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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Abril de 2015
Vânia Lúcia Kampff
Ficha Catalográfica
148 f. ; 30 cm
CDD: 100
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312399/CA
À Therezinha,
por ter me ensinado a sonhar.
Com a palavra Gedanc, oriunda do alemão arcaico, Heidegger nos fala tanto da
memória quanto da gratidão. É, pois, tomada pelo espírito da letra que expresso o
coração pleno de gratidão e faço memória a todos aqueles que fizeram parte desta
trajetória:
ao professor e orientador Edgar Lyra, pela presença e cuidado constantes em
todos os momentos da caminhada;
ao professor Eduardo Jardim, por conjugar sabedoria com generosidade e, ao
acolher meu desejo em seguir na Filosofia, apontar o caminho;
aos professores Luiz Camillo Osorio, Luisa Severo Buarque de Holanda, Maria
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Palavras-chave
University of Freiburg, in the years of 1951 and 1952. The first course concerns
the issue of representational thinking and delimits the end of metaphysics in
presenting the absolutism of the will of power and the temporality, present
respectively in Friedrich Nietzsche’s Thus Spoke Zarathustra and The Eternal
Recurrence of the Same. The second course, to which this research focuses with
more emphasis, concerns Parmenides and the dawn of the Western thought.
Heidegger envisions in the moment prior to the advent of metaphysics signs of the
“other thinking”, and through the analysis of the fragment VI of Parmenides’
poem On Nature, the philosopher leads us to the primordial character of what was
then considered thinking.
Keywords
1. Introdução 11
1.1. “... talvez se possa aprender a pensar...” 13
1.2. Um filho do tempo 18
1.2.1. Um instante no tempo 20
1.2.2. O fio da meada 24
1.3. O dar-curso-ao-aprender 26
1.4. A caminho de Que chamamos pensar? 28
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3. O outro pensar 93
3.1. Na aurora grega do pensamento 94
3.2 Da traductio 100
3.3. O impensado de Parmênides 103
3.3.1. A !"#$%&' 103
3.3.2. O fragmento VI 105
3.3.2.1. O ()ὴ 107
3.3.2.2. O "*+%&, e o ,-%ῖ, 112
3.3.2.3. O ἐὸ, ἔµµ%,'& 119
3.3.3. O .ὸ 'ὐ.ὸ e a determinação do pensar 130
T.S.Elliot
1. Introdução
Antonio Machado1
Caminhos, não obras (Wege, nicht Werke) – é o título com que Martin
Heidegger, ao organizar a publicação de suas obras completas (Gesamtausgabe)2,
define sua trajetória. Entendemos, com isso, que o filósofo quer preparar um
caminho de Filosofia que passa por um movimento que envolve o abandono da
resposta, um salto que nos coloca numa espécie de perspectiva suspensiva e
rompe com a nossa relação imediata com as coisas do mundo. Nos referimos a
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1
Antonio Machado, “Proverbios y Cantares XXIX”, in: Campos de Castilla: Poesias completas,
Disponível [online]: http://www.rinconcastellano.com/biblio/sigloxx_98/amachado_prov.html
Acesso em 7/1/2015.
2
Gesamtausgabe é o título dado à publicação das obras completas de Martin Heidegger, iniciada
em 1974 por supervisão de Hermann Heidegger e originalmente publicadas pelo editorial Vittorio
Klostermann de Frankfurt am Main, Alemanha. Para este termo em alemão usaremos as iniciais
GA entre parênteses, acrescentadas ao número da ordem em que se encontra a publicação citada.
12
a uma visão clara do que trata o escrito e do percurso nele envolvido. Nesse
sentido, nossos passos se movem inicialmente buscando levantar o contexto, a
época e a importância do texto no pensamento de Heidegger; em seguida,
trataremos da apresentação do livro e da forma como os cursos foram ministrados;
passaremos pelo o confronto do pensar de Heidegger com a absolutização da
vontade de poder de Nietzsche, o que significará para o filósofo o ponto
culminante, a última ideia da metafísica ocidental, sendo Nietzsche seu último
pensador; e, finalmente, caminharemos por uma das veredas do texto, buscando
explorá-la mais amiúde de modo a nos aprofundarmos numa das muitas
possibilidades por ele oferecidas: a que concerne a Parmênides e aos primórdios
do pensamento ocidental.
tal forma que, por mais de uma vez, confessara ao filho Hermann: “algo pensa
dentro de mim. Não posso defender-me disso.”9 É esse o pensar que pretendemos
encontrar, não o pensar rebuscado da coisa erudita, mas, o da coisa pensada; não o
pensar que se objetiva na esfera do cálculo, da finalidade, mas, aquele que,
segundo o próprio Heidegger, “[...] não chega a um resultado; não produz
efeito”10, todavia tece caminhos para a própria questão do pensar.
6
Hans-Georg Gadamer, Heidegger’s ways, Albany, NY: State University of New York Press,
1994, p.17.
7
Michel Foucault apud Lee Braver, Heidegger’s later writing – A reader’s guide, New York, NY:
Continuum International Publishing Group, 2009, p.127.Tradução nossa.
8
Jacques Derrida apud Lee Braver, ibidem, p.127. Tradução nossa.
9
Rüdiguer Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, São Paulo:
Geração Editorial, 2005, p.372.
10
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os Pensadores - Conferências e Escritos
Filosóficos; (tr.) Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.370.
11
Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, São Paulo: Companhia das Letras,1987, p.221.
“Martin Heidegger faz 80 anos” foi escrito em 26 de setembro de 1969. Este manuscrito serviu
como base para um discurso de Hannah Arendt no dia 25 de setembro de 1969, em Nova York,
transmitido no “estúdio noturno” da estação de rádio da Baviera. A versão escrita foi publicada
inicialmente na revista Merkur (caderno10, 1969) e, posteriormente, na edição brasileira de
Homens em tempos sombrios, em que exclui-se o capítulo sobre Waldemar Gurian e incluiu-se a
15
Safranski nos conta que todo esse rumor gerou a imagem do rei secreto,
uma reputação que tomou vulto muito antes da publicação de Ser e Tempo (GA2),
em 1927. Desde o início da década de 1920, em Marburg, Heidegger já era
considerado secretamente o rei da filosofia na Alemanha. Todavia, esse rei não se
movia no mundo das aparências, seu trajar era simples como o de um zelador ou
um técnico, seu reino é o do pensamento; um reino totalmente oculto ao mundo,
mas que, ao mesmo tempo, se estende sobre o pensar de tantos outros e determina
tão marcadamente a fisionomia espiritual do séc. XX. Arendt mesmo indaga:
“Pois como se poderia explicar de outra forma a influência única, muitas vezes
importante homenagem a Martin Heidegger. A versão que Hannah Arendt transmitiu no rádio e
enviou a Heidegger por carta por ocasião de seu aniversário diverge de forma insignificante da
versão publicada. (cf. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger:
Correspondência 1925/1975, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 p.259.)
12
Grifo da autora.
13
Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, 1987, p.223.
16
14
Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, 1987, p.223.
15
Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.140. Maiúscula da autora.
17
resposta ou uma norma para a vida prática”, diz Eduardo Jardim no prefácio à
edição brasileira de A vida do espírito. A mesma citação encontramos na palavras
de Rüdiger Safranski: “Heidegger está convencido de que seu pensar é desse tipo.
Ele não conduz a um saber como as ciências, não traz nenhuma sabedoria útil de
vida, não resolve enigmas do mundo, não confere diretamente forças para agir,”18
mas se move em uma transitividade direta, o que significa dizer que Heidegger
pensa algo e não sobre algo.19 Nos arriscaríamos mesmo a falar de um pensar
intransitivo, na medida em que nos referimos a um pensar que se move em sua
16
O livro A vida do espírito foi publicado em 1978, entretanto, o capítulo sobre “O Pensar” foi
apresentado de forma abreviada nas Gifford Lectures, na Universidade de Aberdeen na Escócia,
em 1973. (Cf. Mary McCarthy, “Nota da Editora”, in: Hannah Arendt, A vida do espírito, Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2000, p.xix.) Sabemos que a reflexão sobre o pensar proposta por
Arendt neste escrito tem como motivação inicial a investigação da relação entre o mal e a ausência
de pensamento – relacionados aos crimes de Eichmann – mas, há também o interesse em fazer
uma análise do estatuto do pensamento, atividade entendida pela tradição como pura
contemplação. Eduardo Jardim nos coloca: “em desacordo com essa posição, Hannah Arendt
entendeu que pensar é uma atividade. Porém, essa atividade não se confunde com nenhuma outra.
Por essa razão, um dos propósitos de A vida do espírito foi examinar o caráter singular da
atividade do pensar.” (cf. Eduardo Jardim, Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo
início, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.116.)
17
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?, (tr.) [em elaboração] Edgar Lyra, a partir de Was
hei!t Denken?, Tübingen: Max Niemeyer, 1954. p.134 e Hannah Arendt, A vida do espírito, 2000,
“Introdução”, [numeração não demarcada].
18
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p. 413.
19
Cf. Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.133.
18
própria questão, que está sempre a caminho do próprio pensar – um pensar que
pensa.
discutir-se uma espécie de aposentadoria com direito a ensinar, havia uma grande
resistência na universidade de Freiburg quanto ao seu retorno ao mundo
acadêmico. Houve até mesmo a ameaça de confiscarem sua biblioteca particular
para suprir a biblioteca da Universidade de Münster. Além disso, seus filhos Jörg
e Hermann encontravam-se prisioneiros de guerra do regime Soviético, servindo
de mão de obra na reconstrução do país de Stalin. O espírito alemão, que vivera
há pouco a esperança de uma hegemonia, encontrava-se apático, sem vida.
20
Grifo do autor, ao citar a forma como Robert Heiss, colega de faculdade de Heidegger, se refere
ao filósofo em carta a Jaspers.
19
Em verdade, essa carta deve muito de seu conteúdo a Sartre que declarara
seu pensamento completamente destituído de qualquer amparo metafísico, sendo
o seu existencialismo um novo humanismo, o que levou Heidegger a refletir se no
humanismo e existencialismo sartreanos haveria mesmo um desamparo
metafísico. Na carta, Heidegger se refere a algo da ordem de uma ética original
que dispensa qualquer fundamento normativo, mas é capaz de direcionar o
homem a um novo modo de viver. Um pensar que lança um outro olhar sobre o
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mundo – um pensar que deixa o ser, ser – e, neste sentido, é esteio para todo o
comportamento. Para Safranski, apesar de Heidegger não se considerar um
orientador político, mas apenas um pensador, a carta “Sobre o humanismo” serve
“[...] como tentativa de recapitular seu próprio pensar e determinar o seu lugar
atual, como abertura de um horizonte onde se visualizam certos problemas da vida
em nossa civilização.”22
21
Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, (tr.)
Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.9.
22
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, pp.425-426.
20
23
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.456.
24
Heinrich Petzet, Encounters and dialogues with Martin Heidegger 1929-1976. Chicago: The
University of Chicago Press, 1993, p.63. Grifo do autor. Tradução nossa.
25
Cf. François Fédier, Anatomia de um escândalo, Petrópolis: Vozes, 1989, p.164.
21
maneira como as coisas aparecem. Esse entendimento nos aponta para o germe da
questão sobre o “mais problemático do nosso problemático tempo”28, temática
enfaticamente trabalhada por Heidegger nas primeiras preleções de Que
chamamos pensar?.
Todavia, nem todos vão entender a fala de Heidegger como uma crítica ao
Nazismo. De acordo com Julian Young, todo o criticismo à filosofia do pós-
guerra de Heidegger pode ser associado ao silêncio em relação ao seu
envolvimento com o Partido Nacional-Socialista. Para o autor, o silêncio de
Heidegger não é um silêncio significativo, daquele que por vezes diz mais do que
as próprias palavras podem dizer. Mas, nas palavras de Jean-François Lyotard:
“Um silêncio mudo que não deixa nada ser ouvido. Um silêncio de chumbo.”29
Para Young, esse silêncio poderia ser facilmente identificado como teimosia,
orgulho e, até mesmo, “uma ‘psicologia nacionalista’ de um homem que recusa a
26
Martin Heidegger apud Timothy Clark, Martin Heidegger, Nova York, NY: Routledge, 2002,
p.124.Tradução nossa.
27
O autor sugere o improviso baseado no fato de que, mais tarde, quando o texto reapareceu a
frase havia sido cortada.
28
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.6. Grifo do autor.
29
Jean-François Lyotard, Heidegger and "the jews”, Minneapolis: University of Minnesota Press,
1990, p.52. Tradução nossa.
22
renovasse por meio de uma reflexão própria e assim conquistasse uma posição
firme diante do perigo da politização da ciência [...]”.31 Safranski acrescenta que,
naquele tempo, Heidegger acreditava que na discussão com o nacional socialismo
haveria espaço para uma renovação, para novos rumos. Todavia, segundo Fédier,
a partir do momento em que Heidegger percebeu que o caminho do regime de
Hitler seguia em direção oposta ao seu pensar, o trabalho do filósofo teria buscado
enraizar ainda mais o nexo entre a história e a filosofia, de modo a criticar as
ideologias do regime. É o próprio Heidegger que, se referindo ao período
posterior à sua renúncia, corrobora esse pensamento. Diz o filósofo:
após a renúncia, limitei-me às minhas tarefas de ensino. No
semestre de verão de 1934, lecionei “Lógica”, no semestre
seguinte 1934/35 dei as primeiras preleções sobre Hölderlin. Em
1936 começaram as preleções sobre Nietzsche. Todos que
souberam escutar, ouviram que se tratava de uma tomada de
posição frente ao nazismo.32
30
Julian Young, Heidegger, Philosophy, Nazism, Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1997, p.173. Tradução nossa. O autor se refere a Carl Schmitt, que justifica seu próprio silêncio
como o de alguém que se comportou honradamente e não se retrataria diante daqueles inclinados a
apenas o destruírem.
31
Martin Heidegger, “Heidegger e a política. O caso de 1933”, in: Revista Tempo Brasileiro,
N°50, julho-setembro, 1977, p.71.
32
Ibidem, p.76.
23
Mas, qual seria a relação entre o que foi exposto e o que ora buscamos
retratar? Segundo George Pattison, o escrito Que chamamos pensar? oferece não
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33
Walter Biemel apud François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.161.
34
Ibidem, p.161.
35
Ibidem, p.164. Grifos do autor.
36
A primeira edição de “Sobre a essência da verdade” foi impressa em 1943 e encerra o texto de
uma conferência pública que foi proferida diversas vezes com o mesmo título desde 1930. (cf.
24
Heidegger compreender que ele foi longe demais e assumiu riscos acima do
“razoável”.37
Ernildo Stein, Nota do Tradutor, in: Martin Heidegger, Os Pensadores – Conferências e escritos
filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.149.)
37
Grifo do autor.
38
Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.139.
39
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.489.
25
De fato, a sedução pelo poder é uma questão que se põe se pensamos nos
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De acordo com Fédier, essa ressonância é de fato complexa, mas não tão
dissonante a ponto de falar-se em uma incongruência, o que nos faz assentir para a
possibilidade de alguma relação entre ambas. Safranski nos conta que a vida e a
obra estão tão imbricadas que mesmo rejeitando tal ligação, Heidegger desejava
“viver para a filosofia e talvez até desaparecer na própria filosofia.”41 Como
entender, então, essa primazia da obra? Para Fédier,
40
Hannah Arendt, A vida do espírito, 2000, p.316.
41
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.27.
26
Sobre isso, o próprio Heidegger nos adverte: “Não é acaso sobretudo a obra que
torna possível uma interpretação da biografia?”43
É, pois, com esse pano de fundo que vamos encontrar Heidegger no ano de
1951, quando finalmente lhe será concedido o direito de retornar às salas de aula
da Universidade de Freiburg. Nos encaminhemos agora, mesmo que brevemente,
para algo que julgamos digno de nota nesse retorno à universidade – o ofício de
ensinar.
1.3. O dar-curso-ao-aprender
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42
François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.34.
43
Martin Heidegger apud François Fédier, ibidem, p.33.
44
J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What is called thinking?, New York, NY:
Harper & Row, 1968, p.xvii. Tradução nossa.
27
Para Biemel, foi graças à habilidade pedagógica de Heidegger que ele aprendeu o
significado de “entrar na mente de um filósofo” ou “filosofar-com”, um modo de
caminhar no texto filosófico no sentido de entendê-lo em sua plenitude e
abrangência.48
45
Hugo Ott, Martin Heidegger - A caminho de sua biografia, Lisboa: Instituto Piaget, 1992,
p.341. Entendemos que a frase final de Ott seja a própria pergunta que nomeia o curso Was hei!t
Denken?, aqui traduzido por Que chamamos pensar?.
46
Paul Edwards, Heidegger’s confusions, Amherst, NY: Prometheus Books, 2004, p.13. Grifos do
autor. Tradução nossa.
47
Walter Biemel, Martin Heidegger: An illustrated study, New York, NY: Harcourt Brace
Jovanovich, 1976, p.7. Tradução nossa.
48
Cf. Walter Biemel, “Le professeur, le penseur, l’ami”, in: Michel Haar (ed.), Cahier de L’Herne
no. 45: Heidegger, Paris: Editions de L’Herne, 1983, p.128. Grifos do autor.
28
que aprender”49, porque o autêntico professor não ensina nada que não seja o
próprio aprender; ideia que faz ressonância com o relato de Biemel na questão da
autonomia que Heidegger buscava de seus alunos.
49
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.16.
50
Ibidem, p.16.
51
Grifo nosso.
52
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.346.
29
53
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.356. Em
acréscimo à compreensão de Safranski, encontramos em Sluga que: “o Nietzsche de Heidegger
seria um político “anti-política” e as lições políticas a serem derivadas dele deveriam ser, por sua
vez, anti-políticas por natureza. Onde Baeumler e Jaspers tinham usado Nietzsche para falar a
favor ou contra o nacional-socialismo, Heidegger buscou separar o nacional-socialismo realmente
existente da nova e idealizada alternativa de Hitler. Através do exame de Nietzsche, o filósofo não
só tentou atacar o sistema vigente, comprometido apenas com uma vontade de poder vazia e com a
conseqüente corrida em direção à maquinações tecnológicas, mas também, com a ajuda de
Nietzsche, procurou ao mesmo tempo proclamar a mais pura identidade nacional e social alemã.”
Tradução nossa. (cf. Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A
companion to Heidegger, 2005, p.113. Tradução nossa.)
54
Heidegger, no “Prefácio” escrito em 1961 à edição de Nietzsche I, declara: “esta publicação
pode propiciar ao mesmo tempo um olhar sobre o caminho de pensamento que percorri desde
1930 até a Carta sobre o humanismo [...]”, em 1946. (cf. Martin Heidegger, in: Nietzsche I. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.4.)
30
que a questão do ser é um mero “vapor e erro” para o homem moderno, estava de
alguma forma ligada ao tema da identidade alemã, e Heidegger entende que
Hölderlin é o único que pode ajudar nesse ponto.
O filósofo continua,
tal desenvolvimento exige o reconhecimento de que Nietzsche
diagnosticou corretamente a questão do ser como um mero vapor
e erro para o homem moderno. [...] O julgamento de Nietzsche, é
claro, entende-se em um sentido puramente desdenhoso [...].
Nós, por outro lado, devemos recuperar essa questão contra toda
a tradição metafísica.57
Para Sluga, Heidegger estava convencido de que só dessa forma poderia ser salva
a terra do meio e o dilema do homem moderno ser resolvido. A questão do ser e a
questão da identidade alemã pertenciam, assim, misteriosamente juntas. Nesse
sentido, o confronto entre Nietzsche e Hölderlin torna-se recorrente e necessário58,
55
Hans Sluga, “Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to
Heidegger, 2005, p.113. Tradução nossa.
56
Martin Heidegger apud Hans Sluga, ibidem, p.113. Tradução nossa.
57
Ibidem, p.113. Tradução nossa.
58
Sobre a ordem dos cursos sobre Nietzsche e Hölderlin, Sluga nos aponta: Hölderlin’s Hymns
“Germania” and “The Rhine”(1934-1935); Nietzsche: The Will to Power as Art (1936 -1937);
Nietzsche’s Basic Metaphysical Position in Occidental Thought: The Eternal Recurrence of the
Same (1937); On the Interpretation of Nietzsche II: Untimely Meditations: One, The Use and
Abuse of History (1938-1939) ; Nietzsche’s Doctrine of the Will to Power as Knowledge (1939) ;
Nietzsche: European Nihilism (Second Trimester 1940); Announced but not given: Nietzsche’s
Metaphysics. Instead: Hölderlin’s Hymn “Remembrance”(1941-1942); Hölderlin’s Hymn “The
31
não só na medida em que recoloca a questão do ser, mas também porque aponta
caminhos para um novo e mais profundo modo de ser alemão.
Ister” (1942); Announced but cancelled: Introduction to Philosophy: Thought and Poetry (1944-
1945) . (cf. Hans Sluga,“Heidegger’s Nietzsche”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A
companion to Heidegger, 2005, p.113ss.)
59
Martin Heidegger apud Hans Sluga, ibidem, p.114.
60
Grifo nosso.
61
Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1967, p.62. Maiúsculas do autor.
62
Segundo Casanova, Heidegger teria retomado, entre os anos de 1944-1946, alguns dos
principais pontos apresentados em Nietzsche I e acrescentado em Nietzsche II, no capítulo VI
intitulado “A metafísica de Nietzsche”. Ali, Heidegger retoma a “Vontade de poder” e “O eterno
retorno do mesmo”, além de outras questões. (cf. Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in:
Martin Heidegger, Nietzsche II, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.v.)
32
63
Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann (ed.), Martin
Heidegger: Critical assessments, London/New York, NY: Routledge, 1992, p.21. Tradução nossa.
64
Grifo nosso.
65
Martin Heidegger, Heráclito, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p.18.
66
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.261.
67
Hannah Arendt e Martin Heidegger, Hannah Arendt - Martin Heidegger: Correspondência
1925/1975, 2001, p.140.
68
Cf. François Fédier, Anatomia de um escândalo, 1989, p.163.
33
Este inicial grego nos fala de um mundo que é palco para que tudo possa
se tornar visível. Nele, o homem “expressa com especial pureza o traço cósmico
fundamental de tudo que quer aparecer e por isso é ponto da mais alta
visibilidade.”70 Para Heidegger, existe uma ali uma riqueza que vai muito além do
que os próprios gregos compreenderam, uma visão de mundo extraordinária que
permite a atenção à presença daquilo que se faz presente. Por outras palavras: o
lugar aberto do ser. O filósofo nos fala de um lugar que “deixa os entes
aparecerem no seu ser, e mostra cada vez a totalidade de sua condição.”71
Essa mesma questão nos é apresentada por Michael Watts em uma relação
imediata com a linguagem. Segundo o autor, Heidegger considerava a língua
grega arcaica como a língua primordial e original de toda Europa, uma linguagem
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69
Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, 2005, p.387.
70
Ibidem, p.349.
71
Martin Heidegger, Parmênides, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Francisco, 2008, p.132.
72
Michael Watts, Heidegger: a beginner’s guide, London, UK: Hodder and Stoughton, 2001,
p.68. Maiúscula do autor. Tradução nossa.
73
Ibidem, p.69. Maiúscula do autor. Tradução nossa.
34
portadoras de abertura para um outro começo que será evocado pelo filósofo.
Neste sentido, voltar às palavras pré-socráticas não significa uma releitura, mas a
busca de uma significação originária para o pensar desses primeiros pensadores.
74
Nos detivemos aqui aos escritos mais importantes de Heidegger dedicados a Anaximandro,
Parmênides e Heráclito. Todavia, é do nosso entender que devam existir outras ocasiões em que
Heidegger revisite os pré-socráticos. (cf. George Joseph Seidel, Martin Heidegger and the Pre-
Socratics: An Introduction to his thought. Lincoln, NE: University of Nebraska Press, 1964, p.58.)
35
75
Herman Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin: Weidmannsche
Verlagsbuchhandlung, 1960.
76
Cf. J. Glenn Gray, “Introduction”, in: Martin Heidegger, What is called thinking?, 1968, p.xviii.
36
afastamento que permite uma neutralidade sobre aquilo que é observado, mas a
um distanciamento que aproxima, no sentido que traz à tona o próprio de cada um.
Acompanhemos o pensamento de Casanova:
de acordo com um velho princípio hermenêutico, interpretar
implica incessantemente ver mais do que aquilo que se acha
expresso no texto e mesmo do que aquilo que o próprio autor
estava em condições de formular com suas intenções
específicas.77
O filósofo entende que somente aquilo que é pensado em sua verdade pode ser
compreendido de novo e melhor do que aquilo que foi anteriormente pensado.
Todavia, esse novo e melhor não se atém à competência de quem interpreta, mas
simplesmente à dádiva daquilo que se interpreta.
77
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.viii.
78
Cf. Friedrich Schleiermacher, Hermeneutics and criticism, 1998, p.228.
79
Cf. Stanford Encyclopedia of Philosophy [online]. Disponível em :
http://plato.stanford.edu/entries/schleiermacher/#4 Acesso em 12/4/2014. Grifos do autor.
80
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, pp.78-79. Grifo do autor.
37
Casanova? O autor nos coloca que, para Heidegger, é o mundo que estabelece o
horizonte em que toda a interpretação se realiza. Entretanto, nossa concepção de
mundo não é a mesma de Heidegger. Entendemos por mundo o lugar em que as
coisas se apresentam como aquilo que são – coisa, objeto, utensílio –, lugar de
manifestação do conjunto de entes. Para Heidegger, esse vocábulo não fala desse
conjunto de coisas. O entendimento heideggeriano de mundo ultrapassa o
conjunto dos entes presentes à vista e, por isso, não pode se reduzir a uma parte
desse conjunto, mas deve abranger a totalidade de tudo que é, ou seja, algo que
ultrapassa a medida ôntica. O filósofo nos fala daquilo que transcende a cada vez
essa totalidade, um campo de manifestação que nos encaminha para uma abertura
de mundo que somente pode ser determinada a partir de um horizonte que é a
“medida ontológica dos entes em geral”81: o ser do ente – aquilo que é na
totalidade. Sobre isso, é o próprio Heidegger, em Que chamamos pensar?, que
nos adverte: “pensador não depende de pensador: liga-se, quando pensa, à coisa a
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pensar, ao ser. Só na medida em que se une ao ser é que pode estar aberto ao
influxo dos pensadores e do que foi por eles pensado.”82
81
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xi.
82
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], pp. 80-81. Grifo nosso.
83
Nossa compreensão, a partir da citação de Heidegger, é a de que somente a partir do
acontecimento da união ao ser, entendido pelo filósofo como apropriativo (Ereignis), é que haveria
uma abertura própria para a hermenêutica heideggeriana sobre o ser.
84
Grifo nosso.
38
85
Cf. Marco Antônio Casanova, [vídeo] Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=XFipFGfZ2uM. Acesso em: 9/9/2013.
86
A respeito da palavra “história” Casanova nos esclarece: “Heidegger estabelece uma distinção
fundamental entre os dois termos normalmente tomados como sinônimos na língua alemã e
traduzidos consequentemente com o auxilio da palavra ‘história’: o termo latino Historie e o termo
germânico Geschichte. Enquanto o primeiro designa para ele a história concebida em sua
dimensão ôntica, como a instância relativa aos acontecimentos que se dão no interior de um
âmbito subsistente chamado tempo, e funciona para o que podemos denominar historiografia, o
segundo é reservado apenas para a dinâmica existencial de temporalização característica do Ser-aí
em sua relação originária com o mundo e com o ser.” (cf. Marco Antônio Casanova, nota do
tradutor, in: Martin Heidegger, Introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.2).
Doravante a palavra história será grafada com maiúsculas todas as vezes em que estiver no escopo
semântico de Geschichte.
87
Marco Antônio Casanova, [vídeo] Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=XFipFGfZ2uM. Acesso em: 9/9/2013.
88
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xiv.
39
89
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche I, 2010, p.xiii.
2. Que chamamos pensar?, as preleções e o escrito.
Martin Heidegger90
Mais um ano, mais uma carta. Nela, a percepção do caminho que se abre
no diálogo travado com os pré-socráticos:
Por ora estou novamente com Heráclito. Quanto mais fica claro o
diálogo que tenho com ele e com Parmênides, tanto menos
consigo me livrar deles. Nosso diálogo está pautado na
percepção de uma delimitação fundamental e na compreensão do
modo como ao mesmo tempo perguntamos diferentemente o
mesmo. Neste sentido, sempre se entende mal os meus diálogos
com os dois quando são tomadas como “interpretações”.94
Essas citações se põem para nós como uma memória viva daquele período,
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por isso, o desejo de aqui reproduzi-las. Através delas, foi possível vislumbrarmos
que Heidegger retoma o ofício de ensinar com o pensar voltado para os primeiros
pensadores gregos, e que, apesar de ciente da grande dificuldade que esse pensar
impõe, o filósofo está convencido de que, seguramente, havia ali algo de grande
relevância. Sigamos os passos de Heidegger no sentido de mostrar como as aulas
foram organizadas e o escrito apresentado.
homem que põe tamanha ênfase como Heidegger no caminho em que qualquer
coisa é dita e que reflete sobre o que ele mesmo pensou na semana anterior, a
repetição de um pensamento é algo significante.”95
pensamento. A esse desejar, Heidegger acrescenta Aquilo que também nos deseja
e se dirige à nossa essência “de modo a dentro dela nos guardar.”99 O filósofo
entende que há em nosso âmago um desejar que nos chama a guardar na memória
aquilo que é digno de pensamento e somente quando desejamos esse desejar, ou
seja, quando desejamos aquilo que nos guarda em nossa essência, somos capazes
de pensar. O pensar está, nesse sentido, ligado de alguma forma ao desejo.
98
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.5.
99
Ibidem, p.5. Maiúscula do autor.
100
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.76.
44
nominal ao sentido verbal que wesen evoca a demora ou duração que rege toda a
vinda à presença (an-wesen), um movimento essencial de algo que não é evocado
por nós, mas que, ao contrário, ao abrir-se no que é, nos chama, dirige-se a nós,
nos atravessa e nos diz respeito.
101
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.6.
102
Zarader nos fala que, por volta dos anos de1930, o pensamento de Heidegger sofre uma
mudança. Para a autora, o que ocorre com Heidegger nesse momento é a percepção de que o ser
“torna-se esquecido, precisamente porque o ato de ocultar-se pertence ao ser mesmo enquanto tal
[...]”. (cf. Marlène Zarader, “The Mirror with a triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin
Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.20.)
103
Martin Heidegger, op. cit., p.9.
45
estabilidade. O autor nos explica que durante toda a tradição metafísica, a ciência,
assim como a própria filosofia, fundou-se na lógica. Segundo Vattimo, a
contagem e o cálculo da ciência não são mera enumeração; contar significa
“contar com”104, em outras palavras, ter certeza sobre um número cada vez maior
de coisas.
104
Grifo do autor.
105
Cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.31.
106
Grifo do autor.
107
Martin Heidegger, op. cit., p.15. Ao entrar na questão sobre o aprender a pensar, Heidegger se
volta também para o ofício de ensinar, ao qual nos detivemos brevemente no subcapítulo intitulado
“o dar-curso-ao-aprender”.
108
Ibidem, p.9.
46
109
No original alemão, Ereignis. De acordo com Inwood, o termo acontecimento é o termo mais
geral para Ereignis, porém, seus derivados, tanto nominais quanto verbais, também se
circunscrevem à: evento; acontecimento-apropriador; ser-apropriado, pertencer; apropriar-se; (o
seu) próprio. (cf. Michael Inwood, Dicionário Heidegger, Rio de Janeiro: Jorge Zaar, 2002, p.2.)
110
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.10.
111
Ibidem, p.14.
112
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
Ijuí: Editora Unijuí, 2005, p.74.
47
estranha.”113 Entendemos, a partir desses versos, que o poeta esteja a nos revelar
que o homem encontra-se sem rumo, perdido de si mesmo. Anestesiado e iludido,
fala e nada diz. Encontra-se ainda na diáspora, longe de casa, em terra estranha ao
pensar. Schneider nos fala que o homem encontra-se suspenso no nada da falta de
sentido, preso somente àquilo que maquinou e produziu. Desaprendeu a trilhar o
caminho do pensamento e esqueceu-se que esse se faz na medida em que
perguntamos por ele. O intérprete compreende que o pensar enquanto sinal, só
pode ser decifrado pelo pensar e o decifrar desse sinal só se dá tornando-se
pensar.
113
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.18.
114
Ibidem, p.12. Em nota do tradutor, Lyra nos esclarece que na memória, “[...] o pensamento
reúne-se em torno de algo, debruça-se sobre algo. A lembrança é [...] em alemão das Andenken,
inversão de denken an, “pensar em”. Equivaleria a dizer: a memória como ato de pensar em algo,
promove a junção dos pensamentos.” (cf. Edgar Lyra, nota do tradutor, in: Ibidem, p.12.)
115
Ibidem, p.12.
116
Heidegger se refere ao fato de, no Ocidente, o pensar sobre o pensamento ter se desdobrado
como “lógica”. O filósofo faz menção ao fato de Kant assim como Hegel terem reconhecido a
esterilidade da possibilidade de uma determinação conceitual do pensamento.
48
117
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.20.
118
Entendemos a densidade do dito de Heidegger. Todavia, não é nossa intenção adentrarmos na
questão da verdade e tudo o que dela possa advir, mas, apenas buscar entendimento para o texto. O
por se em obra da verdade foi tema do livro A origem da obra de arte (GA 5). O escrito é fruto de
três conferências realizadas em 1936 e publicadas em 1950. Maria da Conceição Costa, tradutora
do livro para a língua portuguesa, nos apresenta que: “perguntando ainda e sempre pela dádiva
misteriosa do ser e da verdade, Heidegger visita-a através da natureza da obra de arte. A
experiência profunda da obra de arte revela e esconde a verdade daquilo que é, de tal modo que a
podemos ver. A verdade é artística e a arte poética, na sua essência fundadora. Através da obra,
abre-se um mundo que indicia, que desprende o olhar cativo para o outro lado das coisas.” (cf.
Maria da Conceição Costa, “Advertência da tradutora”, in: Martin Heidegger, A origem da obra de
arte, Lisboa: Edições 70, 1977, p.9.)
49
119
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, p.103.
120
Schneider nos fala que a tradução desse vocábulo fica circunscrita ao mais preocupante de tudo
e traz, portanto, consequências profundas. O autor entende que “esse gravíssimo não pode ser
entendido como resultado de alguma decisão autônoma por reflexão, pois o que preocupa é algo
que ocorre no imediato do seu advento. [...] O que se impõe e o que se doa não é alcançável, nem
manipulável, mas exerce uma influência em nós, que não é casual: ela faz parte de uma condição,
que nos determina essencialmente como seres humanos”.(cf. Ibidem, p.91-92.)
121
Grifo do autor.
122
Grifo nosso.
123
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.25.
124
Grifo do autor.
125
Schneider nos apresenta que a advertência de Nietzsche é feita a partir da devastação
promovida pelo cristianismo, mas também a frase “o deserto cresce” pode ser pensada como o
“deserto do pensar por representação”. (cf. Paulo Schneider, op. cit., p.107.)
50
126
Grifo do autor.
127
Heidegger nos chama a atenção para o fato de que o !"#$% e o µ&'$% terem sido usados pelos
primeiros pensadores da Grécia com o mesmo significado. Para o filósofo, !"#$% e µ&'$% só
deixam de se relacionar a partir de Platão, quando a lógica atravessa o pensamento. Heidegger nos
esclarece que a ideia de que o µ&'$% foi destruído pelo !"#$% tem a ver com um prejulgamento,
dado pela Filologia e pela História, herdado do racionalismo moderno com base no platonismo.
(cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.11.)
51
128
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.205.
129
Grifo do autor.
130
Grifo da autora.
131
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.199.
52
Heidegger nos coloca que o lógico pode denotar uma coerência com seus
pressupostos, exprimindo, com isso, algo da ordem do racional: um pensamento
correto e em acordo com os princípios fundamentais. Entretanto, uma mesma
coerência correta pode se manifestar de muitas maneiras, e, nesse sentido, falta ao
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132
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.234.
133
Entendemos que a questão da verdade permeou o pensar de Heidegger desde o início, tendo,
inclusive, tratado dessa questão em algumas conferências, tais como: “Sobre a essência da
verdade”, de 1930, e “A doutrina de Platão sobre a verdade”, de 1931-1932, publicadas em
Marcas do caminho (GA9). Todavia, encontramos uma compreensão sucinta para a questão da
verdade na conferência intitulada “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento” (GA14),
apresentada em 1966. Ali, o filósofo nos fala que a verdade, entendida como retitude da
representação e da enunciação, fica reduzida ao sentido de orthótes e não ao de alétheia. A
alétheia, compreendida pelos gregos como o sentido da certeza e da confiança do que se pode ter,
não pode ser identificada à palavra verdade, pois, segundo Heidegger, compreende-se a verdade
como concordância e adequação – o acordo da representação pensante e da coisa – sempre
relacionadas ao conhecimento como ente. (cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do
pensamento”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, pp.106-107.)
134
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.126.
53
135
Schneider nos faz entender que essa seria a crítica de Hegel a Kant. Para o autor, “Hegel critica
a pretensão kantiana de afastar-se do pensamento para estipular, diagnosticar e descrever a
suposição das suas condições e possibilidades.” Segundo Schneider, para Hegel, alargar a
compreensão de um conceito não questiona as bases com que este conceito foi construído. (cf.
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, p.101.)
136
Grifo nosso.“O mundo é minha representação” são as palavras com que Schopenhauer inicia
sua principal obra filosófica intitulada O mundo como vontade e representação, composta por
quatro livros e publicada em 1819. “A tese básica de sua concepção filosófica é a de que o mundo
só é dado à percepção como representação: o mundo, pois, é puro fenômeno ou representação. O
centro e a essência do mundo não estão nele, mas naquilo que condiciona o seu aspecto exterior,
na “coisa em si” do mundo, a qual Schopenhauer denomina “vontade” (o mundo por um lado é
representação e por outro é vontade)” Cf. [online] Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Mundo_como_Vontade_e_Representação Acesso em:20/6/2014.
137
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.41.
138
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.143.
54
Heidegger nos coloca que, desde o mundo grego, fundou-se o nexo entre
todo o saber e a +/01-. A Ἐ()*+,µ- compreendida como o “entender-se com
alguma coisa” e a +/01-, como o “reconhecer-se em alguma coisa” tem um
parentesco tão próximo, que muitas vezes usamos uma palavra pela outra.140
Zarader nos mostra que, para Heidegger, “o coração da ciência moderna é a
ἐ()*+,µ-, e isto tão originariamente que o que está encerrado, de maneira
embrionária, na ἐ()*+,µ-, só vem à luz na figura da ciência moderna”.141 A partir
disso, entendemos que, se no centro da ciência moderna encontramos a ἐ()*+,µ-,
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e se essa tem um parentesco antigo com a +/01-, é possível pensarmos que a +/01-
está de alguma forma ligada à ciência moderna. O próprio Heidegger nos diz que
ninguém é capaz de perceber de imediato a indicação de que na composição da
técnica moderna “[...], a +/01- se mostra como uma forma fundamental,
confessada ou inconfessada de saber entendido como ordem do cálculo”.142
Zarader explica esta conexão da seguinte forma: “Se a ciência moderna é [...] de
essência técnica, é porque a ἐ()*+,µ-, de onde deriva, é estreitamente aparentada
com a +/01- e não pode ser pensada fora dessa conexão”.143 Busquemos alguma
compreensão para esta afirmação.
139
Grifo da autora.
140
Cf. Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.215. Grifos nossos.
141
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.150.
142
Martin Heidegger, op. cit., p.216.
143
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, op. cit., p.205. Grifo da autora.
144
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.144.
55
Zarader, é uma produção que nada tem a ver com a ($2-*)% grega, que
simplesmente permitia o ser das coisas desabrocharem por si mesmos, ao
contrário, no âmbito da investigação objetivada pela técnica, nos acercamos de
uma interpelação manipuladora que envolve o homem e o real em uma única
função na qual ambos são apenas partes complementares. Por outras palavras: o
homem guiado pelo domínio do pensamento representacional, ao se colocar
diante do real, o faz de modo a corresponder a um apelo objetivado que subjaz,
segundo Heidegger, à técnica. Assim, tanto o real – que desvelado pelo modo
tecnicista corresponde apenas a fundos disponíveis de material e de energias – ,
quanto o homem – que, nas palavras de Heidegger, nada mais é do que um
zelador desses fundos – aparecem como parte desta engrenagem que é a técnica.
145
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.144. Zarader, nesse momento de
sua análise, adentra o modo de desvelamento que rege a essência da técnica moderna: Ge-Stell.
Através da autora, buscaremos entendimento para essa difícil questão na medida em que a mesma
é entendida como primordial ao desenvolvimento da análise do pensamento calculador, todavia,
sabemos, de antemão, da complexidade do pensamento de Heidegger sobre o tema.
146
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.145.
56
147
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.151.
148
Grifo da autora.
149
Marlène Zarader, op. cit., p.152. Grifo da autora.
57
150
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.42.
151
Maiúscula do autor.
58
Nietzsche nomeia como “último homem”152 esta espécie que não consegue
enxergar além de si mesmo, elevar-se acima de si mesmo, pois ainda não alcançou
a sua própria essência. O pensamento de Nietzsche deseja ir além do homem de
sua época, deseja alcançar a plenitude da essência desse homem. Nesse sentido,
aquele que parte em travessia para além de si mesmo é, segundo Nietzsche, o
“super-homem”153. É ele que poderia guiar a essência do último homem à sua
verdade e a assumir no sentido de tomar posse de si mesmo e de toda a Terra, para
a partir daí conformar a técnica e o fazer humano a essa nova realidade. Para
Heidegger, esse que parte só pode ser alguém em decadência, pois é a partir do
declínio que o caminho do super-homem começa. O super-homem é, pois, aquele
que atingiu o seu declínio, o declínio do último homem que parte em travessia,
mas, ao mesmo tempo, é passagem, é ponte.
152
Grifo nosso.
153
Grifo nosso.
154
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.56.
59
brilha e cintila, uma aparência totalmente superficial, tudo aquilo que se relaciona
com a representação. Para Nietzsche, o último homem pisca. A metáfora do piscar
é entendida por Schneider como uma situação em que o homem, enredado pelo
jogo da representação, se vê diante do brilhoso simulacro que lhe é oferecido: o
labirinto inextricável da “sala de espelhos que por representação reflexiva
continuamente lhe fornece a verdade proposicional objetiva [...]”.156 O autor nos
afirma que o cintilar e o piscar se conformam a um jogo já iniciado que se
estabelece com as cartas devidamente marcadas, cujo o resultado já está
previamente determinado e definitivamente consumado, sem nenhum acerto ou
reflexão anteriores.
155
Robert Mugerauer, Heidegger’s language and thinking, 1988, p.70. Tradução nossa.
156
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, pp.108-109.
60
pensado”157. Nesse sentido, quanto mais singular, mais rico será o pensamento;
quanto mais próximo à representação, mais superficial, pois aqui fica-se preso ao
pensamento vigente. Schneider nos adverte que o regime da representação se
enraíza de modo inevitável e inconteste nas mais diversas áreas da cultura e da
linguagem. Segundo o intérprete, o pensamento do representar inibe qualquer
possibilidade de reflexão profunda sobre as coisas, afetando o juízo quanto ao
certo e ao errado, ao legítimo ou ilegítimo. É justamente a representação que
determina e estabelece o quadro que compõe a realidade, onde fulgurosamente
tudo se apresenta numa trama administrada e engendrada, incapaz de nos fazer
lembrar a conjuntura na qual se instalou tamanho engodo.
157
Hífen do autor. Grifo nosso.
158
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.76.
159
Friedrich Schelling, Über das Wesen der menschlichen Freiheit. Stuttgart: Reclam, 1964.
61
No que diz respeito à vontade, para Heidegger, tudo o que foi não é mais e
fica, portanto, de fora da esfera do querer. Diante do que passou, a vontade nada
mais tem a dizer. Neste sentido, torna-se impossível uma representação de algo
que não é mais, mas quer continuar sendo. Isto significa que o querer, ao esbarrar
em algo que foi, carrega em si uma contrariedade: a vontade que deseja se
eternizar no tempo, deseja continuar querendo, mas esbarra com o tempo que
passou. Nasce, com isso, a essência da vingança, essa repulsa no interior da
própria vontade “contra o tempo e seu ‘foi’”163; nasce o repúdio contra a sucessão
de “agoras” que ao se transformarem em “agora não mais” fazem perecer a
vontade que não pode mais querer. Heidegger nos coloca que, se pudesse ficar
livre da passagem constante do tempo, a vontade estaria liberta da vingança. Isto
significa dizer que a vontade, livre do tempo, torna-se capaz de eternizar-se.
Assim, fazer a travessia significa a própria redenção em face da vingança, uma
vez que nela fica-se liberto do ressentimento de que padece o último homem: a
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liberdade da necessidade da vingança contra o tempo e seu “foi”. Isto quer dizer
que a vontade não inclina mais o seu querer em direção ao temporal, pois há uma
presença já presente no homem. Há algo que se encontra primeiro – a vontade que
quer eternamente a vontade de querer. A vontade, uma vez liberta da repulsa, quer
constantemente o retorno do Mesmo164 e, dessa forma, quer a eternidade do que
quis, a vontade de si mesma como fundamento de si mesma. Esse é, segundo
Heidegger, o ápice da metafísica de Nietzsche.
163
Friedrich Nietzsche apud Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.79.
164
Maiúscula do autor.
63
165
Itálico da autora.
166
Martin Heidegger, “Entrevista ao Professor Richard Wisser”, in: O que nos faz pensar?, 1996,
pp.15-16. Grifo do autor.
64
167
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.92.
168
Aristóteles apud Martin Heidegger, ibidem, p.92. À exceção do trecho entre travessões que,
segundo Lyra, seria um comentário de Heidegger e, portanto, não faz parte do fragmento de
Aristóteles. (cf. Nota do Tradutor, ibidem, p.92.)
65
acerca do ser, uma vez que, para o filósofo, o ser mesmo não é questionado. Em
Heráclito, Heidegger se refere a um tipo de pensamento concebido pela tradição
como a “questão do ser”170 que firma-se como um pensar sobre o ser, mas basta
apenas um olhar atento para se depreender que o que está em jogo é o ente e
aquilo que o ente é. O filósofo nos adverte que em relação à “questão do ser”
questiona-se, de imediato e às cegas, o ente e, por assim procederem, quando a
questão do ser e de sua verdade é colocada de maneira distinta “o ouvido não
consegue lhe dar acolhida, porque esse ouvido só escuta o que fala para si
mesmo.”171 Como é possível compreendermos essas afirmações do filósofo?
169
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Martin Heidegger, Nietzsche II, 2007, pp.vii-
viii.
170
Grifo do autor.
171
Martin Heidegger, Heráclito, 1998, p.91.
66
172
Apesar de termos nos detido anteriormente à questão do ser na modernidade através da análise
de Heidegger sobre a vontade, entendemos que se faz necessária uma visão mais alargada,
esboçada aqui em suas linhas essenciais, sobre os diferentes princípios ordenadores invocados pela
metafísica, no sentido de caracterizar a história do ser.
67
173
Marco Antônio Casanova, “Apresentação”, in: Matin Heidegger, Nietzsche II, 2007, p.viii.
174
O autor nos coloca que essa compreensão heideggeriana é apresentada na preleção “O niilismo
europeu”, em 1940. (cf. Ibidem, p.ix.)
175
Ibidem, p.ix.
68
pensar? com Nietzsche, para só então voltar-se para Parmênides? Não apresenta
essa escolha uma inversão histórica? Entendemos, com o que até aqui esforçamo-
nos em apresentar, que a trajetória do pensar heideggeriano busca evidenciar o
caminho que o pensamento ocidental seguiu a partir de Platão – momento em que
se cunhou a identidade entre pensamento e lógica –, chegando até a temporalidade
nietzschiana e o fim da metafísica, para com o retorno à aurora grega, neste caso,
Parmênides e alguns fragmentos do poema Da Natureza, buscar uma nova vereda,
perscrutar um novo caminho em direção ao pensamento do ser. Busquemos, pois,
seguir as marcas do caminho deixadas por Heidegger.
176
Benedito Nunes, O Nietzsche de Heidegger, 2000, p.55.
69
2.2.1. O chamado
o pensar. Entendido dessa maneira, o pensar é visto como objeto de uma pesquisa,
e o homem em sua natureza, aquele que realiza o pensar, fica fora da pergunta,
pois não é coisa que uma pesquisa sobre o pensar deva se deter. Por outro lado, se
na pergunta “Que chamamos Pensar?” nos direcionarmos para Aquilo que de fato
acontece em nós, então, estamos nós mesmos enredados na trama dessa questão e
a pergunta deixa de se relacionar diretamente com o objeto, deixa de ser
genuinamente um problema da ciência, uma vez que nós, em nossa essência,
somos interpelados. Segundo Schneider, a frase “Que nos chama a pensar?” está
intrinsecamente relacionada ao homem. Essa frase nos remete a nós mesmos, uma
vez que não temos como saber o que seja pensar sem que já estejamos inseridos
na própria experiência de pensar. Estamos no âmbito daquilo que nos interpela em
nossa essência. Não há no pensar, como vimos no início do capítulo, uma cisão
entre sujeito e objeto. Trata-se, nas palavras de Zarader, de “reconduzir o
pensamento ao seu elemento, lembrando a sua pertença ao ser”.180 Mas, o que esse
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Mas, por que o sentido habitual de chamar, o de ser nomeado, nos parece
natural e preferencial em nosso pensamento? Heidegger entende que fazemos essa
escolha inconscientemente. O filósofo nos orienta para o fato de que é justamente
aquilo que soa o mais estranho, o mais próprio da palavra, que, exatamente por ser
único, é capaz de originar as demais possibilidades de sua acepção. Essa
orientação nos leva, então, à compreensão do chamar como um chamamento, uma
180
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.152.
181
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.98.
71
solicitação que se deixa alcançar, um sopro na alma que nos envolve por sua
chegada e presença. Por outras palavras: a pergunta “Que chamamos pensar?” nos
remete diretamente ao questionamento daquilo que nos dirige a palavra a fim de
que pensemos, e isso é, no entender de Heidegger, o inabitual. Não estamos de
forma alguma acostumados a esse dizer da palavra.
comum, que nada percebemos do jogo superior traçado pela essência da língua.
Somente quando prestamos atenção, quando nossos ouvidos estão aguçados,
podemos, de forma cautelosa, nos aproximar daquilo que é o mais próprio do seu
dizer.
182
Grifo do autor.
183
Grifo do autor.
184
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.100.
72
185
Grifo do autor.
186
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.101.
187
Ibidem, p.101.
188
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, p.14.
189
Ibidem, p.15.
73
mesmos em nossa essência, pois somente somos capazes de pensar “na medida
em que somos agraciados com o mais problemático, presenteados com o que
desde o princípio e a perder de vista gostaria de ser pensado”190. Uma vez
agraciados, o desejo de pensar torna-se também crucial para que possamos pensar
de modo próprio.
que deixa que o ente seja o que ele é. Segundo o filósofo, não há nisso uma
omissão ou indiferença, mas, ao contrário, um “entregar-se ao aberto [...] que cada
ente traz, por assim dizer, consigo”.191 Zarader nos esclarece que a questão da
essência da liberdade é pensada por Heidegger a partir de “uma verdade ‘mais
original’”192. A autora ressalta que não se trata de uma liberdade do homem em
relação às coisas, aos entes. Mas, trata-se da “liberdade do ser no duplo sentido
deste possessivo: liberdade concedida pelo homem ao ser, e, de uma certa
maneira, liberdade concedida pelo ser ao homem – liberdade de ser na verdade”.193
De acordo com a intérprete, a liberdade assim compreendida é o traço de união
entre o ente e o ser, e não é porque ela ocupa um lugar intermediário entre ambas
as verdades – de ser e ente –, que ela é apenas passagem de uma à outra, mas
porque participa de forma enigmática de uma e de outra. Segundo a intérprete, “é
só por esta dupla participação de essência que ela pode ser uma função de
articulação de uma com a outra”.194
190
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.106.
191
Martin Heidegger, “A essência da verdade”, in: Marcas do caminho, Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2008, p.200.
192
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.70.
193
Ibidem, p.72. Grifo da autora.
194
Ibidem, p.75. Grifo da autora. Ainda no que diz respeito a essa posição intermediária entre a
verdade do ente e a verdade do ser, Zarader acrescenta que este “traço de união é o que separa e
74
que une o Da-sein no meio deste. A liberdade é, no sentido estrito, o que permite ao ‘ser’ ter um
‘aí’, ao Sein ter um Da. E é precisamente porque ela é esta permissão, dada ao ser, de ser ‘aí’, que
em troca define e clarifica a essência do Dasein [...].” (cf. Ibidem., p.72.)
195
Itálico do autor.
196
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.107.
197
Ibidem, p.108.
75
198
Itálico nosso.
199
Itálicos da autora.
200
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.237.
201
Grifo da autora.
202
Marlène Zarader, op. cit., pp.239-240.
76
Nesse sentido, para que alcancemos o jogo da língua faz-se necessário uma
atenção ao dizer das coisas, faz-se necessário nos desprendermos do habitual, o
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203
Heidegger debruçou-se sobre a questão da essência da linguagem em várias conferências e
cursos reunidos na obra intitulada A caminho da linguagem (GA12), publicada em 1959. Todavia,
na conferência nomeada Língua de tradição e língua técnica (GA80), proferida em 1962 na
Academia de Combourg, Heidegger aborda a questão da língua e da técnica, tão presentes em Que
chamamos pensar?, e que serve para uma compreensão daquilo que aqui desejamos esboçar. Para
o filósofo, é necessário que através do pensamento tenhamos a experiência daquilo que é, pois, do
contrário, estaremos presos ao peso de uma ortodoxia acadêmica que não nos coloca em vantagem
em relação à força da era industrial. Segundo Heidegger, é preciso nos direcionarmos em sentido
oposto ao que possui caráter utilitário e prático, para, com isso, nos aproximarmos do vazio, do
inútil, do lugar onde habita o sentido das coisas. Devemos, pois, nos aproximar das palavras não
no sentido de suas representações, daquilo que nos é dado, mas sim, de forma a torná-las próprias,
harmoniosamente na nossa fala e na nossa mente, com aquilo que é. (cf. Martin Heidegger,
Língua de tradição e língua técnica, Lisboa: Passagens, 1995, pp.7ss. Grifos do autor.)
204
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.240.
205
Grifos nossos.
206
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.109.
77
essência da linguagem, a não ser na medida em que ela nos olha. Nesse sentido, a
linguagem não pode ser de forma alguma objeto do pensamento. No entendimento
do filósofo, não ser possível conhecer a essência da linguagem através dos
conceitos do conhecimento utilizados na representação, não significa uma falta,
mas, pelo contrário, é um “privilégio pelo qual somos reenviados a um domínio
insigne, aquele onde nós, que somos aqueles que somos precisos (die
Gebrauchten) para falar da linguagem, habitamos enquanto mortais”.209 Dessa
forma, no jogo da língua aventado por Heidegger, entendemos com Gadamer, em
Verdade e método, que “o verdadeiro sujeito do jogo não é o jogador, [...] mas o
próprio jogo. É o jogo que mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo e o
mantém no jogo.”210
207
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.240.
208
Ibidem, p.240.
209
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.240.
210
Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p.181.
78
Abre-se com as perguntas uma nova vereda para o pensar. Sob o escopo da
história dessas palavras, mesmo presumidamente insuficiente, Heidegger encontra
na palavra Gedanc, oriunda do alemão arcaico, uma pista para o dizer original
desses vocábulos. O sentido inferido pelo pensador para o termo funda-se tanto na
memória como na gratidão, algo que essencialmente se avizinha, se assenta e está
presente em nós. Indaga-nos o próprio filósofo:
É o pensar um agradecer? Que designa aqui agradecer? Ou é a
gratidão que repousa no pensar? A memória é apenas um
recipiente para o pensado do pensar, ou será que o pensar
repousa ele próprio na memória? Como se relacionam o pensar e
a memória?211
211
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.116. Segundo Lyra, em nota do
tradutor, “não há como restituir em português os nexos etimológicos que em alemão ligam o
pensar ao rememorar e ao agradecer. (cf. Nota do tradutor, ibidem, p.116.)
212
Nas aulas de passagem, Heidegger ainda acrescenta ao significado de Gedanc: “o ânimo, o
coração, o fundo afetivo (Herzensgrund), o mais interno ao homem, o que mais amplamente se
estende para fora, até o limite mais extremo, e isso de forma tão categórica que, pensada
corretamente, não sobra apoio para a representação desse dentro e fora”. (cf. Ibidem, p.121.)
213
Martin Heidegger, op. cit., p.117.
214
Ibidem, pp.117-118.
215
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Stanford, Ca.:
Stanford University Press, 2006, p.68.Tradução nossa.
79
para com aquilo que nos chama, “para essa voz silenciosa do ser que fala na
linguagem.”216 Para a intérprete, é por este motivo que o pensamento fiel será
inseparavelmente a lembrança e a memória desse dom que vigora nas palavras.
216
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, Stanford, Ca.:
Stanford University Press, 2006, p.68. Tradução nossa.
217
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.118.
218
Grifos do autor.
219
Grifos do autor.
220
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, pp.152-153.
80
Mais à frente, Zarader conclui dizendo que: devolver o pensamento ao seu lugar
mais próprio e mais inaudito é permitir-lhe o retorno ao lugar aonde sempre
esteve, mas que, apesar disso, nunca se edificou.
Sabemos, a partir de Heidegger, que aquilo que foi trazido à luz pelo
gedanc é muito mais precioso do que o significado habitual das palavras em
questão. É, pois, segundo o filósofo, a atenção e o cuidado concedidos ao nomear
da palavra “pensar”221 que nos levam ao quarto modo da formulação da questão
como doadora de medida. Assim, na pergunta – que é isso que nos chama a
pensar? – fazemos memória e agradecemos por algo que nos é dado, uma dádiva
concedida que nos faz ser o que somos, a nossa própria essência: o pensar que dá
a pensar o mais problemático. Heidegger compreende que a gratidão aqui
suscitada não é um ressarcimento, mas um acolhimento, um “trazer a coisa a sua
pertença e aí então deixá-la”.222 Nas palavras de Zarader: “se o pensamento deve
ser fiel ao ser, é em primeiro lugar e antes de tudo porque, situando-se no ser,
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221
Grifo do autor.
222
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.123.
223
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154.
224
Martin Heidegger, op. cit., p.124.
225
A partir do escrito Da Alma de Aristóteles, nos parece não ser possível afirmar que o homem
possua alguma faculdade que o distinga de todos os demais viventes. De fato, uma vez que o
homem possui todas as faculdades explicitadas por Aristóteles, parece haver uma relação de
continuidade entre o homem e todos os outros viventes no que se refere às faculdades de sua alma.
De um lado, o intelecto não poderia ser dito sua distinção, pois este é também faculdade de seres
análogos ao homem, como também de Deus. As palavras de Aristóteles, “ [...] outros detentores da
faculdade pensante e o intelecto, que é o caso do ser humano e de qualquer outro ser,
possivelmente existente, de condição análoga ou superior à humana” parece confirmar-nos isso a
81
aponta. A memória, como algo que acolhe e oculta aquilo que nos dá a pensar,
tem a sua essência no resguardar. Ela aponta para o âmago do que cobre tudo o
que nos dá a pensar e é, por isso, nomeada pelo filósofo como salvaguarda. O
filósofo nos coloca que
somente a salvaguarda dá como livre dádiva a coisa-a-
considerar, o mais problemático. A salvaguarda não é, todavia,
nada vizinho e exterior ao mais problemático. Ela é ele próprio,
sua essência, a partir e no interior da qual o mais problemático
dá-se a pensar, a saber, sempre o Mesmo, tempo após tempo.228
A salvaguarda é, pois, aquela que na gratuidade nos doa o mais problemático, que
no mais intrínseco de si mesma oferta sua essência, a partir da qual dá-se a pensar
sempre o Mesmo.229 Entendemos, com Heidegger, que somente aí onde a
salvaguarda do mais problemático existe é que o pensar do coração – o surgir de
cada coisa-a-considerar – se abre para o seu acontecimento.
que Heidegger se refere. (cf. Aristóteles, Da Alma, (tr.) Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2011,
p.78.)
226
Itálico do autor.
227
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.124.
228
Ibidem, p.126. Maiúscula do autor.
229
Maiúscula do autor.
82
Entende-se, pois, com Heidegger, que a ocultação do ser é parte de seu modo de
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230
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os Pensadores - Conferências e escritos
filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.361.Segundo Carneiro Leão, a
discussão dos pressupostos da carta “Sobre o ‘Humanismo’” “[...] abre toda uma outra dimensão
de pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vigência Histórica do
humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de
questioná-la em seus fundamentos”. (cf. Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: ibidem, p.9.
Maiúsculas do autor.)
231
Grifo nosso, no sentido de diferenciar o uso verbal, do nominal.
232
Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin
Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.20. Tradução nossa.
233
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.127.
83
isso significa que as palavras “origem” e “começo”234 nos remetem a dois pontos
de partida. Diz a autora: “Um, inaugura o nosso destino, sem no entanto poder ser
definido como começo do pensamento (visto que não pertence à sua ordem), o
outro inaugura a história do pensamento, sem no entanto ser a fonte a que se
destina”.235 De acordo com a intérprete, Nietzsche já havia acentuado esse outro
ponto de partida reconhecendo Heráclito e Parmênides como filósofos autênticos
e a Ideia platônica como início de um declínio. Todavia, em Nietzsche, o fio
condutor histórico ainda é um só. Com Heidegger, o ponto de partida tradicional
também é deslocado, entretanto, o termo “pré-socráticos”236 desaparece, dando
lugar às expressões “pensadores matinais ou inaugurais”237 para aqueles que
recebiam apenas o estatuto preliminar do pensamento ocidental. Com isso,
instaura-se um duplo registro de inauguração: por um lado, o começo inconteste
com Platão que levará a questão do ser ao esquecimento, e por outro, “um ‘outro
começo’ – escondido, encoberto, desconhecido – que tinha ocorrido com os
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Heidegger nos coloca que o inevitável encobrimento da origem nos fez ver
o esquecimento do ser sob uma outra luz. O filósofo retoma a questão do !"#$% e,
além das razões elencadas no início do capítulo, nos fala que se não
questionarmos o que nos levou a pensar segundo o !"#$% enunciativo, não
conseguimos vislumbrar a historicidade do nosso destino. Permanecemos cegos,
acreditando que o !"#$% é a única determinação do nosso pensar. Soma-se a isso,
o fato de sabermos claramente que o caminho do pensar ocidental é atravessado
pela fé cristã; que por ser fé, não carece de fundamento e, tampouco, questiona o
pensar regulado pelo !"#$%, Entendemos, com isso, que o reino da fé não depende
de nós e, como dom ofertado, nada questiona. Para o pensador, foi essa a razão
234
Grifos nossos.
235
Marlène Zarader, A dívida impensada: Heidegger e a herança hebraica, Lisboa: Instituto
Piaget, 1990, p.48.
236
Grifo da autora.
237
Grifo da autora.
238
Marlène Zarader, op. cit., p.48.
84
239
Ao sentido de história (Geschichte), Heidegger acrescenta o de destino (Ge-schick). De acordo
com Carneiro Leão, Heidegger pensa a dinâmica da essência da história como destino. Diz o
autor: “a essencialização da História é o Ge-schick, (“o destino”) do Ser, [...] em sua Essência, a
História é o destinar-se do Ser no homem. Isso quer dizer: é no destinar-se do Ser que o homem se
hominiza – isto é, que o homem se constitui como homem – ao articular o destino do Ser, e isso
significa: ao dar lugar ao conjunto de referências de ser e ente. Essencialmente pensar não é,
portanto, exercer uma faculdade da consciência, entendida como sujeito, nem falar é exprimir
atividade e o conteúdo desse exercício. Pensar e falar é articular o destino do Ser. Por isso só o
homem pensa. Só o homem fala. Só o homem é histórico. E é histórico, enquanto faz e é feito pela
História.” (Cf. Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o
Humanismo, (tr.) Emmanuel Carneiro Leão, 1967, p.15. Maiúsculas e grifo do autor.)
240
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.140.
241
Na tradução de Que chamamos pensar? para a língua inglesa, Glenn Gray se refere a uma
experiência. Diz o tradutor: “What distinguishes the beginning is rather that those thinkers
experienced the claim of the calling by responding to it in thought.” (cf. Martin Heidegger, What is
called thinking?, 1968, p.167). A mesma questão da experiência será aventada por Zarader em
Heidegger e as palavras da origem.
242
Martin Heidegger, op. cit., p.143.
85
243
Edgar Lyra, nota do tradutor, in: Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração],
p.12. Grifo do tradutor.
244
Martin Heidegger, ibidem, p.126.
245
Paulo Schneider, O outro pensar: sobre Que significa pensar? e A época da imagem do mundo,
2005, p.19.
86
Vemos, também com o autor, que é próprio do ser esse retraimento em favor do
ente. Para o autor, o ser subtrai-se como dom, como gratuidade. O intérprete nos
concede essa compreensão nas próprias palavras de Heidegger: “Um dar que dá
apenas a sua oferenda e que, ao fazê-lo, contudo se retrai e se subtrai a si
mesmo”.247 De acordo com Vattimo, entender que o ser se doa em favor do ente
como dádiva, mas nesse dar-se permanece em si mesmo, sempre como um dom e
nunca como possibilidade de captura do próprio ser, é fundamental para
aproximarmos o pensamento meditativo, daquilo que nos chama para além desse
apelo. Para Heidegger, o pensamento meditativo é o único capaz de pensar o ser.
Vattimo nos coloca que, desde os gregos, o pensamento se volta para o ser
como presença. Pensar o ser como presença significa, segundo o autor, uma
petrificação metafísica que teve como grave consequência o trágico destino do
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246
Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.123. Grifo do autor. Itálico nosso.
247
Martin Heidegger apud Gianni Vattimo, ibidem, p.122.
248
Vattimo usa a expressão Anwesen-lassen para esse caráter da presença. Segundo o autor, para
Heidegger ,“o fazer estar presente quer dizer desvelar, trazer à luz do dia. No desvelar atua um
dar-se, e é precisamente aquele dar que, no fazer estar presente, dá o estar presente, isto é, o ser”.
(cf. Martin Heidegger apud Gianni Vattimo, ibidem, p.125). Entendemos, a partir de Vattimo, que
o Anwesen-lassen se aproxima do termo Lichtung, o aberto da clareira, o lugar que garante ser e
pensar e que possibilita a presença se fazer presente. Mais à frente, no 3o.capítulo, retomaremos a
questão da alétheia. Grifo nosso.
249
Ibidem, p.125.
250
Grifo nosso.
87
metafísica não pode “procurar sair do esquecimento agarrando o ser como algo de
presente, [...] mas não pode também voltar a colocar-se na condição do
pensamento dos primórdios”251, uma vez que ali não se pensou o ser como
desvelamento.
Entendemos, com isso, que o pensamento que faz o salto em direção ao Boden é
este que deixa de pensar o ser como fundamento e o faz em resposta ao chamado
do ser como um desvelar-se. É isso que, de acordo com o intérprete, Heidegger
entende por memória e rememoração, como Andenken. Não se trata, portanto, de
um mero recordar, mas de um pensamento capaz de pensar o ser como Ab-grund.
O pensamento que se atém ao fundamento é aquele que se detém apenas no ente e
o no seu ser como presença constante, sem pensar a sua proveniência, a sua
origem. Para Vattimo, o ser só pode ser pensado em sua diferença para com a
presença, e o pensamento que pensa sempre “como dádiva em que o dar-se já está
sempre subtraído”254 é a memória, o Andenken.
251
Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.125.
252
O princípio da razão suficiente é uma temática abordada por Gottfried W. Leibniz no escrito
Princípios da natureza da graça fundados na razão, de 1714. Segundo o filósofo, este princípio é
baseado na ideia de “que nada sucede sem que seja possível [...] fornecer uma razão suficiente
para determinar porque é assim, e não de outro modo.” (cf. Gottfried Leibniz, Princípios da
natureza da graça fundados na razão, §7, [online] Acesso em 25/08/2014. Disponível em:
http://www.lusosofia.net/textos/leibniz_principios_da_natureza_e_da_gra_a.pdf )
253
Gianni Vattimo, op. cit., p.128.
254
Ibidem, p.129.
88
255
Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.130.
256
Marlène Zarader, “The mirror with the triple reflection”, in: Christopher Macann, Martin
Heidegger: Critical assessments, vol.II, 1992, p.21. Tradução nossa.
257
Grifo da autora.
258
Cf. Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, p.65.
Em nota, a autora nos fala da temática do “raio inaugural” presente no artigo “Logos” (GA7). (cf.
Ibidem, p.215.)
89
passado, mas uma prospecção que se dá a partir daquilo que nos foi dado pelo
Andenken. Ambos os movimentos são, nesse sentido, complementares e se
orientam para o pensamento futuro. Dito por outras palavras: o Andenken é um
salto retrospectivo em direção aos primórdios do pensamento, que nos afasta do
pensamento da tradição na medida em que busca nesse passado algo que ainda
não foi pensado. Zarader nos coloca que o Andenken “tem como finalidade a
apropriação da nossa herança grega”261. Por outro lado, o movimento que nos
orienta para o futuro é o Vordenken, um pensamento prospectivo que, ao buscar
na origem o impensado, separa-se dessa em proveito de um outro pensamento
ainda a ser pensado. Esse movimento significa, aos olhos da autora, “a superação
da herança grega”262. Entendemos, assim, que os movimentos do pensar
orientados pelo Andenken e pelo Vordenken nos levam, num primeiro momento, à
259
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, pp.65-66.
260
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.34. Em nota, a autora apresenta
uma citação do próprio Heidegger que julgamos pertinente, no sentido de nos ajudar na
compreensão desse movimento. Diz o filósofo: “Se o pensamento, lembrando-se daquilo que foi
(das Gewesene), lhe deixa a sua essência e não altera o seu reino usando-o apressadamente como
presente, descobrimos então que o que foi, pelo seu retorno no Andenken, se estende para lá do
nosso presente (Gegenwart) e vem até nos como um futuro (ein Zukünftiges). Bruscamente, o
Andenken deve pensar o que foi como algo de ainda-não-desdobrado (als ein Nochnicht-
Entfaltetes)”. (cf. Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.34.)
261
Ibidem, p.35.
262
Ibidem, p.35.
90
Heidegger nos coloca que Anfang e Beginn não são idênticos266, apesar de
transitarem dentro do mesmo escopo semântico. Zarader nos explica, nas próprias
palavras de Heidegger, que o Anfang seria, então, algo que precede qualquer
começo. Diz Heidegger:
O começo é aquilo com o que alguma coisa se ergue, o Anfang é
aquilo de onde alguma coisa jorra. [...] O começo é
imediatamente abandonado, desaparece na sequência dos
acontecimentos. O Anfang, a origem (Ursprung) pelo contrário,
só se torna claro no decurso do processo, e só no fim deste
plenamente.267
O Anfang é, assim, entendido como algo que antecede o começo, como uma fonte
velada de onde jorra algo que permanece impensado à espera de um futuro.
ali a chama do que foi pensado, mas sim, o de um pensar que, dentro de uma
dinâmica temporal própria, relaciona-se com a língua que inaugurou a nossa
história. Diz a autora:
Porque a nossa história é grega. Somos descendentes. Ingratos
talvez, cegos à sua mais secreta proveniência, mas herdeiros
contudo. Não [...] (somente) herdeiros de um pensamento, como
de uma língua, até de algumas “palavras”. Palavras nunca
meditadas propriamente na sua carga de impensado, e que
permanecem, contudo, o único território susceptível de encerrar
o mistério do nosso destino”.268
273
Marlène Zarader, The Unthought Debt: Heidegger and the Hebraic Heritage, 2006, p.65.
Tradução nossa.
274
Ibidem, p.66. Tradução nossa.
275
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.66. Tradução nossa.
276
Gianni Vattimo, As aventuras da diferença, 1980, p.135.
3. O outro pensar
277
Günter Lorenz, Diálogo com a América Latina, São Paulo: E.P.U., 1973. Entrevista a João
Guimarães Rosa, conduzida por Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos em
janeiro de 1965 e publicada em seu livro Diálogo com a América Latina.
278
Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, Berlin: Weidmannsche
Verlagsbuchhandlung, 1960.
279
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.142.
94
“ser é a origem”.282 Todavia, nem todo pensador que pensa o ser pensa a origem.
No entender do filósofo, somente Anaximandro, Parmênides e Heráclito pensaram
a origem. Segundo Heidegger, são eles que, na aurora do pensar ocidental, “[...]
pensam o verdadeiro, (e) pensar o verdadeiro significa experimentar o verdadeiro
na sua essência e, em tal experiência essencial, saber a verdade do verdadeiro.”283
280
Martin Heidegger, Parmênides, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Francisco, 2008, p.21.
281
Itálico do autor.
282
Martin Heidegger, op. cit., p.21.
283
Ibidem, p.13. A questão da verdade, que no poema de Hölderlin encontrava seu desvelar junto à
beleza, vê-se aqui envolta naquilo que diz respeito a uma experiência. Faz-se, portanto, necessário
algum clareamento a título de avançarmos no texto. Conforme vimos anteriormente, Heidegger
nos coloca que a alétheia foi compreendida pelos gregos como “retitude da representação e da
enunciação” e foi, por isso, “experimentada como orthótes”. O filosofo compreende que é na
escuta da palavra alétheia que podemos “intuir algo da essência da ‘verdade’ experimentada pelos
gregos” (cf. Ibidem, p.32). Essa colocação nos encaminha para a compreensão heideggeriana do
vocábulo alétheia, que será tratada mais a frente quando adentrarmos propriamente o poema de
Parmênides.
95
uma dádiva para o seu tempo. Heidegger nos fala que a sentença “o princípio é o
último”284 pode parecer um contra-senso para o pensamento calculador. Todavia, a
compreensão de que algo que se deu no princípio possa vir depois sugere apenas
que esse princípio surge em seu início de forma oculta e, por isso, permanece
inacabado aguardando sua realização num porvir.285
circunscrevê-la a uma doutrina, nem mesmo a uma poesia, pois o que vem à fala
no dito revela-nos o todo do pensar de Parmênides, revela-nos um saber essencial.
Mas, o que é um saber essencial? E, como esse saber desvela-se no pensar?
284
Grifo do autor.
285
Entendemos que Heidegger faz aqui referência à dinâmica própria dos movimentos do
Andenken e do Vordenken e toda a discussão do andere Anfang levantada no capítulo anterior.
286
Grifos do autor. No original Gedicht Lehr. Segundo o dicionário, Lehr é o que instrui, ensina e
forma. Cf. [online] Disponível em:
http://pt.pons.com/tradução?q=Gedicht+Lehr&l=dept&in=&lf=de Acesso em: 5/1/15.
287
Cf. Martin Heidegger, Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.16.
288
Grifo nosso.
289
Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.22. Compreendemos que essa frase de Heidegger nos
remete à sua hermenêutica: um horizonte de compreensão em que o pensador é aquele que ouve o
chamado do ser para, com isso, dar voz à História.
96
entende que somente a partir da atenção dada a essa exigência da origem é que o
dito de Parmênides terá algum sentido. Segundo o pensador, perdemos
completamente o saber ouvir das coisas simples que esses pensadores deixaram.
O que, então, vem à fala nesse pensar?
Anspruchs) [...]. )"#$% diz o mesmo”.291 Como vemos, para o pensador, o !"#$% e
o µ*+'$% se co-pertencem e, por isso, é possível considerar que nas primeiras
tentativas de pensar o ser, aqueles pensadores ainda encontravam-se circunscritos
ao mítico. Heidegger nos coloca que µ&'$% e !"#$% estão ligados à essência da
linguagem e se circunscrevem ao campo da palavra eloquente, e que o mítico é o
que guarda, na essência da palavra, aquilo que se manifesta primordialmente
revelando-se e ocultando-se, ou seja, o próprio ser.292 Michel Haar, em Heidegger
et l’essence de l’homme, acrescenta que o mythos é a linguagem que traduz a
conversa inabitual do ser com o homem. Para o autor, o !"#$% está enraizado no
µ&'$% e, uma vez que o !"#$% é muito mais do que a linguagem como habilidade
de fala, é o homem que se encontra no interior do !"#$%. É o !"#$% que possui o
homem e não o contrário. Haar nos rememora a maneira rigorosa com que
Heidegger circunscreve o !"#$% no curso sobre Heráclito. Ali, o autor nos coloca
que, para Heidegger, o !"#$% não diz respeito a uma faculdade do homem, nem
tampouco à razão e, muito menos, a uma afirmação ou proposição como foi
entendido mais tarde.293 O !"#$% é aquilo que unifica os seres, os traz à sua
290
Cf. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.168.
291
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.11.
292
Cf. Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.106.
293
Já em Ser e tempo, no §7, Heidegger se volta para o conceito de !"#$% e toda a dificuldade para
se “apreender devidamente o conteúdo primordial de sua significação básica”. Ali, o filósofo nos
97
Mas, como Heidegger chega a esse pensamento? Zarader nos fala que o
caminho-pensamento de Heidegger se faz em círculos. Uma circularidade que
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coloca que desde Platão e Aristóteles o conceito de !"#$% é polissêmico e, de tal modo, que acaba
por dispersá-lo de seu significado fundamental. Heidegger nos explica que entendermos o !"#$%
como fala não nos remete ao seu conteúdo primordial. Tampouco, suas interpretações posteriores,
tais como: razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação e proporção traduzem o que é o
!"#$%. Nesse parágrafo, Heidegger delimita os descaminhos que o !"#$% seguiu ao longo da
história da filosofia e nos explicita o porquê deste entendimento. (cf. Martin Heidegger, Ser e
tempo, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São
Francisco, 2012, p.71ss.)
294
Ver.samm.lung Sf, 1. reunião, […]. Cf. [online] Disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/escolar/alemao/index.php?lingua=alemao-
portugues&palavra=Versammlung Acesso em: 06/10/14.
295
Cf. Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.104.
296
Cf. Marlène Zarader , Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.28. Itálicos da autora.
98
297
Hans-Georg Gadamer, “Destruktion and Deconstruction”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall,
Heidegger reexamined: Language and the critique of subjetivity, vol.4, New York, NY:
Routledge, 2002. p.75. Tradução nossa. Maiúscula do autor. Entendemos que o pensar de
Gadamer, em acordo com o de Vattimo, move-se aqui no domínio da clareira, o lugar que,
segundo Heidegger, permite-nos saber a respeito do ser, assim como sobre o ser e o pensar. Nos
deteremos à questão da clareira mais adiante quando adentrarmos a análise do fragmento de
Parmênides.
298
Cf. Charles Bambach, Heidegger, Dilthey and the crisis of historicism, Ithaca, NY: Cornell
University Press, 1995, p.153.
99
Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um
ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela,
vem ao nosso encontro, chega até nós, nos avassala e transforma.
“Fazer” não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos
produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o
sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro,
harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele.299
Através dessas palavras, vemos que, para Heidegger, uma vez alcançados pela
experiência não há controle, é ela que nos conduz e governa. Estabelece-se, dessa
forma, uma relação em que se sofre a ação ou o efeito de experimentar, e, a partir
desse encontro, algo novo é gerado pela experiência em si. Mas, de que forma
essa compreensão se desdobra na relação do filósofo com os pensadores da
origem?
299
Martin Heidegger, A caminho da linguagem, Petrópolis: Vozes, 2003. p.121. Apesar de
extensa, entendemos que a citação deve ser feita na íntegra no sentido demonstrarmos a
importância que o vocábulo tem no pensamento de Heidegger.
300
Itálicos da autora.
301
Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, 1999, p.590.
302
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.28.
100
e isso permite que o impensado seja “experimentado”303 sem que se perca, nessa
experiência, a sua rubrica de impensado. Segundo a intérprete, essas experiências,
feitas na aurora do pensar ocidental, não são sustentadas pelo pensamento e quase
não são percebidas pela consciência, por isso, duram o tempo de um “clarão”304 e
logo são recobertas. Mas as palavras ficaram. Zarader nos diz que essas palavras
chegaram até nós vazias de sua reverberação inicial, e são elas que solicitam um
interlocutor a quem possam falar da experiência que as tornou possível. A autora
compreende, com isso, que o interlocutor é aquele que se direciona à origem para
ouvir aquilo que, ainda oculto, permanece impensado, ou melhor, é o interlocutor
que se põe à escuta das palavras inaugurais, de forma a ali encontrar a experiência
contida e transmitida pelas palavras desses pensadores; palavras que ainda
permanecem à espera de um futuro. Isso implica, no caso da língua grega, numa
tradução; o que nos coloca diante de uma outra questão: como pode uma tradução
aproximar-se daquela experiência vivida pelos pensadores da manhã grega? Ou
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3.2. Da traductio
303
Grifo da autora.
304
Grifo da autora.
305
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.148.
101
não ficarmos presos à petrificação da forma. Para Heidegger, todas as vezes que
traduzimos um pensamento para nossa língua materna caímos na tentação da
interpretação e, com isso, submetemos aquele pensamento a um olhar atravessado
por algo previamente pensado. Contra isso, a tradução deve sempre lutar. Por
outro lado, adentrar um pensamento sem qualquer pressuposição é, no pensar do
filósofo, uma interpretação ainda mais carregada de pressupostos, pois na visão de
Heidegger, a crença de que se pode dialogar com um outro pensar a partir de uma
ausência de pensamento repousa numa teimosia infundada. A ausência de
pensamento é, neste caso, o reduto daqueles que se acercam da aparência de
parentesco e da adequação na interpretação. Como, então, devemos nos aproximar
da tradução?
306
Grifo do autor.
102
toda a tradução carrega consigo algo daquele que a traduziu. Vejamos como o
filósofo compreende essa dinâmica.
de uma verdade. Heidegger entende que somente quando somos tomados por essa
transposição é que nos encontramos no âmbito mais próprio à palavra e estaremos
aptos à tarefa da tradução. Isso significa que, no entender do filósofo, a tradução
mais difícil é sempre aquela que se passa no interior da nossa própria língua, pois
na medida em que há o domínio de uma linguagem, julga-se compreender as
palavras de imediato sem ater-se ao fato de que essas possuem um reino original
que lhes é próprio. Por isso, a tradução deve buscar ouvir as palavras nelas
mesmas, de tal forma, que nessa recepção nos coloquemos em sintonia com
aquilo que a palavra diz. Somente aí, diz o filósofo, exercemos a atenção plena e
começamos a pensar.
307
Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.28.
308
Martin Heidegger, Que chamamos pensar?[em elaboração], p.144.
103
3.3.1. A !"#$%&'
Nossos primeiros passos nos levam, ainda que concisamente309, àquilo que
julgamos ser fundamental para nos aproximarmos do fragmento de Parmênides: a
compreensão da palavra grega ἀ!0'1.2, que no poema é o nome da deusa.
Heidegger nos coloca que, de modo geral, na filosofia dos gregos, a palavra
ἀ!0'1.2 era traduzida usualmente por “verdade”310, e ἀ!3'0% era a palavra usada
na enunciação para expressar certeza e confiança, mas não no sentido de
desvelamento. Segundo Zarader, esse entendimento foi assumido pela filosofia
medieval que condensou na fórmula “Veritas et adaequatio rei et intellectus”311
toda uma compreensão na qual a verdade é concebida como uma adequação do
conhecimento à coisa. Como vimos anteriormente, Heidegger entende que o
círculo iniciado com Platão, cuja a história da essência da verdade é
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309
Entendemos a essencialidade da palavra ἀ!0'1.2 no vocabulário heideggeriano, todavia, nosso
intuito é o de, apenas, entendermos o caminho do pensar de Heidegger ao nos encaminhar para
Parmênides no escrito Que chamamos pensar?.
310
Grifo do autor.
311
A frase “Veritas et adaequatio rei et intellectus” pode ser traduzida livremente por: a verdade é
a adequação da coisa ao conhecimento ou a adequação do conhecimento à coisa.
312
Cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores –
Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.105ss.
313
Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.62.
104
314
Ernildo Stein, Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana,
Ijuí: Ed. Unijuí, 2001, p.85.
315
Ibidem, p.87.
316
Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores –
Conferências e escritos filosóficos, 1996, pp.104-105.
317
Martin Heidegger, Parmênides, 2008, p.32.
318
Cf. Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, in: Os Pensadores –
Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.105.
105
pensar não pode sequer ser levantada em questão, enquanto não entendermos a
ἀ!0'1.2 como desvelamento. Stein acrescenta que é a experiência grega
originária “[....], que contém em si a possibilidade de eclodir numa palavra aquilo
que a resume. Sem a compreensão da experiência grega, a etimologia da palavra
ἀ-!0'1.2 é letra morta”.319
3.3.2. O fragmento VI
319
Ernildo Stein, Compreensão e finitude: Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana,
2001, p.94.
320
Grifo da autora.
321
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.155.
322
Grifo nosso.
323
Grifo do autor.
324
Grifo do autor.
106
que fica encoberto nesse “é”? O pensador entende que há aí uma densidade
tamanha que mal nos damos conta. Acolhemos esse “é” tão naturalmente que,
nesse acolhimento, permanecemos no abandono da ilusão do uso regular de um
verbo auxiliar que atravessa nossa fala inúmeras vezes ao dia. Nossos ouvidos
estão tão habituados às representações desse “é” que acreditamos que nada mais
fica por dizer. Heidegger percebe que, talvez, nesse aparente vácuo de sentido
habite “a única possibilidade para os mortais de chegar à verdade”.325 Para o
filósofo, o enunciado de Parmênides encerra em si o mais absoluto mistério do
pensar e do dizer. E penetrar neste enunciado é o mais árduo, precisamente,
porque nos encontramos sempre por ele envolvidos.
E, mais, quem é esse que, além de chamar, indica caminhos? Heidegger nos
coloca que aquele que chama a pensar nos remete a três caminhos: o caminho que
devemos seguir, aquele ao qual devemos prestar atenção e a um outro que
permanece inacessível ao pensamento. Segundo o filósofo, nos deparamos neste
dizer com uma encruzilhada: o caminho, o não-caminho e o falso caminho. Essa
encruzilhada, à qual o pensar é lançado, se faz presente a todo o instante desse
caminhar; motivo pelo qual somos eternamente levados ao caminho do
questionamento.
ou, mesmo, entre crianças, cuja estrutura ainda não foi construída. Mas, como
esse tipo de linguagem pode se adequar ao pensamento de Parmênides?
3.3.2.1. O ()ὴ
330
Grifo do autor.
108
significa reter algo em mãos, significa precisar de algo. Jaz neste precisar uma
adaptação na medida em que quando manuseamos alguma coisa, nossa mão se
adapta à coisa manuseada e não o contrário. Em acordo com Zarader, Carol
White, em “Heidegger and the greeks”, também compreende que devemos buscar
o significado da palavra grega 64ὴ em sua raiz, segundo a qual os vocábulos 61=4
(mão) e 649< (manusear) sugerem não só o envolvimento com algo ou o alcançar
das mãos, bem como o deixar nas mãos de alguém ou o deixar algo pertencer a
alguém. É, pois, na essência desse precisar que Heidegger vai se deter.
White também se atém ao sentido do termo alemão der Brauch e nos adverte a
não tomá-lo em sua forma puramente pragmática, como a do vocábulo “uso”, pois
na sua acepção verbal, brauchen também significa precisar, empregar, envolver-
se, e, segundo a autora, Heidegger toma a palavra brauchen naquilo que considera
a raiz de seu significado: o de desfrutar, estar satisfeito com algo e tê-lo em uso.
Para a intérprete, o 64ὴ indica um manusear para que nesse uso a coisa seja o que
é, “uma reunião que ilumina e abriga o que é, fazendo que isto seja o que é.”331
Zarader acrescenta que o 649< (manusear), ao qual Heidegger se detém, também
se acerca de uma entrega que deixa algo em mãos certas, no sentido de liberar a
uma pertença. Segundo a autora, na ideia de entrega, liberação e pertença
encontramos uma relação muito obscura que se anuncia a partir de “uma fruição
cuja propriedade essencial é deixar ser”.332 A intérprete nos coloca que, para
Heidegger, não há de forma alguma um abandono ou indiferença nesse deixar,
mas, ao contrário, um cuidado e apego, pois deixa o que é usado em sua essência.
Fala-nos, pois, de uma salvaguarda.
331
Carol White, “Heidegger and the greeks”, in: Hubert Dreyfus e Mark Wrathall, A companion to
Heidegger, 2005, p.125. Tradução nossa.
332
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.128. Itálico da autora.
109
que o termo Brauch diz respeito não só à necessidade do ser, como também à
maneira pela qual a sua relação com o homem responde a essa necessidade,
“utilizando”333 o homem. Segundo Haar, para Heidegger, “o homem manter-se
(nesta relação) significa a mesma coisa que: o homem, como homem, ser
essencialmente, im Brauch, mantido.”334 O intérprete entende que o ser nos
mantém e, ao mesmo tempo, mantém-se em nós na medida em que somos
necessários para ele, ou seja, expressa-se no apelo do ser (Anspruch)335 uma dupla
necessidade: primeiro, a necessidade de despertar no homem uma resposta ao ser,
e segundo, a própria necessidade do ser dessa resposta. Para Haar, a manutenção
do ser em relação ao homem determina uma necessidade que “compele”336 o
homem ao ser, e que essa relação não se completa enquanto o homem não for
capaz de pensar o ser, pois é no pensar que o homem cumpre essa realização. O
autor compreende que, para Heidegger, é o pensar que realiza (vollbringt) a
relação do ser com o homem.
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333
Grifo do autor.
334
Martin Heidegger apud Michel Haar, Heidegger and the essence of man, 1993, p.129. Tradução
nossa.
335
An.spruch Sm, [...] 2. reivindicação, exigência, reclamação. (cf. [online] Disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/escolar/alemao/definicao/alemao-portugues/anspruch_40594.html
Acesso em: 27/9/2014.
336
Grifo do autor.
337
Grifo nosso.
338
Grifo do autor.
339
O tradutor utiliza o termo handle entre aspas, cujo sentido, além de nos direcionar para o “lidar
com”, “cuidar de”, “ocupar-se de”, também infere o “manusear”, trazendo, assim, ao Brauch a
ideia de “uso e manuseio” inferidos por Heidegger. (cf. [online] Disponível em:
http://dictionary.cambridge.org/dictionary/english-portuguese/handle_1 Acesso em 27/9/2014.)
110
para com as coisas presentes. Para Heidegger, a inferência trazida pelo termo
Brauch seria, então, “o modo como o próprio ser está a ser (west) enquanto
relação com o que está presente – uma relação que diz respeito ao que está
presente enquanto tal e que o maneja: 5ò 641>8.”340 Isso significa, segundo Haar,
que o “deixar ser”341 mantém o que é na própria essência, ou seja, mantém o que é
no seu próprio e chama o homem a pensar o que lhe é o mais próprio,
conservando-o como algo presente.
340
Martin Heidegger, Caminhos de floresta, Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian,
2012, p.434.
341
Grifo nosso.
342
Grifo do autor.
343
Michel Haar, Heidegger and the essence of man, 1993, p.133. Tradução nossa.
344
Grifo do autor.
345
Grifo do autor.
346
Grifo do autor.
111
347
Grifo do autor.
348
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e Escritos
Filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.358.
349
Ibidem, p.358.
350
Ibidem, p.358.
351
Emmanuel Carneiro Leão, “Introdução”, in: Martin Heidegger, Sobre o Humanismo, Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.15. Maiúsculas do autor.
352
Grifo do autor.
112
pensar e nos revela o seu ser original. Segundo Inwood, não estamos aqui
circunscritos ao escopo de meras palavras, mas de palavras essenciais, as quais
exprimem ações que nos dão conta daqueles instantes em que uma centelha de luz
ilumina o mundo. De acordo com Heidegger, desde Platão e Aristóteles, esses
verbos se apresentam como caminhos essenciais do pensar.355 Sabemos, contudo,
que o filósofo busca uma compreensão para os termos que antecede os
significados a eles atribuídos pela tradição metafísica. Para Heidegger, há no
!7#1.8 e no 8$1ῖ8 uma relação de pertença mútua que denota algo de essencial. O
filósofo compreende que esses vocábulos não estão no enunciado de Parmênides
de forma impensada ou descuidada. De acordo com Zarader, para termos alguma
compreensão da articulação entre o !7#1.8 e o 8$1ῖ8, e de tudo aquilo que daí
resulta para o caminho do pensar, devemos nos direcionar a essas palavras e
buscar ouvi-las naquilo que originariamente nomeiam.
353
Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.126. Itálico da autora.
354
Grifos nossos.
355
Vimos anteriormente como a lógica foi compreendida como a doutrina do !"#$% e, a partir
disso, como o !"#$% se relacionou à doutrina do pensar determinando, assim, todo o destino do
pensamento ocidental.
113
lo? Por certo não é do falar no sentido do uso do aparelho linguístico que
Parmênides se refere aqui. Em que sentido, então, podemos entender o !7#1.8?
Segundo o filósofo, !7#1.8 significa incontestavelmente: dizer, relatar, narrar.
Heidegger também nos aponta que o verbo !7#1.8 é o mesmo que em latim legere
e em alemão legen. Na construção de seu significado, a partir dos elementos que
compõem o termo, o filósofo encontra em seu tronco linguístico as palavras: pôr,
propor, expor e dispor reflexivamente. Segundo Heidegger, é certamente nesse
sentido que os gregos pensavam o !7#1.8. Na esteira desse caminho, faz-se
necessário refletir que há aqui uma ambiguidade, pois o !7#1.8, mesmo
significando “dizer”356, tem no pensamento grego o sentido de “pôr”.357 Uma
forma, sem dúvida, estranha de representação da língua que ressalta a
plurivocidade da palavra grega. Mas, como podemos chegar a essa compreensão?
para a intérprete, o sentido próprio dos termos deve ser interrogado a partir do
significado fundamental da palavra !"#$/. O próprio Heidegger nos lembra que o
substantivo !"#$/ liga-se ao verbo !7#1.8 e que em sua raiz latina (legere), e no
próprio alemão (lesen), encontramos a ideia de colher, apanhar. O sentido
atribuído a ler é apenas uma variação do ajuntar, embora, segundo o filósofo,
tenha tomado o primeiro plano.358 De acordo com Heidegger, o vocábulo alemão
lesen significa juntar coisas e colocá-las lado a lado como num conjunto.359 Assim,
o primeiro sentido de !"#$/ é colheita. A partir dessa compreensão, Zarader nos
indaga: onde é que a colheita busca a sua essência? Para a autora, entende-se por
colheita “o levantar do chão (aufnehmen), reunir (zusammenbringen) e conservar
(aufbewahren)”360 – atos que perpassam e permeiam uma colheita. Compreende-
se, pois, na essência da colheita, o pôr ao abrigo, o preservar e o conservar.
Segundo a intérprete, Heidegger nos oferece o termo recolha (sammeln) como
aquele que reúne, em seu escopo semântico, a compreensão dos três vocábulos.
Seria, então, recolha (sammeln) o termo heideggeriano para a essência da colheita
356
Grifo nosso.
357
Grifo nosso.
358
Cf. Martin Heidegger, “Logos”, in: Ensaios e conferências, Petrópolis, Rio de Janeiro:Vozes;
Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012, p.185.
359
Cf. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.149.
360
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.217.
114
estão assentadas da mesma forma que o mar. Zarader acrescenta que deixar
qualquer coisa assentar é deixá-la aparecer.364 Para Heidegger, o fundamental no
assentar é o fato de que o que se assenta vem à cena por si mesmo. Por outras
palavras: no assentar de algo, aquilo que se “põe”365 já encontra-se
antecipadamente assentado como marca de uma pertença ao seu próprio modo de
vir a ser. O filósofo se refere àquilo que singular e primeiramente se assenta, antes
mesmo de uma apreensão. Trata-se, pois, da compreensão de que aquilo que em
sua singularidade se assenta diante de nós é, antes de mais nada, algo que
previamente já encontra-se assentado. Assim, o mar, as árvores e as montanhas
“preexistem e manifestam-se a partir do seu assentar-se diante de nós”.366 Mesmo
que de forma impronunciada, isto é, antes mesmo de afirmarmos que algo é, esse
algo já é, já preexiste. A4ὴ: 5" !7#1.8 fica então – é preciso: o pôr, o deixar
assentar-se diante de nós. O filósofo afirma que, para os gregos, é a partir desse
pôr que a essência do dizer se determina, e, nessa mesma medida, que o
361
Michel Haar, em sua aproximação do logos ao mythos, também se refere ao vocábulo alemão
Versammlung, como aquilo que reúne em si, a reunião original, a essência da reunião.
362
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.218.
363
Para o jogo da derivação – !7#1.8 – legen – lesen – cf. Martin Heidegger,“Logos”, in: Ensaios e
Conferências, 2012, p.185ss.
364
Cf. Marlène Zarader, op. cit., p.134. Itálico da autora.
365
Grifo nosso.
366
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.173.
115
367
Grifo da autora.
368
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.220. Hífen da autora.
369
“µ3B7 - ἔ'$% ?$!&?1.4$8 "Bὸ8 @25ὰ 508B1 C.9-'< / 8<µᾶ8 ἄ-@$?$8 ὄµµ2 @2ὶ ἠ601--28
ὰ@$*08 / @2.D #!ῶ--28, @4ῖ82. Bὲ !"#<$. [...].”(cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar?
[em elaboração], p.167.)
370
Hífen do autor.
371
Martin Heidegger, op. cit., p.173.
116
ativa. No 8$1ῖ8, o que é percebido nos interessa de tal forma que o tomamos e
fazemos algo com ele. Trata-se de um perceber que tem como traço o pretender
(des Vor-nehmens). Segundo o filósofo, a forma substantivada de 8$1ῖ8 – 8"$/ ,
8$ῦ/ – nos fala de buscar sentido para algo e fazer isso de coração; não fala, de
forma alguma, daquilo que mais tarde ficou entendido como razão. Heidegger
entende que daí resulta que o 8$1ῖ8 pode significar também o farejar, cujo escopo
semântico associa-se ao pressentir (Ahnen). Todavia, numa dimensão puramente
lógica, esse pressentir perdeu-se de seu sentido original. Para o filósofo, o
vocábulo pressentir em seu sentido primevo se acerca da ideia de que algo vem
até nós, nos sobrevém, e, desse modo, se oferece à atenção para que aí a
retenhamos. Assim, o 8$1ῖ8 possui o traço do reter na atenção, na memória, no
coração, e se aproxima daquilo que anteriormente Heidegger entendeu por
Gedanc: memória, enlevamento. Heidegger traduz, então, o 8$1ῖ8 por “prestar-
atenção-a”372. Zarader nos coloca que o 8$1ῖ8 comporta uma dimensão ativa de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312399/CA
captura. Todavia, nessa apreensão não há uma dominação, o 8$1ῖ8 não se apodera
daquilo que é apreendido. Nessa captura ele apenas guarda em atenção, e, por
isso, é uma salvaguarda.373 Para Heidegger, “a atenção é a guarda que toma o
assentar-se diante de nós em sua verdade, que, todavia, carece em si mesma da
salvaguarda que no !7#1.8 é consumada como reunião”.374
372
Grifo do autor.
373
Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.135.
374
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.174.
375
Grifo do autor.
376
Marlène Zarader, op. cit., p.136.
117
inverso, pois prestar atenção àquilo que se assenta diante de nós, já denota
o movimento de um em direção ao outro. Heidegger percebe que a
minuciosa utilização de 51 – 51 articulando os verbos !7#1.8 e 8$1ῖ8 dão
um sentido especial à sentença. Não há aqui uma mera conjunção a unir os
termos, mas uma interação, um entrelaçamento. Segundo Zarader, com o
51 – 51 articulando os verbos !7#1.8 e 8$1ῖ8, não há uma sucessão, mas
uma mútua reciprocidade, uma co-pertença. Aquilo que Heidegger entende
por uma autêntica relação de articulação em que as partes devotam-se
mutuamente uma à outra.
iii. em terceiro lugar, é através dessa tradução que a sentença torna-se audível,
ela nos encaminha para o caráter primordial daquilo que se designou como
pensar. Heidegger nos aponta para o fato de que é na articulação entre o
!7#1.8 e o 8$1ῖ8 que podemos entender o que quer dizer pensar. Zarader
acrescenta que não devemos compreender o !7#1.8 e o 8$1ῖ8, como duas
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377
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.177.
378
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.137.
118
379
Grifos do autor.
380
Grifo do autor.
381
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.136.
382
Ibidem, p.136.
119
elucidar essa questão sem adentrarmos na relação entre o 8$1ῖ8 e o ser. Questão
que será tratada por Heidegger no fragmento III384 do poema, um pouco mais
adiante. Sigamos, pois, os passos do filósofo que se volta agora para a última
parte da sentença de Parmênides.
383
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.138.
384
Fazemos registro da diferença tipográfica ocorrida no escrito Was hei!t Denken? publicado
pela editora Max Niemeyer, na edição do ano de 1997, que grafou o fragmento III do poema de
Parmênides como V. O mesmo não ocorre na edição do ano de 2002 da editora Vittorio
Klostermann, à qual tivemos acesso. Uma possível explicação para essa divergência pode ser
encontrada no próprio escrito de Diels e Kranz sobre os fragmentos pré-socráticos. Na edição
revisada de 1960, cujo exemplar tivemos acesso, encontramos ao lado do fragmento III uma
marcação que diz: früher 5 (anterior 5). A contar pela data da revisão, supomos que Heidegger
tenha utilizado uma edição do livro ainda não revisada e, por isso, tenha lançado mão da primeira
numeração feita pelos autores. (cf. Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der
Vorsokratiker, p.231.)
385
Maiúscula do autor.
386
Grifo do autor.
120
facilitam a sua compreensão. Por outro lado, possuímos uma concepção de “ente”
que já nos aponta para tudo o que existe, uma vez que tudo que se assenta diante
de nós é.387 Sabemos, contudo, que a sentença de Parmênides não termina aí,
segue ainda uma última palavra: o vocábulo grego ἔµµ182., também entendido em
sua forma antiga como ἔ-µ182., que, por sua vez, encontra em 1ῖ82. a forma para
“ser”388. Segundo Heidegger, ambos os vocábulos “ente” e “ser” traduzem-se para
nós completamente esvaziados de sentido. Aí nada encontramos, apesar de os
termos se situarem no patamar mais elevado da filosofia e pretendermos já tê-los
compreendido. Zarader acrescenta que no sentido de capturarmos aquilo que “era
o ser na sua primeira destinação”389 devemos buscar entender a topologia desse
dizer, pois, se é fato que entendemos 1ῖ82. por ser, não temos nenhuma pista
daquilo que os primeiros pensadores pensavam ou experimentavam no dizer dessa
palavra. A autora entende que 1ῖ82. é, por excelência, uma palavra enigma, a
própria questão.390 Vejamos, de acordo com Heidegger, o que os vocábulos ἐὸ8
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387
Itálico nosso.
388
Grifo do autor.
389
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.42. Itálico da autora.
390
Cf. Ibidem, p.42. Em nota, no sentido de corroborar este pensamento, a autora nos concede uma
citação de Heidegger que diz o seguinte: “Que dizemos quando em lugar de 1ῖ82., dizemos “ser”,
e em lugar de “ser”, 1ῖ82. e esse? Não dizemos nada. Quer seja grega, latina ou alemã, a palavra
conserva-se igualmente obscura.” (cf. A partir de Einleitung zu “Was ist Metaphysik?”, in:
Wegmarken, Klostermann, Frankfurt/Main, 1967, p.205.)
121
conosco”394, ou seja, é a língua que joga o tempo todo com o dizer do homem,
tornando, com isso, um verdadeiro empreendimento uma aproximação ao sentido
mais próprio das palavras. É, pois, segundo Zarader, na escuta atenta ao jogo da
língua que é possível ouvirmos que na duplicidade do ἐ"8 revela-se uma
“necessidade Historial”395 e não apenas uma contingência gramatical. Segundo a
autora, isso significa que foi dessa forma, através de uma duplicidade, que o ente
se desvelou àqueles que buscavam nomeá-lo em sua totalidade. Não que tivesse
havido um pensamento sobre essa destinação, mas, certamente, um habitar que os
aproximava da essência da linguagem, cujo manifestar se dava a partir da Dobra
do ser. Zarader entende que essa questão se situa numa obscura região pré-
metafísica, e que na origem isso não era um problema, nem mesmo uma
interrogação, deu-se como um acontecimento, um acontecimento que teve lugar
na aurora da nossa história. Assim, ao dizerem o ser, já o faziam a partir da dobra.
Para a intérprete, a palavra original é privilégio dos pensadores matinais, mesmo
que neles ainda não encontremos esse questionamento.
391
Cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.187.
392
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.177.
393
Ibidem, p.177. Maiúscula da autora.
394
Martin Heidegger, op. cit., p.99.
395
Grifo nosso. Maiúscula nossa.
122
por Parmênides e fazia parte de uma experiência viva na qual a totalidade do seu
pensamento se desenvolvia. Todavia, segundo a autora, com Platão demarca-se o
seu desaparecimento. Ainda assim, isto não significa que a Dobra deixe de existir
e sustentar o pensamento, mas se o faz é apenas como um sinal. Não o faz mais
como com os pensadores originários, na forma de uma experiência desdobrada em
palavra dita.399
396
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.189. Itálico do autor.
397
Grifo do autor.
398
Martin Heidegger, op. cit., p.193.
399
Cf. Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, pp.180-181.
400
Grifo do autor.
123
401
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.190.
402
Grifo do autor.
403
Grifo nosso.
404
Grifo do autor.
405
Martin Heidegger, op. cit., p.196.
124
como forma arbitrária de uma mera afirmação. Nesse salto, ἐό8 nomeia a coisa
presente (das Anwesende) e ἔµµ182., a antiga forma de 1ῖ82., nomeia o
presentificar-se (anwesen). Heidegger entende que ao menos nesse nomear o ἐό8
e o ἔµµ182. não se dissolvem nas formas indeterminadas notadamente
pertencentes a “ente” e “ser”, pois tanto aquilo que se faz presente quanto o
presentificar-se designam uma duração, algo que permanece diante de nós.
Todavia, o filósofo nos coloca que esse sentido não vem à palavra em sua forma
clara, muito menos se decide sobre Aquilo406 em que repousa esse “presentificar-
se do que se faz presente”407, pois nem tudo se presentifica do mesmo modo.
Heidegger nos mostra que a palavra “presentificar-se”408 em alemão diz-se
anwesen e essência, wesen. Essência, entendida em sua forma verbal409, tem o
sentido de estabelecer-se, morar, permanecer. O verbo wesen nos fala, pois, de
uma permanência duradoura. No entanto, Heidegger nos explica que para os
gregos a palavra essência não tem apenas o mero sentido de duração. Ela é
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406
Maiúscula do autor.
407
Grifo do autor.
408
Grifo nosso.
409
Anteriormente detivemo-nos brevemente no vocábulo alemão Wesen. Todavia, nesta parte de
Que chamamos pensar?, Heidegger o retoma em sua forma verbal. Para o filósofo, o uso verbal de
wesen no alemão antigo pode ser entendido com o sentido de duração. Heidegger nos conta que o
antigo termo alemão tem origem no antigo hindi “vásati”, e quer dizer: ele mora, ele permanece. O
verbo alemão fala de uma permanência duradoura. Em nota, Lyra acrescenta que: “o substantivo
alemão Wesen, […], aceita a forma verbal wesen (algo como ‘consubstanciar’ ou
‘substancializar’), de todo implícita na ideia de anwesen como ‘presentificar-se’.” Para o tradutor,
“anwesen pode conotar, de fato, ‘propriedade efetivamente demarcada’, lugar que se possui […]”.
(cf. Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.200.)
410
Grifo do autor.
411
Martin Heidegger, op. cit., p.201.
125
entre ausência e presença. O autor nos fala que nada é mais íntimo ao ser, ao
menos naquilo que os gregos experimentaram nessa relação, do que aquilo
expresso pelos prefixos ?249 e ἀ?". Segundo Beaufret, essa diferença é tão
essencial que, sem esse contraste, a palavra ser, isoladamente entendida, perderia
totalmente o seu sentido fundamental. O intérprete entende que o ser é a essência
daquilo de que falam esses prefixos: o jogo incessante da presença e da ausência,
cuja oposição se dá apenas superficialmente, pois, mesmo aquilo que está ausente
está presente de certa maneira.
412
Itálico do autor.
413
Grifo nosso.
414
Grifo nosso.
415
Jean Beaufret, Dialogue with Heidegger: Greek Philosophy, 2006, p.43.
126
cada vez mais deslocado desse caminho, tornando-se cada vez menos digno de
questão. Entraram em cena outros traços do ser do ente que, como vimos,
interditaram o caminho e trouxeram o homem ao trágico destino das maquinações
tecnológicas. Vejamos como podemos nos aproximar desta difícil compreensão.
entre ser e presença. Entretanto, segundo a autora, nessa relação algo permanece
impensado. Zarader nos indaga se aquilo que permanece impensado foi o ser
experimentado como presença ou a presença em sua relação com o tempo? Para a
autora, apesar do ser ter sido experimentado como presença, não consideraram sua
dimensão temporal. Por isso, na medida em que presença e tempo se relacionam,
tanto um quanto outro permanecem impensados. Assim, no sentido de tornar clara
a identidade entre ser e presença devemos nos ater ao tempo. Mas, como entender
esta questão nodal de forma a clarear a sentença de Parmênides?
Vimos, com Heidegger, que o ἐό8 nomeia o que se faz presente (das
Anwesende) e o ἔµµ182., o presentificar-se (anwesen). Vimos, também, que a
presença (Anwesen) não foi experimentada pelos gregos na aurora do pensamento
com o traço da duração, mas como um “continuar-a-ser”, algo que possui em si
uma cifra de ausência e presença. Zarader nos lembra que “a presença foi
experimentada por eles não como uma permanência, não como uma manifestação
horizontal de uma extensão temporal [...], mas como uma irrupção abrupta, como
um acontecimento, [...].”418 A autora conta que Heidegger chegou a criar um
neologismo para dar conta desta modalidade do Anwesen: Anwesung. Esse
416
Itálico da autora.
417
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.294. Grifos da autora.
418
Ibidem, p.296.
127
Todavia, mesmo tendo feito essa diferenciação, Zarader diz que Heidegger
utilizou o termo nesse sentido apenas entre os anos de 1939 e 1940 e o perde de
vista ao estendê-lo à “presença constante”, própria da tradição metafísica.420
Ainda assim, Zarader entende que, embasada pela definição acima, o termo nos
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419
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.297. A
citação é feita a partir do escrito “Vom Wesen und Begriff der E&-./”, in: Wegmarken (GA9),
Klostermann, Frankfurt/Main, 1967, p.342.
420
Em nota, Zarader nos fala que o termo Anwesung é utilizado pela primeira vez na conferência
Wie wenn am Feiertge, sobre Höelderlin, em 1939, e depois ocupa um lugar central em dois outros
textos: Vom Wesesn und Begriff der "#$%& e Platons Lehre von der Warheit, ambos de 1940. A
autora nos coloca que depois disso o termo é abandonado. Zarader entende que o uso
demasiadamente amplo o tornou inoperante (cf. Ibidem). Grifo da autora.
421
Ibidem, p.298.
422
Grifo nosso.
128
se faz presente fica, então, entendido por Heidegger como aquilo que se demora
por um tempo (Das Anwesende ist das Je-weilige); uma demora transitória, uma
vez que é passagem entre a chegada e a partida para uma nova ocultação. Isto
significa que o presente enquanto durar transitório manifesta-se neste “entre” que
é o intervalo, o acontecimento que reúne e constitui a sua presença.425
423
Zarader entende que foi por conta disso que a tentativa de Heidegger em Ser e tempo terminou
num impasse. A autora diz que Heidegger buscava, com a analítica do Dasein, chegar ao
desvelamento do ser como presença, e, assim, “retroceder até o horizonte da temporalidade”. Mas,
“partindo do ser ontologicamente interpretado” encontramos apenas o presente, o qual não nos
permite uma captura do tempo autêntico. O presente somente nos concede um tempo que se
relaciona com o ente, exatamente porque dele advém. (cf. Marlène Zarader, Heidegger e as
palavras da origem, 1990, p.300.)
424
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, nota 15, p.116.
425
Itálico da autora. Grifo nosso.
129
que o ser está a ser”.426 Segundo o filósofo, considerar o ἐ"8 como a presença do
que se faz presente seria, portanto, uma forma de atentar para isso, pois o seu
dizer já fala em nossa língua, antes mesmo que o pensamento lhe dê atenção e o
nomeie. O pensamento apenas conduz à palavra falada aquilo que encontra
manifesto em seu dizer. De acordo com Zarader, o pensamento é a resposta a um
chamado que lhe antecede e que “[...] lhe vem da própria língua na qual se abriga
e reserva ‘a riqueza essencial do ser’”.427 A autora entende que com o advento da
metafísica, o nada que abrigava o ser preencheu-se de ente428 e, com isso, a
presença retira-se em favor do presente não permitindo mais o acesso à dimensão
temporal do ser. O próprio Heidegger, como vimos, nos coloca que com o tempo,
“o presentificar-se do que se faz presente” distanciou-se desse caminho, tornando-
se inquestionado.
426
Martin Heidegger, Caminhos de floresta, 2012, p.411.
427
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.118.
428
Cf. Ibidem, p.302.
429
Grifos nossos.
430
Marlène Zarader, op. cit., p.138.
130
dois termos evidenciada pelo 5ὸ 2ὐ5ὸ. Diz Heidegger: “Pensar e ser tem lugar no
mesmo e a partir deste mesmo formam uma unidade”.434 Mas, como é possível
pensar que numa diferença pode haver um copertencimento?
431
Grifo do autor.
432
Grifo nosso.
433
Grifo da autora.
434
Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos
filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.175. Em nota, o tradutor nos coloca que este
comum-pertencer acentua que, além de estarem imbricados num recíproco pertencer, através desta
reciprocidade, ser e pensar “fazem parte de uma unidade, da identidade, do mesmo”.
435
Grifo da autora. Zarader reporta-se aqui ao escrito Einführung in die Metaphysik. (cf. Marlène
Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.139.)
131
436
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.139.
437
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.140.
438
Martin Heidegger, “Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos
filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.174.
439
Ibidem, p.182.
440
Ibidem, p.182.
441
Em nota do tradutor, Stein nos coloca que “o salto no abismo, no sem-fundamento (Ab-
Grund), é o jogar-se no ser, assumir o pertencer ao ser”. Segundo o tradutor, compreende-se esse
pertencimento quando Heidegger nos diz, em O princípio da razão, que “Ser e fundamento
pertencem à unidade. Do fato de fazer parte do ser, o fundamento recebe sua essência. E vice-
versa, da essência do fundamento surge o domínio do ser enquanto ser. Fundamento e ser (‘são’) o
mesmo, não o igual, o que já indica a diversidade dos nomes ‘ser’ e ‘fundamento’. Ser ‘é’
essencialmente: fundamento. Assim, o ser nunca pode primeiro ter um fundamento que o
fundamente. O fundamento fica dessa maneira afastado do ser. O fundamento fica ausente do ser.
No sentido de uma tal ausência de fundamento do ser, o ser ‘é’ sem-fundamento (ab-grund),
abismo. Na medida em que o ser enquanto tal é fundamento em si mesmo, permanece ele mesmo
sem-fundamento.”(cf. Ernildo Stein, nota do tradutor, in: Ibidem, p.178.)
442
Jean Beaufret também nos adverte quanto ao fato de entendermos essa identidade como aquela
inferida por Aristóteles: como se pertencesse e fosse uma característica fundamental do ser. Para o
intérprete, ao contrário, devemos entender que é o ser que pertence a esse mesmo que é mais
elevado – a identidade; que forma, a partir daí, a sua identidade com o pensamento. (cf. Jean
Beaufret, Dialogue with Heidegger: Greek Philosophy, 2006, p.40.)
132
Nesse sentido, o 5ὸ 2ὐ5ὸ não nos fala de um traço do ser, mas nos diz que ser e
pensamento “só são o que são porque procedem deste ‘mesmo’ que, determinando
a sua relação, é o único a poder conceder-lhes a sua essência respectiva”.443 De
acordo com a autora, a compreensão heideggeriana original do “mesmo” nos leva
ao seguinte entendimento: o 5ὸ 2ὐ5ὸ, ao invés de ser um predicado para ser e
pensar, passa a ser o sujeito autêntico da frase, pois é a partir deste “o mesmo”
que ser e pensar se co-pertencem. O equívoco da interpretação metafísica sobre a
questão da identidade, segundo a intérprete, recai exatamente no fato de que
atribuiu-se ao ser uma identidade como se esse já fosse conhecido. Zarader nos
coloca que, através do 5ὸ 2ὐ5ὸ compreendido por Heidegger, temos nosso
caminho iluminado por aquilo que possivelmente foi a experiência inicial do
ser.444
443
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.140.
444
Em nota, Zarader nos coloca a diferença entre as duas formulações sobre a Identidade. Diz a
autora: “Notar-se-á em particular as duas formulações por meio das quais Heidegger caracteriza,
por um lado, a doutrina da metafísica, por outro, o dito de Parmênides. A primeira enuncia-se Die
Identität gehört zum Sein, e a segunda: Das Sein gehört in eine Identität.” Algo, respectivamente,
como: “a identidade pertence ao ser” e “o ser parte de uma identidade”. Segundo a autora, esta
compreensão nos é dada a partir do escrito de Martin Heidegger, Identität und Differenz, Neske,
Pfullingen, 1957, p.16-19. (cf. Ibidem, p.140.)
133
recai sobre a questão da unidade.445 Para Mugerauer, Heidegger nos apresenta que
ser e pensar apesar de diferentes pertencem ao mesmo e que, diferentemente da
concepção metafísica que estabelece a identidade como pertencente ao ser, é, ao
contrário, o ser que pertence à identidade. O autor nos chama a atenção, no
entanto, que nos primórdios do pensar ocidental a palavra identidade tem um
sentido diferente. Ali na origem, ser e pensar pertencem mutuamente ao mesmo e
em virtude do mesmo, e esse “mesmo” significa uma pertença. Mugerauer
entende que o pensar, experimentado e pensado a partir dessa pertença, somente
pode se desdobrar em resposta ao chamado do ser. Apesar de já sabermos que há
aí uma co-pertença, como podemos entender exatamente como o 8$1ῖ8 participa
do 1ῖ82.? Como se dá essa pertença?
Heidegger nos coloca que, à luz do fragmento VIII (34 et seq.), podemos
nos aproximar de uma compreensão daquilo que é o pensamento na sua
compreensão parmenidiana do fragmento III. O fragmento VIII anuncia na
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445
Mugerauer nos apresenta que, para Heidegger, o idealismo alemão compreendeu que o
“‘mesmo’ implica uma relação ‘com’, uma mediação, uma conexão, uma síntese: a identidade
como a unificação em uma unidade. Apesar de Heidegger reconhecer que o idealismo alemão
estabeleceu “um lugar para a essência em si mesmo sintética da identidade”445, essa formulação
resulta numa abstração, pois, segundo o filósofo, na relação mediada, a identidade só pode ser
representada abstratamente. (cf. Martin Heidegger apud Robert Mugerauer, Heidegger and
homecoming: The leitmotif in the later writings, 2008, 293.)
446
“ὀ* #ὰ4 ἄ81* 5$ῦ ἐ"85$/... 1ὐ40-1./ 5" 8$1ῖ8”. (cf. Martin Heidegger, Que chamamos
pensar? [em elaboração], p.205.)
447
Itálico da autora.
134
448
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.142.
449
Ibidem, p.142.
450
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, ibidem, p.142.
451
Heidegger nos fala que o pertencer significa estar “inserido no ser”. (cf. Martin Heidegger,
“Identidade e diferença”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos filosóficos, 1996, p.177.)
452
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154. Esta
frase encontra-se na carta “Sobre o humanismo”. Em nota, Zarader nos oferece a frase no alemão
original: “Das Denken, schlicht gesagt, is das Denken des Seins.” (cf. Martin Heidegger, “Brief
über den Humanismus”, in: Wegmarken (GA9), Klostermann, Frankfurt, Main, 1967, p.148.)
135
453
Grifo nosso.
454
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.154.
455
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.117.
456
Grifos do autor.
457
Martin Heidegger, op. cit., p.207.
136
alcança a sua essência nesta salvaguarda. Mas, assim como Heidegger ao encerrar
as preleções do verão de 1952, também nós colocamos a última – e talvez a mais
crucial – pergunta feita pelo autor de Que chamamos pensar?: seria o pensar
capaz de nomear esta dádiva num dizer original?
458
Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, p.165.
459
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.205.
4. Considerações finais
460
Carlos Drummond de Andrade, “Procura da Poesia”, in: A rosa do povo, São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p.12.
461
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.153.
138
atitude reticente por parte do filósofo, mas devido à própria natureza que a
interrogação impõe: o que é que nos chama a pensar? O que é esse outro que nos
interpela? Zarader nos coloca que apesar do pensamento pertencer ao ser e
constituir a sua essência mais própria, não encontramos aí nenhuma evidência. A
autora nos rememora que é por conta de sua simplicidade462 que o mais essencial
não pode jamais ser habitado, a não ser no destino de uma longa caminhada, uma
caminhada em que o simples nomear da co-pertença do pensamento ao ser
significa uma luta contra toda a história do pensamento ocidental, pois esse “outro
pensamento não pode em absoluto aparecer, e no entanto é”.463
462
Ao final de Que chamamos pensar? o próprio Heidegger nos coloca o paradoxo de que o
aprender esse pensar é o mais difícil porque é simples. Diz o filósofo: “Só que aprender o pensar
dos pensadores é essencialmente mais difícil, não porque esse pensar seja mais complicado, mas
porque é simples, mesmo simples demais para a destreza do representar habitual.” (cf. Martin
Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.203.)
463
Martin Heidegger apud Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.153.
Itálico da autora.
464
Martin Heidegger, ‘Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e escritos
filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.348.
465
A introdução ao escrito “Que é metafísica?” foi escrito somente em 1949, enquanto que o texto
original, em 1929. Ambos os escritos, juntamente ao posfácio escrito em 1943, foram publicados
separadamente em Marcas do caminho (GA9).
139
marcha para sua matriz que vem do próprio ser, para, desta
maneira, corresponder ao ser enquanto tal.466
De acordo com Zarader, na visão de Heidegger, esse caminho não pode ser
outro que o da história, uma vez que é no homem que o ser tem a sua destinação.
É, pois, na história, ainda que de modo inaparente, que o filósofo vai buscar as
pistas para esse pensar. Todavia, ao jogar luzes nesse caminho, Heidegger percebe
que a tradição – de Platão a Nietzsche – não se ateve ao mais próprio do
pensamento, pois pensou o ser por medidas entitativas. Além disso, o filósofo
entende que o próprio ser se oculta e retrai. E, quando acontece desse pensar, ao
retrair-se, sair do seu elemento, ele acaba por instrumentalizar-se como !"#$% e se
466
Martin Heidegger, “Que é metafísica?”, in: Os Pensadores – Conferências e escritos
filosóficos, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.79.
467
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: Os pensadores - Conferências e escritos
filosóficos, (tr.) Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.370.
468
Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990, p.155.
469
Martin Heidegger, “Sobre o ‘Humanismo’”, in: op. cit., p.370.
140
470
Emmanuel Lévinas, “Prefácio”, in: Marlène Zarader, Heidegger e as palavras da origem, 1990,
pp.12-13.
141
471
Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.11.
472
Martin Heidegger, O Caminho do campo, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969, p.69.
Maiúscula do autor.
142
473
Martin Heidegger, Que chamamos pensar? [em elaboração], p.7.
5. Referências Bibliográficas
______. Che Cosa Significa Pensare? (vol.2); (tr.) Ugo Ugazio e Gianni Vattimo.
Milão: SugarCo Edizioni, 1979.
______. Entrevista: “Heidegger e a Política. O caso de 1933.” Entrevista
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