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tensão com a riqueza de experiência da humanidade. Nós v culo XVII, o fato de o conceito de "objeto" ter se estabelecido
vemos em um meio ambiente cada vez mais transforma 110 pensamento alemão. Essa palavra reflete muitas coisas.
pela ciência, um meio o qual quase já não ousamos mais "O bjeto" é aquilo que executa uma resistência, o que resiste
chamar de natureza, ao mesmo tempo que temos de viver em H imposição natural e à inserção nos acontecimentos da vida .
uma sociedade modelada pela cultura científica da era mo Nós enaltecemos isso na ciência como performance de obje-
derna. Nela há milhares de normas e regulamentos que aca tivação, com a qual ela chega ao conhecimento. Em primei-
bam por assinalar uma crescente burocratização da vida. Des i o plano, isso implica o medir e o pesar. Nós nunca podemos
sa maneira, como é possível não perder o ânimo para se mo nos livrar completamente do fato de que a nossa experiência
delar a própria vida? científica e médica está voltada, primeiramente, a uma subju-
gação dos aparecimentos de doença. Trata-se, por assim di-
Parece-me ser bem significativo o fato de que uma ex
Ler, de uma subjugação da natureza, ali onde a doença se ma-
pressão como "qualidade de vida" tivesse de ter sido inventa
nifesta. O importante é que se domine a doença.
da na civilização progressista e técnica de nossos dias. Ela
pretende descrever o que sofreu neste meio-tempo. Contudo, Através da ciência moderna, a natureza, com auxílio do
na verdade é um tema muito antigo da humanidade o ter de e xperimento, é forçada a fornecer respostas. A natureza é como
"conduzir" sua vida e ter de se perguntar como se deve con· que torturada. Libertar-se dos preconceitos remanescentes e
duzi-la. Isso não vale somente para os homens europeus, mar· partir para todas as direções em busca de novas experiências
cados pela ciência. Trata-se de um tema muito antigo, exis- são características provenientes do grande impulso do sécu-
tente mesmo nas sociedades onde ritos religiosos e saberes lo XVII. Deve-se deixar claro o seguinte: não é por acaso que
de cura determinam o cuidado com a saúde e são dominadas a palavra "totalidade", tão empregada hoje em dia, seja uma
por determinados líderes e grupos sociais como as curandei- formação lexical bem recente. Não se encontra essa palavra
ras e os curandeiros. Por toda a parte paira a pergunta inevi- nem mesmo nos dicionários do século XIX. Para que tal acon-
tável, se não é a experiência acumulada que lentamente con- tecesse, fora antes necessário que o pensamento metódico
duz à fixação e ao desenvolvimento de práticas, as quais de- da ciência matemático-experimental tivesse se imposto de tal
vem ter sido resguardadas e se mantiveram válidas, mesmo forma na arte de curar que se sentisse perdido no labirinto da
que ainda não as encontremos resguardadas e não conheça- especialização e se perdesse a orientação para o todo. Todos
mos nada dos motivos dos seus efeitos. Isso, certamente, de- nós nos encontramos sob o impulso da nossa própria auto-
terminou a vida da humanidade em todos os primórdios de certeza e autoconvicção metódica, que está ligada com a ci-
cada época, não somente na esfera da saúde e da doença. Nas entificidade e a objetividade. Mas não se deve acreditar que se
questões vitais sobre saúde e doença sobressai, em especial possa simplesmente dar as costas a essa lei. Espero que o
medida, apenas a tensão básica de nossa civilização funda- fato de estarmos aqui reunidos seja sinal de que todos faze-
mentada pela ciência. É isso que procuro sugerir através do mos parte de uma tarefa que seja colocada sob o lema da to-
título: Sobre o caráter oculto da saúde. talidade, mais ainda por todo aquele que leva a ciência a sé-
rio. Ela vale para cada médico, cada paciente e ainda mais
Quando se pretende definir a ciência médica, pode-se, en-
para todos aqueles que não desejam se tornar pacientes - _o_s
tão, defini-la, antes de tudo, como a ciência da doença. A do-
quais, afinal, somos todos nós. Infelizmente, temos de adn:~tlr
ença é aquilo que se impõe como a perturbação, o perigoso,
para nós mesmos que o que se seguiu ao progresso da c!en-
com o qual se tem de lidar. De modo que se ajusta bem ao
cia foi o enorme retrocesso no cuidado geral com a s aúde
grande clima estimulador de inovações, sob o qual se encon-
trava a moderna ciência no limiar da era moderna desde o sé- e na prevenção de doenças.
112 Snbre o caráter oculto da saúde 113
De qualquer modo, fica claro que o conceito de o importuno. Eu quase cheguei a afirmar que ela, pela sua es-
de" é uma expressão engenhosa que, através de seu ""'ntr•~· Hencia é um "Cãso". De fato, também se diz que algo é caso
conceito, a "especialização", tornou-se necessária e expressl de do~nça. O que significa ''caso"? O usad a palavrã deriva,
va. Especialização é a tendência irreprimível da ciência mo se m dÚVida, do jogo de aados. "Caso"'significa, pois, aquilo
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derna e de todos os seus procedimentos metodológicos. A lei que cabe a alguém no jogo de dados da vida • A partir dai a
da especialização, como é sabido por todos, certamente não palavra seTrifiltrou na gramática e n~sua regra de declinação
se limita somente ao desenvolvimento da ciência e da prátl c designa o_p..apel que cabe a um substantivo no contexto da
ca médica. Em todas as disciplinas da pesquisa científica nos lrase('~o" significa em grego ptosis, em latim casus). As-
encontramos, antes, perante a mesma situação produzida sim também é com a doença, pois ela é como ~a~so .!:_
também algo que cãbe -;~guém • A palavra grega 5..bJ!!!EÉ.fi\
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pelo isolamento metodológico de todas as áreas objetivas
cientificas, a qual nos obriga a um esforço interdisciplinar. signiftca, na verdade, acaso/algo que cabe a alguém (Zufall) e
Aquelas á reas que não podem, de maneira alguma, ser domí· também é empregada em grego para a notabilidade de uma
nadas pelo recurso da verificação metódica, chegam mesmo doença. Ela designa aquilo que, normalmente, torna-se notável
a ser definidas como zonas cinzentas, e com esse conceito de- numa doença. Voltamos a nos ocupar aqui com o fato de que o
signamos não apenas aquelas coisas que, evidentemente, se- verdadeiro mistério está no aspecto oculto da saúde. _!:la~
jam desvarios. Um exemplo seria a astrologia. É possível al- se declara por si me~ma. Claro que é possível estabelecer va-
guém esclarecer, de fato, como se pode fazer afirmações tão lores padrões para a saúde. Mas quando, por exemplo, se qui-
surpreendentes sobre os destinos humanos com base em ho- sesse impor esses valores padrões a uma pessoa saudável, o
róscopos, as quais acabam por se confirmar? Pode-se manter que conseguiriamos seria, antes, deixá-la doente. Habita, pois,
cético em relação a isso. Pode-se também ter suas próprias na essência da saúde manter-se dentro de suas próprias me-
experiências. De qualquer forma, não se pode explicar isso. Na didas. A saúde não permite que valores padrões, transferidos
realidade, há inúmeros exemplos sobre os quais a ciência não ao caso singular com base em experiências médias, i~po- r;
pode afirmar o que um determinado procedimento pode reali- o. -lo~c.
nham-se ' pois isto seria algo inadequado. ef,..., ~-~ .. -
ooc>c
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zar na práxis. Há muito conhecemos, por exemplo, a homeo- Utilizei propositalmente a expressão "inadequado" para
patia como uma dessas áreas. Até mesmo os mais bem-inte- tornar consciente que aplicações de regras, com base em
cionados entre os clínicos céticos a designaram "udenopatia" valores de medida, não é algo natural. As medições, seus pa-
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(Oudenopathie) e achavam que através desses medica- drões de medida e os procedimentos de medida servem-se de
mentos, de pequenas doses homeopáticas , na realidade, uma convenção, com a qual nos aproximamos das coisas e
absolutamente nenhum efeito era exercido e somente se as submetemos à mensuração. Mas há também uma medi-
mantinha a aplicação de tais medicamentos porque eles exer- da natural que as coisas carregam em si mesmas. Se não se
ciam um ótimo efeito de cura contra o abuso dos medicamen- pode medir verdadeiramente a saúde é por ela ser um estado
tos químicos.
O fundamental permanece: a doença, e não a saúde, é
o auto-objetivante, quer dizer, o lançar-se contra, resumindo, 31. "Caso" significa em alemão Fali, e assim foi traduzido. Já a minha tra-
dução "caber a" refere-se ao verbo zufallen, o qual contém a palavra fali.
Em alemão fica claro a semelhança entre as duas palavras, o que não ocor-
re em português [N.T.].
30. Ouden, do grego: "nada", aqui no sentido de não fazer absolutamente 32. Zufall em alemão tem este sentido duplo, conforme explicado acima
nada. [N.T.].
Sobre o caráter oculto da saúde 115
114 Ocaráter oculto da saúde
da adequação interna e da conformidade com si próprio, que "Bem, na verdade os antigos estetoscópios eram melhores
pa ra se ouvir. Mas não posso julgar se sua autoridade é sufi-
não pode ser superado por um outro controle. Por isso, faz
ciente". Com a palpação também é assim. Quem a realmen-
sentido perguntar ao paciente se ele se sente doente. Tem-se
a impressão que no ser-capaz-de-fazer do grande médico fre te domina pode sentir algo e todo o bom médico deveria ten-
quentemente concorrem fatores de sua mais secreta expe tar aprender a empregá-la.
riência de vida. Não é apenas o progresso c ientífico da medi Eu confesso q ue soa um pouco catedrático se, no caso
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cina clínica ou a infiltração de métodos químicos na biologia ele "tratamento", deva-se pensar na mão • M_as a sabedoria
q ue faz o grande m édico. Esses são todos progressos da pes catedrática nem sempre é um contrassenso. As vezes é bem
q uisa que possibilitam ampliar os limites do auxílio médico, conveniente saber também sobre algo assim. Depois de ter-
perante os quais outrora se estava desamparado. Pertence mos esclarecido a o rigem da palavra palpação, prossigamos,
à arte de curar, no entanto, não somente o combate efetivo e ntão, a questionar: o que significa, de fato, "tratar"? Mais uma
contra a doença, mas ta mbém a reconvalescença e , por fim, vez o uso linguístico usual ultrapassa o significado da situa-
o cuidado com a saúde. ção médica. Sem que sejamos médicos, também nos tratamos
entre nós, às vezes bem, às vezes mal. Nesses momentos, o
Eu gostaria novamente de esclarecer a partir de um em· que estamos fazendo na realida de? O que isso significa? Fica
prego linguístico, como é justamente considerada, e m tudo, claro que a tarefa se constitui em tratar alguém "corretamen-
a adequação interna, a conformidade interna, a qual não se te". Isso q uer dizer que estamos c ump rindo uma norma ou se-
pode medir. Espera-se do médico que ele "trate" seus pacien· g uindo uma regra? Eu creio, antes, que nos dirigimos corre-
tes33• "Tratar" significa palpare, quer dizer, tocar o corpo do tamente ao outro, não o vio lentamos, não o importunamos de
doente com a mão (apalpa) cuidadosa e sensive lme nte para, qualquer forma, não lhe impomos, por exemplo, uma medida
com isso, perceber tensões e contrações que talvez confirmem ou um preceito. Quer se trate da regularização de normas atra-
ou corrijam o diagnóstico subjetivo do paciente, o qual se de- vés de aparelhos de medição modernos ou do despotismo
signa dor. A fun ção da dor na vida é a de que a sensação subje- educacional de uma instituição escola r ou da fúria autoritária
tiva aponta para uma perturbação na estrutura de equilíbrio de um professor ou de um pai, a tudo isso se contrapõe o reco-
do movimento da vida que constitui a saúde. Conhece-se bem nhecer no outro o seu ser-diferente. Somente dessa maneira se
o problema - sobretudo na consulta ao dentista - de como é poderá orientá-lo um pouco de modo que ele saiba encon-
difícil localizar uma dor. Por isso, pode-se até mesmo "deduzir" trar seu próprio caminho, que lhe seja próprio. Tratamento sem-
a dor também, por exemplo, simplesmente com a mão. De qual- pre implica, ao mesmo tem po, permissão e não apenas a pres-
quer modo, a ação do médico, quando ele possui tal capaci- c rição de regulamentos ou de receitas. Na verdade, fica claro
dade, permanece sendo uma verdadeira arte. para o médico quando se diz que fula no e beltrano estão sob
o seu tratamento. Isso significa uma certa responsabilidade,
Há uma famosa história do grande Krehl, cujo nome soa
mas também uma certa assistência tolerante. De qualque r
familiarmente como um mito a todo médico de Heide lbe rg.
modo nenhum médico deveria ser tão atrevido a ponto de
A história também é tão verdadeira como um mito. Em 1920
q uere; dominar o paciente. Ele deve aconselhá-lo e auxiliá-lo
havia sido introduzido o estetoscópio e létrico e os estudantes
quando pode e sabe que o paciente estará sob o seu tratamen-
perguntaram a Krehl se esse aparelho era melhor. Ele disse:
to somente até a sua recuperação.
Todo tratamento serve à natureza. A expressão "terapln Não é por acaso que todas essas descrições preparató-
proveniente do grego, quer dizer serviço. Isso também req rias demoram-se nas experiências que se faz como doente.
um tipo de ser-capaz-de-fazer efetivo não somente contra a Mas o nosso tema verdadeiro é: "O aspecto oculto da saúde".
ça , mas também efetivo, precisamente, para o doente. Assir Ainda estamos objetivando esse tema do lado oposto. Mes-
em todo o tratamento há cautela e consideração. O m mo quando se diz que se conseguiu dominar a doença, no fi-
deve inspirar confiança com a sua capacidade, mas não deve nal já se separou a doença da pessoa e ela é tratada como um
colocar em jogo a autoridade quando quer ter autoridade. Por ser com vida própria, com o qual se tem de lidar. Isso até ga-
isso, os cirurgiões são, às vezes, assustadores quando dizem nha um sentido especial, se pensarmos nas grandes epide-
"Vamos retirar isso". Pode-se entender esse modo de se ex m ias, cujo domínio foi tão amplamente alcançado pela me-
pressar porque a cirurgia moderna funciona, de fato, como dicina moderna. Mas sabemos bem que em tais epidemias
um artesanato altamente elaborado. E o médico sabe bem que sempre são muitos doentes individuais que se tornam suas
está lidando com um organismo humano e precisamente o cl vítimas. E, no entanto, elas são como um ser com vida pró-
rurgião tem de considerar que, às vezes, trata-se de vida ou pria. As pessoas têm de tentar quebrar sua resistência, mesmo
morte. Enfim, permanece o fato de que o verdadeiro desem quando, por fim , voltem a surgir em algum lugar novas forças
penho do médico não consiste em fazer alguma coisa. Ele agressoras da natureza. No final de nossas reflexões se sabe-
pode colaborar com certas contribuições para o controle dft rá que a saúde sempre se encontra em um horizonte de per-
saúde ou para recuperá-la. Mas o que é, então, de fato, a saú turbação e ameaça.
de, esse a lgo misterioso, o qual todos nós conhecemos e do Mas cada doença isolada tem uma circunstância objetiva
qual, de alguma forma, precisamente por ser tão maravilho particular, tanto mais que em qualquer pessoa atuam fon-
so estar com saúde, não conhecemos nada? tes de erro particulares próprias de seres pensantes. Não nos
Com o conceito de tratamento procurei deixar claro o que, sentimos bem. Imaginamos coisas. Aquele que se depara com
na verdade, é exigido do médico em relação ao seu significa dificuldades em sua profissão logo reconhece a manifestação
do. De qualquer forma, não quer dizer dominar a vida de um de todas possíveis perturbações somáticas, já que o trabalho
ser humano. É certo que dominar alguma coisa é uma expres não está andando bem. Aqui em Heidelberg, a psicossomáti-
são muito utilizada no mundo moderno, por exemplo, em re ca não é totalmente desconhecida e, mesmo assim, carrega
!ação a uma língua estrangeira, ou, na medicina moderna, o um mérito geral de o médico se tornar cada vez mais cons-
dominar uma doença. Isso fica, com certeza, bem expressado. ciente do quanto e le depende da colaboração do paciente
No entanto, a sua validade está sempre condicionada a uma e como os mais comprovados modos de resultados sempre
restrição. Em toda a parte há limites. Assim, ao realizarmos voltam a depender de fatores individuais que surpreendem
algo conforme às regras, dizemos, com razão: "Isso nós já sa qualque r um.
bem os". Mas, no final, trata-se sim de algo mais. Pois não é Não cabe a mim falar sobre coisas que outros conhecem
apenas um caso de doença. De modo que não é tão extrema- melhor por experiência p rópria. No entanto, a medicina é, na
mente estranho - e suficientemente horrível - que, hoje, ao en- verdade, apenas um dos aspectos da vida social que nos co-
trar numa clínica, a pessoa perca seu nome verdadeiro e rece- loca diante de problemas através da ciência, da racionaliza-
ba um número. Tem sua lógica. Deve-se ser encaminhado ção, da automatização e da especialização. Sobretudo a es-
a um determinado departamento, já que se vai a uma clínica pecialização derivou de necessidades concretas- mas, quan ·
para uma consulta. No final, acabamos por tomar conhecimen- do ela se imobiliza na forma de costumes rígidos, torna-se lom
to de que se é um caso de alguma coisa. bém, ao mesmo tempo, um problema. O desenvolvim<•nto
I IH Ocaráter oculto da saúde Sobre o caráter oculto da saúde 119