspecto o compreender é lml apreender.p'lesse para alguém, não são senão "em virtude" do ser indeterminado, iminente. E,
caso, faz mais do que sentido clarificar de início uma vez mais como devemos porque os dois são apreendidos no compreender, Heidegger também pode di-
tomar mais exatamente "o que sepôde" no compreender. Isso que sg-pôde, as- zer:"Como o descerramentodo em-virtude-de e da significância, o descerra-
sim o diz Heidegger, não "é nenhum qzrid, mas o ser como existir,,No compre' mento do compreenderdiz respeitoco-originariamente ao ser-no-mundo ple-
ender reside existencialmente o modo de ser do ser-aí como poder-ser. Ser-aí no" (Sr, 143).
não é um ente simplesmente dado, que aliada possui como suplemento o poder Por mais que possaser razoável que o ser indeterminado e iminente seja
algo. Ao contrário, ele é primariamente ser-possível. Ser-aí é sempre e a cada imediatamenteapreendido, no que diz respeito às possibilidades determina-
vez o que ele pode ser e como ele é a sua possibilidade"(ST, 143). Não é total- dasde comportamento poder-se-ia apontar de qualquer modo para o fato de
mente correto, quando Heidegger contesta que "o que se pede" no compreen- essaspossibilidades serem adquiridas, por um lado, por educação e exercí-
der é um qz//d. Os diversos modos da ocupação e da preocupação que ele mes- cio, e se mostrarem, por outro lado, frequentemente como o resultado de re-
mo nomeia para a determinação mais próxima do "que se pede" são natural- flexões. Em sintonia com isso poder-se-ia objetar que tampouco faz sentido
mente um q r/dno sentido de algo determinado. E a teseaqui também colocada falar aqui de um "apreender". Por si só, saber como se trava conhecimento
em jogo unia vez mais de que o ser-aí não pode ser concebido como um "ser com tais possibilidades determinadas de comportamento não tem em geral a
simplesmente dado" diz, então, que não se é determinado por propriedades menor relevância para a pergunta sobre se as possibilidades que se conhe-
simplesmente constatáveis no ser-aí, mas por disposições: o que se é não esta cem são apreendidas.Decisivo é muito mais o seguinte: determinadas possi-
manifesto por meio da própria "aparência", mas só é acessível para outros bilidades como taisjá precisam ser dadasantes de toda decisãoe mesmo an-
quando eles ol)servanl o comportamento.5 Entretanto, mesmo para uma tal ob- tesde toda pergunta sobre se se"pode realmente" algo; e elas são "dadas" na
servação do comportamento, nunca setorna completamente acessível o que se medida em que são apreendidas. O termo "apreender" designa aqui a pura
é, pois sempre se"pode" fazer mais do que de fato se faz. Por outro lado, a tese presençade possibilidades, e possil)ilidades são uma vez mais o que se pode
heideggeriana de que o "que se pôde" no compreender não é nenhum qt//atem serou não se pode ser.Mais do que com qualquer outro ponto, H eideggerpo-
um sentido pertinente. Por Him, não se pode deduzir tão-somente de se poder deria ter se articulado aqui com o capítulo 10da À/erc{/bfcaO, reiteradamen-
algo que também se fará lmla tal coisa, e isso significa uma vez mais: é-se in- te interpretado por ele. Aristóteles diferencia aí o descobrir e o encobrir do
determinado no que seserá. Esseser indetemlinado iminente Heidegger deno- ente composto ante o descobrir e o encobrir do não composto ('t(i àat3v+c-
mhla "existência". E fácil ver, agora, que essa noção de existir é aparentada Ta/ il/e/cz@s/ca,105 1b 17). O não composto é aí o ente mesmo ('tà 6v abTà/
com a tese central do indeterminismo epistêmico. Todavia, Heidegger não À/e/c#!s/ca, 105 1b29), e, em vista do ente mesmo, não há i)enhum descobrir
se diferencia do indeterminismo epistêmico apenaspor não conceber o con- ou encobrir. Ao contrário, ele é pura e simplesmente "tocado" e dito em sua
texto do comportamento como um contexto causal, mas sim como mundo; descol)enaou não é percebido e, com isso, também não é tocado(Tà »êv +L -
além disso, ele interpreta o não-saber do ser iminente como um saber, e, em TCLV xar gávat àÀrPéç (ob Tdp Taü'tà xa'tá(paaLÇ xai(páaLÇ), 'tà
verdade, mais exatamente como um apreender. Se o ser iminentejá não esti- 8'àTvociv ATI +t-RávcLV/ it/erc1/7síca 105 1b24). O tocar do qual fa la Aristó-
vesse sempre descerrado para alguém como lml ser indeteml inado, não se te- telesvisa à mera tomada de conhecimento de lmla simples determinação do
ria em geral nenhuma ocasião para se perguntar como se pode e se quer ser. ente, e, por isso, os "nomes" também se parecem com o percebido sem sínte-
"Compreender" não consiste, contudo, em se perguntar por isso e em res- see semd/a/res/s(Z)e/n/e/preta//one16a, 13-15): quemdiz.fimplesnlente
ponder de lmaamaneira ou de outra à questão.Ao contrário, lml tal perguntar 'casa" não aponta nada, mas docLmlenta de qualquer modo tina tomada de
e responderjá pressupõem o compreender. "Compreender" é o apreender do conhecimento. O mesmo se dá com relação às possibilidades determinadas
ser iminente e indeterminado e de determinados modos de comportamento do comportamento. Também elas precisam ser como tais de início simples-
por meio dos quais esse ser é determinável. Vistas assim, todas as possibili- mente "tocadas", para que se possa então perguntar em geral por como se
dades determinadas de comportamento, nas quais o ente é "significativo quer comportar em particular e se se pode fazê-lo. A realização desse "po-
der" é, então, "interpretação:
Heidegger caracteriza agora o apreender específico da compreensão
sG. Ryle acolheu uma vez mais essa tese aristotélica. Cf. Ryle (1949), especialmente, p aindamais detalhadamenteao introduzir o termo "projeto". "Prometo"desig-
101-103
152 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 153

na a "estrutura existencial"(ST, 145) do compreender. Pode ser que $eideg- justamente o seu caráter de possibilidade, reduzindo-o a uma coisa subsis-
ger tenha retirado essetermo do prólogo à Críffca da ra:ão ptr/a, ho qual tente dada, visada, enquanto o prometolança para a frente a possibilidade
Kant diz que a "razão só tem intelecção do que ela mesma prodLgsegundo o como possibilidade para si e a deixa se/ como tal. O compreender é, como
seu prometo"(CRP, B XI 11).Para Kart, o caráter de projeto da r?êão reside no projetar, o modo de ser do ser-aí, no qual ele é suas possibilidades como pos-
fato de "que ela precisa se adiantar com os princípios de seusjuízos segundo sibilidades" (Sr, 145). As possibilidades se transformam em uma "coisa
leis constantes e obrigar a natureza a responder às suas perguntas, mas nao subsistente dada, visada", na medida em que se fala sobre elas, sqa silen-
precisa deixar que a natureza a conduza pela mão como que em uma guia ciando em diálogo consigo mesmo, seja com os outros. Nenhuma possibili-
apenas; pois senão as observações casuais feitas sem nenhum plano previa' dadeé um prometose ela não for articulada de unia maneira qualquer. Toda-
mente projetado não se encontrariam interligadas absolutamente em uma lei via, só se podem fazer projetos se antesde tudo possibilidades estiverem
necessária, que, no entanto, a razão procura e da qual ela carece" (CRP, descerradas. Para que possam se tomar prqetos, é preciso "tê-las deixado ser
BXlll). Kant fala aqui de procedimentos da ciência experimental da natu- comopossibilidades". Portanto, Heidegger não pensa apenasno modo como
reza que, para poder em geral colocar experimentos em funcionamento, pre- aaberturado ente é apreendida. Ao contrário, ele pensa também o apreender
cisa desenvolver antes de mais nada determinações universais a partir das das possil)ilidades do comportamento conho [m[ deixar, e, de acordo cona
quais, então,o que é objeto do experimentopode ser investigado. Uma tal isso, de unia maneira determinada, a abertura do possível também precisa
determinação é, por exemplo, o postulado da uniformidade do movimento. poderser aqui em geral diferenciada ainda uma vez da abertura do possível
Mais tarde, em sua preleção .4 pe/gtrn/a sob/'e a co/sa, Heidegger também em geral. Aberto no sentido do possível em geral é o ser iminente e indeter-
fala de "prometo"nessesentido -- retomaremos a esseponto mais tarde.' No minado como o determinável por meio das possibilidades de comportamen-
entanto, para vermos que ele tem em vista algo diferente aqui, não precisa- to. Sabemosque não é possível sal)er como se virá a ser, e, porém, percebe-se
mos senão atentar para a seguinte sentença: "0 projetar não tem nada em co- o seriminente e indeterminado do mesmo modo nas formas determinadasdo
mum com um comportar-seem relaçãoa um plano imaginado, de acordo poder-ser.Porque a "existência" no ser-aí é sempre caracterizada por esses
com o qual o ser-aí erige o seu ser, mas, como ser-aí, elejá sempre se proje- momentos, pode-se designa-lajuntamente com seu apreender como "proje-
tou e é, uma vez que é, de maneira projetiva. Ser-aí compreende-se semprejá to"; essesmomentoscunham como que os ''esboços'' do existir. Por outro
e sempre ainda, enquanto é, a partir de possibilidades"(ST, 145). Heidegger lado, o termo "projeto" faz com que pensemos também em uma atividade
contesta expressamente que se possa conceber "prometo" no sentido de um prqetiva, e, visto assim, ele só designa de maneira imperfeita e equívoca o
plano, e o que Kart tem em vista é efetivamente um tal plano que estabelece fenómenoque está em questão para Heidegger.
como lml objeto pode ser a cada vez investigado e determinado. Em contra-
Disct11'se
partida, no sentido heideggeriano, as possibilidades são o proletado, e é es-
sencial que a compreensão "não apreenda tematicanlente ela mesma isso em Tendo-se em vista tudo o que foi dito aqui sobre a concepção filosófica
vista de que ela profeta"(ST, 145). Por isso, o "projeto" também só designa o deHeidegger, é certamente estranhoque ele queira tornar inteligível o "dis-
apreender de possibilidades em verdade determinadas, mas de qualquer curso" como um modo do descerramento. "Discurso" é "o fundamento onto-
modo não pensadasainda em fiação de sua realização; as possibilidades lógico-existencial da linguagem"(ST, 160), e, como tal, "co-originário exis-
precisam ser, então, diferenciadas dos "proletos" que se fazem expressa' tencialmente à disposição e à compreensão" (ST, 16 1). Para #)der conceber
mente. Quando se leva a termo essadiferenciação, pode-se tomar o curso de essa co-originariedade é preciso clarificar inicialmente a diferença entre
pensamentode Heidegger mais incisivamentedo que ele o faz no próprio 'discurso" e "linguagem". A partir das discussões heideggerianas aliás,
texto de S7'. Projetos também são, em verdade, possibilidades. No entanto,
pouco elaboradas--, Hlcaevidente que ele compreende por linguagem a res-
eles são possibilidades tais que determinam o comportamento sempre a cada
pectiva cunhagemfonética, gramatical e lexical do "discurso". "Lingua-
vez atual. na medida em que o que está em questão neles é a realização do
gem" é, por conseguinte, a slmla conceptual para as diversas línguas e não
projetado. Possibilidades proletadas são sempre "tomadas tematicanlente tem em vista a "linguagem em geral". Todavia, é difícil dizer o que significa
de unia maneira ou de outras essemodo de apreensão "retira do proletado
discurso. Certamente, pode-se supor que o d iscurso é a realização do fa lar, e,
sese leva em conta que Heidegger se liga expressamente em suasdiscussões
'Cf. ! 10 dessa investigação.
154 Günter Figa Martin Heídegger: Fenomenologia da Liberdade 155

a Wilhelm von Humboldt, então isso também tornaria compreensÜel em Mesmo que Heidegger acolha o conceito de articulação, bica de qual-
que medida o discurso deve ser o "fundamento" da linguagem. "Poli'", tal as quer forma claro que esseconceito não pode designar o mesmo que em
Humboldt. i' A interpretação do discurso como un] modo do descerramento
coisas se encontram expressas em Humboldt, "se estamos igualiDente acos-
é incompatível com sua apreensãocomo emerge/a.Se o discurso é um modo
tumados a passar dos fonemas às palavras e dessasao discurso, então, no
do descerramento, então ele precisa ser pensado da mesma maneira que a
curso da natureza, o discurso é o primeiro e o deter'minante".7 O discurso tem
uma primazia em relação ao sistema fonético, gramatical e semântico da lin- disposição e a compreensão como um apreender do ser possível. Em meio à
detemlinação mais precisa que Heidegger fornece da articulação também já
guagem porque ele é "o trabalho, que se repete eternamente, do espírito", em
semostra, então, segundo que aspectoo ser-possível é apreendidono discur-
fazer com que "os fonemas articulados sejam capazesde expressar o pensa-
so: "Discursar é articular 'significativamente' a compreensibílidade da
mento".' A "linguagempropriamentedita" reside"no atode suaprodução
ser-no-mundo, com o qual se acha coimplicado o ser-conae o qual semprese
real" e tampouco é com isso "uma obra (E/gon), mas sim uma atividade
retém a cada vez em uma maneira determinada da convivência ocupada.
(Ene/ge/a)".9 Por conseguinte, o discurso não é aqui o falar a cada vez em-
Essaé discursiva como concordar e recusar, exortar e advertir, como pro-
preendido, mas a determinação essencial da linguagem. A determinação da
nunciamento, debate, intercessão, e, mais além, como 'fazer enunciados' e
linguagem propriamente dita" como Emerge/asomente tem iníciojunto ao
como discurso sob o modo do 'sustentar um discurso'" (ST, 161). O que é
falar a cada vez empreendido: "Tomada imediata e rigorosamente, essa(a
'articulado" aqui não é mais o som lingilístico nem a faculdade espiritual
determinaçãoda linguagem como Emerge/a/G.F.)é a definição do falar a
Uma tal concepção de discursojá é para Heidegger impossível porque o dis-
cada vez empreendido; mas no sentido verdadeiro e essencial só se pode
curso não é mais para ele, como ainda era para Humboldt, uma produção de
considerar mesmo a totalidade desse falar como a linguagem. Pois no caos
'mundo", mas sim um modo do ser-no-mundo, de forma que o falante já
disperso de palavras e regras, que costumamos denominar uma língua, só
semprese movimenta em um sistema fonético, gramatical e semântico de
está presente o elemento singular produzido por aquele falar, e isso nunca
linguagem, que Heidegger designa de maneira algo infeliz "totalidade no-
completamente. Esse elemento singular também carece, a princípio, de um
novo trabalho para que se conheça a partir daí o modo de ser do falar vital e cional"(ST, 161); essatotalidade é "previamente encontrável como um ma-
nual" (ST, 161), e, de acordo com isso, poder-se-ia interpretar o falar a cada
dar uma imagem verdadeira da linguagem vital".io Palavras e regras são in-
vez determinado pelo sistema da linguagem como um movimentar-se em
terpretadas aí como uma 13Xvl,na qual o "espírito" seconforma em viMide de
meio a referências.A convivência é muito mais articulada -- e isso no sentido
sua constância. Vista assim, a "linguagem propriamente dita", tal como
Humboldt a pensa, é a realidade tanto das palavras e das regras quanto tam- duplo do termo por meio das diversas possibilidades do discurso que po-
dem então ser realizadas en] aros de fala. Todavia, os alas de fala só podem
bém da "faculdade espiritual",' ! e esses dois aspectos são nlantidosjuntos na
expressaras diversas possibilidades da convivência porque a convivênciajá
conceito de articulação. Como o articular dos sons em grupos sonoros e em
é articulada pelas formas do discurso e percebida em sua articulação. As for-
palavras e como o articular das "idéias"iz da faculdade espiritual no discur-
mas discursivas dão a entender o lugar no qual se pode estar com os outros e
so, a "articulação" é o "princípio dominante em toda a linguagem".i3 Com
esse"dar a entender" também é visado com a noção heideggeriana de"signi-
isso, tal como a noção de 8Lap Óalç em Aristóteles, o termo "articulação'
tem em vista tanto a conformação de um todo orgânicoi4 quanto a realização ficar": "significar" precisa ser lido aqui transitivamente e diz o mesmo que
do espírito no falar. '' "significar algo paraalguém". De acordo conaa term inologia heideggeriana,
o que as formas discursivas dão a cada vez a entender são idodos da ocupa-
'lHer#e//7 (Obras111),p. 180. ção; essesmodos são articulados em sua significância.
*Wei'#e ///(Obras 111),p. 418. Não obstante, não são apenas as diversas possibilidades do discurso que
'Wer#e /// (Obras 111),p. 41 8. são apreendidas,mas também os outros seres-aícomo tais, para os quais se
Wer#e /// (Obras 111),p. 41 8. pode comunicar algo. "Comunicação nunca" é nessecontexto "algo assim
' Mer&e/77(Obras111),p. 464.
ZWerAe //7 (Obras 111), p. 463
icem contraposiçãoa essaapresentação,W. Anz ainda interpretoua concepçãoheideggeriana
'Wer#e /// (Obras 111),p. 13.
de linguagem em Sr como um prosseguimento sem quebras da tradição llumboldtiana. Cf. W
'Cf. Historia anilha i !tlt, p. $83b23.
Anz ( 1969).p. 309
tsC{. Historia anitnaZiult!, p. S3Sa3\
156 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 157

como um transporte de vivências. Um transporte,por exemplo, de opàiões e fossem alternativas estritas apresentadas aqui por Heidegger como tais, en-
desejosde um sujeito para o interior do outro" (ST, 162). Ao contrário, toda tão a propriedade como modo de ser não seria possível sob a pressuposição
exteriorização encena em si mesma o fato de que o "co-ser-aí (...)já está es- de que o ser-aí é hindamentalmente ser-no-mundo, pois como próprio o
sencialmente manifesto" (ST, 162): em cada fala, a convivência/eln razão de ser-aí precisaria ser sem nltmdo. No entanto, a aporia só se acha aqui na for-
sua comparabilidade, não pode ser senão levada a termo de unha maneira ou de mulação e não na coisa mesma. Quando Heidegger fala da impropriedade
outra porquejá se estáaí aberto muütamente um para o outro. Porque Heideg- como uma "imersão" no mundo, ele não tem em vista a totalidade conjuntu-
ral descerrada como significativa, mas o mundo como "mundo compartilha-
ger chega a essa ideia, "ouvir" e "silenciar" desempenham um papel essencial
do". Na medida em que o mundo compartilhado é, a significância está articu-
em sua concepção do discurso: "Junto a essefenómeno toma-se clara pela pri-
lada, de modo que diversas maneiras de agir podem ser coordenadas umas às
meira vez plenamente a ftmção constitutiva do discurso para a existencialida-
de da existência"(ST, 161). O ouvir é constitutivo para a possibilidade de po- outras em comandos, desejos etc. Além disso, no mundo compartilhado os
der ser com os outros porque somente alguém que pode ouvir está aberto para modos de comportamento são eles mesmos comparáveis. Mas também isso
não é senãouma condição necessáriapara a impropriedade. Exatamente
ser interpelado discursivamente: "0 escutai-(...) é o estar aberto existencial-
nlente do ser-aí como ser-com para os outros" (ST, 163). Essa abeHira pode se como a estrutura do "impessoal", a signiHlcância articulada é uma aparição
da liberdade. A liberdade que o scr-aí "propriamente" é só é fechada e dissi-
mostrar "ântica" e "existienciariamente" como o fechamento integral de um
homem que agoranão quer mais ouvir nada.Também o silenciar não é apenas mulada no momento em que todo comportamento é do/1?//ladopor exteriori-
uma privação do f'alar, mas um outro aspecto do ouvir; só quem silencia se dei- zações da significância e pela comparação do comportamento só assim não
seé como se é "propriamente", e, portanto, se é "impropriamente''
xa interpelar discursivamente, e, visto assim, todo discurso pressupõea cada
vezunl silenciar. No silenciar reside o perceber da abertura para a interpelação Já na construção da análise heideggeriana Hlcaclaro que a improprieda-
discursiva e para o ser interpelado discursivameilte. de só pode ser concebida a partir do discul'se. Na análise da impropriedade.
todos os três modos do descerramento e, da mesma forma, as realizações dos
Como se mostrou, a concepção heideggeriana do discurso não é em pri-
meira linha orientada pela realização da fala. Essarealização só é considera- comportamentos em meio à interpretação são levados em conta. Todavia,
da aqui em suasformas possíveis, formas do comportamento de um em rela- Heidegger explicita agora de maneira diversa da que está presente no pará-
ção ao outro. Na medida em que essecomportamento é levado a termo em grafo sobre o descerramento mesmo o discurso em seu modo impróprio, o
meio à abertura de lml para o outro, que é detemlinável como abertura em ge- "falatório", em primeiro lugar, para então se voltar para a "curiosidade", que
ral pelas diversas formas discursivas, ele é livre. Contudo, se pudesse ser é subordinada à compreensão, para a "ambigilidade" como o modo impró-
dito que a determinação fundamental da não-liberdade também reside na es- prio da interpretação, e, por nim, para a "decadência" e para o estarjogado
trutura da convivência, então essadeterminação fundamental precisaria se descerrado n a disposição. As formas citadas da impropriedade são todas elu-

deixar desenvolver a partir do descerramento específico do ser-cona. cidadasa partir do falatório como tal. Tal como o "falatório", a"decadência:
possui aqui lmla posição privilegiada. No entanto, como isso se dá segundo
um aspecto diverso, é aconselhável nos restringirmos agora a uma discussão
g 7. Impropriedade ou a posição do comportamento conjunta dos três primeiros aspectos da impropriedade.
Em Heidegger,o tem)o "impropriedade"designaum modo de serdo
ser-aí. Ele mesmo determina de uma maneira muito equívoca essemodo de Falatório, curiosidade e alnbigilidade f
ser ao falar de uma "imersão no mundo da ocupação"(ST, 125). Em unia ou- A partir das interpretaçõesprecedentes,não é difícil ver que o discurso
tra passagem, deparamo-nos até mesmo com a seguinte forillulação: "A
pode dissimular os outros modos de descerramento. Em verdade, nem toda
compreensão pode se colocar primariamente no descerramento do ntundo,
possibilidade de comportamento é um projeto. A princípio, porém, toda pos-
isto é, o ser-aí pode se compreender de início e na maioria das vezes a partir sibilidade de comportamento pode ser tomada como prometo.Nesse caso,
do seu mundo. Ou, por outro lado, a compreensão sejoga primariamente no exatamentecomo a interpretação na qual o prometoé realizado ou que no mí-
interior do em-virtude-de, ou soja, o ser-aí existe como ele mesmo" (ST,
nimo contribui para uma tal realização, ela é articulada e pronunciável. Algo
146). Sea compreensão"a partir do mundo" e o ':jogar-se no em-virtude-de'
similar vale para a disposição: como pronunciados, tonalidades afetivas e
'l Pr PP-

158 Günter Final Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 159

sentimentos têm na maioria das vezes seu lugar em uma convivênciÍarticu- vez meu". O "caráter de ser sempre a cada vez meu" não é algo que se "reti-
lada. A expressão de temor, alto astral, alegria e tédio, por exemplo, não re" dos outros, mas sim algo que só pode ser percebido por si mesmo ou que
sÓpode ser experimentado em meio à própria realização.
co-perfaz apenas a convivência. Ao contrário, entre outras c(tias, vamos
Como tal, porém, mesmo o "descerramento do impessoal" ainda não é
muito mais ao encontro de tais tonalidades afetivas e sentime®s na medida
em que os pronunciamos de uma maneira ou de outra; sabemos, além disso, impróprio. Uma vez que o "impessoal" sempreé o que se empreende,a con-
vivência no "impessoal" é em verdade caracterizada como orientação cor-
algo sobre eles em razão também de seupronunciamento por.meio de outros.
rente pelo comportamento determinado, e, em geral, pelo que é determina-
Com isso,já estáindiretamente denominada uma característica do falatório.
do. Todavia, enameio ao comportamento que é "ocupação" e "preocupa-
Em geral, como dizHeidegger, "o pronunciamento resguarda(...) no todo de
suas conexões significativas articuladas uma compreensão do mundo des- ção", uma tal orientação corrente não se deixa resgatar, pois todo comporta-
cerrado, e, co-originariamente com isso, uma compreensão do co-ser-aí dos mentodessetipo é levado a termo no contexto do indeterminado e possível.
outros e do ser-em sempre a cada vez próprio" (ST, 168). Um tal resguardo O que é "impróprio" é muito mais a orientação corrente pelo determinado
certamente fornece, por um lado, uma possibilidade de saber sobre o com- em um modo de comportamento, junto ao qual também o que é aberto na
ocupação e na preocupação ainda pode ser deterá içado. Esse modo de com-
portamento dos outros no mundo e não se visa senãoisso com o termo "com-
preensão", que não é empregado aqui de maneira estritamente terminológi- portamento é o fa lar. No falar, mesmo quando o próprio comportamento não
ca. Por outro lado, contudo, o descerramentopermaneceofuscado em meio oferecemais nenhtmla determinação, ainda se encontra semprealguma: "De
acordocom a compreensibilidade mediana quejá reside na linguagem fala-
ao pronunciamento, na medida em que o descerramento é um apreender: não
da em meio ao expressar-se,o discurso comunicado pode ser amplamente
sepode falar nem sobre o ser iminente e indetenalinado,nem sobre a abertura
do ser para o comportamento, nem sobre a abertura de um para.o outro da compreendido sem que o ouvinte se coloque em um ser originariamente
maneira como se pode falar deprojetos, de vivências, de tonalidades afetivas compreensivo em relação ao sobre o quê do discurso. Não se compreende
e de sentimentos.e dos outros em sua determinação.Com o primado do pro- tantoo elite discutido, masjá se escuta apenaso falado como tal. Esseé com-
nunciamento. o descerramentoparao "descerramento do impessoal", para a preendido, o sobre o quê apenas aproximadamente, superficialmente;
[em-seo mesmo em vista porque se compreende o dito em conjunto na mes-
"esfera pública"(S7, 167), é modificado. Não é a disposição que é "pública"
ma medianidade" (ST, 168). A compreensibilidade mediana só é mais uma
uma vez que ela é tonalidade afetiva para um comportamento, mas slm o
rtamento afinado que é pronunciado e discutido. O próprio ser inde- aparição da compreensão porque o que é nela "compreendido" é conhecido
terminado, que é determinável por meio das diversas possibilidades de com- como pronunciado e é encoberto em seu caráter de possibilidade por meio
disso: pronunciadas, as possibilidades só continuam sendo consideradas sob
portamento e é percebido nessa determinabilidade, tampouco. se mostra
como "público". Públicos são muito mais os proletos. Por fim, não é a aber- o ponto de vista de sua realização e não como o que está a cada vez en] condi-
tura de um para o outro queé pública, mas o falar a cada vez empreendido. O çõesde também não ser. Mesmo que nãopossamoslevar a termo a cadavez a
descobertapronunciada en] um enunciado, estamosem condições de com-
caráter público é apenasa aparição do descerramento. Isso certamente nâo
preendero enunciado pura e simplesmente porque aprendemos a nos movi-
significa que o descerramentosqa, como tal, "privado". Visto de maneira
mentarno contexto de uma língua. Enunciados são separáveisde contextos
ontológico-existencial, o caráter privado não é nenhuma alternativa para o
deação;tudo o que foi dito pode ser apropriado, na medida em que simples-
caráter público. Em verdade, Heidegger não discute expressamente o pro'
menteo repetimos em seguida; e, nessarepetição, forma-se #'compreensi-
blema do privado. No entanto, de acordo com a análise do "impessoal , ten-
bilidade mediana". O termo heideggeriano "falatório" não designa, agora,
de se a pensar o caráter privado como tm] modo do caráter público. Não há
dúvida de que "também nos afastamosdas 'grandes multidões' como o /nl- nadasenãoo recurso aojá expressoe tem com isso um sentido pretérito: "fa-
latório" é o discurso no contexto do falado, e, em verdade, de ]m] modo tal
pessoa/ se afasta" (ST, 127) e de que só se podem compL'tar determinadas
que mesmo o falar silencioso consigo mesmo está aí incluído. Por conse-
maneirasde comportar-se à esferaprivada porque "o impessoal" assim o faz
Na medida em que, no sentido do emprego heideggeriano do termo "públi- guinte, é preciso que se leve a sério quando Heidegger diz que o tempo"fala-
co", tudo ocorre por intermédio do discurso, e, por isso, é acessível para to- tório" não deve "ser usado em lmla significação desabonadora"(ST, 167);
falatório" não precisa ser "palavrório". Todo discurso terminológico, por
dos, a altemativa para "público" não é "privado", mas o que é "sempre a cada
160 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade ] 61

exemplo, também corre muito mais o risco de se tornar falatório poljtue os descobrir expresso. Se em contraposição a isso a abertura do ser-no-mundo. o
termos freqüentemeilte se mostram aí como designações simpliüiéadoras descerramento, não é para ser pensada como um fazer, então também não se
para conexões e estados de coisas complexos e porque nem sempre é possí- pode ftmdamentar o fechamento dessa abertura em uma omissão, mas apenas
vel, enl meio ao seu emprego, examinar a fundo as conexões e a(estados de em um fazer. Essefazer éjustamente o discurso naesmo."Temos aqui o fato de
coisas interpelados. O perigo do falatório, que também pode ser o perigo da queéfa [ado" (ST, ] 68), pois só assim o ser-si-próprio cotidiano podeser rea]i-
'escrevinhação", subsiste então sempre que se recorre ao anteriormente dito zado em sua determinação. Certamente, em meio à tentativa de uma tal deter-
e escrito como algo pura e simplesmente compreensível, e, nessecaso,tanto minação,o ser-si-mesmocotidiano é como que subdeterminado.O ser-dito e o
quanto na circunstância em que se conhecem muitas coisas apenas por ouvir ser-passado-adiante-do-dito é "desprovido de solo", e, unia vez que nos orien-
falar ou como coisa lida, Ricaclaro o quão difícil e, por fim, mesmo impossí- tamospor eleno ser-aí, se é de modo "desenraizado": "0 falatório... é o modo
vel é escapardo falatório. Uma vez que dominamos uma língua e a falamos, de ser da compreensão desenraizadado ser-aí (...) Como ser-no-mundo, o
já nos encontramos no falatório. ser-aíque se retém no falatório é cindido das ligações antológicas primárias e
Depois dessesesclarecimentos, não resta nenhuma dúvida quanto ao fato originariamente autênticascom o mundo, com o co-ser-aí,com o ser-em. Ele
de o falatório viabilizar aquela orientação pelo "evidente", contra a qual, de semantém em suspenso e sempre continua estando, porém,junto ao 'mundo
acordo com Heidegger, todo e qualquer empenho fenomenológico tem de se com os outros e para ele mesmo" (ST, 170). As ligações antológicas com o
voltar. Na medida em que somos dominados pelo falatório, mantemo-nos no mundo das quais Heidegger fala aqui são as ligações da significância. Na me-
modo da aparência como a possibilidade de "compreender tudo sem lula dida em que falamos, estamos "cândidos" dessas ligações, pois, falando, não
apropriação prévia da coisa"(ST, 169). "Compreender tudo" e poder falar so- encontramos a nossa determhlação na lida que descobre e que se ocupa com o
bre tudo é uma característica dos soHlstas.i7Assim, pode-se dizer que o ser-aí ente.Não obstante,pode-se ser "alguém determinado", pode-seserjustameil-
imerso na impropriedade é em si ao mesmo tempo sofístico e vítima do con- te aquele que representaessas convicções determinadas e sabe dar essase
vencimento sofístico. Do mesn]o modo que en] meio aos sofistas, a ilusão pre- aquelasinformações. A mundanidadeno ser-aídominado pelo falatório é cer-
senteno falatório também não repousa sobre lmla intenção claramente Hixável tamente aparente e a isso serefere o termo heideggeriano "em suspenso": pro-
para a qual haveria a altemativa de lmla descoberta autêntica:i8 "0 discurso jetos podem ser pronunciados e propagados no falatório sem que soam con-
que pertence à constituição ontológica essencial do ser-aí e perfaz concomi- quistadosa partir de possibilidades próprias de comportamento. Uma vez que
tantementeseu descerramentotem a possibilidadede se tornar falatório e, nosmantemosno âmbito do que"se" diz, o comportamento também perdeseu
como um tal falatório, não manter tanto o ser-no-mundo aberto em uma com- caráterde fardo descerradono interior da tonalidade afetiva, pois o falar deso-
preensão articulada, mas fecha-lo, encobrindo ao mesmo tempo o ente íntra- nera,sim, do agir com seuscomprometimentos econsequências.Diversamen-
nlundano. Para tanto, ele não carece de um intuito de iludir. O falatório não te da realizaçãode algo no "mundo de uma obra", o falar como expressãode
tem o modo de ser da entrega consciente de algo como algo. O ser-dito e o ser opiniões não é nada que possa efetivamente perfazer alguéill no que ele é. Opi-
passado adiante do que foi dito desprovidos de solo próprio são suficientes niões são cambiáveis e essacambialidade é imediatamente encoberta porque
para que o descerrar se inverta em lml Fechamento. Pois o dito sempre é hlicial- asopiniões em que nos retemos são opiniões familiares. Na aparência do fala-
mente compreendido como 'algo que diz', isto é, como algo descobridor. O fa- tório reside uma falta de imperatividade que não se encontra em contradição
latório é, com isso, em si mesmo, de acordo com a omissão do recurso ao solo alguma com lula determhlação corrente do ser-si-próprio cotidiano.
do que é discutido, uma omissão que Ihe é própria, lml fechamento"(Sr, 169). Essaausência de imperatividade vem à tona ainda mais d#tintamente
Heidegger fundamenta aqui o fechamento pelo falatório em uma omissão. na "curiosidade". Heidegger designa com o termo "curiosidade" o modo
Dessa forma, porém, só é possível tornar hüeligível o encobrimento do ente inautêntico do compreender e da "visão" como possibilidade de se deixar re-
intramundano; esse encobrimento repousa, de fato, em não nos comportarmos ferira lml contexto do ente. A modificação que está aqui em questão consiste
de maneira descobridora por supomlos que temos a ver no que é dito com lml em que o compreender se torne, como perceber de possibilidades, lml "ape-
nas-apreender" (ST, 172) e a visão perca seu caráter de circunvisão em um
contexto referencial: "A ocupação pode encontrar o repouso no sentido da
'Cf. O s(Ús/a, p. 232b-233c. interrupção aquietante dos afazeres ou como um estar-pronta. Na qu ietude, a
'0 sofista não é nenllum lllentiroso, masuma figura oca do discurso: cf Gadamer (1983), p. 80
162 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 163

ocupação não desaparece. Ao contrário, é a circutwisão que antes Ricalivre. Heidegger quer mostrar o fato de as possibilidades determinadas não
não estando mais vinculada ao mundo da obra", e, com isso, forma-se a ten- poderem ser tomadas realmente na esfera pública em meio à explicitação
dência para, "permanecendo de maneira aquietante, só ver o 'mtmdq' em sua da"ambigtlidade". "Ambigüidadc", assim é dito por ele, é o modo impró-
aparência". "0 ser-aí deixa-se carregar pela aparência do mundqÍ'Gm modo prio da interpretação para a realização do que é compreendido. Ela consis-
de ser no qual ele se ocupa em se ver pura e simplesmente livre de si mesmo te. inicialmente, na indecidibilidade no interior da convivência cotidiana
como ser-no-mtmdo, pura e simplesmente livre do serjunto ao manual mais umavez que ela é cunhada pelo falatório quanto "ao que é descerrada em
imediatamente cotidiano" (ST, 172). Aqui poder-se-ia pensar de início que um compreender autêntico e o que não": "tudo tem a aparência de algo au-
se trataria na curiosidade de uma desoneraçãodas realizações da ocupação tenticamentecompreendido, tomado e falado, mas, no fundo, não é, ou ele
na medida em que se experimenta o ente intranlundano de maneira desvincu- nãotem a aparência, e, no fundo, o é"(ST, 173). Essa indecidibilidade tam-
lada por sua utilidade ou por seu caráter prejudicial à obra e só se o toma elu bémtem seu fundamento uma vez mais no falar. Não se nota sem mais, em
sua aparência; e a "aparência", tal como Heidegger nota em sintonia com uma sentençaexposta, se ela foi assumida por outros e é unia repetição do
Santo Agostinho, é um termo para designar toda e qualquer propriedade quese falou ou se ela traz à expressão um projeto autêntico, conquistado a
constitutiva perceptível do ente (ST, 171). Assim, a curiosidade seria ócio e partir do compreender. Não obstante, a característica mais importante da
descansodo cansaçoda ocupação.No entanto, o fato de Heidegger não pen- ambigüidade é que ela 'já se estabeleceu no compreender como poder ser,
sar assim fica claro quando ele diz: a curiosidade busca "o novo apenas para sobo modo do projeto e da asserçãode possibilidades do ser-aí": "cada um
saltarnovamente por ele em direção ao mais novo"(ST, 172). A curiosidade tambémjá sabe falar sobre o que ainda deve acontecer, o que ainda não se
é "caracterizada por uma impermanência específicajunto ao mais imediato' encontrapresente, mas precisaria ser feito 'propriamente'" (ST, 173). Na
(ST, 172), e, por isso, não se mostra absolutamentecomo o "ócio da perma- esferapública, portanto, decide-se que projetos devem ser privilegiados
nência teórica", mas como "inquietude e excitação pelo sempre novo e pela emdetrimento de outros. Uma vez que as possibilidades do comportamen-
mudança do que vensao encontro", portanto, como "a constantepossibilida- to sãoacessíveisprimariamente como possibilidades pronunciadas, elas
de da dispersão" (ST, 172)l ela está"em toda parte e em parte alguma" e é tambémpodem ser rejeitadas de maneira tão rápida quanto foram antes
com isso "ausência de paragem" (ST, 173). Se se afirma, por fím, que o que propagadas:"supostojustamente que o que se pressentiu e de que se seguiu
está em questão na curiosidade são "possibilidades do entregar-se ao mun- o rasto um dia seja efetivamente realizado, então a ambigüídadejá cuidou
do" (Sr, 172), então pode-se ler lmla tal afirmação como uma síntese de to- paraque pareçade maneira totalmente imediata o illteresse pela coisa reali-
das as outras caracterizações: nós justamente não "nos entregamos" ao zada.Esse interesse subsiste, sim, apenas sol) a forma da curiosidade e do
mundo" quando arranjamos algo no contexto referencial do ente e nos falatório, na medida em que a possibilidade do apenas-pressentir-con-
achamos aí ':junto à coisa". Ao contrário, essaentrega só se dá quando bus- jLmtamenteé dada" (ST, 173). Se nos mantemosjunto aos projctos expos-
camos sua expressividade e detemlinação também onde, medida por suas tos, então o que é efetivamente feito já não pode mais ser interessante,
capacidadese conhecimentos, não se pode mais se comportar propriamente. quantomais não seja porque ele não pode mais ser propagado agora como
Visto assim, "entregar-se ao mundo" significa: querer apropriar-se ílimíta- prometo.Porque toda atividade como atividade real também se encontra no
damente da conexão do ente em sua significância, e isso só é possível na me- contexto do possíve[ e nunca é uma rea]ização do possíve] em geral, e]a
dida em que nos mantemosnas possibilidades da curiosidade abertasno fala- semprevem à tona como um "autêntico fracassar" (ST, 174), e o que está
tório. O falatório "dize que se precisater lido e visto"(ST, 173)e dá com isso emjogo na ambígiiidade é evitar essefracasso: por intermédio da p#paga-
à curiosidade, apesarde sua ausênciade paragem, uma segurançapeculiar. çãode uma gama de possibilidades,justamente o caráter de possibilidade
Aqui tambén] se mostra lmla vez mais como a modificação do descerramen- do fazer, o fato de ele só ser uma possibilidade que não garante nenhtmla
to para a esfera pública precisa ser compreendido: se as possibilidades de realidade efetiva completa do agente deve ser dissimulado. Com isso que
pode acontecer, a interpretação precisa ser modificada em mero discurso.
comportamento são em verdade determinadas no compreender, mas como
tais não são temáticas, e, por isso, em consideração a se se pode toma-las, es- Apesar de o falar taml)ém ser um interpretar, ele não está submetido a ne-
tão abertas, então a esfera pública oferece uma grande quantidade dc possi- nhuma delimitação essencial. Tudo o que é dito pode ser, além disso, rein-
t)ilidades que se assumem como projetos para rejeita-las logo em seguida terpretado,e, destafeita, sempre pode ser equiparado ou contrastado com o
uma vez dais.

l
164 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 165

que os outros dizem. Porquanto nos mantemosjunto ao que é dita sobre os


Kpattctv/ J?ep.,433a8), então não se pode ter dúvida quanto ao fato de que
outros e mesmo primariamente falamos sobre eles, a convivência mesma há aqui uma grande proximidade entre as concepções de Platão e Heideg-
se torna ambígua: "0 outro está inicialmente 'aí' a partirdo que se disse so-
ger. Por fim, a impropriedade consiste em que o descerramento para a esfe-
bre ele, do que se diz e sabe sobre ele. O falatório se inscreyginicialmente ra pública é modificado, de modo que se pode querer mais determinação
na convivência originária. Cada um prestainicialmente atençãoao outro, eH razão do falatório do que é possível no comportamento simples. Não se
ao modo como ele se comporta, ao que ele dirá quanto a isso. A convivên-
quer apenasfazer impropriamente o que é seu, mas ser mais real do que se
cia no impessoal não é absolutamente un] estar um ao lado do outro indife- consegueser.
rente e pronto, mas um prestar atençãoum ao outro tenso e ambíguo, um se-
creto interrogar-se mutuamente. Sob a máscara do lml pelo outro entra em Decadência como }no'pimento da impropriedade
cena o um contra o outro"(ST, 1 74). Se se dizaqui que o outro vem "inicial-
mente" ao encontro a partir do que se ouviu sobre ele, então isso parece es- O "decair", assimjá foi dito, tem lml valor conjuntural particular em
meio à discussãoda impropriedade, e, em verdade, segundo un] aspecto di-
tar em contradição com as determinações denominadas anteriormente por
Heidegger, de acordo com as quais os outros vêm inicialmente ao encontro versodo falatório. A "decadência" designa a relação da impropriedade com
o descerramento que "propriamente" se é: "0 ser-aí já sempre caiu inicial-
no contexto da ocupaçãoe são expressamentecomo o que empreendem.
mente de si mesmo como poder-ser próprio e decaiu no 'mtmdo'. A deca-
No entanto, essasdeterminações são compatíveis umas com as outras por-
dência no mundo visa à imersão na convivência, na medida em que essaé
que a acessibilidade dos outros é pensada aqui sob o ponto de vista de seu
conduzida por falatório, curiosidade e ambiguidade"(ST, 175). Quando Hei-
comportamento possível. Elas são as declarações de intenções, das quais
só se sabe por ouvir dizer, e, além disso, as auto-interpretações que não são degger designa a "imersão" na esfera pública como "queda" de si mesmo por
freqüentemente senão apresentaçõesdo comportamento como projetos de partedo ser-aí e como "decadência" no mundo compartilhado dominado
outrora ou que só são no âmbito de projetos. Essas possibilidades de com- pelofalatório, ele se articula com os termos anteriormente introduzidos: 'le-
portamento pronunciadas dependem de um controle e de uma avaliação re- gado" e "projeto". "Jogar" ou "estar-jogado" e "cair" são metáforas que se
cíprocos quando se trata de n)anter a compreensibilidade mediana da con- correspondem mutuamente. Do mesmo modo, o discurso acerca da "queda:
vivência. O que é dito sobre os outros precisa adequar-seaos intuitos, inter- do ser-aípode ser lido como alusão ao mito da transmigração das almas no
pretações e avaliações próprios, pronunciados a partir da postura do dizer f'adro, de acordo com o qual a alma atravessa o ar voando e controla a bela
ordem do ente na totalidade(xÓapoç). No entanto, também pode perder sua
eu mesmo" cotidiano, e é adequado mesmo quando se constata uma dis-
sensãocom alguém. Mas não apenas na dissensão, também na comunhão plumageme sedomiciliar no corpo terreno (Ferro, 246c). Com certeza,o
constatada "entra em jogo uma dimensão de um contra o outro, uma vez central para Heidegger consistejustamente em lml dislancianlento ante lmla
que sempre se precisa assegurar essacomunhão uma vez mais novamente concepção da "alma" como algo essencialmente desprendido que também
no falar. A interpretação do ente na ocupação estácoordenada não apenasa consegueser puramente por si em meio a essedesprendimento. A decadên-
cia, tal como ele a quer pensar, não é nenhuma queda a partir de "Lml 'estado
outras interpretações por intermédio da remissibilidade das interpretações
umas às outras, mas está subordinada a um "recíproco prestar atenção' originário' mais puro e mais elevado, pois "disso não apenas não temos anti-
Heidegger considera aqui uma característica da convivência cotidiana gamentenenhtmla experiência, mas taml)ém não temos ontologicamente ne-
quejá tinha sido apresentada por Platão na Repzíó//ca, e, em verdade, no nhtmlapossibilidade e nenhum fio condutor para a interpretação"(ST, 176).
grande discurso de Adimanto no começo do livro 11.Lá encontramos a Isso vale plenamente para todas as reformulações teológicas dessaidéia, e,
por isso, Heidegger também pode dizer que não deve ser decidido "se o ho-
afirmação de que uma comunidade em que o que está em questão é pare-
mens'está afogado no pecado', no s/a/zís corrup//on/s, se ele perambula no
cerjusto e não serjusto é marcada por lmla vigilância mútua(Replíb//ca,
367a2). Em meio à discussão da impropriedade, parece não se tratar em sfa/Ifs/n/eg/'/ra//s ou se se encontra em um estágio intermediário, no s/a/zrs
verdade de nada menos do que da pergunta sobre ajustiça e pela injustiça. arar/ae"(ST, 180). Exatamente se o discurso religioso acerca do pecado ori-
Não obstante, se se levarem consideração que ajustiça é determinada no li- ginário for interpretável teologicamente com conceitos ontológicos ou até
vro [V da R(pzíó//ca como "fazer o que é próprio a cada lml" (Tà Td abToi] mesmo se,como Heidegger tem em vista, ele "precisar recorrer a(...) estni-
turas existenciais, pressuposto que seus enunciados levantam ao mesmo
l

166 Günter Figa


Martin Heidegger; Fenomenologia da Liberdade 167

tempo uma requisição por uma compreensão co/vce//zra/" (ST, 180), a enter.
ceitoontológico de movimento" (ST, 180) e é igualmente um conceito que
predaçãoontológica mesma não pode ser religiosa ou teológica.i9 Mas o dis-
liga lml modo determinado de movimento a outro. Como no lugar da alma
tanciamento heideggeriano ante o mito platânicojá tem a sua razão de ser na
detemlinação do ser-aí como ser-possível.Por Him,tal como foi desdobrado. quemovimenta a si mesmaentrou em cena o ser-aí como ser-possível,o "ter
caídode" também não consiste mais agora na inserção vinculadora da alma
o ser-possível do ser-aí é, por um lado, ser-possível para o comportamento
nocorpo terreno, mas no fato de o comportamento estar ligado em sua reali-
no contexto do ente aberto a esse comportamento, e, por outro lado, ele é
zação ao falatório, às possibilidades apa/'e/7re/lze/7/e abertas no falatório e ao
poder ser", portanto, um ser iminente e indeterminado, mas determinável
controlemútuo que é exercido nele. O comportamento sob a predominância
por intemlédio das possibilidades de comportamento. Nos dois aspectos,o
do falatório só apa/ece ainda como um comportamento, que o impessoal
ser-possível nãoé nenhum "estado originário" aoqual poder-se-ia contrapor "mesmo" leva a termal com efeito, porém, o si próprio cotidiano é marcado
o comportamento determinado como "ter caído de". Na medida en] que ilo
pela alteridade.
ser-aí a possibilidade do comportamento real é descerrada, o descerramento
Mesmo se for elucidativo que Heidegger recorra à diferenciação plató-
tambémnão precisaser cindido estritamentedo comportamentoreal. Mas
nica entre tml automovimento desprendido e um movimento vinculado, a
[nesmo se se concebe a decadência como o despontar na convivência sob a
pergunta sobre em que sentido ele fala em geral en] "movimento" permane-
predominância do falatório, o descerramentonão podeserpensado como um
ce,de qualquer modo, inicialmente aberta. A determinação do comporta-
estadooriginário". Por fim, já se estásempreno contexto do falatório. e.
mento como um conceito ontológico de movimento não é mais amplamente
vista assim, a decadência consiste pura e simplesmente em também conta.
explicitada, e, com isso, também resta sem esclarecimento o sfa/l/s de tudo o
muarse mantendono falatório. Essemanter-seno falatório, porém, não é
simplesmente lml estado, mas um movimento que Heidegger diz em Se/' e /e//2po sobre a "estrutura" e a "'mobilidade' do
comportamento"(ST. 177). O fato de o termo "mobilidade" estar entre aspas
Para esclarecer como essemovimento tem de ser pensado em particular.
em Heidegger não aponta, certamente, senão para o seguinte: não se tem em
é preciso tentar traduzir [ão bem quanto possível em determinações oiltolÓ-
vista aqui nenhum movimento no sentido da alteração de um elite em sua
gicas o discurso metafórico da "decadência". Para tanto, pode-se colectar
constituição ou em relação a seu lugar. Heideggerjá interpretara, no início
ainda uma vez com o mito platónico da transmigração das almas. O despren-
dos anos de 1920, "comportamento" não apenas como "comportar-se em re-
dimento da alma, ou, na linguagem do mito, sua plumagem, se dá iia medida
laçãoa(...)", mas também em seu "sentido de realização"(OC 61, 53), e des-
em que a alma movimenta a si mesma e somente a si mesma; como algo sem-
creveraessesentido de realização uma vez mais como movimento. "Movi-
pre movimentado por si mesmo,a alma é imortal ('tt3 TaP aÜvoxÍv7lTov
mento" é, nessecaso, o fenómeno a partir do qual o ser-aí, outrora ainda de-
à+(ívaTov/ radio, 245c5). Em comparação com isso, junto à mobilização
nominado "vida", deve ser tomado inteligível no todo. Como Heideggerdiz
um outro e aojer movido por um outro, o viver acabapor se interromper
1- ' '
no semestrede inverno de ]921-1922, trata-se de "avançar interpretativa-
(Tà.8'áÀÀo xtvoi3v xai bx'ãÀÀou xtvoÚP,cvov, vai;ÀcEVêXo" XLvrlacuiç,
menteem direçãoa um movimentoque perfaçaa mobilidade própria da
lrcxuav EXCLtuTlç/ Ferro, 245c5-7). A vinculação da alma a um corpo torre .
vida, pois é no interiordessa mobilidade e por intermédio dela que a vida é, e,
no é, portanto, uln ter caído de seupuro automovimento, pois agoraé o corpo por conseguinte, só a partir dela a vida é determinável de tal ou tal maneira
que parece mover a si mesmo (abTà abTà 8oxouv XLVCLV//adro, 246c4)l e, em seu sentido ontológico. E essa mobilidade que torna compreensível
em verdade, em razão da capacidade de movimento da alma (8L(i Tjv
como um tal ente pode ser trazido genuinamente para lula de suas npneiras
ÍvTIÇ 8Úvaptv/ Pedra, 246c4). O que se pode ver sobre a terra é apenas a
de ter disponíveis e apropriadoras (problema da facticidade, xÍvrlaLÇ-pro-
aparência do automovimento. Exatamentecomo Platão, Heidegger tanlbénl
blema)"(OC 61, 117). A concepção do ser-aí em srjá se diferencia do que
pensa que o "ter caído de" ou a "decadência" apontam agora para um "con-
Heidegger formula nesse contexto pelo fato de o conceito de movimento não
19 desempenhar mais agora o papel central. Enl sua discussão da decadência,
Por isso. tambémé implausível colclcar de maneira apressadaa lilosofla heideggeriana cm porém,Heidegger se colecta abertamentecom suasprimeiras reflexões. Por
uilla conexão estreita com a teologia. Mesmo que hda muitos motivos e modos ie expressão em
isso, pode-se seguir o conceito de xívvlaLÇ mesmo junto à interpretação da
Heidegger que provêm da tradição teológica, essestêm um outro valor conjuntural e não se dei-
decadência, e, en] verdade, ta l como ele se mostra clara e distintamellte a par-
xam interpretar simplesmente de maneira teológica. No que concerne àrelação da teologia com
Heidegger, çt. sobretudo Gethmann-Siefert( 1974) e Jãger( 1978) '"'-' tir do contexto da preleção: o conceito aristotélico de xívTlaLÇ
168 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 169

Aristóteles detemlina a xívrptç como h 'tou 8uvápcl ÓvTOÇtvTc- mento. Para dizer isso, é preciso não se contestar que há modos de comporta-
XéXCLah TOLouTov(Fh/ca, 201a] 0), isto é: como a realidade do possível, na mentoque têm o s/arzlsde uma tvépTcta êvtcXllç. Eles só têm, sem dúvida
medida em que ele é um possível. Visto assim, xÍvTlaLÇ não é a pasqpgem do alguma, um tal sía/zís ]la medida em que não apontam por si mesmos para ne-
possível para o real,zomas o modo específico de o possível ser real. A reali- nhum fim: ir passeare nadar não são, naturalmente, movimentos que apontam
dade do possível não é nenhuma obra finalizada e nenhuma atividade que re- oor si mesmospara um üim. Mas mesmo tais movimentos possuem um Him,
pousa em si. Ao contrário, ela é como realidade inacabada GcvépTCLa(...) porque eles são movimentos determinados e diversos de outros que podem ser
àTeÀtk/ fís/ca, 201b3 1). Ao falar da "mobilidade" do comportamento, o levados a termo em vez deles. Porque todo comportamento pode e precisa ser
que interessa a Heidegger é esse inacabamento. Para elaborar isso mais com- liberada por um outro, nenhum comportamento é capaz de nos levar ao fim.
preensivelmente, é de início importante estabelecer lula diferença entre Semprehá novas possibilidades que não podem ser esgotadas como possibili-
mobilidade" e "movimento". Heidegger só faz, em verdade, essadiferencia- dadesno comportamento.
ção explicitamente em seu ensaio posterior sobre a (pi3aLÇem Aristóteles. SeHeidegger desenvolve agora a conexão entre disposição e decadên-
No entanto, essa diferenciação pode ser frutificada para o contexto atual. cia. na medida em que elabora as características singulares da mobilidade,
Mobilidade", é isso que estáescrito, "visa à essênciaa partir da qual se de- então ele acentua inicialmente que essa não é provocada por lml fator extrín-
terminam movimento e quietude"(OC 9, 284). Porque a quietude é o térmi- seco. Porque o falatório é "o modo de ser da convivência mesma"(ST, 177),
no do movimento, ela precisa ser concebida como uma "subespécie de movi- o ser-aí prepara "nele mesmo a tentação constante para a decadência. O
mento" (OC 9, 284). Se se pensa juntamente com Aristóteles a quietude ser-no-mundo é nele mesmo /e#zfador"(ST, 177); e, em verdade,justamente
como a meta do movimento, portanto, como a realidade em vista da qual o pelo fato de que já se está sempre no contexto do falatório. Já se conhecem
movimento mesmo só é possibilidade, e não a realidade do possível, quietu- sempreos modos de comportamento e os projetos pronunciados, assim
de e movimento não se encontram em nenhuma mera contradição um em re- comosuasavaliações, ejá é semprepossível se exprimir enl relação a eles. A
lação ao outro. Porquanto a quietude também é nessecaso pensadaprimeira- impressão de que também se é o que se diz diante de outros e o que se assume
mente a partir do movimento, pode-se denominar "mol)ilidade" o fenómeno deles só pode surgir se o falatóriojá tiver a aparência de realidade; e ele pos-
uno da comum-pertencência entre quietude e movimento. sui uma tal aparência porquejá está sempre estabelecido. Somente por meio
Onde o que está em questão é o comportamento, não se conseguirá seguir disso é possível sugerir que a esfera pública poderia "garantir todas as possi-
a interpretação heideggerianada mobilidade tal como ela é levada a termo no bilidadesdo comportamento(ST, 177): "A suposiçãofictícia do impessoal
interior do ensaio sobre a (púatç em um ponto decisivo. Heidegger procura de que ele alimenta e conduz a 'vida' plena e autêntica traz um aquietanlento
fmtificar aí a idéia da mobilidade para tmla interpretação da tvépTCLa para o interior do ser-aí, para o qual tudo 'está na mais perfeita ordem' e para
êvTcÀnrÍçaristotélica, do movimento, portanto, que em si mesmo já está sem- o qual todas as portas ejanelas se encontram abertas.Tentador para si mes-
pre junto à meta ejá 6oi sempre levado ao acabamento. Visto assim, o "mais mo, o ser-no-mtmdo decadente é ao mesmo tempo aqz//e/afere" (ST, 177). O
puro desdobramento essencial" da mobilidade "tem de ser buscada onde a termo "aquietamento" tem aqui uma significação ontológica e apenas se se
quietude não significa término e interrupção do movimento, mas onde a mobi- esclareceruma tal significação poder-se-á também entender em que medida
lidade se reúne no ficar quieto e essedeter-senão exclui a mobilidade, mas a o falatório pode ser um abandono da disposição, porquanto ela descerra o
inclui; e mais, não apenas a inclui, mas a abre pela primeira vez"(OC 9, 284). fardo de que é preciso se comportar. A tonalidade afetiva da qual seatrataaqui
Junto ao movimento que não aponta para nenhtml término e que não tem dian- emprimeira linha não indica ela mesma previamente nenhum modo de com-
te de si nenhuma meta iminente, a comum-pertencênciaentre movimento e portamento,de forma que se pode remontar em meio à pergunta sobre a ma-
quietude vem à tona puramente; nessa medida, ela também abre pela primeira neiracomo devemos nos comportar a modos de comportamento já aceitou e
vez a mobilidade como tal. Mas assim a mobilidade do comportamento não propagados. Por outro lado, também só é possível se manterjunto ao falar
pode serpensada. Essaconsiste muito mais no fato de toda quietude dar ensdo quandose propaga simplesmente por si mesmo projetos quaisquer ou se ten-
a um movimento renovado. Por isso, tampouco pode-se falar aqui dc acaba- ta se assegurarde suaspossibilidades de comportamento, quando se as pin-
tam segundo as possibilidades conhecidas da verossimilhança. Em todo
caso,mantemo-nosaquijunto ao que é determinado no falatório; o falar apa-
"Cf. Rosé ( 1936) em sçu comentário ac/ /oc; cf. em contrapartida Wieland ( 1970), p. 298
170 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 171

regecomo lmla êvépTcta tv cXvlç porque podemosnos assegurardo que vel, não aparecemnas imagens que, se fragmentando, se conquistam de si.
ainda se acha inicialmente indeterminado no falar, e, com isso, simplesmen- Porque sempre se é mais do que se sabe tematicamente sobre si mesmo, se
te nos mantermos dando prosseguimento a um comportamento quejá leva- está obrigado a substituir as imagens por imagens sempre novas. O mesmo
mos a termo: o falar não aponta para uma meta. No entanto, alguém #na, e, vale para a mera consideração na curiosidade: também aqui se tem sua reali-
falando, ele (justamente) também, antesde tudo, já falou.:' Falar é, em ver- dade apenasno que se vê e se pode expressar a cada vez, mas o que se vê não
dade, agora, um modo de comportamento e, como tal, lml modo de ser real. é nunca o que e como se ê "propriamente
No falar, contudo, a realidade só tem em última instância a suadeterminação Mesmo que Heidegger não possacompartilhar da concepção de aliena-
no que é falado. Ela é a aparência de uma realidade a cada vez própria, mes- ção defendida por Humboldt e, então, também por Hegel, em sua diferencia-
mo se o dito for expressamentedescol)erto, e é nessesentido que temos de ção fundamental entre "si próprio" e "mundo", a alienação é para ele de qual-
entender quando, em Platão, o discurso é semprelmla vez mais designado quer modo lula "perda de si mesmo" em meio ao plano objetivo, um plano
como ullla mera "imagem". Não o pronunciamento de uma descoberta, Rias objetivo que certamente só é constituído por meio da realização do discurso.
a realização do descobrir perfaz a realidade do descobridor. Essarealização, Essaconcepção de alienação Ihe possibilita também insistir na determinação
porém, nlmca é realização senão no contexto do possível, e ele mesmo ape' do ser-aí como lml ente "em cujo ser está emjogo o poder-scr"(ST, 179). Se
nas é a realidade de lmla possibilidade: um movimento que, como tal, é in- o mundo em que o ser-aí decai fosse "um oUeto"(Sr, 179), então a alienação
completo. No falatório, em contrapartida, a realidade aparececomo corren- na decadênciaseria uma mobilidade para além do ser-aí e não poderia ser
te, e, assim, a realidade é, tal como ela é no contexto do possível, encoberta: maistomada como um "existir". No entanto, na medida em que o ser-aí im-
na "comparação 'compreensiva' de tudo com todos (...) o ser-aí é levado a pele na decadência para a impropriedade como lma "modo de ser de si mes-
uma alienação, na qual se vela para ele o seu poder-ser mais próprio. Como mo" (ST, 178), Heidegger também pode dizer: "Na decadência não se trata
tentador e aquietante, o ser-no-mundo decadenteé ao mesmo tempo a//e/?a- de nada menos do que do poder-ser-no-mundo, ainda que sob o modo da im-
por" (Sr. ] 78). No debate de modos de comportamento e de projetos, o im- propriedade"(S7', 179). Dito de outra maneira, o que estáem questãona de-
pessoalsupõe experimentar de maneira comparatória o que o impessoal, ele cadência é ser alguém determinado em comparação com outros, e, discursi-
mesmo, é, e perdede vista com isso a própria realidade no contexto do possí- vamente,transformar em realidade efetiva o ser indeterminado e iminente e
vel. Portanto, "alienação" não significa em Heidegger "sair de si e passar as possibilidades nunca plenamente esgotáveis de sua determinação. Unl
para os objetos (...)",:: perdendo-se aí. O ser-aí não é "arrancado" (ST, 178) comportamento, porém, que fecha o contexto do possível no qual ele é leva-
dele mesmo. Ao contrário, a alienação "impele o ser-aí para um modo de ser do a termo é desprovido de liberdade. .4 nâo-/íóe/.Jade do ser-a/ consfsfe na
que reside na mais extrema 'autofragmentação. Essa fragmentação se insi- oOerfvaçâo por /n/er/ 7édíodo dfscz/rso. Somente nessa olÜetivação pode ser
nuaem todas as possibilidades de interpretação, de modo que as"'caractero- também esclarecido algo assim como a repressão aos que pensam de forma
logias' e 'tipologias' por ela indicadasjá sãoelas mesmasinabarcáveis"(ST, diferente. Na medida em que a objetivação obscurece o contexto do possível
178). Essa"autofragmentação" consiste cn] tomar-se objeto de enunciados e só tem em vista exclusivamente o comportamento determinado, também se
em ideia à comparação com os outros quanto ao que se é, e se o que se afirma podedenomina-la "posição do comportamento:
aqui é que a alienação conduz "em sua própria mobilidade a que o ser-aí se Em sua preleção do semestrede inverno de 1921-1922, Heidegger de-
enredo nele mesmo" (S7', 178), então está dito com isso que a objetivação nomina a posição do comportamento "hiperbólica" e "elíptica". Essas duas
tem seu fLuldamentono falatório como um "modo de ser" do ser-aí. Desta fei- noçõessão cunhadasem articulação com Aristóteles. Na Éf/ca a /V/(B//Taco,
ta, a mobilidade da decadência pode ser interpretada como realização do dis- essediz acerca da maldade(Razia) que ela é caracterizada pela bxcpfoÀTI e
curso e isso também diz respeito ao discurso silencioso consigo mesmo--, o pelaeXct$LÇ(EÀr, 1106b24). Aristóteles pensaaqui em um "demasiado" ou
que sempreconduz unia vez mais a novas objetivações. Junto a essasobjeti- em um "muito pouco" em relação às vdtrl e às ações. Assim, por exemplo,
vações experimenta-se em verdade, tal como parece,Q que se é. O "sentido podemos ter medo demais e ser covardes, mas tambén] ter muito pouco
processual" do comportamento, porém, e, mais ainda, o contexto do possí- medo e nos tornarmos temerários; da mesma maneira, podemos fazer ou de-
mais ou muito pouco em uma situação determinada e falta, nos dois casos, o
'Cf.OC9,P.284. que é correio. Em Heidegger, porém, ten)-se em vista algo diverso. Para ele,
:Humboldt, Mer&e / (Obras l).
172 Günter Final
Martln Heidegger: fenomenologia da Liberdade 173

o "hiperbólico" e o "elíptico" são pura e simplesmente dois aspectos da inl- nunca há um ser-aí em lml "estado originário" de puro perceber; e para uma
propriedade. "H iperbólica" é a elevação da segurança : "A vida procura asse- descrição que se mantém apenas na perspectiva da cotidianidade, também
gurar-se desviando o olhar de si mesma"(OC61,1 09). A certeza, o "aqyieta-
permanecepor isso inacessível a diferença entre descerramento e compor'
nlento", ou seja, o fato de todo comportamento ser levado a termo noilt;ntex- tanaento:"A experiência cotidiana intrínseca ao mundo circundante, que
to do que é exposto e de nos comportarmos primariamente de maneira dis-
permanecedirecionada õntica e ontologicamente para o ente intramunda-
cursiva implicam ao mesmo tempo lml "desviar o olhar", e, nisso, são "elíp- no, não consegue fornecer o ser-aí de maneira onticamente originária para
ticos". Essas caracterizações dão um esclarecimento importante sobre a rela- a análiseontológica. Do mesmo modo, falta à percepção imanente de vi-
ção entre descerramento e comportamento temático na impropriedade. O vências um fio condutor onto]ogicamente suficiente"(T, 18]). No entanto,
desvio do olhar" do qual se fa la aqui não podeser concebido como ocorrên-
porquea interpretação ontológica do ser-aí, tal como foi desenvolvida até
cia única; senão a impropriedade seria de falo a queda que uma vez aconte- aqui, só foi exeqtlível sob a pressuposição do descerramento, ela seria lula
ceu de un] "estado originário". O "desvio do olhar" não visa, porém, a outra construção descritivamente irresgatável se não se pudesse mostrar como
coisa senão à mobilidade do comportamento em sua realização mesma, de no ser-aí a estrutura ontológica fundamental da diferença pode ser experi-
modo que sempre se percebetambém,juntamente com o desvio do olhar. mentada. A interpretação ontológica mesma que é desenvolvida por Him no
isso de que se desvia o olhar. No entanto, isso significa que na impropriedade ser-aípermaneceria infundada, e, com isso, estaria em jogo até mesmo o
o estar indeterminado e iminente que se pode determinar de maneiras diver-
projeto da pergunta sobre o "ser" e sobre o "tempo:
sas, mas nunca esgotáveis, e nunca denlnitivamente, não está simplesmente O fato de a estmRira ontológica Rmdamental do ser-aí poder se tornar
fechado. Ao contrário, ele é sempre fechado novamente. A aparência da im- transparente no ser-aí pertence a essa estrutura mesma. De outra forma, uma
propriedade é sempre também a aparição do que é fechado por meio dela. A "interpretaçãoexistencial" seria impossível. Por isso, Heidegger também
posição do comportamento só pode ser concebida, por conseguinte, na dife- podeexpor a pergunta sobre uma "disposição compreensiva no ser-aí, na qual
rença da liberdade. Ela é o ajuste entre possibilidade e realidade sob o aspec- ele é descerradopara si mesmo de lmla maneira insigne",juntamente com a
to da diversidade porque nela "se desvia o olhar" do possível como tal. pergunta sobre a totalidade do ser-no-mundo, e dizer que a essa pergunta aspi-
ra "à análise fundamental do ser-aí em geral" (Sr, 181). A "totalidade" do
$ 8. Propriedade ou a negação do comportamento ser-no-mundo não é apenasa conexão entre descerramento c comportamento
como a conexão entre uma tonalidade afêtiva em relação ao comportamento e
A propriedade no ser-aí consiste em que a diferença da liberdade é
uma percepção do comportamento em suas possibilidades. A essa totalidade
equilibrada e transparente em seusdois aspectos. Porque a diferença da li-
pertence igualmente o "desvio do olhar" ante o descerramento. Esse "desvio
berdade é tanto a mesnlidade de descerramento e comportamento quanto a do olhar" tem lugar em meio à decadência. Apesar de ele se dar, porém, o des-
diversidade dos dois, isso significa mais exatamente: é preciso mostrar em
cerramento, ainda assim, aparece. Se não se consegue tornar hlteligível a de-
que medida o comportamento como realidade efetiva do ser-possível e a ir- cadência a partir do descerramento mesmo, fica-se obrigado a compreender o
resgatabilidade do ser-possível conseguem se tornar claros no ser-aí por descerramento,por lml lado, e a decadência,por outro, como dois momentos
meio do comportamento. Há aí um problema a se resolver que está fundado esMiturais heterogéneos do ser-aí; e isso leva uma vez mais a que seprecise di-
na concepção da impropriedade. Esse problema pode ser designado da me-
zer da impropriedade que ela não está filndada na estnitura do ser-aí nFsmo.'
lhor forma possível se se recorre à formulação heideggeriana de que o Nessecaso, contudo, o conceito heideggerianoseria aporético. Sese procura,
ser-ai './á e/npre caiu inicialmente dele mesmo como poder-ser próprio e em contrapartida, interpretar a estrutura do ser-aí na homogeneidade que Hei-
decaiu no 'mundo'"(Sr, 175/ itálico G.F.). Se o ser-aí é determinado onto-
degger mesmo requisita para ela, precisa-se tornar intel igível como proprieda-
logicamente pelo fato de o ser-possível precisar ser levado a termo, e se o de e impropriedade pertencem na mesma medida a essaestrutura.No que diz
comportamentorealizado em sua"mobilidade" é a realidadeefetiva do
respeito à propriedade, vem à tona a partir daí não apenaso problema acerca de
ser-possível, então o ser-possível sempre é experimentado inicialmente em comoo apreenderque perfaz o descerramentoé resgatável como tal descriti-
sua modificação em realidade, e, com isso, nunca é experimentado como
tal. Em outras palavras, devido à incontornabilidade do comportamento,
"Assim o diz Gõrland(1981), p. 95
] 74 Günter Figas Martin Heidegger; Fenomenologia da Liberdade 175

vamente; é preciso, além disso, clarificar o que pode significar aHlrmar que o sa ser desenvolvida a partir da decadência repousa, correspondentemente,
sobrelmla cisão entre experiência existenciária e interpretação existencial
ser-aí se "coloca diante de si mesmo (...) em lml modo insigne de descerra-
mento"(ST, 182). Mesmo que sda elucidativo o fato de un] tal "colocar-se di- 'Em termos existenciários", ou seja, vista a partir da perspectiva cotidiana, a
ante de si mesmo" não poder ser nenhum comportamento no senti(Ío cotidia- "propriedade do ser si próprio está em verdade fechada e impelida para o
no, a fomlulação heideggeriana hlduz a pensar aqui enl uma atividade insigne lado em meio à decadência. No entanto, o fechamento não é senão apr/va-
gão de um descerramento que se revela fenomenalmente na medida em que a
no ser-aí. Todavia, isso seria incompatível com a hlterpretação do descena-
fuga do ser-aí é fuga ante si mesmo": "somente na medida em que o ser-aí é
mento desenvolvida até aqui. É preciso tentar mostrar por isso que, na concep-
ção heideggeriana da propriedade, o descerramento não é nenhum comporta- colocadodiante de si mesmo por intermédio do descerramento em geral que
Ihe é pertinente, ele pode fugir dele mesmo" (Sr, 184). Em verdade, "nesse
mento alternativo ante a decadência, um comportamento que poderia ser então
caracterizadocomo um "comportamento em relação a si mesmo". Quanto a abandonodecadente...o 'ante o quê' da fuga não é apreendido, sim, ele não é
esse ponto, é aconselhável começar ainda uma vez pela decadência e trazer à nem mesmo experimentado em um voltar-se intencionalmente para ele.
Contudo, ele estácertamente 'aí' descerradono abandono", e, "em razão de
tona em meio à elaboração do problema em que ponto ela se torna pela primei-
seucaráterde descerramento, o abandono ântico-existenciário dá a possibi-
ra vez um fechamento do descerramento. Somente assim é possível tomar
lidade de tomar ontológico-existencialmente o 'ante o quê' da fuga" (ST,
compreensível a concepção heideggeriana da propriedade a partir do que foi
185). Abstraindo-se de uma introdução apenaspré-insinuada, Heidegger
desenvolvido até aqui e, em vez de formular tesespor demais apressadas, se-
empregaaqui pela primeira vez o tempo"fuga"(S7, 44), e, inicialmente, pa-
guir o curso de pensamento mesmo. Os aspectos centrais sob os quais Heideg-
rece que com ele deve ser sintetizada a mobilidade do comportamento ex-
ger apresenta a propriedade são "angústia", "antecipação em relação à morte
presso,tal como ele tinha se mostrado no falatório, na curiosidade e na ambi-
voz da consciência" e "decisão". O que precisa ser mostrado agora é que ne-
giiidade. Em última instância, porém, não se trata de, a partir da perspectiva
nhum dessesaspectos pode ser compreendido se se interpreta "propriedade
da interpretação, explicitar isso de que não se tem, afinal, a menor idéia no
como um "comportamento insigne do ser-aí em relação a si mesmo". Deve-se
interior da perspectiva cotidiana, de modo que o que existencialmente é de-
mostrar, além disso, que a idéia da "antecipação em relação à morte" é insus-
nominado "hga" só pode aparecer na perspectiva cotidiana como a "'vida:
tentável e supérflua para a concepção heideggeriana. A interpretação constru-
plena e autêntica" (ST, 177). O "ante o quê" da fuga também não se deixa,
tiva da propriedade está, por isso, referida unicamente aos aspectos da "angús-
por conseguinte, conquistar a partir do fato de o comportamento cotidiano
tia", da "voz da consciência" e da "decisão", enquanto a discussão da "anteci-
mútuo ser interpretado como "folga". O discurso acerca de lmaa "fuga" en-
pação em relação à morte" tem a função de tornar inteligível a insustentabili-
volve muito mais o seguinte: o "ante o que" da folga é descerradoexístencia-
dade e o caráter supérfluo dessa idéia. Em articulação com a discussão da an-
riamentee, então, como Heidegger diz inicialmente, o fechamento não sere-
gústia também se esclarecerá como a "totalidade" do ser-aí, que Heidegger
mesmo designa como "cuidado", tem de ser pensada mais exatamente. vela como uma privação do descerramentoporque se foge de si mesmo no
ser-aí, mas, ao contrário, o caráter de fuga revela-se porque mesmo na deca-
,Angústia dência o descerramento pertence "essencialmente" ao ser-aí. Visto assim,
Heidegger precisa empreender uma correção no desenvolvimento de seu ar-
A fim de expor seu conceito de angústia, Heidegger mesmo começa ain- gumento. Mediante essacorreção, mesmo a contraposição entre caracteriza-
da uma vez pela análise da decadência: "A imersão no impessoal (...) revela ção antigo-existenciária e interpretação ontológico-existencialf se torna
algo assim como uma julga do ser-aí ante ele mesmo como poder-ser- questionável.No sentido de uma tal correção, o que temos não é senão o se-
si-mesmo próprio", e, apesar de essaliga(aparentar/G. F.) "possuir o míni- guinte: onde o que está em jogo é o "ante o quê" da fuga, a interpretação é
mo possível a aptidão para servir como solo fenomenal da investigação que "entregue o mínimo possível a uma autoconcepção artiHlcial do ser-aí", por-
se segue", na medida em que "o abandono" conduz, "de acordo com o traço tanto, auma mera constrição. "Ela leva a termo apenasa explicação do que o
mais próprio da decadência, para fora do ser-aí", essaimpressão não deve vir ser-aímesmo descerraonticamente"(ST, 185). O fato de o ser-aí ser trazido
a termo senão por meio de uma "aglutinação de uma caracterização õnti- para "diante de si mesmo" não pode ser, consequentemente, deduzido de
co-existenciária" com uma "interpretação ontológico-existencial" (Sr, uma interpretação da decadência. Ao contrário, a interpretação da decadên-
184). O argumento heideggeriano para que, apesar disso, a propriedade pos-
T76 Günter Figas

Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 177

angústia no sentido em que uma concepção convincente de propriedade o re-


quisita. Para decidir essa questão, contudo, é aconselhável tornar inicial-
mente presente a detemainação da angústia e interpreta-la tal como Heideg-
gera desenvolve. ''''''
Assim como o temor, a angústia também é caracterizada por um "ante o
quê" e por um. "com o quê". Não obstante, enquanto o temor é sempre temor
ante um ente intramundano determinado, o ante o quê da angústia é, como
Heidegger
diz inicialmente,"o ser-no-mundo-como-tal"
(ST,186).Essade-
terminação é tomada mais exatamente quando se afirma que o "ante o quê:
da angústia é "o mundo como tal"(Sr, 187). Uma tal concepção torna-se ne-
çessánaporque o ser-no-mundo também precisa ser determinado como o
com o quê" da angústia e porque a diferenciação em dois aspectos, tal como
é dada com as determinações formais do "ante o quê" e do "com o quê", tam-
bém requer o preenchimento por meio de dois aspectos diversos do
ser-no-mundo, de modo que o mundo como o "ante o quê" da angústia está
coordenado como o seu "com o quê" "o ser-aí como ser-possível" (sr, 188l;
A angústia ante o mundo consiste, agora, antes no fato de que, se angustias .
do, não se pode mais estar no mundo de uma maneira familiar e cotidiana: "A
totalidade conjuntural do ente à mão e do ente simplesmente dado descober-
ta de maneira intramundana é como tal em geral insignificante. Ela sucumbe
em si. O mundo tem o caráter de completa insignificância. Na angústia não
vem ao encontro isso ou aquilo com o que pudesseter lugar uma conjuntura
ameaçadora (ST, 186). Abstraindo-se em um primeiro momento de que a
idade Coi\juntural não pode ser denominada "intramundana", precisa-se
de qualquer modo tornar plausível o que pode estar sendo dito aqui. A ideia
decisiva que suporta todas as outras é a de que a angústia, diferejltemente do
temor, njo descerra algo determinado como ameaçador: "Nada do que está
simplesmente dado ou à mão no mundo atua como isso ante o que a angústia
seangustia" (ST, 186). A menção expressa ao ente simplesmente dado é im-
portanteporque Heidegger desenvolveu o temor completamente a partir do

w ii;in'íÜiE; E :ç:HllB
mMexto da ocupação circunvisiva e, então, certamente acredita precisar re-

4=ã:
:l 111;
g:l;ll:: :ji:
ii:ii ; :iii:ü:iHiiÜiSHBI
178 Günter Figal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 179

nas no sentido ântico, de modo que não se pode mais deixa-lo conformar-se
com algojunto a algo. Porum lado, em verdade,a angústia interrompe a ocu- fosse negadocom ela. Essa sentençadeve ser, sim, justamente lmla réplica à
pação cotidiana e não se conquista mais por meio dela a referência para algo experiência da angústia. De acordo com Heidegger, parece certamente que se
a ser efetuado. Como a angústia não descerra nada determinado CJafÍioamea- estácotidianamente tão fixado em algo determinado que poderíamos aquietar
çador, não há mais aqui nem mesmo,como no temor, a referência a algo imediatamente por não sermos ameaçados por nada determinado: no discurso
ameaçado no interior do mundo, para o qual pudéssemos nos voltar, por cotidiano, o "nada de ente à mão'' é mesmo o "Nada", isto é, algo nulo sobre o
exemplo, para coloca-lo em segurança. Por outro lado, porém, mesmo na an- qual não vale a pena falar, ou algo que se constniiu apenas ilusoriamente e que
gústia o ente é liberada, pois de outro modo não se conseguiria tornar com- não há propriamente; o discurso cotidiano é, assim, interpretado exclusiva-
preensível como se poderia chegar antesde tudo à experiência que perfaz a menteno sentido de sua cunhagem pelo falatório. Confia a interpretaçãohei-
angústia, à "plena insignificância". "Significância'' designa, com efeito, que deggerianado discurso cotidiano, porém, pode-seobjctar que nem toda tonali-
se tem e se pode continuar tendo na lida com lml ente a sua determinação. De dadeafetiva denominada correntemente "angústia", ao ser expressa,precisa
maneira correspondente, a "insignificância" consiste em não poder ter mais ser hlterpretadaou bem como "propriamente nula" ou bem como temor. Há,
no ente sua determinação e experimentarjustamente isso. O que se estreita sim, inequivocamente a experiência de que muitas vezes não há em verdade
na angústia é "a possibilidade do manual em geral", e "isso significa o mun- nada determinado ameaçador e não se consegue, contudo, aquietar-se aí.
do mesmo'' (ST, 187). A possibilidade do manual em geral é a sua liberação Exemplos desse caso são o "nervosismo" e o medo(angústia) de fazer prova.'ó

e, portanto, equivale à sua abertura: a abertura se estreita na medida em que, O público parao qual seapresentauma palestraou o examinador da prova não
ao menos parcialmente, não pode ser transformada em realidade em meio a precisam ser experimentados como ameaçadores. Se se perguntasse a alguém
um comportamento determinado: a significância, o poder estar, portanto, na perplexo o que o aflige, ele poderia responder plenamente que "não é nada", e
abertura do ente de lmla maneira determinada, permanece irrealizado, e nis- [er em vista com isso"não é nadadeterminado". Caso se pedissea ele paraex-
so justamente se impõe "o mundo em sua mundanidade" (ST, ] 87). plicitar mais especificamente o que está acontecendocom ele, ele talvez dis-
A interpretação da concepção heideggeriana da angústia manteve-se até sesseque o aflitivo éjustamente "toda a siüiação" ou algo similar. Uma tal si-
aqui completamente no plano das determinações antológicas do ser-aí e não tuaçãonão é certamente nenhtml "ente intramundano" no sentido heidegge-
dissenada sobre se se trata aqui de lmla tonalidade afetiva experimentável e riano. O que aflige aqui é muito mais a incerteza em relação a um comporta-
descritível comia tal ou não. A maneira segundo a qual Heidegger continua de- mentonessasituação:o que se seránãose deixa nem conquistara partir do que
senvolvendo a idéia de que o "ante o quê" da angústia é o n)undo como tal pa- se foi antes,nem empreendersimplesmente no sentido de um projeto.27Isso
rece, antes, falar a favor do contrário: "Qualldo a angústia se hlstala, o discurso tambémsigiliflca, no entanto, que a situação é experimentada como aberta na
cotidiano cosüima dizer: 'não aconteceupropriamente nada'. Esse discurso medida em que ela é uma situação voltada "para lma comportamento", na qual
toca, de fato, onticamente o qt/e se deu. O discurso cotidiano se direciona para nãose podejustamente assumir um comportamento. No conjunto, são certa-
uma ocupação e para uma discussão do que está à mão. A questão é que esse mente asexperiências mais ou menos marcadas de incerteza que podem ser in-
nada de ente à mão, que é a única coisa que o discurso cotidiano circunvisivo terpretadas como experiências de angústia, e, em verdade, mesmo então quan-
compreende,não é nenhum nadatotal. O nadade ente à mão estáftuldado no do a determinaçãoexistencial da angústia, tal como Heidegger a desenvolve,
'algo' maximamente orighlário, no mundo" (SZ, 187). No que concerneà an- nãodiz respeito exclusivamente a tais experiências de hlcerteza sem algo amea-
gústia, o discurso cotidiano, tal como Heidegger o interpreta aqui, se depara
Í
com uma barreirasjá dizer isso e não abandonar o fenómeno da angústia pres- '"A palavra alemã .4ngls/ tem um campo semântico que abarca tanto a angústia propriamente
dita quanto o medo de algo determinado.(N.T.)
supõem a plausibilídade da interpretação ontológica, e, em face da penúria lin-
'E. Tugendhatfaz uma propostasimilar ao defenderque o ''Nada" deve ser lido como
giiístiça que se manifesta na formulação do mundo como o "'algo' maxima-
equivalenteà sentençauniversal da existência "nào llá nada (em que eu possa nle deter)'
mente originário", em face da indemonstrabilidade da mudança de "nada" Tugendhat (1970-1972), p. 157. Com isso evita-se, eill verdade, a tbr:na substantivada
para "Nada", pode ser muito difícil fazer essa pressuposição. No entanto, equívoca "Nada", e, apesar disso, se leva em conta a experiência característica da angústia
tem-se de atentar aqui inicialmente para o fato de não se poder interpretar a Nessamedida. a crítica de Taubes(]975) aTugendhat tatllbém é inyustitlcada. Somente quando
a experiênciado ''nada" mesmoé tomada"apenascomo um dizer potencial, implícito da
sentença "não aconteceu propriamente nada" como seo fenómeno da angústia
sentençacorrespondente" (p. 159), ela é pensadaa partir da articulação lingüística, e isso é
incompatível com a essência da tonalidade afêtiva como um apreender.

'1
180 Günter Figa Mcxrtin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade ]8 1

çador determinado. Pode muito bem ser o caso de que alguém interprete como tempo obrigado a deixar desaparecer a diferença entre temor e angústia, e,
temor uma experiência de incerteza que não está ftnldamentada mais ampla- com isso, a abandonar completamente o fenómeno da angústia, tal como Hei-
mente. Todavia, isso não é grave e às vezes é mesmo corrigível já no interior deggero quer pensar.Tanto faz se há ou não algo ameaçadordeterminado:
do discurso cotidiano: alguém que tem medo (angústia) de fazer prova pode a- sempreque alguém se sente ameaçado, ele se encontra em uma situação deter-
cabar sedeixando convencer de que os seusexaminadores são amistosos e be- minada.
E por isso que o importante é tomar inteligível antes de tudo como a
nevolentes sem ser menos afligido pela situação de prova. Na preleção de angústia se diferencia exatamente do temor em relação ao seu "com o quê:
1925 Pro/ego/zze/zazz// Gesc&/abredes Ze//begri#} (Prolegâmenos a uma his- No temor, a ameaça hlterrompe um modo antes não problemático de se com-
tória do conceito de tempo), Heidegger talha deixado ainda em aberto a inter- portar e a hlterrupção é de um tal gênero que fixa aquele que é afetadojusta-
pretação de tais experiências de incerteza como angústia. Enquanto ele desig- mente nesse comportamento. Isso pode se mostrar por meio de sua tentativa de
na em ST"a timidez, o estar envergonhado, o receio" e a "perplexidade" ape- empreenderalgo para asseguraro seu modo de comportamento ou mesmo por
nas como "modificações do temor"(Sr, 142), lá temos a seguhlte formulação: ele estar confuso e só continuar sendo alguém determinado em meio ao fracas-
E preciso hlsistir em que essesfenómenos mesmos só podem ser compreen- so de determinadas maneiras de comportar-se maneiras que permanecem,
didos a partir da análise primária do atemorizar-se diante de (...), talvez mes- contudo,como modos de comportamento determinados que fracassam: fre-
mo não unicamente, mas somente a partir disso em que todo atemorizar-se di- qiientemente, a reação à ameaça é um comportamento explosivo e visto a
ante de (...) está fundado, ou sda, a partir da angústia" (OC 20, 398). Como partir da perspectiva do observador irracional. Portanto, um comportamento
Heidegger não leva em conta que o discurso cotidiano também pode expor a "não çircunvisivo", no qual nos empenhamos, porém,justamente por "circun-
angústia como experiência de incerteza, sem se aquietar imediatamente com cisão"; o comportamento no temor aparece em sua precipitação freqiiente-
isso, ele encobre para si a possibilidade de perseguir mais amplamente a pers- mente como uma caricaütra da circtmvisão. Ê possível, agora, estabelecer uma
pectiva aqui indicada. Assim, permanecesem clareza no texto de atem que diferença entre o temor assim descrito e uma experiência na qual a pergunta
medida uma experiência de incerteza já descerra"originária e diretamente o sobrecomo podemos nos comportar simplesmente não surge porque não há
mundo como mundo", o que certamente não deve significar "que na angústia a nadaque confunda o comportamento. Isso pode ser uma vez mais elucidado a
mundanidade do mundo é concebida" (ST, 187). Poder-se-ádizer, contudo, partir do exemplo do nervosismo diante do público em lmla palestra. Aqui o
sem perder a intenção de Heidegger, que um tal descerramentodo "mundo comportamento não é nem perturbado, nem conRindido por nada. Ao contrá-
como nltmdo" já é experimentado quando alguém não consegue mais sem rio, ele consiste incessantemente em dar uma palestra. Tampouco se estáator-
quebra, mesmo que seja apenas por um momento, estar determhlado na lida mentadopela dúvida em relação àspróprias capacidades intelectuais ou ao co-
com um ente. Com o fracasso dessa determ mação, porém, também vem à tona nhecimento específico requisitado. Não se é fixado aqui em um comporta-
o ser iminente e hldetemainado, que em outros casos é determinado pelos pro- mento detemlinado porque se está ameaçado, mas se é "cindido" desse com-
jetos, como o "com o quê" da angústia. portamento de uma maneira deveras peculiar, sem se ponderar qualquer alter-
A determinação do "com o quê" da angústia é desenvolvida em STa partir nativa para agir. Se se quisesse pronunciar essa experiência, então se poderia
da determ mação de seu "ante o quê". Heidegger argumenta da seguinte forma: dizer que é questionável se se está efetivamente em condições de dar agora a
como a ameaça mesma experimentada na angústia é indeterminada, ela tam- palestra,e justamente isso pode ser interpretado como a experiência do ''po-
bém não consegue"introduzir-se de maneira ameaçadoranesseou naquele der-ser".Por conseguinte, temor e angústia diferenciar-se-iam na medida em
poder-ser faticamenle concreto": "0 com o quê a angústia se angustia não é que no temor lml comportamento detemlhlado e como tal não problenÜtico é
um modo de ser e uma possibilidadedeterminadado ser-aí", mas "o ameaçado,enquanto a angústia torna questionável o comportamento determ i-
ser-no-mundo mesmo", e, em verdade,no sentido do "poder-ser-no-mundo" rado, uma vez que impede sua realização ou mesmo não o deixa nem mesmo
(ST, 187). O que Heidegger diz aqui poderia ser usado lula vez mais como ar- entrar em curso. A objeção de que o ser-no-mundo não é, nenhum comporta-
gumento contra a descritibilidade da angústia e dar a pensar que, se sempre se mento determinado é implausível, pois ele é, sim, semprejustamente determi-
está ameaçado em lmla situação determinada e o que está em questão é lml nadocomo a significância preenchida. Indeterminado é, em contrapartida, o
comportamento determinado, trata-se de temor e não de angústia. O único seriminente. Em meio à obstaculização do comportamento que é característi-
ponto é o seguinte: se se acha esseargLmlento convhlcente, se está ao mesmo cada angústia, essecomportamento aflige em sua indetermhlação porque não
182 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 183

se conseguemais preenchê-lo agora com projetos: a angústia descerra "o certamente problemática, na medida em que sugere que para a angústia é ca-

:llU SI iH;:'==:n:u=BiH
racterística lmla Jigação do ser-aí consigo mesmo e nada além disso. Se essa
idéia for tomada assim, reside aí uma comparação do incomparável e as cila-
dasdaconcepçãoda autoconsciêncíaorientada pelo conhecimento dos obje-
[os também parece ser efetiva aqui. A maneira segundo a qua] Heidegger
apresentaa angústia exclui, contudo, uma tal suspeita, e, uma vez que o dis-
curso acerca da mesmidade do "ante o quê" e do "com o quê" a insinua, ele é
inadequado à coisa mesma. O "ante o quê" da angústia não é, em última ins-
tância, o ser-no-mundo da mesma maneira como esse é o seu "com o quê
angústia é angústia ante o ente em sua abertura, na medida em que esse per-
maneceirrealizado, e é angústia com o poder-ser-no-mundo, na medida em
que o ser iminente não é de início determhlável no instante. A comum-per-
tencençados dois aspectosé o que toma experienciável a abertura do elite
como insigniHlcância e, com isso, também como o "impor-se" do mundo. O
que é experimentado na angústia é a diversidade e a mesmidade da aberüira do
entee do ser iminente, por um lado, e do possível comportamento detemlhaa-
do,por outro; e, com efeito, justamente porque, ao menos por lml momento.
não se pode ser mais de uilla maneira determinada na abertura do ente de

::$i:si :=: j;i:!jãiiüüÊ


uma maneira pela qual se determine ao mesmo tempo seu ser determhlado e
iminente segundo um ponto de vista. O ser na aberütra do ente é ser para o
comportamento, e isso se mostra quando ele não chega a nenhum comporta-
mento; o ser indeterminado e iminente é determinável no comportamento e
isso se mostra quando não se está em condições de assumir uma deteml mação
A experiência da angústia é uma experiência da liberdade em sua diferença e o
"ser-ai nlesnlo" é essadi/crença. A diferença não é fechada no simples com-
portamentoocupado. Ao contrário, ela é fechadana medida em que se quer

1: E:ãH IE.il:=iE
encontrar uma realidade corrente em meio à orientação pelos projetos pronun-
ciados. Isso é motivado uma vez mais pela experiência da angústia. Quando
«~*'=:.:; nos mantemos no falatório, não queremos deixar a angústia emergir.
mente com o descerrado. A formulação também só é então compreensível A partir daqui, pode-se compreender ao mesmo tempo em que medida a
como uma delimüaçao da angústia em relação ao temor, e Heidegger preci- interpretação da angústia pode desempenhar um papel central para a concep-
saria dizer propriamente de maneira mais exala que no temor, diíêrentemen- ção da propriedade e até que ponto a impropriedade pode ser determinada
te da angústia, o "ante o quê" é descoberto e não descerrado. Uma vez que em geral como "fuga". Além disso, também é possível que venha a ficar cla-
Heidegger fala da mesmidade do "ante o quê" e do "com o quê" da angústia, ro o que se tem em vista com o discurso acerca de um solipsismo existencial.
e, a partir daí, conquista a idéia do "ser-aí mesmo", ele trabalha por collse- No que diz respeito ao primeiro ponto, Heidegger nos diz: "A angústia reve-
gunlte com o termo "mesmo" em sua significação contrastava,no que ele ser-aí o ser para o poder-ser mais próprio, isto é, o ser-livre para a liber-
distingue o ser-aí como o "ante o quê" da angústia do en te intramundano des- dadedo escolher a si mesmo e do tomar a si mesmo. A angústia traz o ser-aí
coberto no temor. Mas com isso ainda não está claro o que significa o "ser-aí ante o seu ser-livre para... (/2ropens/o //z...), ante a propriedade de seu ser
mesmo". Em vista de uma clarificação do significado da expressão "ser-aí como possibilidade que ele já sempre é. No entanto, esse ser é ao mesmo
mesmo", o discurso acerca da mesmidade do "ante o quê" e do "com o quê« é tempo isso pelo que o ser-aí tem de se responsabilizar como ser-no-mundo:

l
] 84 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 185

significância. E por isso que Heidegger também designa o "ser-em" a expres-


são existencial "fomaal" para o ser-aí (St 54). Para tornar inteligível a co-
mum-pertencença entre estranheza e ser-no-mundo familiarizado-aquie-
tado, será preciso recorrer ao caráter principiam do ser-aí e dizer que o ser-aí,
oor ser começo, co/?Taçanovanzenre no / lzlnc/o a se/' /zo /nz/ndo. De outro
modo pemlaneceriaincompreensível em que medida o mundo em geral
pode tornar-se problemático no ser-aí, e, com isso, da mesma forma, o que é
ser-no-mundo próprio. Se se interpreta a designação heideggeriana do des-
cerramento como "ser-em" dessa maneira, então também se tem a possibili-
dadede interpretar ainda mais exatamente o discurso acerca do "ser-aí mes-
mo" que foi compreendido até aqui: "ser-aí" mesmo designa, então, a expe-
riência da liberdade em sua diferença,junto à qual nos tornamosjustamente
questionáveis para nós mesmos como "esses indivíduos determinados:
Uma vez que se é ''esse indivíduo determinado", não se é nenhum começo.
Entretanto,já se é cunhado pela significância e pela articulação da signifi-
cância no impessoal. Em verdade, sempre se é assim, mas a significância não
é nenhum sistema de uma vez por todas fixo. Ao contrário, ela precisa ser le-
vada a termo no comportamento, na medida em que se conquista e realiza un]
prqeto a partir de suas possibilidades de comportamento. Isso acontece de
início e na maioria das vezes quando nos orientamos pelos outros e chega-
mosa nossosprojetos em meio à equiparação com esses outros ou em meio
aoapartar-sedeles. A peculiar continuidade do cotidiano parece, en] verda-
de, tornar impossível fixar aqui um ponto de partida, e, com isso, assim po-
der-se-iapensar,vem à tona um problema que tinha se mostrado de uma for-
ma comparável no contexto da teoria da liberdade de Kart. Exatamente
como o contexto causal da "natureza" kantiana, o cotidiano não parece ser
nadaalém de lml sistema de dependências, de modo que seria preciso recon-
duzir a liberdade por si só a tml fator transcendental. Pensado como
ser-possível, porém, o ser-aí não é nenhum sujeito transcendental, e, por
isso, a solução heideggeriana do problema também se diferencia da kantia-
na Heidegger não pensa em nenhuma causa transcendental que permitisse
entãofalar em geral de causas em vista do mundo da aparição. Ele toda o ca-
ráter de começo do ser-aí muito mais plausível na medida em que mostra
como há quebras na significância; e, se há tais quebras, também precisa ha-
ver começos nelas. Na angústia, é preciso que se conquiste renovadamente
sua detemlinaçãojunto ao ente. É possível por sua vez fazer isso,já que nos
articulamos simplesmente com a continuidade do cotidiano e dizemos de
maneira tranquilizadora que não aconteceu propriamente "nada" ou retemos
de maneira transparente a própria realidade como realidade do ser possível.
Ainda não se mostrou, até aqui, como isso pode acontecer. Se tornarmos cla-
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 187
] 86 Günter Figas

ro, porém, o caráter de começo do ser-aí, tal como ele se torna visível na an- panhadapela angústia A ideia dessa incompletude é desenvolvida ainda mais
gústia, então também é possível compreender ao menos à guisa de princípio clwaniente no livro Z)oe/7çapara a /l?o//e do que no escrito sobre O conde/fo de
em que medida a angústia "singulariza": nunca é possível começar senão angúsr/a.Aqui o espírito e detenll içado como "si próprio" e pensado como uma
como singular. Uma vez que se é alguém determinado em comparação com "síntese" de ünlitude e infinitude, na qual se é necessário e possível e se tem uma
outros e en] meio a um apartar-se deles, não se começa.29 Seria, por conse- consciência em si mesma "etema" do "que é temporal". Os termos menciona-
guinte, inadequado interpretar a singularidade de que fala Heidegger no sen- dospodem ser compreendidos como designações das "categclrias do si próprio
tido das propriedades e dos modos de comportamento inconâlndíveis de e têm, com isso. um valor conJLmtural comparável aos "existenciais" heidegge-
lmla pessoa.Por outro lado, não poderemos nos contentar com a determina- rianos. "Finitude" designa apenas mais exatamente o q re se é e se encontra em

ção da singularidade tal como foi desenvolvida até aqui. Com o fato de que oposiçãoao "infinito" como o que não se é. Uma vez que se pode ser o que não
se é "aí" e de que se é "possível", não são designadas senão determinações seé, o "inHmito" é possível. No entanto, essa possibilidade é lim itada pelo que se
ontológicas e o modo comia essas devem ser convertíveis "onticamente" não é.oque "se mantém assim contraposto" como o necessário ante as tentaçõesde
ficou claro até aqui. ser outro (Z)À4, 32). Em sua oposição ao temporal, a determhlação da consciên-
A fim de avançamlos aqui parece natural colocar Heidegger em um diálo- cia comoo "etemo" é por fl m a mais importante, pois, na medida em que a cons-
go com o pensador cuja concepção da angústia mais fortemente o influencia. a ciência é eterna no sentido de lmla presença sem começo e sem Him, o "si pró-
saber: Kierkegaard. O pensamento de Kierkegaard é frequentemente caracteri- prio"jamais é absorvido em uma realidade apenastemporal; "temporal" é tudo
zado com razão como lml pensar da shlgularidade. Se se compara Heidegger o quetem começoe fim. A diferencialidadeentre etemo e temporal certamente
com Kierkegaard, não se mostra, contudo, apenasque a singularidade em Hei- só vem à luz porque o espírito "sonhador" suctmlbe à tentação para a realidade
degger precisa ser tomada de maneira diversa. Também se mostra, além disso particular, e somente em consideração a essadiversidade também pode ser de-
temlinadoo "espírito" como um "si próprio". O si próprio, então,para o qual
que a sua concepção da angústia se diferencia radicalmente da concepção kier-
kegaardiana. Em verdade, a angústia também é em Kierkegaard experiência do estáemjogo sua realidadeprópria e incompleta,pemlaneceum si próprio xatd
começo e, com isso, experiência da liberdade ante o "nada" no sentido de "nada 8ÚvaILV (Z)71/, 26; 32), pois a presençaatemporalque é o espírito nunca pode
detemlinado". A diferença essencialentre Heidegger e Kierkegaard, porém, aparecer em verdadena realidadeprópria e hlcompleta senãocomo o ilimitado
consiste no fato de Kierkegaard desenvolver a angústia como antecipação da privativo em relação a ela, senãono sentidodo infinito ou como o possívelque
realidade, em relação à qual o homem é determinado como "espírito". Isso uma aliadanão é. Esseestado é "desespero" e é analisado por Kierkegaard no livro

vez mais possui uma significação decisiva para a sua compreensão da "singula- Z)oençapa/a a /p70//eem suasdiversas confomlações. Uma vez que o si próprio
ridade". O "nada" que o espírito "reflete sonhando" é "sua própria realidade é então uma síntese e a presença atemporal nunca pode ser real izada senão como
a presença de algo temporal, a superação do desespero também não é possível
(C:4, 40), e a realidade refletida e como tal iminente "apresenta lmla tentação
para o espanto que, mesmo em consideração a essa realidade, só é possibil idade. comopura autopresença.Ela requer, inversamente, a atenção para algo tempo-
ral que não pode ser relativizado em Ru çào de uma possibilidade que ainda não
Até esseponto, o que Kierkegaard permite ao seu pseudónimo Vigilius Haufi)i-
se é. Esse algo temporal que é a meta do movimento do espírito é Jesus Crísto, o
ensisdizer ahlda pode ser equiparado com a concepção heideggeriana: o discur-
homem que é assumido como a realidade temporal da presença atenlporal do
so acerca da tentação do espírito para a realidade visa, então, ao mesmo que a de-
temlinação ontológica do ser-possível como um ser-possível para o comporta- eterno.A relação com o Deus quese tomou homem é a realidadedo sipróprio
mento. De mais a mais, Kierkegaard também mostra que a realidade do espírito, justamenteporque o homem, em sua determinaçãoespiriütal, não quer mais
ao ser afinal apreendida, sempre é incompleta e, como tal, é inteiramente acom- afirmar nenhuma realidade própria que, então. em razão da dinâmica do querer,
seriauma vez mais uma realidade relativa ao possível. Kierkegaard também ex-
pressaa diferencialidade entre o querer constitutivo do desesperoe a crença,
Heidegger utiliza n tenho alelllão .4/!Ánng/a/!range//coill sentido uin tanto diverso do que ele uma vez que denomina o querer"um movimento a partir de uma posição" e a
possui na linguagem corrente. Em sua compreensão, o termo, que é usualmente tomado como
crença"um movimento em direção a lml lugar" (Z)M, 32). A crençaé um "salto'
começo/começar",aproxima-sedo campo semânticoda palavra Urso/{rng: origem. Ao falar
do ser-aí como começo, Heidegger tem em vista, assim, um começo originário, articulado com
do lugar da Hlnitude própria para o interior do infinito que não é mais apenasre-
o poder-ser que o ser-aí é. Marlêne Zarader trata dessefato em seu l ivro He/degge/ e ai/2a/al//as lativo ao que não se é, mas o totalmente outro diante de tml si mesmo. Enüetan-
da o,lge/« ( 1999). (N.T.)
188 Günter Fígal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 189

[a;o fato de a tentação do espírito dizer respeito à realidade peúaz o momento da


simpatia e a incompletude dessa realidade peml ite que a simpatia sq a ao mesmo
tempoantipática. O inverso sedá no que concerne à crença, pois a possibilidade
daredençãoé "uma vez mais um nadaqueo hldivíduo tanto amaquanto odeia"
(CH, 52); e, em verdade, porque a redenção é uma redenção para a realidade do
si próprio, sem quc essa realidade mesma possa ser querida; vista a partir do
erer, ela é "um nada" Se sequiser tomar a partir daqui a diferença entre a con-
cepçãoda angústia em Kierkegaard e Heidegger, então se pode dizer que éjus-
[amenteo momento da simpatia que falta na concepção heideggeriana. Tal
como Heidegger a pensa, a angústia só toma a real idade visível em meio à inibi-
ção e não faz ouQ'acoisa senãorecoloca-la por meio da experiência da abertura
do entecomo que no ser-possível. Como essaexperiência não tem nada de uma
tentaçãopara a realidadedo ser-possível,mas apenaspara fechar esse
ser-possível, ela é antes comparável à aporia, à qual Sócrates conduz por vezes
seuscompanheiros de diálogo. A angústia é um entorpecimento instantâneo, si-
milar ao que Menor experimenta depois do õ'acasso de suas primeiras tentativas
de determinaçãoda àpc'nl (À/e/zon,79e7-80b7). Em contrapartida, Kierke-
gaard denomhla a angústia "a realidade da liberdade como possibilidade para a
possibilidade" (C4, 40), e isso signiHlcajustanlente o seguinte: na angústia, o es-
pírito que só é possível experimenta sua realidade como iminentes a angústia é a
experiência da primeira en/e/ec/ze/a. Essa realidade consiste em um movimento
que pode permanecer incompleto em razão da dinâmica do querer ou chegar ao
acabamento como movimento da crença en] Deus. Por meio dessa crença, a rea-
lidade se mostra como realidade correntemente determinada que não pode ser
dissolvidana possibilidade.
O fato de o conceito kierkegaardcanode singularidade, apesarde todos os
paralelos, não poder ser simplesmente inserido no contexto de pensamento de
Heideggernão reside, por conseguinte, prhicipalmente no caráter religioso
dosescritos kierkegaardianos. Reside muito mais no fato de o conceito kierke-
gaardianodeshlgular sero conceito de uma realidadegenericamentedetermi-
nadae completa. De maneira correspondente, "possibilidade" em Kierke-
gaardtambém não é primariamente indeterminação. Ao contrário, possibili-
dadeé realidade ainda não detemlinada ou não determinadapor suaspróprias
forças; Kierkegaard se além à concepção aristotélica da relação entre possibi-
lidade e realidade. Contra essahlterpretação poder-se-ia objetar agora que,
como o Deus que se tomou homem, a meta do movimento da crença é, por Hmt,
tal como Kierkegaard mesmo não se cansou de acentuar, lml paradoxo, e,
comotal, imprópria para garantiruma realidadeacabadano sentidode um mo-
vimento que alcança sua meta. Além disso, o salto na crença precisa ser dado a
cada h)stante,de modo que pode ser difícil aceitar que haveria aqui equilíbrio e
'"Cf., quanto a isso, Theunissen (198 1), assim como Final ( 1981 e 1984).
190 Günter Figal
Mártir Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 191 11
tranquilidade. E assim poder-se-ia prosseguir: o que é conquistado no salto da
lado,tais possibilidades que são conhecidas na interpretação ou no falatório
crença não é nada além de uma realidade transparente como realidade da pos-
como reais ou supostamente realizadas e que se ratificaram real ou suposta-
sibilidade, enquantoo desesperadosempre procura aíjrmar uma realidade
própria; e, em verdade, ou bem na medida em que quer ser assim como é. e menteem um "poder"; elas são possibilidades, por outro lado, na medida em
auesepode ou não chegar com elas à determinação, e o fato de precisarmos
com Isso, precisa recusar outras possibilidades, ou, na medida em que querser
nosdetemlinar na assunçãode uma tal possibilidade pressupõeque somos
diferente, e, por isso, é obrigado a relativizar uma vez mais a realidade então
alcançada em função de um novo projeto. Em todo caso, porém, ele pemlane- possíveisem nosso ser iminente no sentido da própria indetemlinação. Na
diferençaentre ser-possível indeterminado e possibilidades determinadas de
ce entregue à dinâmica do querer. O querer, contudo, é o querer da própria rea-
lidade. Se a crença fosse a realidade transparente como tal da possibilidade comportamentoreside, em última instância, a possibilidade de asstmtir im-
não se poderia sustentar a afirmação de uma diferença entre Kierkegaard e propriamenteunia posição do comportamento ou manter as possibilidades
detemlinadas como aparições do ser-possível indeterminado. Em sua co-
Heidegger. A questão é que o conceito kierkegaardiano de crença encontra-se
junto e equivale à idéia de shlgularidade como determinação genérica. So- mum-pertencença,essesaspectosformam o que Heidegger denomina a "to-
talidade" do ser-aí: o ser-aíé um todo, mesmo porque ele seencontra subme-
mente a partir dessaidéia pode se tornar plausível en] que medida a crença
tido em todos os aspectosà determinação da possibilidade. Se se investiga
pode ser lmla aniquilação do desespero determ içado por meio da dinâmica do
essatotalidade em vista do modo como o ser-possível é resolvido nela, ou
querer e como tal pode ser redentora. A "angústia da possibilidade" só encon-
tra ilo homem, a sua presa "até o momento em que, liberada, ela tem de entre- sda, sob o aspectoda possibilidade de propriedade e impropriedade, c se se
leva em conta que se quer alcançar na impropriedade uma determ mação ple-
ga-lo à crença; ele não encontra trailqtiilidade em nenhum outro lugar, pois
na.então fica claro que por meio daí advém uma posição particular ao ser in-
qualquer outro ponto de tranquilidade é pura e simplesmente palavrório,' por
detemlinadoe iminente: na perspectiva da resolução da liberdade em sua di-
mais que esse ponto possa parecer sensatez aos olhos humanos"(GÍ, 164j. A
ferençadiferenciam-se propriedade e impropriedade por intermédio do fato
partir dessa contraposição de inspiração paulina entre a crença e a inteligência
de a indeterminação do ser iminente ser sustentadaou não. Na medida em
dos homens, também é possível tornar compreensível o sentido do paradoxo: a
meta do movimento da crença só é paradoxal paraa Z)oxa, enquanto no inte- quea analítica existencial, em articulação com a discussão da angústia, per-
seguea pergunta sobre como a propriedade precisa ser pensada no ser-aí,
rior da crença o homem Jesus de Nazaré é assumido como o Deus. de modo
tambémé compreensível que Heidegger desenvolva a pergunta sobre a tota-
que a perspectiva intrínseca à crença é comparável ao equilíbrio e à tranquili-
lidade do ser-aí nessecontexto, orientando-se inicialmente pelo ser indeter-
dade de unia realidade plenificada. De início ainda permanece assim aberta a
minado e iminente: "0 ser-aíjá é sempre 'para além de si', não como com-
pergunta sobre como a singularização no sentido de Heidegger, uma singralari-
portamento em relação a um outro ente que ele mesmo não é, mas como ser
zação na qual a realidade deve ser transparente como realidade do ser-pos-
sível, precisa ser pensada; e essapergunta precisa mesmo permanecer aberta para o poder-ser que ele mesmo é. Essa estrutura ontológica do 'trata-se
de-.' essencial tomamos como o antecipar-se do ser-aí" (ST, 192). Na for-
porque a compreensão e o discurso próprios ainda não foram discutidos. So-
mulação "ser para o poder-ser", Heidegger vale-se ainda lmla vez da idéia de
mente quando isso se der será possível responder satisfatoriamente à pergunta
que ser-aí é ser-possível na abertura do ente. Esse ser-possível não é, com
sobre em que medida a singularidade não é para serpensada a partir da realida-
de, mas sina a partir da possibilidade certeza,interpretado agora como ser-possível para o comportamento, mas o
caráterdecomeço do ser-aí estáligado diretamente com o ser indetegn inado
Cuidado e iminente. Somente assim é possível também considerar a diferença da li-
berdadesob o aspectoda mesmidade, e, porquanto a mesmidade permanece
Tal como Heidegger a determ ina, a angústia é uma experiência de possi- ofuscadana impropriedade, fica claro que o "ser para o poder-ser" precisa
bilidade em lml sentido radical; e se se quiser dizer mais exatamente o que ser concebido como uma determinação da propriedade. Na medida em que
signofica aqui "possibilidade", ter-se-áde diferenciarcinco aspectos: o ser'aí naangústiao "ser livre parao poder-sermais próprio" (ST, 191) é experi-
é uma vez "possível" na medida em que precisa ser pensado como ser-pos- mentado, ela abre a possibilidade de nos compreendermos primariamente
sível na abertura do ente. Esseser-possível é ser-possível para o conlporta- em nosso ser indeterminado e iminente, e, em verdade, de modo tal que o
metlto, e as possibilidades do comportamento uma vez mais são, por um compreendersejoga no "em virtude de" (ST, 146). Certamente, permanece
192 Günter final Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 193

obscuro até aqui como é que temos de pensar esse estado de coisas, pois Hei unl 'sujeito' desprovido de mundo" (S7', 192), mas caracteriza o ser-no-
degger mesmo tinha dito, por fim, que o descerramento da compreensão di- mundo.O antecipar-seprecisa ser tomado como "antecipar-se'já-
ria respeito igualmente ao em-virtude-de e à significância (Sr, 143). Essa sendo-en)-um-mundo" (ST, ]92). Porque o ser-aí "não é apenas em geral e
tese tampouco é revogada pela análise da angústia. Com isso, não se pôde re- indiferentementeum poder-ser-no-mundo jogado, mas sempre também já
presentar o primado do em-virtude-de, ou seja, do ser indeterminado e imi- despontouno mundo da ocupação"(ST, 192), a fórmula para a totalidade es-
nente, como se não houvesse mais agora nenhuma possibilidade de compor- trutural do ser-aí é ainda uma vez ampliada e significa, então: "anteci-
tamento apreendida como tal. Essaspossibilidades de çomportamentonãa par-se-a-si-mesmo-já-sendo-em-um-(mundo)como sendojunto-a(entes in-
perdem na angústia senão a sua auto-evidência, de modo que se coloca agora tramundanos que vêm ao encontro)"(ST, 192). Enquanto a primeira das duas
pela primeira vez radicalmente a pergLmtasobre como se será. O fato de se fórmulas não pode expressar a totalidade estrutural do ser-aí porque o deixa
ser índetemlinado em seu "poder-ser" não deve significar que se está dispen- subdetemlinado, a segunda não consegue realizar tal tarefa porque caracteri-
sado de fazer para si um prometodeterminado; significa muito mais que tam- za inadequadamente a "imersão no mundo". Se a "imersão no mundo", ou
bém sepode canlpreender agora em razão do desmoronamento da auto-evi- sda, a decadência, fosse realmente o ser junto ao ente intramundano que
dência o respectivo prometo co/zío /'esposra ao se/' /nde/er/minado e //n/ne/7/e. vem ao encontro, precisar-se-ia cortar de ST a interpretação heideggeriana
Ao serem apreendidas,as possibilidades de comportamento aí apreendidas da decadência. Salta aos olhos que nenhuma das duas fórmulas leva em con-
não são mais do que possibilidades de determinação do ser iminente que ain- ta a determinação do ser-aí como ser-com e como co-ser-aí, e, então, justa-
da não foram absolutamente tomadas de maneira expressa. Assim, trata-se mentea apresentaçãoda estrutura do "cuidado" sempre podia dar uma vez
de proyetar uma dessaspossibilidades e, ao mesmo tempo, saber que não se maisensqo a ler a análise do ser-aí como uma variante da filosofia da sulãe-
esgota com esseprometoo ser iminente. Com isso, ainda não está certamente tividade ou mesmo como o seu acabamento.:i O "ser-aí" não é, contudo,
indicado comia é que precisa ser pensado exatamente lml tal projetar próprio; idêntico à "subjetividade", mesmo se essa não for mais compreendida no
para mostrar isso também é preciso tomar distinto como é, em geral, possível sentidode um ente simplesmente dado, mas for tomada de maneira "des-
não fechar lmla vez mais imediatamente a falta de auto-evidência das possi- substancializada"como "vontade de auto-afirmação".32 Isso não exclui uma
bilidades de comportamento em meio a uma orientação pelo discurso. A an- vez mais que sepossa tornar inteligível algo assim como uma vontade de au-
gústia, tal como Heidegger a concebe, é apenas o começo da propriedade e, to-afirmaçãoa partir da estrutura do ser-aí, pois: "No fenómeno do querer é
do mesmo modo, naturalmente o começo da impropriedade. Depois de o ca- possívelentrever a totalidade basilar do cuidado"(ST, 194). Todavia, o fato
ráter de começo do ser-aí se tomar claro por llleio da análise da angústia e de de isso ser assim ainda não torna explicável a identiHlcação entre "cuidado" e
ser mostrado como na angústia o ser indeterminado é iminente, sempre se 'vontade": continua-se diferenciando aqui expressamenteentre os dois. A
pode tomar mais exatamente a estrutura à qual a experiência do ser iminente interpretação do ser-aí como lmla subjetividade que só subsiste em lml pro-
pertence. Essa estnitura, que perfaz "o todo da constituição do ser-aí" (ST, cessode realização implica muito mais uma determinada compreensão do
192), também é então o que deve ser "propriamente compreendido" com a antecipar-se.Porque o antecipar-se como ser para a indeterminação iminen-
experiência do ser indeterminado e iminente. Apesar de a interpretação exis- te pode ser preenchido por projetos determinados, tratar-se-ia aqu i apenas de
tencial só poder tornar suajustiHlcação inteligível por meio da demonstração uma apreensão formal do projetar e do empreendimento da realização dos
de uma tal compreensão própria, a detemlinação da estnitura do ser-aí tem projetos. Isso nos leva, lmla vez mais, a conceber o mundo como o espaço de
lmla pnmazla nesseponto parao desenvolvimento do curso de pensamento. jogo da possibilidade que pertence ao movimento de realização da subjãivi-
Mesmo se a estrutura, tal como Heidegger a discute sob o termo "cuida- dade" e o ente intramundano como a respectiva determinação delml proces-
do", abarcaros "caracteresfundamentaisontológicos"(ST, 192) do ser-aí, so nele mesmo indeterminado. "Ser-aí" é, então, quase equivalente a "cons-
quase não se conseguirá afirmar que a conexão dessescaracteres está sufici- ciência" no sentido kierkegaardiano, pois essaconsciência é, sim, um pro-
entemente clara na apresentação heideggeriana. Assim, mesmo a tese de que
Junto a essaestrutura trata-se de uma "totalidade" é mais evocada do que ar-
gumentativamente comprovada. Heidegger parte da determinação do ante- ''Schulz(1 969); por último, Habermas(1985)
cipar-se e deduz daí que o antecipar-se não é nenhuma "tendência isolada em 3:Schulz(1969), p. 116
':Schulz (1969)
194 Günter Figas
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 195

cesso em si sem começo e sem fim que, não obstante,


nas na ligação a algo temporal. e realiza sempre ape- que o mundo aparece como o que "acomete" e "a-bossa". E claro que aqui
antecipa'se em traços muito largos a análise da angústia, e, do mesmo modo
aliás,a análise do tédio, tal como Heidegger a empreende na preleção sol)re Os
f0/7ce/ros
Jz/nda//zen/alsda //7e/(#h/cíz(OC 29/30). Quando se diferencia o
apontamentocitado das análises posteriores, liça claro além disso o seguinte
aquiHeidegger ahlda acredita poder deduzir o "acometinlento" do mundo a
partir da experiência da espera, enquanto ele mais tarde diria que a angústia
e, de uma outra maneira, também o tédio descerram o mundo que se impõe
como tal e tornam pela primeira vez possível lmla compreensão que seria
comparável com o esperar aqui descrito. No entanto,justamente se se desone-
ra a conexão entre "esperar" e "cuidar" do fato de que nela o mundo deve se
impor em sua mundanidade, pode-se elaborar aí mais exatamente a estnttura
do cuidado. Nesse caso, é preciso atentar haicialmente que a "resistência", tal
como caracteriza o esperar, não é nenhumalinlitação do cuidado no sentido de
uma inibição extrínseca, mas um n\cimento do cuidado mesmo em seu "sen-
tido de realização". Se se "tem em vista" o empreendimento de algo e a apa-
rição de nós mesmos de lmla maneira determinada. então o comportamento
tem de ser pensado como movimento em direção a lm[a meta e, cona isso. ao
mesmotempo, essameta precisa estar distanciada dele. E por isso que a
xÍvTlaLÇ é para Aristóteles uma êvépTCLa alça ç, e, visto assim, o contexto
queHeidcgger tem aqui en] mente parecejá ter sido tomado de maneira sufl-
ctenLena concepção aristotélica de movimento. Mas essenão é o caso, pois
emAristóteles os movimentos são sempre apenas orientados para uma meta
e pensados a partir de sua Dieta, enquanto Heidegger quer mostrar que todo e
qualquer comportamento não é apenas um processo voltado para uma llleta
de antemão sabida, mas sempre também um deixar aberto para o que é a cada
vez iminente, um deixar aberto intrínseco ao distanciamento. O comporta-
mento detemlinado na sigiliflcância e o deixar aberto do distanciamento são
dois "acentos" do mesmo. O fato de isso ser aHirnlado como a "própria" es-
trutura do comportamento só faz, certamente, sentido se também for possí-
vel se comportar "impropriamente" e encobrir aí a estrutura do comporta-
mento. A impropriedade que ainda se chama no apontamento anterior'rui-
nancia'' e um "não-querer-esperar": impropriamente, queremos dissimular a
distância em relação ao iminente quando nos transpomos para o falatório
pois sempre podemos continuar falando. Como "não-querer-esperar", a im-
propriedade pode setornar compreensível a partir da estrutura do comporta-
mento mesmo, e, inversamente, lula investigação da impropriedade conduz
a espera como uma característica essencial do comportamento.
Apesar de esseapontamento mais antigo de Heidegger ter mostrado por
meio da explicitação do "esperar" que o "cuidado" não pode ser interpretado
B

} 96 Günter Figal 197


Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade

,omodelo do ter em vista uma meta, e não se tem mais a ver com isso quando
o que está em questão é o "antecipar-se'a-si-mesmo" no ser-aí. Não se preci.
sapensar,aqui, que para cada comportamento lma outro comportamento é
iminentee também não se poderá dizer que o ser iminente e indeterminado
segzíe
un] comportamento. Uma indeterminação só pode muito mais ser imi-
nenteparaum comportamento porque ele tambémjá é em si indeterminado
A indeterminaçãono comportamento conduz ao comportamento ulterior, e,
emverdade,mesmo quando não se aspira a nenhuma meta. A indetermina-
ção no comportamento e, com isso, também a maneira como o compor-
tamento é iminente podem ser tomados mais exatamente se não se perde de
vista que o comportamento nunca é possível senão em razão da liberação do
ente.Porquereside um liberar em todo comportamento, o que foi liberado
podeser iminente para o comportamento. Nós nos antecipamos a nós mesmos
porqueo ente é liberado e porque podemos ser em meio ao que é liberada.
Heidegger afirma por conseguinte, de maneira carreta, que o ''anteci-
par-se" não é nenhuma "tendência isolada em um 'sujeito' desprovido de
mundo", mascaracteriza o ser-no-mtmdo mesmo. No ser-aí nós nos anteci-
pamosa nós mesmosporque, em razão da liberação do ente, o mundo mes-
mo é caracterizado pela indeterminação e, assim, sempre pode ser uma vez
mais iminente em sua significância. Heidegger também tinha tido isso em
mentena preleção de 1925 anteriormente citada ao utilizar o termo "distan-
ciamento". O ser-aí, aqui ainda denominado "vida", "tem seu mundo, sua
significância a cada vez concreta diante de si" (OC 6 1, 103) e o que é aqui
iminente não é, como a fomlulação heideggeriana poderia dar a entender,
um modo determinado, já tomado como tal, da significância, mas a signifi-
cânciamesma.Em verdade, precisar-se-ia mesmo dizer: o que é iminente é o
insigniHlcanteque se torna significante na medida em que semprenos com-
preendemosnovamente a partir dele. Essecompreender-se foi denominado
"auto-evidência" e foi mostrado que é a auto-evidência que torna pela primei-
ra vez possível o comportamento, porquanto ele é expresso.Comportamento
]a e muito mais unia característica do antecipar-se como estrutura ontoló- ésemprecomportamento no contexto da auto-evidência, mas as possibilida-
gica do ser-aí e se liga ao que na locução "antecipar' se" é expresso pelo "se" desde comportamento não sãojá auto-evidentes devido ao fato de que se as
nos nos antecipamos a nós mesmos na medida em que estamosna abertura apreendecomo tais, mas somente na medida em que elas são concebidas
do ente e na medida em que é sempre iminente para alguém estar nessaaber- como projetos. Possibilidades de comportamento não se constituem como
198 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 199

realidades projetivas por serem apreendidas, mas apenas por serem detêhni- priedade como un] "mero desdar": "No desejo, o ser-aí profeta o seu ser para
nadaspelo que se diz. Heidegger tem em mente esseaspectoao ampliara pri- possibilidades que não apenaspermanecem sem serem tomadas na ocupação,
meira fórmula do "cuidado" e também levar em conta a decadência. SÓhá mas cujo preenchimento não se chega nem mesmo a pensar e a esperar. Ao
realidades projetivas determinadas uma vez que elas são previanFhte dadas contrário: o predomínio do antecipar-se no modo do mero desejar traz consigo
?at atxtias, de modo que }atllacapode hwer ttnl '' serjunto a entes intramttn- urna incompreensão das possibilidades fálicas. O ser-no-mundo, cujo mundo
darlos que pênt ao uacontro'' senão na sigrlilicância. uma vez que ela é arti- é proUetadoprimariamente como mundo do desejo, perdeu-se sem travas no
czr/ada c./á/n/er/2rerada. Quando nos orientamos na significância articulada disponível. No entanto, isso se deu de um modo tal que o disponível como o
e interpretada e assumimos realidades projetivas determinadas por outros, unicamente à mão nunca é de qualquer modo suficiente sob a luz do desdado:
nos comparamos com eles e nos apartamos deles: "0 projetar-se compreen- (Sr, 195). Na mesma direção segue a hldicação de que o ser-aí, na medida em
sivo do ser-aíé como um projetarfatigajá semprea cadavezjunto a um que ele "mesmo é determinado pela liberdade", também pode se "comportar
mundo descoberto. A partir dessemundo, ele de início, de acordo conaa in- em relação às suaspossibilidades sem intenção precisa": "ele pode ser impró-
terpretação levada a cabo pelo impessoal assumesuaspossibilidades. Essa prio e é faticamente de início e na maioria das vezes dessa maneira"(ST,] 93).
interpretação tem de antemão possibilidades entregues à livre escolha cir- Todavia, como poderia parecer, não se consegue deduzir dessaspassagens
cunscritas à esfera do conhecido, a]cançáve], suportável, disso que é conve- que a lida com o ente como tal já é imprópria. Para ver isso, é preciso ter clare-
niente e apropriado. Esse nivelamento das possibilidades do ser-aí ao quí.' za quanto a em que sentido Heidegger fala aqui de "desejar" e "querer". Ele
está de início disponível cotidíanamente leva a termo ao mesmo tempo un não quer dizer que na impropriedade, marcada pela cotidianidade em meio ao
ofuscamento do possível como tal. A cotidianidade mediana da ocupação é "impessoal", nada seria em geral "arranjado para a ocupação" e que não have-
cega para o possível e se aquietajunto ao apenas 'real'"(Sr, 194). A "ceguei- ria projetos que também seriam realizados; o que setem em vista é muito mais
ra para o possível" da qual se fala aqui não pode, naturalmente, consistir no que a impropriedade é caracterizada pelo predomhlio do mero desejar. De ou-
fato de que de agora em diante nem o ser indeterminado e iminente nem as tro modo não se poderia mesmo explicar a razão pela qual Heídegger não fala
possibilidades de comportamento seriam apreendidos. Sem uma tal apreen- aqui apenasdo desejar, mas também do perder-se no disponível. Como Hei-
são.não se poderia compreender absolutamenteos proUetoscomo possibili- degger aprendeu com Aristóteles, não se desça apenas o impossível, por
dades expressas de comportamento. Por isso, seria também melhor, em vez exemplo, a imortalidade, mas também o que só pode ser realizado por outros,
de se falar de lula cegueira para o possível, falar de uma superdeterminação por exemplo, que lma atar ou lml atleta consiga a vitória em uma competição
das possibilidades, uma superdeterm mação que consiste em que elas sempre (E]V, 11111)22-24). O último ponto não precisa scr apenas pensado a partir da
são avaliadas de uma maneira ou de outra como possibilidades pi-onuncia- perspectiva do espectador que teme por seu favorito, pois também se pode de-
das. Não obstante, mesmo para se chegar a Lml prometo,e, então, chegar tam- sqar, por flm, que lml outro faça algo, na medida em que se diz a ele o que es-
bém a uma realização do mesmo, é por outro lado incontornável orientar-se peramosdele. O "mundo do desejo" não seria nenhum mundo de sonho que
ainda que apenas inicialmente por essasavaliações e compreender-se em ge- não teria nada mais a ver com o cotidiano, Rias z//n /zzzr/7dogire é de/e//zz/nado
ral como um entre outros. Porque issoé assim, Heidegger pode detemlinar a pr///za//onze/7/e po/ expecra/ovas /27zíflras.Justamente isso, porém, caracteriza
decadência como um momento integral da estrutura do "cuidado". O "ser o mundo público do "impessoal". Na medida em que se está nesse mundo,
junto a entes intramundanos que vêm ao encontro" é como decadência o ser sempre se colocam tambén] exigências que não são resolvidas por UUamesmo
em meio ao "impessoal" e que talvez não sejam tampouco passíveis de resolução por um mesmo, do
Contra essa interpretação poder-se-ia certamenteoldetar que, antes de mesmomodo que se estápor si mesmo submetido a tais exigências. Projetos
tudo sob o aspectoda "ambigtlidade", o "impessoal" é caracterizado pela dis- realizadosjá sempre foram ou ainda são projetos de outros, e mesmo o que se
simulação do comportamento real por meio da mera propagaçãode projetos, esperade si é desejado pelo "impessoal mesmo". Como projetos realizados,
de modo que não é plausível querer compreendero caráter impróprio do "ser eles podem se tornar então desinteressantes porque o que está em questão no
junto a enteshltramundanos que vêm ao encontro" exclusivamentea partir da falatório é manter a conexão entre as exigências mútuas. Em articulação com
cstruüira do "impessoal". Em meio a essaconsideraçãopoder-se-ía,além dis- essaexplicitação do desejar também é possível tornar claro, ao menos à guisa
so, reportar à interpretação do "ser para as possibilidades" em meio à impro- deprincípio, o que Heidegger entendepor "comportamento plenamentevoli-
200 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 201

ocupar ou como alguém a ser trazido até seu ser por meio da preocupação"
tõ/ , iV41. E claro que essadeterminação do querer já impede por si só Uma
identificação entre "querer" e"cu idar" porque o cuidado não pode serpensado
como fixação em lmla realidadeprojetiva determinada:o antecipar-sea si
mesmo como serjunto a entes intramundanosque vêm ao encontro é sempre queHeidegger, ao contrapor o querer ao comportamento imprõpno en] sua
serjunto a uma pluralidade de prqetosl isso segue da identiHlcação do ser.jun- não-liberdade,não o pensaapenasno sentido da decisão por um prometoe de
to aos entesintramundanosque vêm ao encontro com a decadência."Querer suarealização.Na impropriedade, "o enl-virtude-de próprio permanece(.:.)
é um modo detemlinado de ser no mundo. Essemundo é determinado como semser tomado, o projeto do poder ser si mesmo é entregue à disposição do
totalidade em sua significância pelo "antecipar-se". A fim de dar maior preci- impessoal"(ST, 193). O tomar do em-virtude-de próprio, do ser iminente e in-
são à caracterização do querer, seria consequentemente necessário falar de um detemlinado,não é certamentenenhum querer de uma realidade projetiva, e,
projetar-se compreensivo levado a termo em vista do poder-ser para zr/z?a
pos- contudo,também não pode ser pensado sem um tal projeto Como ainda se
sibilidade do elite. Mas também issoainda não é suficiente paraseparar clara- mostrará,ele é um querer que é libertado do desejar como o contexto de expec'
mente querer e desdar no sentido heideggeriano.Pois o prometoem função do cativasmútuas e se torna transparente como a realidade do ser-possível, na
qual alguém se "profeta compreensivamente" nunca é, por um lado, cotidiana- qualo ser indeterminadoe iminente vem à tona como a negaçãodo comporta-
menteacessívelsenãocomo um projeto que"se deseja';-- cadaprojeto é públi- mento.De acordo com a concepção heideggeriana, porém, isso acontece na
co de uma maneira ou de outra e, por isso, valorizado. Por outro lado. não está 'antecipação
da morte'
excluída a hipótese.de que essealguém corresponda a um tal desejo em meio à
sua realização, e, além disso, desde ele mesmo ser como um outro. A indica- 0
Morte
ção de que alguém também pode querer algo contra o que "se desça" não é ne-
nhuma objeção, pois mesmo no apartar-se dos outros se é efetivamente como A discussão da problemática da morte foi correntemente apreendida
como uma das partes centrais da analítica do ser-aí.35 0 "encantamento exis-
se" é. Que a diferenciação heideggeriana entre desejar e querer não é tão clara
tenciário"3óque o livro Ser e /e/npo exerceu certamente tem antes de tudo
quanto se pode.pensar inicialmente também se mostrajunto à "preocupação
volitiva" que é levada em consideração em sua determinação. A preocupação aqui o seu fundamento. Do mesmo modo, nas passagens sobre a morte, tam-
pode ser imprópria, e ela é assim de início e na maioria dasvezes Juntamente bém se inflamou uma crítica que tinha em vista o conceito de ontologia exis-
tencial em geral.37 Em contraposição a isso, a pergunta de Hans Georg Gada-
com a preocupaçãoimprópria, porém, há também um querer impróprio. A di-
mer sobre se "a introdução da problemática da morte no curso de púlsamen-
ferenciação entre um desdar impróprio e um quererpróprio tem uma amplitu-
de muito pequena.Todavia, pode-se conquistar aÍ Lml ponto de sustentação to de Ser e renzpo é propriamente obrigatória e realmente adequada à coisa
mesma"3* parece à primeira vista espantosa. Que essa pergunta tem, contu-
para a clarificação do problema de Heidegger coligar un ivocamente o desejar
à impropriedade. Se, em verdade, a impropriedade como tal é caracterizada
pelo desejar e nela tambén] há um querer, então esse querer pode ser diferen- 'sNo que concerne à anlplaliteratura, ct. antes dc tudo: Ebeling(1967. 1979-197 1,1979-1972)
ciado de um querer que não é determ falado pelo desejar. Esse "querer próprio e Sternbçrger (1934)
consistiria, então, em não se empreender e não realizar mais determinados 3'Schulz (1969), p. 102
projetos, a fim de corresponder às expectativas do "impessoal" e de se equipa- 3'Edwards (1979)
'*Gadamer(1983), p. 109
202 Günter Figa 203
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade

do, suajustificaçao pode ser mostrado a partir do texto mesmo de S7'e Será

hüü l:ln$ m
e iminente precisa ser pensada como "antecipação da morte
Porsi só,jáo fato de Heidegger, sem uma fundamentação de início mais
:l
detida, denominar a morte uma "possibilidade" deixa claro que esseé seu in-
tuito. Esse passo foi criticado como domesticação da morte' ' e tomado como
ensejopara põr en] dúvida o pensamento Rindamental de Heidegger acerca
doprimado da possibilidade ante a realidade. Por fim, a morte é "possibilida-
decomo a impossibilidade da existência em geral" (S7', 262) e, porque essa
impossibilidade implica a aniquilação de todas as respectivas possibilida
Êles.a morte não é nada além da pura realidade.4z A questão é que essa tese é
menos plausível do que se poderia pensar à primeira vista. Por um lado, Bica
mesmo obscuro em que sentido se pode dizer que a aniquilação da possibili-
dade é realidade; Heidegger discutiu esse problema e ainda teremos de voltar
a esseponto. Por outro lado, a morte é em verdade "real" no sentido de que
homens falecera. No entanto. esseter-fa lecido só é real para os outros porque
éjustamente a aniquilação do ser-aí em jogo.
Mas exatamente a morte dos outros não interessa a Heidegger, pois:
Quanto mais adequadamente se toma de modo fenomenal o não-mais-
estar-aído que faleceu, tanto mais distintamente vem à tona que um tal ser-
com os mortos não experimenta justamente o ter-chegado-ao-Himpropria-
mente dito do que faleceu. A morte desentranha-se em verdade como perda,
masmais do que uma tal perda que os que ficam experimentam. AoFofrer a
perda, não está de qualquer modo acessível como tal a perda do ser que o nlon-
bundo 'sofre' . Nós não experimentamos em sentido genuíno o morrer dos ou-
tros, mas sempre estamos na melhor das hipóteses apenas 'junto deles'" (ST,
238). Como para Heidegger a morte, "na medida em que ela 'é', é sempre a

39B,.fe/an L/e/70l#eus (Carta a Menoikeus), p. 125.


"J?rf(Úfa/ We/?oi#eirs
(Cartaa Menoikeus), p. 124.
4tLévinas(1982) p. 104;Sartre(1943),p. 589. l
4:Milllcí-Lauter(1960),p. 45.
204 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 205

Essaexperiência também pode ser apresentadade maneira diversa se se


levarem conta que não se pode fa lar na primeira pessoa sem contradição4s de
urn real não-ser-mais-aí, mas sempre apenas na terceira e, sob condições es-
mente a partir dessaé possível dizer que ela não é quando nós somos. Pelo fato nCclaís,também na segunda pessoa, a saber, se se conduz cona um morto
deHeidegger interpretar a morte como "uma possibilidade ontológica pecu- uma conversa imaginária A certeza da morte é, então, equivalente à certeza
liar", "na qual o que está emjogo é o ser do próprio ser-aí" (SZ, 240), ele ainda dealguém de que no mínimo um outro AI em algum momento dirá que ele
não está para além de Epicuro Epicuro não contestada que a possibilidade da estáMorto, assim como ele agora diz de no mínimo um outro A2 que ele está
morte tem "o caráter de algo" "em relação ao qual o ser-aí assume uma atih. mono. A questãoé que em uma tal apresentaçãopermanecesem ser levado
de" (Sr, 250). Ele só contesta que faça sentido se deixar oprimir pela morte emconta como é preciso pensar, por sua vez, a certeza de que lml outro fa lará
te, pois o que não nos oprime quando é real nos oprime em vão quando em algummomento de alguém como de um morto, pois essacerteza não
é esperado G3I'àp RAPO'uobx êvoXÀcl, XPoa&)xÓP.t'.JO'.Jxcvuç XuXctj.43 Tn Rodeser deduzida a partir da experiência da morte de outros. Mesmo o silo-
davia, Heidegger quer elaborar o que Epicuro pressupõecomo obvio, a saber. aismo clássico "todo homem é mortal, eu sou um homem e, portanto, sou
em que aspecto a própria morte pode ser en] geral iminente, e porque o que im- mortal" não fornece essa certeza; ele a expressa simplesmente e isso signifi-
porta paraele é isso, ele toma por improdutiva a orientaçãopela morte dos ou- ca que ela Ihe é pressuposta. Mas é a certeza do iminente não-ser-mais-ai
tros no âmbito da interpretação existencial. Pode-se, de todo modo, questionar iminente que interessa a Heidegger ao dizer que a pergunta decisiva é a per-
seessaopinião éjustiHlcada.Por fim, não estáabsolutamenteclaro o quesigni- gunta sobre o "sentido ontológico da morte dos mortais como uma possibili-
fica dizer que a morte é o "ainda não mais extremo" e, como tal, uma "iminên- dade ontológica de seu ser" e não a pergunta "pela maneira do co-ser-aí e do
cia" do ser-aí (ST, 250). De onde se sabe de um próprio "não-estar-mais-af ainda-ser-aídos que faleceram com os que Hlcaram" (ST, 239). O que se en-
ml mente senãopor meio da morte dos outros?Mas se "só se pode experimen- contra em questão não é, por exemplo, o derradeiro tempo antes da entrada
tar então de qualquer forma uma perda de ser, se é que isso acontece antesde em cena da morte, pois "mesmo se fosse possível e admissível explicitar
mais nada,justamente no 'ser-junto' à morte de um outro homem",44então a psicologicamente' para si a morte dos outros em meio ao ser-Junto-a-eles, o
morte dos outros recebeacima de tudo unia significação constiüitiva paraa re- modo de ser visado com isso, a saber, o chegar-ao-fim, não seria de maneira
lação da morte em geral. Para Heidegger,o fato de se experimenta uma "per- algumaapreendido" (ST, 239). Para Heidegger, o chegar-ao-fim só é muito
da" com a morte dos outros significa em primeira linha que os "que ficam' maisontologicamente apreensível na estrutura do antecipar: "se a existência
perdem algo: eles perdem determinadaspossibilidades de estarcom alguém. determina o ser do ser-aí e sua essência é constituída concomitantemente
Se só se tivesse isso em mente, permaneceria implausível o que signinim ain- pelo poder-ser, então o ser-aí sempre precisa, na medida em que existe e nun-
da, anual, o discurso acerca de lmla perda do ser ede que essa perda é "soü'ida" ca perde o caráter de poder-ser, a cada vez ainda não ser algo" (Sr, 233); e
por alguém que morre. Como essesofrimento não pode ser a experiência do uma vez que o ser-aí, enquanto é, ainda não chegou ao nim, ele antecipa para
próprio nao-ser-mais-aí, permanece em verdade a possibilidade de concebo-lo si "o que torna possível em primeiro lugar um tal ser para o Him" (ST, 259).
como a experiência da despedida da vida. Nesse caso, contudo. não seria mais Com isso, porém, ainda não está claro em que aspecto o antecipar a si mesmo
elucidativo o fato de Heidegger colocar o "sofrer" entre aspas;a despedidada é um ser para o fim, pois se é em última instância sob o modo do antecipar-se
vida não é, em última instância, um soõer apenasem sentido figurado. Em e a morte só é pensável como o flm da antecipação No entanto, Hqdegger
contrapartida, sese compreendeo "sofrer" no sentido figurado, ele só podeser tampouco afirma que a auto-antecipaçãojá é, como tal, um "ser para'o fim
dito como perspectiva dos "que ficam", e, então, também é para eles que há Ao contrário, ele afimla apenas que a auto-antecipação "torna possível em
uma "perda de ser". Experimentar a própria perdade ser iminente significaria, primeiro lugar" um tal ser-para-o-fim. Ela é pura e simplesmente a condição
então, ter clareza quanto ao fato de que homens morreram, de que tam bém seé necessária, mas não suficiente de um ser para o fim. Como condição suficien-
um homem, e, como todos os homens, mortal; ter clareza, em suma, quanto ao te, não setem agora certamente nenhuma alternativa pensável senão a expe'
fato de que também se morrerá: /nen e/?/on70//. riência da morte dos outros. SÓse pode saber da morte dos outros, e o termo

{'Brlegan À/e/zo/Azul, p. 125


"Sternberger(1934), p. 47. 'sCf., quanto a isso, Poteat ( 1967)
206 Günter Figas
Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 207

subtrair ao outro a morte ' (ST, 240). Sua "intransferibilidade" consiste no


fato de que na morte "todas as ligações com um outro ser-aí são cortadas
(Sr, 250)- Ao entrar em cena, portanto, ela surge como uma possibilidade
auenãoé mais uma realidade do próprio ser-possível em meio à significân-
ciado mundo articu lado e interpretado. Como todo e qualquer poder-ser de-
terminado é sempre anterior à morte, ela é "inexcedível". Por Him, a morte é
certamente"possível a todo e qualquer instante", e, juntamente com essa
"certezada morte, se dá a indeterminação de seu quando"(ST, 258). A partir
detudo isso, porém, não vem à tona em que medida determinações espe-
cíficasda morte sãoaqui denominadas.Alguém só podetomara nosso lu-
garjunto à ocupação com algo ou à preocupação, mas não no estar submeti-
doa uma tonalidade afetiva ou a um sentimento; ninguém pode se angustiar
ouatemorizar por alguém. E o que é o decisivo: o próprio ser indeterminado
não pode ser iminente para algtml outro, cada um é sempre por si mesma
aquelequenãosabecomo será.O mesmovale em relaçãoà intransferibilida-
de.O ser iminente nunca pode ser realizado como tal em sua indeterm mação
emmeio à significância do mundo. Uma vez que nunca é a cada vez exaurí-
vel por meio de nenhum comportamento determinado e de nenhtml proje-
to, ele mostra incessantementecomo iminente enquanto é. Como esseser
iminente, ele é certo mesmo em sua indeterminação, pois de outra forma
não se poderia explicar de que modo se estaria, em geral, em condições de
determinarao menos parcialmente a indeterminação iminente intrínseca aos
proyetos.
O fato de o projeto existencial heideggeriano ser, em verdade, o projeto
doser iminente e indeterminado mostra-se certamente da maneira mais dis-
tinta possível, na medida em que Heidegger recorre à angústia para tornar
compreensível a experiência da possibilidade mais própria, intransferível e
inexcedível: "0 ser-aí não tem de início e, na maioria das vezes. nenhtml sa-
ber expresso ou mesmo teórico de que ele está entregue à responsabilidade
por sua morte e de que essa pertencecom isso ao ser-no-mundo. O es-
tar-jogado na morte desentranha-separa ele mais originária e pqletrante-
mentena disposição da angústia. A angústia ante a morte é angústh 'ante' o
poder-ser mais próprio, intransferível e inexcedível... Um temor diante do
falecimento não pode ser conRmdido com a angústia ante a morte. Ela não é
nenhuma tonalidade afetiva 'fraca' qualquer e casual, mas... o descerramen-
to do fato de que o ser-aí existe como serjogado para o seu fim" (ST, 25 1).
Quando Heidegger diferencia aqui a angústia do temor ante o "falecimento"
ele quer demarcar o ser descerrado na angústia em contraposição ao fim real
do ser-aí. Anteriomlente, ele tinha designado o "falecer" como "fenómeno
intermediário" e o tinha ao mesmo tempo determ içado como o Himapreensí-
208 Günter Figal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 209

dizer que, no âmbito da determinação ontológica do ser-aí, não se está em con-


dições de conquistar uma compreensão da impossibilidade do ser-aí em geral.
Heídeggersó desenvolveu muito posteriormente uma compreensão apropria-
da da morte, e, em verdade, em sua conferência proferida em 1950 sobre "A
coisa".47
Nessa conferência encontramos a seguinte formulação: "Os mortais
sãoos homens. Eles se chamam os mortais porque podem a morte como morte
(-.) A morte é o grito do nada, disso mesmo que em todos os aspectos nunca é
algumacoisa que seja meramente, mas algo que não obstante se essencializa,
atémesmocomo o mistério do sermesmo. A morte é como o grito do nadaem
meio à cordilheira do ser. Os mortais são os que eles são, se essencializando
como os mortais na cordacheira do ser. Eles são a relação essencializadora com
o ser como ser" (EC, 171). O que Heidegger diz aí com a linguagem a-ter-
minológica de sua obra tardia não pode ser hiterpretado detalhadamentesem
implodir o contexto axial de pensamento.Importante é apenasver que com a
formulaçãoà primeira vista enigmática "cordilheira do ser" é denominada a
abemira do ente, tal como ela é descerrada na angústia, ao mesmo tempo como
guem esta na iminência, e o que o prometoexistencial de um ser para a more encobrimento,como o fechar-sedo aberto. Somentequando sepensasimulta-
deve mostrar é antes de tudo que no ser-aí, uma vez que ele é, o ser indetermi- neamentea abertura do ente como encobrimento o ser iminente também pode
nado sempre é iminente. Isso não pode ser apenas comprovado, na medida sercompreendido como a impossibilidade de ser em geral, e, com isso, em sua
em que se aponta para a diferenciação expressa entre a angústia e o temor da contingência essencial. Todavia, a impossibilidade de ser não implica nenhu-
morte, temor que consiste em uma "expectativa ocupada" (ST, 337) pela ma ruptura de um comportamento em si ilimitadamente possível, mas lmla
mole. Heidegger é ainda mais claro ao dizer, em articulação com a dis- impossibilidade que é simultaneamentepossibilidade em razão da co-
mum-pertencençaentre abrir-se e encobrir-se: como o que se abre, o que se
encobre é efetivamente o que possibilita pela primeira vezum comportamento
e um poder em geral. A isso refere-se também a fomlulação heideggeriana
'poderamorte". Esse"poder" consisteem acolher o ser-aíem suapossibilida-
A hlterpretação dada do "ser-para-o-fim" como lml "ser-até-o-fim" pare- deem meio à abertura do entejuntamente com sua impossibilidade em meio

$il
aoencobrir-se desseaberto.Nesse caso, precisaria ficar claro que Heidegger

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dadepura e simples da existência" (ST, 255), e apenassese pode levar a sério
pensaaqui "possibilidade" em um sentido quejá estavaclaramente insinuado
em ST, mas que não pede ser aí adequadamente elaborado porque o
ser-possíveldo ser-aí é concebido nessecontexto exclusivamente na estrutura
essaimpossibilidade, parec.etambém pela primeira vez compreensível o que do antecipar-se. A possibilidade que está em jogo quando se fala erU poder a
Heidegger designa então "liberdade para a morte". Mas como se pode levar a morte é a possibilidade do ser-aí em geral e não mais o ser-possível fálico para
seno a impossibilidade da própria existência, e, antesahlda, como se pode sa- o comportamento ou o ser iminente e indeterminado da existência. Do ser imi-
ber dela? Foi mostrado, em última instância, que um tal sabernão é dedutível nenteno ser-aí não se pode dizer que ele é a morte, pois, na medida em que o
a morte dos outros e que a estrutura do antecipar-secomo tal tampouco en- ser-aí é, a morte não vem. Ante a tentativa heideggeriana de vincular a morte à
volve um saber sobrea própria morte. Porquantoa projeção do saberda more estruütra do ser-aí, Epicuro continua tendo razão. Mas isso certamente não
:osoutros sobreo ser iminente e hldetermfaladosó conduz à idéia de uma pos-
sibilidade pura,,nãosepode.defato compreender,a partir de tudo o que 6oi dito
até aqui, o que é a impossibilidade daprópria existência. Precisar-se-ámesmo 47Essaconf'erência encontra-se traduzida para o português pela editora vozes no l ivro .E/zsa/ose

l
conÁerénc/as. (N.T.)
2]0 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 21 1

morteé central para a concepção heideggeriana, então é natural que nos es-
nantemoscom o fato de Heidegger não ter elaborado nenhuma análise minu-
ciosado suicídio. Nesse caso, também é natural desenvolver um "ser para a
morte" a partir da orientação pela possibilidade do suicídio.4s O porquê de
Heideggermesmo não ter feito isso é difícil de compreender: a morte preci-
sa, se é que ela deve ser uma possibilidade pura, permanecer em todo caso in-
determinada.No ser para a morte, "a possibilidade precisaser compreendida
demaneira não enfraquecida como possibilidade, conformada como possi-
bilidade e mantida como possibilidade en] meio à assunção de lmla atitude
emrelaçãoa ela"(ST, 261). O ter expectativas,contido, "não e apenasocasio-
nalmentelml desviar o olhar do possível em função de sua possível realiza-
ção, mas é essencialmente lml esperar por essa realização. Taml)ém no ter
expectativas reside saltar por sobre o possível e lml fincar pé no real, pelo
que o esperado é esperado. A partir do real e em direção a ele, o possível é in-
troduzido no real de maneira condizente com as expectativas" (ST, 262)
Abstraindo-se de se a "meditação sobre a morte" ou a expectativa da morte
sãodescritasaqui de modo pertinente, quando as apresentamoscomo tenta-
tivas de uma aquietação em relação ao caráter de possibilidade da morte,
vem à tona novamente a questão sobre em que medida a pura possibilidade
em geral ainda é qualinicável como "morte". Se Heidegger tinha tornado ini-
cialmente vigente a indeterm mação da morte apenas em vista de seu "quan-
do", aqui ele afirma que toda representação de um tipo possível de morte e de
uma circunstância possível de morte é lml nivelamento da pura possibilidade
em função de algo real ou, no mínimo, do real em função de algo pensado.
Na medida em que a própria morte, porém, se é que pode ser efetivamente re-
presentada, só pode ser representada de uma maneira muito vaga, e em que é
incompreensível como poderia acontecer uma apreensão imediata da morte,
está demonstrado que o projeto existencial de um ser para a mortellão pode
responder pelo que ele deveria responder na concepção heideggeriana. Além
disso, é preciso perguntar se a idéia de uma possibilidade pura em geral é ne-
cessáriaparatornar inteligível lma existir próprio. Por fim, Heideggermes-
mo diz que "o estar ocupadamente voltado para algo possível" tem em ver-
dade "a tendência" de "aniquilar a possibilidade do possível por meio do tor-
nar disponível", mas nunca está realmente em condições de levar a lmaa ple-

'"Cf. Ebeling(1967), Lõwith, Sã//i//. Sc/lr. /(Escritos reunidos 1), p. 41 8-425. assim como Tu
gendllat(1979), p. 235-243
2T2 Günter Fígal
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 213

em sua indeterminação, e, por isso, o fato de todo comportamento determi-


nadoe todo projeto ser finito. Dito de outro modo: é possível falar em geral
deum "ser até o fim" quando não se pensatambém o fim? E será que o ser-aí,
tal como ele propriamente é, pode ser existenciariamente transparente se a
Mortenão é "previamente tomada" como uma possibilidade pura? Somente
na"tomadaprévia existenciária" da possibilidade inexcedível, poder-se-iaob-
jetar recorrendo ao texto de ST, todas as possibilidades determinadas podem
sertambém descerradas como possibilidades: elas só são consideradas radi-
calmente como possibilidades se se está completamente incerto quanto a se se
asconseguirárealizar, e só se estácompletamente incerto quanto a isso se sc
estáao mesmo tempo certo de que se pode a qualquer instante não mais estar
aí.Contudo, se a morte não pode ser pensada como pura possibilidade, o cará-
ter de possibilidade do comportamento e dos projetos também não pode se
descerrarpropriamente na "antecipação da morte". Para tornar inteligível o
descerramentopróprio ao caráter de possibilidade de todo comportamento e
de todo projeto é suficiente, de início, apontar para a indetemlinação do ser
iminente em meio à abertura do ente que sedá na angústia e colocar em articu-
lação com isso a pergunta sobre como se precisa pensar o fato de essa indeter-
minaçãonão ser em todo caso fechada na posição do comportamento. Essa
pergunta só pode ser igualmente respondida na análise da consciência. A flm
deexistir propriamente, o que estáem jogo não é que não se poderealizar lmi
prometoquando não se é. Em primeiro lugar, isso é trivial, e, em segundo lugar,
nãotoma inteligível em que medida o comportamento determinado sempre é
apenasa realidade do próprio ser-possível. Na propriedade, porém, o ser-aí
deve se tornar transparente em seu ser como ser-possível. Para essa transpa-
rência, o saber acerca do próprio flm não contribui em nada. Em contrapartida,
essacontribuição vem da certeza de que não se poderia ser outra coisa além de
pOSSÍVel: 8Ld FIOU TOLOÓTOÇ
(E/V, I I OObI 8).

Consciência

Heidegger deram ina a voz da consciência o "clamor do cuidado". j)esse


clamor diz-se, então, que tem o "caráter do chamado do ser-aí para o seu po-
der-ser mais próprio e isso sob o modo do apelo para o mais próprio ser culpa-
do" (Sr, 269). Mesmo que o clamor da consciência não possa ser nenhuma
elocução realmente expressa, e issojá resulta por si só do fato de nele "o cuida-
do clamar", Heidegger não se distancia tào amplamente da linguagem corren-
te quanto se poderia talvez pensar inicialmente. Na Ihlguagem corrente, o
'clamor' também não visa apenas a um zr/ferance acf. Ao contrário, ele tam-
bém diz respeito a unl ///oczf/fo/?a/y ac/ que não precisa ocorrer incondicional-
mente no pronunciamento de uma sentença ou de uma interjeição: "clamor" é,
214 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 215

rejeitouexpressamentea interpretação da consciência como a voz de uma


instânciadiversa do ser-aí. Assina como a tentativa de demonstrar que não ha
umatal instância e que, então, também não há a voz da consciência, essahl-
terpretaçãosalta de maneira por demais apressadapor sobre o resultado fe-
nontenal"(ST, 275). Esse resultado consiste em que o clamor "não é nunca
justamenteplanejado nem preparado por nós mesmos, nem tampouco em-
preendidovolitivamente": "0 clamor 'se' dá contra expectativas e até mes-
mocontraa vontade. Por outro lado, o clamor não provém, sem dúvida algu-
ma,deum outro que estácomigo no mundo. O clamor vem de mim e de qual-
querntodo sobre mim"(S7', 275). O "se" impessoal, que é ainda mais acen-
tuadopelas aspas, desempenhalml papel importante na linguagem de Hei-
degger.szO "se"já veio à tona em meio à análise da angústia quando se disse
quenela"se" estáestranho; e, igualmente, em meio à análise do tédio na pre'
leçãosobreOs co/?ce/rosjzr/7da/zzen/a/s
da /zle/(Üs/ca(OC 29-30). O "se"
toma-se,então, central na conferência posterior de Heidegger "Tempo e
ser", na qual formulações como "dá-se ser" e "dá-se tempo" são compreen'
dadascomo testemunhos do "acontecimento apropriativo". No presente con-
texto, em contrapartida, pode-se compreender o "se" nas expressões verbais
impessoaiscom ele formadas como equivalente a "ser-aí". O termo "ser-aí
assim o diz Heidegger em sua última preleção de Marburg, deve designar
uma "neutralidade peculiar"(OC 26, 171), c justamente essa neutralidade
precisaráser tomada como o clamor da consciência
No entanto, a informação de que o clamor da consciência é "neutro"
nãoestandopor isso subordinado a nenhuma instância ou pessoadetermina-
da, continua sendo sempre hlsuficiente c talvez até mesmo desconcertante.
Em última instância, justamente o "impessoal" é designado em ST como
neutro (ST, 126), de modo que se poderia ter a impressão de que o que "cla-
ma" como consciência seria o "impessoal". Em verdade, é claro que Heideg-
ger não quer dizer isso. Não obstante, a interpretação tem de qualquer modo
uma certa plausibilidade e é por isso discutida também pelo próprio Heideg-
ger: "A interpretação mencionada da consciência anuncia-se como reconhe-
cimento do clamor no sentido de uma voz 'genericamente'-imperativa que
'não' faia 'de maneira meramente subjetiva'. Mais ainda, essaconsciência
'genérica' é elevada a 'consciência do mundo' que, segundo seu caráter fe-
nomenal, é um 'se' e um 'ninguém'. Portanto, ela é o que, no 'sujeito' singu-

':Gttnter Final refere-se aqui à partícula alemã es, que se apresentaa princípio como pronome
pessoalrelativo aos substantivos neutros. Como ein aletnão, porém, nenhuma oração pode scr
estabelecidasem um sujeito explicitamente firmado, os verbos que em português chatllamos de
ieull:l::=;:='s=.;.:=T.;;:=?'.:
1:a": impessoaisrecebem essa partícula: chove (es /egnef), llá (es g/ór), é (es fs/). Ê no contexto des-
sasexpressõesque temos de entender o que está dito supra. (N.T.)
216 Günter Final

Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 217

terminadoe iminente em meio à abertura do ente. O clamor da consciência


impedeque sediga de maneira aquietadora que não aconteceu "propriamen-
tenada". É certo que ainda não ficou claro como devemos pensar essaproibi-
çãoe é ao m.esmotempo igualmente obscura a conexão exata entre angústia
econsciência.Certamente, não se conseguirá compreender essaúltima co-
nexão se não se tiver tentado antes tomar inteligível para si como, animal, um
silenciarpode ser um clamor e, como um tal clamor, uma interrupção do fa-
latório. Justamente se não se compreende o "clamor" como uma sentença
sensivelmenteperceptível ou como uma intedeição sensivelmente perceptí-
vel, mas como requisição, não fica à primeira vista claro como precisamente
no silenciar se dá lula tal requisição.
Paraprosseguir aqui é útil partir ainda uma vez da "consciência públi-
ca". Por fim, essanão é nenhuma construção vazia, mas, de acordo com a re-
laçãoentre ser-aí próprio e impróprio em geral, apenaslula modificação,
uma aparição da consciência própria que chega a termo em meio à posição
do comportamento. Em seguida, então, é preciso poder mostrar tambémjun-
to a situações, ãs quais uma concepção orientada pela consciência imprópria
recorre, em que medida um silenciar pode ter lma caráter de requisição.
A pergunta sobre tais situações tem, nesse caso, um apoio total no texto
deST. Heidegger conquista a determinação disso que o clamor da consciên-
cia "dá a entender" (ST, 280) na medida em que segue inicialmente a inter-
pretaçãocotidiana da consciência. Essa interpretação diz "que o clamor in-
terpela o ser-aí como 'culpado' ou, como no caso da consciência que adver-
te, remete para um possível 'culpado' ou, ainda, como 'boa' consciência
não constata 'nenhtmla culpa sabida'"(ST, 281). Heidegger toma agora essa
observaçãoimediatamente como ensejo para perguntar pelo "conceito exis-
tencial" (Sr, 281) de ser culpado. No entanto, ele não contesta de modo al-
gum "que o clamor da consciência" possa "se ligar sempre a cada vez a uma
ação determinada 'realizada' ou querida" (ST, 293). Por isso, não se perderá
o cantata com as suas intenções se se trabalhar o caráter de clamor da cons-
ciência, um caráter que não foi esclarecido ulteriormente por ele, a partir de
um recurso àsexperiências citadas. A experiência da "culpa" é analisada por
Heidegger na medida em que ele diferencia inicialmente quatro aspectos di-
versos da significação de ''culpado" e, então, os condensa en] lmla determi-
naçãoformal. "Ser culpado" significa, por um lado: "estar em débito por
algo", ou seja, i)ão ter arranjado ou restituído algo determinado. Significa
além disso: "ter culpa em algo", ou seja, "ser-causa ou autor de algo" (ST,
282). Essas duas significações não se implicam muüiamente. Pode-se pro-
vocar mteiramente lula determinada situação sem que se esteja nela em dé-
bito com alguém por algo, e é igualmente possível estar em débito sem que o
2] 8 Günter Figa Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 219

anual;e, mesmo em S7',só o utiliza uma vez, a saber,em meio à análise do


impessoal (ST, 127). Exatamente isso, contudo, justifica interpretar. o
"ser-fundamentode..." como responsabilidade. A exortação inerente ao cla-
mor da consciência pode ser compreendida como exortação à responsabili-
dadeepode tornar claro em que medida essaexortação precisa ser concebida
como um silenciar. Antes, porém, é necessário clarificar como deve ser em-
pregadoaqui o termo "responsabilidade". Correntemente .denomina-se al-
guémresponsável quando se supõe que ele poderia ter agido de maneira di-
versa.Desseconceito "amplo" de responsabilidade também se pode diferen-
ciar entãolml mais "restrito", de acordo com o qual "alguén\ ageou vive res-
ponsavelmente quando pode prestar derradeiramente contas de seu agir, sto
é quando pode fundamenta-lo até o ponto enl que é filndamentável e quando
asslmlesobre si o resto"s'. O que interessa aqui inicialmente é apenaso con-
ceito amplo de responsabilidade, pois essejá é por demais restrito se se quer
interpretar o conceito heideggeriano formal de ser culpado como um concei-
to de responsabilidade. Em sintonia com Heidegger, precisar-se-á dizer que
também se pode considerar alguém como responsável quando a culpa em
questãonão é passível de ser reconduzida a seu comportamento. Também é
possível se tornar responsável pelo comportamento dos outros e assumir
essa responsabilidade ou se sentir responsável, sem que lmaa determii»da re-
quisição tenha lugar, se não se estava envolvido nesse comportamento e
tampouco se tinha feito algo para possibilitar ou favorecer essecomporta-
mento. Um simples exemplo disso é a possibilidade de quitar dívidas finan-
ceiras de um outro; um exemplo mais complexo é a assunção de lmla respon'
habilidade por uma política da qual não se tinha tomado parte por razões de
idade. Se as coisas se mostram assim, então o conceito de responsabilidade

s:Cf.. quantoa isso. Wieland (1970), P. 60. s'Tugendllat ( 1979), p. 295


220 Günter Figal
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 221

noser-aí de um outro", então isso implica quejá sempre foram proferidas pe-
ia,s
..-««
d.'«-.
i«,-""p"'''i";, e,p''q";-'':;' "": " "p"'"t:l"
àsquais nunca se corresponde ou contra as quais nos chocanlos, a experiên-
cia da culpa parece ser apenas uma experiência do "impessoal": nunca so-
nos capazesde empreender o que "se" espera ou sempre nos chochamos
contra o que "se" toma por correto. Isso é seguramente incontestável. Igual-
menteincontestável, porém, é a incompatibilidade da experiência da culpa
conao prosseguimento irrefletido do falatório. Quem se sente culpado não
estaráem condições nem de expor expectativas para outros, nem de [er à mão
imediatamenteexplicações correntes para a falta no ser-aí do outro que se
encontra em questão, assim como para o próprio comportamento ou para o
comportamento desse enl relação ao qual se assume responsabilidade. No
que diz respeito ao primeiro caso, elejá se acha isolado no contexto das ex-
pectativas mútuas por não corresponder a uma tal expe.ctativa ou por respon-
der pelo comportamento culpado de outros. E no que diz respeito ao segundo
caso.o recurso irrefletido a explicações correntes fornece justamente um
ponto de sustentaçãopara que alguém não se sinta aí culpado ou esteja aí
apto a dissimular sua culpa. A partir desse ponto, também bica claro agora
em que medida o clamor da consciência ocorre sob o modo do silenciar e
nas dessemodo pode ocorrer: o que Heidegger denomina o clamor da
consciência é aquela interrupção do discurso que é experimentada como
incapacidadede se agarrar a explicações e aquietações correntes; quem se
senteculpado não está, ao menos inicialmente, em condições de dizer mais
nada
a

Mas mesmo se isso for elucidativo como descrição, poder-se-ia olÜetar


que o caráter exortativo do clamorda consciência não é aqui apropriadamen-
te levado em conta. Dito de outra forma, foi mostrado que a experiência do
serculpado não é pensável sem um silenciar especínlco, mas não em que me-
dida se é chamado "para o interior do silenciamento"(ST, 273). A questão é
que se precisa atentar para o seguinte: o discurso acerca de um clamor da
consciência sempre sugere a suposição de alguém que chama e se mostra em
meio a esse chamado como diverso daquele que é chamado, e, nessa nyedida.
a concepção heideggeriana da consciência é inadequada. Sc se leva a sério a
determinação de acordo com a qual o clamor vem "de mim e sobre m im", en-
tão se precisa pensar o clamor e o ser chamado estritamente ao mesmo tem-
po. Desta feita, só se pode ter em vista inicialmente com o caráter de clamor
da consciência que o silenciar específico para a experiência da culpa não é
querido e tem uma imperatividade da qual não se consegueao menos sem
mais escapar. Uma diversidade entre o que é chamado e o clamor só subsiste
na medida em que o que é chamado é chamado de vo]ta do impessoal. O "im-
B.

222 Günter Figas


Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 223

setem a atençãoatraída para a falta de algo necessário para a atividade res-


pectiva.Heidegger designa essaatenção "notar o que não está à mào" (ST
73), e toda descobertade um utensílio danificado, destruído ou mesmo que
apenasperturbe a lida é comparável à experiência de uma falta.junto à ma-
llualidade. Não se pode conceber, então, lula "falta no ser-aí de um outro
como um não estar simplesmente dado, nen} se precisa aceitar a afirmação
insustentável de que saúde, bem-estar etc. são algo simplesmente dado
Mesmo se se compreende o termo "ser simplesmente dado" como designa-
ção para os modos de ser do que é descoberto na mera visualização e na
enunciação e se se contabiliza que também a própria saúde ou o próprio
bem-estar podem ser constatados em ei)unciados, não seria plausível dizer
que saúde e t)em-estar, assim como a fa Ita deles, seriam primariamente expe-
rimentados sob o modo de uma autoconsideração constatadora. Por isso
mesmo a observação heideggeriana sobre o "dever e a lei" é problemática
Se se dizde alguém que ele não cumpriu lmaa requisição que Ihe foi apresen-
tada, então não se constata nenhuma falta em algo simplesmente dado. Ao
contrário, expressa-se algo sobre seu agir. Dito de maneira mais exata. cons-
tata-se que ele não é realmente da maneira como deveria e mesmo poderia
ser. Com isso tambén] está designado o ponto ao qual Heidegger em verdade
chega quando esclarece como insuficiente uma determinação do
ser-culpado em meio à orientação pelo conceito de falta. Se se toma a culpa
como uma falta, então se supõe de uma maneira inadequada ao ser-aí o pri-
mado da realidade ante a possibilidade. Nós nos mantemos aí no interior da
concepção aristotélica que perguntou por uma realidade imperativa e especí-
fica para o homem (epTov Toi; àv+púxou/ E/V, 1097b24) e, então, tomou o
falhar como permaneceraquém dessarealidade. Em certa medida. essacon-
cepção também é ainda normativa para Kart. Se secorresponde à lei moral e
se apenas a razão se mostra como causa em meioà determinação para agir. se
é e6etivamente no sentido de seu caráter inteligível. Não obstante, ao menos
em um aspecto, Kart está mais próximo de Heidegger do que Aristóteles.
Uma vez que Kart está convencido de que "a moralidade propriamente dita
de nosso agir mesmo... está totalmente velada" para nós(CRP, B579/Al51),
cle pensa a realidade adequadaao homem como uma realidade inacessível
no mundo das aparições, e, com isso,já é questionável se ações para as quais
não se pode ver mais detalhadamente se elas são determinadas somente pela
razão em gerar podem ser compreendidas como "faltosas". Para Aristóteles.
em contrapartida,a realidade racional da alma (ÜuX'üç êvépTcta xaTà
Àó-Íov/ E/V. 1098a7)também é judicável por todo homem culto da maneira
correspondente,e somente por isso é também possível educar outros pala
essarealidade. Porquanto Kart insiste em que o caráter inteligível pode ser
224 Günter Final
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 225

culpado'" reside "o çaráterdo não" (ST, 283). Juntamenteconaa característi-


caanteriormentejá trabalhada em meio à análise da culpa, essecaráter conduz
do"ser fundamento" para a determinação: "Ser fundamento de um ser deter-
minadopor um não isso significa ser Rmdamento de uma nulidade" (ST,
283). Essanulidade pode ser concebida inicialmente como negatividade do
comportamentodetemlinado. Quem se comporta de uma maneira determina-
daabstrai, expressamente ou não, dejectos e movimentos que não pertencem à
coisa mesma cona a qual tem a ver. Mas não apenas os momentos do compor-
tamento que perfazem em sua coordenação o comportamento, mas tan]bém c]
comportamento uniforme mesmo é caracterizado pela negatividade: "poden-
do ser", nós "sempre nos encontramos a cada vez em uma ou em outra possibi-
lidade, constantemente não" "somos um outro", e isso pertence ao ser livre do
ser-aí para as suas possibilidades existenciárias": "A liberdade(...) só é na es-
colhadetala possibilidade, ou seja,no suportardo não ter escolhido e não po-
dermesmo ter escolhido as outras" (ST, 285). Possibilidades são caracteriza-
daspelo fato de nunca poderem ser tomadas completamente. Mas a liberdade
no ser-aínão consiste apenase não consiste essencialmenteem ter a escolha
entrepossibilidades apreendidas.Uma possibilidade apreendida é uma reali-
dadeprojetiva, cada prometoé lmla respostaa lml ser iminente e indetermina-
do.Todos os projetos que se fizerem e que possamser aproximados de outros
sãodiversos do "não" do ser iminente em sua indetemlinação.
Na medida em que o ser iminente em sua indeterminação mesma "não:
é,ou seja,não é efetivamente, também não se pode pensar por flm a "nulida-
de existencial" do ser-aí como uma falta. C0/270pro/e/ar, no ser-aí "já se é
nulo d/a/?íe de tudo" o que se "pode projetar e na maioria das vezes mesmo se
alcançar" (ST, 285). Essa sentença e o acentuado "como projetar" nela pre-
senteseriam incompreensíveis se já não se lesse o verbo e/7m'e/y&ncomo
'projelar" (prq/e#r/eram) e se o diferenciasse de "projetar" (e/?M'e/$en) como
um modo do descerramento.ssPrqetos nunca são possíveis senão porque
antes de todos os projetos em esboço projetivo o ser iminente e indetermina-
do é apreendido como um "não" iminente, de modo que a "nulidade" da au-
to-antecipação não apenas não é nenhuma falta, mas constitui primeiraáaen-
te o ser-aí. Com isso, porém, a "nulidade existencial" do ser-aí ainda não está
completamente determinada. Em verdade, o ser-aí não é apenas "como pro-
jeto(...) essencialmentenulo"(ST, 285). Ao contrário, como fundamentoele
é caracterizado pela nulidade mesma; "sendo, ele é determinado como po-
der-ser que pertence a si mesmo e, de qualquer modo, não é dado senão como

Heidegger chega ao conceito do "ser culpado orighlário" na medida em ssGünterFigal se vale aqui de uma pequena nuança significativa presente no verbo alemão e/7/-
que analisa mais exatamentea determinação formal da culpa. "Na idéia de lí'el=Áen
em relação ao termo de origem ]atinap/'qe#rfe/en. Os dois são normalmente traduzidos
por projetar, maso verbo de origem anglo-saxãtraz consigoo sentido de esboço.(N.T.)
226 Günter Figa Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 227

discutidadessetermo. Heidegger dá agora, em verdade, a impressão de en-


tenderque "culpa" não é, por nim. nada além do que o "ser-culpado originá-
rio". Se se quiser tornar distinta a razão pela qual ele faz isso, então a explica-
çãomais plausível é certamente que o que está em questão para ele éjustamen-
te evitar a deteml mação do ser culpado como lmla falta de realidade efetiva. A
fim de não perder de vista, porém, que a "culpa" é inicialmente lula determi-
nação do ser-com e do co-ser-aí, é preciso tentar integrar o aspecto do ser-com
e do co-ser-aí ao conceito do "ser culpado originário": é preciso poder dizer
como setem de pensar uma culpa que sempre subsiste ante os outros e que em
contextos cotidíanos de comportamento nunca pode ser, apesar disso, consta-
tadaporque não tem nada a ver com uma "falta no ser-aí de outros:
A pergunta sobre que experiência fala afinal pelo ser culpado originário
do ser-aí, Heidegger nos dá a refletir se só haveria culpa "quando uma cons-
ciência da culpa está desperta" ou "se no fato de a culpa 'adormecer' não se
anunciaria justamente o ser culpado originário"; e ele prossegue: "0 fato de
esseser culpado originário permanecerde início e na maioria das vezes scm
serdescerrado e de ser mantido fechado por meio do ser decadente do ser-aí
desentranha apenas a dita nulidade. Mais originário do que qualquer saber so-
bre ele é o se/'-culpado"(ST, 286). Comojá acontecia eill meio à interpretação
da angústia,também se poderia pensaraqui que Heídegger gostaria de com-
provar a consistênciaolãetiva de sua análisetomando a experiência cotidiana,
que não sabe nada da coisa mesma de que se trata, como encobrimento dessa
Não obstante, mesmo se, em sintonia com as análises precedentes, esti- coisa. A questão é que não se ganharia nada com isso se a experiência cotidia-
vemlos prontos a achar plausível essaidéia, é duvidoso que Heidegger inter- na não fonlecesse também um ponto de sustentação para o que é nela encober-
to. Esse ponto de sustentação é agora a circunstância de que a experiência coti-
,.e corretamente a nul idade do ser-aí como «ser culpado originário'' e por
isso também a discuta no contexto de sua análise da consciência. De ma s a diana é dominada pelo falatório e consiste, entre outras coisas, na exposição,
mais, a nulidade do ser-aí que deve perfazer o "ser culpado originário" pare- propagaçãoe valoração de projetos que são assumidospor outros e emprega-
doscontra outros ou que sãofeitos em virtude desua possecomum. Essespro-

iiiii'U:;n:msH:ii;d&h
inteligível se Heidegger, para desenvolver o conceito de um ser-culpado ori-
jetos só têm sentido como respostasao ser iminente e indeterminado, e, por
isso, é preciso que esseser, justamente onde ele é encoberto pela discussão de
proaetos, sempre estqa também descerrado. Por meio dos projetos que "se" fa-
zem e nos quais nos empenhamos intensamente, nós nos tornamos culpados
ginário, tivesse em vista poder abandonar simplesmente a determinação
fomlal do ser-culpado. Justamente se for incontestável que "na ideia de cul- uns em relaçãoaos outros ejá semprenos tomamos culpados porque enclbri-
pado reside o caráter do não", sena problemático seo "não" pudesse ser pen- mos para nós mesmosmutuamente o próprio ser a cada vez iminente em sua
sado sem que o "culpado" fosse efetivamente levado em conta"O termo "cul . indetemlinação. Em meio ao falatório. essaculpa precisacertamente perma-
pa' temaperdido sua significação específica no conceito do ser culpado ori- necer incompreensível porque ela diz respeito ao falatório como tal e, se se
ginário. O fato de o ser-aí implicar o "ser-fundamento(nulo) de uma nulida- estápreso nele, só se conhecea culpa como unia falta, seja no próprio ser-aí.
de"(ST, 285) só equivaleria à sua culpabilidade se "a determinação existen- sqa no ser-aí dos outros. Por outro lado, toda situação oferece a uma tal culpa-
cial formal da culpa como ser hindamento de uma nulidade" (ST. 285) defi- bilização imprópria a possibilidade de deixar o clamor da consciência "se
nisse o termo "culpa"; e isso é pouco convincente en] face da signiflcaçãojá 'proclamar' plenamente" (ST, 293), lula vez que não se reconduz a interrup'
228 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 229

pertinente ao ser iminente, tal como é descerrada por meio da angústia. A an-
gústia é a tonalidade afetiva que abre a compreensão intrínseca à consciência
esomenteporque as coisas são assim o clamor da consciência pode concla-
mar a asstmlir o ser-possível fático em meio à abertura do ente existindo
comoser iminente. Na medida em que os dois aspectos são experimentados
nainterrupção do falatório, tornou-se manifesta juntamente conao ser imi-
nentena abertura do ente também a decadência conho tal. Com isso, tambén]
õlcaclaro até que ponto a consciência pode ser o "clamor do cuidado": o cla-
mor da consciência é a exortação para ser propriamente no cuidado, e, como
essaexortação não vem "de fora", ele é a modificação do cuidado para a sua
propriedade.
Se se leva em conta que Heidegger pensa "cuidado" como a totalidade
daabertura do ente, do ser iminente e da decadência na estrutura do anteci-
par-sea si mesmo, então o discurso acerca de um "cuidado próprio" não é,
certamente,totalmente isento de problematicidade. Poder-se-ia refletir so-
brese aí não sedescuida do caráter inequivocamente impróprio da decadên-
cia e se não se está obrigado a falar então também em uma "decadência pró-
pria"" ou a pensar de maneira neutra o que é designado na determinação da
estnitura do "cuidado" com o temia "decadência" e diferenciar de sua con-
creção,sqa própria, sqa imprópria. A última opção é impossível porque de-
terminados modos de comportamento e determinados projetos sempre per-
tencem à interpretação e à articulação do "impessoal". No que diz respeito à
primeira hipótese, é preciso atentar inicialmente para o fato de que "proprie-
dade" significa inicialmente: experimentar como se é enl meio à compreen-
são consciente e afinada pela angústia, e somos entre outras coisas de tal
modo que não podemos contornar determ içados comportamentos e determi-
nadosprojetos. Sepor meio do clamor da consciência, porém, o ser iminente
setoma livre de determinados projetos, então essespodem ser experimenta-
dos agora como respostas ao ser iminente; sob essep0/7/0 de v/sra, o "impes-
soal" não tem mais nenhuma Rinção desoneradora,mas a oferta de uma tal
desoneraçãoé experimentada, sim, exatamentecomo culpa. Por meio disso
é possível considerar também pela primeira vez como, de acordo com a con-
cepçãoheideggeriana,é precisopensaras/ngzr/a//Jadeno ser-aí: "singulari-
dade" não significa ser essealguém determ inado e pensar-se ao menos ideal-
mente como possuidor de lmla determinação plena ou supor em crença que
Deus a pensa assim, mas muito mais compreender seus prqetos como res-
postasao ser iminente e não se tomar mais apenaspor alguém determinado
no contexto do "impessoal", um contexto em que sejustinlcam prqetos pelo

s'Tugendhat(1970-1971), p. 316
230 Günter Figal
Martin Heídegger: Fenomenologia da Liberdade 231

isso,que o clamorda Consciência mesmo tem de ser escolhido. Se esse fosse


o caso, ele contradiria sua tese de que esse clamor acontece "contra expecta-
tivas e mesmo contra a vontade" (ST, 275). "Escolher" é muito mais "com-
preendero clamor" e não escolha "da consciência que como tal não pode ser
escolhida": "0 que é escolhido é o ter consciência como um ser-livre para o
maispróprio ser culpado"(Sr, 288). No entanto, Heidegger deixa sem escla-
recimento o que significa a "escolha" do ter consciência
urso ao termo kierkegaardiano da escolha no contexto da concepção
heideggerianada consciência não é, em geral, realmente convincente. Para
queisso diqueclaro, é preciso inicialmente ver que as duas formas de vida
apresentadaspor Kierkegaard em O/r ot/, a forma de vida do plano ético e do
planoestético, entre as quais sedeve fazer uma escolha, se comportam assinle-
tricameilte lula em relação à outra. Quem sedecide pelo plano ético, isto é, poi
qualificar as suasaçõescomo "boas" ou "más", também qualifica o plano es-
tético: "Qt.iem a í, depois que o plano ético se Ihe mostrou, escolhe o plano esté-
tico não vive esteticamente, pois peca e é submetido a determinações éticas.
por mais que sua vida precise ser mesmo designada como a-ética" (00 11,
179). Inversamente,a forma de vida do plano estético, uma forma de vida ca-
racterizadapela imediatidade e pelo caráter não imperativo, consiste em ou
não conhecer os termos "bem" e "mal« específicos para o plano ético ou, ilo
mínimo, não ver nenhunssentido em seu emprego. Kierkegaard permite em
verdade que o autor do texto, o assessorWilhelm, diga então: depois da esco-
lha do plano ético, "todo o plano estético retorna" e somente por meio daí "a
existência" se torna "bela"(00 11,188). Por um lado, está claro, porém, que o
conceito do plano estético não visa mais aqui à forma de vida contraposta ao
plano ético, mas ao aspecto imediato e sensivelmente determinado da existên-
cia humana. Por outro lado, a crítica dos pseudónimos posteriores de Kierke-
gaard se dirigejustamente contra essa tese do assessor;" o que se contesta aí.
e, em verdade, da forma mais decisiva possível, com certeza, no livro Z)oe/7ça
pa/a a //zo/'re,ê que a escolha do plano ético seja ao mesmo tempo uma auto-
escolha no sentido de que na decisão pelo universal o plano estético pode ier
ao mesmo tempo "suspendido" como o imediato. /

Certamente,não se terá dificuldade em compreenderque Heidegger


nãoseenredanessadificuldade do assessorkierkegaardiano.Heideggerilão
afirma que a impropriedade retorna no ter consciência e é um momento inte-
gral do mesmo. Ao contrário, é nluíto mais necessárioexperimentar sempre
novamentea censurado falatório pala poder existir "propriamente". Hei-
degger orienta-se antesapenaspela concepção do plano ético e do plano es-

''Cf. Theunissçn/Greve ( 1979), P. 28


232 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 233

quandonão .escolhemosincondicíonadamente, só escolhemos por esseins-


tantee, por isso, podemos escolher algo diverso no instante seguinte" (00
ll. 177). A escolha de lmla vida estética não consiste, porém, em tomar um
grandenúmero de decisões que, como um todo, não possuem nenhuma im-
peratividade para o modo como se é, mas em decidir-se contra uma tal impe-
ratividade em geral. Visto assim, o "estético" escolhe completamente uma
maneirade ser. Mesmo a escolha ética não consiste efetivamente em deci-
sõesrespectivas,mas em querer empreender a qualificação dessasdecisões
como"boas" ou "más
Sea troca de cartas entre A e B no Ozr- oz/só é possível sob a pressupo-
siçãode que ambostêm aver com formas de vida comparáveis, então mesmo
o discurso acerca de uma escolha ética só é significativo se se pode igual-
mentefalar de uma escolha estética. Se se compreende, porém, a vida ética e
avida estética como alternativas autênticas, resulta daí uma outra dificulda-
de.Nessecaso, não se consegue mais entender em que medida a qualificação
demodosdecomportamentocomo"bons" e "maus" podeter a imperativida-
deque de qualquer fomla precisam ter se o discurso deve ser efetivamente
sobreética.58A posição do assessorfracassa por sua inconsistência: ou bem
o ético é imperativo e não pode ser senãotomado ou dissimulado em sua im-
peratividade; ou bem o ético é escolhido como alternativa ao estético, e, en-
tão,ele não pode ser imperativo. A pergunta sobre se e como o estético pode
retornar no ético é em verdade fundamentalmente independente dessepro-
blema.No entanto, se as coisas se dessemde tal modo que no ético o "si pró-
prio" do homem vigorasse completamente, então isso seria apenasuma pro-
va mais ampla para a inadequaçãodo termo "escolha" nessecontexto. O dis-
cursoacercade uma "auto-escolha" é paradoxal e Kierkegaard teve isso em
conta na medida em que abandonou o termo e interpretou mesmo en] seu
Z)Dançará/'a a /270ríeo "querer ser si próprio" como uma característica do
desespero,ou sda, do fato de não se ser "si próprio:
Mesmo que não se possadecidir de uma vez por todas pela propriedade,
como Heidegger a pensa,tal como nós nos decidimos pelo "ético", é possível
tornar compreensível em que medida pede ser natural para Heidegger re-
correr, em meio à elaboração da problemática da consciência, à terminologia
kierkegaardiana. Em última instância, os respectivos projetos não são "esco-
lhidos" no ser-aí impróprio, quando nos mantenlosjunto ao que "se" faz e to-
ma por correio. Em contrapartida, a propriedade deve consistir no fato de as
possibilidades"fálicas" como tais, isto é, como finitas, seremcompreendidas
e tomadas.Devemos nos decidir de tal modo por determinadas possibilidades
quenão as tomemos por serempropagadasou rdeitadas por outros. Tampou-

s*Cf., quanto a isso, Maclntyre( 1981), p. 38


234 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 235

ce apenasparticular em contraposição à realidade perfeita, então. no contex-


to de pensamento de Heidegger, não se pode senão conceber isso como uma
interpretação inadequada da nulidade característica do ser-aí. A culpa enten-
dida moralmente não é originária porque ela pressupõe a posição da realida-
de. Em verdade, ela pode dar ensejo à experiência do ser culpado originário,
masa experiência não pode ser inversamente interpretada como a decisão
pela culpa moral. Isso certamente não signiHtcaque a propriedade, tal como
Heidegger a pensa, é amoras, para além do bem e do mal, e, por isso, que ela
implica o decisionismo questionável com o qual vários intérpretes acreditam
ter de compreendo-la. SÓsigninlca que não se pode deduzir das determina-
çõesfundamentais ontológico-existenciais de Heidegger nenhuma ética,
cujas pressuposiçõesresidam na antologia tradicional da realidade, como
uma "ética da propriedade". Na medida em que determinaçõeséticas se
constroem sobre a pressuposição da realidade e todo comportamento "mau:
ou "bom" aparece correspondentemente como uma falta, elas permanecen}
referidas à impropríedade. Com isso, a pergunta sobre lmla suposta "impera-
tividade ética" no ser-aíainda não é nem mesmo tocada. Com certeza,já está
claro agora que a concepção de lmla tal imperatividade precisa poder viver
sem a idéia de uma escolha se ela não quiser cairia mesma dificuldade que o
assessor kierkegaardiano. O mesmo vale para a determinação do que-
rer-ter-consciência que deve, sim, ao menos servir para a exposição de uma
tal imperatividade. Seguramente, também não é difícil ver agora que, em
meio ao querer ter consciência, não se pode falar de lula escolha como de
uma decisão entre duas alternativas. Por fim, Heidcgger só recorre àquele
emprego do termo "escolha'' em Kierkegaard que esseabandona mesmo nos
escritos posteriores a Ozf oi/.
A "escolha de sí mesmo" no ser-aí deve consistir. então. em ser "na es-
cuta de sua possibilidade existencial mais própria"(ST. 287), e isso não pode
significar senão o seguinte: não fechar novamente para si o ser iminente e in-
determinado que foi liberada pela interrupção do falatório. Isso não pode ser
pensado lmaavez mais como um comportamento determinado, mas apenas
como negação de comportamentos determinados. Em Heidegger mesmo é
certo que isso permanece de início obscuro, e, em verdade, entre outras coi-
sas,porque ele tenta tomar o que não é cojllportamento nem projetar em lml
modo de falar ligado ao comportamento e ao proletar. Assim, ele nos diz:
"Compreendendo o clamor, o ser-aí deixa que o si mesmo mais próprio aja
nele a partir de seu poder-ser escolhido. SÓassim ele pode ser responsável"
(ST, 288). O "si mesmo mais próprio" é Qser-aí na diferença da liberdade, ou
sqa, como ser iminente para o comportamento, e já por isso se mostra que
"Cf. o ensaiodeSchelling sobre,4eixénc/ada//óe/dado/nr//lamae asg rei/õei canelas(1 809). aqui não se pode tratar de lml agir em sentido estrito. Do mesmo modo se
236 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 237

careceter um tal princípio em mente ao determinar com mais exatidão o


querer-ter-consciência" como "decisão:

Decisão

Heidegger quer designar com o termo "decisão" a unidade dos três mo-
dos de descerramento sob a modalidade da propriedade. "Decisão" é a ma-
neira de estar "aí" que é caracterizada pela disposição da angústia e pela
aberturado ente nela apreendida,pelo projeto do ser indeterminado e imi-
nentee pela interrupção do falatório em meio ao clamor da consciência. Seu
contrário, a "indecisão", collsiste correspondentemente no abandono au-
to-aquietante da angústia, na propagação e na valoração de determinados
proUetose no comparar-se com outros, assim como no apartar-se deles. Em
uma palavra:no falatório. O predomínio do falatório perfaz pela primeira
vez a indecisão, e, portanto, a impropriedade. Por isso, a angústia é em ver-
dade uma condição necessária da decisão. De qualquer modo, porém, ela
não é específica da decisão. Por fim, mesmo a decadência é impossível sem a
angústia. A condição necessária para a decisão é muito mais a princípio o
clamor da consciência, por meio do qual é impedido um abandonoda angús-
tia. A condição suficiente para a decisão é, antes de mais nada, o prometodo
ser livre iminente. Com isso também fica claro como a decisãoprecisa ser
concebida como unidade dos três modos dc descerramento: a decisão é, por
meio da angústia, um compreender determinado, e, por meio do clamor da
consciência, um compreender que se tornou livre. Mas na medida em que é
impossível responder ao ser iminente de outro modo que não com projetos
previamente dados pelo falatório e aí favorecidos ou rejeitados; na medida
em que sempre comecemos também previamente determinados modos dc
degger de maneira análoga à «boa vontade", tal como Kart a concebeu Por ser aos outros por meio de nosso próprio comportamento; e, além disso, na
medida em que não se pode normalmente contornar a necessidade dejustíül-
car seu comportamento de maneira discursiva, esse comportamento só pare-
ce ser possível se se experimentar a participação por princípio inevitável no
falatório como culpa. Visto assim, a "decisão é o projetar-se silenc.cosoe
de mais a mais a chance de resolver um a di faculdade da concepção heidegge-
pronto a angustiar-se para o mais próprio ser culpado"(ST, 296). Essa resul-
riana da consciência. Poder-se-ia, com efeito, mostrar em que medida se está
tado é, com certeza, bastante estranho. Por um lado, fica em verdade comple-
tamente obscuro o que pode ter a ver uma "decisão" determinada dessa for-
ma com resoluções autênticas. Por flui, Heidegger não parece falar senão de
unia visualização da própria determinação por meio do falatório e não parece
levar em conta absolutamenteo passopara um agir próprio. Por outro lado,
essavisualização não parece poder levar nem mesmo para unia recusa do fa-
latório, se esseé inevitável e tem de ser aceito como culpabilização ante os
outros. Quanto a isso, é preciso dizermos inicialmente que lula intelecção do
238 Günter Final Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 239

caráterculpado do falatório não exclui fundamentalmente a Com isso também já está dito primariamente o que a decisão significa
tenor nessefalatório, masa exclui ao nICHosno instante parao agir. SÓse pode falar de agir próprio se alguém não faz mais algo por-
pergunta que se impõe é, então, certamente se e que "se" faz, mas compreende que suas ações são respostas ao ser iminente e
latório em meio ao clamor da consciência pode indetemlinado. Não se pode, naturalmente, dizer de maneira genérica quais
para o comportamento cotidiano determinado sãoos proUetos que a cada vez são empreendidos e quais os proletos que pre-
rio. Ninguém consegueseguramente garantir lmla cisam ser realizados. A resposta à pergunta sobre o que devemos nos decidir
próprio: "0 ser-aíjá é sempre a cada vez e em só pode ser dada pela decisão mesmo"(ST, 298). Se o clamor da consciên-
na indecisão" (ST. 299). Contudo, uma cia como a condição necessária específica da decisão fosse uma "indicação
que nada mais do que foi dito tem validade prática" parafazer A e deixar de fazer B, e, com isso, envolvesse uma requi-
terrupção do falatórlo impede apenas sição para seguir "máximas esperadas, inequivocamente computávels", en-
plesmente na não-imperatividade e tão "a consciência da existência não inviabilizaria nada menos do que a
Com isso, porém, altera-se o s/afz/s dos possibilidade de agir" (ST, 294). Os respectivos projetos e as circunstancias
não setorna 'em termos de conteúdo: que são profícuas para a sua realização ou que se contrapõem a ela só se des-
dada, e, no entanto, o ser compreensivo e cerram como tais na "situação" da decisão. "Situação" não é aí nenhtmla
ser-com preocupado com os outros é determinado mistura de circunstâncias e acasos que se deram" (ST, 300). Ela é, sim, o "aí a
próprio poder ser(...) A decisão por si mesmo traz cadavez descerradona decisão: o ente existente é, por sua vez, como um tal
para a possibilidade de dela/ 'se/'' os outros aí" (Sr, 299). Portanto, ele é como a experiência de um comportamento de-
der-ser mais próprio e descerrar terminado e de determinados projetos sob determinadas circunstâncias em
que se adianta e lil)era. O ser-aí decidido vista do ser iminente e indeterminado que não é fechado pelo falatório. Em
outros. Do ser si mesmo próprio contrapartida,o impessoal só conhece "os 'casos gerais'", se perde nas 'oca-
propna, mas não a partir dos encontros siões' mais imediatas e contesta o ser-aí a partir do cômputo dos acasosque
manação faladora no impessoal e no ele, desconhecendo-os,toma e professa como o resultado de sua própria ati-
Eill meio à decisão, os respectivos vidade" (ST, 300). O fato de a decisão estar livre de tais interpretações cor-
conseqilentenlente tomados na imperatividade difusa rentes que calculam os acasos perfaz diretamente a "situação" da decisão.
contrário, eles são tomados como os Decididos, não empreendemos a tentativa de dissimular a contingência es-
cada vez a expõem. Nesse sencial do agir em suasconseqtlências e circunstâncias que não são nunca
defendem essesproUetosporque o completamente abarcáveis. Na medida em que compreendemos nossos
aquele que não assume, propaga ou comportamentose proletos como respostasao ser iminente em sua indeter-
preende o que foi dito a partir do "mais minação, nós nos mantemosabertos mesmo no contexto do comportamento
ele compreende os projetos como e dos projetos em sua incalculabilidade. Com isso, as proletivas como tais
segundo esseponto de vista, e\es são negadase se tornam uma vez mais as possibilidades que elas "propria-
dar a entender isso ao outro por meio de uma recusa mente'' são
o ense] o para perguntara si mesmo se esseprometo é defendida Uma tal interpretação da decisão não parece, agora, senão coiHlrmar a
apenas porque o "impessoal" o faz. A recusa ao menos tesejá contestadaaqui lmaavez de quc se trata nessecaso de um decisionis-
tório mostra a apreensãodo outro como co-ser-aí e é um liberar mo derradeiramente irracional. Por nim, assim poder-se-ia pensar, tudo o que
que se aceitam os limites da pode valer como critério para a racionalidade do comportamento é aqui arti-
pode-se também fazer por si culado à compreensividade do "impessoal". Portanto, mesmo lula funda-
mentaçãolevada a termo em meio a uma generalização ao menos relativa de
máximas de comportamento e a capacidade de avaliar as consequênciasde
'Grifos G. F. seuspropósitos e leva-las em conta em meio ao comportamento se mostram
240 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 241

como "impessoais". Todavia. essa


seasseguradomelhor contra as ção heideggerianaentre decisão e indecisão. Todos os modos de comporta-
mento que são determinados pelo "impessoal" são, por fim, dirigidos por re-
do ao menos um pouco mais em S7'a
flexões das quais podemos nos apropriar porque elas são familiares no falató-
Larem condições de levar a cabo a
cidadesexistenciáriasfálicas em rio. Além disso, é inteiramente possível que alguém estala em condições de
dar umajustificação quando essa é requerida, mas esteja apesar disso indeciso
(ST, 30 1). Pode ser que, para "o intuito
no sentido heideggeriano. Desta feita, a capacidade de poderjustiHicar modos
Investigação (...)", seja suficiente "a
decomportamento é em verdade uma condição necessária para a decisão, mas
próprio testemunhado na consciência a
tão-somenteuma condição trivial. O que está aqui em questão é muito mais a
mesmo"(Sr, 301).Contudo.
pergunta sobre se alguém é ou nãopropr/a/ venceresponsável por seu compor-
se torna tanto mais plausível quanto mais bem é
taHento. Em sintonia com o que foi dito sobre o conceito de culpa própria, po-
va e descritivamente a análise do ser-aí
No sentido dc uma tal rém, a responsabilidadeprópria também não pode se tornar dependente de
uma falta constatável no ser-aí de um outro. Ter-se-á muito mais de compreen-
tal como Heidegger a pensa, não exclui
dera responsabilidade própria a partir da decisão, tal como foi determinada até
dos de comportamento, nem um levar em
aqui. Nesse caso, a responsabilidade própria consiste em compreender seu
Por outro lado, porém, ela não é dependente de l
comportamento como resposta ao ser imhlente em sua indeterminação, e,
lamento tomada assim ou dessaforma sob
co/170z//na/a/ raspas/a, nenhtml comportamento e nenhum projeto pode ser
fala contra essairracionalidade do
justificado racionalmente. Desta feita, lula decisãono sentido heideggeriano
o fato de essecomportamento ser
seria caracterizada pelo fato de que toda reflexão e todajustificação em sua li-
visão''e,no queconcerneà
mitação são visualizadas por meio da estrutura ontológica do ser-aí. Justifica-
Mas mesmo se se concede que essas
çõese reflexões pertencem sempre à lematização de projetos e proletos sãojá
nestes, sempre se pode ainda ol)jetar que elas também possibilidades temáticas. Dessa maneira, reflexões e justiHlcações pertencem
atê mesmo em primeira linha ao
à arar/çâo dessas possibilidades, e não está em questão renunciar às apari-
podemos estar hlteiramente cheios
ções, mas sim compreender que elas são aparições.
e assim ou ao menos porque "se'
Se se acolhe ainda uma vez a definição tugendhatiana de responsabili-
têntica de um prometoparece, em
dade,de acordo com a qual temos de fundamentar responsavelmente nossas
mentação racional. Tal como E.
sepode falar de uma decisão na açõesaté o ponto em que podemos fundamenta-las, e, então, "tomar o resto a
nosso cargo"," então se precisaria dizer cona Heidegger que o "resto" perfaz
compreendido como resultado de uma
a responsabilidade própria e ao mesmo tempo faz com que toda requisição
dado "que lula decisão precisa ser precedida
por um prestar contas derradeiro apareça como questionável. E no que con-
xao, mas sim que lmla decisão
cerne à crítica por decisionismo, então a concepção tugendhatiana da auto-
bém pode ser fundamentada
determinação racional tem traços muito mais decisionistas do que a concep-
cípio, não se consegue ver em que medida a
ção heideggeriana da decisão. Por fim, de acordo çom Tugendhat, 4guém
precisa ser o resta//ado de uma reflexão
não se comporta apenas irresponsavelmente "quando renuncia à fuiídacio-
que uma decisão ///zp//calmaareflexão
nalidade", mas também "quando renuncia ao agir porque não pode funda-
ulteriomlente. No entanto, mesmo se
menta-lo até o fim".ó3 0 ponto central em Heidegger não é, contudo, que é
mação mais fraca, e, de acordo com ela. se só se
preciso em todo caso agir, e, por isso, com ainda mais razão, não consiste em
guém que ele se decide quando está em condições de tomar "o pa/Aos da decisão pelo puro ter-se-decidido" e pela soberania de
comportamento, não se conquista com isso nenhum

Tugcndhat ( 1979), P. 241 'Tugendhat (1979), p. 295


''Tugendhat ( 1979), p. 295
242 Günter Figa
Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 243

um sujeito que se manifesta nesseter-se-decidido. Ao contrário, seu ponto


edos comportamentos, uma intelecção que se tornou possível com a inter-
central é a intelecção de que o modo como se é "propriamente" não pode se
manifestar em nenhuma ação e em nenhuma realidade projetiva. / rupçãodo falatório, é a negação dessesproÜetose modos de comportamento
em sua realidade efetiva. O prometoé negado em sua realidade iminente na
Por isso, Heidegger também pode responder à pergunta sobre a "certeza
medida enl que é experimentado como possibilidade fatiga; e o comporta-
pertinente à decisão" por meio da caracterização dessa certeza como certeza
mentoreal é negadona medida em que o compreendemoscomo resposta an-
da "situação aberta": a certeza "não podejustamente se enrijecer por Sobre a
tiga."Decidido" se estáaberto para as possibilidades simplesmente apreen-
situação, mas precisa compreender que a decisão, segundo seu próprio senti-
didas,de modo que, a partir delas, se pode tomar em geral lmla como projeto;
do de descerramento, tem de ser / vanf/da livre e abe/'/a para a respectiva pos- "decidido" se está, além disso, aberto para o ser iminente en] sua indetermi-
sibilidade fatiga. A certeza da decisão significa: /lza/7/er-se//vre para a sua
nação,de modo que o prometotomado como resposta a esseser é transparen-
retração possível e sempre a cada vez faticanlente necessária" (ST, 307). O te.Somenteassim ele ép/'opr/a/71e/7/e compreendido, enquanto o "mundo do
que Heidegger diz aqui dá inicialmente a impressão de ser trivial. Para que desejo" inerente ao falatório é apenas a aparência de compreensão.
assim poder-se-ia perguntar, nos mantemos abertos em uma decisão senão
Por conseguinte, só se pode falar de un] querer quando a estrutura do
para a "respectiva possibilidade fatiga" que justamente nos decidimos a to-
'cuidado" é experimentada propriamente na decisão. O querer pode ser de-
mar? No entanto, a impressão de trivialidade só surge com certeza se se con-
nominado"livre" porque a decisão mesma não é nada além da liberdade re-
funde "possibilidade" e "realidade projetiva". Em verdade, un] prometo é
petida,retomada na negaçãodo fechamento da realidade aparente."Livre" é
uma possibilidade no sentido de que ainda não nos comportamos agora da um predicado que caracteriza primariamente a abertura do ente na qual al-
maneira projetada e de que qualquer forma supomos que podemos nos com-
guémestá na iminência de ser. Por intermédio dessaabertura, o ser iminente
portar assim. Todavia, porque um prqeto é uma possibilidade já tomada e
mesmo é "livre". Modos de comportamento e projetos são, então, "livres"
apoderada, ele é sempre experimentado como realidade iminente. Se fosse
quando são compreendidos como respostas ao ser iminente. Na negação de
de outro modo, não se conseguiria absolutamente explicar a decepção ou a
projetoscomo uma realidade iminente, assim como na negação de compor-
raiva quanto ao fato de a realização do projeto ter sido impedida por determi-
tamentos reais, torna-se manifesta a diferença da liberdade, e, em verdade,
nadas circLulstâncias. Para manter aberto o caráter de possibilidade do prome-
to, é preciso "revoga-lo" como realidade iminente. Isso só vale. naturalmen-
tantono aspectoda mesmidadequanto no da diversidade:ser-aíé
ser-possível para o comportamento como lmla resposta ao ser iminente, e, na
te, se o projeto for realizado. Como um prometorealizado não é nenhuma res-
medida em que o comportamento é vislumbrado como lula tal resposta, ele é
posta dada na decisão ao ser iminente, ele precisa ser revogado para que seja transparentecomo aparição do descerramento.Assim, aparição e fenómeno
uma vez mais transparente como resposta,e uma tal revogação consiste em
são o mesmo. Como aparição, o comportamento é ao mesmo tempo diverso
não se persistir em um deteml içado modo de comportamento, na medida em
da abertura do ser-aí e essadiversidade também é marcada pela negação na
que o justificamos, a fim de equipararmo-nos aos outros ou apartarão-nos propriedade porque o comportamento de início e na maioria das vezes é ex-
deles. Conceder para si que o comportamento detemlinado era antes uma
perimentado como realidade levada a termo e iminente.
possibilidade significa reconduzir a realidade à possibilidade e se manter.
Não obstante, mesmo diante do fato de que a decisão não consiste no que-
com isso, livre para a incontornabilidade de novas respostas ao ser iminente
rer deum determinado prqeto, mas de quelml tal quererse torna pelaprimeira
em sua indeterminação. A revogação de um prometoiminente ou realizado
vez livre por meio da revogação"decidida", sempre permaneceainda abertaa
em sua realidade efetiva "não deixa recair de maneira algtmla na indecisão"
pergunta sobre se a negação da realidade precisa ser corcel)ida como um que-
Ao contrário, ela é "a decisão própria pela repetição de si mesma"(ST, 308).
rer. O discurso heideggeriano acercade um "querer-ter-consciência" sugere
Dito de outro n)odo, somente por meio da revogação torna-se possível que- por flm exatamenteisso, e, nessecaso,ter-se-ia de diferenciar entre dois mo-
rer pmpnamente um prometo,pois, pensando cona Heidegger, "querer" não dos de emprego de "querer". Contudo, uma tal diferenciação não é tão isenta
significa nada além de estar pronto para dar uma resposta ao ser iminente em
de problematicidade quanto pode parecer. Em verdade, poder-se-ia dizer que
sua indeterminação, uma resposta que não pode ter como tal sua motivação
"querer" significa, por lml lado, o intuito de realizar um prometo,e, por outro, o
no contexto de expectativas mútuas e não se encontra no contexto de proje-
intuito de permanecerfirme ante projetos possíveis e freqtlentemente sugeri-
tos agora apenas desejados. A intelecção do caráter de resposta dos projetos
dos por outros. De maneira correspondente, aliberdade do querer teria, por um
244 Günter Fígal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 245

dosatos mesmos em sua estnitura plena também não é mais, por isso, apenas a
condiçãoda análise fenomenológica. A "estrutura plena dos alas"já é muito
mais vislumbrada quando eles são compreendidos "pré-fenomenologi-
camente'' no ser-aí como respostas para o ser iminente em sua indeteml mação
Nessesentido, Heidegger também pode dizer que com a decisão é "conqu esta-
daa verdademais originária porque própria ao ser-aí" (ST, 297). Essaverdade
própria é a transparência do comportamento em seu caráter de resposta, uma
transparênciacondicionada por uma reabertura, por uma de-cisão do descerra-
mentofechadana posição do comportamento. Em sintonia com a idéia dessa
verdade,também se pode ver melhor em quemedida a negaçãodo comporta-
mento na decisão não pode ser nenhum querer. Com efeito, é muito significa-
tivo dizer da impropriedade que nela não se quer admitir o caráterde resposta
do comportamento e se decai, por isso, no falatório. Mas o que significa, em
contrapartida, querer se perceber em seu ser-aí? Dizer isso só teria sentido se
não se estivesse exatamente na verdade própria ao ser-aí. Poder-se-ia objetar
agora que com lml tal "querer perceber" se tenha em vista não querer encobrir
a verdade própria ao ser-aí. Nesse caso, porém, cair-se-ia na dificuldade de se
precisar conceder que esse "não querer encobrir" significa não desejar. Uma
vez mais, esse não é nenhum ato de vontade, pois, expresso positivamente, ele
diz: apreender simplesmente o ser iminente na abertura do ente. O apreender
contudo, não é nem um comportamento ativo nem passivo, mas o "estar aber-
to" que torna pela primeira vez possíveis o querer e o desejar; ele é o "ser aí
em seu caráter de possibilidade mesmo, diverso do comportamento a cada vez
determinado.

A partir daqui, também sepode responder à pergunta sobre a relação en-


tre decisão e boa vontade. A decisão é comparável com a boa vontade exata-
mente no aspecto segundo o qual essa, para dizer de uma maneira paradoxal,
não é vontade, a saber, no aspecto de sua detemlinação pela estima. Heideg-
ger mesmo acolheu esseconceito positivamente(OC 9, 88) e talvez se possa
dizer que sua concepção do "deixar ser", tal como é discutida detalhadamen-
te na conferência Z)a essênc/a da verdade e no diálogo sobre a Se/enz#ade
(OC 13), é uma tentativa de formular de uma maneira adequada o que é tra-
tado em Kart. Por fím, Kart não consegue desenvolver uma característica
pj'''sí"el.qa "uma p"q" 'l' pe"''""e p"s' à o'ie«tação pelos abetose
só pode diferenciar a estima em relação a eles na medida em que diz que ela é
um "sentimento autoproduzido" no sentido de um "efeito da lei sobre o sujei-
to"; a determinação da vontade pela razão é aqui pensadade maneira análoga
à determinação pelos estímulos sensíveis de um mundo exterior. e. aí. ela
óuGrifosG. F. evidentemente falha. Se Kant diz, além disso, que o "objeto da estima", ou
seja, a lei moral, "como imposta por nós a nós mesmos", é "de qualquer
246 Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 247

tanto forma a pressuposição da análise conceitual quanto pode ganhar em


transparênciapor meio dessaanálise. Se se quisesse empregar o predicado
"bom" em relação à decisão, seria preciso dizer: "ser bom" também significa
aqui,como em Aristóteles, ser o máximo possível, isso que se é, sem enco-
brimentos.No ser-aí, porém, se está na diferença da liberdade. Assim, é im-
portanteexpor essadiferença o máximo possível sem encobrimentos.

Funclalnenlaçãoda ipielalislca tios coslullles. BA. \ l

;:n===;:ti' :","'.',;.', ,..»-.-«;''',


:Í.':=::F:=';i:::=':=::':'H:;=='
Cf« quanto a isso, lambé]j] Gadamer ( 1930), Ges. Mer#e P'(Obra con.junta V), p. 244
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 249

ser-aí:l visto assim, depois que a requisição por uma fundamentação filosó-
fico-transcendental ou cunhada de modo nllosófico-transcendental da Hllo-
,/ soniado tempo fosse abandonada,o caminho estaria livre para Heidegger de-
CapítulolV senvolver sua intenção originária tanto mais desoneradamente. Não obstan-
te,mesmo se secolocam de lado inicialmente os problemas que se imiscuem
na concepçãode uma história do ser como história do esquecimento do ser,
uma tal história euma [al historicidade que se acham no centro da interpreta-
LIBERDADE E TEMPORALIDADE çãoheideggeriana não sãosem mais elucidativas. Por fim, a historicidade do
ser-aítorna-se compreensível em Sr a partir da estrutura da temporalidade;
e, se a concepção da história do ser também se diferencia em muito da histo-
g 9. Ser e tempo ricidade desenvolvida em Sr, também se terá igualmente o direito, em rela-
ção a ela, de esperarque um esclarecimento correspondente de sua estrutura
Nas discussõessol)re Heidegger até aqui, o problema do tempo não fi- temporal possaser dado. Com isso, certamente não está dito que esseescla-
cou efetivamente no centro da atenção. As análises heideggerianas do tempo recimento tem de ser empreendido a partir de um recurso à temporalidade,
permaneceram auto-evidentes de uma maneira peculiar. Isso deve produzir tal como Heidegger a desenvolve em ST. Ao contrário, ter-se-á de mostrar
naturalmente espanto, uma vez que o seu próprio programa estabeleceque que, em meio aos problemas intrínsecos à seção sol)re "tempo e ser", Hei-
não apenas.aanálise do ser-aí, mas também a pergunta sobre o ser em geral, a degger não foi além porque se manteve inicialmente preso à concepção da
cuja exposição a análise do ser-aí serve, são levadas ao seu termo próprio temporalidade e porque buscou reinterpretar a idéia dos esquemas tempo-
juntamente com a discussão acerca do tempo. Além disso, tal com o podemos rais, central para essa concepção de lmaa maneira segundo a qual essa idéia
comprovar antes de tudo a partir da preleção Grz//?dproó/e/ne der .f'Àdno/zze- não pode ser reinterpretada. Desta feita, o recurso heideggeriano à doutrina
no/og/e (Problemas fundamentais da fenomenologia) e da conferência pos- kantiana do esquematismo também pode dar ensejo à colocação em questão
terior Te/npoe ser, só se consegueconceber a "virada" no desenvolvimento da concepçãodo livro sobre "ser e tempo" como um todo. Ou bem, assim o
do pensamento heideggeriano se se elucida a sua concepção do tempo em parece, "a imaginação com a sua ligação temporal é uma raiz derradeira e o
seusaspectosmais importantes. Por outro lado, também nãoé totalmente in- tempo caiu os seusesquemasé uma estrutura de princípios para a diferencia-
compreensível que isso não tenha acontecido até aqui com a necessáriami- ção de diferentes âmbitos de ser", ou bem, contudo, o tempo é uma "caracte-
nucjosidade e precisão. Com alguma razão, a recusa heideggeriana à publi- rística de lml meio no qual pela primeira vez pode haver uma estrutura de
caçãoda terceira seçãode STpode ser interpretada como um fracassode sua princípios, e (...) a imaginação <constrói, G.F.>-se historicamente de lml
antiga HilosoHiado tempo. Ao que parece, a concepção da "temporalidade modo tal que universais criados a partir da fantasia precedem em seu enrai-
tal como é desdobradaem Senão é suficientemente resistente para permitir zamento mundano vital (...) os conceitos abstratos".2 Se essaé a alternativa
uma elaboração dos problemas que Ihe são exigidos e para garantir a funda- característica para o ponto de partida de ST, então a antologia fundamental
mentação,visada para a segundaparte da obra, da tradição HilosóHlcaque vai heideggeriana não chega a passar"do tempo como estrutura de princípios
de Kant e se estende para além de Descarnes até Aristóteles. Ao contrário. a para o tempo como o meio para todo estabelecimento de princípios; a partir
partirde algtml momento de 1927, Heidegger pareceter chegado muito mais da historicidade do meio para a construção de antologias, ela não consegue
à opinião de que a tradição filosófica não pode ser fundamentada em um con- apreendero que diz propriamente o discurso acercade princípios e de esque-
ceito de temporalidade originária, mas só se deixa compreenderpura e sim- mas dirigentes".3 Em outras palavras, Heidegger não tem sucessono passo
plesmente como "história do ser"; e isso significa antesde tudo: como histó- que vai de uma filosofia do tempo para o tempo da filosofia. A questãoé que
ria do "esquecimento de ser". Esse fato parece falar uma vez mais en] favor nãose precisa concluir daí que o conceito de uma temporalidade pensadaes-
da tesede que o interesse heideggeriano pelo tempo precisa ser interpretado
desdeo princípio como um interessepela história e pela historicidade lio 'Gadamer. Herdade e /né/odo ÍGesa/PZ/}!e/re
Mer#e / Obra conjunta 1), p. 258
'Põggeler(1982),p.479
3Põggeler(1982),p.480
'1

250 Günter Final Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 251

quematicamente é e//zs/ aporético. Heidegger só cai eill aporia porque super- gera de início um certo desconcerto. Em meio ao regressocaracterístico da
dimensiona esseconceito, e, como ele mesmo o viu, foi-lhe necessáriauma suposição, Heidegger parece chegar a fenómenos sempre "mais originá-
reorientação em meio à tentativa de pensara tempo da filosoHla. Essa reo- rios", e, com isso, não estar mais absolutamente em condições de alcançar
rientação não precisa ser, contudo, equivalente a um distanciamento da con- lula determinação exata do que é, animal, um f'enâmeno originário. A ques-
cepção da temporalidade. E, se um tal distanciamento não é necessário se- tão é que, como fteqüentemente se dá na nllosonia, a rigidez lingüística não
permite sem mais a conclusão de que há aqui lmla confusão de idéias. SÓse
gundo a coisa mesma, então também não sepode avaliar simplesmente o que
Heidegger denominou a "virada" em seu pensamento como uma transfor- teria a ver aqui cona lmaa confusão de idéias se a pergunta sobre o "fenõmena
mação de seu ponto de partida. Como ainda se mostrará, a "virada" não é aindamais originário" que deve "suportar" a unidade e a totalidade do "cui-
nada além de uma redirecionamento para uma discussão da liberdade que dado" fosse uma pergunta ontológica no mesmo sentido que a pergunta so-
não desmente a liberdade tal como foi apresentada até aqui, mas que é coe- bre essaestrutura mesma. Uma outra observação heideggeriana concernente
rente com a sua apresentação em ST. O pensar heideggeriano permaneceu ao problema da originariedade mostra que esse não é o caso. "Como totalida-
até o flm um pensar da liberdade, e, igualmente, um pensardo tempo. A fim dearticulada, a totalidade originária da constituição do ser-aí", assim encon-
de que possa ficar claro como é preciso compreender esseestado de coisas. é tramos formulado, "não exclui a (...) multiplicidade <de fenómenos/ G.F.>.

preciso se inserir inicialmente na concepção da temporalidade. Somente em mas, antes, requer algo desse género. A originariedade da constituição onto-
sintonia com essa concepção é possível conceber o que diz a diferença entre lógica não equivale à simplicidade e unicidade de um derradeiro elemento da

temporalidade" e "tempo". A pergunta sobre "Tempo e ser" pressupõea construção.A origem ontológica do serdo ser-aí não é 'menor' do que o que
pergunta sobre "Ser e tempo emergedela. Ao contrário, essaorigem o sobrepuja previamente em poderio
e todo 'emergir' no campo ontológico é degeneração" (ST, 334). De acordo
relnporaiidade com essassentenças, ter-se-á de diferenciar inicialmente entre a "originarie-
dade da constituição ontológica" e a "origem do ser do ser-aí". Se se liga
Os problemas que são discutidos nas passagens filosófico-temporais de agoraao primeiro termo a observação de que todo emergir no campo ontoló-
Ser e re/npo pertencem ao contexto da análise do ser-aí pré-ontológico. Se- gico é degeneração, então se pode dizer interpretando Heidegger: tudo o quc
gundo as interpretaçõeselaboradas até aqui,já é mais do que compreensível comocaracterísticasingular do ser-aí e do ente dotado dessemodo de ser
que a estrutura do "cuidado" tenha caráter temporal. Porsi só, essefato mes- pode se tornar tema permanece, em última instância, inconcebido se não for
mojustifica e requeruma''repetição da análise existencial"(Sr, 331) na qual visto no contexto da estrutura do "cuidado. Assim. ante todas as característi-
os aspectostemporais implícitos da estrutura do ser-aí devem ser expressa- casparticulares, essaestrutura se mostra como originária. Etll contrapartida,
mente desenvolvidos. Com lml tal esclarecimento de eleillentos implícitos apergunta sobre a"origem do ser do ser-aí" visa ao começo e à possibilidade
das determinações analítico-existenciais, porém, ainda não se exaure a re- do ser-aímesmo, não à relação de características singulares com sua estrutu-
quisição sistemática que Heidegger coloca para si mesmo em sua discussão ra. Além disso, a alusão à determinação platónica da "ideia do bem", da qual
da temporalidade. O que interessa a Heidegger é muito mais comprovar a es- se diz que não é o ente em sua essência, mas que é para além dessa essência,
tnitura do "cuidado" não apenas em sua "totalidade", mas, para além disso, sobrepujando-a em dignidade e poder (obx obaíaç 6v'toç Tob àTa+oi3,
em sua "unidade". Pois assim é sua ideia, a totalidade do cuidado, ou sqa, ser
aÀX'éTL
€ cxcLva rTIÇoinÍaç Kpcal3cíqxai 8uvápcl bxcpéXovTg;/J?e-
precedendo a si mesmo como poder-ser para um comportamento e em res- pzíb//ca, 509b), iltmlina o fato de que essa origem não é do modo de ser do
posta ao ser iminente, é sempre ainda "articulada"(S7', 3 17), a saber, articu- ser-aí e tampouco é apreensível derradeiramente nas determinações desse
lada nos diversos aspectosdo ser-possível na abertura do ente. do ser imi- modo de ser.
nente e indetemainado e do comportamento mesmo.
Agora a coÚugação da "idéia" platónica "do bem" com a concepção llei-
Essaarticulação da estnitura do "cuidado" é, agora, o "indício fenome- deggerianada temporalidade parece ser feita antes para criar uma série de
nal de que a pergunta ontológica ainda precisa ser impelida mais além parao novos problemas do que para resolver o prol)lema mencionado sobre como
realce de lml fenómeno ainda mais originário que suporta ontologicamente a pode ser pensada a origem do ser-aí. Essa suspeita não acomete apenas por-
unidade e a totalidade da multiplicidade estrutural do cuidado"(ST, 196). que Tti nÀ(íxuvoç &Ta+óv já é na Antigiiidade um sinónimo de questões no-
Seguramente, esse discurso acerca de lml "fenómeno ainda mais originário
252 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 253

toriamente obscuras.' Além disso, o próprio Heidegger retirou mais tarde d ximamente extenso no espaço e no tempo, os pa+lW.CE'ta são as idéias. Certa.
apelo reiterado a Platão em seu ensaio sobre "A essência do fundamento" e mente, não é possível nem tampouco aconselhável tentar empreender no pre-
napreleçao sobre os "Problemas fündanlentais da fenomenologia". lssgestá sentecontexto uma interpretação detalhada das idéias platónicas. Devem ser
sunicíentesalgumas indicações que podem ser colocadas sobre a base estreita
do texto da Po///e/a que é relevante para a pergunta sobre a idéia do bem . Intér-
pretesde Platão que não têm interesse en] lmla simples repetição da crítica
devia ser mesmo natural articular diretamente as observaçõesligadas a S7 aristotélica a Platão compartilham normalmente entre si a convicção de que as
que estão presentes na Ca//a sobre o bz//na/7/s/zzo
com a proximidade a Pla- idéias não são, de maneira alguma, objetos de um mundo metafísico a ser dife-
tão no ensaio mais antigo, transformando-as en] argumento para o seu ponto renciado do mundo aparente. Todavia, "com o mero asseguramento de que as
departida aporético. SeHeidegger diz que ele mesmo reteve a terceira seção idéias não são nada olÜetual, ainda não se alcançou evidentemente muita coi-
da primeira parte de ST, a seção que versava sobre "Tempo e ser", "porque o sa".' A fim de prosseguirmos aqui, podemos nos orientar pela circunstância de
pensarfracassouno dizer suficiente dessavirada e, assim, não foi adiante que a toda idéia "corresponde no âmbito da linguagem um predicado",' fmtifl-
com a linguagem da metafísica" (OC 9, 328), então a simples circunstância cando a diferença entre o emprego de um predicado e de sua tematização para
de que P/a/ons ZeA/'e von der Wa/zrAe// (A doutrina platân ica da verdade) e a uma interpretação das idéias. De acordo com uma tal interpretação, as idéias
Car/a sobre o Àtr//7a/7ü/lzose com pertencem rigorosamente quanto ao conteú- sãoo que é sabido em meio ao emprego de um predicado e, em geral, em meio
do e foram mesmo publicadosjuntos sugere que se tem em vista aqui inicial- a todo sabernão-proposicional. Assim, o que Platão tem em vista com o tempo
mente, pela expressão"linguagem da metafísica", a linguagem de Platão.e "idéia" pode ser antes de tudo explicitado cona clareza em uilla análise das di-
mais exatamente,seu discurso sobre a idéia do bem. Todavia, é inteiramente versas "formas do saber". Se se compreendem as idéias dessa maneira a partir
questionável se Heidegger tem razão com a sua interpretação, ou seja, seele de sua fiinção, então uma de suas características, tmla característica que tam-
tem razão em acreditar quejustamente a partir das passagens sobre a idéia do bém é sempre uma vez mais acentuada nos textos platónicos,7 recebe especial
bem é possível ler a mudança na essênciada verdade, a mudança que consti- atenção; a saber, o fato de, diferentemente dos objetos que aparecem no espa-
tui a metafísica. Uma vez que essapergunta pertenceao contexto da proble- ço e no tempo, as idéias serem umas;toda idéia é una e só aparece por toda parte
mática da verdade e diz respeito à compreensão heideggerianada "metafísi- como múltipla por meio de sua comunidade com açõese corpos, assim como
ca'' e à sua concepção da história do ser, ela pode ser inicialmente obliterada. por meio da comunidade das idéias entre si(abtà »êv gv gxaaTov eLval, 'rTI
Em contrapartida, temos de reter o fato de, em meio à elaboração deST, Hei- 8ê tuv xpátcuv xat aupávuv xal àÀÀl$uv XOLVovÍa avxaXou (pcEVTa-
degger não ter considerado as passagenscorrespondentesapenascomo não tópcva TroÀÀd(pcEÍvca al gxaaTov/ RepzÍÓ//ca476a5-7). A intuição que se
problemáticas, mas ter até mesmo acreditado poder remontar a elas para a encontra na base dessa determinação é fácil de ser esclarecida: se é paradigma-
pergunta sobre a unidade que "suporta" a estnihra do "cuidado". E se ele tem ticamenteem razãoda idéia dojusto que se podedenomhlar ':justos" lmla plu-
razão com isso, então também precisa ser possível tomar claro o s/a/z/sonto- ralidade de modos de comportamento, que de outra forma se mostram como
lógico da temporalidade em sintonia com Platão.
diversos, então isso se dá porque essa idéia é lml ponto de vista unificador
A pergunta sobre a idéia do bem é introduzida por Platão no contexto de compreendido de maneira não temática que permite pela primeira vez buscar
uma determinação da filosofia e é discutida em meio à famosa sequência da modos de comportamento dotados de lmla respectiva constituição. O fat(J de,
alegoria do sol, da alegoria da linha e da alegoria da caverna. Essadiscussão segundo Platão, se ter a ver na filosofia com um saber acerca das idéias mesmas.
tem início ao se exigir dos candidatos para a HilosoHia
que façam õ'ente tam- também não significa, então, que se tenciona alcançar uma classe particular de
bém ao que de maior pode ser sabido ('td pérLaTa pa8llp,aTa/ RepzÍÓ//ca objetos. Ao contrário, significa muito mais: que aí se esclarece efetivamente o
503e4). Essa idéia implica que a fílosoHia como tal tenha a ver direta e expres- ponto de vista unificador scm o qual intencionar objetos é impossível
samentecom o quehá parasaber,os pattÜ.aTa. No entanto, em oposição ao
que só pode ser visado, em oposição aos objetos que aparecem em sentido ma-
'Wieland (1982), p. 100
'Wieland (1982), p. 101
'Cf. Adanl ( 1963), Comentário à Repúó/fca 505a
7CI. a indicação das passagensem Wieland ( 1982), p 141
254 Günter Fígal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 255

aparência; aqui sempre se busca muito mais o que é realmente bom (àTa+(i
8ê oiÚcvi Í'tl àpxci 'td &)xoi3vTa x tãa.8ctl, àXÀd Tà Óvla !n toi3aLV/ J?e-
pzíb//ca, 505d7). Mais além, diz-se do bem que ele é isso ao que toda e qual-
quer alma aspira e em virtude do que elas fazem tudo o que fazem G6õâ
8LÓxcl pêv ã aaa +uxâ xaÜ 'toÚtou gvcxcl xávTa lrpáucl/ RepzÍÓ//ca.
505dl l-el). E possível tomar as duas observaçõesinteligíveis a partir de
uma breve reflexão sobre o emprego do termo "bom'' em declaraçõesde in-
tençõese sentençassimilares: quem pretende se comportar de lula detemli-
nada maneira não pode deixar de aceitar essen)odo de comportamental dito
de outro modo, ele precisa toma-lo por "bom", e, por isso, também é impos-
sível para ele querer apenas aparecer em seu comportamento como "bom:
Nessemodo de emprego, "bom" é un] pred/Gado va:/o que nunca caracteriza
senãoo que é querido como tal e que é, assim, carente de complemento por
meio das informações sobre em que aspecto se quer compreender lml com-
portamejlto como "bom". Todavia, não é mesmo decisivo para a significa-
ção dc bom se lml modo de comportamento é denominado "bom" por estar
ligado a comodidades, por serútil para alguém mesmo ou porser compatível
com as intenções e desejos de outros. Além disso, somente quanto às respec-
tivas explicitações do que é "bom" podemosiludir tanto a nós mesmo quanto
aosoutros, e somente porque pode haver incerteza em vista dessasexplicita-
ções são possíveis discussões sobre o bom comportamento e, no todo, sobre
a vida boa.
Decisivo parao curso de pensamento daPo///e/a é. então, o fato de o ter-
mo "bom" não ser empregado apenas para a designação do que é aspirado
como tal, mas também e antes de tudo para a designação do que há para sa-
ber. lssojá estápor si só fundamentado por intermédio do caráter intencional
do saber, lml caráter pelo qual Platão se orienta aqui: abstraindo-se do q?rea
cada vez é sabido, nunca há saber senão em ligação a algo passível de se sa-
ber; e esse algo pode, uma vez que é acima de tudo algo passível de se saber,
ser designado "bom"; ele é bom na medida em que, como um ente verdadei-
ro, isto é, constante, é próprio para ser sabido. Trata-sejustamente disso quan-
do se diz que o que é passível de se saberé em sua verdade(àXÓ+cta) dg tipo
do l)em (àTa+ocL8llç/ Repzb//ca, 509a3). Enquanto o termo àÀã+CLctse
mostra como um termo para a presença do ente no que ele é, esse ente é do
tipo do bem apenaspor meio de sz/a/2rese/vçaco///o /a/, ou seja, pelo fato de
haver essa presença como oinía e de o saber estar ligado constitutívamente a
ela. A presença como tal é comum a tudo o quc é passível de se saber. Dessa
feita, ela é comlml a todas as idéias, e, nessa medida, o bem Forma o ponto de
vista unificador das muitas idéias. Ele é o ponto de vista unificador das mui-
tas idéias porque essassão pensadasem sua comum-pertencença çom o sa-
256 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 257

todo como o que impera por meio dessetodo; e, do mesmo modo que para
ber; dito com a metáfora de Platão, o bem é ojugo (tuTóv/ Rept?ó//ca, 508a l)
no qual se encontram tensamentereunidos o saber e o que é passível de ser platão, o começo e o fimdamento do todo também não podem ser para Hei-
sabido. Com isso, fica claro em que medida o bem também pode serchama. deggernada temporal. O fato de o começo e o fundamento não serem nada
do, por um lado,'L8éa, e, não obstante, ante todas as outras idéias, ter uma po- temporalsignifica agora,aliás, que eles sãoo próprio tempo. Com certeza,
sição especial: como todas as outras idéias, ele é em verdade um ponto de Heidegger não liga a Platão apenas a pergunta sobre um começo e por lml
vista unificador; no entanto, o predicado correspondente na linguagem a fundamentoderradeiros, desprovidos de pressupostose se encontrando para
esseponto de vista unificador não é de tal modo que se poderia caracterizar além do ser. Ele também continua seguindo Platão na exposição e na condu-
com ele os objetos que aparecemno espaçoe no tempo em uma determina- ção dessapergunta, tal como é apresentada na alegoria da linha. Nesse caso,
da constituição ou especifica-los no que eles são. Com a designaçãodo a análisedo ser-aí assume uma posição comparável com a tematização filo-
bem como uma idéia só se cai em dificuldades se se supõe que somente tais sófica das idéias. Em uma tal análise, a estrutura do "cuidado", que é passível
deserdescerradana perspectiva pré-ontológica do ser-aí de maneira própria,
predicados podem corresponder a uma ideia, não se levando en} conta que
o caráterunificador de lmla idéia não precisaconsistir emtornar um objeto mas que permanece de qualquer modo não conceptual, é trabalhada pela pri-
acessível em sua configuração ou sintetizar lmla multiplicidade de objetos meira vez. Dito de outra forma, o que é trabalhado é a diferença da lil)erdade,
sob o ponto de vista de uma determinadaconstituição. Juntamentecom Q transparente na decisão de maneira apenas não conceptual. Entretanto, o ca-
fato de corresponderà idéia do bem na linguagem, um predicado vazio ráter não conceptual da decisão não consiste no fato de os elementos estrutu-
mostra-se uma de suaspeculiaridades ulteriores. Não se poderá dizer, com rais do ser-aí que se tornaram tema em sua análise não serem apreendidos
Platão, que ela é conhecida. No âmbito do que é passível de saber, a idéia como tais; não-conceptual permanece, além disso, o caráter temporal do
do bem é muito mais o que há de derradeiro: ela quase não é vista como tal ser-aímesmo. Como Heidegger quer mostrar, o que se denomina cotidiana-
/) 'v 'Y q / r #h#\ n"+qn/ b + . #-U

(êv 'tW Tvua'ty TeXcu ruía h toú àTa+oi3 'L8éa xaü p.óTLÇ bp&a+al/ Re- mente "tempo"já não é a temporalidade do ser-aí. Na decisão, nós nos enten-
ptíb//ca, 5 17b8-cl). Para expressar sua posição especial, Sócrates também demos temporalmente, e, em verdade, de lmla maneira mais própria à consti-
diz que ela é "tocada" (fíwTCTat/ Repzíó//ca. 5 1 1b4), e esse tocar é clara- tuição temporal do ser-aí do que na inlpropriedade. Não obstante, não se
mente diverso do saber. Essa diferença torna-se distinta na interpretação compreende a constitu ição temporal do ser-aí mesmo. Nesse aspecto, a deci-
dada por Sócrates da alegoria da linha. O filósofo, assim ele o expõe, não se sãoé similar à perspectiva do matemático na alegoria da linha, que não tem
diferencia do matemático e dos cientistas que são comparáveis ao matemá- expressamente clareza sobre as idéias que formam as pressuposições de seu
tico apenas porque ele torna expressas para si as idéias como tais, enquanto fazer, nem tampouco, com maior razão, sobre o ponto de vista unificador in-
os cientistas lidam com as idéias sem prestar contas efetivamente sobre trínseco às idéias. Essa comparação só concerne inicialmente à limitação da
elas. Ao contrário, o sal)er expresso das idéias forma para o filósofo apenas perspectiva, uma liJllitação que é característica tanto da decisão quanto do
o ponto de partida da ascensão(êxÍl3aaLÇ/ Repzíó/fca, 5 ll b6) até a idéia do matemático platónico. Mesmo se se ofuscar a pergunta sobre se o que é sabi-
bem. Para ele, as idéias são pressuposições
verdadeiras('tÕ 6vTt do nadecisão também pode ser tomado como idéia,já bica claro, de qualquer
bvotéactç/ RepzÍb//ca, 5 ll b6) porque ele não as apreende como o começo modo, que não se pode tratar aqui de idéias no mesmo sentido de Platão.
auto-evidente de seu fazere deixa esse fazer ser determinado porelas. Par- Como Heidegger pensao tempo como começo e fundamento do todo, a deci-
tindo delas, ele se empenha muito mais em se encaminhar para o começo e são insigne ante a auto-evidência cotidiana não é nenhtml modo de c»apre-
para o fimdamento do todo, lmacomeço e um fundamento desprovidos eles ensãoindependente, que se encontra um passoalém do tempo e é orientado
mesmos de pressupostos (íva péXPL Tou àvuvo+éTou ê i TTlv tou xav- pelo constante, pelo que permaneceduradouramente igual a si mesmo. Tal
Tõç àpXTlv 'Lóv/ RepzÍb//ca, 5 ll b6). Somente na medida em que o filósofo como se mostrará, a decisão é muito mais caracterizada por ser histórica, en-
dá esse passo êxéxetva 'tÚç obaíaç, ele está em condições de ver o âmbito quanto o que está em jogo na auto-evidência cotidiana é ao menos relativa-
da obaía -- as idéias -- em sua unicidade. mente constante e dotado do caráter de mesmo. Exatamente como a xíaTLÇ
A partir dessa caracterização da idéia do bem, pode-se ver o motivo es- em Platão, a auto-evidência cotidiana orienta-se em verdade pela empina.
sencial para a articulação de Heidegger com o pensamento platónico: o que Não se trata, porém, de uma orientação pelas coisas que vêm imediatamente
está em questão para ele tambén] é pensar TI toi; Kav'tlàç àpXrl, o começo do ao encontro. Ao contrário, o que temos aqui é muito mais uma orientação
258 Gúnter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 259

pela significância. Somente porque a significância está sempre articulada que a estatura do "cuidado" chega pela primeira vez a ser do n)odo como é;
também se precisa determinar a sua relação conaa aparência de uma maneira exatamente como uma elocução lingilística só chega a ser mais do que uma
diversa da relação da lríarlç çom a c'LxaaÍa. Se se compreendem as ima- ocorrência acústica por meio de seu "sentido". Mantendo-nos no mesmo
gens (dLxóvcÇ)correspondentesà c'Lxaaía como asopiniões sobre as coisas exemplo, é possível tornar plausível em que medida o sentido não é "consi-
formuladas na linguagem, então a xÍarLÇ é superior à e'LxaaÍa pelo fato de derado expressa e tematicamente". O sentido de uma comunicação consiste
se diferenciarem nela opiniões expostas e coisas mesmas, e, por isso, o cara. em dar uma informação de lmi tipo qualquer para alguém, e justamente isso
ter a princípio ilusório das opiniões ser visualizado. Em contrapartida, a au- permanece sem ser considerado no respectivo falar atual; faz-se simples-
to-evidência cotidiana, exatamente por causade sua orientação pelo que é mente um comunicado e não se reflete normalmente em que contexto esse
constante,pela constância do comportamento, semprejá é também uma ori. comunicado possui o seu valor conjuntural e é. em geral, possível como tal
estação pelo falatório. O falatórío não conseguegarantir a constância cor- A enunciaçãode lmaaproposição, assim como a sua compreensão,já sempre
rente em direção à qual nos encaminhámoscotidianamente e também é ex. se retêm em lml contexto que faz com que a proposição sda pela primeira
perimentado então nessasemblância,* quando nos orientamos pela aparên- vez "dotada plenamente de sentido". Visto dessa forma e tomado estrita-
cia. Essa experiência da aparência não tem, contudo, o caráter de uma inte- mente, não é a proposição que é compreendida. Ao contrário, o que é com-
lecção libertadora, mas, ao contrário, sempre coloca novamente em curso a preendido é muito mais o sentido da proposição. Se se transpõe esseestado
mobilidade da decadência de coisas para o contexto da análise do ser-aí, então o "sentido" é o correlato
A possibilidade de projetar a concepção heideggerianaem sua constru- do compreendertomado existencialmente. Portanto, ele é o ser indetermina-
ção sistemática sobre Platão vem ainda m?is claramente à tona quando a do e iminente tanto quanto as possibilidades de comportamento simples-
temporalidade mesma é interpretada de maneira mais minuciosa. De início mente apreendidas.Se Heidegger quisessedizer isso, porém, ele também te-
o que está em questão é antesde tudo mostrar como Heidegger pode efetiva- ria podido abdicar da introdução do termo "sentido", e, com maior razão ain-
mente apresentar para a sua discussão da temporalidade a requisição de que da, não poderia afirmar que a temporalidade é o "sentido do cuidado". O
nela seja demonstrada a estrutura do "cuidado" em sua unidade. Na discus- 'sentido" não pode ser simplesmente o correlato do compreender tomado
são da temporalidade, trata-se de tornar compreensível os três aspectosda existencialmente, sem que se conseguissever de imediato como se poderia
estrutura do "cuidado" em sua consonância: o ser-possível na abertura do diferenciar ainda uma vez o "sentido" dessecorrelato.
ente,o ser iminente eindeterminado, assim como o comportamento determi- Heideggerviu essadificuldade e, por isso, introduziu uma diferenciação
nado. Uma vez que os aspectosdenominados são aspectosda liberdade em que certamentetambém pode induzir lmla vez mais a erro. Paraapreendera
sua diferença, a fenomenologia heideggerianada liberdade em sua diferença significação específica do termo "sentido", ele diferencia entre "projeto" e
também só chega, consequentemente,à sua finalidade com a discussão da 'prometoprimário": "Sentido significa o 'em vista de' do prometo
primário a
temporalidade. Tanto a liberdade quanto a não-liberdade no ser-aí precisam partir do qual algo pode ser concebido em sua possibilidade como aquilo que
ser concebidas em sua constituição temporal, paraque a suacomum-perten- é. O projetar descerrapossibilidades, ou seja, descerrao que possibilita" (ST,
cençapossaser realmente compreensível tal como é levada em conta na se- 234). As coisas encontram-se aqui como se um projetar ainda residisse na base
gunda fórmula para a estrutura do "cuidado' do compreendertomado existencialmente, um projetar no qual se descerrao
Na medida em que a temporalidade cunha o ponto de vista unificador que possibilita pela primeira vez o compreendertomado existencialmente; e é
para essacomum-pertencença,Heidegger fala da temporalidade como o fácil ver que essaé uma idéia insustentável: como um modo do descen4men-
sentido do cuidado"(Sr, 323). "Sentido" é isso "no que seretém a conlpre- to, não há nada para além do compreendertomado existencialnlente, e, nesse
cnsibilidade de algo, sem que essealgo mesmo seja considerado expressa e sentido, ele taml)ém é "primário". Mas Heidegger tampouco quer contestar
tematicamente" (ST, 324). Desta feita, a temporalidade é isso por meio do isso. Quando diz que algo pode ser "concebido" a partir do "em vista de" do
prometoprimário, ele parecequerer muito mais fundar a interpretação existen-
H

Estou me valendo aqui de uin neologismo criado por Hannah Arendt eln seu .4 v/da do esp/f//o cial mesma em lma projetar; tal idéiajá é efetivamente familiar a partir do con-
para caracterizar o modo de ser da aparência. O tenho alemão Sc/rer/i/i({á/íg#e//vai plenamente texto do ser para a morte "projetado" existencialmente. Essatambém não é,
ao encontro desseneologismo, uma vez que designaliteralmente o caráterdo que é aparente certamente,lmla idéia isenta de problematicidade. Com efeito, se se dissesse
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 261
260 Günter figa

que na hlterpretação existencial se apreendealgo diverso do que se apreende toma esse saber intuitivo e o que é sabido com ele como hipóteses verdadei-
no ser-aí pré-ontológico, a saber, não apenas o ser iminente possível, mas.yo ras para a ascensão até a idéia do bem, o ontólogo-existencial pensa o prq eto
que possibilita", ter-se-ia rethado o solo para a interpretação existencial mes- do ser iminente em vista do que esse projeto Ihe dá. O saber do matemático é
ma. Como interpretação do ser-aí pré-ontológico, ela só pode consistir em dar 'primariamente" um apreender, e, como tal, pode ser interpretado Hilosofica-
voz ao que é sem mais apreendido no ser-aí pré-ontológico; e apenasporque mente. No entanto, ele não pode ser experimentado desse modo na atividade
isso é assim, ela é em geral identificável. Vista assim, a interpretação existen- matemática. Nessa atividade, o VOCLVse modifica e se torna um 8Lavoctv.
cial envolve em verdade o prometono sentido do compreender tomado existen- Da mesma forma, o projeto existenciário do ser iminente mesmo que sela
cialmente, mas éjustamente esseprojeto que nela é tomado de modo concei- enl meio à negação -- permaneceligado ao comportamento. Nessa negação
hial. Com isso, a diferenciação entre "projeto" e "prometoprimário" também é não está, certamente, fechada a diferença entre os projetos e o comportamen-
pouco plausível segundo esse aspecto. De maneira diversa da que Heidegger to, por um lado, e o ser iminente, por outro. Nisso também reside uma vez
pensa, liberar "o 'em vista de' de lml prometo" não dizjustamente "descerrar o mais uma analogia com o matemático, tal como Platão o pensa: o matemãtt-
que possibilita" (ST, 324): não se pode "descerrar" nada que já não estivesse co pode diferenciar os números e figuras ideais sabidos intuitivamente dos
descerradopré-ontologicamente. Liberar "o 'em vista de' de um prometo"diz números e das figuras visualizadas.
apenas transformar o proaeto pré-ontológico em tema e não secomportar sim- Mas a pergunta sobre a possibilidade do ser-aí, sobre o que significa o
plesmente nele, na medida em que se profeta lmla possibilidade como resposta fato de haver ser-aí, é, sem dúvida alguma, em um aspecto mais complexa do
ao ser imhlente. Assim, o seriminente não é mais considerado somente sob o as- quea perguntado diabéticoplatónico sobre a idéia do bem como ponto de
pecto de seu caráter de resposta possível, mas pode ser questionado em seu cará- vista uniHcador das idéias en] sua acessibilidade. Enquanto a idéia do bem
ter específico de possibilidade. Todavia, o ser iminente só é possível de tal modo como esseponto de vista unificador não pode ser senão "tocada", o "senti-
:queo ser-aípossa c//zgera/vir a si mesmo em sua possibilidade mais própria, e, do" pensadotemporalmente do ser-aí ainda é articulado. Se a temporalidade
deixando-se vir a si, suporte a possibil idadecomo possibilidade, isto é, exista. O deve perfazer, aHuaal,a unidade estrutural do "cuidado", é importante questio-
deixar vir a si que sustém a possibilidade insigne e nela deixa vir a si mesmo é o nar essaarticulação em vista de sua unicidade. Antes, contudo, o sentido do
fenómeno originário do Rituro" (Sr, 325). Se Heidegger diz que se"pode" vir a ser-aí deve ser discutido em sua articulação, para que a requisição ontológica
si mesmo no ser-aí, então o que se tem em vista com esse"poder" é que há no feita por Heidegger com sua concepção possase tornar clara em suajustiüi-
ser-aí o ser iminente em geral. Se se quiser tornar compreensível o discurso cação ou em seu caráter problemático. Ajustificação dessa requisição não e
acerca de um "prometoprimário", então pode-se acrescentar aqui: "primário" em última instância óbvia, pois não se conseguirá afirmar seriamente que a
não é um prometodo fiituro que ah)da precisaria ser uma vez mais diferenciado teseheideggeriana já citada uma vez de que a temporalidade não pode ser
de um prometodo ser imhlente; "primário" é muito mais o prometodo ser iminen- compreendida existenciariamente, mas apenas concebida em uma interpre-
te mesmo porquanto ele descerraa partir do que possibilita, portanto, a partir do tação existencial, é elucidativa logo à primeira vista. A experiêt)cia de futu-
futuro. "Futuro" não é aí algo no qual o ser iminente se dá. Ao contrário, ele é ro, por exemplo, assim poder-se-ia objetar, continua sendo sempre algo intei-
pura e simplesmente a acessibilidade do ser imhlente mesmo. ramente cotidiano. Sem dúvida alguma, essa obj eção é comparável à tentati-
A relação entre "prometo" e "prometoprimário" corresponde consequen- va de relativizar a significação ontológica da ideia platónica do bem.conaa
temente ao duplo papel das idéias, tal como Platão aspensa na alegoria da li- indicação de que também se poderia usar o termo "bom" na linguagem cor-
nha. Nesse caso, também seria equivocada a opinião de que o matemático e o rente sem qualquer problema« E inquestionável, porém, que nem o uso plató-
filósofo teriam a ver com idéias diversas. Quando o filósofo inicia seu traba- nico de "bom". nem o uso heideggeriano de "futuro" são equivalentes aos
lho com uma caracterização do saber matemático, as idéias são as mesmas. modos cotidianos de emprego dessestermos. Por isso, no que diz respeito a
A diferença entre matemática e üilosoüiareside apenasna função a cada vez Heidegger,carece-sede lula clarificação do uso filosófico de expressões
diversa que as idéias possuem como hipóteses. Assim como para o matemá- orais em contraposição ao uso cotidiano. Já em meio à exposição do
tico o saber intuitivo dos números ideais e das figuras geométricas é o ponto futuro", bica claro que o que está em questão para o próprio Heidegger é
de partida para os seus cálculos, o prometo do ser iminente é o ponto de parti- lula tal clarificação. O "futuro", assim ele o diz, "não visa aqui a um agora
da para a existência própria. E do mesmo modo que a dialética platónica que ainda não se tornou 'real' e que somente será real um dia" (ST, 325).
V

Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 263


262 Günter figal

Além disso, o futuro é efetivamente exposto a partir de um recurso à decisão. sentiHlcar"; e esse presentificar un\a vez mais é específico do "captar em
meio à ação". Por conseguinte, não se presentiHica algo quando se constata
A experiência temporal cotidiana deve ser mostrada como "derivada" do
tempo originário" (S7', 329), e se a cotidianidade é determinada primam:ia- justamente em que medida ele a cada vez alcançaa sua presença.Uma tal to-
mada de referência a algo pressupõe muito mais que o "presentiHlquemos
mente por meio do falatório, então pode-se supor que esse caráter derivado
Algo se torna "presente" no momento em que vem justamente ao encontro e
também tem algo a ver com o modo como se usa cotidianamente termos tem-
na medida em que ainda não tinha vindo antes ao encontro. Em sintonia com
porais.
Do mesmo modo como Heidegger não fala de ftJturo em um sentido co- Heidegger, não se pode interpretar com isso o "presente", no sentido da pre-
tidiano, ele também não fala de passado e presente de uma maneira cotidia- sença duradoura de algo como quer que se precise pensar essapresença. Ao
na. Ele evita até mesmo totalmente o termo "passado", no qualo que estáem contrário, é preciso toma-lo pelo começo de um determinado comportamen-
to. "Presente" é a acessibilidade do que há de determinado no comportamen-
jogo é a temporalidadedo ser-aí,introduzindo em seulugar o termo "passa-
to, uma vez que ele é descoberto "no instante:
do essencial".90 passadoessencialé discutido em sintonia com a "assunção
De acordo com a interpretação desenvolvida até aqui, os três tempos
do caráter dejogado"(ST, 325), e, nesse caso, é impossível deixar de ouvir as
ressonâncias com o "perfeito apriorístico" da liberação do ente. "A assunção temporais, "futuro", "passado essencial" e "presente", mostram-se conso-
nantesno fato de que eles dão a cada vez a compreender a "acessibilidade
do caráter dejogado" deve significarjustamente: "ser propriamente o ser-aí
sob um certo aspecto.Essajá é uma razão para falar aqui de um "fenómeno
no modo co/lzo e/e se/np/'e a cada ve;./á era" (ST, 325), e já sempre se era a
cada vez"aí" na abertura do ente. Também falai favor da hipótese de que se uno" que pode ser então designado em sua unicidade como "temporalidade
trata da abertura do ente em meio ao passado essencial a formulação heideg- (S7, 326). Assim, podemos resumir o que foi dito da seguinte forma: a tem-
poralidade é a luz na clareira do ser-aí; ela é a origem do descerramentoe o
geriana acerca do modo "como o ser-aí sempre a cada vez já era". Esse
como" ligado à estrutura do ser-aí precisa ser diferenciado da determ mação que vigora por meio desse descerramento. Para tornar ainda mais claro como
é que precisamos pensar unl tal estado de coisas, podemos recorrer lula vez
disso qzrejá sempre a cada vez se era. De maneira correspondente à determi-
mais a Platão; e, em verdade, especialmente à alegoria do sol na Po///e/a. Do
nação,tal como essafoi dada pelo futuro, pode-sedizer, portanto: assim
como o "Rlturo" visa à acessibilidade do ser iminente, o "passado essencial" mesmo modo que o sol é ojugo(tuTóv/ Re/2.509al) entre o ver e o visível, e,
visa à acessibilidade do ser fatiga na abertura do ente, o/aro, portanto, de o correspondentemente, a idéia do bem é ojugo que colide o saber e a verdade,
assim também futuro, passado essencial e presente precisariam ser Interpre-
entejá sempre estar aberto para alguém.
tados a cada vez como umjugo, uma conjunção. Com essatentativa de prove'
Exatamente como o futuro e o passado essencial, o presente taml)ém é
ção sobre o pensamento platónico do que está emjogo para Heidegger com a
exposto a partir de um recurso à decisão: "0 ser decidido em meio ao manual
temporalidade, deparado-nos, porém, com algumas dificuldades. Em ver-
da situação, ou sqa, o deixar vir ao encontro na ação do que es/áprese#re no
dade, o que estáemjogo na Po///e/a também não é ajunção de dois momen-
interior do mundo circundante, só é possível em Lmlap/'esenrPcaçâo desse
ente. Somente como presen/e no sentido do presentinlcar, a decisão pode ser tos que são igualmente pensáveis como autónomos: se o ver e o visível têm
'o modo de ser do sol"(hXLocL8lt/ Rep. 509al) e o sabere a verdade são de-
o que é: o deixar-vir-ao-encontrosem encobrimentosdo que ela capta na
nominados como do "gênero do bem" (àTa8ocL8náÇ/Rep. 509a3), então o
ação"(S7', 326). Importante é aqui, inicialmente, a diferenciação entre "pre-
roço se encontrajustamente no fato de que nem o ver e o visível, nenytam-
sente" (Cega/7wa//) e "presença" (.4/7wesenbef/). Enquanto se pode compre'
pouco o saber e a verdade são o que são sem a sua conjunção. O saber aspira,
ender "presença" como um traço característico do que vem ao encontro. o
como tal. à verdade e a "verdade" visa à presença do ente para o saber. So-
presente", tal como Heidegger expressamenteo diz, aponta para um "pre'
mente por causa dessa comLmppertencença constitutiva é, em geral, possível
introduzir o termo "bom" para a designação de sua unidade: assinacomo
9Günter Figas relêre-se aqui à distinção heidcggeriana entre passado ( He/ga/?gen/?efr) e passado toda aspiração tem necessariamente em vista algo como "bom", o saber sem
essencial(Gela esefr/ie/r). Heidegger passou a usar em Ser e /e/npo essesegundo terillo para indi-
a presença é mesmo in)pensável; e do mesmo modo que o que se tem em vis-
car um passadoque permanecevigente no movimento de constituição do presentee de decisão
do hlturo, um passadoque, exatamente por isso, sedifêrcncia radicalmente do passado que pas- ta na aspiração sempre vale de algtmta forma como "apropriado", o ente em
sae que não possui mais nenhumaarticulaçãocom o movimento de temporalizaçãodo tempo sua presença também é apropriado para ser sabido. Com efeito, contudo,
W.T.)

l
264 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 265

tem-se a ver em Platão com dois aspectos de um contexto, dois aspectos que
podem ser respectivamente expressos com uma forma verbal ativq.ou passi-
va. O comum-pertencente
é a percepçãono modo do ver (h''toó bpãv
cf(a-8Tptç/ Rep., 507e6) e a faculdade de ser visto (h toú bpaa8at 8Úya.
ptç/ Rep., 507e6-508el), assim como correspondentemente o que sabe Go
Ít-rv(óaxuv/ Rep., 508el ) e o que vem a ser sabido ('td TLP(Óaxop.cva/ Rep.,
508el). No caso de Heidegger, entretanto, uma tal diferenciação entre dois
aspectos só pode ser levada em conta, na melhor das hipóteses, para o pre-
sente. Todavia, aqui também ela é, no fundo, implausível: se se compreen-
desse o presente como conjLmção do descobrir e do descoberto, então
ter-se-ia de oc\altaro fato de o descoberto como tal não estar absolutamente
presente, mas se mostrar, sim, em sua presença. O descoberto pensado a par-
tir da decisão é o agarrar de uma possibilidade e não se está "coligido" com
suas possibilidades de interpretar o ente; porquanto algo é descoberto em
vista de suas disposições, ele pertence tão imediatamente ao cerne do com-
portamento que só se pode diferencia-lo dessecomportamento em meio a
uma abstração; e não se tem o direito de fazer essaabstração se se quer fazer
justiça ao conceito heideggeriano do presentificar. Com maior razão, é im-
possível diferenciar entre dois aspectos no passado essencial e no fiituro. Em
meio ao passado essencial, o que está em questão não é, de modo algum, a
acessibilidade de um fato determinado dessae dessamaneira para um deter-
minado homem. Ao contrário, o que estáemjogo é muito mais um momento
estrutural do ser-aí mesmo. Exatamente como o ser-aíe o ser indeterminado
e iminente, o ser-aí e a aberüira do ente não se deixam diferenciar. Fazer essa
tentativa significa já estar exposto ao risco de uma oUetivação.
Exatamente essaolÜetivação, porém, assim poder-se-ía pensar, sucedeu
com Heidegger ao dizer: "Futuro, passadoessencial e presente mostram os
caracteresfenomenais do 'em-direção-a-si', do 'de-volta-para', do 'deixar-
vir-ao-encontro' de algo. Os fenómenos do em direção a..., do para.-., dojun-
to a... revelam a temporalidade como o êxcrTavLxÓvpuro e simples. A tem-
poralidade é o 'fora-de-si' originário em si e por si mesmo. Com isso, deno-
minamos os fenómenos caracterizados do futuro, do passadoessencial e do
presente as ekçfases da temporalidade. A temporalidade não é antes una ente
que primeiramente vem à tona a partir de si: sua essência se mostra muito
mais como a temporalização na unidade das eAsrases"(Sr, 328). Nesse caso,
contudo, ficamos tentados a perguntar: ao que é que se liga, an)nal, o "si" da
fórmula "fora-de-si"? De maneira involuntária, o ser-aí não é pensado aqui a
cada vez como uma substânciaem relaçãoà qual pode haver entãolml
fora", e, em verdade, no sentido da abertura do ente, do ser iminente e do
que vem ao encontro? Essasperguntas tornam-se, de qualquer modo, obso-
'n

266 Günter Figal


Martln Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 267

mento'ajunto" ao ente. Desta feita, apesarde o ser iminente ser acessível


"fora" do passado essencial, seu porvir conduz de qualquer modo ao passado
essencial;e, em verdade, de um modo tal que o ser iminente se converte na
facticidade. Por meio dessa conversão, o ser iminente se torna inacessível
pormeio daacessibilidade da facticidade, e isso continuaria assim mesmo se
a acessibilidade da facticidade não se convertesse na acessibilidade do ser
iminente: em seu ser possível, o ser-aí é "para" o ser iminente; esse é iminen-
te em sua indeterminação porque não se acha prelineado nas tonalidades afe-
tivas nenhum comportamento determ inado, e nós temos de nos comportar de
uma maneira determinada a partir das possibilidades que estãopor vir e que
foram simplesmente apreendidas.O fato de nos comportamlos de uma ma-
neira detemairada só é pois ível como conversão do passado essencial em fu-
turo e do futuro em presente.
O que na apresentação linguística parece com lula seqilência não é, em
verdade, naturalmente seqtlência nenhuma. As eAs/asesda temporalidade
são caracterizadas muito mais como tais pela conversão umas nas outras, e,
linguisticamente, só se poderia fazerjus a isso se se abdicasse de uma deter-
minação dos momentos singulares e se se limitasse, como Heidegger mesmo
o faz, a uma formulação como a do "'fora de si' originário em e por si mes-
mo". Essa formulação só se deixa compreender, contudo, se se abdica de
uma determinação dos momentos singulares. Junto a tais limites lingtlísticos
fica novamente claro o caráter metafórico do discurso acerca do caráter cks-
lático da temporalidade: se toda e qualquer alteração é "no tempo", então o
tantemente a entender como o cuidado é acessível em seus momentos. Se tempo mesmo não pode ser nenhtmla alteração; e, apesar disso, é em parte no

SI RI :H:
l:Eã:UHHI
mínimo inevitável atribuir ao tempo caráter de alteração se se quiser f'azer
enunciados em geral sobre ele.
Se reunirmos ainda uma vez as determinaçõesda temporalidade tal
ção. O porvir, o futuro, '' portanto, seria então um porvir que se converte em como foram desenvolvidas até aqui, então podemos dizer: é característico da
passado essencial em dlreçâo a essepassado, e o passado essencial, por sua temporalidade que as suas eAs/asesse mostrem como a acessil)ilidade do
z' se converteria no presente. Se se tentar tornar isso ainda mais compreen- ser-aí sob d/verias aspec/os. Porquanto un] modo da acessibilidade se con-
sível em meio à orientação pelo que está a cada vez acessível na temporal ida- verte em outro, o primeiro é perdido com esseoutro; e ele penllaneceria per-
de, então pode-se dizer: o "em direção a" que é intrínseco ao futuro visa, dido se o outro modo de acessibilidade não fosse, porseu lado, ekstátko. Em
como a acessibilidade do ser iminente, ao fato de esse precisar ser assumido
seu caráter ekstático, todo modo de acessibilidade também é igualmente a
de maneira própria ou imprópria, e ele só pode ser assumido a partir do retirada da aceis/b///Jade. Dito de outra forma e lmla vez mais metaforica-
ser-possível fatiga na aberüira do ente como uma abertura para o comporta- mente, a temporalidade é umjogo recíproco de acessibilidade e inacessibili-
dade. de abertura e fechamento que precisa ser certamente diferenciado do
fechamento no ser-aí. Como esseabrir e fechar, a temporalidade é ela mesma
una. Todavia, essaidéia não pertence mais ao âmbito de problemas de Ser e
re/npo. Ao contrário, ela diz respeito àquele âmbito de Te/27poe se/', e, por
isso, não pode ser desenvolvida agora mais amplamente.
268 Günter Figal
Mártir Heidegger:Fenomenologiada Liberdade 269

;aí' impropriamente. Dito de outra maneira: o presente não pode estar "in-
cluído" apenasde vez em quando no futuro e no passadoessencial. Ao con-
trário, ele sempre precisa estar"incluído" aí; e essa inclusão é o que se perde
de vista em meio à impropriedade. E possível tornar plausível como se preci-
sapensar uma tal perda se nos lembrarmos que o comportamento determina-
do no ser-aí tem ontologicamente o caráter de movimento. Em seu começo, o
movimento só é acessível permeio da conversão do futuro no passado essen-
cial e desseno futuro, o qual, por sua vez, se converte na presentificação de
um comportamento determinado em meio à lida com o ente. Como resposta
aoser iminente e indeterminado, a presentificação do comportamento deter-
minado é em verdade tmla vez mais convertida no futuro. No entanto, o que
se acha iminente com o comportamento pode ser interpretado ao mesmo
tempo como /'ea//dada; e ele precisa mesmo ser interpretado assim, se é que
deve chegar a um projeto determinado em geral. Esses dois aspectos ainda
podem ser diferenciados mais exatamente, na medida em que se diz: como o
lançar mão de um prometo,todo comportamento detem]inado começa, cona
efeito, "instantaneamente". Todavia, só se conquista um prometona medida
em que se antecipa uma possibilidade como realidade iminente. Essa reali-
dade pode ser, então, negada em meio à decisão,junto à qual o caráter instan-
tâneo do comportamento se efetiva uma vez mais. Se o comportamento não
tivesse essa instantaneidade, ele seria impossível. Além disso, Heidegger
mesmo não poderia dizer que o instante deixa vir ao encontro "o que pode ser
'em um tempo' como manual ou como ente simplesmente dado " (Sr, 338).
Em outraspalavras, o movimento do comportamento sempre emerge no ins-
tante, sem que ele só seja acessível como tal instantaneamente. Uma vez que
não é acessível instantaneamente, ele é "intratemporal". Como o emergir do
que é "intratemporal" e como a negação instantânea de si, porém, o presente
dade, mas deve indicar que a presentificação, na qual se funda primariamen- como a conversão de Rlturo em passado essencial e de passado essencial em
te a decadência em meio ao manual imerso na ocupação e ao ente simples- futuro é uma própria eAs/aseda temporalidade. Junto ao presente, ou seja,

W
junto à conversão do ser iminente e de sua mera determinabilidade em meio
ao âml)ito de possibilidades simplesmente apreendidas na determinação de
um projeto que pode ser então negado decididamente, a difere/?ça da l ibtrda-
de torna-se acessível temporalmente.

Tempodo inundo e tempo do relógio

A flm de deixar clara a conexão entre temporalidade e "intratemporali-


dade", pode-se partir ainda uma vez da determinação do presentecomo ins-
o se mostrasse como pertinente: o que é transparente na decisão tam- tante. O comportamento determinado só é acessível porque o ser iminente
bém precisa valer para o ser do ser-aí, se é que existenciariamente só se está advém em um instante e se converte instantaneamente no passadoessencial
da facticidade. O ser-possível em meio à aberhira do ente possibilita o co-
270 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 271

taurou a unidade das ligações nas quais a ocupação se 'movimenta' circunvi-


meço do comportamento determinado. A escolhado comportamento é preli-
sivamente" (ST, 353). O presente do comportamento está, por conseguinte,
neada pelo espaço dejogo da significânciajá interpretada e articuladas par-
'incluído" no modo de ser do reter e do atender, tal como era requerido para a
tir das possibilidades meramente apreendidas, chega-se a um prometosob a
orientação do quc "se" diz e faz. Quanto à realização do comportamento eAsfasetemporal do hlstante. A todo instante, o "com-o-quê" da coiduntura
mesmo,estáclaro que essarealizaçãosempreestáreferida como lida cona converte-se em um 'junto-ao-quê" em meio ao comportamento nlesnlo, e isso
lml utensílio a um "para quê". Pensadoa partir do utensílio, o "para quê" é pressupõe uma vez mais que o utensílio em geral só sda descoberto em vista
inicialmente o comportamento mesmo. No entanto, esse se encontra em co- de sua disposição designada juntamente com o "junto-ao-quê". Todavia, a
nexão com um prometoque deve ser realizado. Porquanto se tem um detemli- disposição não é nada além de uma atividade que não se torna temática como
realidade na lida com o utensílio, mas que pode ser novamente iminente em
nado prqeto, esse prometo se mostra como iminente e o que se "foi" junto à
realização do projeto não é o ser-possível como tal. Ao contrário, se é muito todo manejo porque o utensílio já estava aberto em seu caráter inexpresso.
No entanto, mesmo se o utensílio não for retido na ocupação como algo
mais alguém que se referiu a um utensílio com o qual esseser-possíveljá ti-
nha sua conjuntura. O respectivo contexto utensiliar semprecontinua sendo real, mas se se deixar surgir uma confomlidade com ele em sua possibilida-
porém, uma aparição da aberturado ente, e lmla vez que seestáocupado com de, sempre sepoderia ainda pensar que a obra é, em todo caso, antecipada no
sentido de uma realidade iminente. Se a atenção de um produtor não estives-
a realização de seu projeto, o prometose acha iminente. É por isso que ainda
será preciso designar a estrutura temporal da ocupaçãocomo "temporalida- sejunto à ol)ra a ser produzida, o comportamento produtor nlulca poderia ser
de". Mesmo que só se chegue a um prometona medida em que se antecipa "circunvisivo". Para a ocupação no sentido heideggeriano, é de qualquer
uma possibilidade como realidade iminente, em meio à ocupação mesma modo característico que mesmo a obra permaneça inexpressa como "algo
não se chega a ter em vista o que se queralcançar como realidade iminente; e que se encontra em trabalho". O produtor não representa a obra como algo
se as coisas são assim, tampouco se poderá seguir sem mais a análise heideg- pronto, na medida em que pensa no uso real que algum dia outros farão dela.
geriana da "temporalidade da ocupação' Ao contrário, essarepresentação mesma só pode ser pensada sob o modo de
De acordo com a temlinologia heídeggeriana, o hituro determinado é "o uma referência, lmla vez que conduz, no processo de produção, a uma deter-
atendimento", o passado essencial determinado é a "retenção", e se Heideg- minada ordenação dos materiais. Em sua preleção sobre "Os problemas fitn-
ger determina a estnttura temporal da ocupação como "presentinicação que damentais da fenomenologia",tt o próprio Heidegger diz que em meio à ocu-
atende e retém", então ele dá a impressão de que o futuro e o passado essen- pação não nos "dirigimos para a obra mesma" (OC 24, 4 16). SÓ se alcança
um tal direcionamento em certas circunstâncias: por exemplo, quando se
cial acabam por cair sob o domínio do presente. O passadoessencial apare-
ceria, assim, como uma realidade retida, enquanto o futuro se mostraria fala com o cliente sobre a obra que ainda não estápronta ou quando se preci-
como uma realidade atendida. Se essefosse Qcaso, não se poderia falar da sa admitir como produtor que a obra ainda não está pronta, isto é, que ela ain-
temporalidade da ocupação, se é que a realidade antecipada e retida não são da não é real. Somente então se tem a ver com algo que está"no tempo:
mais temporais em um sentido pregnante. As próprias explicitações heideg- Desta feita, só se consegue pensar a "intratemporalidade" juntamente
gerianas acabam, com certeza, por desmentir a tese sub-repticiamente inse- com Heideggera partir de lmla orientaçãopela "interpelação discursiva e
rida na fórmula da "prcsentiflcação que atende e retém" relativa à domina- pela discussãodaquilo com o que nos ocupamos" (ST, 406). Em meio ao
ção de lml presentea ser concebido impropriamente: "a lida que manipula' 'descontar,planejar, providenciar e prevenir" utilizam-se termos teóporals
é dessa maneira que as coisas se encontram expostas, "não se relaciona ape- característicosda intratemporalidade. "Já semprese diz. quer de maneira au-
nas com ajunto-ao-quê, nen] tampouco apenascom o com-o-quê do deixar- dível ou não: 'então' isso deve acontecer, 'antes' daquilo ser resolvido,
conformar-se. Essedeixar-conformar-se constitui-se muito mais na unidade agora' deve ser recuperado o que 'outrora' malogrou e fracassou" (ST,
da retenção que atende, de tal modo que a presentiHlcaçãoque emerge daí 406). Do fato de Heidegger introduzir os termos "então", "antes", "agora" e
possibilita, com efeito, a imersão característica da ocupação em seu mundo 'outrora" em conexão com determinados modos de comportamento Já se
utensiliar. O ocupar-se com (...) 'propriamente dito' e totalmente entregue podededuzir algo sobre sua maneira de empregar essestermos: quando utili-
não está nem apenasjunto à obra, nemjunto ao instrumento, nem aindajunto
l iFigal refere-se aqui à preleção de 1927, ainda inédita em português, .D/e Grl/ndp/oó/e/7ze de/
aosdoísjuntos. O deixar-conformar-se que se funda na tenlporalidadejá ins- Pllàno»!etlologie. (N.'T.)
272 Günter Figal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 273

Pormeio daí Ricaclaro tanto como Heidegger expõe os termos denomina-


dos temporais no contexto da proferição quanto em que medida eles não po-
dem se ligar à "temporal idade originária" do ser-aí. O que é proferido não pas-
sa de uma aparição do ser-aí, assim como do comportamento determinado
nele.O fato de a intratemporalidade precisar ser pensadaa partir da proferição
em sentido maximamente amplo, um objeto que é identificável no contexto não significa, entretanto, que sentençascom termos temporais são em todo
de ação do falante por meio de uma ação. Quem diz "isso é vermelho" ou casoenunciados. A sentença "agora deve ser recuperado o que outrora foi ne-
gligenciado", por exemplo, pertence, como declaraçãode um intuito ou como
comando, ao contexto da ocupação cotidiana. Apesar disso, não se poderá se-
guir Heidegger na atribuição "do caráter da significância" ao tempo mesmo
proferido com os termos "agora", "outrora" e "então" (ST, 4 ] 4). O "agora", o
nao soubersem mais ao que é que se ligam os seusenunciados O termo "outrora" e o "então" não são eles mesmos determinados "pela estrutura do
agora possui, nessecaso, uma certa posição peculiar. Em verdade. tam- ser-apropriadoe do ser-inapropriado" (Sr, 414), e, nessamedida, tomado ri-
pouco está asseguradoa um emprego isolado de "agora" qual é o «tempo" gorosamente, mesmo o.discurso heideggeriano acerca de uma "ocupação com
o tempo" é inadequado. Precisar-se-ádizer muito mais que no tempo proferi-
do com "agora", "então" e "outrora" a significância está acessíve/em um as-
pecto determinado. Heidegger não é certamente da opinião de que o tempo
Isso não precisa valer, naturalmente, paraa situação de ação como tal. O fato proferido com "agora", "então" e "outrora" está "simplesmente dado como
de essa situação de ação não precisar ser afetada pelo estado de coisas comu- um ente üatramundano(...), o que ele nunca pode ser". Ao contrário, ele vê o
nicado no enunciado pode ser facilmente visto em uma sentença como "no tempo como pertencente "ao mundo no sentido interpretado ontológico-
Pólo Norte está frio agora", quando essasentençaé proferida no verão da existencialmente" (ST, 4 14). Portanto, essetempo também podeser chamado
Grécia. Em todo caso, tem-se um bom ensdo para refletir se os termos cha- "tempo do mundo". Heideggerdiz do tempo do mundo que ele constitui a
mados temporais são denominados corretamente "dêiticos", e, então, para mundanidade do mundo(Sr, 41 4). Todavia, exatamente isso não se consegue
perguntar se é carreto tratar termos espaciais como "aqui" e " lá'; conao enui- aflnnar sem restrições; pois, tal como foi mostrado, o referir-se ao utensílio
valentes a eles, tal como é genericamente usual.íz ' ''"'- -'i-'
que é característico.da significância não é motivado senão pelo ser iminente, e
Não obstante,no preso.ntecontexto, mais importantedo que uma dis- mesmo sesempre se tem a ver na ocupação com um fuhlro determinado, quan-
cussão minuciosa desseproblema é a pergunta sobre como se podem tomar do se estásem qualquer perturbaçãojunto à obra, esseRituro precisamente não
frutíferas as reflexões levadas a cabo até aqui sobre o emprego de termos é tematizado. O termo "então" só pode se ligar ao que é imhlente porquanto é
temporais para a interpretação do curso de pensamento heideggeriano A fa- um "dado", e ele só se mostra como lml dado quando a ocupaçãodeixa de ser
um ocupar-secom... completamente entregue.Por conseguinte,pode-se pen-
sar o tempo proferido com os termos "agora", "então" e "outrora" como a
acessibilidadedo mundo, na medida em que ele é articulado e proferido. To-
dário, mas sim a "estrutura de ligação do 'agora', 'outrora' e 'então'" (SZ, davia, não se pode pensa-lo como a acessibilidade da inteQretação no sentido
407). O termo "databilidade" precisa ser lido a partir de sua etimologia e pre- daocupação. Somentea "presentiHlcaçãoque interpreta a si mesma,ou sda, o
cisa ser igualmente compreendido a partir de da/z//z? no sentido do "dado": o interpretadoe hlterpelado no 'agora'" (ST,408) é acessívelno tempo do mun-
dado' é, contudo, o que, em uma proposição, é tematizadoljuntanlente com do, no tempo que é diferente da temporalidade. Uma vez que "agora", "então"
as noçõestemporais. '
e "outrora" semprecarecemde lmla "data" e, visto assim, são"datáveis" como
termos lingiiísticos, também fica claro que o tempo do mundo é dependenteda
temporalidade: "A databilidade do 'agora', do 'então' e do 'outrora' é o refle-
'zCoinparar concepções tào diferentes quanto a discussão hegeliana da 'certezasensível iia
ACHO///eno/agia
do espü'/foe em Strawson( 1959), P. 216.
xo da constituição ekstática da temporalidade" (ST, 408).
274 Günter Final Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 275

Com a datação do "agora", do "então" e do "outrora", tal como foi de- seja, da claridade para poder lidar de maneira ocupada com o que está à mão
envolvida até aqui, o tempo do mtmdo ainda não está, porém, totalmente no interior do ente simplesmente dado. Com o descerramento fático de seu
determinado": "Ainda que o ocupar-sedo tempo sob a maneira caractélÍsti. mundo, a naturezaé descoberta para o ser-aí. Em seu caráter dejogado, ele é
ca da datação possa ser levado a cabo a partir do que se dá no mundo circun- entregueà mudança de dia e noite. Com sua claridade, o dia oferece a visão
nte, issojá sempre acontece, no fundo, em meio ao horizonte de uma ocu. possível do mesmo n)odo que essavisão o acolhe" (S7, 4 12). Se não nessas
pação do tempo que conhecemoscomo c0/7/age/2í do tempo ao modo da as. sentenças,a alusão à alegoria do sol na Po/f/e/a é de qualquer forma impossí-
tronomia ou do calendário. Não é por acasoque essacontagem acontece.Ao vel de ser desconsiderada, quando Heidegger o que para a pergunta sobre a
contrário, ela tem sua necessidade Ontológico-existencial na constituição contagem e sobre a medição do tempo é totalmente insignificante fala do
fundamental do ser-aí como cuidado. Porque o ser-aí existe de acordo com sol como "o astro que doa luz e calor" (Sr, 4 13). Entre a alegoria do sol e a
sua essênciajogado na decadência, ele interpreta seu tempo de maneira ocu- alusão heideggeriana subsiste, certamente, uma diferença. Enquanto o sol
pada sob o modo da contagem do tempo. Nela temporaliza-se a publicização em Platão é introduzido para dar concretude sensível à idéia do bem e é, além
própria' do tempo, de maneira que precisa ser dito: o caráter dejogado do disso, interpretado como o "jugo" que liga o ver compreendido sensorial-
ser-aí é o fundamentopara que o tempo possase dar publicamente" (ST, mente e o que é visível, o sol em Heidegger é, por um lado, o dado insigne do
4 11). De início, não se consegue efetivamente ver por que Heidegger acredi- tempo do mundo, e, por outro, uma imagem para o tempo do mundo mesmo.
ta poder.derivar aqui a necessidade da contagens do tempo do "caráter dejo- No que não sedata apenassimplesmente um "então" por meio do "que se dá
gado", do fato de que se é no mundo e da decadência. Isso só se torna com- no mundo circundante", mas o indica como um dado suplementarde um
preensível se nos lembramos de que a impropriedade é caracterizada pela estadosolar detemainado,fixa-se o ponto temporal questionável de uma ma-
co/npa/açâó do comportamento. Em verdade, tambémjá pertencem ao tem- neira que permite a todos "contar" com ele. Além disso, o tempo do mundo
po do mundo dataçõesdo "agora", do "então" e do "outrora" que não são fi- torna a ocupação cotidiana, lmla vez que ela é proferida, genericamente
xadas de acordo com o calendário ou com a astronomia. No entanto. é fácil acessível,assim como o sol tudo ilumina pela primeira vez. No entanto, Hei-
ver qual é a desvantagem que tais datações simples possuem. Se alguém diz degger acolhe do mesmo modo a relação pensada em Platão do sol com a
de maneira exemplarl "eu resolverei isso em/âo quando tiver acabado o que idéia do bem. Por nim, "o caráter dejogado do ser-aí é a razão pela qual 'há
estou fazendo ago/'a", é difícil preparar-se para tanto em seu próprio com- pul)licamente tempo", e porque o caráter dejogado é, por sua vez, acessível
portamento e planqamentoj isso pode ser constatado por qualquer um quejá originariamente no passado essencial, isso significa: o tempo do mundo é
tenha se visto alguma vez obrigado a esperarpor um artífice de maneira cor- um descendente(êxTovoç/ Real b//ca, 508b 13) da temporalidade.
respondente à acima descrita. Com isso, o tempo "propriamente" público é Todavia, mesmo com isso ainda não se esgotam as correspondências
diverso do tempo meramente datado porque possibilita uma "indicação tem' entre Heidegger e Platão que estãopresentes nessapassagem.As alegorias
poral realizável inicialmente em certos limites de forma consonantena con- no centro da Po/;/e/a só podem ser compreendidas adequadamentese forem
vivência(...) para 'qualquer um' a qualquer momento e do mesmo modo: lidas como uma sequênciade alegorias. Isso não significa apenasque aspec-
(Sr, 143). "Em vista da datação pública na qual qualquer lml indica para si tos diversos de um contexto de pensamento uno vão ganhando a cada vez
seu tempo, qualquer um pode concomitantemente 'contar' : a datação públi- concretude sensível nelas. Significa, também, que as alegorias secompletam
ca usa uma //zedfda publicamente disponível"(ST, 4 13). Essa medida é, para e corrigem em sua sequência porque se encontram imagens diversas cara as
Heidegger, a rotação do sol. '' mesmascoisas. O que isso significa exatamente só poderia ser indicado em
..: Com efeito, o papel especial do movimento celeste para o tempo sempre uma interpretação minuciosa da seqiiência de alegorias. Aqui é suHlcienteter
foi levado em conta na filosofia clássica do tempo. No entanto. ]lem no 77- clareza quanto ao modo como a alegoria do sol é modificada pela alegoria da
//7ezr
de Platão, nem na seção sobre o tempo da f&/ca de Aristóteles. o sol é caverna: enquanto na primeira alegoria o sol é o astrojunto ao qual a signifi-
destacado dos outros corpos celestes. O que leva Heidegger a empreender a caçãoda idéia do bem é mostrada a partir de uma analogia, na alegoria da ca-
cabo um tal destaque fica logo claro se se trazem à tona as passagens textuais vema o sol é tomado diretamente pela idéia do bem que, como tal, não é te-
correspondentes.
Tal como se encontraformulado em Ser e /e/72po:
"0 matizada. O sol da alegoria do sol ganha, por sua vez, concretude sensível na
ser-no-mundo cotidiano e circunvisivo careceda possibilidade de visão, ou alegoria dacaverna por meio do fogo, que, como fonte de luz, viabiliza a pro-
b
276 Günter Figal Martin Heldegger: Fenomenologia da Liberdade 277

jeção das sombras das estáüias e utensílios na parede da caverna. A esse des. movimento-padrão.O primado do presenteque Heideggerjá queria tornar
locamento das imagens corresponde, em Heidegger, a substituição do curso vigente para a "temporalidade da ocupação" se vale, por conseguinte, para o
do sol pelo relógio. tempo do relógio. Esse presente é, além disso, diverso daquele da presentiHica-
O que nos leva a isso é: "Quando comparamos o ser-aí 'primitivo', que cãodo qual esseprimado advém. É possível deixar claro como é preciso pen-
colocamos na base da análise da contagem 'natural' do tempo, com o ser.aí saressepresente se se leva em conta que a descrição heideggeriana da medi-
avançado', vem à tona o fato de que para esseo dia e a presença da luz solar ção do tempo com o relógio diz menos respeito ao modelo pré-modemo dos
não possuem mais nenhuma função preferencial, porque esse ser-aí tem a relógios.Ele concerne, antesde tudo, muito mais ao moderno relógio de pon-
prerrogativa de poder transformar a noite em dia. Do mesmo modo, para a teiros, e, ainda mais propriamente, ao relógio digital. Por nim, o relógio digital
constatação do tempo, ele não carece mais de lmla visualização expressa. sÓcontinua indicando com seus números o ponto do tempo "agora", enquanto
imediata, do sol e de sua posição. A confecção e o uso de instrumentos de mesmo o curso dos ponteiros dos segundos ainda posso i uma certa concretude
medida permitem ler o tempo diretamente no relógio que é produzido ex- sensível. Nesse caso, pode-se dizer: "Agora o ponteiro aponta para o cinco e
pressamente para isso"(ST, 4 15). Essa passagem é interessante para além do entãoapontara para o seis". Mesmo aqui, porém,já se consegue ver o quão di-
contexto atual porque documenta o fato de Heidegger ter visto o problema da fTci] é continuar acompanhando a descrição das estações com o decurso do
técnicajá em STI a "constatação do tempo" de que se fala aqui é uma versão ponteirojunto aos intervalos menores. No finado, quanto menores são os inter-
prévia da "armação" (Gesre//), tal como a essênciada técnica é então deno- valos entre as partes do movimento-padrão, tanto mais intensamente a datação
minada posteriormente. Mas mesmo sem fazer referência agora à conferên- do movimento-padrão, por meio da qual a medição do tempo é constituída, só
cia heideggeriana sobre a Pergzín/a ioóre a /écn/ca. é possível deixar claro conthlua se mostrando possível com o "agora". O emprego do termo "agora:
em que medida a medição técnica do tempo com o relógio é uma modifica- também não acontece mais aí em uma ligação de datação clara e distinta como
ção em relação ao tempo do mundo. Para tanto, é preciso determinar mais tal. e, de acordo com a interpretação heideggeriana, é exatamente por Isso que
exatamente o critério necessáriopara a determinação do tempo. podesurgir a impressãode que setem a ver no tempo comuma "multiplicida-
Essecritério é, na mesma medidajunto à rotação do sol quejunto ao re- de de agoras simplesmente dados". Enquanto o tempo meramente datado e
lógio, um movimento-padrão que pode ser subdividido em sua regularidade mesmo o tempo ainda não medido cronometricamente também podem ser
e contado em determinadas partes. A ele podem ser, então, coordenadosde- proferidos com os termos "então" e "outrora", tais ligações desaparecem em
terminados propósitos e eventos, e, nessesentido, se tem a ver aí com lula meio a lmla dataçãocronométrica exata. Diz-se, com efeito: "então, quandoo
da/açâo dzlp/a.Unia proposição como "Quando o sol se puser,eu retomarei sol nascer", mas não: "então, às 18:45". Um outro aspecto da modificação do
expressa uma tal datação dupla. Agora está claro que todo relógio permite tempo do mundo por meio do tempo do relógio consiste em que o tempo do re-
uma fixação mais exata de propósitos e eventos do que a orientação pela ro- lógio também possibilita, com suasdataçõesexatas,o planeamento exatodos
taçãodo sol. Isso por si só; contudo, nãojustinicaria falar aqui de uma modi- proletos. Modos de comportamento tornam-se mais facilmente disponíveis
ficação do tempo do mundo. Essa modificação consiste, sim, en] que toda por meio disso: em razão do movimento-padrão do relógio que perm ite a data-
medição do tempo com o relógio é proferida "em um sentido acentuado com ção exata, eles mesmos podem ser padronizados, de modo que "se" pode dizer
o agora' : "Na medição do tempo realiza-se(...) uma publicização do tempo, mais facilmente o que se tem a fazer. Um exemplo simples para a padroniza-
de acordo com a qual essesempre vem a qualquer m cimento ao encontm de ção de modos de comportamento são as regras para a utilização de formas e
qualquer um como 'agora e agorae agora'. Essetempo acessível 'universal- meios de transporte públicos, regras que semprefixam simultaneamente de-
mente' junto aos relógios é previamente encóiítrado como uma //zzr/r@//c/da- temlinados tempos de utilização. Da mesma maneira, pode-se desdobrar ago-
da de adoras i/mp/ei/2íe/v/e dados, sem que a medição do tempo seja dirigida ra a "ditadura" do "impessoal" sob a forma de um controle eficiente, tal como
tematicamente como tal ao tempo"(ST, 4 17). Com isso, também se alcança seria fácil de mostrar em meio a uma descrição do trabalho adm inistrativo e in-
pela primeira vez o estágio do que Heide.ggerchama a "concepção vulgar do dustrial modernos. O comportamento é aí l iberado a partir de contextos da sig-
tempo" De acordo com as passagenscitadas, essaconcepção consiste fun- nificância que são característicos da "circunvisão". O tempo do relógio é, em
danlentalólente no fato de o tempo do mundo acabarpor cair sob o primado última instância, o tempo de um comportamento "desprovido de mundo", ar-
do "agora" porque nós nos orientamos a cada vez pelas partessingulares do bitrariamente segmentado e apenas real. Nele radicaliza-se com isso o que e
278 Günterfigal
Mártir Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 279

característico para o tempo do mundo: a modificação do possível em real. So.


xÍaILÇ se relaciona com a e'LxcEaÍana alegoria da linha da Po///e/a. Pode-se
mente no tempo do mundo e no tempo do relógio o comportamento torna-se
ler a introdução do tempo do relógio no texto de ST inteiramente como uma
acessível em sua realidade.
alusão a essarelação. Ainda assim, o relógio que Heidegger menciona antes
Essas observações certamente poderiam dar agora uma vez mais a im-
de tudo é o re]ógio de so]. Esserelógio é utilizado não na medida em que "se
pressão de que a concepção heideggeriana do "impessoal" é pensada em pri- constatao estadosolar no céu", mas, sim, na medida em que "se mede asom-
meira linha segundo um viés de crítica à civilização. Se se afirma isso, po- bra que um ente disponível a qualquer momento profeta" (Sr, 4 15).'' Em
rém, se desconsideraao mesmo tempo que a impropriedade não está apenas meio à leitura do relógio de sol segue-se,em verdade, a faixa sombreadaque
acessível no tempo do relógio, mas é genérica no tempo do mundo como o
a luz solar projeta como sombra do ponteiro sobre a escalado relógio. Mas ai
tempo do comportamentoproferido. Com certeza,"curiosidade" e "ambi- a dataçãoé sempre ainda transparente como uma datação derradeiramente
gtlidade" precisam ser compreendidas antes a partir das vagas indicações ligada à rotaçãodo sol. Em meio à leitura do relógio de sol nós nos encontra-
temporais, tal como são possíveis com os termos "outrora", "então" e "ago- mos, conseqiientemente,em lula situação comparável na alegoria da caver-
ra", mesmo se semprejá se pressupusera medição do tempo como possível e
na à experiência desseque conhece olhando para as estátuase os utensílios
conhecida. Como formas da impropriedade, elas são independentes do de-
assimcomo para o fogo, que as sombras são apenassombras. Sese compara
senvolvimento de um tempo excito do relógio. Desconsidera-se,além disso.
dessafomla o sol no céu com o fogo, mostra-se então que, exatamentecomo
que a determinação heideggeriana do tempo impróprio não está absoluta- no casodo próprio Platão, se tem a ver em meio à projeção do contexto hei-
mente fundamentada com o aceno para as consequênciasmencionadas da
deggeriano de pensamento sobre a linguagem alegórica platónica com uma
medição do tempo. Decisivo é muito mais o caráter derivado do tempo do função alternante das imagens: lmla vez que a tempclralidade é comparável
mundo e do tempo do relógio em relação à temporalidade, pois junto a esse
em sua posição ontológica com a idéia do bem, o tempo do mundo precisa
caráter vem à tona uma vez mais a "não-verdade" do ser-aí, uma não-verda-
ganhar concreüide sensível p.:r meio do sol no céu. O tempo do relógio é
de que é característicada impropriedade: quem se orienta pelo tempo do com isso, o fogo aceso artific:almente. No que conceme às estações da ale-
mundo se vê preso por meio daí a uma auto-ilusão, lmla vez que toma a liga- goria dacavema, porém, o tempo do mundo é apenaso fogo, uma vez que ele
ção de datação como condição necessária para toda estrutura temporal e se não é senãoum descendentedo sol que responde aqui pela idéia do bem ou
mantém em uma aparição da temporalidade.
pela temporalidade. Essailustração da concepção heideggeriana da tempo-
E só a partir daí que é possível tomar compreensível também a dl feren- ralidade, do tempo do mtmdo e do tempo do relógio consegue deixar claro
ciação heideggeriana entre o ser-aí "primitivo" e o "avançado". O que Hei-
ainda uma vez o quão pouco essaconcepção é dirigida por impulsos ligados
degger diz quanto a isso anuncia certamente uma clara desconfiança ante à crítica da civilização. "A representaçãovulgar do tempo", assimdiz Hei-
toda progressividade defendida de maneira otimista e ante suas - supostas -- degger, "tem o seu direito natural. Ela pertence ao modo de ser cotidiano do
vantagens. Apesar disso, Heidegger não advoga a destruição de todos os re-
ser-aí e à compreensão de ser inicialmente dominante(...) Essa interpretação
lógios, a proibição de todos os calendários e a contagem das horas e das luas
do tempo só perde o seu direito exclusivo e prioritário quando pretende me-
somente a partir do relógio das flores, ou sqa, a partir do florescimento e do
diar o conceito 'verdadeiro' de tempo e poder prelinear o único horizonte
fruto.i3 0 progresso no desenvolvimento de relógios mais exatos e as vanta-
possível paraa interpretação do tempo "(ST, 426). Traduzido uma vez mais
gens que advêm daí são totalmente inevitáveis sob um ponto de vista prag-
na linguagem alegórica de Platão: o que está em questãonão pode ser querer
mático. O que se pode evitar é, com certeza, aconvicção de que se teria agora eliminar as imagens. Tudo depende muito mais de conhece-las como ima-
un] melhor acesso ao tempo, pois, sob a pressuposição de que a orientação gens e conquistar por meio disso lmla relação livre com elas.
pela rotação do sol é a orientação "natural" para a medição do tempo, a orien-
Sese compreendemjuntamente com Heidegger o tempo do relógio e o
tação pelo relógio acaba por se mostrar como lmla orientação por unia ima-
tempo do mundo como imagens, ou sqa, como aparições, então elas não po-
gem dessarotação. Vista assim, a medição do tempo a partir da rotação do
dem ser, de acordo com a determinação da relação entre fenómeno e apari-
sol relaciona-se com a medição do tempo com o relógio exatamentecomo a ção, ape/7asencobridoras; a aparição não é em verdade o fenómeno mesmo.
mas é de qualquer modo uma maneira de o 6enõnlenose mostrar, e é preciso
;Büchner, Le0/7ce iínd Leria (Lconcç e Lona), 3g Ato, 3a Cena. i4Grifo nosso
280 Günter Figal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 281

que isso possaser mostrado no interior de uma investigação fenomenológi- indicações temporais cronométricas. Dito na term inologia de Heidegger: há
ca. Com isso, uma tal investigação tem uma dupla tarefa: ela precisa tornar proposições sobre comportamentos determinados que têm a sua base na
por um lado, visível o fenómeno em sua estrutura plena em meio a umades. compreensãovulgar de tempo", de tal modo que elas não podem mais se
construção da aparição e comprovar aí que a aparição não passa de uma apa- tomar compreensíveis a partir do tempo do nltmdo, uma vez que ele não é o
rição; por outro lado, porém, ela também precisa conquistar, por meio da re- tempo do relógio, sem que se possa, por isso, analisa-las en] recurso ao tem-
lação livre assim alcançada com a aparição, a possibilidade de tornar claro o po do relógio. Tais proposições podem ser designadas, em sentido maxima-
modo específico no qual o fenómeno se mostra na aparição e deixar com isso mente extenso, como e/7z/nc/idos #/s/or/á/./oi. i5 0 próprio Heidegger quase
para a aparição o seu direito limitado. No que diz respeito ao tempo do mun- não chegou a perceber a chance de empreender uma análise de eminciados
do e ao tempo do relógio, essarelação só se tomou clara até aqui em vista da historiários, e, em verdade, porque concebeu o tempo dominado pelo "ago-
medição do tempo: o tempo do relógio é uma imagem do tempo do mundo na ra" desde o princípio sob o aspecto da medição do tempo. Pode-se mostrar de
medida em que essetempo não é medidojunto a um movimento-padrão pro- maneira particularmente boa que isso é inadequado a partir da interpretação
duzido tecnicamente, mas sim junto à rotação natural do sol. No entanto. o heideggerianado texto mesmo que, segundo a opinião do próprio autor, pro
tempo do.mundo não é apenasum tempo medido. Ao contrário, ele é em pri- move a conceptualização da "compreensão vulgar de tempo';; esse texto é o
meira linha o tempo do comportamento determinado e proferido. Até aqui ensaiosobre o tempo que faz parte da fú/ca aristotélica. Em sintonia com a
permaneceu sem ser levado em conta como é que o comportamento no tem- discussão da interpretação heideggeriana de Aristóteles, se se acolhe o curso
po do relógio ou em geral em uln tempo medido podeaparecer,e, além disso.
de pensamento aristotélico de maneira diversa da de Heidegger, então po-
o caráter mundano-temporal do comportamento só foi considerado segundo de-setornar plausível também no âmbito da concepção heideggeriana o s/a-
um aspecto: Heidegger orienta-se, em suas análises dos termos temporais fzrsdos enunciados historiários.
outrora", "agora" e "então", por proposições prcí//cas tais como as declara.
çõesde intuitos. Não é difícil ver em que aspecto essasanálises são por isso O teitlpo e o '' agora
mesmo carentes de complenlentação: em proposições que contêm termos
como "outrora", "agora" e "então" não se expressam, por fim, apenas os pró- A interpretação heideggerianado ensaio aristotélico sobre o tempo é, no
prios comportamentos ou os próprios projetos, mas também se fala ioóre os todo, unia tentativa de mostrar que a "compreensão vulgar de tempo" é ape
comportamentos e ioó/'e os proUetosde outros. Proposições sobre os com- nasa aparição do tempo do mundo. Para Heidegger,já com a sua determina-
portamentos e os proletos de outros que contêm termos temporais não se dei- ção do tempo como àpL+poç xtvllacuç xà TrpÓTCpov xai i3avepov (F&/ca/
xam mais, contudo, tornar compreensíveis exclusivamente por meio de um 219b2), Aristóteles documenta a assunção de duas estruturas temporais.
recurso à estrutura da temporalidade. Antes de tudo, quando essasproposi- Exatamente por isso, Heidegger traduz a formula citada da seguinte manei.
ções se encontram em conexão com outras proposições, elas dão freqiiente- ra: "lssojustamente é o tempo, o que é contadojunto ao movimento que vem
mente informações sobre os comportamentos de outros e//z szra dzrraçâo; aoencontro no horizonte do antese do depois"(ST, 421). Na passagempara-
dito de maneira diversa, nessasproposições se expressa a rea//dada desses lela dos G/lr/?dp/'oó/e/27e
der PAdno/ne/70/0g/e(Os problemas fundamentais
compor/a//zen/os no /e/npo, e até aqui ainda não foi mostrado como a real ida- da fenomenologia), a expressão"no horizonte do antese do depois" é expli-
de do comportamento é acessível no tempo. Em meio à declaraçãode intui- citada ainda mais na medida em que nos deparamos com a seguinte formula-
tos investigada por Heidegger [em-se a ver com proposições nasquais a rea- ção: o movimento vem ao encontro "para a visada do anterior e posterior
lidade é ou bem realidade iminente no sentido de um prometoou bem realida- (OC 24, 337). No entanto, as duas coisas afirmadas por Heidegger aqui não
de passadano sentido de uma lida antiga com um utensílio. Nos dois casos.a resultam do texto aristotélico mesmo. Nem se trata aí de um ' vir ao encon-
realidade pode ser reconduzida à possibilidade porque se trata aí de proposi- tro" do movimento, nem tampouco há algum argumento que fale a favor de
ções que só podem. ser proferidas na primeira pessoa. Junto a proposições na
terceira pessoaoujunto a proposições na primeira pessoatraduzíveis na ter- ''Heidegger diferencia o termo germânico gesc/z/c&///c/zdo termo latino /z/s/arisca. atribuindo
ceira pessoasem que seu sentido se altere, isso não é mais possível por si só, ao primeiro um sentido ontológico-existencial e ao segtmdo um sentido õntico. Para seguir essa
pois elas também são dominadas pelo "agora", sem precisar conter, por isso, diferenciação. traduzimos invariavelmente gesclz/c/7//ic/zpor "histórico'' e /z/.s/or/scApor "his-
[oriário". (N.T.)
282 Günter Final

traduzir xa'tà por "no horizonte". Paraver até que ponto a tradução interpre-
tativa de Heidegger é inadequada,e, por outro lado, em certos iimitesjustiüi-
Y P,ov 8ê páXtaTa
Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade

do. O movimentado é, como diz Aristóteles, o que é mais conhecido(rvúpL'


.tou-t'êaTtv/
283

F'ú/ca, 2 19b29). Isso se dá porque, diferente-


cada, é pre.liso tornar presente a concepção aristotélica do tempo en] seus mente do movimento, ele é algo determinado que se encontra presente(Tó8c
traços fundamentais. ' .,.'
ràP TL 'to (pcPó»cvov, h 8ê x(VT)aLÇoi3/f&/ca, 2 19b30). O que se encontra
No que concerne a essa concepção, precisamos atentar inicialmente presente, porém, quando está acessível, é sempre acessível "agora", de
para o fato de o termo aristotélico central àpL+Aoç ser empregado em duas modo que o temia substantivo tà vi;v pode designar a acessibilidade do que
significações diversas. ApL+poç é, por um lado, o que é contado e Contáve] seencontra determinadamentepresente. Para a experiência do tempo é com
e,por outro lado,ele é issocom o quecontamos(xat Tàp TààpL+p.oúpcvov certeza necessário que o que se encontra determinadamente presente não
xai Tà apL+pàv ÀéTopcv,xaÜ y àpL+poupcv/ F&/ca, 2 19b6). Todavia. o permaneçasimplesmente como é:O tempo não pode ser pensado sem trans-
tempo é em verdade referido Lmivocamente à primeira dessasduas significa- formação (oiú'áveu Te »e'taj3oXrlç/ f'&fca, 2 18b2 1), mas, como se precisa
ções: ele é o que é contado e não issocom o que se conta Goóâ XPóvoç êaTh acrescentar,também não sem que nessa transformação algo permaneça Q
TÓâpL+»oÚ»cvov xai obX g àptPpoup,cv/ ra/ca, 2 19b7). Com issonão mesmo. O fato de a segunda condição ser tão importante para Aristóteles
estádito, porém, que haveria o tempo sem o número no sentido disso com o quanto a primeira não se apresenta apenas na medida em que o conhecimen-
que contamos. O ntmlero com o qual contamos é, com efeito, o "agora" ('tà to do movimento é em primeira linha Qconhecimento do que é movimenta-
vuv), uma vez que ele perfaz a nulidade do que é a cada vez contado (povàç do; ele também se apresenta em meio à auto-evidência com a qual Aristóte-
àpL+pou/ F&/ca, 220a4). A caracterização do agoracomo um número pode les fa la apenas no começo do ensaio sobre o tempo de pcTcll3oXÚ e então, sem
parecer, a prmtei ra vista, espantosa. A questão é que se precisa atentar para o exceção,passaa falar de xÍvrpLÇ e Popa, movimento vocativo.Enquanto
fato de, conforme a representaçãoaristotélica, a unidade não poder ser en] mesmo a aniquilação de algo pode ser designada como »CTal3oXvl,uma
verdade nenhuma quantidade numérica porque sempre se tem em vista por x(vrpLÇ é sempre de um tal modo que o que se movimenta ou o que e movi-
quantidadesnuméricas" fundamentalmente lmla quantidade.Não obstante. mentado permanecem (àváTxq 'dv t'É bxoxcLP.évou CLÇblroxcl»cvov
!sso não exclui a possibilidade de falar dela como disso com o que se conta. cval3oÀjv xÍvrptv dvcEt »Óvqv/ f'ís/ca. 225bl -3); e isso também vale
Isso com o que contamos não é nenhuma entidade matemática, mas as coisas naturalmente para o movimento locativo, que, visto assim, é simp)esmente
em sua determinação. Essas coisas sempre podem ser, por sua vez, dadas em um caso especial da x(VTlaLÇ.
uma quantidade.O que isso significa mais exatamentefica claro quando Sese pensam agoraconjuntamente as duas condições citadas paraa ex-
Aristóteles diz que com a quantidade numérica conhecemosa quantidade de periência do tempo, então vem à tona que o nlodelojunto ao qual Aristóteles
aqui escolhido como exemplo -- cavalos, enquanto com o cavalo unidade desenvolve a sua concepção do tempo é pensável de maneira simples. Esse
conhecemos a quantidade numérica mesma de cavalos (tg pêv Tàp modelo é um movimento que pode ser expresso em sentençasdo tipo "Fa
àpL+A?tà -tÕv'Íxlruv TTÀIT+oÇ
Tvuf)ÍtoPev, dXtv8ê õ êvi 'ímro Tàv torna-seGa", nas quais Fa e Ga se comportam um em relação ao outro con-
Tuv '(xxuv àPL'PP.óvabtóv/ Ffs/ca, 220b20-22). Isso significa: quando co trastivamente. Por isso, a acessibilidade do que é enunciado com Fa também
nhecemos a quantidade numérica, sabemos com quantos cavalos temos a precisa ser diversa da acessibilidade do que é enunciado com Ga. Essa diver-
ver. Entretanto, a quantidade numérica nunca se deixa pensar senão como sidade pode ser levada em conta na medida em que se toma o "agora" que ex-
quantidade numérica de algo que pode ser interpelado como "um a". Esse pressaa acessibilidade lmla vez como "antes" e outra vez como "depois". Se
algo" forma a "unidade de medida", uma vez que se mostra como o que é sequiser expressar isso em uma sentença, então se consegue: "Agoralantes)
contado em vista de sua quantidade numérica.tó Se se transporta esseestado Fa se toma agora (depois) Ga". Se o "agora" dá a entender a acessibilidade
decoisas para a determinação do tempo como o que é contado ou contável do de algo determinado que se encontra presente, então os dois "agoras" dos
movimento, então o "algo" aqui é correspondente ao "agora"; e pode-se fa- quais um é tomado como "antes" e o outro como "depois" dão a entender a
cilmente esclarecer por que isso é assim. Com efeito, é impossível falar em acessibilidadede algo determinado que se encontra presenteem dois estados
geral de lml movimento se não se sabe o qzíese movimenta ou é movimenta- diversos. E somentese se experimenta algo determinado em dois estadosdi-
versos se experimenta Q tempo. O fato de o tempo ser àpt+poç XLvrlacuç
KaTci t(i xpóTcpov xat uaTcpov significa, por conseguinte:o tempo e a
i''Wieland ( 1970), p. 317.

ün. IL.
284 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 285

acessibilidade de algo que, em razão de um movimento, se apresenta em dois nho com uma velocidade constante, a realização do próprio movimento po-
estados diversos. Como se conhece essealgo, os dois estados diversos são deria aduarcomo relógio; e se se tem clareza quanto a isso, então também não
conhecidos como quantidade de seus estados.Somente se há uma quantida- é espantoso que Heidegger comece a sua interpretação com uma imediata
de contada de estados,há tempo. Desta feita, Aristóteles pode afirmar com concretização sensível da determinação aristotélica do tempo por meio do
razão ter tornado inteligível sua determinaçãodo tempo (FÍs/ca relógio. Somente porque nós mesmos podemos nos comportar como um re-
220a24-26), sem que se tivesse falado aí em geral de medição do tempo. O lógio é possíveller o tempo no relógio, e é claro que o comportamentono
caráternumérico do tempo no sentido aristotélico não tem inicialmente nada sentido de um relógio é simplesmente uma aparição da temporalidade. No
a ver com o problema da medição do tempo. 'agora", tal como Heidegger o interpreta, também já reside por isso "a refe-
SeHeidegger traduz, então, a definição aristotélica de tempo falando de rência ao não-mais e ao ainda-não. Ele tem em si mesmo a dimensão. a ex-
/zo/.izoi?/edo antese do depois, ele deixa inicialmente sem consideração que tensão em direção a um ainda-não e a um não-mais"(OC 24, 351).No entan-
em Aristóteles os termos "antes" e "depois" sen)pre são marcados com "ago- to, nessainterpretação perde-seo sentido do vuv aristotélico porque Heideg-
ra", ou, dito de outra maneira, que há dois "agoras" que são tomados como ger, em razão de sua concepção do xpótcpov e do 13aTepovcomo "horizon-
"antes" ou como "depois". Isso bica particularmente claro no momento em te", não vê mais a aml)igtiidade central para Aristóteles do lii3v.
que Heidegger interpreta os termos xpóvcpov e SScrrepovna significação es- Não obstante,a interpretaçãoheideggerianaé compreensível a partir
pacial de "à frente" e "atrás", lmla significação que eles também têm, ligan- de sua intenção e, segundo a coisa mesma, não é de todo injustificada. A in-
do-osao movimento locativo: "0 lá não é um lá arbitrário, mas o desdelá tenção de Heidegger é investigar a concepção aristotélica do tempo em vis-
<xpótcpov/ G.F.> é que é um anterior; e o para-aqui «6aTcpov/ G.F.> não é ta da estrutura da temporalidade que está nela velada, a fim de compreen-
do mesmo modo nenhum aqui arbitrário, mas, como aqui para o qual se está der melhor Aristóteles do que ele mesmo se compreendeu. Nessa medida, a
indo, ele é para o próximo um posterior. Se vemos assim a multiplicidade lo- interpretação heideggeriana é lml paradigma para o que ele denomina
cativa a partir do horizonte do 'desde lá -- para aqui' e percorremos nesse ho- 'destruição fenomenológica". Uma tal destruição deve "marcar os limites:
rizonte os lugares singulares, na medida em que vemos o movimento, a pas- da tradição ontológica: "limites que são dados faticamente com cada modo
sagem, então retemos o primeiro lugarpercorrido como o desde-lá e ficamos de colocação das questões e com a circunscrição previamente indicada a
na expectativa do próximo lugar como o para-lá. Retendo o precedentee fi- partir dessacolocação do campo possível da investigação" (ST, 22). Os li-
cando na expectativa do posterior, vemos a passagem como tal" (OC 24, mites do ensaio aristotélico sobre o tempo consistem para Heidegger no
347). nPóTcpov e i3a'rcpov são compreendidos aqui no sentido de um passa- fato de Aristóteles não poder desenvolver o caráter temporal das determi-
do essencial determinado e de um futuro determinado, e isso tem por conse- naçõesxf)ótcpov e\SaTcpov.Por isso, vista de maneira superficial, a deter-
qüencia que o presentesó é considerado uma vez mais como conversão. ou. minação aristotélica do tempo taml)ém é, como Heidegger acha, "tautoló-
como Heideggerdiz aqui de maneira atenuadora,como "passagem". Para gica", e a finalidade da destruição fe nomenológica é comprovar essatauto-
Heidegger, o "agora" também não designa mais, afinal, a acessibilidade de logia como uma tautologia fictícia : "Talvez a deninição aristotélica do tem-
algo determinado que se encontra presente, mas apenas ainda os lugares per- po não seja nenhuma tautologia, mas só insinue a conexão interna do fenó-
corridos em um movimento: "Para apreender a retenção peculiar do prece- meno aristotélico do tempo, ou seja, do tempo compreendido vulgarmente,
dente e a expectativa do que vem, dizemos: agora aqui, outrora lá, depois lá, com o tempo originário, que denominamos temporalidade"(OC 24, 34 1).
ou soja, todo e qualquer lá ilo contexto do 'desde algo -- em direção a algo' é Para tornar plausível essatese, contudo, Heidegger dilacera a determina-
um agora-lá, agora-lá, agora-lá" (OC 24, 347). O "ou seja" heideggeriano é ção aristotélica do tempo, tentando compreender o àpL+p.àÇ XLvvlacuÇ
certamente ii\justificado, pois o "outrora" e o "então" são diferentes justa- como indício paraa conseqitênciado agorae o xa'rd tà xpt3tepovxai
mente do "agora". SÓsechega a uma consequência do agora tal como a que é iSaTcpov como indício para a retenção e a expectativa. Com certeza, é indu-
introduzida por Heidegger aqui se o "outrora" e o "então"já não são mais ab- bitável que o estadoprecedente de algo que se designa com "Fa" precisa ser
solutamente ditos, mas se continuamos nos concentrando en] meio à realiza- 'retido" para que se possa constata-lo em sua diferencialidade ante um es-
ção de um movimento apenasnos passossingulares ou em determ irados tre- tado posterior Ga. Todavia, não se poderá afirmar que todo saber acerca do
chos do caminho. Se estivéssemosem condições de percorrer lml tal cami- estado anterior dc algo é uma "retenção" no sentido da estrutura da tempo-
286 Günter Figas Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 287

ralidade, e isso significa uma vez mais que enunciados temporais não po- ente que sediferencia da natureza em consideração à determinação essencial
dem se tornar compreensíveis apenas a partir da temporalidade. da existência do homem por meio do 'espírito' e da 'cultura', ainda que a na-
Por conseguinte, para que se possadeterminar o s/a/irs dos enunciados Qireza também pertença de certa maneira à história assim compreendida"
temporais que se ligam a modos de coillportamento de uma maneira funda- (Sr, 379). Heidegger colige essesaspectosdiversos em uma primeira deter-
mentalmente traduzível para a terceira pessoa,precisar-se-á insistir inicial- minaçãoprovisória: "História é o acontecimento específico do ser-aí exis-
mente na ontologia aristotélica do "ente simplesmente dado". Essesenuncia- tente, um acontecimento que se dá no tempo. Em ftlnção disso, o aconteci-
dos só são possíveis se eles também forem tomados em seu caráter temporal mento'passado' na convivência que se mostra ao mesmo tempo como ' lega-
no mínimo de acordo com a determinação aristotélica do tempo, de modo que do pela tradição' e como continuamente atuante vale en] sentido acentuado
se tem a verjunto a eles com enunciados sobre estados diversos de algo deter- como história"(ST, 379). Por si só, as muitas aspas colocadas nas determina-
mhlado. A realidade constatável do comportamento consiste no movimento ções citadas dão a entender que aqui está sendo introduzido "o que na inter-
de algojunto ao qual esse algo muda seu estado, e, porém, pemlanece o mes- pretação vulgar do ser-aí tem-se em vista com os tempos 'história' e 'históri-
mo. Porque Heidegger projeta de maneira abreviadora a interpretação da es- co'" (Sr, 378). Heidegger não pode contrapor simplesmente a "historicida-
trutura da temporalidade para o ulterior da concepção aristotél ica, ele não con- de" própria do ser-aía essacompreensão"vulgar" de história. Se a história
segue perceber "o direito natural" da estrutura elaboradapor Aristóteles. O compreendida "vulgarmente" é a história tal como "o impessoal" a conhece,
tempo, porquanto toma acessível a realidade do comportamento determinado, então também é preciso que se mostrejunto a essa compreensão e de maneira
não é considerado por meio da "destruição fenomenológica". Sem um tal tem- correspondente à relação entre fenómeno e aparição o que nela é encoberto.
po, contudo, como teremos de mostrar agora, não seconsegue tornar compre- Além disso, é preciso que esse''encobrimento" possa se tornar inteligível
ensível a concepção heideggeriana da história e da historicidade. como "fuga" ante a "historicidade" própria. À diversidade entre história im-
própria e história própria corresponde sua acessibilidade diversa no tempo.
História e historicidade Se a historicidade é acessível no tempo, então ela é a história em uma de suas
aparições. Todavia, como Heidegger discute a história e a historicidade an-
A tese de que para Heidegger a "história" precisa ser pensada como a
tes de desenvolver plenamente a sua concepção do tempo, ele tampouco
acessibilidade do comportamento em sua realidade provavelmente não é
consegue clarificar a acessibilidade específica da história, pois, onde a h istó-
elucidativa à primeira vista. Pode-se ter a desconfiança de que se transfere
ria é discutida, a clarificação do tempo do mundo e da compreensão vulgar
aqui simplesmente para Heidegger uma interpretação da determinação aris-
de tempo ainda se encontra de fora. Todo o capítulo sobre "temporalidade e
totélica do tempo que não é defendida pelo próprio autor. Além disso, caso
historicidade" está alagado de maneira muito infeliz. Heidegger mesmo per-
sesuponha que, em sintonia com Heidegger, a "história" precisa ser compre-
cebeu esse problema. Seu argumento para esse posicionamento tampouco é,
endida como o âmbito de enunciados historiários e caso se diga que esses
por fim, muito convincente. Se setrata de "retirar da característica vulgar da
enunciados se ligariam a lml comportamento real como enunciados tempo-
história a aparente auto-evidência e exchtsividade com o auxílio do tempo da
rais sobre um movimento, assim como sobre o que é movimentado, pare-
intratemporalidade " (ST, 377), e isso na medida em que a historicidade é
ce-se descurar do fato de Heidegger determinar a "história" de maneira mui-
pensada a partir da temporalidade originária, então é no mínimo atabalhoado
to mais rica e não em recurso a lml conceito de tempo enraizado na ontologia
desenvolver a historicidade a partir da história. Desse modo, liça com efeito
do "ente simplesmente dado". "História" significa sempre"realidade histó-
obscuro em que medida a "interpretação vulgar do caráter tem poral dlhistó-
rica" (S7', 378). "Olãetos históricos" (ST, 380) e "acontecimentos de outro-
ria" pode manter certo "direito no interior de seus limites"(ST, 377), pois sá
ra"(S7', 378) possuem, por um lado, realidade histórica. Vista assim, a reali-
se consegue perceber a razão de ser dessa afirmação seja se compreendeu a
dade histórica é "o que passou" (ST, 378). No entanto, realidade histórica é
direito restrito da interpretaçãovulgar do tempo. Talvez seja por isso que
também a "proveniência"(Sr, 378) a partir do passado e o continuar efetivo
essecapítulo é, em sua condução, um dos mais fracos de todo o livra.
do que passoue determina "'presentemente' um 'futuro'" (ST, 378). Toma-
Sem dúvida alguma, Heidegger fornece ao menos um ponto de suster:
da dessa forma, a história é um "'contexto de eventos e de produção de efei-
raçãopara o esclarecimento da acessibilidade específica da história e da his-
tos' que se estende através do 'passado', do 'presente' e do 'futuro'" (ST,
toricidade. Se o histórico, por um lado, é "passado", então ele também é, por
378). Como um tal contexto, ela é também o "acontecimento" na "região do
288 Günter figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 289

outro, igualmente"presente". "A mobília, por exemplo," queé conservada viu, só pode ser considerado no contexto da pergunta sobre o que é uma obra
nos museus ou mesmo nas próprias casas, "pertence a um 'tempo passado'"
deaHe. Diante disso, esclarecero caráter histórico do utensílio não significa
e, ainda assim, está ao mesmo tempo "simplesmente dada no 'presente'" senãodizer mais exatamente em que aspecto os olãetos historiários mesmos.
(ST, 380). De acordo com a exposição heideggeriana, seu caráter histórico quando ainda são usados, não são mais "o que eram". Para tanto,'pode.se
não pode consistir nem no fato de ele ser "objeto do interessehistoriário" acolher a indicação heideggeriana da conexão entre mundo e história. come-
(ST, 380), nem de ele não ser mais usado. Para que possa haver algo assim çando com a determinação do mundo em sua estrutura. O utensílio historiá-
como um interesse científico historiário, a coisa em questão precisa ser"nela rio não é, evidentemente, significativo apenas sob o modo do utensílio não-
mesma de algum modo histórica"(ST, 3 80): se o historiadorjá não soubesse histórico: nós lidamos com ele de outra maneira e o damos a entender de uma
isso de antemão, ele não poderia considerar absolutamente a coisa como um ra diversa, na medida em que sabemos que esseutensílio também já
objeto passível de suas investigações. Além disso, o interesse historiário é era signinlcativo para outros. SÓse pode lmla vez mais saber disso se se co-
tão pouco uma condição necessária para o caráter histórico de uma coisa nhecemenunciadostemporais correspondentessobre esseutensílio. Mesmo
quanto a circunstância de ela não ser mais usada.Na medida em que se trata queainda o utilizemos, um utensílio historiário sempre é também objeto de
em geral de utensílios, algo não-histórico também pode estarfora de uso. Por enunciadoshistoriários, e essessão enunciados duplamente datados sobre
exemplo, ele pode estar fora de uso porque está danificado. Invel'samente, um comportamento detemlinado. Sabe-se,por exemplo, do relógio de bolso
mesmo um utensílio histórico ainda pode ser usado,tal como se mostra em herdado que ele foi usado por um antepassadoem um determinado tempo.
toda peça de antiquário ou em um relógio de bolso herdado. Restmlindo suas Naturalmente, enunciados historiários não estão restritos nem a objetos his -
considerações sobre o caráter histórico das coisas, Heidegger diz então: toriános no sentido mencionado, nem a lml comportamento ocupado. Em
Quer em uso, quer não, as coisas historiárias não são mais, porém, o que todo caso, contido, trata-sejunto a eles de enunciados duplamente datados
eram. O que 'passou'?Nada além do mundo no interior do qual elas, perten- sobre um detemainado comportamento. Nesses entmciados, a segunda data-
cendo a um contexto utensiliar, vinhana ao encontro como manuais e eram ção não precisa ser nenhuma indicação temporal exala. Formulações como
usadaspor um ser-aí ocupado que é-no-mundo" (ST, 380). Esse esclareci- nos anos 70 do século XIX" são completamente correntes e com freqtlência
mento não resolve, porém, o problema tal como ele foi exposto anteriormen- suHlcientespara a segunda datação. Em contraposição a outras sentenças
te. Não se conseguever, por flm, em que medida um armário no estilo Bie- sentençashistoriárias também podem ser investigadas em unia "filosofia
dermeier, por exemplo, deve se diferenciar em seu caráter utensiliar de um analítica da história", especialmente em vista de sua veriHlcabilidade pecu-
móvel não-histórico qualquer. Além disso, não fica c lato em que sentido lma liar. '' Mas esseé um problema com o qual não podemos nos ocupar agora de
mundo em geral pode ter "passado". "Mundo" é, com efeito, um conceito es- modo mais minucioso.
trutura! ontológico-existencial. O próprio Heidegger leva em conta um tal E muito mais importante perceber que mesmo enunciados historiários.
fato quando, corrigindo sua formulação acerca do passado ( Herda/vge/v/ze//) quer sejam proferidos ou não, oferecem lmla possibilidade de comparar de-
do mundo,fala logo em seguidado passadoessencial(Ge pesem/le//)
do terminados modos de comportamento uns com os outros e de delimita-los
mundo: "As antigüidades ainda simplesmente dadas possuem ]m] caráter de unsem relação aosoutros. A orientação preferencial por eles também é, com
passado' e um caráter histórico em razão de sua pertinência utensiliar e de sso, um aspecto específico da falta de liberdade. Se se tiver compreyldido
sua proveniência a partir de lml mundo que foi essencialmenteo mundo de esseestado de coisas, então também bica claro en] que medida Heidaegger
um ser-aí que esteve aí"(ST, 3 80). Com essa informação, contudo, a coisa se completa a análise do ser-aí cotidiano com a sua discussão da história. Em
torna completamente obscura, pois o "passado essencial" como a acessibili- meio a essa discussão, não permaneceu sem ser levado em conta o fato de os
dade do ser-aí em sua facticidade é sempre apenas o passado essencial sem- proletos que podem ser transparentescomo resposta ao ser iminente em sua
pre a cada vez próprio, e, nessesentido, o "mundo que essencialmente pas- indeterminação só poderem ser conquistados junto a uma orientação pelo
sou" é o mundo lmla vez quejá sempre se está a cada vez nele. Com isso, não comportamento dos outros. Nós conhecemoso que se pode querer e desejar
se pretende contestar agora que o mundo também possa ser subtraído. O sig- porque outros o querem e desçam. E,justamente em proposições historiá-
nificado dessasubtração não pode ser, porém, discutido no contexto da per-
gunta sobre o caráter histórico do utensílio, mas, como Heidegger mesmo o
''Cf. Danço (1965)
290 Günter Fígal
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 291

dados, mas que o ser-aí estende"a s/ /nes/zzo


H
ser-aí não é nenhuma "via ou trecho da ' vida'" de modo algum simplesmente
de taJmaneira que desde o prin-
cipio seu ser é constituído como extensão"(Sr, 374), então se conquista por
meio daí um ponto de sustentaçãopara a determinação do "acontecimento

ai: uanii:iHaliiiijaB
..,,...!:HU
l:HSHãE ll:
*Comparar, quanto a esse ponto, também Macrntyre(1982), P. 190-209.

]
292 Günter Figa
]' Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 293

mais, que o propno nascimento não é nada "não-real". Com alguma restri-
ção, isso vale também para a própria morte. Não obstante, esse estado idcoi. Segundo essainterpretação? não bica claro em que aspecto ainda sepode
sas não obriga a reconduzir o nascimento ao passado essencial e a morte ao efetivamente falar de "historicidade". Por um lado, a historicidade é formal-
mente exposta por meio da determinação da "extensão" e foi mostrado em
futuro, tal como Heidegger faz aqui. Ao contrário, o fato de a morçrznãopo-
der ser compreendida como possibilidade no sentido do ser iminente Ja foi relação a essa extensão que ela precisa ser creditada inequivocamente ao
mostrado detalhadamente, e algo similar vale em vista da relação entre nas. tempo compreendido de maneira "vulgar". Se, por outro lado, a história só é
cimento e facticidade: "ter nascido" não significa ser possível na abertura do acessívellinguisticamente no tempo, também parecepor isso impossível
ente para o comportamento, mas é o começo da vida como "essa vida deter- pensar algo assim como um passadoessencial histórico. Exatamente isso é
minada", um começo que só recebe o seu nome depois do nascimento. O exigido, conhldo, se se quiser seguir Heidegger em sua tese de que a inter-
nascimento é, em verdade, o começo do ser-aípa/.a s/ //?es//zo,mas não o co- pretaçãoda historicidade é uma elaboração mais concreta da temporalidade.
meço do ser-a/. Dito de outra fomla, ele é o começo do comportamento de al- Não obstante,é preciso que se atente para em que relação o passadoconstitu-
guém determinado, mas não, tal como a facticidade, o começo pa/a o com- tivo para a história se encontra ante o passado essencial. Se o passado é a mo-

portamento. Como o começo dessavida determinada, porém , o nascimento é dificação imprópria do passadoessencial,então o que é nele acessível preci-
âixáve] em lml enunciado temporal, e o tempo de vida é datado a partir dele. saser negado para que o ser-possível para o comportamento possa ser acessí-
Mesmo se for inacessível para alguém o seu próprio nascimento, no curso da vel no passadoessencial.Não se "foi então essencialmente" apenas na aber-
vida costuma-se de qualquer modo fazer uma série de enunciados históri- tura do ente, mias/a/2zóénz
na aóe/'/Irra da /radiçâo //ngzl&/fca. Porque adeci-
co-vitais que se datam a partir de um recurso ao nascimento. De outra manei- são em sua negatividade aponta para a transparência de projetos em seu cará-
ra, não senan] possíveis enunciados temporais duplamente datados como a ter deresposta,fa/ zóé/npode se tornar evidente a partir dela,juntamente com
indicação da idade. Em contrapartida, enunciados sobre a própria morte só a intelecção do caráter de possibilidade do comportamento determinado, o
são possíveis como enunciados simplesmente datados. Emambos os casos. =aláter de possibilidade de todo o contexto de comportamento.
contudo, opera'se com dois "adoras", e, em verdade, com um a ser datado E exatanlentedisso quese trata na historicidade como a história propria-
antes e outro a ser datado depois Esses dois "adoras" têm a peculiaridade de mentedita: "A decisão na qual o ser-aí retorna a si mesmo descerraas possi-
só poderem ser proüendos a partir de um recurso à observação fálica ou pos- bilidades a cadavez fáticas do existir próprio apara/r da /ze/a/?çaque a deci-
sível de outros. Porque enunciados sobre a própria morte só são possíveis são mesma asizr/l/e comojogada"(ST, 3 83). Decisivo é aqui o adendo "como
como enunciados que se datam simplesmente, também é impossível para al- jogado". Na medida em que o caráter dejogado do ser-aí é o ser-possível no
guém mesmo medir o próprio tempo de vida. No entanto, isso não significa mundo, o comportamento sempre recomeça nele uma vez mais. Como foi
que se poderia conceber essetempo de outro modo que não como mensurá- mostrado, essecomeço é, por sua vez, descerrado na angústia porquanto ela
vel. Esse fato dá-se uma vez mais porque só "no tempo" há algo como uma revela o mundo em sua insignificância. Visto assim, o novo comportamento
"extensão", ou sela,só de acordo com a compreensão"vulgar" de tempo. principiante é desl igado de todo e qualquer contexto, e, no entanto, ele se en-
Heidegger comete aqui o erro inverso ao de sua interpretação de Aristóteles: contra ao mesmo tempo como lm] comportamento determinado em seu con-
enquanto ele lá projetav.aa interpretação da estrutura da temporalidade para texto. Nesse contexto, ele é conhecido e possui seu valor conjuntural a cada
o interior do ' tempo", ele profeta aqui a estrutura do "tempo" para o Interior vez passível de narração. À primeira vista, uma tal caracterização dúbia do
temporalidade. Em contrapartida, caso se quebre a luminosidade que in- comportamento é naturalmente paradoxal. Todavia, ela só se nl(»tra coma
cide sol)re a estrutura da temporalidade, não resulta daí apenasum conceito paradoxal se o contexto do comportamento é compreendido e//zizía /.ea//da-
consoante de história de vidas mostra-se, além disso, em que aspecto toda do; e isso significa: se ele é compreendido como um contexto tradicional-
história de vida está acomodada em uma série de outras histórias que são to- mente legado em enunciados temporais. Se isso significa, por outro lado,
das ligadas em enunciadostemporais: não se pode, por exemplo, falar sobre que a assunçãode possibilidades fálicas acontece "a partir de herança", en-
seu nascimento sem contar histórias que não pertencem ao próprio tempo de tão a herança mesma é pensadaa partir da "assunção", e, com isso, o contex-
vida; não apenas todo e qualquer modo de comportamento (determinado. mas to do comportamento é des/s/or/c/fado. Certamente. não fica claro de imedi-
também a própria vida em geral encontra-se em um contexto que só é acessí- ato o que deve significar aqui "desistoricizar". Para deixar isso mais claro
vel no tempo por meio da tradição
pode-sedizer inicialmente que a desistoricização é z///Tapas/erra
a//brada em
294 Günter Figal
Martín Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 295

relação a enunciados historiários; uma postura na qual um enunciado inte-


para uma leitura nova, que acolhe suas perguntas e as coloca novamente.
ressaprimariamente sob o ponto de vista do modo de comportamento tradi-
Assim, eles só são adequadamentecompreendidos em meio a uma leitura
cional e não mais sob o ponto de vista de que o comportamento ocorreu no
que repete o que está neles manifesto. Junto à orientação pela relação dos
tempo tl até t2. Indo além, também não é mais importante agora o fatáde o
textos que se legam com sua leitura renovada,também é particulamlejlte
n)odo de comportamento ser adj radicadoou conferido a uma pessoadeterá i-
profícuo tornar claro como se precisa conceber o contexto do comportamen-
çada, pois o modo de comportamento só é efetivamente interessallte por po- to na historicidade. Não se trata aqui de um contexto que é comunicado en]
der ser asstmlido. Não obstante, não é suflciente para lml a tal assunção que o
enunciadostemporais, mas de um contexto de tradição e repetição mesmas
modo de comportamento sqa conhecido por meio de relatos historiários
Também essecontexto é linguístico e é só por isso que se pode também deno-
Justamente quando esses relatos são exatos, eles levam em conta o contexto
minar a historicidade a "história propriamente dita": somente porque no ser-aí
do modo de comportamento e deveria ser impossível assumirjuntamente
o comportamento lingtlístico é legado, o recurso a enunciados temporais que
com esse modo de comportamento também o seu contexto. Um modo de
foram Feitospor outros é também possível. CoRRido, na orientação por enun-
comportamento só é, então, assumível se ele se lega co//?o /díodo de co//2Por-
ciados temporais deixa-se de considerar que essesenunciados mesmos perten-
fa/?íen/o e não é apenas.legado em enunciados. E nesse sentido que Heideg- cem a um contexto de tradição; não se vê que já se estava essencialmente em
ger afirma : "0 retorno decidido aojogado escondeem s i um/egar-se de pos-
um tal contexto com toda e qualquer exposição feita -- se é que se trata da rea-
sibilidades tradicionais, apesar de elas não se mostrarem necessariamente
lidade do comportamento proferida em primeira linha em enunciados tem-
co//zo tradicionais" (S7, 383). O fato de essas possibilidades não se ligarem porais. Textos que, em contrapartida, se mostram primariamente como mani-
necessariamente co//lo tradicionais significa que elas não são necessaria-
festações de lml comportamento Ihlgiiístico, só podem ser lidos adequada-
mente datáveis de acordo com o calendário. Todavia, o próprio legar-se de mente na medida en] que se recomeça sempre uma vez mais. SÓlemos correta-
que Heidegger fala aqui acontece sobrehtdo em textos, e, em verdade, mais mente textos filosóficos se nós mesmos Êilosofamos. Por isso. enl meio à ocu-
exatamente em textos, na medida em que eles não se constituem como rela-
pação com eles, também pode ser experimentado que o comportamento tem o
tos sol)re ocorrências quaisquer ou como descrições de algo o que eles cer-
seu começo no ser-possível. "Tendo sido essencialmente" seé de maneira pró-
tamente /a/ 7óé//?podem ser --, mas sim como /zza/?gês/anõesde de/er//z/na-
pria o ser-possível, e tendo sido p/op//a/z?en/e também se é, por isso, em um
dos co/zzpo/ra/nen/os. De maneira insigne, os textos da filosofia se apresen- movmlento que é transparente como realidade desse ser-possível
tam como tais textos. Por isso, também não pode provocar mais um grande
A interpretação da historicidade, tal como foi desenvolvida até aqui
espantoa introdução heideggeriana do termo "repetição" para caracterizar não é certamente indubitável. Mesmo que não se queira contestar Qfato de a
mais exatamente a assunçãode possil)ilidades a partir da herança. "Repeti- hemleilêutica heideggeriana dos textos filosóficos ser alcançada com ela
ção" pode ser o conceito-chave para o projeto filosófico heideggeriano por-
pode-se de qualquer modo duvidar de se o contexto tradicional que se é no
que esse prqeto é essencialmente "histórico" e como que imiscui a si mesmo ser-aí só pode ser transparente na filosofia, ou, mais exatamente. no filoso-
na discussãoda historicidade. Junto à autocompreensãode Heidegger tam-
far. O próprio Heidegger não chega nem mesmo a ligar a "repetição de uma
bém é possível, por isso, explicitar como a assunção repetidora das possibili- possibilidade existencial essencialmente passada"com a lida conatextos. Ao
dades a partir da herança precisa ser afinal pensada: nessa assunção, os tex-
contrário, ele diz que nessarepetição "escolhe-se para si os seusheróis"(Sr,
tos tradicionais são fontes para o próprio questionar fllosóHico e não docu-
385). Todavia, essa ideia é pouco convincente. Com a escolha de u+n herói
mentos para um detemlinado comportamento lingtl ístico que pode ser carac- estaria ligado, por flm, o desejo de ser assim como um outro e, com isso, se
terizado desseou dessemodo em enunciadostemporais. Como fontes para o pemlanecena presojustamente à estrutura do "impessoal": em meio à com-
próprio questionar filosófico, essestextos têm ca/.á/er de pois/b///Jade, e
paração dos modos de comportamento não se suspende o distanciamento pe-
somente em razão disso sua leitura renovada pode ser "repetição" no sentido culiar dos enunciados historiários, e isso fica claro quando se segue a alusão
kierkegaardiano de uma "lembrança voltada para a frente". i9 Eles se legam que Heidegger faz aqui ao escrito nietzschiano Z)a z/////dado e da desfia/7/a-
ge//zda Afs/ó/falara a v/da. A escolha de lml herói na concepção "monu-
Essaé a tradução que G. Jungbluth tbz em X/er#egaard( 1968). Na tradução de l)re »'fede/-/lo-
/ung (A repetição) feita por E. Hirsch, temos: na repetição nós "nos lembramos da coisa a partir
mental" da história tem, em verdade, uma vantagem porque essaconcepção
de uma inclinação para a ltcnte" (D/e W/eder/ro/u/vg, P. 3) mostra "que a grandeza, quejá existiu, fo i, em todo caso,passiva/ Ímanvez, e,
Mártir Heidegger:fenomenologia da Liberdade 297
296 Günter Figas

portamento assim conhecido seja um modo de comportamento que se lega,


por isso mesmo, com certeza,será algum dia possível novamente".zoNo en-
pois ele pode ser conhecido porque um outrojj lançou mão dele. Nesse caso,
tanto, justamente isso não significa que esse"grande" também pode ser re-
ele não precisa ser lembrado "voltado para a frente", ou seja, ele não precisa
petido. Como Nietzsche vê muito claramente, a história monumental ihide ser repetido. O que está se legando é, com certeza, a linguagem mesma que
por meio de analogias" e "encanta com similitudes sedutoras".'' Se a histó- erfaz essencialmente a convivência pública. Somente se se leva em con-
ria é descrita como "imutável e possível uma segundavez", ela corre o "risco
ta o caráter lingüístico do domínio público e o caráter de legado da lingua-
de se tornar algo distorcido, embelezado, e, com isso, próximo da livre in-
gem pode-se compreender em que medida Heidegger designa o aconteci-
venção".2zPortanto, vê-se que a menção de Heidegger a Nietzsche em sua mento histórico - do ser-aí como "destino" (Sc/z/cAFa0, e esse, porquanto é
fala sobre as possibilidades "monumentais da existência humana"(ST, 396) um "co-acontecimento", como "destinação" (Gescbfc#) A "destinação" é
fica aquém da intelecção nietzschiana e igualmente aquém de sua própria
justamente "o acontecimento da comunidade, do povo" (ST, 3.84)
contraposiçãoentre o "elemento propriamente histórico" e o "elemento esté- Essesconceitos não são, em verdade, elucidados por Heidegger mais
tico"(ST, 396). Por fim, ele fica aquém mesmo de sua concepção da decisão
amplamente. Contudo, se nos lembrarmos de que a discussão acerca do "dis-
histórica como repetição. Repetíveis são apenas modos de comportamento
curso" e da "linguagem" foi estabelecidasob a influência de Humboldt, en-
que se legam e com os quais nós mesmos podemos começar lmla vez mais. tão se tenderá a identificar o conceito heideggeriano de povo com o hum-
Esses modos de comportamento manifestam-se em textos cujas formas de
boldtiano de nação. Tal como Humboldt diz, nação e língua se equivalem
colocação dos problemas são assum íveis; mesmo o comportamento em rela-
completamente.23 Uma nação é justamente deHinível por meio de ''uma for-
ção a obras de arte só é uma repetição para o artista que lê a obra como um
ma espiritual da humanidade caracterizada por uma determinada língua'
texto em vista da forma com que se dá aí a colocação do problema e como
Somente porque nação e língua são termos idênticos, uma nação tem tam-
manifestação de lml modo de comportamento. Tampouco poder-se-á, en-
bém história: a língua "ata por meio de tradição e escrita o que de outro modo
fim, responder afimlativamente à pergunta sobre se as possibilidades só po-
seperderia irreparavelmente. Ela mantém a todo instante vivo para a nação,
dem ser legadasem textos Hilosóficos. Textos científicos ou tratados também
sem que essa tenha consciência disso, todo o seu modo de pensar e de sentir,
são repetíveis quando eles próprios possuem caráter de possibilidade e não
toda a gama do que foi conquistado espiritualmente, como lml solo a partir
se esgotam no fato de pertencerem a um contexto historiário determinado.
do qual os pés alados pousando no chão podem se alçar a novas elevações,
No entanto, a melhor forma de deixar claro como seprecisa entenderuma lei-
como lmla via que, sem se estreitar de forma asHlxiante, amplia entusiastica-
tura repetidora dá-sejunto a textos filosóficos.
mentea força por meio da própria limitação".2sNa língua, tal como Hum-
Se a repetição está, por conseguinte, ligada a textos que se legam ou a
boldt a pensa,estão como que incorporados determinados modos de pensa'
obras que podem ser lidas como textos, a decisão não pode ser em todo caso
mento e, por isso, reside também em "toda língua uma visão de mundo pecu-
histórica. Todavia, éjustamente isso que é afirmado por Heidegger ao expor
liar".2ó Não obstante,uma tal visão de mundo seria, pensando com Heideg-
a historicidade com uma indicação para a "interpretação pública do ser-aí" e
ger, equivalente àquelas vinculações e perspectivas de início citadas, das
ao dizer sobre o "compreender existenciário próprio" que ele "se esquivaria
quaisjustamente vale se libertar no pensamento. Desta feita, ela é inessenci-
tão pouco da interpretação tradicional que sempre lança mão a cada vez a
al para a decisão. Somente a tentativa de tomar transparentes como tais essas
partir dela e contra ela, e, porém, a favor dela uma vez mais, das possibilida-
vinculações e perspectivas é por conseguinte "histórica"; e isso só j uma vez
des escolhidas na decisão" (ST, 383). No que um modo conhecido de com-
mais possível Porque se repetem determinadas manifestações lingdisticas.
portamento como possil)ilidade é tomado, ou seja, é experimentado como
Todavia, não é difícil explicar em que medida Heidegger acredita poder
movimento a partir do ser-possível em meio à negação do comportamento,
interpretar a decisão como repetição. Já na discussão da decisão, ele determi-
toda decisão se mostra consequentemente como "histórica". Seguramente se
na o "manter-se-livre como a retomada" de uma decisão, na medida em que
precisará dizer com Heidegger que todo modo de comportamento é conheci-
do em sua interpretação públicas mas isso não implica que o modo de com-
z; Mercê /// (Obras 111), p. 251
Z'Merke /// (Obras 111),p. 160
)Consideração Intelltpestixla
11,'p.2Q. !amei'#e /// (Obras 111),p. 159
CoilsidelaçãoIntelttpesttva
11.p.'22.23. z'Meras /// (Obras 111),p. 224
Consideração Intetttpesíiva
11.p.23.
298 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 299

novamente de uma possibilidade que se lega, então sua realização porsi só


já documenta que o que se lega possui caráter de começo. Ao mesmo tempo,
contudo, o que se lega é a manifestação determinada de lml comportamento,
a saber,do filosofar. No entanto, ele não pode ser preestabelecido em seu co-
meço como essamanifestação determinada. O que se lega é um movimento
fixado no texto a partir do ser-possível.Porquea repetição nãoé nadaalém
de um movimento que recomeça renovadamente, ela é como que a fluidiüi-
cação do texto fixado e, com isso, "instantânea". Ela é instantaneamente
transparente como movimento que começa novamente, e, em verdade, em
meio à tonalidade afetiva da angústia. A angústia, entretanto, não é nadahis-
tórico; como tivemos a oportunidade de perceber, ela viabiliza muito mais
pela primeira vez a decisão histórica. Todavia, o passodecisivo ainda não foi
dado até aqui. Pois, ao se conceber a filosofia a partir da estrutura do ser-aí,
mostrou-se simultaneamente que ela não é apenashistórica. E isso estáple-
namentede acordo com a concepção heideggeriana: "Toda investigação e
nãoem última instância a que se movimenta na esferada pergunta central so-
breo ser éumapossibilidade antigadoser-aí"(ST, 19),e,porisso,"só pode
ser exposta a partir do conceito corretamente compreendido de ser-aí" (OC
24, 455). Nesse caso, entretanto, não bica claro como a filosofia pode chegar
efetivamente a esse"conceito corretamente compreendido de ser-aí" e, para
além do ser-aí, pode perguntar antes de tudo pela origem desseente. Se fos-
semosinterpretar mais amplamente a filosofia de maneira correspondente à
estrutura do ser-aí, então precisaríamos dizer: a possibilidade que se lega do
filosofar transforma-se en} um prometona repetição, um projeto que, então, é
Filosofa histórica transparente como resposta ao ser iminente. Como decisão histórica, a filo-
sofia é o ponto de equilíbrio da diferença da liberdade. Mas essainterpreta-
ção não é suficiente, pois nela permaneceobscuro, por fim, em que o filoso-
far sediferencia de outros prqetos.
A detemlinação heideggerianada"ciência" como "conhecimento levado
a tempo em virtude do desentranhamento como tal"(OC 24, 455), uma deter-
minação ligada somente à filosofia, não tem por meta inicialmente essadife-
renciação. No entanto, o que pode ser desentranhada não pode jer completa-
mente inacessível; elejá está antes descerrado de uma maneir:i'não temática.
O apreendersempre não temático do ser-possível na tonalidade afetiva e do
ser iminente no prometoapontam paraa compreensãode ser "pré-ontológica:
que é característica para o ser-aí. Nessa compreensão de ser, "o ser-aí não se
comporta como existente diretamente cm relação ao ser como tal, nem tam-
pouco em relação a seu próprio ser como tal 110sentido de que ele o compreen-
deria ontologicamente. Ao contrário, porquanto o que está em jogo para o
ser-aí é seu próprio poder-ser, essepoder-ser é compreendido primariamente
300 Günter Final
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 301

guita sobre como se comporta a tematização do ser-aí em relação à temporali-


dade, e, para respondê-la, é preciso que se atente uma vez mais para a simples
circunstância de que o filosofar se articula em proposições. No que diz respei-
to a esseponto, não é possível deixar de considerar que só o menor número
dessasproposições é de enunciados que estabelecem datações. Em grande nú-
mero, trata-se de proposições voltadas para a presença, cujo caráter temporal
na maioria das vezes não é acentuado. Nelas tampouco se expressa por conse-
gllinte o ser-aí em sua temporalidade, pois isso acontece nos enunciados que
datam simples e duplamente. Filosofando precisa-sejustamente abstrair de
que se é, da maneira apresentada até aqui, um ente com o modo de ser do
ser-aí, se se quiser descrever a estrutura do ser-aí em sua acessibilidade tempo-
ral. Essaabstraçãometódica é possibilitada pelo caráterobjetivante da lingua-
gem. Heidegger mesmo viu claramente que o discurso fílosóüico empreende
uma tal objetivação. Assim, nos Grz//7dprob/e/7ze der P#d/70//Temo/og/e (Os
problemas fundamentais da fenomenologia), ele afirma o seguinte sobre a on-
cologia: o que está em questão na ontologia é a "objetivação do ser como tal"
(OC24, 458). Da mesma fomla, o que está emjogo na última página de STéjá
o problema da ''objetivação" (ST, 437). Em verdade,não fica claro à primeira
vista qual é o valor conjLmtural exato que esseproblema tem. No entanto, se se
leva em conta que as reflexões estabelecidas por Heidegger aqui tinham sido
planeadas como transição para a terceira seção sobre "Tempo e ser", não é di-
fícil ver que já se trata aí do caráter temporal do filosofar. Sobre essecaráter
encontramos formulado nos Gn//7dprob/e/7íe: "Todas asproposições da onto-
logia são propor/iões fe/n/20r/a/s. Suas verdades desentranham estruturas e
possil)ilidades do ser-aí sob a luz da temporialidade. Todas asproposições an-
tológicas têm o caráter da ve///as /en2pora//s" (OC 24, 460). Para compreender
essassentenças, é preciso atentar inicialmente para o fato de que para Heidcg-
ger os tempos "temporalidade" (Ze////cabe/r) e "temporialidade'' (Te/7zpora//-
rór) não são equivalentes e ainda será preciso esclarecero que ele entende
exatamente por "temporialidade".27 Das dificuldades com as quais se passa a
ter de lidar aí, ao menos umajá se encontra em nossas mãos. Quando Heídeg-
ger diz quejunto a proposições temporiais o que está em jogo são#struturas e
possibilidades do ser-aí "sob a luz" da temporialidade, então ele parece querer
pensar uma acessibilidade para o que é indicado nessasproposições, que é
'ainda mais originária" do que a temporalidade. Essa suspeita, ao mesmo tem-

27Heideggerfaz aqui uma distinção entre dois termos sinónimos na língua alemã: Ze////c/2Á:e//e
Ze//zpo/-a///d/.Como não possuímos correlatos para essesdois temos na língua portuguesa e ten-
do-se em vista o caráter mais originário da Ze/npo/a///ã/ em relação à Ze////c/2X:e//,optamos pelo
neologismo "temporial''. Não nos valemos do termo ''temporariedade'' pelo fato de o adUetivo
'temporário" poder ser entendido no sentido de passageiro. (N.T.)
302 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 303

po que é ratinlcada,é relativizada por lmla outra proposição dos G/'z//7dProó/e de como sua àpXrl. Exatamente como Platão pode afirmar que as idéias e o
r/le/?."Temporialidade", assim encontramos formulado no texto, "é a tempo saber intuitivo a elas correlato são "do género do bem", em vista da concep-
ralização maximamente originária da temporalidade como tal"(OC 24, 4P9) ção heideggerianaé preciso dizer que o cuidado, mesmo se não é concebido
Com isso, por um lado, está dito que a tenlporialidade não tem de ser dilfêrerp em sua origem, é "do género da temporalidade". Heidegger mesmo leva em
dada da temporalidade no sentido de que se poderia ainda uma vez hlterpre- conta esseaspectoao falar dos "esquemashorizontais" da temporalidade.
tá-la como lmla temporalidade que está na base da estrutura do tempo. A [em. Certamente, não está claro de imediato como precisamos pensar esses es-
poralidade não é nenhum derivado da temporialidade. Se o fosse, a temporiali. quemas.De início, parece que Heidegger quer pensar as eh/ases da tempo-
dade não poderia ser a "temporalização da temporalidade co/l?o /a/".'E Hei- ralidade na relação com seusesquemas como movimentos orientados para
unia finalidade, e, depois de tudo o que foi dito sobre o caráter ekstático da
degger não deixa nenhuma dúvida quanto ao fato de o lenitivo aqui ser lml ge-
/7///vz/ssz/ó/ec//vz/s ao dizer que o tenllo "temporialidade" denom ina "a tempo- temporalidade, isso seria inadequado. Como encontramos formulado, a tem-
ralidade, na medida em que ela mesma setorna tema como condição de possi- poralidade possui "algo assim como um horizonte" porque as eAs/asesnão
bilidade da compreensão de ser e da antologia como tal"(OC 24, 324). Por ou- são "simplesmente arrebatamentos para...". Pertence efetivamente "às eXs-
tro lado, contudo, a temporalização denominada "temporialidade" tampouco fasesum 'para onde' do arrebatamento": "Denominamos essepara-onde da
pode ser idêntica à temporalidade, como essa fomtulação induz a pensar. Nes- eh/ase o esquemahorizontal"(ST, 365). A compreensãodessaideia ainda é
se caso, não teria nenhum sentido o discurso superlativo sobre a temporaliza- diHlcultadapelo emprego heideggeriano dos termos "horizonte" e "esque-
çao "maxmlamente originária" e a introdução da temporialidade não desem- ma" como equivalentes, ao mesmo tempo que fala de um horizonte e de três
esquemas.Somente se "horizonte" e "esquema" são equivalentes, pode-se
penharia o papel que deve desempenhar: com ela não se conseguiria esclare-
cer o s/a/zri de sentençasontológicas. diferenciar os horizontes do futuro, do passadoessenciale do presente,como
Heidegger também o faz. Nesse caso, contudo, fica obscuro em que medida
Es qttenlaí ism o "horizonte" pode ser uma vez mais coordenado à temporalidade em suauni-
dadeekstática(ST, 365). Para avançarmosaqui é por isso recomendável que
Naturalmente, a diversidade entre temporalidade e temporialidade só desviemoso foco da pergunta sobre a unidade da temporalidade, assim
pode ser completamente desenvolvida no contexto de uma discussãoporme- como do discurso que Ihe é pertinente sobre lml horizonte, concentrando-nos
norizada da temporialidade. Com isso, porém,já se abandona o âmbito dos na pergunta sobre os esquemasda temporalidade.
problemas de .Se/'e /e/npo. Por outro lado, só adentramos o âmbito dos pro- A partir das explicitações heideggerianas desses esquemas, fica patente
blemas de Te/npoe se/ quando nos orientamos pela temporalidade, tal como que eles não são outra coisa senão os três momentos da estrutura do "cuida-
foi interpretada até aqui. Para expor a diversidade entre temporalidade e do": "0 esquema no qual o ser-aí chega a si lançando-se para o seu futuro.
temporialidade, pode-se recorrer ainda uma vez à correspondência entre a quer própria quer impropriamente, é o e/l?v//-/ardede s/ /zzes/llo.O esqucnla
concepção heideggeriana e a alegoria da linha cm Platão. O matemático. tal no qual o ser-aí é descerrado para ele mesmo comojogado na disposição to-
como Platão o pensa,já é caracterizado por meio do fato de a idéia do bem mamos como o Unia-o-qlrê do caráter dejogado ou como o junto-ao-que da
Ihe ser inacessível como tal e de ele sempre precisar dar concretude sensível entrega (...) O esquema horizontal do presente é determinado por meio do
às idéias por ele sal)idas intuitivamente com o auxílio das coisas. Como vi- pa/'a-qzrê"(.ST, 365). Portanto, o que se tem em vista é que o futuro só é expe-
mos, a decisão corresponde a esseestado de fato na medida em que a tempo- rimentado no ser iminente ao qual se precisa a cada vez responderão passado
ralidade não é concebida nela e em que o ser iminente na abertura do ente essencial só na disposição como o apreender do ser-possível para o compor-
sempre é descerrado em sua diferença em meio ao comportamento. Não obs- tamento e, por nim, o presente só como referir-se ao utensílio, ou seja, só
tante, isso não pode significar que o ser iminente na abertura do ente não é como começo de um comportamento. Em contrapartida, não se experimenta
experimentado de alguma maneira temporalmente. Se isso fosse assim. não o caráter ekstático da temporalidade mesma, o fato de o futuro se converter
se poderia nem explicar o caráter temporal da ocupação, nem tornar plausí- instantaneamente no passado essencial, e esseuma vez mais no hlturo, a par-
vel a possibilidade de enunciados que estabelecem datações. Permanece. em tir do qual sc começa instantaneamentea se comportar. Dito de outra manei-
verdade, inconcebido o fato de a temporalidade ser a acessibilidade do cui- ra, os esquemas são as três eAxfases da temporalidade, lmla vez que são apre-
dado em sua articulação. Contudo, o cuidado é dominado pela temporalida- endidos no ser-aí e não pe/?fados como a origem do ser-aí.
304 Günter Figa
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 305

::Mg ll!:lERli$=BI'l vez mais como indício de que a doutrina kantiana do esquematismo é para
Heidegger como que uma ponte sobre a qual elevem da concepção platónica
das idéias para a sua concepção de temporalidade. E por isso que a doutrina
kantiana do esquematismosó é transportável para a concepção da temporali-
dade em limites muito estreitos. Os momentos da estrutura do "cuidado" não
se mostram como correlatos de puros conceitos, mas conceitos só se deixam
desenvolver por essesmomentos porque eles mesmosjá foram desde sem-
pre apreendidos. A determinação heideggeriana dos esquemascomo o "pa-
ra-onde" das eh/ases também é, com isso, no fundo incompreensível. Ela
sugerequeo ser-aí é por um lado "puramente temporal" -- o que quer que isso
signifique -- e que ele "produz" ao mesmo tempo os esquemasdo em virtude
de, do passadoessencial e do referir-se para representarjunto a essesesque-
mas a sua pura temporalidade. Caso essa fosse a opinião de Heidegger, ele
precisaria tratar a "pura temporalidade" em suasek!/ases de maneira análo-
ga aos "puros conceitos do entendimento" segtmdo Kant e, então, também
comprovar a sua possibilidade em lmla dedução transcendental. Já na prele-
ção Z,og/#(Lógica) do semestrede inverno de 1925-1926, porém, Heidegger
tinha se empenhado ao máximo em escapardessaconsequência. Em verda-
de, encontram-se aqui, sem dúvida alguma, formulações de acordo com as
quais o tempo precisaria ser compreendido como síntese de lula "pura toma-
da de consideração" e do "em vista do que da toldada de consideração"(OC
21, 345). Contudo, a resposta kantiana à pergunta sobre como essasíntese
precisa ser pensadaem sua possibilidade já é rejeitada por Heidegger pelo
fato de ele interpretar o "eu penso" como um "modo" do tempo. "0 eu pen-
so", assim ele o diz, "não é no tempo(Kant tem toda razão nessarecusa). Ao
contrário, ele é o tempo mesmo. Dito mais exatamente, ele é um de seusmo-
dos, e, em verdade, o modo da pura presentiHicação"(OC 21, 405). De acor-
do com Heidegger, com essaidéia "evita-se desde o começo o princípio dog-
mático da posição cartesiana": "Um eu penso não é inicialmente dado como
o mais puro apr/or/, e, então, é dado o tempo. Esse tempo não é a estação in-
termediadora para a saída em direção a uin mundo. O ser do sujeito mesmo
gira ser-aí é inversamente ser-no-mundo, e esseser-no-mundo só.Épossível
porquea estruturafundamentalde seuser é o próprio tempo, aqui sob o
modo da presentificação"(OC 21, 406). Todavia, um "eu penso" que é com-
preendido a partir da presentiflcação não pode ter mais a função de funda-
mentaçãoque Kant Ihe atribui. Na medida em que Heidegger torna compre-
ensível o "eu penso" a partir da temporalidade, ele restabelece o direito de
sua concepção platonicamente inspirada do tempo a partir da origem do
ser-aí. Essa concepção é, por sua vez, incompatível com a concepção kantia-
:8Cf f?epúó//ca 365, p. 601a. na do tempo como um esquemados conceitos puros do entendimento. Caso
306 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 307

Heidegger semantivesse preso a essaconcepção, então o tempo seria de fato


berdade em sua diferença. Por meio dessa diferença, entretanto, nem a liberda-
apenas uma "estação intermediadora" para o mundo e para o ser-aí, na medi-
de nem o filosofar são completamente determinados em sua liberdade. Junto à
da em que essetem de ser pensado com o ser-no-mundo. Não semanter preso
discussãodo âml)ito de problemas intrínseco a Te//zpoe ser, o que está em
a essaconcepção, porém, não significa precisar abdicar da ideia dos esque-
questãoé por isso clarificar ainda em um outro aspecto o que é liberdade.
mas temporais em geral. Significa apenas abdicar do contexto kantiano e
compreender, pelo caráter esquemático da temporalidade, a maneira como a
temporalidade é apreendida pré-ontologicamente. Com isso, contudo. essa g 10. Tempo e ser
idéia tambén] acabapor fornecera possibilidade deuma primeira determina- Ao âmbito de problemas de Te/17po
e ser pertenceinicialmente a per-
ção da relação entre temporalidade e temporialidade: a temporialidade não é gunta sobre como é preciso detemlinar mais exatamente a temporialidade
nenhum tempo diverso da temporalidade; e/a é níz//fo /lza/s a re/npora//dada em sua diferença ante a temporalidade. Heidegger discutiu essapergunta na
//zesmza,
se qt/c se/170s ciqzre/?íasre/lzpo/'a/s. Somente assim ela pode ser si- preleção sobre os Grzrndp/oó/e/7zelZ9o que permitiu que ele tivesse tambén] a
multaneamente o tempo das proposições Ontológicas. convicção de ter apresentadoaí uma "nova elaboração da terceira seção da
Dois aspecto.simportantesdo filosofar, que sãoexpostosem sentenças primeira parte de Ser e re/npo"(OC 24, 1). Não ol)stante, a preleção também
antológicas, precisam ser realçados aqui. Por lml lado, pode-se tomar agora Rica aquém do programa formulado para essa seção em ST: o programa de
de maneira ainda mais clara o caráter temporal da historicidade filosófica. uma "explicação do tempo como o horizonte transcendental da pergunta so-
Em meio à repetição de possibilidades que se legam, não se trata essencial- bre o ser"(Sr, 4 1). Heidegger só chegaa algumas poucasindicações efetiva-
mente de construir para si um prometono contexto da ocupação; em verdade mente vagas da conexão entre temporialidade e aprioridade, de modo que o
é disso também que se trata por ocasião do uso de salasde aula. de material caráter temporial das proposições ontológicas aqui em questão não é desen-
de escrita e bibliotecas. No entanto, mais importante do que isso é natural- volvido. Em conformidade com isso, mesmo a retomada da pergunta sobre
menteo trabalho de pensamentono interior da leitura que se reinicia, dos 'Tempo e ser" em uma conferência tardia, apresentadaem 1960, não é senão
próprios textos tradicionais, a Himde dizer de maneira diversa o que neles é uma confissão do caráter insuHlcientenão apenasda segundo informações
pensado ou de dizer algo diverso na linguagem do texto. Os aspectos aqui de Heidegger, destruída primeira continuação de ST, mas igualmente da
mencionados da historicidade, a saber, a tradição, a discussãosempre uma preleção sobre os G/'lrndproó/e//ze.Se essa preleção fosse realmente a "ex-
vez mais iminente e não cristalizada com essatradição e a leitura que se rei- posição cabal da temática de 'tempo e ser'",30então permaneceriaincompre-
nicia podem ser inteiramente compreendidos como esquemasda temporali- ensível o que leva Heidegger a retirar expressamente de sua conferência pos-
dade que não são idênticos aos esquemas do ser-no-mundo cotidiano. mes- terior a estrutura da diferença que é normativa para a preleção. Na preleção,
mo se essesesquemas em parte se sobrepuserem a eles. Exatamente como a ainda havia formulações tais como: somente por meio da intelecção da "co-
análise do ser-aí elaborada, uma historicidade assim compreendida teria, mum-pertencença originária do comportamento em relação ao ente e à com-
com certeza, o sfa/z/s de uma "hipótese verdadeira" no sentido platónico preensãode ser(...) a parir da temporalidade" é possível encontrar o "duplo
como a meta para além da análise do ser-aí é a temporalidade, a repetição de risco" ao qual a filosofia "sempre se viu presa até aqui uma vez mais em sua
uma filosofia que se lega também é uma pressuposição para a pergunta sobre história"; o risco de que ou bem "todo o õntico seja dissolvido no ontológi-
o fündame.lto do ser-aí e, com isso, do ser em geral
co", "sem a visualização do fundamento da possibilidade da própria antolo-
Por outro lado, a discussãodos esquemastemporais deixa claro que a li- gia", ou bem de que "se desconheça completamente o ontológico e o afaste
berdade, tal como foi hlvestigada até aqui, também só foi concebida esquema- por meio de um esclarecimento õntico", "sem compreensão das pressuposi-
ticamente. A liberdade em sua diferença só pode ser pensada no contexto do ções ontológicas que todo esclarecimento õntico como tal já traz consigo:
em virtude de", do "caráter de jogado" e do "começo do comportamento" (OC 24, 466). Em contrapartida, Heideggger diz em sua conferência Te//?po
que precisa ser então negado como um comportamento real. Todavia, isso sig- ese/' que o que importa é "pensar o ser em seu próprio, lançando o olhar atra-
nifica que, com a discussãoda temporialidade, a liberdade também pode ser
sualizada de maneira diversa da que se deu até aqui. Na medida em que o fi- 29Figal refere-se aqui uma vez mais à preleçào "Os problemas fundamentais da f'enomenolo
losofar é uma liberação dasvinculações do falatório, ele também pertenceà li- gia". (N.T.)
30V.Herrmanneill OC2, 583
308 Günter Fígal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 309

vés do tempo propriamente dito(...) sem consideração da ligação do ser com lhadamente.No contexto atual, é suficiente ver que Heidegger liga o título
o ente", e "abandonar a metafísica a si mesma" (C/', 25). Certamentes. não 'metafísica" primariamente à diferença da liberdade e, então, também o em-
fica claro sem mais o que isso significa. Já a significação do termo "metaHzi- prega para designar uma certa parcialidade da Hilosofla em relação a essa di-
ca" em STusado ainda de maneira distanciada -- conduz a erro. "Metlási- ferença a parcialidade de sempre pensar e tematizar o indeterminado, que
ca nao e apenas,e nem em primeira linha a designação para a filosofia que não é ele mesmo "algo", e, nesse sentido, não é "nada", a partir do determina-
vai de Platão a Nietzsche. Ao contrário, como o atesta a preleção inaugural do. Uma vez que o título "metafísica" se mostra como um título para essa
de Heidegger em Freiburg, ele é um termo para"o acontecimento fundamen- parcialidade, Heídegger não pode mais designar seu próprio filosofar como
tal no ser-aí"(OC9, 122); e isso significa uma vez mais: para o ponto de equi- 'metafísica"; e, porquanto "metafísica" é lma sinónimo de filosofia, tampou-
líbrio da liberdade em sua diferença. Porquanto a filosofia é também desig- co como "Hilosofia". Na Car/a sobre o Az//canis/z?o,
por exemplo, ele fa la por
nada como 'metafísica", ela é sempre compreendida como uma possibiticia- isso mesmo de "pensamento" ao invés de "filosofia", preservando completa-
de no ser-aí que como tal pode ser transparente ou não. Não se precisa mais mente essemodo de falar nos escritos posteriores.
do que o discurso acerca do 'risco duplo" da filosofia até aqui para poder tor- Não há dúvida de que esses escritos e, dentre eles, também a conferência
nar inteligível o fato de Heidegger ter em vista exatamente isso. Segundo sl a sobre Te/npo eser, têm por isso o s/a/zls de uma "crítica imanente" (CP, 6 1).
convicção, "a dissolução de todo o antigo no ontológico" é característica da Sim, como o terceiro texto em ZzrrSac/zedes Dente/vs (Para a coisa do pen-
fllosoHia de Hegel; nela, a diferença da liberdade permanece encoberta. uma samento) atesta,3iHeidegger compreendeu sua produção coidunta desde os
vez que o que é a cada vez determinado não é deixado em sua comum-per- anos de 1930 como uma tal crítica imane-lte. Quando, sem reflexões de his-
tencença com o indeterminado e negado como determinado, mas é justa- tória da õlosoHia,nos orientamos pela citada significação fundamental do
mente suspendido à universalidade concreta do conceito. Essasuspensãosó termo "metafísica" em Heidegger e lemos essa significaçãojuntamente com
é certamentepossível em razão da diversidade do que é a cada vez determi- as sentenças de acordo com as quais o que importa é pensar o ser sem o ente e
nado e do indeterminado que é descerrado para além desse. Vista a partir de abandonar a metafísica a si mesma, a meta dessa crítica é mais bem compre-
Heidegger, a universalidade concreta do conceito precisaria ser, então. inter- endida. E isso quer o pensamento heideggeriano mesmo precise ser ou não
pretada supostamente como uma combinação feita a partir da mostração do computado ainda à tradição "metafísica". Desta feita, fica claro que se trata
que é a cada vez determinado e da objetivação do indeterminado, de mo(lo de abandonar a liberdade a si mesma em sua diferença e, assim, corresponder
que o sentido positivo da suspensão en] Hegel emergiria de uma pos/çâb do ao estadodo pensamentojá alcançado na tematização da temporalidade. Se-
indetemainado. Em contrapartida, o desconhecimento do ontológico é carac' gundo a coisa mesma, com isso, a "crítica imanente" de Heidegger à sua an-
turístico da ciência e de uma filosofia que se orienta pela ciência. A ciência tiga concepção aponta para a parcialidade na estrutura da d iferença. A obser-
comporta-se "de uma maneira insigne em relação ao ente mesmo (...) e tmi- vação feita na Car/a sopre o Àlr/ ?an/s/??o
de que o "pensar não segue adiante
camente em relação a.ele" (OC 9, 12]). Nos dois casos, o que está em jogo com a linguagem da metafísica"(OC 9, 328) d iz, então, que o âmbito de pro-
são objetivações de diferentes aspectosda estrutura do ser-aí. Todos esses blemas de Te/zzpoe ser não pode ser desenvolvido em uma linguagem que te-
aspectos têm em conltml o fato de o ser-aí mesmo permanecer inconcebido. matiza o ser a partir do ente. Precisar-se-á mostrar em que medida a antiga
Contudo, não se precisa levar em consideração aqui até que ponto é plau- concepção heideggeriana da temporalidade é afetada por isso. Por si só, se era
sível ou não essaconcepção heideggeriana e, em particular, a sua crítica a pertinentedizer que a temporialidade já se diferenciava da temporajjdade na
Hegel. Com efeito, teses ejuízos genéricos sobre um autor em particular e antiga concepçãoheídeggerianapelo fato de não possuir nenhtml caráter es-
sobre a filosofia tradicional em geral são em Heidegger tão usuais quanto em quemático, então essaantiga concepção também não pode ser parcial apenas
muitos de seusintérpretes. No entanto, elas contribuem pouco para a com- na estrutura da diferença. Se se quiser tornar distinto até que ponto a preleção
preensão da coisa mesma que está em questão para Heidegger e, em sua ge- sobre os Grzl/vdprob/e/lzejá é uma contribuição ao menos em parte adequada
nericidade, permanecem, além disso, estéreis e freqüentemente equivoca- ao problema de Te//7poe ser, será preciso, conseqtlentemente, mostrar em
das. O que Heidegger tem a dizer sobre a tradição filosófica pode se tomar
frutífero na medida em que se tomam suas teses como hipóteses para a inter- 3'O terceiro texto de Zir/' Sacamdes l)e/?#eni ao qual Günter Final se refere aqui é: O.#/}i da./i/o-
pretação de textos filosóficos com os quais certamente é preciso lidar deta- s(Úa e a rarílXadapensa/7ze/7/0.
Há uma tradução de Ernildo Stein dessetexto e da conferência
Xe/npoe ser no volume de Heidegger dos pensadores.(N.T.)

.1
310 Gúnter Fígal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 31 1

que ponto Heidegger vai além da estrutura da diferença nessaconferên;ia quedas temporais de S7com a temporialidade contradiz um conceito ade-
Nessecaso, pode-se também compreender que a conferência posterior Zen2- quado de temporialidade, e, ao mesmo tempo. esclarecer em que medida Hei-
po e ser não desenvolve, por exemplo, uma nova concepção, mas radicaliza degger pode, apesar disso, acreditar que é possível desenvolver o problema
simplesmente uma idéia da preleção sobre os G/'zr/7dp/'ob/e/7ze. /' da temporialidade a partir de uma orientação pelo esquematismo. Nesse con-
A partir da estruRira conceptualda própria preleção sobre os Grz//7dpro- texto, é natural começar pelo último ponto porque se pode seguir assim o
ó/e/ne não fica claro como Heidegger pede alcançaressa radicalização. Mes- curso de pensamento de Heidegger.
mo se se estiver tentado a pensar dessa forma, não é preciso responder a essa A detemlinação da temporialidade é exposta cona uma discussão reno-
pergunta escrevendo-seuma história do desenvolvimento do pensar heideg- vada da manualidade do utensílio. Como Heidegger diz, essadiscussão é in-
geriano de 1927 a 1962. Uma tal história de seu desenvolvimento teria. além teressante "em consideração à sua <do utensílio/ G.F.> possibilidade tempo-
disso, a desvalltagem de perder de vista a conexão dos passossingulares de rial, ou seja, em consideração ao modo como compreendemos temporal-
pensamentoem meio à pluralidade de textos e de terminologias diversas. Na mente a manualidade como tal"(OC 24, 433). De início, não se consegue ver
melhor das hipóteses, ela apresentaria essespassos de pensamentocomo certamente até que ponto há aqui um problema que não seria resolvido com a
meras estaçõesde uma biografia de pensamento. A isso acrescenta-seo se- discussão da temporalidade. De acordo com as análises de ST, o ser iminente
guinte: uma tal história de desenvolvimento não pode ser escritajá em razão é por fim "compreendido" conjuntamente com as possibilidades para a sua
da basetextual insuficiente. Não obstante,não se precisa abdicar por isso de determinação. Essas possibilidades podem ser tomadas como projetos e m-
uma discussão com as questõesaí emjogo. Pode'se partirmuito mais da es- terpretadas de uma maneira determinada na lida com o utensílio quejá está
utura conceptual da liberdade em ST e mostrar como Heidegger desdobra sempre aberto para essa lida. Porquanto o utensílio tem caráter referencial,
nos escritos que preparam o curso de pensamento da conferência posterior pode-setornar inteligível a sua acessibilidadea partir da temporalidade,tal
um aspecto da liberdade que o levou a pensar o tempo de ull] ser não mais como foi discutida até aqui. Mas o que está em questão para Heidegger no
concebido na diferença. Porque a liberdade nâo é ape/?ai liberdade na dife- contexto anualnão é absolutamente o caráter referencial do manual. Ele quer
rença,.tambémé possível iralém da estrutura da diferença na discussãoda li- concebermuito mais tanto a manualidadequanto a sua modificaçãona
berdade. Nesse caso, tudo isso que, de acordo com STe com os conceitos re- "não-manualidade" como "variações de um fenómeno fundamental" que ele
levantes para a sua concepção da liberdade, Heidegger tem a dizer sobre o designa "formalmente como presença e ausência, e, genericamente, como
prob.ema da liberdade acaba por se revelar como uma contribuição para o presentidade"3z(OC 24, 433). Isso deve significar uma vez mais que, em
âmbito de problemas de Ze/npoeier. A pergunta sobre a l iberdadenão é ape- toda referência ao utensílio e em toda descoberta de lml ente simplesmente
nasa pergunta-chave deST. Ela é também a pergunta a partir da qual é possí- dado que também pode ser descoberto como faltante, esse ente prectsana ser
vel tornar inteligível a "virada" de Ser e /e/npo para Tens/20
e se/. Se,'com sua compreendido desde o princípio em vista da presentidade" (OC 24, 436).
discussãoda liberdade depois de ST, Heidegger trabalha nadireção do âmbi- Presentidade" seria, então, o ponto de unidadejá sempre apreendido, sob o
to de problemas de Te/7zpoe ser, então faz grande sentido dese lvolver essa qual a presença assim como a ausência de algo por si só podem ser expert'
discussão a partir da estrutura conceitual de Te/npo e se/'. A tal discussão montadas.Nessa medida, ela seria um esquemaou lmla idéia. Da idéia de
também pertence a idéia de uma "história do ser presentidadeprecisar-se-ia dizer mais além que ela possibilita pela primeira
vez a compreensão de ser, uma vez que ela é compreensão de pr ,ença e au-
remporialidade sência; e é exatamente para esseponto que Heidegger quer se eficaminhar:
O ser mesmo precisa, se é que o compreendemos, ser de algum modo proje-
Se se estudam na pr.eleçãosobre os Grzrndproó/e/zzeas passagensnas
quais Heidegger detenllina mais minuciosamenteo que compreendepor
mporialidade", então parece que se tem a ver à primeira vista com unia 32Hánessapassagemdois termos sinónimos na língua alemã que se diferenciam a princípio ape-
nas por sua origem etimológica: .H/?lt'ese/?/2ef/
e P/pese/z:. Para marcar a diferença entre esses
modificação de sua tese acerca do carárer esquemático da temporalidade. Se
dois termos, optamos por traduzir o primeiro termo por presença e o segundo por presentidade
a determinação da temporialidade se esgotasseaí, não se poderia mais agir. A razão dessaescolha é Rindamentalmente o fato de o termo P/pese/?: indicar para Heidegger o
mar que a temporialidade é a temporalidade sem os esquemas temporais modo a partir do qt.ial todos os entes presentes ganham a presença, o modo de ser no qual elesjá
Para sustentar essaafirmação, é preciso mostrar que a combinação dos es- semovimentam, a vigência de uma çolnpreensãode ser no presente.(N.T.)
I''Yy
312 Günter Figa 313
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade

lado em vista de algo. Com isso não está dito que o ser precisaria ser apreen- nar a manualidade e a não-manualidade tanto quanto o caráter de ente sim-
dido objetivamente no prometoou interpretado e determinado. isto é. conce- plesmente dado e a privação do simplesmente dado como esquemaspré-on-
bido como algo apreendido objetivamente. O ser é projetado em vista-de cológicos do presente. Como Heidegger mesmo diz, "presença" e "ausência
algo a partir do qual ele se torna compreensível, mas o projeto se dá lill ma- já são determinaçõeslorn?a/s e pressupõem como tais a lematização das di-
neira não objetiva. Ele ainda é compreendidode maneim pré-conceptual. versas maneiras do descobrir. Em contrapartida, o discurso acerca da pre-
sem uin Z.ogoi; nós designamos um tal fato a compreensão pré-ontológica de sentidade leva a cabo uma formalização que vai ainda além. Isso não signifi-
ser" (OC 24, 398). Quando se recorre ao termo "prometo",tal como Heideg- ca que com o termo "presentidade" denomina-se algo que não é experimenta-
ger o faz incessantementena preleção dos Grzrndproó/Cale,o que está cega- do pré-ontologicamente. Pode-sedizer muito mais que tudo o que é descober-
mente em questão é se essa compreensão pré-ontológica de ser pode ser to- to alcança a presentidade. Dessa forma, presentidade não é nada além da uni-
mada adequadamente.Se Heidegger quer tomar vigente para a 'compreen- dadepensadatemporalmente do descobrir e do descoberto, e, no mais tardar
são' de presença e ausência um projeto próprio, então não se consegue mais com essaafirmação, a analogia com a idéia platónica do bem fica evidente.
ver como isso pode ser compatibilizado com o caráter futuro do projeto, um Todavia, esseresultado permaneceaquém da interpretação da tempora-
caráter elaborado em ST. Em verdade, Heidegger tambémjá tinha falado de lidade e até mesmo da análise do ser-aí que é levada a termo ainda sem lmla
um "prometoprimário" en] ST, e, com efeito, no contexto de sua determina- consideraçãoda temporalidade. Não se careceria da elaboração da estrutura
ção da temporalidade como o sentido do cuidado; isso tinha, contudo. intei- do "cuidado" e de sua temporalidade se fosse possível tornar inteligível a
ramente sua justificação porque o cuidado como "preceder" pode ser, de fato unidade do descobrir e do descoberto apenasa partir de lmapresentepensado
caracterizado a partir do füüiro. Em contrapartida, se se fala também de um esquematicamentecomo presentidade. Setodo descobrir só pode ser conce-
prometoem vista da presentidade, então o termo "projeto" experimenta uma bido no contexto da estrutura do "cuidado", então também a pergunta sobre a
ampliação.de sua significação que não é mais, em última instância. controlá- unidadede descobrir e descoberto precisa ser colocada levando-se em conta
vel. Não obstante, o que Heidegger quer dizer aqui não é sem sentido. Com a plena temporalidade e, de acordo com isso, como pergunta sobre o caráter
certeza, só se consegue tornar compreensível segundo que ponto de vista de unidade da temporalidade mesma. Fica claro que esseé o ponto em ques-
isso faz plejlamente sentido se se aquiesce a uma restrição que Heidegger tão com o problema da temporialidade, quando Heidegger fala que ela é a
mesmo aceita ao menos nas frases citadas, a saber, a restrição de que o dis- "temporalidade em consideração à unidade dos esquemas horizontais per-
curso acercado esquemada presentidadesó diz respeito à compreensão ca- tencentes a ela"(OC 24, 436). JLmto a essa determinação também Rica, certa-
ro/óg/ca de ser, ou melhor: a concepção de ser. Presentidade é, então, aquele mente, claro o caráter problemático de seu ponto de partida. E desdeo princ í-
esquema sob o qual pode ser tematizado o ser do que quer que possa vir a ser pio equivocado conceber a temporialidade de maneira análoga ao esquema-
descoberto. O fato de a presentidade ter algo a ver com uma tal tematização tismo temporal do ser-aí pré-ontológico. Nesse caso, estar-se-ia obrigado a
vem á tona muitas vezes na preleção sobre os Grz//7dproó/e/zze,e, em verda- questionar uma vez mais os esquemascoordenadosàs três eÁs/asesem vista
de, certamente não de maneira casual, no contexto de lmla determinação da de sua unidade. No entanto, issojá é por si só problemático porque preci-
temporialidade. "Os esquemas das eks/ases", assim encontra-se formulado sar-se-iabuscar aqui um ponto de vista unificador que não é mais temporial.
aqui, "não podem ser descolados estruturalmente delas, mas a orientação Heidegger mesmo viu esseproblema, mas só o deu a entender indiretamente
compreei.lsiva pode ser, sina, primariamente voltada para o esquema. A tem- na preleção sobre os G/zíndprob/e//?e. Conforme a estrutura concJeitualda
poralidade tomada assim primariamente en] vista dos esquemas horizontais preleção, ele teve de diferenciar três esquemas temporiais uns do; outros e
da temporalidade como determinações da possibilidade da compreensão de explicita-los em sua diversidade. Depois de realizar também a diferenciação
ser perfazo conteúdo do conceito genérico de temporialidade"(OC 24, 436). dessestrês esquemas,ele, sem dúvida alguma, limita sua explicitação a um
Em verdade, Heidegger não esclarece como quer tomar mais exatamente o ponto, a saber,a presentidade,justificando essalimitação com lml argtmlen-
"voltar-se primário da orientação compreensiva". De qualquer fomla, está to dídático: "Para não confundir muito o olhar voltado para o fenómeno da
fora de questão que ele seja pré-ontológico, pois pré-ontologicamente o des- temporalidade, um fenómeno quejá é por si mesmo difícil de ser apreendido,
coberto é por fim experimentado como à mão ou como não estando à mão. nos limitamos à explicação do presente e de seu horizonte ekstático, a pre'
como simplesmente dado ou como faltante, de modo que seria preciso desig- sentidade"(OC 24, 435). A partir de uma tal limitação didática, contudo, não
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 315
314 Günter Figa

rentemente apenas elucidativo do termo "presença". Todavia, "presentar" e


se consegueesclarecero fato de Heidegger falar um pouco mais tarde de tl/lz
"presença" não significam o mesmo Tal como acontece tão frequentemente
'horizonte da unidade ekstática da temporalidade", acrescentando: "Junto a nos textos tardios de Heidegger, a forma gramatical já expressa aqui uma
essehorizonte, toda eh/axe do tempo, isto é, a temporalidade mesma,4em
idéia. O termo "presença" precisaria ser lido como o resultado de uma ação
seu fim. Esseflm não é, porém, nada além do começo e do ponto de partida verbal enquanto "presentar" precisaria ser lido de maneira verbal, dando :a
para a possibilidade de todo projetar"(OC 24, 437); e, como se precisa com-
pletar, não apenasdo projetar, mas também do ser-aí temporal em geral. No
que conceme à coisa mesma, com essa idéia de zr/lí horizontejá se alcança a
posição da conferência posterior sobre Te/npoe ser. Além disso, as detemli-
naçõescitadas documentam uma reaçentuaçãoda problemática da unidade:
se,como em ST, Heidegger ainda fala inicialmente da "unidade ekstática da
temporalidade'',:' ele passa a pensar na segunda fomlulação o Ao//zon/e zr/vo
co/ ?o essa z/n/dado. O que significa "horizonte" nesse contexto pode ser cla-
rificado por meio do uso cotidiano dessetermo. No campo,o horizonte é a
sua abertura limitada ejá foi mostrado em meio à interpretação das eh/ases
temporais em que medida a aberRira pensada como tempo é limitada: em seu
caráter ekstático, a temporalidade é uma combinação de acessibilidade e ina-
cessibilidade, de abertura e fechamento. Se se denomina o horizonte da tem-
poralidade lml "esquema" ou uma " idéia", então a combinação de abertura e
fechamento é a idéia do tempo mesmo. Na interpretação da conferência hei-
deggeriana sobre Te/npo e ser, é possível mostrar como é preciso pensar
mais exatamente essa combinação.

]'entoo como eentpo-espaço

Já se consegue compreender o quão estreitamente estão ligadas as dis-


cussõessobre Te/npo ese/ com a idéia do horizonte uno na preleção sobre os
Grzrndprob/e/Pze pelo fato de Heidegger também estabelecer alí a pergunta
sobre o tempo orientando-se inicialmente pelo presente.Ele conquista uma
vez mais o conceito de presejlte em meio a uma inversão da direção de ques-
tionamento designada pelo título da conferência e começando com uma de-
terminação de "ser": "0 que dá o ensd o para denominar tempo e ser conjun-
tamente?" Desde os primórdios do pensar europeu ocidental até hoje, ser diz
o mesmo que estar presente. O presente(Cega/7}pa//) fala a partir de presen-
tar (,4nwesen),de presença( 4nwesenbe//)" (C/', 2). A determinação de ser
como "presentar" forma certamenteapenaso começo do curso de pensa-
mento, lmaa vez que deve ser mostrado que esse "presentar" precisa ser pen'
fado, por fim, apenascomo tempo. Desta feita, somente em meio à realiza-
ção da conferência o seu título alcança a sua razão de ser. Um primeiro passo
de pensamento em direção ao problema de Te/17poe sarja é o acréscinao apa'

33Cf. ST, p. 365.


316 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 317

vem à tona o fato de que o que está ellaquestão para ele não é iniciatmentl sencial, e, inversamente, esse, o ter sido essencial, fornece para si futuro'
uma clarificação do caráter temporal da filosofia, tal como a introdução do (CP, 14). Exatamente como a análise da temporalidade de ST, esse estado de
termo "ser" no início da conferência sugere. Trata-se aqui muito mais do ser coisas também é pensado a partir do futuro. Sobre o hituro é dito que ele se
acometida pelo ente, ainda que essejá sempre seja compreendido edil vista converte instantaneamente no passadoessencial, assim como essese con-
verte no Rituro, e o futuro \mla vez mais no presente em meio ao começo de
do "acometimento" do presentar. Todavia, para esclarecer o curso de pensa-
mento é aconselhável manter apartados essesdois aspectos. um comportamento. O fato de Heidegger não falar mais aqui do caráter eks-
Se logo no próximo passo se fala de "ausentar", elltão também não deve tático da temporalidade, mas de um "alcançar" e "trazer", faz com certeza di-
ser levado em conta senão o modo como ele é inicialmente experimentado. ferença. Em verdade, não há dúvida de que é impossível dizer diretamente o
O acometimento do ausentar consiste, nessecaso, en] que "muita coisa não que significa "alcançar" e "trazer". Tal como freqilentenlente acontece na
se presentamais sob a forma de presentarque conhecemos,ou sqa, no senti- obra tardia de Heidegger, trata-se aqui de metáforas que quase não são mais
do de presente", sem que se tomem nulas pormeio daí: "mesmo esse não es. traduzíveis. No entanto. deve ter ficado claro ao menos o intuito heidegge-
riano de acentuar com elas a combinação de futuro, ter sido essencial e pre-
tar mais presente se presenta imediatamente em seu ausentar, a saber, segun-
do o modo do que foi essencialmente e nos acomete"(CP, 13). No contexto sente. Com isso, as metáforas também correspondem à idéia do presentar ca-
de Sr, o não-mais-presente que mesmo assim ainda nos acomete tinha se racterístico do tempo em seu conjunto. No que concenle a esse presentar
mostrado como o histórico. Mas o presentar não é determinado apenas no mesmo, tivemos até aqui a impressão de que ele é sempre o presentar de algo
sentido do passado essencial: "0 ausentar tambén} nos acomete no sentido determinado. Em vista do presente, o presentar do que é descoberto, e, em
do ainda não presente. E ele o faz segundo o modo do presentar no sentido do vista do futuro e do ter sido essencial, o presentar de algo que ainda não é ou
que não é mais atual, e, desta feita, de algo ausente: o que é futuro se presenta
vir-ao-nosso-encontro" (CP, 13). Porquanto Heidegger fala aqui do "ainda
não presente", não se poderá interpretar "o que vem ao nosso encontro" na medida em que é esperado, temido ou aspirado, e o que foi essencialmen-
como o ser iminente. O ainda não presente é muito mais algo a cada vez de- te, na medida em que não lembramos dele, tomamos conhecimento dele por
terminado e, por conseguinte, precisa ser tomado como um prometoou como meio de enunciados historiários ou o repetimos como lmla possibilidade his-
algo esperado ou temido. tórica. Se se dissesse isso, então ainda não se teria clarificado o que significa
Se no contexto atual é possível elucidar também o presente, o ter sido o fato de tanto no presentequanto no futuro e no ter sido essencial alcançar-
essencial e o futuro inteiramente a partir de um recurso às anteriores análises se o presente e não algo que se presenta ou que se ausenta. Ter-se-ia, além
disso, deixado semconsideração que Heidegger caracteriza o ter sido essen-
do tempo, então é novo em relação a essasanálisesque agora o presente, o
cial e o ítituro mesmos como "ausentar", e, assim, chega-se à idéia à primeira
passadoessenciale o füülro sejam caracterizados
por meio do presentar
Como diz Heídegger, nós encontramos no "ausentar, sqa ele o que foi essen- vista paradoxal de que o Rlturo e o ter sido essencial são o presentar de um
ausentar. Todavia, "presentar" e "ausentar" não são traços característicos de
cialmente, seja ele o futuro, um modo de presentar e de acometer que, de
modo algum, coincide com o presentarno sentido do presenteimediato algo determinado, mas traços característicos do tempo mesmo que só se tor-
(CP, 14). Dito de outra maneira, o ter sido essencial e o futuro são em verda- nam compreensíveis a partir da combinação de futuro, ter sido essencial e
de caracterizados por um presentar, mas não por uma presença, e é fácil ver presente. Por isso, vale tomar essa combinação ainda mais exatamente.
como aqui a idéia de "presentidade" inerente à preleção sobre os Grz/ndpro- Heidegger também apreende o "recíproco-alcançar-se" (CP, 14) de futu-
ó/en?e foi modificada. Se Heidegger queria pensar antes a presentidade que ro, ter sido essenciale presentecomo "iluminação" do "tempo-espaço" (CP
abarca presença e ausência como esquemas do presente, acolhendo a idéia 14), e o discurso metafórico acerca de um tempo-espaço pode ser clarificado
do horizonte uno da temporalidade, ele concebe agora essehorizonte como lml pouco além se se atentar para o campo lingüístico ao qual essaexpressão
presentar que, no passado essencial e no futuro, se mostra como o presentar pertence. Se se fala de um tempo-espaço, então é natural designar, correspon-
dentemente às dimensões do espaço, agora tambén] futuro, ter sido essencial e
de lula ausência. Seguramente, ainda não está claro o que isso significa. Pa-
ra avançar aqui é preciso levar em conta como Heidegger determina a rela- presente como "dimensões". Esse modo de falar não é novo. Heidegger se ori-
ção entre futuro, passado essencial e presente: "Advir, como não sendo ainda enta aqui expressamente pela determhlação kantiana, de acordo com a qual o
presente, alcança e não traz mais ao mesmo tempo o presente, o ter sido es- tempo só tem uma dimensão (Cl?P, B47/A3 1). Em sintonia com essaonenta-
318 Günter Figas
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 319

ção, ele coloca a sua idéia do tempo-espaço em contraposição à representação tal conto caracterizado: como aquilo que com seu porvir traz o passadoes-
de lml tempo unidinlensional: "0 espaçode tempo habitualmente compreenJ sencial, assim como essetraz o porvir e como a relação mútua de ambos traz
dido no sentido da distância entre dois pontos do tempo é o resultado do cálcu- a clareira do aberto"(CP, 15). O que chama a atenção aqui é o fato de, à posi-
lo do tempo. E por meio dele que o tempo, representado como linha oq4éarâ- ção na qual se esperaria o presente, advir uma significação que essa posição
metro -- tempo que assim é unidimensional --, é medido por números. O ele- não podia ter na temporalidade pensada ekstaticamente. Se Heidegger diz da
mento dimensional assim pensado do tempo como a sucessãoda sequência de 'clareira do aberto" en] uma outra passagemque ela é "o aberto para tudo o
agoras é tomado de empréstimo da representação do espaço tridimensional" que se presenta e ausenta" (CP, 72), então se poderia concluir daí que ela
(CP, 15). Se se leva em conta, além disso, que o cálculo do tempo sempre pres- abarcao ter sido essencial e o futuro. Todavia, não é isso que setem em vista.
supõe a simples datação, então pode-se tomar compreensível o tempo pensado O que se tem em vista é muito mais que o presente só pode ser o "aberto para
de maneira unidimensional como o tempo de uma série de acontecimentos tudo o que se presençae ausenta" porque o tempo também tem as dimensões
Com certeza, o tempo não é aí a série de acontecimentos mesmos. Ele é. sim. a do hituro e do ter sido essencial. O "alcançar que tudo determina", assim o
acessibilidade de sua ordem seqtlencial, ou, expresso de outra forma: o tempo diz Heidegger, "traz no porvir, no ter sido essencial e no presente o presenLar
éjustamente isso. o fato de se poder "atravessar mensuradoramente" a série de que é próprio a cada um, mantendo-os separados pela iltmlinação e reten-
acontecimentos. Porque eles podem ser "atravessados mensuradoramente". o do-os assim unidos um ao outro na proximidade a partir da qual as três di-
tempo é "dimensional".
mensões permanecem aproximadas uma da outra" (CP, 16). No entanto, a
A tridimensionalidade do tempo, tal como Heidegger a quer pensar proximidade "aproxima reciprocamente porvir, passado essencial e presen-
aqui, não consiste em que os acontecimentos não soam apenas ordenados te, na medida em que os afasta. Pois ela mantém o que essencialmente foi
em sua seqtiencia com os termos relacionais "anterior" e "posterior", mas aberto enquanto recusa seu porvir como presente. Esse aproximar da proxi-
também possam ser determinados como "passados", "futuros" e "presen- midade mantém aberto o advento do futuro, enquanto, na vinda, retém o pre-
tes". Se se dissesseisso e se orientasse, portanto, pela diferenciação usual sente.A proximidade que aproxima tem o caráter da recusa e da retenção.
desde McTaggart34 entre uma série B e uma série A do tempo, ter-se-ia ca- Ela mantén) previamente ligados lml ao outro em sua unidade os modos do
racterizado uma vez mais o futuro, o ter sido essencial e o presente apenas a alcançardo passado,do futuro e do presente"(CP, 16). Com "proximidade":
partir do que vem ao encontro no tempo, e aí permaneceria sem ser esclareci- o que se [em em vista aqui é que as dimensões do tempo se pertencem mutua-
do qua lé o sentido especificamente temporal dos tempos "anterior" e "poste- mente, sem, contudo, coincidirem. Mesmo em meio ao emprego cotidiano
rior", assim como dos tempos "passado", "futuro" e "presente". A idéia de dessetempo sempre se dá a entender um certo distanciamento entre o que
Heidegger pode ser interpretada da seguinte forma: acontecimentos só po- estáperto de um e de outro. Se nas três frases citadas Heidegger quer tomar
dem ser, em geral, ordenados e determinados com os termos citados porque mais exatamente a proximidade das três dimensões, então o que está em
o tempo podeseratravessadomensuradoramenteem suatridimensionalida-
questão para ele é expressar na mesma medida o seu comum-pertencimento
de. A tridimensionalidade do tempo é a acessibilidade de todo acontecimell- e o seu distanciamento. Nesse caso. como se vê, ele se orienta, uma vez mais,
to, não importando se ele mesmoé denominado"passado", "presente" ou pelo presente: o futuro é a "retenção" do presente e o passado essencial, a sua
futuro"; e isso vale também em vista dos termos "anterior" e "posterior 'recusa". Com esses termos, porém, o futuro e o passado essencial não são
independentes da acessibilidade dos acontecimentos. Mesmo se se denomi- apenasdistintos do presente, mas ao menos indiretamente o presente mesmo
na um acontecimento "anterior" ou "posterior" a um outro, não se consegue passa a ser detemlinado primeiramente por recusa e retenção'pComo tal, o
deixar de pressupor sua acessibilidade; só sepode falar em geral de um acon- presente só é "aberto" e só se mostra ao mesmo tempo como "o aberto para
tecimento seja se supõe sua "presença",3s e a tentativa heideggeriana procu- tudo o que se presenta e ausenta" por sua retenção e por sua recusa: nada
ra tornar inteligível essapresençacomo lmla presençatridimensional. Se- pode vir ao encontro, nada pode ser lembrado e repetido, esperado, temido e
gundo suaspalavras, a dimensão do tempo repousa"no alcançar iluminador aspirado sem ser presente como algo determinado; mas essa atualídade é, em
todo caso, caracterizada pelas duas maneiras de sua subtração. Se se tenta
"Cf. McTaggart (1908).
tornar claro o que isso significa, então pode-se dizer: o que vem ao encontro
''Essa obyeçãocontra aconcepção da série B como um tempo real também foi desenvolvida por
W. Sellars ( 1982) ou é lembrado ou esperado no instante ganha instantaneamente o espaço da
320 Günter Fígal Martin Heidegger: Fenomenologia.da Liberdade 321

descoberta,da lembrança, da expectativa para alguém, e assim ele também é preciso pensar uma aberütra na qual as três dimensões do tempo estãoapro-
foi igualmente de maneira essencial, de modo que se pôde prestar atenção ximadas umas das outras e, com isso, também distanciadas umas das outras.
nele. Se se compreende o a cada vez presente nesse contexto, então nãg4e E é algo assim também que Heidegger quer, ao que parece, dizer. Tal como
pensa mais em sua presença. Ao contrário, pensa-se em seu presentar. "Pre- seencontraformulado, a proximidade é "o alcançarprimeiro, principial, no
sentar" visa o "acometer" de algo que não precisa ser nenhum olÜeto, mas sentido literal prin-cipiallte" (CP, 16), e a quarta dimensão é, conseqiiente-
também pode ser uma ideia, uma expectativa, uma lembrança, e, em verda- mente, a acessibilidade das três dimensões umas às outras. Todavia, uma tal
de, de tal forma que no instante de seu vir ao encontro, de sua expectativa e interpretação conduz a uma iteração insustentável de "acessibilidade". Se o
de sua lembrança, ganham corpo tanto a sua recusaquanto a sua retenção. tempo mesmo é determinado como "acessibilidade", então é evidentemente
Sem a retenção, ele não poderia vir ao encontro, ser lembrado e esperado ins- semsentido dizer dele que suasdimensões são acessíveisumas às outras. Se
tantaneamente, mas seria simplesmente apenas e sempre presente em um quisermos compreender, contudo, o que diz o discurso sobre uma quarta di-
sentido atemporal; ele não pode nem vir ao encontro, nem tampouco ser lem- mensãodo tempo, podemos nos manterjunto ao fato de Heidegger determi-
brado e esperado sem a recusa, pois se ele não fosse recusado, ele não pode- nar aqui como "principiam" o "alcançar-se reciprocamente" das três dimen-
ria "advir", e, como o que advém, vir ao encontro, ser lembrado e esperado sões.Essefato remete uma vez mais para duas formulações que sempre re-
instantaneamente. A presença de algo determinado nunca pode ser pensada tomam em sua conferência, a saber: "dá-se ser" e "dá-se tempo".'ó Se dei-
senão na abertura que como tal é um presentarcaracterizado por retenção e xarmos de lado inicialmente a formulação "dá-se tempo" e se nos concen-
recusa. Ela nunca se deixa pensar senão em um tempo tridimensional, e, com trarmos na segunda, então parece que o que está efetivamente em questão
isso, o título da conferência heideggeriana conquista a sua razão de ser. aqui é também o caráter de começo da quarta dimensão temporal. Como Hei-
Certamente, a idéia do presentar que é caracterizado em si por recusa e degger deixa claro em uma reflexão sobre a significação da partícula "se'
retenção sempre possibilita ainda conhecer a articulação do tempo, e, por justamente a sentença"dá-se tempo" não significa que "algo", mesnaoque
isso, é preciso perguntar como precisa ser tomada a unidade das três dimen- essealgo fosse tomado como lula abertura a ser pensadade um modo qual-
sõesmesmas. Heidegger responde a essapergunta na medida em que intro- quer e pressupostaainda uma vez para astrês dimensões,"daria" o tempo no
duz uma quarta dimensão: "Já ouvimos: tanto no advento do que ain- sentido de queele teria aí o seu começo. De acordo com Heidegger, o "se" só
da-não-é-presentecomo no ter sido essencial do que não-é-mais-presentee aparececomo algo autónomo se se compreende a formulação "dá-se tempo
até mesmo no próprio presente, sempre atua a cada vez uma espécie de aco- como um enunciado "que está constantemente fixado de maneira rígida na
metimento e de trazer para, isto é, lml presentar. Não podemos atribuir esse estrutura proposicional da relação sujeito-objeto" (C/', 19). Essainformação
presentar a ser assina pensado a lula das três dimensões do tempo, a saber o é em verdade insatisfatória, pois quase ninguém pretenderia defender seria-
que parece óbvio --, ao presente. Essa unidade das três dimensões repousa mente a tese de que o "se" precisa ser tomado lógica ou gramaticalmente
muito mais no proporcionar-se recíproco de cada uma às outras. Esse pro- como sujeito de um enunciado semque se precisasseabdicar por isso de con-
porcionar-se comprova-se como o autêntico alcançar que atua no que é pró- ceber proposições como "dá-se a chuva(chove)" logicamente como enun-
prio do tempo, portanto, como uma espécie dc quarta dimensão e não ape- ciados.37Todavia, é claro que Heidegger, mesmo se ele designa o tempo
nas como uma espécie de, mas com uma quarta dimensão a partir da coisa como "o dom de um dá-se"(CP, 18), não quer pensar nenhum doador desse
mesma.O tempopropriamentedito é quadridimensional"(CP, 15). A partir dom. Ele quer muito mais "determinar o se que dá a partir do darjá,caracteri-
dessassentenças, vem claramente à tona que a quarta dimensão do tempo zado" e "esse se mostra como tempo no sentido do alcançar iluhlinador
deve ser pensada como o "proporcionar-se" das três outras lmlas às outras e (CP, 18). Dessafeita, tudo se mostra como se agorao discurso acercade uma
esseproporcionar não é uma vez mais nada além de sua "proximidade". Ê
por isso que, em uma observação posterior para a introdução a O gire é / ze/a- 3'Em alemão, o verbo haver em sentido impessoal é formado a partir do verbo dar (geóen). Esse
Ps/caP, Heidegger também pode dizer: "0 tempo é quadridimensional: a pri- verbo vem, nesse caso, acompanhado da partícula neutra ei: es g/ór. Heidegger faz menção a
meira dimensão, que retine todas as outras, é a proximidade" (OC 9, 377). essa partícula ao comentar a expressão es Flôr Sefn (há ser) e es g/ór Ze/í (há tempo). O Díodo
Mas em que medida a própria comum-pertencença de presente, retenção e mais próximo que encontramos para acompanhar a estrutura da língua alemã foi tomar a locu-
ção "dá-se". (N.T.)
recusa é ela mesma uma dimensão? Como parece, isso só pode significar que
:7Cf.,quantoa isso,Strawson(1959),p. 214

l
322 Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 323

quarta dimensão do tempo tivesse se tornado supérfluo: se o "dá-se tempo' ao erro. "Ser" e "homem" parecem entregues aqui eles mesmos no "aberto
só dá a entender o proporcionar das três dimensões, portanto, o "presentar' de uma clareira" "à responsabilidade um pelo outro"(P/, 19); e, de maneira
da maneira interpretada, então nada "se dá" além disso. Se nos satisHlzésse- similar, como parece,mesmo o discurso da Car/a sobre o /zz//lla/?/s/no
pode
mos com isso, precisaríamos certailtente abdicar de ainda pensar o "alcan- ser lido como tratando de uma relação. Essa incompreensão provocada sem
çar" das três dimensões de alguma maneira como "principial", e mais ainda: dúvida alguma pelas frases heideggerianas marcou várias interpretações de
não se teria nenhuma possibilidade de dizer mais exatamente o que se tem Heidegger.a9 Talvez sqa mesmo impossível evitar uma tal incompreensão
propriamente em vista quando se fala da "unidade'' do tempo. se se faz a tentativa de tematizar a "pertinência recíproca" entre "ser" e "ho-

Com certeza, ainda não se levou em conta até aqui que Heidegger não mem". Por outro lado, enquanto não se conseguir clarificar o que diz afinal o
fala simplesmente de um começo do tempo, mas sim de um "alcançar no sen- discurso acerca de uma "relação" ou de uma "pertinência recíproca'' que não
tido literal prin-cipiante". Como acontecefrequentementeem Heidegger, o pode ser pensada como uma ligação de dois momentos apreensíveis por sl
h ífen deve dirigir a atenção para os momentos particulares de uma palavra e, também se faz muito pouco ao se assegurar que "ser" não é aqui nada objeti-
assim, ser lmla indicação de que ela deve ser lida de maneira diversa. O "co- vo, nem tampouco ao menos algo autónomo ante o homem. Para avançar, é
piar" (Áangeny' que assim salta aos olhos significa que se pode ser "preso' preciso inicialmente atentar para o fato de Heidegger não querer determ mar,
(g({Áangen), "aprisionado", e, com isso, requisitado pelo "alcançar-se mutua- por exemplo, o homem independentemente do "ser", de modo que tomado
mente" do próprio tempo tridimensional. O presentar a ser pensado de ma- rigorosamente é inadequado fa lar aqui de uma "relação" . Na conferência so-
neira tridimensional, e não apenaso que se presenta, pode "acometer". De l)re Te/npo e ser, o homem é diretamente determinado pelo "ser" e, com isso.
asanálisesde STsão levadasem conta. Com a determinação do homem pelo
acordo com a linguagem do segundo Heidegger, quem é "acometido" por
essepresentar é "o homem", de modo que agora a quarta dimensão do tempo 'ser", contudo, Heidegger também vai além: "0 tempo autêntico é a proxi-
é para ser tomada como a abertura do tempo na medida em que "al)orda" a midade, que unifica o alcançar triplamente iluminador do tempo, do presen-
nós mesmos. Se se leva em conta que Heidegger expõe no início de sua con- tar a partir de presente, passado essencial e futuro. Essa proximidadejá al-
ferência o "presentar" como termo para o ser em sua acessibilidade tempo- cançou o homem como tal de tal modo que ele só pode ser homem na medida
ral, então é fácil atestar que ele tem em vista exatamente isso. Na Car/a sopre em que permanece intimamente ligado ao alcançar triplo e em que permane-
o Az// la/?/s/zzo,por exemplo, a relação entre o homem e o ser é determinada ce de fora a proximidade determinante recusadora e retentora"(CP, 17). Se-
pelo emprego do termo "proximidade", característico também para a combi- gundo a coisa mesma, o fato de o homem "permanecer intimamente !içado
nação das três dimensões: "0 'ser'", assim encontramos formulado, "não é ao alcançar triplo" não significa nada além de que ele é "aí" da maneira in-
Deus nem tampouco o fiuldamento do mundo. O ser está essencialmente vestigada em S7'; e esse "ser aí" com certeza é tomado sem consideração dos
mais além do quetodo ente, e, não obstante,mais próximo do homem do que esquemastemporais. Por isso, os três aspectos tampouco são considerados
todo ente, quer essesda um rochedo, um animal, uma obra de arte, quer esse agora em seu caráter ekstático, mas como as dimensões da acessibilidade do
sqa um anjo ou Deus. O ser é o que há de mais próximo. No entanto, essa ser-aí. Todavia, o que se mostra uma vez mais como contraposta a ST é so-
proximidade permanece para o homem o que há de mais distante"(OC 9, p. bretudo o discurso sobre o "ficar de fora" da proximidade que é determinante
331). E em sua conferência sobre o Pr/nc/pfo de/de/7//dado, Heidegger diz: do alcançartriplo. A expressão "nácarde fora" precisa ser lida aí como a ver-
são alemã do termo "ek-sistência", usado pela primeira vez em Z)a eisê/7c/a
O ser só se essenciaTízae perdura, na medida em que a-comete por meio de
sua requisição ao homem. Pois somente o homem, aberto para o ser, deixa da verdade; e o que "ek-sistência" significa uma vez mais seria m&l compre-
que ele advenha como presentar. Um tal presentar necessita do aberto de endido se se pensasse aqui no tempo "existência" de S7'. O que é denominado
em STexistência está coordenadojLmtamente com a "facticidade" e a "deca-
uma clareira e permanece entregue assim por essanecessidade à responsabi-
dência" aos dois outros momentos da estrutura do "cuidado", ao "estar conti-
lidade do homem" (P/, 19). Essas formulações podem facilmente conduzir
do". Em contrapartida, o./?car decora da proximidade recusadora e retentora
38
Há aqui uma natural diítrença ctimológica entre principiar em portuguêse a/!Áa/zgen
cm ale- que determina as três dimensões é o ficar de fora da unidade expressamente
mão. O termo alemão a/!Ánnge/zcompõe-se a partir do radicallangen. que significa pegar, apa-
visualizada e acometedora. Em verdade, ainda não está totalmente claro
nhar, prender, e da preposição na, que diz fundamentalmente ':)unto a". Para seguir a intenção
do autor, colocamos assim entre parênteses o termo alemão :'Cf. por exemplo, Grilnder (1962)
324 Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 325

como é preciso tomar com mais exatidão esseacometer. Se se supuser, con- garam ao pensamento da presença, mas não do presentar no sentido da pre-
tudo, que o tempo mesmo acomete e pode apresentarunia requisição, então sençadeterminada pela ausência. Desta feita, o caráter de retração do tempo
de acordo com as frases citadas, é sempre ainda o tempo tridimensional que também se cuidla em sua experiência e articulação. Heidegger tenta den\ons-
trar isso ao tematizar a filosofia como "história do ser:
acomete. Sese toma esse"acometer" como a quarta dimensão do temposen-
tão tampouco estáclaro em que medida Heidegger podeconceber essaquar-
História do ser
ta dimensão como unidade do tempo. Por isso, lmla interpretação do "aco-
meter" já toma possível a justificação do discurso acerca dessa quarta di- Se se considera que Heidegger compreende sob o título da "história do
mensão.
ser" a filosofia tradicional como un] todo a partir do que /7ãoganhavoz nessa,
Heidegger preparaa idéia de uma unidade do tempo na medida em que então não é difícil ver que aqui é introduzida uma série de questões. Por exem-
detemlina a recusa característica do passadoessencial e a retenção caracte- plo, pode-se apontar para a aporia que reside em Heidegger querer tematizar o
rística do futuro em vista de um traço fundamental comum: "Recusa e reten- que, em razão de seu caráter de retração, é "impensado" na tradição.40 Do mes-
ção anunciam o mesmo traço(...): a saber,o retrair-se"(CP, 23). Com a apre- mo ntodo, é possível contestar a tese heideggeriana de que há lml tal "impen-
sentação do mesmo traço fundamental intrínseco ao passado essencial e ao sado" e indicar que o que se retrai nos textos tradicionais é pensadojustamente
futuro, Heideggerabstraijustamente de suaspeculiaridades,de modo que na medida em que é excluído, tal como se dá com o não-ser no poema de Par-
eles se mostram agora como indiferenciáveis. Se se leva em conta. além dis- mênides.4i Dependendo de com que conceito filosófico interpretado por Hei-
so, que mesmo o presentesó pode ser pensadojunto com as outras duas di- degger se trabalha, as questões em relação à "história do ser" certamente sem-
mensõese assim é caracterizadoem si por meio de recusae retenção,então o pre se apresentam de maneira diversa. Não obstante, para discutir a idéia hei-
tempo só pode ser pensado a partir de agora co/no z//lzpresa/7/ar qzíeé lglía/- deggerianade uma história do ser, não é preciso se hlserir incondicionada-
rale/7/ezr//l/'e/ra/r-se. Com isso conquista-se uma idéia de tempo, na qual se mente nos textos por ele interpretados. Para encontrar algo plausível nessa
abstrai de todos os termos temporais conhecidos, e pode-se mesmo pergun- idéia, tampouco se precisa assumir as interpretações heideggerianas dos tex-
tar com razão se ainda se tem a ver aqui com o tempo. No entanto, é preciso tos tradicionais desde Platão até Nietzsche, falando exatamemlte como ele do
refletir que o sentido de termos temporais só pode ser indicado se se recorre à
que é pensado na "metafísica" e do que não é. E possível mesmo perguntar
idéia da combinação de presentar e retração, pois tudo o que se presenta no muito mais se o conceito heideggeriano de "história do ser", tal como é fomlu-
tempo não é em si caracterizado apenaspor presença, mas também por au- lado pelo autor mesmo, não contém e ao mesmo tempo encobre uma ideia que
sência: se ele só fosse presente, seria atemporal, e se ele fosse só ausente. não
é inteimmente hlteligível no contexto da pergunta sobre "tempo e ser". Para
seria absolutamente. Tempo, em sua unidade, épresença que e/?zs/ é az/sê/7- elaborar e trazer à tona essa idéia, é preciso se orientar hlicialmente pela deter-
c/a ou azrsênciaqz/ee/zvs/ épresença. Sese caracteriza o tempo dessaforma, minação heideggeriana da "história do ser'
então se mantém, por outro lado, a idéia da conversão que foi desprezada Sob o título "história do ser", Heidegger não cunha nenhuma h estória fi-
junto à discussão das dimensõestemporais. O discurso acercade uma quarta losófica da filosofia no sentido de Hegel. A "história do ser" não é nenhum
dimensão do tempo diz, então, que o tempo é experimentado em sua unidade "sistema em desenvolvimento",'z nem tampouco certamente o mesmo que a
pelo fato de ele se retrair. Somente a partir da experiência do tempo é possí- "historicidade" discutida em S7'. A "história do ser" precisa ser muito mais
vel, como Heidegger pensa,tornar compreensível que há fllosoHia.Filosofia pensada a partirda formulação "dá-se ser". Caso se leve em contaaque o "ser
é o "ficar de fora" da proximidade a ser pensada conjuntamente como pre- é determ inado tanto como "presentar" quanto como tal a partir ddtempo, en'
sença e ausênc ia. Portanto, ela é uma experiência do tempo que não se articu- tão bica claro em que medida aqui também pode estar enl jogo um retrair-se:
la necessariamenteem determinaçõestemporais, mas que é marcada em to- 'No começo do pensamento ocidental o ser é pensado, mas não o 'dá-se:
das as suas articulações pelo caráter peculiar da retração. De acordo cona Hei- como tal. Esseretrai-se em favor do dom que sedá. Um tal dom é füturamen-
degger, isso não significa dizer uma vez mais que esse caráter de retração
também se mostra como expresso. Sua tese é muito mais a de que o tempo
+'Wiehl (1984)
permaneceu tradicionalmente sem ser levado em conta em sua unidade por-
4tGadamer (1983), p. 74
que as pessoassempre se orientaram pelo ente e, assim, simplesmente che- +zHegel,OZ)ras 18, p. 47
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 327
326 Günter Figas

te pensado e conceptualizado exclusivamente como ser em vista do ente" concepção analítico-existencial. Isso ao que se responde é em um caso o ser
indeterminado e, como tal, acessível no futuro: o ser que tanabémé caracteri-
(CP, 8). Depois de tomar como um "enviar"(CP, 8) a dação "que não dá se-
zado em certa maneira por um acometimento. Assim como a compreensão
não seu dom, mas que detém, contudo, aí a si mesma e se retira", ele pâd(?.çie-
terminar a história do ser como "destilação do ser"; uma destilação "eM cu- heideggeriana de futuro como o que "advém a alguém",já a fórmula sempre
repetida, de acordo com a qual no ser-aí está em jogo seu ser mesmo, aponta
jos envios tanto o enviar quanto o 'se' em que se dá o envio se mantêm em si
como a manifestação de si mesmos" (CP, 9). Tal comojunto à formulação por si se para isso. No outro caso, ou sqa, na "história do ser' , as respostas
são as intelecções filosóficas fundamentais que se articulam em teorias ou ao
dá-se tempo" também chama a atenção aqui uma vez mais ojogo heidegge-
nICHosem concepções conexas. Essas intelecções não respondem mais ao
riano peculiar com a significação de "dar". Enquanto o emprego cotidiano
ser indeterminado e aí questionável. Ao contrário, elas respondem a lml
de "dá-se" (há) visa o encontrar-se aí presente e, com isso, a ex/s/e/vf/a de
algo, Heidegger se vale da significação de "dar" como "presentear" e "entre- apelo" ao qual elas não podem corresponder completamente porque o apelo
fala "em meio ao envio que oculta a si mesmo". Na medida em que Heideg-
gar", para interpretar o "dá-se" de maneira diversa do enunciado de existên-
cia. O "dá-se" encontra-se agora no lugar de um acometimento que precisa ger pensa os conceitos da tradição filosófica como "respostas , çle também
ficar de fora e que está "dado", talvez até mesmo "al)andonado" a esse ficar pode tomar compreensível de maneira principial a idéia de uma quarta di
de fora. Se se compreende o "dá-se'' nesse sentido, então fica claro que só se pensão do tempo. Se "presentar" só pode ser pensado como a abertura do
tempo-espaço,então fica claro que teorias filosóficas não são apenastraves-
pode tratar de z//ll"dom", a saber, o tempo-espaço, que precisa ser suportado
sias mensuradoras dessetempo-espaço en\ suas três dimensões. Caso elas
em seu acometimento que se retira. Tanto mais estranhoé por isso, também,
fossem só isso, não se poderia diferenciar o pensar filosófico dos modos de
o fato de Heidegger repentinamente falar de "envios" e designar em seguida
essesenvios como "épocas do destino do ser" (CP, 9). Em verdade, ele não ser do ser aí "pré-ontológico". Por outro lado, tudo o que é apreendido e en-
tão também articulado no pensar filosófico deve poder ser concebido a partir
quer empregar o termo "época" no sentido corrente. Ao contrário, ele quer
do tempo. E para esse ponto que, já no contexto da concepção de ST, remete
pensa-lo como bnoXTI e identiHicá-lo com o que se retrai: "Epoca não visa
o trabalho heideggeriano. Ao ligar expressamente a "história do ser" à antes
aqui um período de tempo em meio ao acontecimento, mas o traço funda-
mental do enviar, o reter-se a cada vez em-si em favor da apreensibilidade do assim chamada "destruição" da tradição filosófica bica claro que, onde Hei-

dona, isto é, do ser em consideração à fundação do ente" (CP, 9). Mas se o degger fala da "história do ser", é justamente isso que está em questão. O
caminho unicamente possível permanece", collao ele diz, "o já pensar pre'
termo "época" visa essereter-em-si e apenas isso, não se consegue ver em
viamente, a partir de Se/' e fe/llpo, o pensamento posterior que trata do desti-
que medida pode-se falar de "épocas do envio do ser": sese fala na pluralida-
de de "épocas", então essetermo ainda não pode designar nem mesmo o no-do-ser, isto é, pensar em sua radicalidade aquilo que é apresentado em
Se/. e rampa sobre a destruição da doutrina ontológica do ser do ente' ' (Cr, VJ-
dom" a ser pensadocomo o reter-em-si no singular, m asapenasas maneiras
Onde essa destruição é levada a termo, porém, Heidegger recorre completa-
diversas nas quais esse"dom" é a cada vez articulado. Não pode haver, en-
tão, nenhuma dúvida quanto ao fato de que Heidegger pensao título da "his- mente à temporalidade e seus esquenlas43e não vai, assim, além da tentativa
de conceber o caráter temporal do filosofar de acordo com a estrutura do
tória do ser" no contexto de suasdiversas articulações, ou, dito na linguagem
de sua conferência, no contexto dasdiversas maneirasde ficar de fora do pre- ser-aí pré-ontológico. Em contrapartida, o caráter temporal do filosofar pode
se tornar inteiramente inteligível, se se consegue co/llp/.fender todas as arti-
sentar que se retira: "Se Platão representa o ser como't8éa e como xoLvuvta
das idéias, Aristóteles como êvépTcta, Kart como posição, Hegel como o culações da presença co/izo a/rfcz{/anões de zl/na p/esgar/dada #11eé e/ 7 si
!ambém atlsência e coitlo tal coloca o pensar eill ctlrso, sem sei' ela mesma a
conceito absoluto, Nietzsche como vontade de poder, então essas não são
doutrinas apresentadascasualmente, mas palavras do ser que respondem a cada vez co/ 7p/e/an7en/ea///czr/áve/. Onde a idéia de uma "história do ser
vai além dessatentativa, ela se torna certamente problemática. Tal como se
um apelo que fala no enviar que a si mesmo oculta, no 'dá-se ser'"(CP, 9). E
mostrou. a "história do ser" é em verdade a história das articulações do pen-
fácil mostrar a analogia dessa idéia com a interpretação das passagenscor-
sar filosófico, e, de outro modo, ela não seria absolutamente possível . Como
respondentes de ST: se é possível dizer em relação a Saque todos os projetos
são respostasao ser iminente, então o discurso gira aqui em torno de respos-
tas a um "apelo". Mas tampouco se conseguedeixar de ver a diferença ante a 43Cf.,por exemplo, OC 24, p. 448
328 Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 329

é que essa idéia poderia ser apreensível senão em suas articulações e comlse pressão(C/', 20). Contudo, se não se quiser apenasdizer que não se pode fa-
poderia falar de outra forma de "épocas" ou mesmo de uma "seqiiênçia de lar sobre o "acontecimento apropriativo" ele e que, portanto, só se pode si-
épocas"? As articulações do pensar filosófico não são considerada; mais lenciar, precisa-se tentar interpretar as indicações sucintas de Heidegger,
agora seguramente como possibilidades repetíveis, e, por isso, pergunta-se tomando claro tanto quanto possível o caráter obl íquo de toda e qualquer de-
se elas podem serconlpreendidas de uma maneira diversa da que se dá a par- terminação dessa expressão. .. .
tir do modelo da /z/s/ór/a discutido em ST. Por mais que Heidegger também Como já foi dito, com a expressão "acontecimento apropriativo" é de-
se empenhe en] apartar a "história do ser" da história datada,44permanece nominada a comum-pertencença do pensar filosófico com as quatro dimen-
obscuro a partir de que outro modelo ele poderia se orientar. sões do tempo. Se se diz isso, então se dá voz, em verdade, ao fato de que o
Ainda não foi até aqui suficientemente desenvolvido como deve ser pensar filosófico só pode ser concebido como o ficar de fora do presentar a
concebido o próprio "apelo" em relação aoqual o pensarfi losóHicose mostra panlr das quatro dimensões do tempo; essepensar não é nada além do atra-
como uma resposta. Heidegger quer denominar o caráter peculiar de retra- vessar mensurador dessa dimensão e não se encontra, por exemplo, em uma
ção desseapelo em uma comum-pertencença com as quatro dimensões do relação com ela, de modo que também se poderia falar dela isoladamente. A
tempo, na medida em que introduz o termo "acontecimentoapropriativo". quarta dimensão do te mpo é ela mesma a acessfb///dada do pensarP7osóW-
Somente conaessaintrodução, a conferência sobre Te/npo e ser chega à sua co Com tais proposições, entretanto, já se objetivou o pensar filosóHiço e a
"acontecimento
meta, pois "o único intuito dessaconferência aponta para a consideração do quarta dimensão do tempo, e quando Heidegger fala de
ser mesmo como acontecimento apropriativo" (CP, 22). Como Heidegger apropriativo", o que está en] questão para ele é evitar uma ta] oUet!:ação de
diz em uma outra passagem,"acontecimento apropriativo" é "a expressão aspectosdiversos de um contexto uno. Nessa medida, o discurso acerca do
diretriz"(OC9, 3 16) de seu pensamento"desde 1936". A essa"palavra dire- "acojatecimento apropriativo!' é ao mesmo tempo unia recusa da concepção
triz" são dedicados os ensaios até hoje ainda inéditos dos anos de 1930 e antiga na qual, como se viu, foi possível falar de maneira diretamente pro-
1940.4s Uma vez que essesensaios não estão acessíveis. será necessário ab- gramática de uma objetivação doser.
dicar de uma interpretação mais detalhada dos contextos que são interpela- As coisas efetivanaente se mostram agora como se, em meiojustamente
dos com essaexpressão.No âmbito da presenteinvestigação, porém, uma tal à tentativa de uma superaçãoda objetivação, Heidegger decaíssetanto mais
interpretação também não está absolutamente em questão. Não é necessário sem travas em uma tal objetivação. Em sua conferência, ele designa "ser" e
senãoclarificar os traços fundamentais da problemática designada com a ex- "tempo" como "coisas" e, ao caracterizar o acontecimento aprolrJativo
pressão "acontecmlento apropriativo" e, para tanto, os textos corresponden- como "estado de coisas", quer acentuar expressamenteo "e" no discurso
tes publicados fornecem uma base suficiente; não se pode quase esperar que acerca de "ser e tempo": "0 que permite que as duas coisas se compertençain
os textos inéditos venham a promover grandes surpresas no que concerne a mutuamente, o que não apenas traz as duas coisas para o interior de seu pró'
essestraços fundamentais. É difícil pensar que a conferência tardia sobre paio, mas resguarda sua comum-pertencença e aí as retém , é o acontecimento
Te/?vpoe se/' possaser revista por meio dessestextos. Não obstante, mesmo apropriativo O estado de coisas não é acrescentado ulteriormentejomo re
se nos orientarmos pelos textos heideggerianos publicados para ver em que il;,ã.; «i;',li«d, «'« "' . '.mp'. O "''d. d. «i«; fa:.p''' p':'':::?:=f
medida eles falam de "acontecimento apropriativo", não se consegue dedu- com que ser e tempo aconteçamapropriativamente a partir de sua relação e
zir sem mais dessestextos o que a expressãosignifica. Isso não se deve unia em seu próprio; e, em verdade, por meio do acontecimento (ü apropriação
vez mais tanto ao fato de que essestextos só oferecem indicações sucintas; que se oculta no destino e no alcançar iluminados" (C'P, 20). A um ae com-
decisiva sobretudo a dificuldade acentuadapor Heidegger mesmo de que o preender essasfrases é preciso inicialmente levar em conta que o termo ' çoi
mero emprego da expressãoem proposições encobre o sentido de "aconteci- sa" não é aqui equivalente a "elemento coisal" ou a "Dueto'', mas designa
mento apropriativo". Não se consegue nem mesmo perguntar "o quc é um sml. tal coito XW'Í»a e mesmo como res, aquilo com o qLlelidamo.s;e isso
acontecimento apropriativo", semjá perder de vista a idéia indicada pela ex- semquejá tenhamos tomado uma distância em relação a ele em meio à per'
turbação do fazer. Dessafeita, o pensar filosófico tem a ver çom o presentar
44Cf.,por exemplo,.N//, p. 399. acometedor na quarta dimensão do tempo, sem que isso precise ficar claro
45Essesensaios,que na décadade 1980 ainda se encontravam praticamentetodos inéditos,
no pensar mesmo, A tradição da "metafísica" deve ser caracterizadajusta-
acham-se lloje en} grande parte publicados na obra completa. (N.T.)
l

330 Günter figa Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 331

mente por meio do fato de que o "estado de coisas" de Se/ e /e/npo não fica pode-se seguramente duvidar de que o discurso acerca do acontecimento
claro nessatradição. Com mais razão, isso vale naturalmente para o "estado apropriativo seja com isso tão fundamentalmente aporético quanto Heideg-
de coisas" de ren?po e ser. Também se consegueouvir concomitantetÚente ger sugere.Por fim, expressões lingtlísticas não designam apenas"algo que
esse aspecto na expressão heideggeriana "estado de coisas". À co- sepresenta", mas também, por exemplo, modos de comportamento que não
mum-pertencença de "ser" e "tem po" é, como Heidegger diz, "resguardada sãocaracterizados essencialmente pelo fato de que os dominamos; isso vale
no acontecmaentoapropriativo, e o que é "resguardado", mesmo de acordo paratodos os modos de comportamento que pertencem ao âmbito da ocupa'
com a linguagem corrente, não é imediatamente acessível. Por isso. não se ção circunvisiva. Em relação a esses modos de comportamento, tinha sido
pode de qualquer modo dizer do tempo, quando o determinamos como aces- possível mostrar que eles precisam ser concebidos como respostas ao ser
sibilidade, que ele é acessível. Se se leva isso em conta, então a aporia do dis- iminente; e, em analogia com isso, Heidegger compreende os conceitos da
curso acercado "acontecimentoapropriativo" vem à tona de maneira evi- tradição filosófica como respostas.Agora, tudo o que Heidegger diz acerca
dente. Por nim, o tempo é tematizado nesse acontecimento e diz-se com lmla do acontecimento apropriativo não pode ser ele mesmo nenhtmla resposta
formulação que se manténs no campo linguístico do "acontecimento apro- como essa. O discurso acerca do acontecimento apropriativo não é nenhuma
priativo" que ele é "apropriativamente cunhado" em seu próprio a partir de "interpretação variante do ser"; ele não designa "nenhtmla espéciede ser,su-
sua relação com o "ser". O "próprio" do tempo é, nesse caso, a sua quadridi- bordinada ao ser, que forma o conceito diretriz eixo". O "acontecimento
mensionalidade. Somente se pensamos o tempo quadridimensionalmente o apropriativo" tampouco é o "conceito diretriz abrangente, sob o qual se dei-
pensamos em seu "próprio", a saber, como tempo do ser. Todavia, preci- xariam ordenar ser e tempo" (CP, 22). Exatamcnte por isso, contudo, tam-
sar-se-iadizer dessetempo do ser que ele se desmente simultaneamente em bém não se representa nada ao se falar de acontecimento apropriativo, /nas
sua articulação: o "estado de coisas", ou sqa, o acontecerapropriativo de um ape/7asse for/7a d/sf/nfo o status tope/?sa/ /lhes/ zo. Se se compreende o pen-
pensar do ser na quarta dimensão do tempo "oculta-se«justamente ilo fato de sar como resposta, então se indica que jamais se dá no pensar um pensado
que se fala sobre "gere tempo". De acordo com Heidegger, essaaporia é ine- que fosse para ser Hlxado como objcto, e não é de maneira algtmla aporético
vitável, e, em verdade, porque em todo e qualquer discurso acerca do "acon- dizer isso. Somente a tentativa de apreender o acontecimento apropnativo
tecmaentoapropriativo", esse"é representadocomo algo que se presenta, não como acontecimento apropriativo do pensar, mas como algo que pode
enquanto nós tentamos de qualquer modo pensar a presença como tal"(CP ser pensado sem lmaa tematização do pensar mesmo seria aporética.
20). No pensar do acontecimento apropriativo reside a tentativa de pensar Para que se possam dar no ser-aí respostas ao ser iminente, esseser mli-
em que, afinal, todo pensar como tal já se "inseriu". Heidegger também diz nente precisa estar descerrado -- no compreender. No contexto do discurso
uma vez mais em meio à orientação pelo campo lingiiístico do "aconteci- sobreo acontecimento apropriativo, porém, não se conseguirá recorrer illui-
mento apropriativo": "Porquanto só se dá ser e tempo no acontecimento to bem ao terno "descerramento" porque esse termojá é reservado para o ca-
apropnativo, pertence a esseacontecimento mesmo o traço peculiar de tra- ráter ]loético do ser-aí pensado como "cuidado" . Todavia, certamente se pre-
zer o homem, como aquele que apreende o ser, para o seu próprio. Assim cisará falar aqui taml)ém de um apree/7der, se se quiser tornar compreensível
apropriado em meio ao acontecimento, o homem pertence ao acontecimento em que medida o pensar filosófico em geral pode ser resposta. Dito de outra
apropriativo. Esse pertencimellto repousa sobre a 'cunhagem apropriativa' maneira, o "apelo" que está em jogo para Heidegger precisa ser concebido
que marca e distingue o acontecimento apropriativo. Por meio dessacunha- como algo apreendido. O apreender que está aqui enl questão yão pode ser
gem, o homem se insere no acontecimento apropriativo. AÍ reside o fato de tomado como um "apreender do acontecimento apropriativo", nem tampou'
que nunca podemoscolocar o acontecimentoapropriativo diante de nós: co se pode dizer que o ser iminente é correlato do compreender. Do mesmo
nem como algo que se encontra defronte, nem como o que tudo abarca. Por modo que o ser iminente não é nada senão compreender, o apreender em
isso, o pensar representativo ftindacional corresponde tão pouco ao aconte- questãoaqui é ele mesmo acontecimento apropriativo: "A palavra aconteci-
cimento apropriativo quanto o dizer apenasenunciativo" ((:P, 24). Se o ho- mento apropriativo é deduzida do amadurecimento da linguagem. Aconteci-
mem é caracterizadopor estar"inserido" no acontecimento apropriativo, en- mento apropriativo significa originariamente: inserir radicalmente o olhar
tão parece efetivamente inadequado querer caracterizar esseacontecimento (er-dzlge/7),visualizar (e/'b//c#e/?),chamar a si em meio ao olhai (///?B//c&e/7
como representarou querer deHini-lo por meio de enunciados. Apesar disso, zzísiGAride/?), a-propriar-se (a/7-e/gne/7)"(/Z), 24). De acordo com essa in-
332 Günter figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 333

t
terpretação etimológica -- aliás, exala --, o "acontecimento apropriativo" é cer aí em que medida Heidegger pede, em geral, acreditar que é necessário
ele mesmo um olhar, e, em verdade, em unidade imediata com "o que é vis- desenvolver essa idéia no conceito de uma história. Em sintonia con\ isso,
to". Se Heidegger denomina esseolhar um "a-propriar-se", ele não fazjll8'a também é possível compreender melhor qual a importância do caráterde res-
essatmidade imediata porque essa formulação sugere uma vez mais qíie o posta do pensar filosófico. A idéia central do conceito de história do ser é,
r
que é visto é algo que se dá também fora do olhar. No entanto, o olhar aqui por sua,vez a idéia de lml des-velamento compreendido como liberdade, um
em questão diferencia-se de um tal "apreender de algo" concebido como o des-velamento que é o começo do pensar.Talvez o lugar em que Heidegger
ato de re-presentar" (OC54, 153) porque ele precisa ser tomado a partir do desenvolveu mais claramente essaidéia tenha sido a preleçãojá citada uma
mostrar-se" do que é visto(OC54, 152). Ele é uma pura "visada''. E se Hei- vez sabreParmênides.
degger diz isso, ele acolhe uma idéia quejá tinha sustentado em meio à inter-
pretação de "esquema". Entretanto, não se pode desconsiderar a diferença O coltleço do pensar
entre a idéia da preleção sobre Par/ ên/des -- da qual provêm as formulações
A preleção heideggeriana sobre Parnzê/ /des é em sua essência lula dis-
citadas -- e a discussão do esquematismo. Mesmo se a visada pensada como
cussão da AXll#eLCt. Mesmo em sua conferência sobre Tempo e ier, ele ainda
esquemanão for nada determinado no sentido de um oldeto percebido, ela é
denomina AXT18cLao "principial de todos os /e///7zof/vsdo pensar" (CP, 25)
de qualquer modo uma forma que se deixa a cada vez preencher. ainda que e só introduz essapalavra na conclusão, a Him de apontar para o fato de que
nunca venha a ser preechida completamente, por algo determinado; o esque-
não se trata de "algo novo" no discurso acerca do acontecimento apropnati-
ma do "em virtude de", por exemplo, ou seja, do ser iminente. é a forma de
vo, mas do "que há de mais antigo dentre o que é antigo no pensar ocidental"
determinados proletos que, como proyetos determ inados, sempre são diver-
do "que é arcaico originário" (CP, 25). Esseaceno não foi omitido até aqui
sos dessa fomla. Em contrapartida, o que é visto no acontecimento apropria-
tivo é a presença caracterizada em si mesma por ausência e. como tal. o c0/27- apenasno interessede uma apresentaçãoo máximo possível nítida do curso
de pensamentode Heidegger. Buscou-se, além disso, evitar a incompreen'
p/era//zen/e /ndefe/'/i2fnado. Por isso, esse completamente indetemlinado
são articulada aqui por Heidegger mesmo: a incompreensão que existe em
também precisa ser diferenciado da indetemlinação do ente em sua abertura.
tomar AÀI i eLa e "acontecimento apropriativo" como o mesmo. SeAXTl+cta
A indeterminação ou a abertura do ente, tal como se revela na angústia, tam- e "acontecimento apropriativo" não são porém o mesmo, então o emprego
bém tem, por fim, caráter esquemático porque ela é uma abertura para o heideggeriano do termo "verdade" também é problemático onde o que está
comportamento e, como tal, sempre é preenchida uma vez mais na signifi-
em questão é o acontecimento apropriativo. Com razão, Heidegger se ex-
cância, de tal modo que se encontrajunto ao ente sua realidade. Uma indeter-
pressou de maneira autocrítica em relação ao uso que faz do termo "verdade"
minação desse género não é a presença caracterizada pela ausência; ela não é
e em relação à sua interpretação da AÀnlj+eLa,tal como ela ainda é apresenta-
nenhuma i1ldeterminação no sentido de algo determinável. Desta feita. as
da na conferência sobre Te/71poeser. Se"a ÀXl:i8cl« é denominada no come-
respostas do pensar a essa indeterminação também não podem ser compre-
ço da filosofia <em Parmênides/ G.F.>, mas(...) no tempo subseqilente não é
endidas no sentido de uma aparição que seria transparente por meio de sua
expressamente pensada como tal" (CP, 76), então na melhor das hipóteses
negação como aparição. De outro modo, o pensar fllosóHico aqui em questão Heidegger pode recorrer a uma palavra, mas não a um contexto de pensa-
ainda seria pensado na estrutura da diferença. Todavia, ainda não ficou claro
mento. E, nesse caso, não se consegue ver por que o pensar do acontecimento
até aqui como as respostasa uma indeterminação completa podem ser com-
apropriativo pode ser explicitado por meio do fato de ele ser unf pensar da
preendidas. Certo é apenas que não se pode esperar da concepção heidegge-
AXtj+cLa. Segundo a coisa mesma, o ponto de ligação entre o discurso do
riana da história do sernenhum esclarecimento quanto a isso. De acordo com
acontecimento apropriativo e o pensar em meio à quarta dimensãodo tempo
essaconcepção, poder-se-ia em verdade dizer que o que é "tomado como
não é a ÀXnÓ+cta,mas a idéia platónica do bem. Por isso, é certamente mais
propno..em meio ao acontecimento apropHativo é o "ser" como o "que foi
urgente a pergunta sobre a razão que levou Heidegger a poder acreditar que é
enviado". Por meio de uma tal indicação de algumaspoucasconcepçõespro- preciso recorrer à AÀã+cLa. Para responder a essapergunta, é preciso ini-
eminentes da tradição filosófica e de seus conceitos fundamentais ainda não
cialmente desenvolver sua interpretação dessapalavra. E elucidativo que
sediz, contudo, o que issosignifica. Paraavançaraqui, é preciso tentar tomar
Heidegger precise concederjustamente em vista do aspecto para ele relevan-
ainda mais exatamente a idéia central no conceito da história do ser e esclare-
te da significação de AÀÓteLct que esseaspecto não foi desdobrado no pen-
'l p-r

334 Günter Figas


Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 335

sar grego. E por isso, como ele diz, intensifica-se "também necessariamente críticos. Por outro lado, se se compreende o discurso heideggeriano sobre o
a aparência de que se estáaqui inserindo e retrojetando para o interior da es- "principiam" de maneira apenas historiária, encurta-se esse discurso de lmaa
sência grega da àÀ l CLa <agora escrita com letra minúsculas uma interpJ:e- maneira inadequada. Se "se deixa o começo ser o começo", então passa a va-
taçao que não reside nessa essência"(oc 54, 200). E depois de Heideggel:ter ler "uma outra lei", e a ambigilidade da interpretação heideggeriana só se dei-
interpretado a "essência" da àÀll CLa traduzida por desvelamento como a r
xa esclarecer pelo fato de ele não ter se mantido rigorosamentejunto a essa
diretiva para o aberto e a abertura" e ter perguntado o que esseaberto é. ele lei. Por Him,com a idéia do "aberto" não deve ser absolutamentedesenvolvi-
prossegue: "Aqui silencia o dizer grego. Ficamos sem ponto de apoio e sem do o que foi pensado "no começo do pensar ocidental". Ao contrário, o que
auxílio, quando chega a necessidade de refletir sobre a essência do aberto vi- deve ser desenvolvido é o começo do pensar em geral, e isso é encoberto por
gente na áXÚ+eta"(OC 54, 2 12). Uma tal concessão provoca o surgimellto meio do aspecto historiário das interpretações heideggerianas. Dito de outra
da pergunta sobre em que medida Heidegger quer, então: conquistar em ge- forma, Heidegger acreditou poder identificar o começo historiário do pensar
rala idéia desse aberto em uma interpretação da àXã+cLa. E Heidegger nles- ocidental com o começo do pensar en] geral a ser tomado sistematicamente,
mojá dá uma respostapara essapergunta na introdução à sua preleção: Par- e issojá é porsi só implausível porque por meio daí a idéia do aberto é restrita
mênides e Heráclito são "os dois pensadores que, em uma única comum- a um círculo cultural e a um espaço temporal. Apenas se essa restrição fosse
pertencençal pensam o verdadeiro no começo do pensar ocidental"; «o pen- justificada, poder-se-iaduvidar com razãose é em geral signinlcativo falar
sado" de seu pensar é "o propriamente histórico que emerge previamente e. do aberto ou da clareira.4ó Se Heidegger tivesse incorporado essa dúvida, ele
dessa feita, precede toda a história subseqiiente"; o que "portanto emerge teria subtraído por meio dessaincorporação o solo de seu pensamento. Em
previamente e detemlina toda a história denominamos o principiam"(OC 54, contrapartida, se nos mantivermos junto ao aspecto sistemático do pensar
1). Porque o pensarde Parmênidese Heráclito é "o principiam",não são váli- heideggeriano, sem dizer certamente com isso que ele é lma sistema no senti-
para a interpretação dessepensar as "fronteiras do horizonte da historio- do do idealismo especulativo, então os aspectos históricos desse pensamen-
grafia e do que é constatável historiariamente: "Se nós(...) não impusermos to, tal como Heideggeros desenvolveuna fase posterior a ST, tomam-se
à história um horizonte historiário e a cobrirmos com isso, se nós deixarmos questionáveis. Nesse caso, também surgiria a possibilidade de se despedirde
muito mais o começo ser o começo que ele é, então passaa valer uma outra lmla "escatologia do ser", de acordo com a qual "o outrora intríseco ao que a
lei. De acordo com essalei, não podemosde maneira algtmla interpretar sufi- de primevo no envio... se mostraria como o outrora em relação ao derradeiro
cientemente no interior do, ou melhor, a partir do priilcipial, a não ser que (EaXCETov),isto é, viria para a despedida do destino até então encoberto do
atentemos para esseprincipial no rigor de sua essência e não permaneçamos ser"(OC 5, 327). Abdicar da ideia de um Himda história do ser significa en-

H
tãojustamente levar a sério o que a de novo no que Heidegger tem a falar ante
a tradição. Esse algo novo é laia concepção da liberdade na qual essatam-
bém pode ser compreendida como o começo e o acontecimento apropriativo
do pensar.
'Liberdade" como o começo do pensar designa a abertura visualizada
do tempo-espaço em sua quarta dimensão que acomete ao se subtrair ao con-
ceito, e, porém, é a possibilidade de todo conceber porque é a lpssibilidade
de todo pensar; ela não traz à tona o pensar, mas é a abertura do pensar mes-
mo, uma abertura que se subtrai ao pensar. O pensar é o que acomete por
meio da abertura; e, pensando, tenta-se dizer esseser acometido. Com certe-
za, não se consegue perceber agora à primeira vista que ajuda traz a introdu-
ção do termo "liberdade", se se precisa remontar para a sua explicitação no-
vamente a formulaçõesjá conhecidas. Falar de liberdade aqui certamentejá

+'Cf. Põggeler (1983), p. 170


336 Günter Final
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 337

auxilia porque se conquista dessaforma a possibilidade de se ligara determi-


112). Por si só, não é possível tornar inteligível em lula interpretação da an-
naçõesjá conhecidas a partir da interpretação de STe de assim caracterizar
gústia como se chega à pergunta característica para a "metafísica", "por que
mais exatamente o acontecimento apropriativo do pensar, tal como Heideg- há antes o ente e não muito mais o nada?", e não apenas a uma -- no casa da
ger o tenta apreender. Heidegger mesmo elucida a idéia da abertura do te«-
propriedade -- maneira modificada do comportamento. Na medida em que
po-espaço, na medida em que se orienta pelos exemplosjá familiares: "Cha-
Heidegger tenta tornar inteligível o começo do filosofar a partir da angústia,
mamos livre un] caminho que está aberto. O trânsito e a passagemestão ga- ele se distancia por demais dos modos de aparição cotidianos descritíveis
rantidos. O que deixa transitar e o permeável ao trânsito mostram-se aqui dessatonalidade afetiva para que a sua interpretação ainda pudesseser, por
como o espacial. O atravessável nos é conhecido como o espacial dos espa- fim, convincente. Na preleção sobre Os conde//oslzrnda//zen/a/s da /nerq/k/-
ços, como sua essênciadimensional que também atribuímos ao 'tempo' no ca, também é interpretada uma "tonalidade afetiva fundamental" do filoso-
discurso sobre o 'espaço de tempo'. Com isso nos representamoso que su- far: o "tédio"; e, na preleção ainda posterior sobre as G/'z/nc#Page/v
der P/z//o-
postamente vem ao encontro pela primeira vez junto à denominação do
sop/z/e (Perguntas fiindamentais da filosofia), essa tonalidade afetiva apare-
aberto' : o não-fechado e o não-ocupado de uma extensão para o acolhimen- ce, enl sintonia com Platão e Aristóteles, como "admiração" (OC 45, 155).
to e a distribuição de objetos" (OC 54, 22 1). Não obstante,a abertura do pen- Por üinl, a partir de um relato de O. Põggeler, vem à tona o fato de Heidegger
sar não é o mesmo que a abertura do ente, de que trata aqui o discurso. O ente.
tomar a tona l idade afetiva h istoricamente em suas Co/v/r/óz//iões à./?/os(Z/ia:
sim, mesmo o espaçoe o "'tempo' visado habihalmente" têm sua "abertura
'A tonalidade afetiva no começo do pensar foi a admiração; agora, na era do
para o seu pequeno feudo(...) a partir daquele aberto que vigora na essência
niilismo, a tonalidade afetiva fundamental é designada por meio do pavor e
do desencobrimento"(OC 54, 22 1). Desencobrimento é aqui simplesmente do horror, ao mesmo tempo que por meio daquele recato e retenção que ga-
uma outra palavra para "acontecimento apropriaLivo". Por sua vez, a abertu.
rantem ao ser a indisponibilidade de sua verdade".47Não pode mais causar
ra que "vigora na essência do desencobrimento"(OC 54, 22 1) visa à abertura
espantoa tentativa heideggeriana de tentar tomar a tonalidade afetiva funda-
em geral, ou sda, auma abertura que precisa ser pensadasem toda e qualquer mental do pensar em sempre novos impulsos. SÓse sabe de tonalidades afe-
determinação ulterior e que perfaz aí o rraçolz//?damenra/ de toda abertura
tivas por meio das maneiras como são articuladas e descritas. No entanto.
capaz de ser descrita de uma maneira diversa. Porque a abertura do ente, na uma tal descrição não conseguemediar completamentea experiência de
qual se tem de ser, é experimentada de acordo com a estrutura conceptual de como é estar em uma tonalidade afetiva. Mesmo se se telha tornar claras to-
ST primariamente na tonalidade afetiva da angústia, é natural conceber a
nalidades afetivas próprias, a descrição tem sempre vista curta. Além disso,
apreensãoda abertura do pensar como tonalidade afetiva. Em sintonia com
todo aquele que tenta descrever uma tonalidade afetiva precisa se orientar
isso, também se pode compreender melhor como as respostasdo pensar à por determinados contextos de comportamento e empregar um vocabulário
sua abertura precisam ser concebidas. ' '' '
determinado, adequadoa essescontextos. Tonalidades afetivas são diversas
O fato de proaetosque construímos para nós mesmos cotidianamente se-
na medida em que não se fala aí apenassobre o modo "como alguém está'
rem respostas ao ser iminente só pôde se tornar inteligível na medida em que massempre também sobre os contextos nos quais "nos encontramos dispos-
seu caráter descontínuo foi considerado. Senão houvesse a rotura da signifi- tos". Por isso, a tentativa de descrever a tonalidade afetiva fiindamental do
cância experimentada na angústia, não se poderia começar novamente a se
pensarnunca pode ser senãouma aproximação que retira seu ponto de parti-
comportar de uma maneira determinada. Heidegger já tornara válida unia
da de determinados contextos cotidianos para, passoa passo, se ab»trair de-
experiência comparável de pensarem O qz/eé / 7er({/b/ca2 enão é totalmente
les. Esseprocedimento pode ser certamente acompanhadoda melhor forma
implausivel que ele também interprete essaexperiência ainda como angús- possível na interpretação minuciosa que Heidegger faz do tédio. Se se tor-
tia: o 'nada' revelado na angústia é por fim o ':nada do ente", o I'não algoz; nam claras as dificuldades citadas, então mesmo a crítica à interpretação hei-
de modo que por meio da angústia o pensar pode se transfomlar em um pen- deggerianada angústia em O gire é / ler(!0s/ca? precisa ser relativizada. Do
sar da abertura completa. Com certeza,a experiência da angústia não é feita mesmo modo, porém, precisa-se certamente abdicar, por fim, de querer dis-
agora no contexto da lida ocupada,mas apenasno contexto do falar: «A an- tinguir em geral definitivamente uma tonalidade afetiva fundamental do
gustia nos arranca a palavra. Porque o ente na totalidade nos escapa e assim
precisamenteo nada acossa,em face dela silencia todo dizer 'é'" (OC 9,
"Póggeler(1982),p.483
338 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 339

pensar e diferencia-la de outras. Até onde é possíveljulgar sem um conheci- aquietar a admiração. A pergunta não tinha sido pensadainicialmente de um
mento efetivo do texto, abstraindo-se do fato de Heidegger querer construir modo tal que pudesse ser respondida por meio de uma indicação da teoria da
nos Be//rege (Contribuições) lmla "história" das tonalidades afetivas eyonl evolução. Todavia, ela só pode ser colocada como pergunta se uma resposta
isso introduzir uma tipiHlcação questionável, a pluralidade aí assuntida de teórico-evolucionária não puder ser rejeitada como inadequada.O caráter
modos de descrição aparece nesselivro da forma mais nítida possível." peculiarmente equívoco da pergunta à qual Wittgenstein se refere é, então,
Se se abdica de distinguiruma tonalidade afetiva fundamental do pensar um indício para o sfa/zrsque ela em verdade tem. A pergunta mesmajá é uma
e de diferencia-la de outras tonalidades afetivas, o discurso acerca de uma resposta à admiração, já é unl modo no qual a admiração se articula. Como
afinação do pensamento parece, com certeza, se tornar vazio. Mas essenão é frase proferida, a pergunta é em verdade ambígua. Entretanto, a resposta
de modo algemao caso. Por fim, pode-se sempre dizer ainda que toda tonali- tampouco é a Fraseproferida, mas opergzrnrar. Esseperguntar é, por suavez,
dade afetiva é caracterizada pelo fato de não indicar previamente nenhum de lmla tal forma que ele mesmo não pode ser apaziguado por nenhuma res-
modo de comportamento determinado, nem tampouco, casoseja experimen- posta. Tampouco se pode por isso dizer que a pergunta precisa ser primeira-
tada, ser articulável sem mais. É cotidianamente conhecido que tonalidades mente negada, a fim de ser transparente como resposta à admiração. Não há
afetivas, quando nos encontramos dispostos nelas, se subtraem de uma ma- aqui nenhuma diferença entre a abertura experimentada na admiração e a ar-
neira peculiar às descrições, e, freqilentemente mesmo, como Heidegger diz ticulação dessaexperiência, mas a abertura se mostra na pergunta imediata-
da angústia, nos deixam sem voz; não apenas a angústia, mas também a me- mente e não apareceapenasnela, de modo que ela também poderia encobrir
lancolia e a euforia, assim como a admiração, são exemplos disso. Se não se o fenómeno do qual é aparição. Desta feita, é também inadequado acreditar
admitisse para o pensar uma tal experiência descritível de lmla forma qual- que a admiração capazde ser interpretada como a tonalidade afetiva funda-
quer, permaneceria incompreensível em que medida nós nos mantemos em mental do pensar é lml filndamento a partir do qual se poderia explicar o pen-
geral no interior do discurso cotidiano, para então dito com lmla formula- sar. Se se acredita nisso, então não se considera "o quão deülnitivamente se
ção de Wittgenstein -- "nos arremetermos contra os limites da linguagem".4P indica por meio do aceno para o +au»átcLV como a origem da Hllosofiajus-
A tentativa wittgensteiniana de elucidar "o que Heidegger tem em vista tamente a inexplicabilidade da nilosonia, a inexplicabilidade no sentido de
cona ser e angústia" também é capaz de auxiliar, se quisermos tornar com- que aqui, em geral, o explicar e o querer explicar se transformam em um
preensível para nós a partir da afinação do pensamentoo seu caráter peculiar erro"(OC45, 156). O explicar e o querer explicarjá não fazemjus ao caráter
de resposta. Em Wittgenstein encontramos a seguinte formulação: "Pensem originário da questãodo pensar.O perguntar correspondea lmla liberdade
os senhores, por exemplo, na admiração intrínseca ao fato de que algo existe. que não se deixa tomarjustamente no conceber, e o fato de ela não se deixar
A admiração não pode ser expressa na forma de lula pergunta e também não tomar não significa que essaliberdade precisa ser experimentada como fun-
há nenhuma resposta".s' É de se supor que essaobservação não se liga, como damento originário ou o que quer que só possa se dar em lmla espécie de vi-
o editor pensa.s' a ST, mas a O qz/eé n7er(!/h/ca? O fato de a admiração não sãomística. Não secarece aqui de "estados esquisitos e excepcionais do tipo
poder ser expressa em uma pergunta não significa que não se poderia per- do mergulho místico e da patuscada em lml tom profundo''(OC 54, 222). Isso
gLmtarem que medida, por exemplo, há homens. Uma resposta a essaper- Ricaclaro se se leva em conta que o pensar é um questionar e a elaboração
gunta é até mesmo possível. Não obstante, a pergunta não expressa sem mais dessaquestão não é a elaboração de respostasdefinitivas, miasjustamente
a admiração que se vê no fato de uma resposta como, por exemplo, a que se apenasuma tentativa de articular a pergunta. Com isso, só se coi)preendem
tem em meio à indicaçãode conhecimentosteórico-evolucionários,não textos Hilosónicos,mesmo na superfície, se se quer retirar resultados deles, e
só se penetra neles onde se começa novamente a perguntarjunto com eles. A
questão é que, tal como seu conceito de "história do ser" atesta, Heidegger
'*Os Befrrdge :ur P/7//osop/z/erron? E/efgnfx - Contribuições à fllosolla: Do acontecimento
apropriativo) só foram publicados em 1989, Com isso, na época da escrita do presenteli\-ro, não concebeuapenas a filosofia como lml questionar que sempre recomeça
GiinterFigal não podia contar senão com os relatos dos que tiveram acessoaos manuscritos. De uma vez mais. Em verdade, as concepções de Platão até Nietzsche também
qualquer !nodo, a posiçãoacima não se deixa revidar a partir do texto publicado. (N.T.) não são paraele teorias científicas no sentido de que a assunçãoplatónica das
49Sc/lr@e/7
3 (Escritos3), p. 68. idéias poderia ser,por exemplo, refutada pela ideia aristotélica da bvépTcta.
soSc#rÚen3 (Escritos3), p. 68. Estava inteiramente claro para Heidegger que a ocupação com Platão a partir
StCf.Sc/zrÚen3 (Escritos3), p. 68, nota 17.
340 Günter Figal Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 341

de Aristóteles não é mais orientada apenas por um interesse antiquário. ljor A crítica heideggeriana a Platão é em primeira linha uma crítica ao pen'
outro lado, porém, sua idéia de uma "história do ser" como uma história da
samentoda idéia do bem. O que há de especinlcamentemetafísico nessa
'metafísica" só tem sentido se se puder afirmar com razão que o ca;ater de idéia é que em geral se fala da /dé/a do bem. Sob a pressuposição de que a
pergunta do pensar permaneceuao menos por fim velado na tradição Hilosó- alegoria da caverna dá a entender a "doutrina platân ica da verdade", Heideg-
Hica.Heidegger quer tornar inteligível essaafirmação por meio da tentativa ger formula a tese central para todo o seu conceito de "metafísica": "A
de mostrar que a "metafísica" também só foi possível naabertura peculiar do ÜXã CLa vem à tona sob o jugo da'L8éa. Na medida em que Platão diz da
pensar, constantementecomo liberdade, mas que ela se encontra, além dis- 'L8éaque ela é a mestra que admite o desvelamento, ele nos remete para algo
so,sob a via da correçâo.
que não está dito, ou sqa, para o fato de que desde então a essência da verda-
denão se desdobrou como a essênciado desvelamento a partir de sua própria
Correção
plenitude essencial,mas se deslocou para a essência da't8écE.A essênciada
De acordo com os textos heideggerianos do final dos anos de 1920 e dos verdade abandonao traço fundamental do desvelamento" (OC 9, 230). No
anos de 1930, metafísica é uma designaçãopara a experiência da liberdade entanto. é certamente muito difícil contestar que a àÀÓ+cLa que está en]
em sua diferença. Porquanto essaexperiência não é feita simplesmente no questão na alegoria da cavenla não sqa "desvelamento" no sentido da pre-
ser-aí pré-ontológico, mas é articulada filosoficamente, essa articulação sençaem si caracterizada por meio da ausência,mas apenas"presença ;" e,
com efeito, em última instância, a presençado ente no sentido expressivo, no
também permanece, por isso, orientada pelo que há de determinado, pelo
ente. "Metafjsicamente" não se pergunta, como Heidegger não se cansou de sentido das idéias. Sobre as diversas estaçõesda estadia na caverna e do ca-
acentuar, pelo "ser mesmo", mas sim pelo "ser do ente". A pergunta clássica minho para fora dela mostra-se a cada vez algo diverso como presente, de
da "metafísica" é, por conseguinte, a pergLmtade Aristóteles sobre como se modo que o antesvisto pode se tomar inteligível como uma "imagem" disso
tem de compreender o ente na medida em que ele é um ente. No entanto. que agora é considerado. E ele não é apenas "imagem" no que é, mas também
como bem o atesta o conceito da "história do ser", mesmo o desenvolvimen- em sua presença mesma: as sombras na parede da caverna só se mostram, por
to platónico da suposição das idéiasjá élido por Heideggercomo uma elabo- exemplo, porque há algo a partir do que elas são projetadas na parede como
ração da pergunta "metafísica", e, em verdade, não sem uma certa razão: o sombras. Uma vez que as imagens, caso não se as atravesse com o olhar e as
descubra como tais, encobrem a presença do que, em relação a elas, é"o mais
artesão que produz lmla cama não se orienta pela pluralidade de camas quejá
se encontram aí, mas pela idéia de cama. É em função dessaidéia que ele presente", também é possível compreender o fato de Heidegger encontrar na
como, aliás, qualquer lml está pela primeira vez em condições de identifi- alegoria da cavema lml aspecto da presença que é constitutivo para todo o
car as camas subsistentes conto tais, e, visto assim, é essa idéia que peúaz o seu pensamento. Para a experiência da presença é essencial que o desvelado
"ser" do ente cama. Contudo, ainda não se toca com isso o ponto decisivo do no sentido do presente "constantemente supere um velamento do que está
velado", isto é: "0 desvelado precisa ser arrancado a um velamento, roubado
discurso heideggeriano acercada "metafísica". Decisivo éjustamente o fato
de certa maneira dessevelamento" (OC 9, 223). Esse"roubo", para o qual
de Heidegger ter em mente que, de acordo com o pensar "metafísico", o "ser
mesmo" é representadoconforme o ser do ente. Apesar de Heidegger revo- aponta de acordo com Heidegger também o cÉ-privativo do termo
gar uma vez mais em Ztrr Sache des Z)en#ens (Para a coisa do pensamento) a àXã.8cLa,s4consiste na superação da aparência. E em contraposição a essa
tese de que somente desde Platão as coisas sedão assim.S2sua discussão com aparência que precisamos nos apropriar expressamente dojá também desco-
Platão mantém, contudo, no que diz respeito a essaquestão, lml valor con- berto" e que forma o "ponto de partida" para toda "nova descoberta" (ST,
juntural insigne, pois nela é elaborada certamente da forma mais distinta 222). Uma experiência expressa do desvelamento compreendido como pre-
possível a tese sobre a "metafísica". Além disso, não desempenha nenhum sença só se perfaz, consequentemente, na diferença em relação à aparência.
papel para a significação sistemática dessatese o lugar em que Heidegger Também será preciso dizer, por conseguinte, dos que estão agrilhoados na
fixa, aHlnal,historiograflcamente o começo da "metafísica caverna que, antes de sua libertação, eles não sabem nada acerca do desvela-
mento das sombras . Como mostra o texto platónico, esse desvelamento só se

s;Cf., quanto a isso, também Tugendhat ( 1958), p. 9


szCf'.CP, p. 78.
s4Cfl0C9, p. 223; ST, p. 222
Mártir Heidegger:fenomenologia da Liberdade 343
342 Günter Figas

toma expresso para eles depois que são obrigados a virar a cabeça. Então eles pressamentede um "aberto" ou de um "espaço livre" fora da caverna, do
passam a estar muito mais próximos do ente (pãXXÓv 'tl êÍÍutépu loÚ qual a caverna seria, por sua vez, uma imagem. A metáfora central de toda a
15vToç).Todavia, como eles estavam habituados ao que antesviam, as/õm- história contada por Sócrates não é interpretada no texto. Visto assim, Hei-
bras se lhes aparecemde maneira "mais presente" do que o que lhes é mos- degger consegue chamar radicalmente a atenção em uma interpretação sutil
trado agora em uma claridade inabitual.55 Para os libertos, no entanto, a sua para algo enl Platão mesmo que permanece sem tematização. Indo além, é
liberdade só se preenche se supera a ligação com a aparência e experimenta o indiscutível que só se fala do aberto fora da caverna, assim como da caverna
presente como tal a partir dele mesmo; sua liberdade se preenche na habitua- mesma nas metáforas da luz e do que aparece na luz. Todavia, é preciso duvi-
ção do olhar ao que é mais presente a partir de si mesmo e, por nlm, ao que é dar que a acentuaçãoda relação do possibilitado com o possibilitador, tal
maximamente presente", as idéias, que na alegoria são concretizadas sensi- como Heidegger a empreende aqui, seja compatível com o texto platónico e
velmente por meio das coisas naturais que aparecem à luz do dia. Exatamen- com o curso de pensamento desse texto. Se se acredita em Heidegger, o pos-
te nesse ponto Heidegger inicia a crítica a Platão, e, apesar de no próprio Hei- sibilitador só é considerado em vista do possibilitado, e não é difícil reencon-
degger o que está em questão ser uma "nuidança na essência da verdade", é trar aqui sua tese de que tudo gira na "metafísica" apenas em torno do ser do
fáci l ver que "verdade" aqui, exatamente como na expressão "desvelamento ente. De acordo com Heidegger, além disso, não se trata em meio a esse ente
usado no sentido heideggeriano expressivo", encontra-secomo lml correlato do ente absolutamente no sentido expressivo, das idéias. Conforme a inter-
de "liberdade". O "impensado" em Platão é a liberdade, por mais que na ale- pretação heideggeriana, essas só são tenlatizadas a Himde tornar plausível a
goria da caverna se fale ao menos indiretamente dela. De acordo com a ale- acessibilidade do que aparece em seu aspecto. Somente se se tem clareza
goria da caverna, a "real liberdade" (OC 9, 221) ainda não consiste, colllo quanto a essatese de Heidegger, pode-se também compreender em que me-
Heidegger diz, na retirada das correntes. Ao contrário, ela só é muito mais al- dida ele acredita poder ler a partir da alegoria da caverna uma mudança na es-
cançada quando aquele que é liberto de suas correntes é "transposto para fora sência da verdade, a saber, a mudança de àXÓ+cLa para bp+ó'rvlç, para "cor-
da caverna, para o cerne do 'espaço livre'". Esse espaço livre, contudo, "não reção". No "guiar-se" por algo, o "apreender se ajusta ao que deve ser visua-
visa aqui o ilimitado de uma mera amplitude, mas a vinculação delimitadora lizado" e o que precisa ser visualizado "é o 'aspecto' do ente": "De acordo
do claro que l)ralhana luz do sol e que é concomitantementevisualizado" com esseajuste do apreender como um't8ctv à't8éa subsiste umabp,oíuaLÇ,
(OC 9, 22 1). Uma vez que o que está em jogo é esseclaro tomado colllo as unia concordância do conhecer com a coisa mesma. Assim emerge a partir
idéias, permanece sem ser levado en] conta en] Platão, tal como Heidegger do primado da'L8éa e do'L8ctv ante a àXni+cLa uma mudança da essência da
acha, o que é exposto na alegoria: "Na 'alegoria da caverna', a força de con- verdade. A verdade torna-se a bp+ó'rílç, a correção do apreender e enunciar
creção sensível não emerge da imagem de fechamento inerente à concha (OC 9, 230). No mais tardar em meio a esseesboroamento da diferença entre
subterrânea e do aprisionamento no espaço fechado, nem tampouco da vi- apreender" e "enunciar" torna-se evidente o caráter questionável da inter-
sualização do aberto no espaço fora da caverna. O poder interpretativo para- pretação heideggeriana de Platão. Se a comLml-pertencençado apreender e
digmático da 'alegoria' reúne-se para Platão muito mais no papel do fogo, do do apreendido fosse realmente lmla "concordância do conhecercom a coisa
brilho do fogo e das sombras, da claridade do dia, da luz do sol e do sol mes- mesma", então o apreender não coincidiria imediatamente com o apreendi-
mo. Tudo dependedo brilhar do que aparecee da possibilitação de sua visi- do, mas também poderia ser "inçorreto". Em Platão, porém, essa é exclusi-
bilidade. O desvelamento é com efeito denominado em seusníveis diversos. vamente uma característica da 8óEa e não do saber illtuitivo dal idéias. A in-
mas só é considerado em vista do modo como torna acessível o que aparece terpretação heideggeriana acaba por pensar todas as formas investigadas por
em seu aspecto(c'i&)ç) e como torna visível esseque semostra (L8éa). A me- Platão segundo o modelo da õóE« e seu erro já reside na tradução de bpBuç
ditação propriamente dita encaminha-se para o aparecer do aspecto, um apa- por "correto": Quando nos deparamos na alegoria da caverna com a formula-
recer sustentado na claridade do brilhar. Esse aspecto abre a visão para o co- ção de que o que se volta mais para o ente certamente também vê bp8ó'repor
mo-o-quê cada ente se presenta. A meditação propriamente dita vale para a (RepzÍb//ca, 5 15d3), o que se tem en] vista não é que ele vê agora "mais corre-
't8écE" (OC 9, 225). E em verdade indiscutível que em Platão não se f'ala ex- tamente". Ao contrário, o que se tem em vista é que ele vê "mais diretamen-
te" porque, em vez de olhar para as imagens, olha para o que está retratado
nelas
ssCf. l?eplÍÓ//ca, 515d5.
344 Günter figas Martin Heidegger: fenomenologia da Liberdade 345

Tal como Heidegger pensa,o que está em jogo na alegoria da cavema A "metafísica" é caracterizada pelo fato de gire ne/a a //herdade é pen-
não é a cunhagem de um conhecimento intencional sempre "mais correto' sada co/lzorea//dada. Em outras palavras, "metafísica" é a tentativa de con-
uma lida sempre mais livre com as imagens e, por fím, com as idéias mes- ceber radicalmente a abertura inconcebível, porque completamente indeter-
mas. Quem consegue alcançar a "parte da fora" da caverna e se orientar lá minada, assegurandodessamaneira a permanência constante no ser-aí não
inicialmente pelas sombras e pelas imagens especularesjá sabe que há algo em meio à fuga ante o ser iminente em sua indeterminação, mas on/o/og/ca-
do género das sombras e das imagens especulares;mesmo se ainda for inca- //7e/7/e.
Sesetem clareza quanto a isso, então não é mais tão difíci l compreen-
paz de contemplar as coisas mesmas, ele não permanece fixado nas sombras der os diversos aspectos da "metafísica", validados por Heidegger, em sua
e nas imagens especulares.Com maior razão, o olhar para o sol mesmo, o unicidade. Para a teologia cristã, para as diversas variedades do humanismo
olhar Hilosóflco para a idéia do bem, não se mostra como a consumação do e, do mesmo modo, para a técnica moderna é peculiar o fato de neles setratar
conhecimento intencional. Ao contrário, ele aponta para a experiência de de maneiras a cada vez diversas de permanência constante. A "metafísica" é
que mesmo as idéias como o ente em sentido pregnante não são o que há de essencialmente "teológica" se se compreende juntamente com Heidegger
derradeiro. Se ao "tocar" a idéia do bem se experimenta que há idéias, então
por "teologia" a "interpretação da 'causa' do ente como Deus e a transferên-
essetoque é lmla experiência da possibilidade no sentido heideggeriano. E cia do ser para o interior dessa causa"(OC 9, 236). Em contrapartida, o "hu-
se mesmo a possil)ilidade do saber e do que é sabível, em sua tensa conjun- manismo" diz"que o homem sempre se volta segundo perspectivas diversas,
ção, não é interpretada no sentido de um aberto e de um espaço livre, então
mas a cadavez com clarezade saber,para o meio do ente" e empreende aten-
com ela ao menos se insinua lula liberdade que Heidegger tematiza nesse
tativa de "trazera si mesmo para a líberação de suaspossibilidades, para o in-
casocomo tal. No que concerne à resposta à pergunta sol)re o que significa terior da certeza de sua determinação e para o cerne da segurançade sua 'vi-
sernessaliberdade, porém, Platão e Heidegger não se diferenciam essencial-
da"'(OC 9, 236). Em meio à técnica, por fím, o que estáem questãoé alcan-
mente: à lida filosófica livre com as idéias corresponde a liberdade ante o
çar uma realidade corrente que seja planejável e calculável por meio da Rul-
aprisionamento na diferença. Se a idéia do bem mesmo fosse algo real no
cionalização de todo ente, até mesmo do homem. Sem que se precise ades-
sentido das outras idéias, também permaneceria incompreensível em que
trar no particular as interpretações heideggerianas da teologia, do humanis-
medida pode-se afimlar em geral que ela ultrapassa o ente em sua deterá ma-
mo e da técnica, bica claro que tmadeterm inado acento da relação entre possi-
ção essencial (ênéxeLva rflç obaíaç/ J?epzíó//ca,509b). É distintivo da in-
bilidade e realidade reside na base de todas essastrês confirmações. Se se
terpretação heideggeriana que ele não citejustamente essadeterminação em
pensa em Deus como "o maximamente ente", como sz//?/?zr/lleni, como o
seu ensaio sobre Platão, nem tampouco se detenha no fato de que a idéia do
ente que "contém o serem si e o emana a partirde si", então sepensa, do mes-
bem também só pode serpensada de um modo tal que ela se subtraía ao mes-
mo modo, todo possível a partir de lula realidade. E isso que setem em meio
mo tempo ao pensará.emtodo caso, é dito sobre ela que quase não se conse-
a uma tentativa de compreender o próprio ser-possível em vista de sua reali-
gue vê-la (»óTtç bpaa+a]/ RepzÍÓ//ca,5 17c] ).5ó Em vez disso, Heidegger
zação. Paraque possaser levada a cabo, por sua vez, essarealização precisa
seorienta apenaspela determhlaçãodo bem como a causade tudo o que é cor-
estar ligada a um modelo de realidade. A funcionalização do que é também
retoe belo(Hávtuv (...) bp+õv 'tc xat xaXÕva'LTÍa/RepzÍÓ//ca,
5 17c2).
encontra seu suporte lla concepção de que a realização atual de produção e
Ele eRiGida essa passagem ao dizer: "Para todas as 'coisas' e para a sua coisi-
dade,a idéia suprema é aorigem, isto é, a causa"(OC 9, 229). Por um lado, se venda precisa ser um modo adequadoa todas as coisas. Heide#ger também
tem em mente essa orientação pela realidade quando fala em "correção'
essainterpretação também erra o alvo quanto ao sentido da idéia platónica
porque Platão não pensa em uma causalidadeautónoma. mas na acessibili- Nesse ponto, se mostra o quão equívoca foi a sua fixação sobre a problemáti-
ca da verdade e do desvelamento. No que concerne à coisa mesma, o que está
dade das idéias para o apreender ao falar de o?L'tÍa, ela conduz, por outro, di-
retamente para o centro da compreensão heideggeriana de "metafísica". em questão para Heidegger não é mostrar como tem lugar em Platão a mu-
dançado desvelamento paraa verdade enunciativa. Ao contrário, o que inte-
ressapara ele é, sim, pensar a çorreção, o estar dirigido para o real, como um
s'H.-G. Gadamer também apontou paraesse paralelo. Cf. Gadamer ( 1983).p. 75. Em contraparti-
da, Stanley Rosen não fãz nenhum üvor a Platãoquando interpreta a"transcendência" da ideia do fechamento do aberto. A partir de uma discussãoetimológica do termo lati-
bem como um aceno para a diferenciação lleideggeriana entre ser e ente. Essa interpretação, que no verá//n presente na preleção Par//7ê/7/des, temos a oportun idade de ver em
deve ser dirigida contra a interpretação heideggeriana, dájustamente razão a Heidegger, na medi- que medida as coisas se dão dessa forma. No caso dessa discussão, tampouco
da em que compreende a ideia do bem em meio à dilêrença. Ct: Rosen (1969), p. 196
346 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 347

precisa interessar aqui uma vez mais até que ponto a derivação heideggeriaTI do que se faz bem em assumir uma postura cautelosa ante tais const)'uções
na é pertinente ou não em termos histórico-lingtlísticos. O termo verzf/zlé epocais" e quiliásticas. Com elas, é historiarizada de uma maneira inade-
lido em conjunto com a palavra alemã "defesa"(»'eÃr) e deve se tornar inte- quada a idéia de \mla liberdade como abertura em geral. Sob a pressuposição
ligível por meio desseprocedimento em sua "significação fundamenlál en- de uma tal posição cénicanão é preciso certamente contestar a possibilidade
tulhada ou nunca expressa e puramente lil)brada de cobrir que fecha, de en- de um pensar não-metafísico. É preciso que se tente simplesmente interpre-
cerrar"(OC 54, 70). Mesmo o oposto desseencerrar, o abrir, é lido por Hei- tar essepensar de tal modo que permaneçam ofuscados os aspectoshistoriá-
degger a partir da palavra latina: "Ser 'contra' o cerrar, contra o radical 'ver rios sempre trazidos uma vez mais pelo próprio Heidegger; e isso é inteira-
significa op-ver/o ou ap-ver/o, en] latim, arar/o, ou seja, abrir" (OC 54, 70). mente possível sem falsificar em seu cerne a idéia heideggeriana. E preciso
Se isso é pertinente, então o termo latino ve/'t//zzprecisa ser equiparado com o mostrar aí em que relação se encontra lml pensar não mais "metafísico" em
termo grego $cu&)ç, se é que essa palavra é mesmo contrária a àXn+éç' geral ante o pensar "metafísico", e isso significa uma vez mais duas coisas:
(OC 54, 7 1). E exatamente assim que se precisa ler também o ve/'zr/zz
com Hei- inicialmente, é preciso tornar inteligível em que medida pode sedesenvolver
degger, se se quiser compreender o que ele tem propriamente em vista com no âmbito da "metafísica" caracterizada pelo "esquecimento do ser" um
correção": "Porque(...) o verá//ll é pronunciado como uma palavra contrária pensar do ser em geral; em sintonia com isso pode-se, então, responder pela
aola/szr/lz,(...) a significação de 'ver-', a saber, o cerrar radical e a cobertura. primeira vez como essepensar toma a "metafísica" em particular e que pos-
conserva o traço fundamental do cobrir em relação ao asseguramento contra: tura e tarefa Ihe advêm diante da "metafísica"
'ver-' é agora o afimlar-se, o permanecer em cima'' (OC 54, 7 1). Portanto, No que concerne à relação de um pensar não mais "metafísico" com o
todo dirigir-se para algo também é sempre a orientação pelo real para o asse- esquecimentodo ser", Heidegger quer mostrar que com esseesquecimento
guramento do próprio persistir constanteante a incapacidadeindicada com o não se tem em vista nenhuma pura ausência do aberto designado com o ter-
/a/szr//7 para se aâirnlar. mo "ser". Onde quer que se pense o esquecimento como pura ausência, ainda
A idéia de lula orientação pelo real é familiar desde a interpretação da se permanece, como Heidegger diz, "muito longe de uma determinação da
impropriedade. Não se pode, com certeza, desconsiderar a diferença entre a essênciado esquecimento": só "para a representaçãocorrente o esquecmlen-
posiçãodo comportamento no falatório e aposição da "metafísica". Enquan- to cai facilmente sob a aparência do mero descuido, da falta e do precário.
to a impropriedade do ser-aí pré-ontológico consiste em fugir do ser iminen- Habitualmente, tomamos o esquecimento e o olvido exclusivamente como
te na abertura do ente esquematicamente compreendido, a aZ)e/'/zr/ae//l ge/'a/ uma omissão que se pode encontrar de maneira suficientemente frequente
é interpretada e tematizada "metaHisacamente" a partir da orientação pelo como um estadodo homem representadopor si"(OC 9, 41 5). No entanto, o
ente como realidade. Dito de outra forma, "metaflsicamente" se está preso "ser" não é nenhtml biombo "que tenha deixado se estabelecerenl um lugar
na diferença da liberdade, sem ainda se estarem condições de resolver esse qualquer o olvido de um professor de filosofia" (OC 9, 415): ele não é, de
aprisionamento. Por isso, as diversas posições teológicas, humanísticas e maneira algtmla, o correlato de lml descuido humano. Se se experimenta
técnicas não se deixam tampouco negar como modos de comportamento e agora, em todo caso, que o olvido pertence "à coisa do ser mesmo" e viga
proyetoscotidianos: o indeterminado,o qual precisariapossibilitar uma tal como destino do ser", então pode-se tornar compreensível a partir daí em
negação,é neles, por nim, interpretado e determinado em lmla impositivida- que medida o ser, ou seja, a liberdade pensada como abertura em geral, per-
de a cada vez diversa. Mas se "o primado do real(...) aciona o esquecimento manece impensada nas posições "metafísicas" caracterizadas pelo primado
do ser"(]V/7, 487), então o pensar "metafísico" parece en] si, de modo diver- do real. O que impede que a abertura seja expressamente pensada é a retração
so da significância do ser-aí pré-ontológico, sem rotura, e muito do que Hei- dessaabertura, o momento da ausênciaque é próprio a ela. Não obstante, não
degger diz sobre a "metafísica" em tentativas sempre novas aponta para o se compreende em que medida se pode em geral saber desseretrair-se e dar
fato de que ele é dessa opinião. A idéiajá citada uma vezde uma "escatologia vaza ele em meio a um pensar não mais "metafísico". A primeira vista, a res-
do ser", de acordo com a qual o "arcaico do primevo deve ser esperado no ar- posta heídeggeriana a essa pergunta não é certamente nada plausível e pare-
caico do que está por vir" (OC 5, 327), também aponta para isso, e, como se cesimplesmente ser algo assim como um protesto. Essaresposta encontra-se
poderia completar, não pode ser realizada hoje. A questão é que nas dificul- napreleção H'asbeiss/ Z)e/v#cn?(O que significa pensar?),na qual nos depa-
dadesinseridas no conceito heideggerianode história do ser tinha se mostra- ramos com a seguinte formulação: "0 a ser pensado <o ser/ G.F.> se afasta
348 Günterfiga Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 349

do homem. Ele retrai-se para o homem. No entanto, como podemos saber o tionabilidade, como resposta. Talvez se venha a olãetar que a questionabili-
mais mínimo que sda em geral sobre esse que se retrai primevamente ou dade de um texto, mesmo de um texto filosófico, não é sem mais articulável
mesmo apenas nomeá-lo?(...) A questão é que -- o retrair-se não é lml nada. com idéia heideggeriana da abertura em geral. Tem-se a ver aí, por fim, com
Retração é acontecimento apropriativo. O que se retrai pode até mesmo,aco- determinadas perguntas, freqtlentemente reconstruíveis ou nomeadas nos
meter o homem e requisita-lo mais essencialmente do que todo presentár que textos mesmos, e a experiência da questionabilidade de um texto só subsiste
o encontra e concerne(-.) O que se nos retrai nos atrai aí concomitantemen- enquanto não conhecemos essasperguntas ou ainda não as compreendemos.
te, quer percebamos isso imediata e efetivamente ou não. Se alcançámos o Certamente, não se pode contestar quc toda leitura de um texto é por princí-
poder de oraçãodo retrair, nos mostramos como no traço para o que nos atrai pio condutível para o interior de uma conversação, na medida en\ que se in-
na medida em que se retrai(OSP, 5). De início, tudo parece como se aqui o vestiga um texto apenassob o aspecto de seu tema determinado. Mas a idéia
passode pensamento,que sai do "retrair" característico do esquecimento de que textos filosóficos são respostas à abertura em geral não diz efetiva-
para o "atrair'', um atrair que visa ao mesmo que acometer na conferência so- mente que eles teriam essa abertura como tema secreto. Na observação hei-
bre Tempo e ser, tivesse sido conquistado pura e simplesmente a partir de lm} deggeriana sobre o "diálogo propriamente dito" e sobre a conversação, o que
jogo de linguagem. Permanece obscuro como o acometer da abertura é expe- estáem questão não é absolutamente o problema acerca de que perguntas
rimentado justamente em seu esquecimento. não exteriorizadas e reconstruívcis poderiam estar na base de um texto, mas
Elucidativa para tanto é, agora, uma observação que Heidegger antepõe sim a maneira segundo a qual textos ao menosàs vezes são experimentados.
na mesma preleção à sua interpretação de uma frase de Parmênides: "Toda Trata-se aí da necessidade de os textos serem questionáveis e estranhos, para
interpretação é um diálogo com a obra e com a sentença.Todo diálogo chega que se possa entrar neles e não apenas tomar conhecimento deles. No entan-
em um beco sem saída e em um ponto infrutífero, quando se estabelece ape- to. se entramos neles e tentamos, "repetindo"-os, lê-los novamente, entãojá
nas em meio ao que foi imediatamente falado e se mantém aí de maneira in- nos "introduzimos" em uma abertura que é experimentada na questionabili-
transigente, em vez de deixar os falantes se inserirem reciprocamente por dadee estranhezado texto, exatamente como no fato de que o texto pode ser
meio do diálogo e se aproximarem do lugar de estada,a partir do qual eles a repetido. Como tal, porém, essaabertura é o "lugar de estada", o único lugar
cadavez falam. Essedeixar-se-inserir é a alma do diálogo. Ele conduz os fa- a partir do qual o texto pode falar em um sentido pregnante. Mas também é
lantes para o cerne do que não foi falado. O nome 'conversação' denomina, possível tornar claro como precisa ser compreendido o discurso heideggeri-
en] verdade, a doação altemante dos falantes. Toda conversação é uma espé- ano acerca do "esquecimento". "Esquecimento" não tem em vista que todos
cie de diálogo. O diálogo autêntico, porém, nunca é conversação. Essa con- os filósofos da tradição teriam descuidado da necessidadede colocar a única
siste em que seguimos nos embrenhamos no a cada vez falado e não nos inse- pergunta decisiva: a pergunta sobre a abertura em geral. Ao contrário, ele de-
rmlosjustamente no que não é falado. A maioria das interpretaçõestextuais, signa muito mais que eles teriam descuidado do "que não está dito" em todo
não apenas de textos filosóficos, permanece na esfera da conversação, fre- texto e que por si só motiva uma nova leitura, viabilizando assim o diálogo
qiientemente de uma conversação multifacetada e elucidativa" (OSP, l lO) da filosofia pela primeira vez. Se as coisas se dão dessa forma, então a tema-
A pergunta sobre como é possível ultrapassar a "conversação" e alcançar o tização dessaabertura tambén] não tem nada a ver com o resgate há muito
"diálogo propriamente dito" não é mais em verdade respondida pelo próprio vencido de um programa filosófico e com o cálculo de descuidos. Jáa destrui-
Heidegger. Mas não é difícil ter clareza quanto ao fato de que em meio à lida ção discutida em Senão conhece, como Heidegger diz, "nenhum outro inte-
com textos, se a experiência de sua complexidade e de sua estranheza não ressesenão reconquistar em meio à desconstrução de representagjes que se
torna a leitura impossível no plano da conversação,de qualquer modo a difi- tornaram correntes e vazias a experiência originária de ser da metafísica
culta consideravelmente. Além disso, no momento mesmo em que os textos (OC 9, 41 7). Uma tal reconquista é um "retorno" e a locução "de volta deno-
são experimentados como carentes de interpretação passaa ser impossível mina aqui a direção para aquele lugar (o esquecimentodo ser), a partir do
semanter simplesmentejunto ao quc é dito. Mas se se pergunta sobre o que qual a metafísica recebe e retém sua proveniência"(OC 9, 422). No fato de
está propriamente em questão neles, entãojá se foi conduzido por essa per- Heidegger denominar o esquecimento do ser mesmo um "lugar" vem à tona
gunta mesma para o interior do "que não foi falado". Somente então, depois claramente, que o esquecerno sentido de um silenciar proposital forma um
de ter se tornado questionável para alguém, pode-se ler o texto, en] sua ques- espaço de diálogo a ser concebido como liberdade. Essa idéiajá está prepara'
350 Günter Figal Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 351

da nas discussões do "discurso" e da "linguagem" em S7. Se o que está e ' mente plausível sob a pressuposição de que se trata em primeira linha,junto
questão lá é seguramente a comprovação da possibilidade de poder ser inter-
pelado por outros, o que importa aqui é a pergunta sobre a liberdade desde a
qual falam textos filosóficos em geral. E enquanto o diálogo com um/outro
acontecejustamente então da melhor forma possível, quando o espaço de
diálogo do "que não é dito", ou seja, a liberdade do parceiro de diálogo, não é conceitos sistemáticos que pertencem segundo a coisa mesma à fenomeno-
tematizado,carece-sede uma tal lematizaçãona lida com textos para que
possaficar claro como essestextos falam; sim, para que eles possam falar e logia da liberdade.a tal interpretaçãofala, a princípio, o fato de a noção de po-
não sempre apenas dizer o mesmo que se pode achar "correto" ou não
No que diz respeito à lida conatextos, o que interessa a Heidegger é, por
conseguinte, mostrar, em uma meditação sobre a possibilidade de leituras
mterpretativas, como sepode falar de maneira significativa do que não é dito
nos textos semque essenão dito sda desenvolvido em uma fllosoHia alterna-
tiva ante a tradição; só se consegue falar do que não está dito na medida em
que se descreve a experiência peculiar com o que foi dito. Fazendo-se isso.
consegue-seachar uma relação livre com o que é dito nos textos. Essa liga-
ção livre tem uma vez mais um caráter exemplar para o comportamento ante
a correção em geral

Correção e liberdade

O termo "correção" não é para ser entendido apenas e nem primaria-


mente como lmla caracterizaçãopossível de enunciados. mas visa à orienta-
ção por un] //fode/o de / ea/Idade "que aponta para uma direção"; um modelo
ao qual se pode corresponder no pensar como en] um comportamento, a flnl
de assim encontrar a persistência constante do que e de como se é. O que e
como se é não se acham aí simplesmente dados previamente, mas sempre
são considerados em sintonia com o modelo de realidade pelo qual nós nos
orientamos. Tais modelos podem se cruzar inteiramente. Eles são o ''tecni-
camente factível" e o "calculável cientínlco-naturalmente", mas não apenas
esses.Tal como a preleção sobre Par/lzê/?/desatesta,todo tipo de domínio
político, de autoridade e de dogmática eclesiástica constitui ao mesmo tem-
po um tal modelo. "Correção" é, em unia palavra, a es//'z/fz/rade/20der. Com
isso, a discussão heideggeriana com a "correção" recebe também pela pri-
meira vez o seu peso pleno. Se se diz isso, e, em verdade. com o intuito de
ainda seguir Heidegger mesmo nesseponto, parece uma vez mais inevitável
aceitar também os aspectos"epocais" e "escatológicos" de seu pensar. Hei-
degger desdobra sua concepção de poder, entretanto, antesde tudo como lml
diagnóstico do tempo presente, e, correspondentemente,parece que só se
pode compreender a "salvação" do "perigo" dessetempo como o resultado
epocal no sentido de um pensar não mais "metafísico". Essa idéia só é certa-
352 Günter Figas Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 353

significância; pois, como apresentaçãodo ente na totalidade,a imagenbfde sar-se-á reconhecer, em verdade, que a modernidade é caracterizada de lmaa
mundo é também uma apresentação do homem, do ente dotado do modo de/ser maneira peculiar pelas imagensde mundo. boas se Heidegger lê na significa-
do ser-aí, tal como se encontra formulado em SZ A imagem de mundo tam- ção de "imagem de mtmdo" a "formação de uma imagem", então ele nos faz
bém é a imagem dos "valores" e o termo "valor designa a oUetivaçãoáas fina- supor que se precisa conceber o prometodas imagens de mundo de maneira
lidades do carecimento inerentes ao guiar-se representacional no mundo como análoga àsproduções dos sofistas, tal como Platão as caracterizou. Por Hlm, o
imagem" (OC 5.,.10]). Em meio à orientaçãopelos valores, o que importa es- sofista parece entender da transformação pura e simples de tudo em arte (xo-
sencialmente é "fazer unia imagem" do que é digno de ser desdado e aspirado, Léiv xai 8pav pta TéXVU auváxavta ê rÍalaa+al vpáTpaTa/ S(@s/a
e, vistos assim, os valores são as apresentações abstratas do homem em sua 233d9); e, em verdade, com a finalidade de poder lidar com tudo (lxa'.louç
comparabilidade. Eles fornecem os critérios para o falatório. Na imagem de lroLoualTouro 8pav/ S(2/is/a232c2). As apresentaçõessofísticas não pas-
mundo, mesmo o comportamento é determinado de maneira diversa que na sam, certamente, de aparência porque é impossível saber tudo. Seu caráter
significância. Enquanto na estrutura da signiHlcância,junto ao ente e ein meio aparente mesmo mostra-se em um encurtamento perspectivístico peculiar:
à interpretação de suas disposições, sempre se precisa começar novamente a os proHetos sofísticos do "ente na totalidade" não transmitem as verdadeiras
encontrar a própria realidade, na imagem de mundojá se está expressamente proporções do todo que aparece em sua ordenação, mas o superior aparece
certo do ente em vista de suas propriedades, das propriedades nas quais ele neles menor e o mais l)aixo, maior do que em verdade é porque se vê aquele
pode ser descoberto. Em meio ao comportamentonão nos deixamos remeter de longe e essede perto; as coisas aparecem, dito de outra maneira, apenas
assim para algo, mas retiramos, tal comojá está expresso em Sr, «de antemão em modelos da realidade, e, com efeito, como isso pelo que, como Heideg-
do ente que vem ao encontro um 'ponto de vista"' (ST, 61); e ;sso significa ger diz, "elas são propriamente tomadas". Visto assim, os modelos de reali-
uma vez mais que o entejá é projetado de uma maneira determinada. Em um dade sãó, como se poderia pensar, uma õót« do ente na totalidade.
tal "prqeto é estabelecidoaquilo pelo que as coisas propriamente são toma- Essaanalogia entre as apresentaçõessofísticas e as imagens de mundo
das"(OC 41, 92).e é claro que "pro)eto" não significa mais aqui o mesmo que no contexto de pensamento de Heidegger não são trazidas para cá de fora. O
na interpretação do compreender. Tem-se a ver aqui muito antes com a signifi- fato de Heidegger chegar a falar sobre a sofística em seu texto .4 (épocadas
caçãode "prometo"que foi elaboradaem sintonia com Kant. O prometodo ente v/iões de /n!/ndo mesmo. e, em verdade, mais exatamentesobre a sentença
por meio do qual esseé considerado"na esferade visão de regrase leis" (OC5 de Protágoras, por si sójá o comprova. Heidegger também contesta aqui de-
80), não é mais para ser simplesmente o apreender de possibilidades. ele tem cididamente a possibilidade de uma equiparação do pensamento grego com
de ser, sim, um trazer o ente objetivado até a persistência constante alcançada os conceitos mudemos e advoga a causa de deixar ao pensar grego "o que ele
por meio de uma apresentação abstrata. A l ida mesma é igualmente apresenta- possui de próprio e estranho" (OC 5, 105). Todavia, sua tentativa de ler a
da abstratamentecomo um complexo de procedimentos e métodos dirigidos sentença de Protágoras como "manutenção da posição Rindamenta l de Herá-
por regras. clito e de Parmênides" (OC 5, 105), e, por conseguinte, como expressão da
Já a partir da caracterização da imagem de mundo, vem à tona o fato de experiência da àÀliPcLa, não é muito convincente. O fato de o homem ser a
que o que importa a Heidegger aqui é en] primeira linha uma determinação medida de todas as coisas, das que são que elas são e das que não são que elas
da ciência e da pesquisa, mas, em todo caso, uma determinação da moderni- não são, significa que o homem perdura "na esfera do desvelado que é parti-
dade: "As locuções 'imagem de mundo damodernidade' e 'imagem de mun- cipado a ele sempre a cada vez como esse" e apreende "tudo o quf se presen-
do moderna' dizem duas vezes o mesmo e supõem algo que antes nunca ça nessa esfera como sendo" um tal'l'penencimento ao que se pr4senta aber-
pede haver, a saber,uma imagem de mundo medieval e antiga. A imagem de to delimita esseente ante o ausente" e, "a partir desse limite, o homem recebe
mundo não passoude uma imagem outrora medieval para uma imagem mo- e guarda a medida para o que se presença e ausenta"(OC 5, 104). Na medida
derna, mas o fato de o mundo ter se tornado imagem distingue a essência da em que Heidegger interpreta o caráter de medida do homem como "mensu-
modernidade" (OC.5, 90). Se se concorda com essatese, precisa-se abdicar ração da esfera do desvelamento que é limitada em conformidade com o eu"
de querer tomar mais exatamente a estrutura designada com o termo "corre- (OC 5, 105), ele perde de vista o contexto entre o relativismo de Protágoras e
ção" e discutida por Heidegger mesmo em exemplos da Antigiiidade tardia e a heurística: se tudo é assim como me aparece e, para lml outro, assim como
do medievo por meio de uma discussãoda "imagem de mundo". Preci- Ihe aparece (Teerero, 152a), então a única opção que resta ainda em meio ao
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 355
354 Günterfiga

entara,em favor da perspectiva do produtor. JLmtoa essaperspectiva deve se


diálogo é tentar convencer os outros do que se acredita ou deixar-se conven-
mostrar mais claramente a essência do matemático. Ante o aprendizado do
cer por eles. O sofista só pode ter sucessocomo produtor de convencimeiÍto
uso há, como Heidegger diz, um "aprender a conhecer ainda mais originá-
(xcL+ouÇ 8TIALoupToç/Górg/as, 435a2) se seus ouvintes supuseren) que
aquilo que se mostra para eles como constituído dessa e dessa manotéa tam- rio" (OC 41, 72), e essedeve ser um aprender "no qual tomamos conheci-
mento disso que a cada vez uma coisa em geral é"(OC 41, 73): somente "se
bém é assim como se mostra -- se, dito de outra forma, aqueles que escutam o
passamos a conhecer isso expressamente e de lmla maneira determinada, po-
que é mostrado no discurso estãocertos por força apenasdo discurso. O po-
demos tomar conhecimento de algo que propriamente já temos. Justamente
derde convencimento do discurso decide quanto ao que é e ao que não é. Sob
esse 'tomar conhecimento' é a essência propriamente dita do aprender, da
o ponto de vista da discussão, o "correto" é o que aparece e que é mostrado a
cada vez no discurso. p,á+rlatç" (OC 41, 73). Ao menos em um aspecto essainterpretação passa
Não obstante, a tentativa heideggeriana de interpretar a sofística como ao largo da interpretação platónica do produzir. De acordo com o livro X da
Po//re/a, o saber do uso permanece sendo o único interesse válido para a pro-
apenas uma posição que se mantém junto à experiência do que se presenta
dução e lmla tematização do uso só pode ter o sentido de atar o produtor tanto
não é incompreensível. Tal como ele pensa,só se pode falar de "correção" se
mais decididamente a essa instância. SÓa capacidade de usar algo merece ser
o simples aparecer não perHizer mais a "esfera" do homem, mas foi diferen-
denominada saber GcvLa'rtjp.TI),enquanto o produtor em sua visualização do
ciado entre o "verdadeiramente ente" e o mero aparecer. Uma "mudança da
que produz é caracterizado por uma confiança adequada(vÍaTLÇ bp+TI/Re-
interpretação do ente e do homem" (OC 5, 103) que só se realiza em Platão.
pzÍb/fca, 601e7). Mas o "aprender a conhecer mais originário" do qual Hei-
Justamente como luta contra a sofística e, com isso, em dependência em re-
lação a ela", a interpretação platónica "é tão decisiva que acaba por se tornar degger fala consistejustamente em que ele se libera do contexto do saber do
o fim do mundo helênico, um Him que prepara concomitantemente de manei- uso e abstrai mesmo do fato de a produção de algo ser lml saber do uso. Logo

ra mediata a possibilidade da modernidade"(OC 5, 103): o "avançar para o que as pressuposições intuitivas de um saber que se comprova são /e/ ?a//fa-
das, elas não possibilitam mais meramente essesaber, mas se tornam ima-
interior do âmbito ilimitado da objetivação possível por meio do cálculo do
representável acessível a qualquer um e obrigatório pai'a todos" (OC 5, 106) gens do ente, imagens que propõem como unicamente o ente agora deve ser
considerado. A inversão peculiarjá está, a princípio, vista na discussão pla-
pressupõe, dito de outra maneira, a diferença entre algo correto e algo apenas
aparentemente correto, e o verdadeiramente cometo é, desde Platão. "o ma- tónica da matemática, que não passade lml exemplo para o "matemático'
temático". De fato, como se sabe, Platão fala das idéias como pa tl inata eé em sentido mais amplo: os matemáticos pressupõem idéias que possibil atam
seu saber. Não obstante, eles o fazem como se soubessem algo Gunoaép.cvol
fácil ver que Heidegger pensanas idéias platânicasjunto à sua determinação
(...) Toã'ta â3Ç c'L8ÓTCÇ/ Repzíb//ca, 5 10c). Em verdade, porém, eles estão
do matemático: "Os p.a+lÜ.a'ta são as coisas na medida em que tomamos
fora de condições de prestar contas quanto a essesaber e tampouco tomam
conhecimento delas. Elas são como o tomar conhecimento, como o que já
essaprestação de contas como necessária. Somente porque eles pressupõem
conhecemos de antemão: no corpo, o corpóreo; nas plantas, o botânico; no
animal, a animalidade; na coisa, a coisidade etc."(OC 41, 73) idéias, podem cona efeito conceber as coisas que aparecem como imagens
dessasidéias. Em sua requisição de saber, contudo, reside a tendência de
Por si só,já pela elucidação que precede a essadetemlinação, fica claro
o quão pouco os exemplos citados são em verdade exemplos para os afirmar para outros como o carreto o seu "estado de lmla auto-ilusão estrutu-
ral". Heidegger aponta expressamentepara essaambivalência do matemáti-
p.a+n®.aTa. Heidegger explicita o conhecimento que já se tem "de ante-
mão'' de algo em recurso ao saber do uso, e, para esse, o conhecimento da co: "0 matemático é aquilo que está revelado nas coisas e em que sempre Jã
nos movemos, aquilo de acordo com o que as experimentamosem geral
"coisidade da coisa" não é relevante. No saber que é intrínseco ao uso não
como coisas e como tais coisas. O matemático é aquela postura fundamental
vem ao encontro absolutamente nenhuma coisa. Ao contrário, o que vem ao
em relação às coisas, na qual nos pro-pomos as coisas em vista do modo
encontro é sempre lml utensílio, com o qual se tem a cada vez uma conjuntu-
ra determinada. Na orientação pela perspectiva do saber do uso não se conse- como elasjá nos são dadas, precisam e devem ser dadas. Por isso, o matemá-
gue conquistar, por conseguinte, a concepção específica do "matemático' tico é a pressuposição fundamental do saber das coisas"(OC 41, 76). Os es-
que está em questão para Heidegger aqui. Tampouco é por isso espantoso quemasdo ser-aí pré-ontológico e todos os aspectosdo utensílio em sua ma-
nualidade também perfazem o "matemático" no sentido da significação do
que ele deixe de lado a perspectiva do usuário, pela qual inicialmente se ori-
Y'
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 357
356 Günter figa

dade é ou não "a época da imagem de mundo" não é mais tão importante.
termo que foi citada aqui em primeiro lugar. Esses a tÜa a não são,con-
tudo, objetiváveis em uma imagem do ente porque eles só sãó acessíveis no Como precisa ter ficado claro, porém, não se poderá deduzir em todo caso
balanço da diferença da liberdade e na lida com o ente. Uma imagem.de uma tal detemlinação do simples fato de a modernidade ser marcada pela
mundo só pode ser projetada com tais »a l:i aTa que, quando são temêtíza- ciência matemática da natureza. Igualmente secundária é a pergunta sobre
dos, também podem se mostrar como critérios para a lida. Esses são em pri- que formações atuais e historiárias podem ser descritas plausivelmente
meira linha os »a'8ib.a'tct da matemática, mas também são as atitudes e as como imagensde mtmdo, pois uma resposta a essapergunta comporta-se em
finalidades de açõesobjetivadas como "valores". Sese fala, por exemplo, de relação a uma análise estrutural da imagem de mundo como uma investiga-
uma imagem de mundo matemático-científico-natural, então isso significa ção psicológica ou sociológica em relação à análise do "impessoal". O fato
que o "ente na totalidade" é considerado agora no contexto de idéias mate- de Heidegger manter apartadosos dois planos de um diagnóstico do presente
máticas e Hlsicaisnomlativas e que essecontexto mesmo é defendido com a e da história, por um lado, e de uma análise estrutural, por outro, não fala
requisição por impositividade. Um tal contexto permanecesem unanimida- contra o sentido de uma tal diferenciação. Ao contrário, se nos concentrar-
de em sua validade por meio da negação de projetos e modos de comporta- mos na análise estrutural, teremos a chance de compreender melhor que va-
mento próprios que são previamente fomlados por meio dele; porque o pro- lor conjuntural possui a idéia heideggeriana de uma liberdade não mais pen-
jeto matemático-científico-naturaljá abstraiu da estrutura do ser-aí, ele tam- sada esquematicamenteporque fica claro, assim, como pode ser pensada a
bém não pode ser equilibrado nessa estrutura. Por outro lado, também é im- não-liberdade que contrasta com uma tal liberdade. "Não-liberdade" não é,
possível entender a impositividade de um tal prometo.Porque ele repousa so- por exemplo, uma característica de conceitos filosóficos que não impelem
bre o fato de que hipóteses no sentido platónico são estilizadas e transforma- para a ideia da liberdade como abertura. "Não-liberdade" é aqui muito mais
das em critérios, só se tem unia opção: estar ou não convencido dele, e, caso apenasa característica de um posicionamento da correção no sentido apre-
se este)aconvencido, defender a própria convicção na "luta entre as visões sentadoe poder-se-ia, no máximo, tentar mostrar que em nenhuma concep'
de mundo" (OC 5, 94). No mais tardar, aqui deve ter ficado claro o momento ção HilosóHlcaque procure desenvolver uma determinação do homem cones-
sofístico no prometode imagens de mundo. pondente a uma imagem de mtmdo em meio a uma "imagem do homem
Naturalmente, não está dito que as ciências matemáticas da natureza são consegueencontrar uma "ligação livre"(EC, 9) com a correção. Mais impor-
em si sofísticas. Sofística seria muito mais apenas a tentativa de a%#ênder um tante do que isso é, contudo, a pergunta sobre como é preciso tomar mais
projeto matemático-científico-natural como carreto e normativo. Sofística é exatamenteuma tal "ligação livre"
toda tentativa de afirmar um determinado modelo de realidade como obriga- AÍ é preciso atentar inicialmente para o fato de que uma livre ligação com
tório. Um tal modelo não sedeve apenasa uma lida com idéias caracterizada a correçãonão pode consistir em unia crítica ou em uma recusade determina-
por meio de auto-ilusão, uma vez que o que é em verdade pressuposto é esta- dasimagensde mundo, pois com isso a posição da correção seria apenasindi-
belecido agoracomo normativo. Mais importantedo que issoé ainda a cir- retamenteratificada. Mas mesmo uma negaçãoda correçãoé impossível. Ne-
cunstânciade que a impositividade do modelo mesmo não pode ser nem gáveis são sempre apenasprojetos e modos de comportamento, mas não os
comprovada nem reftltada,s7 e se uma 8óYa é caracterizada pelo fato de po- critérios aos quais essesproUetose comportamentos estãosubmetidos: não é
der ser carreta ou fa lsa, então não se pode falar em vista das imagens de mun- possível orientar-se por um critério e, ao mesmo tempo, não fazer isso tal
do nem mesmo de uma 8óEa acerca do ente na totalidade. Não se consegue como se pode perseguir um prometocomo real idade iminente e revoga-lo como
ver segundo que critérios se deveria chocar a correção ou a falsidade de ima- respostaao ser iminente. Todavia, é mais do que possívelper#r/7far pela es-
gens de mundo, na medida em que elas formam o âmbito de ligação para a sênciadas imagens de mundo e com isso escaparde sua requisição sofística.
correção e a falsidade de opiniões. Uma tal pergunta sobre si só tem uma chance ante a sofística das imagens de
Portanto, o problema que interessa a Heidegger não é a correção e a fal- mundo,s8e, por isso, tampouco faz nauito sentido reinterpretar a pergunta mes-
sidade de opiniões, mas a possibilidade de ({#r/77arimagens de mtmdo co/no ma uma vez mais como uma resposta mais ou menos disthata a uma indicação
corre/as. Se se tem clareza quanto a essa estrutura das imagens de mundo e
s8R.Maurer viu muito claramente essa relação de Heidegger com a sofística, mas de qualquer
quanto ao sentido do termo "correção", então a pergunta sobre se a moderni-
modo falou de uma maneira equivocada de um ''ataque'' à sofística; um ataque seria a tentativa
de bater a sofística çom seuspróprios meios, e isso é impossível. Cf. Maurer(1972). p. 450
s'Ct, quanto a isso, Rorty (1984), p. 7.
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 359
358 Günter Final

rio" do pensar. O pensamento, porém, não deve ser preparatório em vista de


uma nova mitologia, mas em vista da possibilidade "de a civilização mun-
dial, que somente agora se inicia, superar efetivamente o caráter técnico-
científico-industrial como a única medida para a estadado homem no mun-

corTeÇãO.Essaapresentaçãodomundoéaarte. . . , ...:
No mais tardar desde seu ensaio sobre H o/igen7 da obra czcUrra, nçi'

un] jogo que poderia ser diferente ou que poderia ser um outro.
Em seuensaio sobre a Or/gem da obi'a de arfa, Heidegger caracterizou a
arte como o "pâr-se-em-obra da verdade". Se se acrescentaagora que "ver-

ta" em obra no sentido mencionado? Não por acaso, Heidegger se viu obri-
gado a elucidar ainda lmla vez a significação .do verbo "por em um adita-
mento ao seu ensaio, semque conseguisseefetivamente dar uma respostasa-

s'Rorty (1984), P.21.

"Cf. Scllünna.n/ 82).Miar.n idem/lsnius (Sistema do idealismo transcendental) (Sci/?ir//c/le


Me/-#e, seção 1, vo1. 3).
':Rorty (1984), P. 17
361
Martjn Heidegger: Fenomenologia da Liberdade
360 Günterfigal
contudo, é "a palavra normativa"(OC 53, 102). Em verdade,Heidegger quer
como põr-se-em-obra da verdade, onde agora verdade é 'objeto' e a arte, o evitar a compreensão de "erigir" no sentido moderno "como 'organizar' e
criar e o guardar humano"(OC 5, 73). É claro que Heidegger, em seu diyur- aprontar', ao modo da conferência sobre a técnica": "0 'erigir pensa muito
so sobre a verdade como um "obÜeto", não pretende fazê-la passar pór um mais na (...) 'via da verdade para a obra', que a verdade em meio ao ente,
objeto da reHexão. Todavia, faríamos uma leitura por demais superficial de mesmo sendo conforme à obra, se torna antiga" (OC 5, 73). Mesmo essaex-
sua determinação se a compreendêssemosapenas como o testemunho de plicitação, porém, não faz senão ratificar que se tem a ver na arte, tal como
uma carência linguística. Se se leva em conta que obfecfzf/pzsigniHi ca origina- Heidegger a pensa,com uma representação,com uma "objetivação". da ver-
riamente o "representado" (OC 41, 106), então se poderá interpretar o dis- dade. Se se leva em conta que verdade é o completamente indetemlinado e,
curso acerca da verdade como um objeto, na medida em que se compreende com isso, irrepresentável, esseresultado é bem estranho. Seguramente,não
o põr-se-em-obra da verdade como um representar da verdade. O fato de sepoderá dizer, por fim, que, como uma imagem de mundo, toda obra dearte
Heidegger poder falar da "constatabilidadeda verdade na figura" mostra é um modelo normativo da realidade; mas inicialmente é importante ter cla-
também como essainterpretação não é absolutamente trazida de fora para o reza quanto à paradoxia da fomlulação heideggeriana "pâr'se'em-obra da
ensaio sobre a obra de arte. E para a explicitação dessa determinação, ele verdade". A idéia de que a verdade, ou seja, o possibilitador mesmo, se ma-
acrescenta: "0 significado de figura precisa ser nessecaso pensado inces- nifesta na obra como algo real, que o completamente indeterminado é con-
santementea partir daquelepâr e daquelacom-posição como os quais a obra formado em uma determinada figura, parece estapafúrdia.
se essencializa, na medida em que se instala e produz" (OC 5, 5 1). "Com- Sese quisesseevitar, porém, essecaráter estapaftlrdio e contestar a nor-
posição" (Ge-sre//y3 é, contudo, o termo heideggeriano para a essência da matividade da obra de arte, não se poderia mais tornar compreensível o que
técnica e ele não deixa nenhuma dúvida de que compreende ao menos em qualquer um que se mete com uma obra de arte experimenta. Por Him, toda
princípio o "põr" da arte e o da técnica como o mesmo: "A composição como obrade arte não fornece previamente apenasum determinado espaçodejogo
a essênciada técnica provém do deixar-jazer-diante experimentado de modo parao comportamento, mas é ela mesma também critério paraessecompor-
grego, do XóToç,dos termos gregos noírptç e +éatç." (OC 5, 72) Mas nes- tamento. Um comportamento em relação à obra de arte pode ser adequado
se caso. exatamente como a técnica, a arte é detemainada por correção: a obra ou inadequado. Essa adequação ou inadequação não é nem apenas uma
de arte dá um critério pelo qual podemos nos guiar. A partir da formulação questãode bom ou mau gosto, nem uma questãode uso correio ou falso. Se
do "erigir" (OC 5, 49) da verdade na obra vem à tona claramente que também e afirmasse a primeira hipótese, ter-se-ia descuidado de que a lida com
essainterpretação não é inadequadapara o texto heideggeriano. Além disso, obras de arte sempre é mais do que a declaração dejuízos de gosto; e, no que
pode-se acrescentarainda o fato de, no contexto de uma interpretação de Só- concerne à segunda hipótese, é evidente que obras de arte não são usadas
focles, se poder dizer o seguinte ante a pergunta sobre como se realiza a "de- como utensílios que pertencem a um determinado contexto da significância.
terminação da essênciado homem" (OC 53, ]02): "Apreendemos essa es- A impositividade das obras de arte pode ser elucidada da melhor forma pos'
sência como canto do coro da tragédia que é poesia"(OC 53, 103); a poesia, sável,na medida em que serecorre ao conceito dejogo:" obras não se encon-
tram em um contexto uma vez que são experimentadascomo tais, mas forne-
ú3Esseé um dos termos mais complexos do discurso heideggeriano sobre a técnica e sua tradu-
cem previamente um contexto e atam o comportamento a determinadas re-
ção exige alguns comentários. Em primeiro lugar, Heidegger pensa essetermo em sintonia com
gras que são inteiramente comparáveis com regras de jogo Toda imagem,
um conjunto de outros termoscompostosa partir do verbo alemãos/e//en, que diz literalmente por exemplo, indica previamente, por meio de sua construção, por meio da
pâr", "colocar", "estabelecer". O prefixo "ge-" ligado ao verbo aponta para aformação de par- distribuição das cores e da condução das linhas, comia quer ser vista. Além
ticípios em alemão e indica, assim, o f'ato de o movimento intrínseco ao verbojá ter sido levado a disso, só chegamos efetivamente a ver uma imagem e não apenas tomamos
termo. O Ge-sfe// designa assim antes de mais nada uma ação de "pâr" que se consumou, que se
conhecimento dela quando seguimos suas regras de jogo imanentes.
plenificou, e, por conseguinte, a estrutura sedimentada oriunda dessa ação. Esse sentido está
plenamente em sintonia com o conteúdo significativo corrente de Ges/e// como estrutura arma-
No contexto anual, o que está em questão não é certamente descrever
da que pode funcionar colho apoio para a colocação de objetos. Exatamente isso levou-nos a se- essesfenómenos mais exatamente. Mais importante do que isso é ter clare-
guir aopção dos tradutores portugueses e de Márcia Cavalcante Schuback por"composição". O
Ges/e// instaura-se, em suma, como estrutura armada, uma composição no sentido dajunção de
várias peças estruturais, a partir da qual uma certa vontade técnica pode operar e no interior da õ4Cf.Gadamer,Hera/ade
e /}zé/oc/o,
P. 107
qual essa vontade incessantemente se mantém. (N.T.)
T
362 Günter Figa Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 363

za quanto à diferença entre o caráter normativo de uma obra de arte e dê portanto, de (paLvópcvov,ós então a arte é pensada no sentido do livro X da
uma imagem de mundo. Essadiferença não pode consistirem que um com- Po///e/a. Se seguirmos essecaminho, porque ela estaria bem abaixo da ver-
portamento cunhado por meio da obra de arte seria livre de metas ou nãg se- dade, também não poderia se dar o que Heidegger tem em mente. Fica claro,
ria orientado pelo sucesso."Meta" e "sucesso" como critérios de compor- contudo, a partirjá de sua leitura do quadro de van Gogh que apresentaum
tamento só são previamente fonlecidos nas imagens de mundo, de modo par de sapatos,o fato de essesdois modos de leitura não corresponderem ao
que o discurso acerca de um comportamento "livre de metas" ou "não ori- que Heidegger tem em mente. A interpretação heideggeriana dessequadro
entado pelo sucesso" ainda pertence à linguagem das imagens de mundo. A não pode ser confundida com lmla descrição iconograficamente carreta.
impositividade do comportamento no campo de jogo da obra de arte não Desta feita, a pergunta sobre se os sapatos pintados são efetivamente sapatos
pode ser, contudo, c!#r/?cadaante outros. Diferentemente da imagem de de um camponês é totalmente irrelevante.
mundo, a obra de arte não é posicional. Com efeito, a obra é normativa para A "descrição" heideggeriana(OC 5, 18) dos sapatosdocumenta inicial-
o comportamento no campo dejogo da obra. Todavia, essecaráter normati- mente apenas a tentativa de se representar os sapatos, "lml utensílio habi-
vo sempre é experimentado em meio ao comportamento em relação à obra tual" (OC 5, 18) em seu uso. A articulação dessarepresentação não tem o
como uma nova normatividade: "Quanto mais essencialmentea obra se sentido de refletir sobre a diferença entre sapatos pintados e usáveis. Ao con-
abre, tanto mais luminosa se torna a unicidade do fato de que ela é e não an- trário, deve ser introduzido com ela o conceito central para o curso posterior
tes não é" (OC 5, 53). O caráter normativo da obra de arte nunca tem, dito de pensamentode Heidegger: o conceito de "terra". Não se pode confundir
de outro modo, o caráter da auto-evidência. Onde as obras de arte setornam aqui "terra" com "campo" ou "gramado", mesmo se o próprio Heidegger
auto-evidentes, elas perdem ao mesmo tempo o caráter normativo que lhes abre espaço para uma tal confusão. Não se trata de, em meio à consideração
é peculiar, pois a obra só é normativajuntamente com a experiência de que do quadro, representar a terra sobre a qual se anda da mesma maneira que se
há, como se poderia dizer em uma variação da formulação heideggeriana, representa o uso dos sapatos. IJm pouco mais tarde no ensaio vem à tona
uma medida e não antesnão há. De maneira diversa das imagens de mundo, muito mais que Heidegger denomina "terra" o que se designa de outro modo
as obras de arte não possibilitam nenhuma orientação co/vs/a/vfeno com- como a "matéria-prima" ou o "material" da obra de arte: "terra" é "isso para
portamento, e nisso se mostra que elas não são nenhum modelo de realida- onde a obra se recoloca e o que a deixa vir à tona em meio a essere-colo-
de. O ente e o comportamento não são objetivados nelas sob um determina- car-se"; a obra se recoloca "no maciço e pesado da pedra, na firmeza e flexi-
do ponto de vista, mas é a verdade que é oljetivada. bilidade da madeira, na dureza e no brilho do bronze, no luzir e no obscure-
Por meio das explicitações até aqui, essaformulação certamentenão cer-se das cores, no ressoar do som e no poder de nomeação da palavra"(OC
perdeu nadade seu caráter paradoxal. Por fim, foi apenasmostrado como as 5, 32). Na medida em que sediz o que significa aqui o discurso acerca do "re-
obras de arte se diferenciam das imagens de mundo em seu caráter normati- colocar", esclarece-seao mesmo tempo porque Heidegger não fala de "ma-
vo. No que concerne agora à objetivação da verdade, a melhor forma possí- téria-prima" e "material", mas certamente em sintonia com Hõlderlin de
vel de torna-la plausível é, com certeza,considerar a discussãoheideggeria- 'terra". "Matéria-prima" e "material" são termos quejá são pensados a partir
na da obra de arte como algo criado. Essadiscussão inicia-se uma vez mais do emprego de algo para uma obra no sentido da téXvvl ou a partir de um pro-
com a pergunta sobre en] que perspectiva o criar de uma obra de arte é com- duto no sentido da técnica. Em contrapartida, o "necessitar da terra" apenas
parável comio produzir daTéXvrl. A respostaa essapergunta é, por sua vez, a parece "com o emprego artesanal de matéria-prima" (OC 51 52). Em verda-
seguinte: "tanto o pro-duzir obras quanto o pro-duzir um utensílio acontece de, porém, a produção artística é caracterizada pelo fato de qiie ela se entrega
naquelepro-mover quedeixa o ente vir àtona em seu presentara partir de seu confiantemente ao que se cerra que se ergue no aberto" (OC 5, 5 1), e isso
aspecto"(OC 5, 47). SÓnãoestá claro o que significa aqui "aspecto". Se se lê uma vez mais só é possível porque o artista não está atado à instância do uso:
essetermo como tradução do C'L8oÇ platónico, então o artista estaria orienta- ele não produz nada que se possausar, e, por isso, pode se meter com o que
do pelo saber do uso que ele precisa representar para si, a fim de ter sucesso ele lida. Já pelo discurso heideggeriano acerca da "terra" como o "que se cer-
em sua produção. Nesse caso, porém, seuepTov seria então em verdade ]m] ra que se ergue no aberto", deve ter ficado claro que a verdade da obra de arte
utensílio. Em contrapartida, se se lê a palavra "aspecto" como um termo para
a aparência do ente tal como ele se mostra imediatamente, como tradução,
ÚSCf. RepúZ)//ca, 598b
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 365
364 Günter Flgal

nhuma sem o artista. Além disso, a representação da "terra" não é efetiva-


precisa ser pensada a partir da "terra". A "terra" é caracterizada pelos dois
mente nenhumaatividade do artista, mas toma possível pela primeira vez
momentos da abertura e da retração da abertura,pelo des-velamento, portan-
to. Em verdade, ainda não ficou claro como essesdois momentos têm ddser essaatividade. Se se diz com isso que o pâr-se-em-obra da verdade não pode
tomados exatamente em consideração à"tema". Todavia,já se pode compre- ser pensado sem o artista, não se faz a tentativa de conceber a obra de arte a
ender melhor do que até aqui a idéia de uma representaçãoe objetivação da partir da "subjetividade" do artista no âmbito de uma concepção.do gênio.
verdade. Se a "terra" não fosse com efeito representável, não se conseguiria Retém-se muito mais para si aberta a possibilidade de taml)ém interpretar a
verdade da obra de arte ainda de maneira diversa. Se essa verdade precisa ser
absolutamente compreendercomo pode haver em geral uma produção artís-
pensada a partir da "terra", também é preciso compree.feder a maneira como a
tica que seentrega confiantemente àquilo com que lida. Dito de outra manei-
arte é experimentada como uma experiência da "terra". Com a "terra" premi'
ra, mesmo a produção de uma obra de arte pressupõe um prometo;nenhum
sa estar indicado o que perfaz a impositividade peculiar da obra de arte. E se
prometocertamente, no qual é estabelecido pelo que as coisas devem ser pro'
isso é assim, o ponto de partida heideggeriano teria permitido escapar da al-
priamente tomadas, masum prometono qHa/é represa/7/adoco/no /erra o qiíe
ternativa tão difundida de uma orientação pela recepção ou pela produção
de outro modo se chama " matéria-prima" e " material" . A. produção artes\i-
elb seu conceito de arte.
ca diferencia-se da produção no sentido da TéXVRpelo fato de que nela é pro-
Heidegger toma o fato de a obra de arte abrir um campo dejogo do com-
priamente representado o que de outro modo permanece inexpresso ou só é
mento e de ser normativa para esse comportamento como o abrir-se de
considerado em meio a uma perturbação do processo da produção. Com a
um mundo. Em princípio, "mundo" ainda é aí compreendido como em ST, a
pressuposição de uma representação da "terra" por si só não se consegue se-
saber, conto abertura do ente na medida em que se pode ser nele. Em contra-
guramente conceber a produção de uma obra de arte. O artista precisa repre-
sentar, além disso, o "aspecto" disso que ele quer produzir. Essarepresenta- posição à interpretação do mundo no contexto de Sr, não podemos certa-
ção está submetida, contudo, à representaçãoda "terra". E indiferente se o mente perder de vista que se trata agora de uma impositividade para o com-
mento que não é a impositividade de imagens de mundo. Em meio à
artista se orienta pelo ente que se mostra imediatamente ou, como no casoda
tentativa de pensar essa impositividade a partir da "terra", pode-se apoiar em
arquitetura, por um CLa)Ç;suaobra nunca chega a se tornar obra de arte pelo
uma determ mação de Heidegger, de acordo com a qual a "terra" não está dis-
fato de ele retratar algo ou trazer algo a termo para o uso, mas somente pelo
ponível em nenhum comportamento e não é representável em nenhum prole
fato de ele apresentar algo na med/da em gire se entrega confiantemente ao
seu "material": na medida em que faz isso, a obra é "recolocada" na terra. E to compreendido como imagem de mundo: "A pedra carrega e anuncia seu
pelo caráter peculiar da terra que algo é uma obra de arte e não apenasuma peso. Todavia, enquanto o peso se abate sobre nós, ele se recusa ao mesmo
imagem ou um utensílio. tempo a toda intromissão. Se tentamlos fazê-lo, despedaçandoa rocha, ape-
sar disso esta nunca expõe, nos seus pedaços, uma parte interior e uma parte
Sese tenta compreender a produção da obra de arte dessemodo a partir
aberta. A pedra retraiu-se de novo, imediatamente, para a mesma indistinção
da perspectiva do artista, parece certamente que não tocamos na intenção
heideggeriana em um ponto essencial. Heidegger diz logo no começo de seu do pesar e do caráter maciço dos seuspedaços(. .) A cor reluz e quer apen:s
luzir Se a analisamos medindo-a racionalmente em termos de freqüência de
ensaio que é impossível tomar a essência da obra de arte em meio à orienta-
vibração, ela desaparece. SÓse mostra quando permanece não-descoberta e
ção pelo artista. Somente"segundo a representaçãohabitual", a obra emerge
inexplicada. Assim, a terra faz com que qualquer tentativade intromissão
a partir do artista e de sua atividade"; essesó é "aquele que é" por meio da
..ela se despedacecontra ela mesma.Leva a que qualquer importunidade
obra, pois só essaobra "deixa o artista vir à tona como um mestre da arte" calculadora se transforme numa destruição" (OC 5, 33). Logo
(OC 5, 1). Assim, artista e obra se encontram em uma "ligação recíproca por
que algo é medido e disponibilizado, deixa de ser "terra" e p.essa a ser m ata-
meio de um terceiro, que é o primeiro, por meio daquela em verdade desde
ria-prima" ou "material". "Terra" aparece apenas 'la obra de arte, "onde ela
onde o artista e a obra de arte têm seu nome, por meio da arte" (OC 5, 1). Mas
se a arte é o pâr-se-em-obra da verdade: o que é a arte só pode ser dito a partir
guarda e resguardada como o indescerrável que recua ante todo descerra-
mento,que semantémconstantemente
fechado"(OC5, 33) . . .
da orientação pela obra. Se nos lembramlos da dupla significação da deter-
Não obstante, compreender-se-ia mal a relação entre mundo e obra de
minação "pâr-se-em-obra da verdade", então fica claro que o pâr-se'em-
arte se se concebesse o comportamento no campo de jogo da obra de arte
obra, porquanto a verdade é "objeto", não pode ser pensado de maneira ne-
]
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 367
366 Günterfinal

trutura não possa ser tematizada em meio a lmaa descrição de experiências


como um comportamento sz[/gene//s. A visão de un] quadro ou de ]m] prél'
semser facilmente mal compreendida. Mas, para compreender efetivamente
dio, a escuta de umamúsica ou de lml poemanão está, por Him, livre da tenta-
alguma coisa aqui, é preciso tentar se orientar por tais experiências. Se se se-
tiva de interpretar e esclarecer o experimentado. Se a experiência das,obras
gue uma tal orientação, então sc poderá tomar o "mundo que irrompe" como
de arte consistisse apenas em guardar e resguardar o essencialmente'indes-
campo dejogo do comportamento, tal como essecomportamento é experi-
cerrável, ela não seria mais nem mesmo contemplativa, mas a obra se degra-
mentado logo que nos metemos com uma obra de arte. Em uma tal experiên-
dada logo e se transformaria em um "estimulador de vivências"(OC 5, 55);
cia "sobrevém o descomunal e é derrubado aquilo que há muito parecia pro-
o que, porém, ela essencialmente não é. Sim, ainda mais: o que Heidegger
tetor" (OC 5, 54), pois ante a obra de arte fracassam inicialmente todas as
denomina terra não poderia em geral ser experimentado como o "essencial- maneiras correntes do descobrir e os critérios dessasmaneiras mesmas. Nem
mente indescerrável" se não se buscasse, em meio ao comportamento em re-
a obra se deixa determinar e calcular sem mais, de modo que se pudessedar
lação a obras de arte, interpreta-las e explica-las, ou, com u-m palavra: desco-
informações sobre ela, nem se pode lidar com ela motivadamente por meio
bri-las. Se se compreende "mundo" como o contexto do comportamento
de um valor qualquer. Não se sabe como se deve comportar e pelo que se
descobridor, então na obra de arte a "terra" fornecejustamentc a medida para deve orientar. Vista assim, a experiência da arte é uma aporia, e essa aparta
o comportamento descobridor em seu contexto. E ela fornece uma tal medi-
também é caracterizada pela inacessibilidade de comportamento e orienta-
da por meio do fato de tomar possível a experiência de um///n//e do compor-
ção: a necessidade,velada antes da experiência da obra de arte, de medida e
tamento, de um limite do mundo. Somente se se tiver clareza quanto a isso
de estar decidido vem à luz. O caráter aporético da experiência artística mes-
pode-se também compreender o que leva Heidegger a falar, em vista da obra
ma tem sua origem no que Heidegger denomina "terra". A "lei" da terra é o
de arte, de uma contendaentre mundo e terra. Em uma passagemcentral,
fechamento no sentido do impassível de descoberta, tal como ele é "partici-
mas obscura e carente de interpretação de seu ensaio, Heidegger tenta dizer
pado" na obra de arte.óóDiz-se dessalei que ela se acha em contendacom o
como quer compreender a contenda: "0 mundo que irrompe traz à luz aquilo
que, pensado a partir do mundo, como imagem de mundo, pode ser chamado
que ainda não está decidido e o que é desprovido de medida. Desse modo,
de medida. Visto assim, "o estar-em-antagonismo" de mundo e terra é o es-
torna originariamente presentea necessidadevelada de medida e de es-
tar-em-antagonismo de lei e medida. Se Heidegger afimla então que a "fen-
tar-decidido. Entretanto, no que um mundo se abre, a terra vem a erguer-se. da", a contenda caracterizadora da obra de arte entre medida e lei, abarca e
Mostra-se como aquilo que porta todas ascoisas, como o que, em sua lei, está
mantém em conjunto na sua separação, a partir de seu fundo único, na prove-
coberto e que constantemente se cerra. O mundo requer a sua decisão e a sua niência da sua unidade, os antagonistas, então está aludida com isso uma ca-
medida e permite ao ente chegar ao aberto das suas vias. Portando e soer-
racterística do des-velamento que Heidegger discutiu em sua conferência
guendo-se,a terra aspira a manter-se cerrada e confiar tudo à sua lei. O com- Z)a esiênc/a da verdade. A "verdade" é introduzida aqui inicialmente en]
bate não é uma fenda à maneira do fender-se rasgando um mero precipício, sintonia com o conceito tradicional de "verdade" como adaeqzra//o/n/e//ec-
mas antes a intimidade do compertencer-se dos combatentes. Essa fenda
fz/sGare/27e é mostrado que um guiar-se do enunciado pelo que aparece só é
abarca e mantém em conjunto na sua separação, a partir de seu fundamento
possível se se pensao enunciar como comportamento, como descobrir, por-
único, na proveniência da sua unidade, os antagonistas.E lml traçado funda-
tanto, e o guiar-se pelo que aparece funda-se na "constância aberta" (OC 9,
mental. E a abertura de roços que delineia os traços fundamentais do irrom-
185) do comportamento. No entanto, essa constância aberta repousa, por seu
per da clareira do ente. Essafenda não permite que os antagonistas rompanl
lado, na liberdade como o deixar-ser o ente. Nesse deixar4er, o ente tem,
lml com o outro, traz o que é antagónico a medida e limite a um contorno úni-
como foi mostrado na interpretação do capítulo relativo ao "mundo" em S7,
co"(OC 5, 50). Essapassagem é obscura não apenas porque Heidegger utili-
o caráterde possibilidade.A "aberturado entena totalidade"(OC 9, 193)
za, como tão frequentemente se dá, lmla gama de termos, sem explicita-los
nunca se deixa tomar como tal, mas permanece "o indeterminado, o indeter-
expressamente;ela também é obscuraporque "mundo" e "terra" são aqui ob-
minável"(OC9, 193). Onde quer que se tenha uma conformidade com o ente
jetivados e se mostram como sujeitos de proposições que, de uma maneira
junto a um comportamento e onde quer que o ente seja apenas possível no
não dissolvível sem mais, são metafóricas. Não há dúvida de que o que im-
porta a Heidegger é caracterizar uma estrutura que deve possibilitar pela pri-
meira vez determinadas experiências. lssojustamente faz com que essaes- úõCf.0C 4, p. 167
Martin Heidegger: Fenomenologia da Liberdade 369
368 Günterfiga

sentido de um passível de descoberta, aí sua abertura permanece em geral que ela mesma tomou originariamente patente, tanto mais simplesmente nos
insere nessaabertura e, dessemodo, nos faz sair, ao mesmo tempo, daquilo
sem ser experimentada. Isso vale também para a experiência da angústia, tal
como ela foi discutida no contexto deSTI na análise da angústia em Sré sim- que é habitual. Seguir essa remoção significa: modificar as conexões habi-
tuais com o mundo e com a terra e, desde então,reter em si as relaçõesusuais
plesmente mostrado como é experimentada a abertura do ente na totaliflãde
com o fazer e o apreciar, com o conhecer e o olhar, para permanecer na ver-
nos esquemastemporais. Já foi dito, porém, que as imagens de mundo a se-
dade que acontece na obra. Ê só a contenção dessepermanecer que permite
rem compreendidas como medidas não estão submetidas à diferença da li-
ao que foi criado ser a obra que é" (OC 5, 54).
berdade, e, por isso, tampouco estão submetidas aos esquemastemporais
O ponto decisivo da concepção heideggeriana da arte consiste, portanto,
Elas não podem ser negadascomo o comportamento mesmo. O "correto", o
no fato de a abertura da liberdade se transfomlar em medida para o compor-
normativo" no sentido de uma imagem de mundo, é uma objetivação abs-
tamento.No campo dejogo da obra de arte, "carreto" é o "permanecer retraí-
[rativa do que inicialmente pertence ao contexto do ser-no-mundo pré-
do". Assim, porque a obra dá uma fa/ medida carreta, ela pode ser compreen'
ontológico. "Esquecendo desseente na totalidade", o homem retira, como
dida como altemativa para a imagem de mundo. Uma vez que a normativida-
Heidegger diz em Da esse/zc/ada verdade, as medidas "de seus intuitos e
de das obras de arte sempre subsiste apenas conjuntamente com a sua expe-
planos"(OC 9, 195), e, como se poderia acrescentar, do ente que vem ao en-
contro no interior do mundo. Seisso é assim, então estáclaro que as medidas, riência e que tampouco podemos nos imiscuir nas obras de arte, essanorma-
tividade nunca está asseguradade uma vez por todas; o mundo inaugurado
no sentido das imagensde mundo, possuemseu fundamento?por flm, na
pelas obras também pode ser assim subtraído. A idéia de uma normatividade
abertura a ser pensadacomo liberdade do ente na totalidade. E exatamente
da arte não está, certamente, imune a incompreensões. E ao menos o que pa-
isso que se tem em vista quando, no ensaio sobre "a obra de arte", Heidegger
rece quando se pensa o "permanecer retraído" como o comportamento car-
fala acerca do "fundamento único" que ele é a proveniência de medida e lei
reto e toda atividade no sentido de um "fazer e avaliar" como incorreta. Uma
em sua unidade. Essefundo único é, na linguagem da conferência Da essa/7-
tal compreensão não siga ificaria uma vez mais apenas que a arte mesma per-
c/a da verdade, a abertura do ente na totalidade. Essa abertura permanece
tenceriaao âmbito das imagens de mundo e das visões demundo, mas que te-
sem ser experimentada como tal em todo comportamento e no interior dos
ria pura e simplesmente conseqüências absurdas para o cotidiano. De manei-
esquemastemporais em geral. O único fundamento experimentado é, cona
ra diversa da que é própria ao contexto da decisão, não se trataria mais aqui
isso, o fundamento que em sua completa indeterminação é um abismo.'
somente de negar o comportamento para que ele pudesse ser transparente
Essefundamento é experimentadojunto à "tema" da obra de arte, porquanto
como resposta ao ser iminente em sua indeterminação e para que, com isso,
a "terra" é o que se cerra. No entanto, porque esse cerrar-se só é experimenta-
do no "estar-em-antagonismo" com o descobrir, a "fenda" da obra de arte é um começo do comportamento em geral fosse possível, mas sim de "prosse-
uma "abertura de roças" quedeixa a abertura vir a se revelarjuntamente com guir" secomportando de uma maneira determinada, diversa de outras manei-
ras de comportamento. Se se aceita a idéia do caráter normativo da arte, en-
a aporia do descobrir, na qual o descobrir sempre é apenaspossível. Porque
tão se estátambém obrigado, ao que parece, a defender o ideal questionável,
no "aberto do mundo da obra" (OC 5, 32) a terra, como diz Heidegger, "vem
à tona" (OC 5, 32), a experiência da arte é a experiência da abertura mais porque genericamente irrealizável, de uma v//a conremp/ar/va estética. Mas
o caráter normativo da arte em Heidegger não é pensado assim. Um tal escla-
abismal, porque por fim mais indeterminável,junto ao que não é passível de
descoberta,mas que só é, contudo, experimentado com a tentativa do desco- recimento certamente provém de uma visada curta e deHlnitiva, estabelecida
brir. Decisivo é, porém, o fato de que através daí "medida e limite" são trazi- em função da relação entre arte e técnica. J
As discussõesheideggerianas da técnica não têm o caráter de uma críti-
dos "para o contorno único", isto é: o /f/zzífefo//?a-sena obra de arfa /llesma
ca à cultura e não querem, com maior razão, propagar o ideal de um modo de
a /17edfda.Porque a obra deixa "a terra ser uma terra" (OC5, 32), a obra de
vida e de pensamento não-técnico e não-científico. O "desencobrir explora-
arte é normativa para o descobrir, uma vez que cunha uma medida limitadora
dor" caracterizado por "canal ização e asseguramento" é em verdade um "pe-
para o descobrir e torna experimentável como todo descobrir pertence a um
deixar-ser: quanto mais puramente"a obra está enlevada na abertura do ente rigo" porque ele transfigura o "brilhar e o viger da verdade" (EC, 3 1). A téc-
nica transfigura assim a arte, na qual a verdade posta em obra "aparece
como o belo (OC 5, 43). Por outro lado, porém, a arte também não pode ser
ú7Cf. quanto a isso EIF, particularmente a p. 184
370 Günter Figas
T
experimentada como algo técnico; e onde há obras de arte, a experiência dai
arte também é sempre possível. Uma vez que a arte possui um parentesco csJ
sencial com a técnica em viMlde do fato de ela também ser um produza, é
possível aprender com a arte algo sobre a lida com a técnica: "Porque'ã es- ÍNDICE DOS ESCRITOSCITADOS
sência da técnica não é nada técnico, a meditação essencial em vista da técni-
ca e a discussão decisiva com ela precisa acontecer em um âmbito que, por
um lado, é aparentado com a essênciada técnica e, por outro lado, é porém
fundamentalmente diverso dele. Um tal âmbito é a arte" (EC, 39). No que
concerne à técnica, o seu estreito parentesco com a arte consiste em que nela Modo de citação
tanto quanto na arte o material é expressamente representado, e, em verdade,
Sempre que possível, os escritos de Heidegger são citados segundo a
como fonte de matéria-prima e como gerador de energia. Porque isso é as-
Obra co/np/e/a (OC). Isso também é válido para Ser e /e//zpo. Todavia,
sim. é imediatamente elucidativo o caráter corretivo em relação a ela de uma
para que as passagens possam ser encontradas mais facilmente, indica-
produção que libera o material para a "terra". No entanto, o decisivo é que
tanto a arte quanto a técnica são, em sua essência, um pensar representativo e mos, nesse caso, os números das páginas da edição original. Os espaça-
normativo. Uma vez que se pode experimentarjunto à arte a aóerfura /z?es- mentos foram eliminados sempre que se mostraram inadequados ou
/vlacomo critério, ela não requer lml comportamento específico e diferente confusos no contexto das citações. Como é usual, Aristóteles é citado
de outros, mas deixa vir à luz uma medida vinculadora para todo comporta- segundo a paginação da edição Bekker, e Platão, segundo a paginação
mento. Sem que eles precisassem se tornar artísticos em sentido restrito, to- da edição Stephanus. Quando denominamos edições particulares dos
dos os modos de comportamento podem ser orientados em vista desse crité- escritos aristotélicas na bibliografia, o texto dessas edições também
rio e, assim, ser caracterizados por meio de uma "serenidade" que não é ne- serviu de base para a citação. No que diz respeito a passagens dos escri-
nhuma contemplação, mas "inserção" na abertura em geral: como sereno, o tos de Kant, designamos o número das páginas da edição original.
comportamento está atado à sua irresgatável abertura como medida, e, en-
quanto se experimenta isso, pode-se deixar subsistir o pensar técnico sem
precisar afirma-lo em sua correção. Essa correção perde sua violência por Escritos de Heidegger
meio da experiência da arte, uma vez que agora a medida do factível e calcu- ST: Ser e /enzpo (Obra co//zp/e/a 1, seção, v. 2), Org. F.-W. von Herr'
lável estásubmetida à correção do aberto. Arte é a condição para a experiên- mann, Frankfurtjunto ao Main.
cia de abertura em geral no âmbito de pensamento representativo, de modo
OC 4. Erlàulerung zu Hõlderlitts Dichtullg (Con\entârio à Does\ade
que nela, de maneira análoga à idéia do diálogo platónico /'í/eóo, se refugia a
abertura (lfn geral no irromper do belo (F//ebo, 64e). O irromper do belo não Hõlderlin), Org. F.-W. von Herrmann,Frankfurt junto ao Main,
1981
é nenhuma aparência que esconde em si algo aparente, mas o mostrar-se da
abertura em geral caracterizada por meio do cerramento de lmla maneira a OC 5: Ca/?zin/zosda ./cores/a, Org. F.-W. von Herrmann, Frankfurt
cada vez diversa. Por isso, a arte também torna originariamente patentespos- junto ao Main, 1977. J
sibilidades de falar sobre essaabertura, possibilidades que não residem sem OC 9: Meg//za/'#en(Marcas do caminho), Org. F.-W. von Herrmann,
mais no pensar filosófico. Heidegger buscou isso em muitos de seustextos Frankfürtjunto ao Main, 1976.
tardios e, para nomear apenasum argumento a favor disso, também se pode
falar dos "deuses" em sintonia com as obras de arte, sem confundir pensa- OC 13: ..4z/sde/" .E/=Áa/zrz//7g
des ].)e/7ke/zs(A partir da experiência do
mento e religião. Todavia, ainda se deve ressaltaraqui que mesmo essestex- pensamento),
Org. H. Heidegger,Frankfurtjunto ao Main, 1983.
tos pertencem ao contexto de uma fenomenologia da liberdade, se se man- OC'2q-. Protegotttena zur Geschichte des Zeitbegriffs ÇVto\egê)menos
têm apartados os diversos planos do discurso e se se leva em conta seu valor à história do conceito de tempo), Org. Peter Jaeger, Frankfurtjunto ao
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384 Günter Fig
com a concepçãocentral do homem
como ser-aí e como ser-no-mundo.
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o/ogfe e/ vérf/é. Louvam; Paris, vamos tendo também a oportunidade
de acompanhar de forma minuciosa em
que medidaa concepçãoheideggeriana
WAISMANN, F. ;rí//gins/efn u/zd der Wfener .K>eis.Org. B. F.
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relação às duas concepçõesde liberdade
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l
ocidental: as concepçõesde Aristóteles
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sop/zie23).Gõttingen, 1984.P.23-45.'' ' ' ' "'
uma mera análise dos conceitos centrais
de Ser e tempo. Para usar uma expressão
de Platão. o livro se insere abertamente
na "luta de gigantes em torno da
PZat0}2 und die Fon7ten des Wissens. Gi5ttingen, \ 982. entidade". e nos viabiliza, com isso.
uma real experiência da vida do
WLLIAMS, B. Z)esgar/e.ç.Zbe Pri2/ec/ ofPz/re .Engzl;ry. Hassocks, conhecimento.

WTTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. In: Sc#r á7e/z Gt)NTEnFinALé professorno seminário


de filosofia da Universidade de Freiburg
' Philosophische Untersuchungen. In: ScÃreá/en /. Frank- e ocupa hoje a cátedra de Martin
Heideggernesseseminário.
Especialistanas obrasde Platão.
Martin Heidegger,Friedrich Nietzsche
e Hans-Georg Gadamer.dentre outros.
ele é autor de O monstro e o amor
(Sete ensaios platónicos), Contribuições
à hermenêutica. Nietzsche: uma
introdução filosófica. Para uma fila!.ofia
da liberdade e da con terna (política
estética - metafísica), Sócrates.
Martin Heídegger: para uma introdução,
enredamento vital e distanciamento
('comportamento em relação a si
a partir de Heidegger.Kierkegaarde Hegel).
além de um grande número de artigos
VOZES IMPRIMIU
em revistas e coletâneas internacionais.

MARCOANTÕNIOCASANOVA

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