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Rio de Janeiro
2013
Marcelo José de Carvalho
Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA
CDU1 (44)
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a
fonte.
___________________________ _________________________
Assinatura Data
Marcelo José de Carvalho
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Profª. Dra. Marly Bulcão Lassance Britto (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
_______________________________________________
Profª. Dra. Dirce Eleonora Sollis
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
_______________________________________________
Profª. Dra. Rosa Dias
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
_______________________________________________
Profª. Dra. Teresa Castelão Lawless
Grand Valley State University – Michigan, USA
_______________________________________________
Profª. Dra. Constança Marcondes Cesar
Universidade Federal de Sergipe
Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA
Concedei-me Senhor,
este projeto não teria podido realizar-se, portanto, divido o mérito com:
Edmundo Dias,
Kátia Rosendo
e com os adorado(a)s:
Elena Garcia,
Rosa Dias,
a joia rara e preciosa que foi a orientação de Marly Bulcão Lassance Britto
CARVALHO, Marcelo José de. Por uma filosofia do inexato: dinamismo de polaridades e
método em Gaston Bachelard. 2013. 279 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.
CARVALHO, Marcelo José de. Pour une philosophie de l’inexacte: dinamisme des
polaritès et méthode chez Gaston Bachelard. 2013. 279 f. Tese (Doutorado em Filosofia) -
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2013.
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 9
CONCLUSÃO........................................................................................................265
REFERÊNCIAS....................................................................................................274
9
INTRODUÇÃO
1
DE CARVALHO, M.J., O devaneio cósmico e o conhecimento de si – Gaston Bachelard – da alma poética
à androginia da alma; UERJ – 2007.
2
Quando nos referimos ao procedimento sui generis que pretendemos identificar na obra bachelardiana,
utilizando o termo metodologia de contradições não atribuímos o mesmo significado que as palavras teriam,
segundo a tradição do pensamento filosófico, mas, ao contrário, pensamos em uma filosofia do não, à qual o
autor se refere explicitamente.
10
Um filósofo que formou todo seu pensamento ligando-se aos temas fundamentais da
filosofia das ciências, que seguiu, o mais precisamente possível, a linha do racionalismo
ativo e crescente da ciência contemporânea, deve esquecer seu saber, romper com todos
os hábitos de pesquisas filosóficas, se quiser estudar os problemas colocados pela
imaginação poética. [...]. Se houver uma filosofia da poesia, essa filosofia deve nascer e
renascer no momento em que surgir um verso dominante, na adesão total a uma imagem
isolada, no êxtase da novidade da imagem. A imagem poética é um súbito relevo do
psiquismo.5
3
DAGOGNET,F.,1960, p.35.
4
“[...] son épistémologie comporte-t-elle à la fois une histoire de la vérité et une psychologie des erreurs”
THERRIEN,V, 1970.
5
BACHELARD,1994c, p.1.
11
Jamais o instante poético foi mais completo do que neste verso ondes se pode associar,
simultaneamente, a imensidão do dia e da noite. Jamais fizemos sentir tão fisicamente a
ambivalência dos sentimentos, o maniqueísmo dos princípios.6
Com tal procedimento será apontado que a paradoxal lógica das diferenças na unidade
proposta por Bachelard, nas mãos deste filósofo iconoclasta, transforma-se, por um lado,
em instrumento de revelação de um simbolismo oculto nas imagens que se mostram. Desta
forma, nos aproxima da origem da força imaginativa. Por outro lado, constitui a dinâmica
de fundo de uma reflexão filosófica capaz de conduzir o pensamento à profunda
modificação exigida como estratégia de abordagem e esclarecimento de novos saberes da
ciência contemporânea.
Aprofundando a temática desta breve introdução, cabe ressaltar a existência na
história da filosofia de um aspecto paradoxal que, desde seus primórdios, continua ainda
hoje a surpreender especialistas do pensamento humano. E não se trata da incógnita que
incumbe sobre as origens do ser, nem do universo; trata-se, ao contrário, do aspecto
misterioso que reveste qualquer explicação do encontro entre estes dois termos. O fato do
conhecimento, como abertura originária da consciência à realidade que a circunscreve,
originou a série de ismos que tentam descrevê-lo: realismo, idealismo, empirismo e
racionalismo, confirmando, portanto, a complexidade da questão que se caracteriza como
paradoxo, pois apesar destes íngremes desenvolvimentos teóricos que buscam seu
esclarecimento, a relação da mente com o mundo constitui, segundo opinião comum, uma
evidente convicção da cotidianidade.
No domínio desta ambiguidade, insere-se esta tese, como investigação sobre os
panoramas de abertura da racionalidade e do imaginário, propostos pela filosofia de
Bachelard, pesquisador criativo da resistência que o mundo inflige ao conhecimento, na
difícil conquista de uma relação positiva com a diferença, com o transbordamento que todo
“outro”, e mesmo o real em si, manifestam – ocultando-se persistentemente, diante dos
6
BACHELARD, (1939) “Instant poétique et instant métaphysique”, Paris: Stock,1992a, p.110. Do mesmo modo, em: La
Terre et les rêveries du repos (pp.290-322), Bachelard faz convergir ambiguidades na imagem da raiz, como metáfora da
vida subterrânea, que é capaz de sugerir o paradoxo de um devaneio em duas direções, pois trazendo a linfa da terra aos
ramos penetra o mundo dos mortos. A raiz torna-se, então, árvore subterrânea, para a qual a Terra é espelho que reflete
um crescimento em direção contrária, para baixo. Ver também: DAGOGNET, F. (1960, p.80).
12
Qualquer empreendimento especulativo tenta, com Sísifo, trepar às alturas do mundo, mas
depressa perde seu ponto de apoio e é arrastado numa queda vertiginosa. Sempre que a
razão crê ter apreendido, nas malhas de seus conceitos, as pepitas de ouro disseminadas no
fluxo incessante das coisas não retêm senão grãos de areia. O gênio maligno está presente
no conhecimento. A primitiva inadequação das palavras e das coisas torna frágeis as
tentativas para traçar o mapa do mundo (WUNENBURGER, 1990, p.11-12).
do mundo” (1990, p.14), impede a criação do hábito de uma “uma visão sinóptica” (p.14),
de um pensamento mais aberto e dinâmico como instrumento de retificação do “reino da
identidade triunfante” (p.14), que sucumbe diante da perspectiva de valorização de uma
maior complexidade e pluralidade do real. Opondo-se ao dogmatismo intelectual,
Bachelard ressalta a abertura do espírito à mutação - e portanto à oposição, enquanto aceite
de um confronto com o outro, com o diverso de si mesmo – como exercício da tarefa de
subsumir nos traçados racionais “as relações de contrariedade, as configurações polares, de
uma lógica não identitária” (1990, p.16):
Em sua essência, este estudo servirá para demonstrar o aspecto de efetiva evolução
do conhecimento que reveste a filosofia crítica de Bachelard, ao proceder, por um lado, ao
esclarecimento das subversões criptografadas no novo saber microfísico e, por outro lado, à
crítica impiedosa do ideal de identidade universal do racionalismo clássico. Este aspecto de
dinamismo ambivalente, a bem ver, é o segredo intelectual que confere ao raciocínio
bachelardiano sua grande força. “Não será este o momento em que as ciências canônicas se
veem chamadas à humildade epistemológica, dada a desproporção crescente entre a
racionalidade clássica e as novas configurações descobertas no real?” (1990, p.17).
O primeiro capítulo volta-se para o domínio da racionalidade científica, no qual a
novidade da realidade microfísica demonstra situações nas quais o máximo nível alcançado
pela racionalidade científica, aplicado no rigor de uma fenomenotécnica constituída ad hoc
na vanguarda da experimentação nuclear da época, revela uma realidade material
contraditória e inconstante, que contradiz – em evidente ruptura – as convicções milenares
do materialismo, do realismo e do empirismo ingênuos.
No segundo capítulo, elabora-se a perspectiva do devaneio poético, inicialmente
como percurso de fundação e encontro de uma identidade própria que se constitui na
entrega de si ao dinamismo rítmico fundamental à ontologia imagética que guia o leitor a
transformar-se em criador. A tangente da imaginação criativa define a metodologia de
14
7
Valendo-se da justificativa apresentada na introdução deste trabalho, volta-se a reivindicar se o direito de uso dos termos
metodologia e método, num contexto que foge ao significado assumido pelos termos no arco da tradição filosófica, sem
por isso perder precisão demonstrativa. O jogo de ambiguidades e ambivalências vigente sobre toda realidade qualifica o
objeto mesmo do estudo como incerto, em sua multiplicidade de aspectos contrastantes. Isto exige, portanto que, ao
abordá-lo, o estudioso desenvolva instrumentos de análise que lhe permitam seguir a natureza inconstante sobre a qual se
debruça. Para nosso autor, fiel à pedagogia da desobediência aos mestres, que ele mesmo teoriza, ao formular seu
complexo de Prometeu, importa que a análise proceda, que dê frutos em seus belos livros. Bachelard não se dedica a
discussões sobre o método que utiliza. Ele procede, e quando necessário, muda sua abordagem, anunciando e nominando,
simplesmente, a nova metodologia que passa a usar, sem longas justificativas. Assim o fez ao trocar a psicanálise de Freud
pela teoria dos arquétipos junguianos e, sucessivamente, pela fenomenologia.
15
8
CAVAILLÈS apud BULCÃO (2009, p.203).
17
filosofia está atrasada, visto que é a ciência que instrui a razão, esta última deve obedecer
àquela, rompendo, portanto, relações com o passado. Esta é a tese central da Philosophie du
non, ensaio sobre uma filosofia do novo espírito científico, de 1940, que assinala também a
renúncia definitiva à ambição de um único ponto de vista, no âmbito das ciências9.
Bachelard enfoca, em primeiro plano, a disponibilidade à abertura e à dialética, pois
considera a verdade como filha da discussão e das contradições. No panorama de sua
época, ele ressalta a falta de uma filosofia da ciência, capaz de explicar a alternância
contraditória, no novo pensamento científico, de a priori e a posteriori, de racionalismo e
empirismo, de universal e particular. A filosofia das ciências desenvolveu-se dialeticamente
entre estas duas polaridades, progredindo por conversões e transformações em seus
próprios princípios. A crescente complexidade da razão e do pensamento científico supera a
tendência ao realismo dos séculos precedentes e impõem, à ciência, a via do pluralismo
filosófico.
O real da ciência é uma criação progressiva de suas respectivas teorias, o
conhecimento equivale a um processo constante e aproximativo de redefinição.
Conciliando ciência e filosofia, o autor sublinha que a evolução filosófica de um conceito
científico – assim como o desenvolvimento de um conhecimento específico – segue uma
ordem de desenvolvimento que prevê as seguintes etapas: realismo, empirismo e
racionalismo, que por sua vez, evolui da perspectiva newtoniana à einsteiniana, chegando
até o racionalismo dialético. Não existe um conhecimento absoluto e indiscutível da
realidade, visto que o princípio de negação reveste uma função primária, seja no âmbito
filosófico ou científico. A filosofia da ciência é uma pesquisa sobre o desconhecido: novas
descobertas possibilitam a negação de conhecimentos anteriores. Esta é a filosofia do não.
9
CANGUILHEM (1963, p.441)“La philosophie du non n’a rien à voir[…] avec une dialectique a priori. En particulier,
elle ne peut guère se mobiliser autour des dialectiques hégéliennes”.
19
que acaba de ser superado, mas o engloba enquanto continua a fornecer uma explicação de
um âmbito parcial da realidade.
Na virada do século XIX para o XX, as mudanças decorrentes da descoberta e
afirmação da nova física quântica – com sua mecânica ondulatória e a teoria da relatividade
– configuram noções e teorias no cenário da racionalidade científica, que serão
responsáveis pela subversão dos parâmetros tradicionais de reflexão, empregados até então
no pensamento da ciência, segundo Pessanha (1985). O autor cita Bachelard, afirmando que
as grandes conquistas da ciência, no século XX, sobretudo em matemática, física e química,
indicam não apenas um avanço, mas a instauração de um novo espírito científico, com
novos pressupostos epistemológicos, em uma atividade que é mais do que simples
descoberta, é criação: “A ciência experimenta então aquilo que Nietzsche chama de tremor
de conceitos, como se a Terra, o Mundo, as coisas adquirissem uma outra estrutura”
(PESSANHA, 1985, p.X).
Concomitantemente a esta transformação, tornam-se prementes novas elaborações
filosóficas, capazes de abraçar o dinamismo dos renovados esquemas de procedimento
científico. A busca da difícil adequação entre doutrina teórica e aplicação pragmática – ou
melhor, adequação entre a nova técnica científica que exige a reelaboração constante dos
princípios de sua racionalidade mesma – associada à repercussão desta singular exigência
de novidade sobre o espírito da época, circunscrito entre suas vertentes positivista e
espiritualista, abre um espaço sui generis para a reflexão.
Bachelard (1951), tratando da ciência microfísica, afirma que “Ao seguir a
descoberta de certos corpúsculos da física contemporânea, somos filosoficamente
conduzidos a modificar muitas ideias sobre o caráter direto do objeto” (p.157), ou seja, a
técnica requer uma nova contextualização filosófica da noção de objetividade. Afirma que
“As propriedades elétricas dos corpúsculos parecem ser, doravante, os elementos
fundamentais da explicação da natureza das coisas” (p.157). O filósofo apresenta nesse
texto a noção de nêutron como partícula, que, por não ter carga elétrica, resulta invisível à
técnica do laboratório científico, convocando, portanto, a filosofia a “formular um novo
estatuto ontológico para apreciar sua realidade” (p.158). No caso do nêutron, “trata-se de
uma realidade formulada por suas consequências” (p.158).
21
10
Em nossa Dissertação de Mestrado: O devaneio cósmico e o conhecimento de si - Gaston Bachelard - da alma poética à
androginia da alma, Uerj – 2007.
22
11
Notadamente nos volumes: NES 1934, FES 38, PN 40, RA 49, MR 53.
23
Toda a epistemologia de Bachelard se inclinará e proporá exprimir esta troca sem fim entre
razão e natureza. O pensamento vazio e o mundo desconhecido entristecem e morrem por
terem sido cortados um do outro, já que a consciência só vive dos seus projetos ou
realizações, já que, pelo seu lado, o universo manifesta a força dos conhecimentos
organizados. Os títulos de duas de suas últimas obras sublinham este aspecto: um
racionalismo aplicado, mas também um materialismo racional[…] solidariedade ativa
entre o objetivo e o teórico: o pensamento muda com experiências novas, estas por seu
lado, atualizam o conjunto dos teoremas (DAGOGNET, 1986, p.22).
12
BACHELARD (1996a, p.46) “[…] ce qu’il y a de plus immédiat dans l’expérience première, c’est encore nous-mêmes,
nos sourdes passions, nos désirs inconscients…”.
25
acima citada, entre real científico e fato empírico. Serve para introduzir a próxima, a ser
vista no trecho que segue, entre duas atitudes, aquela do medir imediato do realista, e uma
outra, oposta, portanto, que instaura o necessário para uma lenta e cuidadosa aproximação
do cientista ao objeto de seu estudo. Aqui, portanto, se vê Bachelard se opor, medir e
aproximar:
13
BACHELARD (Idem, p.38): “Une science qui accepte les images est, plus que toute autre, victime des métaphores.
Aussi l’esprit scientifique doit-il sans cesse lutter contre les images, contre les analogies, contre les métaphores.”
14
GAGEY (1969, p.203) “Aqueles que aqui são considerados obstáculos epistemológicos ao desenvolvimento do
pensamento científico receberão, sucessivamente, um tratamento teórico diferente, por mãos do Bachelard estudioso do
imaginário poético.” Cfr. GAGEY, J. Gaston Bachelard ou la conversion à l’imaginaire, 1969, p.203.
26
Diante do real, aquilo que acreditamos conhecer claramente ofusca aquilo que deveríamos
saber. Quando se apresenta à cultura científica, o espírito nunca é jovem. Ele é mesmo
muito velho, pois tem a idade de seus preconceitos. Ter acesso à ciência, significa
rejuvenescer espiritualmente, aceitar uma brusca modificação que deve contradizer um
passado (BACHELARD, 1996a, p.14).
apreensão de dados empíricos, colhidos no contato direto com a experiência, a saber, sem
necessidade alguma de elaboração subjetiva do mesmo.
Contrariamente, como já visto aqui – segundo o conceito bachelardiano de
fenomenotécnica – dados são construídos como resultado da aplicação de um trabalho
técnico e científico. Neste sentido, a razão é fenomenotécnica, já que realiza seus próprios
objetos de pesquisa. Pode-se afirmar, por conseguinte, que progresso científico significa
superação de obstáculos epistemológicos, no contínuo processo de retificação dos erros
presentes nas teorias do passado. Afirma-se assim a oposição entre conhecimento imediato
e ciência, que implica na ruptura com a ideia de que a experiência comum seja origem
racional da experiência científica; conceito este radicalmente rejeitado pela epistemologia
bachelardiana, desde as primeiras obras do autor.
A novidade das obras epistemológicas bachelardianas representa a superação da
filosofia da ciência do positivismo, que considera os dados empíricos como único
fundamento do conhecimento humano. Além disto, em oposição à noção em vigor no
pensamento científico de sua época, que afirmava o desenvolvimento das ciências pelo
acúmulo de conhecimentos – sob a perspectiva de um ininterrupto e contínuo progresso do
saber – Bachelard instaura a ótica de um progresso epistemológico descontínuo, através de
cortes teóricos bruscos (coupures), inversões, fraturas ou rupturas com concepções
anteriores15. Sua Filosofia do não instaura a noção do saber científico, que procede por
contínuas aproximações à verdade em uma trajetória em que cada nova conquista envolve a
negação do momento precedente, do saber superado, mas preservado, como aplicação
limitada no campo geral destes novos saberes16.
Como melhor exemplo desta superação que, ao mesmo tempo em que nega, engloba
o saber original enquanto fração do saber mais amplo, cita-se a física einsteiniana, que,
procedendo além de Newton, mantém em seu interior a parcela de universo justificada, até
então esclarecida pela física newtoniana. Seu novo modelo epistemológico, abandonando a
15
Como nos faz notar PESSANHA (1985) em seu ensaio Bachelard: As asas da imaginação, os conceitos de obstáculo e
corte epistemológicos são essenciais à formulação da ideia de descontinuidade, relacionada à história da ciência.
16
BULCÃO (1999, p.153 e 157) “Ao admitir que a ciência progride de forma descontínua, Bachelard propõe uma nova
concepção de história das ciências.[...]fazer história das ciências significa analisar, a partir do presente as teorias do
passado, procurando mostrar como se deu a produção de conceitos científicos, através da superação dos obstáculos
epistemológicos [...] o conhecimento do presente auxilia na compreensão do passado.[...]. Com Bachelard a ciência
deixou de ser uma descrição da realidade para se tornar uma construção, na qual teoria e técnica se dialetizam, produzindo
assim o objeto a ser conhecido.”
29
O progresso científico cria novas matérias, produz inovações. Somente uma descoberta é
capaz de subverter todo um setor da ciência.
Os estudos epistemológicos17 e a metafísica do imaginário parecem articular-se, em
Bachelard, na elaboração dos dois conceitos cardinais de sua filosofia da ciência,
notadamente, aqueles de ruptura epistemológica e filosofia aberta; pois tais noções exigem
a prática de uma disposição de superação do dado empírico (factual), enfatizado em suas
pesquisas poéticas
Serviam novas ferramentas teóricas para o pensamento do sujeito e da realidade,
tarefa árdua, à qual Bachelard não se subtrairá, desprezando referências a princípios
absolutos e forjando, pouco a pouco, e concomitantemente ao desenvolvimento da
pesquisa, um novo e fértil ambiente para a reflexão epistemológica da época, sustentada por
uma noção de verdade científica como êxito do confronto com seu contrário, o erro. De
modo que, o conhecimento verdadeiro constrói-se com noções retificadas ou corrigidas
dialeticamente na oposição e superação das falhas anteriores. Compreende-se, então, que o
saber epistêmico se impõe enquanto ruptura com o mundo incerto dos fenômenos dados,
enquanto fenomenotécnica, ou seja, construção de eventos teóricos inerentes às novas
doutrinas científicas. Noções abordadas aqui na consideração do novo saber, ou melhor, de
A filosofia do não, como oposição aos fundamentos da reflexão epistemológica
característica da época de Bachelard.
Ao tratar do fundamental processo de renovação da racionalidade científica,
Bachelard apresenta os desdobramentos intelectuais de uma nova dialética lógica, como
indispensável exercício espiritual que predispõe o espírito do savant a adotar e promover
transformações na ordem do pensamento científico de sua contemporaneidade.
Renovando o fluxo mesmo da atividade intelectiva, ao intervir diretamente sobre as
tradicionais categorias de substância e de a priori do conhecimento, o espírito humano se
transforma e se atualiza no exercício de uma racionalidade renovada, capacitando-se, por
17
Na epistemologia de Bachelard, a abertura em direção ao imaginário é necessária para a formulação de hipóteses. A
própria descoberta científica é, sobretudo, intuição, imagem poética, visto que fulgura o estudioso, reunindo seus
conhecimentos anteriores, mesmo sem evidenciar ligações causais: “Le véritable moteur de l’investigation c’est
l’imagination des éventualités et des possibles et impossibles”: GUIOMAR, M. Gaston Bachelard et son double: une
poétique dialéctisée. In Revue d’esthétique, 3-4/1970, p.426.
34
conseguinte, à renovação da inteligibilidade mesma, que por sua vez modificaria toda
lógica e seus conceitos18, através do instrumento privilegiado de suas múltiplas dialéticas.
Será necessário, portanto, realçar, mesmo brevemente, a defesa bachelardiana desta
nova lógica, como vetor de evolução – na prática e na teoria – de uma racionalidade
científica, cujas exigências não eram mais satisfeitas no âmbito da lógica clássica, de matriz
aristotélica ou kantiana, que Gonseth denomina “Lógica do objeto genérico”, enquanto
fundada sobre um objeto qualquer, individualizável, porém, segundo a especificidade de
sua localização física e da manutenção de sua substância.
A demonstração que pretende desqualificar a lógica clássica enquanto lógica
absoluta, parte daí, pois, ao manter sua especificidade – segundo os princípios físicos do
espaço euclidiano – o objeto mesmo qualifica sua lógica como doutrina da possibilidade de
pensarmos corretamente uma determinada classe de objetos. Ou seja, doutrina do
pensamento de um objeto qualquer nos limites de uma determinada classe de objetos –
objetos estáticos da apreensão imediata – e não de um objeto qualquer em absoluto. Mesmo
a lógica transcendental ou geral, ao determinar regras para o pensamento de um objeto
específico, torna-se lógica aplicada ao particular.
18
Será mostrado adiante, Bachelard analisar as conquistas de Korzybisk, com as quais demonstra o valor da lógica não
aristotélica, inclusive no domínio da metodologia pedagógica.
35
A investigação científica sobre micro objetos exige, então, uma física dinâmica do
objeto genérico que respeite a ligação entre suas funções dinâmica e de localização.
Portanto, o novo objeto científico não deve mais ser descrito estaticamente, como na lógica
clássica. Novas teorias fundam novos objetos não estáveis, dinâmicos, razão pela qual se
impõe a necessidade de mudança do sistema lógico de conhecimento científico, pois
“Servem tantas lógicas quantos forem os tipos de objetos genéricos” (1994a, p.111).
Bachelard (1994a) usa a análise lógica de proposições da ciência, para confirmar a
urgência de abandonarmos o princípio de identidade – tradicional fundamento da lógica
aristotélica – diante da evidência com a qual novos objetos científicos exibem propriedades
opostas. Vale referenciar o caso do elétron, que é, concomitantemente, corpúsculo e onda
em evidente estado de contradição, visto que as duas propriedades se excluem mutuamente.
Logo, um mesmo sujeito – o elétron – exibe dois predicados que se contradizem.
Contrariamente, a lógica não aristotélica da microfísica cancela o caráter absoluto do
sujeito, o que possibilita a apresentação das diversas manifestações do predicado: “em
certos casos o elétron é corpúsculo, em outros, é onda” (BACHELARD, 1994a, p.112):
Nosso hábito de lógica aristotélica não nos permite reunir corpúsculo e onda, pontual e
infinito, o que formaria uma penumbra conceitual na qual não conseguimos proceder. Mas
é nessa penumbra que conceitos se deformam. A lógica necessita de uma reforma
(BACHELARD, 1994a, p.112).
Bachelard cita o volume de 1937, A lógica não aristotélica e a crise na ciência, cujo
autor, Oliver Reiser (Scientia, 1937, t.III), estabelece uma relação de derivação e de
dependência necessárias entre dois binômios: lógica aristotélica e física newtoniana / física
não newtoniana e lógica não aristotélica. A nova lógica (panlógica) abrange toda a antiga
36
19
Para demonstrar a relação de homegeneidade e pertinência entre lógica aristotélica e física newtoniana, Reiser funda a
distinção entre os postulados de tautologia e de identidade. Enquanto a tautologia exige a permanência do significado de
uma palavra, a identidade exige a permanência das qualidades do objeto, constituindo assim uma lei da natureza, ou seja,
de um certo nível da realidade. Não é uma lei absoluta, mas ao considerá-la tal, a transformo num
postulado.(BACHELARD, 1994a, p. 114)
37
Nós que tentamos extrair as novas maneiras de pensar, devemos dirigir-nos para as
estruturas mais complicadas. Devemos aproveitar todos os ensinamentos da ciência, por
muito especiais que sejam, para determinar novas estruturas espirituais. Devemos
compreender que a aquisição de uma forma de conhecimento se traduz automaticamente
numa reforma do espírito. É, pois, necessário dirigir nossas investigações no sentido de
uma nova pedagogia [...] vamos tomar por guia os trabalhos [...] da escola não aristotélica
fundada na América por Korzybski (Apud BACHELARD, 1994a, p.126).
22
Bachelard refere-se ao trabalho do Conde Alfred Korzybski (1933): Science and sanity. In: Introduction to non
ariatotelian systems and general semantics.
40
Deste modo, o novo método pedagógico prevê o enlace de noções bastante insólitas
e ambíguas, como a ideia de cruzamento e encruzilhada de conceitos, vetores de dualidade
ou pluralidade de interpretações e sentidos possíveis, voltados à constituição de
perspectivas sempre duplas, que visam superar a psicologia da forma, desenvolvendo
técnicas de não identidade e de não elementarismo:
conceitos que não possam ser dialetizados, sobre conceitos cujo rigor de formulação
impeça qualquer mobilidade ou variação em sua significação.
Para termos alguma garantia de termos a mesma opinião acerca de uma ideia
particular, é preciso pelo menos que tenhamos tido sobre ela opiniões diferentes.
Se dois homens se querem entender verdadeiramente, têm primeiro que se
contradizer. A verdade é filha da discussão e não filha da simpatia
(BACHELARD, 1994a, p.134).
razão mais abrangente. “Foi bom errar”, diz Bachelard, pois o objeto teórico é sempre o
resultado desta nova construção racional. Portanto, o diálogo sujeito/objeto, enquanto
diversidades desencontradas, representa o motor que dá origem à forma de conhecimento
que Bachelard promove, porque a reconhece nos laboratórios e nas mesas de trabalho da
cidade científica. Saber cientificamente é dialogar e refazer. É uma forma operativa do
cogitamus e não mais a cartesiana intuição do eu.
A teoria antecede o encontro com o real e promove a imediata superação da
empiria. O contato inicia-se já sobre bases teóricas de formulação do mundo mesmo. O
processo de objetivação, intrínseco ao conhecimento científico, faz brotar no ato mesmo de
conhecimento o sujeito que conhece e o mundo circunstante. Na reflexão epistemológica
bachelardiana não existe sujeito nem objeto dados. É o sujeito cognoscente mesmo, que, ao
constituir objetos em suas teorias, constitui do mesmo modo a si próprio, pois “A essência
do real é dinâmica e não geométrica [...]. E ainda, “O racionalismo que deseje servir ao
conhecimento científico deve incessantemente retomar o exame e a reforma de suas bases.
Trata-se realmente de uma filosofia que trabalha” (BACHELARD, 1951).
A ciência, como variedade de saberes e técnicas empregadas no mundo concreto,
vista, portanto, em sua qualidade de – racionalismo aplicado –, termo bachelardiano
ambiguo que, unindo duas noções divergentes, razão e experiência, descreve uma ratio
operativa aplicada ao real da experiência cotidiana. Encontra-se, por sua natureza mesma,
profundamente associada a questões históricas e sociais, tanto no interior quanto fora da
cidade científica, o que pode, ao mesmo tempo, estimular ou bloquear seu
desenvolvimento, de acordo com o contexto em que se enquadre. Amplia-se assim a
questão da ambiguidade provocada pelo embate de ideias divergentes utilizadas por
Bachelard – tecnicamente, como suposto neste estudo – na descrição dos precedimentos
adotados pela nova ciência.
Segundo Bachelard (1951), empirismo e racionalismo não justificam a prática
científica de sua época. O autor confronta os dois termos – utilizando, portanto, a oposição
entre racionalismo e empirismo como procedimento metodológico, didático e explicativo,
conforme a argumentação aqui exposta a favor do que uma metodologia e ambiguidades
pretendem demonstrar – para afirmar que razão absoluta e real absoluto são conceitos
45
inúteis. A razão se constrói no diálogo com a experiência, em uma troca contínua das
respectivas verdades.
Esta novidade epistemológica do pensamento de Bachelard surge no volume de
1949: O racionalismo aplicado. Encontra-se em seus volumes epistemológicos a
elaboração de princípios para a renovação da doutrina da ciência que, contestando os
fundamentos da epistemologia newtoniana vigente em fins do século XIX, pretendiam,
simultaneamente, criar o espaço necessário para a reflexão sobre as novas doutrinas físicas
do início do século XX.
Tratava-se idealmente, como acenado acima, de psicanalisar a mentalidade de um
século ainda dominado pela perspectiva do racionalismo positivístico, que não era mais
suficiente para dar razão das recentes descobertas de Heisenberg, Bohr, Einstein e de
Broglie, entre outros. A mecânica clássica de Newton representava idealmente o ápice de
uma reflexão fundada sobre as perspectivas do progresso da razão e da ciência que,
partindo da assunção positivista do fundamento empírico de todo conhecimento, adequava-
se à noção racionalista de um saber integralmente fundado sobre princípios de razão, ou
seja, sobre elementos absolutos e a priori, verificáveis na experiência.
A ciência da época de Bachelard, cuja superação constitui um compromisso para a
sua reflexão, buscando a universalidade de certezas absolutas, alicerce do conhecimento
verdadeiro, integrava perfeitamente o racionalismo clássico e o positivismo comtiano,
portanto. Apesar de toda hipótese derivar da observação da experiência – o que reduziria
todo conhecimento à mera empiricidade – sobre a base de tais dados de fato. Isto, segundo
o rigor da lógica argumentativa, a razão construía suas hipóteses e sucessivamente buscava-
se comprovação empírica, o que justifica o dito newtoniano hipóteses non fingo, ou seja:
não se inventam hipóteses, uma vez provadas, tornam-se teses. A formulação de leis
racionais permitiam, finalmente, a previsão de novos fatos científicos.
Bachelard (1951) se opõe a essa razão universalizante da tradição, afirmando, com
Einstein, uma razão da descontinuidade. Supera o princípio aristotélico da identidade, em
defesa da ambiguidade. O panorama permanecia idêntico ao classicismo da racionalidade
de Descartes, Spinoza, Malebranche e Leibniz: o conhecimento verdadeiro fundava-se
sobre a certeza universalizante das ideias inatas ou de razão, cujo encadeamento
desenvolvia-se rigorosamente, transformando verdades contingentes e circunstanciais em
46
princípios de razão, até alcançar a hipóstase última de uma razão universal (Deus ou
harmonia preestabelecida de Mônadas), que se erguia como garantia de toda a epopeia do
conhecimento.
Todo racionalismo funda o conhecimento verdadeiro sobre certezas universais,
assim como o Positivismo observa o conhecimento partir da experiência para fundar
hipóteses racionais, as leis definitivas da razão. Até o início do século XX, portanto, todo
progresso da razão e da ciência ainda tinham seu cume na mecânica clássica de Newton,
cientista cujo sistema de saber era permeável à herança racionalista-positivista: suas
hipóteses baseavam-se na observação direta do mundo empírico, porém, a elaboração
racional da informação colhida diretamente da experiência e sintetizada em leis do
conhecimento, permitia a previsão de novos fatos e, desse modo, de novas leis.
A racionalidade que investe a mecânica contemporânea funciona como uma física
apta a trabalhar com incertezas23 constrói os objetos requeridos pelas teorias, contrariando
todos os princípios vigentes nas regras da ciência em uso até o final do século XIX. O
micro objeto é algo sem dimensão e sem forma. Segundo a definição de Louis de Broglie:
“prótons e neutrons são dois estados da mesma partícula [...] com tendência à
transformação” (BACHELARD, 1951, p.159).
A física de Newton partia da aceitação da existência do objeto e dali estudava seu
movimento. Ao contrário, a microfísica não admite objetos previamente existentes. Ela
busca registrar o movimento do objeto, para considerar a posteriori a sua presença. A
equação gerada por seu movimento define o objeto presente, através de indícios deixados
pelo rastro de sua passagem - ao projetar um feixe de luz numa câmara fechada, na qual se
disparam nêutrons, uns contra outros-. Além disto, se a velocidade for maior do que a luz, o
objeto desaparece. Portanto, sua existência mesma depende de sua velocidade.
Encontra-se o fundamento do racionalismo aberto bachelardiano na afirmação de
que princípios e categorias da razão mudam. Razão pela qual Bachelard opôs-se aos moldes
que estruturavam o saber científico, deixando, porém, sem explicação, fundamentais
procedimentos matemáticos aplicados às novas teorias físico-químicas de sua época. O
positivismo da lógica kantiana não satisfazia a exigência de uma elaboração teórica que
garantisse o sentido da doutrina microfísica, nem da mecânica quântica; novas fronteiras do
23
Princípio de indeterminação de Heisemberg.
47
conhecimento que urgia convalidar e justificar, através de uma reflexão profunda sobre a
renovação da doutrina epistemológica, que fosse capaz de oferecer fundamentação lógica às
inovações da prática científica. Instaurava-se assim o fantasma da provisoriedade no
Panthéon do saber absoluto, ou seja, na doutrina da ciência mesma. A certeza é
circunstancial e não universal. A física de Newton representou a verdade, e continua a
representá-la, em relação a um determinado sistema ou momento do saber, mas deixa de
representá-la no sistema da cientificidade contemporânea.
A certeza é uma utopia. Aprendemos a refletir sobre o incerto. Existem atualmente
muitas lógicas. Entre elas, existe uma lógica que pensa a contradição mesma. As certezas
do novo saber científico encontram sua vigência dentro de determinados parâmetros. A
afirmação euclidiana de que “por um ponto só é possível traçar uma paralela” encontra o
campo de seu valor de verdade limitadamente, dentro dos confins do espaço plano. Já no
espaço curvo, por um ponto é possível que passem múltiplas paralelas. A revolução
científica fragmenta o racionalismo, desenvolvendo racionalidades específicas para os
diferentes campos do conhecimento. Existe então o racionalismo da mecânica, da física, da
química, da sociologia etc. Cada setor do saber vai fundar seu racionalismo de validade
regional, superando desta forma o mito da visão global e da universalidade das técnicas e
métodos de conhecimento24.
A ideia bachelardiana de racionalismos regionais, que presupõe, em seu bojo, a
noção de um ulterior racionalismo integralizante que se ocupará em estabelecer conexões e
afinidades entre as diversas redes do saber, já foi apontada aqui. A revolução científica,
promovida pelos estudos de Einstein, Planck, Bohr, Heisenberg, de Broglie e Dirac, soube
24
Lógicas Paraconsistentes: NEWTON da COSTA, engenheiro, matemático e filósofo brasileiro (UFPR, USP, Unicamp
e UFSC), empregando o método axiomático, formulou noções lógicas inéditas e fundamentais, como na teoria da “quase
verdade ou verdade parcial” ou da “incompletude ou indecidibilidade” de proposições da teoria dos sistemas dinâmicos.
Nos anos 1950 e 1960, ou seria entre 1950 e 1960, desenvolve pesquisas de notoriedade mundial: Lógicas
paraconsistentes, ao lado ou além da consistência, termo cunhado em 1976 pelo filósofo peruano F.M. Quesada, para
descrever esta lógica considerada não clássica e heterodoxa. Isto se deu por rejeição ao tradicional princípio de não
contradição, possibilitando assim a fundação de sistemas dedutivos inconsistentes,ou seja, capazes de admitir em si a
contradição ou teses contraditórias,que mantêm seu rigor ao prever que nem todas suas fórmulas constituam teoremas do
sistema em questão (COSTA, 1993; 1997, 1999). Segundo a consideração dos sistemas lógicos paraconsistentes, uma
sentença e a sua negação podem ser ambas verdadeiras; a conclusão destas proposições podem adquirir valores além de
verdadeiro e falso, como no caso de valores indeterminados ou inconsistentes. Um exemplo prático da nova lógica,
aplicada a paradoxos semânticos, admite a sentença: “o homem é cego, mas vê”; apesar da lógica clássica excluir que uma
pessoa que enxerga, logo, não cega, possa ser cega, a lógica paraconsistente admite uma pessoa que é cega para
determinadas coisas, possa ver outro tipo de coisas. A partir de 1991, o célebre periódico Mathematical Reviews, da
American Mathematical Society, inseriu em seus anais uma seção sobre lógica paraconsistente, ampliando-a, após 2000
sob o título de “lógicas admitindo inconsistências”. Tal tipo de lógica constitui um tópico de estudo oficial da matemática,
cujo desenvolvimento encontra aplicação em variados campos da pesquisa contemporânea (ARRUDA, 1990).
48
25
BACHELARD. De la nature du Rationalisme. In: L’engagement rationaliste, Paris-PUF, 1972c, p.45.
49
o contato empírico com o mundo já teria perdido qualquer significação, não reflete mais o
progresso da organização racional do saber científico. Mais adiante será visto que a
racionalidade que o filósofo defende é já, in primis, uma abordagem teórica do real.
“O progresso da organização racional do saber cientifico”, impõe, como “fator ativo
das transformações radicais da experiência”, diz Bachelard (1998, p.47), a noção de
racionalismo como uma filosofia investigativa capaz de promover a assimilação de novos
conhecimentos. Original potência de transformação do mundo, a atitude racionalista,
portanto, em seu funcionamento, não pode depender de estruturas rígidas, mas deve
também poder transformar-se aplicativamente, segundo princípios sempre em
reestruturação, como uma arquitetura perenemente em desconstrução e reconstrução, nos
múltiplos campos do saber que, portanto, obedecem a sistemas lógicos diferentes.
Contrariando a perspectiva de uma razão definitiva em suas certezas e
universalizante em sua abrangência, a ciência contemporânea aprendeu a inventar novas
axiomáticas variáveis. Estes representam o conjunto de princípios epistemológicos, eixo de
um determinado saber, ramificando o racionalismo geral em vários segmentos de
conhecimentos e técnicas específicos e particulares, para atender deste modo às exigências
de constantes reformas de suas modalidades operacionais, avançadas pela nova
racionalidade do sec XIX. Surgia assim a noção de racionalismos regionais, já citada
anteriormente, teorizada por Bachelard, em 195326. Cada área do saber, biologia, mecânica,
química, física, possui um registro de racionalidade específico. Motivo pelo qual o filósofo
cunhou o termo racionalismos regionais, superando irremediavelmente a generalidade
racionalista cartesiana.
Como antecipado aqui, Bachelard deixou somente menção à concepção de um
sucessivo racionalismo integralizante, que teria por função reunir em um único modus
operandi todos os setores de especialização da racionalidade científica. Após a citada
conferência à comunidade filosófica parisiense, M Bréhier, ao abrir o debate, felicita o
filósofo por ter tornado o racionalismo difícil: “O racionalismo não é esta coisa fácil e chata
que se resume em algumas fórmulas” (BREHIER, apud BACHELARD, 1972c). Diz
também que Bachelard soube transformar o racionalismo triunfante, aquele da verdade e
certeza absolutas, em racionalismo militante e ativo. Ou seja, aquele mesmo que o filósofo
26
In: Le matérialisme rationnel,1990.
50
Bachelard (1998) exemplifica quanto dito com a novidade dos estudos sobre a
eletricidade, que não mais partiam da observação de fenômenos elétricos, mas da aplicação
do racionalismo técnico a certos eventos naturais, com a consequente criação de um novo
universoresultante da união entre invenção teórica e descoberta experimental. Logo, o
racionalismo aplicado constitui-se pela interseção entre razão e experiência, assim como a
ciência compreende a dupla perspectiva, da teoria e da experimentação A saber, as
conquistas da racionalidade devem ser aplicadas à realidade na formulação de novas
técnicas e teorias que, por sua vez, irão proporcionar o aparecimento de novos fenômenos,
num contínuo movimento de refundação do saber.
O conceito fundamental da revolução científica do século XX é energia. A matéria é
uma organização energética. Cada ser é passível de definição nestes termos, já que todo
fenômeno é, em si, uma manifestação de energia. Neste novo cenário teórico, a ciência
torna-se o trait d’union entre pensamento abstrato e experiência concreta, ou melhor, torna-
se uma atividade abstrato-concreta, justamente como Bachelard (1998) define a filosofia do
racionalismo aplicado. O cientista não parte da experiência imediata: um novo
conhecimento é sempre formulado enquanto antítese daquele que o precedia como
superação de seus erros. Ele substitui, portanto, o saber fechado e estático por um
conhecimento aberto e dinâmico, configurando, em tal modo, mais uma oposição no
dinamismo dialético do conhecimento. Por isso, a ciência recorre a uma catarse
intelectual27, na qual o autor, sugerindo a contraposição entre espíritos poético e científico,
indica os perigos para o conhecimento científico, representados por impressões primitivas,
por adesões ou simpatias conceituais de origem inconsciente e por devaneios e delírios
subjetivos. Em Bachelard, diz Dagognet (1986, p.35), “as ambivalências e os conflitos se
resumem todos em movimento,dinamismo e metamorfose”.
Após tecer, neste excursus, o movimento conceitual que instaura a urgência de uma
nova racionalidade aberta e dinâmica, apta, portanto, a dar razão da complexidade que se
instaura no domínio do novo pensamento científico no início do século passado, chega-se à
finalidade primordial deste estudo. Ou seja, a intenção de investigar, ao longo da obra de
Gaston Bachelard, a configuração de um procedimento sui generis de pensar: trata-se de
evidenciar como, neste autor, a questão das dicotomias, ambivalências, ambiguidades,
27
BACHELARD. La Psycanalyse du Feu, (1938), 1972b.
52
28
DAGOGNET, 1960, p.35.
53
Após tanto devaneio, sinto-me tomar pela pressa de instruir-me ainda mais, de
descartar, consequentemente, o papel branco para estudar num livro, num livro
difícil, sempre um pouco difícil demais para mim. Na tensão diante de um livro
com desenvolvimento rigoroso, o espírito se constrói e se reconstrói
(BACHELARD, 1996, p.111).
Será a mecânica da relatividade que, por não ser newtoniana, romperá com tais
princípios. A questão do a priori sofrerá um forte abalo, engendrando um período de crise
do conhecimento. Em La philosophie du non, (1940) Bachelard defende então a pertinência
de uma lógica não aristotélica e não kantiana, como uma abordagem teórica estratégica,
capaz de resolver, assumindo-as em seu interno, as inúmeras antinomias causadas pela
reviravolta científica da física e da química, no âmbito da superação da física de Newton.
Uma lógica de inclusão de opostos, afirmada enquanto superação, mas não anulação do
cogito racionalista.
Na verdade, como Ferdinand Gonseth (ano), antes dele, Bachelard ousou esclarecer
diante da comunidade filosófica e científica um fato que poucos tematizaram. Trata-se da
extraordinária notícia de que o a priori kantiano funcionava unicamente no âmbito de um
29
“Outra razão acentua o valor dos métodos múltiplos [...] é que toda crise profunda no método é
imediatamente consciência da reorganização do método” (BACHELARD, 1972c, p. 42).
55
30
Na opinião de Dagognet (1986), toda a obra bachelardiana converge para o racionalismo aberto, com suas
constantes conversões e mudanças prospéticas.
56
Poincaré31 – afirma que a síntese lógica de teorias inconciliáveis requer uma modificação
espiritual profunda32:
31
Henri Poincaré (1854-1912), físico-matemático francês, que participou ativamente do debate epistemológico
de sua época sobre a interpretação das novas teorias científicas (relatividade einsteiniana e física quântica),
opõe à fundação puramente lógica de entes matemáticos (logicismo de Peano, Frege e Russel), a sua
concepção intuicionística da matemática (fundada, portanto, sobre dados intuitivos), considerando a realidade
uma cômoda convenção, apta a representar relações, entre o que, de outro modo, seriam considerados entes
inacessiveis. Além disto, teorias científicas não seriam em si verdadeiras ou falsas, pois formulações
conceituais são meramente convencionais, permitindo a organização dos fenômenos. Suas teorias, por
conseguinte, desqualificariam qualquer procedimento científico puramente lógico ou, por “meras” definições,
tornando inaceitável a ideia destouchiana da unificação de teorias opostas, através de uma modificação de
regras no raciocínio humano.
32
Ponto de convergência com os estudos bachelardianos sobre a metafísica do imaginário.
58
temporal, sem identidade específica e, sobretudo, sem substância. Com tal conceito, a física
teórica encontra-se bem além do velho substancialismo. Até mesmo Kant admitia a
substância como categoria do nosso modo de pensar. Enganava-se, porém, ao considerar a
obrigatoriedade de pensarmos, sempre utilizando tal categoria.
Bachelard e a física de sua época rejeitam tal obrigação. Einstein constrói toda a sua
física sem recorrer à noção de substância. Ao contrário, a ideia de substância tornou-se um
obstáculo para o pensamento epistemológico contemporâneo e Bachelard usa o termo
“desubstancialização” como um novo parâmetro de pensamento que encontra respaldo na
prática científica, sobretudo no domínio das micro-partículas.
Em Bachelard (1972c, p.16), a questão das múltiplas dialéticas acena à
possibilidade de uma lógica da razão contraditória. E mesmo sem justificar a frequente
referência a ambiguidades, contradições e antinomias, estas parecem sugerir uma
fundamental “dinâmica da contradição” do ser e do real, lembrete da “fecundidade do
negativo”, pois o espírito que diz não à anterioridade institui novas aberturas e
possibilidades. Em tal modo, rompendo com as noções tradicionais de “absoluto” e de
“identidade”, o autor afirma a noção de saber como “convergência de múltiplas dialéticas
retificadoras”, radical indefinição que torna inteligível uma pluralidade de interpretações da
realidade33.
Um breve ensaio, originalmente publicado em 1936, na revista parisiense
Inquisitions, O Surracionalismo34, traduz a principal implicação em torno da noção
bachelardiana de uma razão transformada, renovada, ou melhor, retificada – consequente às
conquistas teóricas de Einstein, Heisenberg, de Broglie e outros, citados anteriormente. O
aflorar desta nova razão funda, simultaneamente, a urgência de uma revolução espiritual,
única habilitada a transgredir as leis do raciocínio lógico tradicional, subvertendo-as e
instaurando novos esquemas de possibilidades para o pensamento desta nova objetividade
físico-científica. Tal implicação é tácita: transformações nas regras do raciocínio requerem
33
BACHELARD (1972c, p.16) “Na verdade, não importa em qual época, temos dificuldades a instalar-nos
numa posição puramente racionalista. Quando combatemos erros, direta e vigorosamente, não rompemos
completamente com seu princípio. Existe, portanto, na base de uma atividade polêmica, uma ambiguidade
essencial”.
34
Inserido, adequadamente, na abertura da coletânea póstuma, organizada por Canguilhem, em 1972, com o
título O compromisso racionalista: L’Engagement rationaliste, Paris: PUF, 1972.
59
Acabo de viver, durante uns doze anos - período que Bachelard dedica à
35
elaboração dos cinco volumes cósmicos - todas as circunstâncias da divisão do
materialismo entre imaginação e experiência. E esta divisão [...], pouco a pouco,
impôs-se a mim como um princípio metodológico (BACHELARD, 1990, p.17).
Tal divisão é apontada como principal responsável pela oposição radical entre um
materialismo imaginário, ou seja, o devaneio da matéria formulado nos citados volumes, e
o materialismo inerente à ciência, por ele denominado instruído. Seguindo esta dinâmica de
oposições, torna-se possível distinguir elementos da “convicção humana” atribuíveis, por
um lado, aos sonhos e imagens; por outro, à razão e à experiência.
O presente estudo tem, portanto, como objetivo, demonstrar que a utilização da
dinâmica de contrários constitui em Bachelard um método de trabalho. Em campo
epistemológico, a dialética de oposições ou dinamismo de antinomias, tomado como
hipotético procedimento metodológico, evolui devido à urgência mencionada, manifestada
nas experimentações da nova microfísica, de uma consideração capaz de dar conta dos
frequentes aspectos contraditórios inerentes a uma mesma realidade: pensamos, novamente,
na aporia ínfima de uma partícula, realidade primária do mundo subatômico, que,
contrariando o tradicional Princípio de Identidade, é, ao mesmo tempo, onda e substância
molecular, matéria e energia. A partícula atômica adquire sua configuração definitiva
somente a partir da determinante observação subjetiva.
35
Os volumes cósmicos são: La psychanalyse du feu (1938), L’eau et les rêves, essai sur l’imagination de la
matière (1941), L’air et les songes, essai sur l’imagination du mouvement (1943), La terre et les rêveries de
la volonté, essai sur l’imagination de la matière (1948) e, La terre et les rêveries du repos, essai sur les
images de l’intimité (1948).
62
mundo – como êxito concreto da comoção estética que nos liberta, portanto, do vínculo
atávico ao real, segundo moldes clássicos de uma relação unívoca e monista, exclusiva de
qualquer alteridade.
Ambiguidades e divergências aparecem, então, ao longo desta exposição, como
ingredientes fundamentais ao novo procedimento estético metodológico inaugurado por
Bachelard que, desprezando a redução da criatividade ao rigor conceitual do intelecto
analítico, nos guia em mergulho profundo no domínio das imagens, em busca de
significações inéditas, geradas a partir da potência de criação semântica do imaginário,
função nobre da mente ou consciência humana, o que será visto aqui desdobrar-se na
imaginação de novos sentidos de nossa realidade.
Entretanto, na argumentação deste estudo, ou seja, ao se discutir ambiguidades e
polaridades no âmbito da poética, ao procedimento metodológico escolhido não deverá
interessar tanto a definição precisa e rigorosa de conceitos quanto a tentativa – menos exata
em termos lógicos, porém, mais profícua no que concerne aos objetivos de nossa reflexão –
de circunscrição do ambiente de ideias derivantes da hipótese lançada sobre a filosofia
bachelardiana, enquanto domínio intelectual em fermento sob vigência de um pensamento
polarizador e dicotômico, que evolui por sucessivas oposições e contrariedades, em
permanente embate contra os rigores do monismo mental do qual padece a civilização.
Em tal modo, o confronto de múltiplas probabilidades traça, na Obra do filósofo,
um ideal de comprometimento com procedimentos aptos à promover abertura e pluralidade
nos registros que ativam a criatividade da consciência humana. Portanto, o principal
instrumento do método que mais se adapta à presente pesquisa será a descrição mesma dos
momentos nos quais a questão das ambiguidades polarizantes é abordada no pensamento de
Bachelard. Assim, empregando um método que evita definições prévias e exatas, pode-se
assistir ao fervilhar semântico instaurado pelo procedimento bachelardiano, dialogando
diretamente com seus escritos. A ausência de definições resulta então proposital. É quase
um requisito para se ingressar no universo de oposições e ambivalências que desencadeiam
o pulular de novos significados e realidades, no reino imaginário da criação estética.
O que se apresenta não será o desenvolvimento de implicações conceituais, mas o
brotar de sentidos e significados pertinentes à hipótese levantada no contexto mesmo da
novidade, vista como fruto da imaginação, que traduz também o núcleo central da
64
Entretanto, se a proposta deste estudo, por um lado, parece atentar contra a precisa
ordem do raciocínio lógico, por outro lado, ela nos insere num só golpe na vibração
profunda da complexidade bachelardiana, que pulsa em torno da ideia de primitividade da
imagem e do ser, noção com a qual Bachelard manifesta a oportunidade de despsicanalizar-
nos, desnaturalizar-nos, desfilosofizar-nos, tornando-nos acolhedores às vibrações e
repercursões de uma nova realidade. Logo, no que concerne à fundamental noção de
primitividade, pode-se notar que José Ternes (2003, p.115), em sua leitura do Lautrémont
bachelardiano, define a imaginação sonhadora e literária, segundo a caracterização
engendrada por suas funções de risco e imprudência, ao mesmo modo sui generis, em que a
razão humana se caracteriza por suas funções de turbulência e agressividade. Para Ternes,
66
seriam essas as qualidades que melhor traduzem o espírito de toda Obra de Bachelard,
convergindo à mesma exigência de uma relação viva e fecunda com a ancestralidade do ser
e do saber, coligando, portanto os níveis onto e gnoseológicos de uma origem que
incessantemente se renova, seja em sua polarização objetiva, como imagem, seja naquela
subjetiva, como sonhador acordado.
Nestes termos, pode-se pensar que a ideia de primitividade surge de uma abordagem
da poesia enquanto metafísica instantânea36 que, por sua vez, propõe a visada da imagem
poética como princípio sem causa, como autonomia absoluta, sem passado nem futuro,
como significação arquetípica de um simbolismo afetivo que eclode no instante mesmo da
comoção causada pelo poema. A Arte nos conduz ao lugar primordial de nosso ser (1992a,
p.98). Além disso, ocorre ressaltar que o instinto agressivo lautreamontiano, enquanto
afirmação das bases arcaicas da vida, ou mesmo, como impetuoso modo de ser da
linguagem poética, ao mesmo tempo em que rejeita inércia e conservadorismo, afirma o
dinamismo da estrutura primária do ser e do conhecimento, qualidades que assumem papel
fundamental na hipótese aqui formulada para um estudo do bachelardismo.
Na dissertação de mestrado37, foi demonstrado que Bachelard reconhece sua dupla
natureza na polaridade de sua alma. Androginia que, aceita, guia o ser à contínua mutação,
como sua dimensão originária. Nisto o poeta é representante da natureza humana, enquanto
único capaz de persistir em estado de metamorfose permanente, situação esta que é própria
ao ser das 24 horas, protótipo da antropologia bachelardiana, que admite o indivíduo
inteiro: diurno e noturno, racional e poético.
36
BACHELARD, G. (1939). Instant poétique et instant métaphysique in: L’intuition de l’instant,
Paris:Stock, 1992.
37
CARVALHO, J. M.de. O devaneio cósmico e o conhecimento de si. Gaston Bachelard: da alma poética à
androginia da alma. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade Federal do Rio de Janeiro/UERJ,
2007.
67
38
WUNEMBURGER. Palestra proferida na Puc-Rio, Rio de Janeiro, 2009.
71
A poética do devaneio (1960) diz que “a idealização, por obra da função do irreal é
o que doa dinamismo à vida” (BACHELARD, 1993a, p.50), o que nos conduz à dialética
de projeções idealizantes39 presentes na mesma obra, como eixo do amor andrógino
descrito por Balzac, em Séraphitus-Séraphita, romance filosófico ao qual Bachelard dedica
interessante análise. Também em O direito de sonhar se conhece simultaneamente o
masculino e o feminino na linguagem sem censura do devaneio, onde a dualidade mesma
instaura uma dinâmica de idealização projetiva ou projeção idealizante dos valores de
virilidade/feminilidade, que ao se constituirem em realidade psíquica concreta, promove a
intuição de si próprio enquanto ser andrógino:
39
O pintor pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti sintetiza em seu quadro: How they met themselves, o tema bachelardiano
deste ser hermafrodita apaixonado. O quadro refigura o encontro de dois casais de amantes, numa imagem
extraordinariamente em sintonia com a mecânica da idealização amorosa bachelardiana. Em suma, o autor argumenta que
ao apaixonar-se, o indivíduo, já em si mesmo duplo de Animus e anima - masculino e feminino – projeta o ideal de um ser
amado, que por sua vez também encarna a mesma duplicidade. Logo, diz Bachelard (1993a, p.51) “mesmo só, sou
quatro”.
72
Em comunhão com as imagens dos poetas, faço-me só com a solidão dos outros.
Eis aqui então a imagem simples, o rêveur está na sua mesa, acende seu lampião,
sua vela. Então me recordo e me reencontro: sou o guardião que ele é. O mundo é
para mim, como para ele, o livro difícil iluminado pela chama de uma vela
(1996c, p.53).
Quando todas as experiências estão feitas, quando todos os livros estão lidos,
quanto é triste a carne! (1996a, p.192).
78
Ao mesmo tempo, porém, em inversão bipolar, o filósofo admite que: “Se à noite
experimentamos o sentimento de termos fracassado em nossas vidas, com o surgir do sol,
podemos renascer” (LESCURE, 1983, p.192). Como se sabe, o êxito deste percurso é a
conquista de uma solidão feliz, na tranquilidade do repouso. Entretanto, para os casos de
desequilíbrio em psiquismos sofredores, Bachelard prevê, como devaneio terapêutico, a
sugestão de uma imagética rítmica que reintegre nossas ambiguidades, restaurando com
poemas os ritmos polares do dinamismo vital:
natureza instável, assumem a configuração de uma ética sui generis, uma ética de
sentimentos e de intimidade, cuja abordagem, devido à especificidade do tema da
metodologia por oposições, será adiada para uma próxima oportunidade. A ambígua
polaridade, ínsita no âmago mesmo da individualidade, que se busca caracterizar aqui,
funciona na economia da obra poética de Bachelard como o principal motor de novidades,
o que vale dizer, de transformação subjetiva. É porque somos ambíguos e polares que a
contínua mudança se abre qual destino para a humanidade.
somente por nossos sonhos. São eles que desenham os últimos confins de nosso espírito”
(BACHELARD, 1972b, p.181).
Poderá se ver assim que ao inaugurar seu trajeto poético no imaginário cósmico
primordial, Bachelard não perderá oportunidade de inventar e exaltar oposições – como
princípios explicativos – nesse primeiro ensaio – daquilo que viria a constituir seu primeiro
passo na renovação da filosofia estética. Aliás, esta também usufrui do confronto entre
homem e universo como situação propícia à profusão de imagens sobre as potências
elementares. Segue-se, brevemente, a fluência na qual ele apresenta seus devaneios
inspirados na natureza, para recolher exemplos de polaridades dicotômicas utilizadas com o
intuito de gerar clareza ou comoção.
Logo na abertura de La psychanalise du feu (1972b), seu autor nota que: “Se aquilo
que se modifica lentamente se explica através da vida, aquilo que se modifica depressa é
explicado pelo fogo” (1972b, p.19). Como se pode ver, muitas vezes a divergência se
apresenta em fatos simples do quotidiano, como nesta ocasião em que o autor confronta a
mudança lenta com a mudança rápida, opondo o lânguido e duradouro escorrer do tempo de
uma vida à fúria voraz e imediata com a qual o fogo extingue as matérias às quais adere:
Ocorre aqui ressaltar dois aspectos fundamentais deste princípio: por um lado, o
intrínseco e cativante movimento das chamas surge já como motor que rege todo
dinamismo. O próximo item retomará essa caracterização da dança ígnea como origem de
transformação e evolução. Por outro lado, a menção a um princípio explicativo
contraditório contraria e repulsa, rigorosamente, toda e qualquer formulação lógica das leis
do raciocínio.
É possível reconhecer, porém, que não se trata de um juízo inconsequente e
irresponsável. Pois, acima do espanto causado pelo surpreendente e destemido conceito de
um ente que, por mérito de sua própria contraditoriedade, se erguer qual princípio
universal, afirma-se a suspeita de que tal temeridade intelectual, na verdade, funde-se sobre
um antigo axioma explicativo da racionalidade ocidental. Trata-se do princípio de que os
similares explicam-se reciprocamente40, portanto, qualquer contradição poderia encontrar
esclarecimento em algum outro fator contraditório. Afirma-se, pois, o aspecto contraditório
fundamental da realidade mesma, ou do universo – se faltassem razões para afirmarmos tal
contradição universal, bastaria relembrar o devir como destino de corrupção de toda criação
– atenua-se o escândalo da razão pelo fato de que um ente também contraditório, ou seja, o
fogo, possa em qualquer modo – ou melhor, em força dessa semelhança – dar razão àquilo
que por si só permanece inexplicável, a saber, a própria realidade universal.
Debruçando-se sobre antigos textos médicos do século XVIII, o filósofo cita tenras
tolices substancialistas, camufladas como ciência, sem deixar de observar que, apesar da
total ausência de argumentos com sentido objetivo, o texto convence, pois totaliza a força
de persuasão do médico e a força insinuante do remédio. Eis que a oposição entre
objetividade e falsa convicção serve como ocasião de demarcação dos obstáculos que
devem ser combatidos para que o saber científico afirme sua objetividade. Portanto, mais
um exemplo de bipolaridades mencionadas no discurso filosófico, com a intenção didática
de esclarecimento do argumento tratado.
Sua busca pela presença inconsciente do elemento ígneo no espírito do savant – na
caça ao obstáculo à renovação do discurso e prática da ciência, que, como se sabe,
terminará por submetê-lo à sua fascinação – parte do aceno a mais uma dualidade. Neste
40
(1992a, p. 98) “No domínio da razão, basta aproximar dois temas obscuros, para que se sobreponha a
claridade da evidência. Então, com o antigo mal compreendido, criamos uma novidade fecunda”.
85
caso, será o respeito infantil pelo fogo que se verá divergir em dois polos: o respeito
natural, instintivo, resultante de um reflexo, e o respeito ensinado, fruto de uma proibição
convencional social. Segundo Bachelard, na origem do conhecimento infantil do fogo, o
que faz a criança retirar o dedo da chama é a repreensão dos mais velhos, logo, é a
proibição que toma posição, antes mesmo da ação do instinto. Entretanto, logo em seguida,
o autor admite a interferência dos dois fatores, natural e social, que colaboram na origem do
conhecimento infantil do fogo. Primeiro chega a palmada dos pais, fundamento do respeito
infantil pelo encanto elementar, que, porém, “castiga sem ser preciso queimar” (1972b,
p.24). Em caso de desobediência, com a dor, intervém o instinto de afastar o dedo da
chama. O reflexo natural, portanto, é posterior.
E aqui se vê intervir, de novo, a experiência do negativo, que instaura a
ambiguidade no domínio do conhecimento. Ouçam-se as palavras do filósofo: “A
experiência natural só vem depois, para fornecer uma prova material inesperada e obscura
demais para dar lugar a um conhecimento objetivo” (1972b, p.24). Deduz-se, pois, que a
prova da qual se poderia esperar maior esclarecimento e entendimento sobre a questão do
brotar do conhecimento infantil do fogo, é, ela mesma, obscura demais para constituir-se
em saber operativo. Trata-se de uma prova duvidosa, uma prova que nada prova. De
qualquer forma, nota-se que a origem do conhecimento pessoal que se tem sobre este
elemento é atribuída, então, à confluência de dois fatores. Por um lado, o fenômeno natural
instintivo e, por outro lado, as implicações sociais ou proibições, decorrentes das
experiências primitivas com o fogo, como, por exemplo, a prevenção de incêndios e
queimaduras.
Além disto, nestas páginas de 1938 (1972b) encontra-se também uma primeira
menção àquilo que nas anotações da edição póstuma de 1988, Fragments d’une poétique du
feu, servirá para configurar o “Complexo de Prometeu” enquanto aventura da maturidade,
conquistada através da mítica desobediência. Em tal modo, atribui valor positivo a uma
experiência com forte conotação de negatividade: “A criança quer fazer como o pai e qual
pequeno Prometeu, rouba-lhe os fósforos e corre para o campo, onde acende sua primeira
fogueira” (1972b, p.7). Na narrativa bachelardiana, esta primeira fuga infantil, levando a
caixa de fósforos para o campo – que aliás, como dito, determina precocemente um
temperamento ígneo – adquire força expressiva ainda maior, porque à criança camponesa
86
que “conhece esse fogo que arde entre três pedras” é contraposta à criança metropolitana,
“criança da cidade, que nunca provou ameixas silvestres assadas ou lesmas na brasa” e que,
portanto, crescerá “alheia ao Complexo de Prometeu” (1972b, p.25).
41
Estende-se tal artifício do pensamento estético à literatura e cinema do Nouveau Roman francês, com Alain Robe-
Grillet e Marguerite Duras, para relembrar aquilo que se denominou construction abimée, ao apresentar narrativas internas
a narrativas e projetar imagens dentro de imagens. Nesse sentido, tornou-se clássica a cena de L’année dernière à
Marienbad, na qual a câmera escorre ao longo de um corredor do palácio neoclássico, exibindo a fuga de portais, que
aparecem na projeção cinematográfica da imagem como uns dentro dos outros.
87
faz logo perceber e denunciar o risco que tais termos pudessem sugerir a imposição de uma
rede de realidade lógica à liberdade de criação poética. Sem privar-se de certo tom
ambíguo, o autor conclui que, somente quando o poema desabrochar, é que se poderá
descobrir seu realismo e sua lógica intima.
O próprio conhecimento interior, por ser adquirido, traz consigo o sentido de culpa
original, já que toda origem traduz nosso “fracasso na glória de sermos intemporais, de não
despertarmos nós mesmos, para permanecermos nós mesmos”. Como efeito da comoção
estética interior, mudamos e evoluímos, nos transformamos. E quem nos traz essa lição de
luz é o mundo obscuro, no qual se dá o embate com a arte. O ser, porém, encontrará em si
mesmo, na própria solidão, os meios para uma retomada de si, afirma Bachelard, ao
discorrer sobre Siloe - a fonte de juventude intelectual (1992a), com a qual Gaston Roupnel
introduz sua noção de arte como redenção. Esta “faz concordar o início do ser com o início
do pensamento” (1992a, p.5), extraindo desse novo sentido de si a restauração do poder de
criação subjetivo. A dialética deste “instante de conhecimento nascente” torna-se origem da
intuição. Assim, “o mistério torna-se claro” no exato momento em que o fracasso torna-se
sucesso, ao exibir a “consciência do irracional” no fato imediato da renovação espiritual
que brota da ignorância.
Portanto, desfrutar de poemas, em estado de meditação solitária, nos recompensa
com novas e originais intuições portadoras de significação metafísica, enquanto conduz o
espírito a seu destino de evolução e superação. Mas, para isso, é necessário situar “no limiar
da leitura, o misterioso refúgio da personalidade” (1992a p.8). Nossa intimidade mais
profunda deve estar disponível à aventura que pode derivar de nossa exposição ao
retentissement do poema, dado que tal novidade da intuição só pode ser experimentada
diretamente em sua fonte e origem.
Mais adiante, apresentando seu pensamento primeiro sobre o imaginário poético,
Bachelard, entre outras imagens, indica nas figuras do surrealismo uma cintilação do
espírito que revela sua luz profunda. Seria esta a função decisiva da imaginação, a qual “de
um monstro faz um recém-nascido” (1972b). Enigma de ambiguidades que, porém,
apresenta a mesma estrutura explicativa que se está evidenciando, ou seja, uma paradoxal
divergência criada pelo embate de termos dicotômicos, anunciando que monstros do
inconsciente, refigurados nas imagens do surrealismo, no instante em que fazem brotar a
comoção estética verificada através do encanto do espectador – raptado, por exemplo,
diante dos quadros e instalações de Salvador Dalí – cria na alma ternura análoga ao afago
de um bebê.
89
Assim, algo fundamental para a presente pesquisa foi alcançado. A saber, a lógica
interior ou a comoção estética, integrando ambiguidades, liberta dos vínculos com o real,
permitindo-nos aceder aos sonhos acordados da obra poética.
É a Arte que nos liberta da rotina literária e artística. Ela cura o cansaço de nossa
alma e rejuvenesce a percepção desgastada. Restitui à expressão degradada o
sentido ativo e a representação realista. Trás de volta a verdade à sensação e a
probidade à emoção. Ela nos ensina a usar nossos sentidos e nossas almas como
se nada ainda tivesse deturpado seu vigor nem arruinado sua clarividência. Ela
nos ensina a ver e escutar o Universo como se só agora tivéssemos sua sã e
imediata revelação (1992a, p. 98)
42
Seguindo a mesma linha de pensamento, se diz que: “Somente quando todos ao meu redor forem diferentes,
poderei sentir-me igual a eles”, ou seja, a raiz da igualdade entre seres humanos encontra-se, paradoxalmente,
no fato de sermos, todos, igualmente diferentes uns dos outros. Do mesmo modo, nas reuniões dos grupos de
Alcóolicos Anônimos (AA) – irmandade mundial fundada na prática do programa de 12 passos para a
recuperação do alcoolismo – durante as quais, membros sóbrios compartilham a própria história, em
depoimentos pessoais, a probabilidade que o visitante possa se reconhecer numa dessas narrativas
autobiográficas, estimulando-se, por espelhamento, a ingressar na recuperação, aumentará conforme a
diversidade das histórias que ouve. Ou seja, quanto mais experiências diferentes o novo ouvir, maior será a
possibilidade de que alguma delas possa tocar-lhe a alma.
92
conceituação racional, com o qual o filósofo inicia, constituindo bases conceituais para um
novo pensamento do imaginário que não teme, pois, o embate entre polaridades – matéria e
imaginação – que, formalmente, segundo a reflexão filosófica tradicional, tenderiam à
recíproca exclusão.
Entretanto, nas páginas de L’eau et les rêves, vê-se a divergência confluir em modo
complementar, integrando diferenças numa modalidade de pensamento dinâmico que
conduz à renovação da reflexão estética através da abertura constante do raciocínio ao
confronto com dicotomias e negações que, em clima de ambiguidade, dialetizam os
procedimentos do espírito, fazendo progredir o conhecimento. “As forças imaginantes de
nossas mentes desenvolvem-se em duas linhas diferentes. Umas encontram seu impulso na
novidade e na natureza, as outras escavam o fundo do ser, onde querem encontrar o
primitivo e o eterno” (1997, p.41).
A atividade espiritual da imaginação surge, então, como dinâmica polar que
consente a distinção de dois tipos de imaginação, ambas produtoras e proliferadoras de
imagens. Uma delas é “formal”, e alcança seu objeto através da percepção visual; a segunda
modalidade de imaginação é “material”, propõe o embate direto com o aspecto concreto do
mundo, através do movimento criativo das mãos. Enquanto a imaginação formal
contempla, à distância, as arestas e contornos da realidade, dando origem ao vício de
ocularidade – que, em última análise, reduz o objeto a uma ideia da mente, assim como
reduz a imaginação mesma à lembrança da memória – a imaginação material procede ao
embate criativo com as substâncias reais, encontrando de imediato a solidez da matéria.
E assim Bachelard, qualificando-se como filósofo iconoclasta em sua busca pela
raiz da força imaginante fala em “encontrar por trás das imagens que se mostram, as
imagens que se ocultam” (1997, p.41). Mais oposições e alteridades bipolares que realizam
com primor sua função. Ou seja, aquela de esclarecer a diferença entre o aspecto concreto
de uma imaginação fraca - ocular e visual -, que sonha somente aquilo que vê no real, e a
verdadeira imaginação criativa, entregue ao devaneio forte e profundo, causado pelo
embate – criador de obras – com a matéria do mundo. A imaginação material concretiza,
portanto – entre muitos outros – os devaneios do ceramista, do ferreiro e do poeta cósmico.
Esta imaginação que mergulha na substância desfruta de uma total liberdade dos
vínculos com a realidade, ela sabe sonhar mais intensamente, sabe ousar mais em seu
94
devaneio. Para evidenciar esta força criativa da imaginação material, o autor fala em
vegetação obscura e flores negras, criando binômios que incomodam enquanto costuma-se
atribuir à vegetação, à luz de que necessita e às flores, as cores em que brilham. O
desconforto que surge com estas imagens ambíguas serve para preparar o espírito ao
mergulho no ser mesmo das substâncias, com o qual a modalidade material de imaginação
traz à tona novidades inusitadas e surpreendentes – geralmente ambíguas e contraditórias –
sonhadas sob o influxo da profundidade poética da matéria.
Bachelard sugere que a meditação de uma matéria específica pode ajudar a
desenvolver uma imaginação aberta. Pode-se supor que isso se dê, sobretudo, devido ao
aspecto de dinamismo inerente às transformações, às quais a matéria se submete sem perder
sua original substância. Se meditada em profundidade, “a matéria é o princípio que, a
despeito de qualquer deformação ou fragmentação, continua sendo ela mesma” (1997,
p.3).
Exemplificando sua capacidade de suportar o confronto com a negatividade ou
contradição, a matéria independe totalmente de suas formas. Essa extraordinária capacidade
de ileso acolher oposições, mesmo as mais radicais, que por ventura a deformem ou
fragmentem, abre a porta dos sonhos. A realidade permite a liberdade do devaneio, em suas
mais ousadas experimentações. A matéria do real não lhe impõe nenhuma limitação,
enquanto se deixa valorizar polarmente, numa dualidade de sentidos: por um lado, a
matéria se oferece à imaginação como mistério insondável, conforme o devaneio a penetra,
seguindo o impulso de aprofundamento que a matéria mesma emana. Por outro lado, dela
surge o milagre de uma força inexaurível. De um modo ou de outro, meditar a matéria,
neste caso, fogo, água, ar e terra, torna-se escola de dinamismo evolutivo e de
transmutações para o pensamento que se exercita na arte do devaneio poético.
Encontra-se em Bachelard um modo de reflexão que potencializa a ambiguidade,
geralmente instaurada pelos mecanismos da polarização de perspectivas, que, por sua vez,
desfruta das diversas vozes negativas, nas quais se propõe qualquer oposição. É o caso da
demonstração que sem limitar-se à simples polarização dicotômica de seu objeto de estudo,
inverte também a ordem mesma na qual tal objetividade se dá ao pensamento usual. Assim,
exemplificando o que está afirmado , o autor desenvolve, nos meandros da emoção estética,
uma análise que contrapõe imaginação e devaneio à contemplação e percepção, invertendo
95
43
Deve-se a tal convicção o fenômeno que percebemos em qualquer museu de arte contemporânea, quando
visitantes menos experientes tentam reconhecer em imagens deformadas, que tendem à abstração, indícios de
alguma realidade concreta. Manifestam, geralmente, o incômodo do realismo frustrado com a pergunta: “Isso
o que é? O que representa?”. E, num desejo de concretismo ainda mais profundo, sempre no ambiente do
museu, no degrau sucessivo ao visitante frustrado, colocam-se aqueles, supostamente mais preparados à
fruição da arte, que contemplam plaquinhas com o nome dos pintores, antes mesmo de olhar a imagem.
Procuram reconhecer a entidade física por trás da imagem etérea. Traduzem, portanto, a mesma convicção
comum que postula a prioridade do concreto sobre o abstrato.
44
Método de propagação vegetal no qual se introduz, com um corte no caule, a parte viva de uma planta em
outra (chamada cavalo) para que nessa se desenvolva, em simbiose com o organismo que a acolhe. Termo
usado também, em caso de implante de tecido ou órgão de um ser vivo em outro organismo vivente.
96
poética. Tal noção encaixa-se bem na ótica de nosso interesse, pois funciona como
intermediário ou elemento de ligação, fazendo interagir polaridades divergentes, função,
por isso, fundamental na produção de um autor que identifica oposições dicotômicas por
toda parte.
Mesmo quando se trata de descrever o objetivo de L’eau et les rêves, enquanto
ensaio de estética literária, Bachelard não perde a oportunidade de fundar mais uma
polaridade: “Nosso livro tem o duplo objetivo de determinar a substância das imagens
poéticas e a adequação das formas às matérias fundamentais” (1997, p.15), referindo-se
sempre à dicotomia explicativa de seu princípio da imaginação dupla, formal e material.
Como já apontado, retornam em mente as construções abissais da literatura
francesa: polaridades dentro de outras polaridades, dicotomias que se explicam
antagonicamente. Os próprios poetas também são classificados de modo divergente,
separados entre duas categorias: “Poetas distraídos” que cantam a superfície da água, e os
“Poetas mais profundos” conectados à água viva que renasce de si. Neste caso também
vemos a polarização tornar-se ainda mais complexa, devido ao recurso à inversão ambígua
e paradoxal da sentença que segue: “Mas é permanecendo longamente na superfície
refulgente que compreende-se o valor da profundidade” (1997 p.16).
O trecho seguinte acrescenta fundamentos reveladores de um trajeto profícuo em
termos de análise teórica do procedimento bachelardiano por ambiguidades, paradoxos e
contradições, que se pretende demonstrar nesta ocasião. A ausência de referências
específicas do filósofo, sobre o uso de tal metodologia, certamente dificulta esta
investigação, mas, ao perseverarmos será adiada a formulação de conclusões específicas a
um momento mais avançado da pesquisa. O pensador de polaridades admite diretamente
em suas palavras e, em segunda leitura, dado que até mesmo a leitura se duplica:
propriedade de linguagem, mas sim, enquanto reflete uma qualidade ínsita na matéria
mesma, ou – como parece, ao enunciar a ligação recíproca que abre a citação acima –
enquanto atributo psicológico da linguagem, que a imaginação, no instante do devaneio
profundo, transmite e faz ecoar na matéria, dotando-lhe de originalidade. Fazendo-a viver
duplamente, o devaneio insere a imagem material no eixo polar de contrários, repercutindo
nela a tensão de oposição ou inversão, qual linfa capaz de criar o êxtase poético.
Sente-se bem nesta integração ou complementaridade entre qualidades antinômicas
de um mesmo ente ou substância, a sombra ou fantasma de uma totalidade perdida. Quase
como réplica da grande obra alquímica, ao fazer vibrar o ente no arco tenso que coliga
todas suas divergências, no domínio ambíguo do paradoxo – frequência exata em que vibra
o reino imaginário – como neblina na serra, sentimos erguer-se, lânguida, a bruma de uma
totalidade perdida e superada, se suposto como válido na filosofia da imaginação o
princípio epistemológico que, valorizando a dinâmica de uma aproximação permanente,
rejeita o absoluto.
Na poética, Bachelard postula o vigor da sublimação absoluta, que transcende a
imagem sem referi-la a outrem que não o ser de seu retentissement. Ao mesmo modo,
pode-se supor que no eixo rijo, mas vibrante, que coliga a qualidade à sua negação, notas
contraditórias transcendem-se numa vibração dicotômica que gera o êxtase da palavra. Por
isso a referência à bruma ou fantasma de uma totalidade absolutamente sublimada na
imagem. A transcendência resolve-se no inexaurível dinamismo de uma superação que
comove, criando novidade na linguagem poética.
A matéria é então ocasião de ambivalências, que são ditas psicológicas, enquanto
derivadas da alma, e da imaginação que a faz viver duplamente, representando ao mesmo
tempo uma dinâmica qualitativa original da matéria. Ser ambivalente nos torna semelhantes
ao princípio material do universo. Autóctone ou reflexa, a ambivalência gera uma
polaridade na matéria, instaurando seu duplo poético. O surgimento desta dicotomia de
oposição entre a matéria e seu duplo, diz o filósofo, é o que dá origem a transposições sem
fim que, por sua vez, permite o pulular de imagens. A infinita capacidade de transpor-se da
matéria, de pôr-se além, permanecendo nela mesma, traduz sua dança no arco teso que
reúne o vibrante ecoar de suas qualidades contrárias, no eixo mesmo da palavra poética.
98
Nesse eixo de linguagem comovente, a matéria ou elemento – fogo, água, ar e terra – nega-
se e se inverte, opondo-se a si mesma.
A participação, dupla e simultânea, às tonalidades contraditórias de suas qualidades
é o que atrai a alma sensível do poeta e, por conseguinte, a alma de seu leitor. O que se
esconde, entretanto, nessa anamnese da comoção poética é o elo que nos liga à matéria,
pois, aquilo que nos seduz na dança elementar de contrários é a consciência que temos de
nossas próprias contradições. A vibração do paradoxo material repercute nossa própria
ambiguidade. A valorização dicotômica do ser material, ao fazer-se poética de antinomias,
atenua o véu que, na intimidade, sela nossas polaridades e, no instante do poema, instante
poético e metafísico, nossas almas, vibrando, saltam no paradoxo, dançam entre
contrários... O maniqueísmo do devaneio é a chave de volta de nossos esforços.
No domínio do imaginário, o maniqueísmo das qualidades materiais instiga a
dialética que dá vida ativa à palavra poética. “Assim a água elementar de Poe coloca um
universo em movimento [...]. Lendo Poe, compreendemos a vida das águas mortas”, diz
Bachelard (1997, p.18).
Bachelard diz que no poema de Edgar Allan Poe alcançamos a rara – enquanto
ambígua – compreensão do significado vida, em algo morto. Palavra do poeta. A
imaginação material nutre-se, portanto, nesta polaridade da matéria, no materialismo duplo
que anima o devaneio sobre elementos materiais que buscam “casamento ou combate,
aventuras que apaziguem ou excitem” (1997, p.18).
A atração por polarizações não pode evitar o devaneio das misturas materiais. Aqui,
a água imaginária, como solvente universal, torna-se para Bachelard o “esquema
fundamental das misturas, elemento das transações” (1997, p.18-19) entre os polos de toda
oposição. Assim o filósofo nos apresenta a massa de barro – mistura de água e terra – como
paradigma da relação entre causa formal e causa material da imaginação e das imagens.
Esquema fundamental da materialidade que tem seu emblema no empastar do padeiro e do
ceramista. Duas formas arcaicas e ultra significativas de criação material, que, entretanto,
combinando matérias heterogêneas, muda a perspectiva do que foi dito nesta tese sobre a
dança polar da matéria, em meio às suas notas contrárias como campo de sublimação
absoluta. Ali não se dá propriamente uma mudança de estado do elemento material que
permanece sendo ele mesmo.
99
Na mistura substancial que o filósofo analisa – no caso das massas – terra e água,
elementos distintos, dão origem ao barro, fusão elementar que transforma os termos iniciais
num terceiro termo distinto. Tal dialética das misturas, ou das massas, serve a Bachelard
para demarcar confins entre a imaginação material e a imaginação formal, pois, como ele
diz:
A mão ociosa e acariciante (...) pode se encantar com uma geometria fácil. Ao
contrário, a mão trabalhadora e imperiosa aprende a dinamogenia essencial do
real ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como uma
carne amante e rebelde. Acumula assim todas as ambivalências
(BACHELARRD, 1997, p.19).
45
“O rumor das ondas enche a imensidade do céu ou o interior de uma concha” (BACHELRD, 1997, p.21).
46
D’ANNUNZIO, G. Contemplazione della morte, 1912.
101
47
Lembra-se a máxima do budismo Zen: “Naquilo que é seu vazio, está o uso do vaso”, já que somente o
vazio é cheio de espaço. Encontra-se aí ocasião para constatar, como bem demonstra CABRAL; REZENDE,
2012, a oposição de perspectivas entre Ocidente e Oriente, na consideração da questão dos contrários como
fundo abissal de toda forma de civilização. O volume descreve a lógica ocidental como lógica de binômios e
apresenta a mudança de estações em um jardim, como metáfora arquitetônica de uma unidade de pluralidades
- os diferentes estados do jardim - que se reconfigura em cada momento. Além disso, enquanto no Ocidente a
bipolaridade fundamental dos princípios prevê a subjugação ou domínio de um sobre o outro: bem e mal, luz
e trevas, diabo e inocência, no Oriente, os contrários (Yin e Yang) harmonizam-se, enquanto momentos de
uma única totalidade universal.
102
como único acesso seguro ao ser nascente da imagem, no instante da criação poética, e
também, como acesso seguro à vibração e repercussão, com as quais a imagem emociona
leitores, no momento fecundo da comoção estética.
Movimento e mutação são as duas ideias-chave que nos instalam, de imediato, no
cerne de um pensamento que ama definir-se através de múltiplas dialéticas que, inspirando-
o à contínua dinâmica de evolução, superação e renovação, terá também o mérito de
conduzi-lo à realização de seu destino de transcendência, instalando-o no domínio de uma
permanente abertura à multiplicidade de perspectivas de atuação e, notadamente, à
polisignificação de suas imagens e metáforas. Deste modo, abre-se também uma Via reggia
à interação com a diversidade – com o outro de si e, portanto, com as diferenças – via que
atravessa toda ambiguidade de colóquios dicotômicos ou antinômicos, abertos às
divergências e polarizações existentes nas oposições, negações e contradições.
Ao anunciar o novo conceito de uma imaginação madura e autônoma, que
finalmente se viu ter audácia e temeridade para, diante de seus opositores, declarar
liberdade dos vínculos com a realidade concreta que – subtraindo-lhe dignidade – a
reduziam à condição de vestígios de percepções ou lembrança do passado, o filósofo define
a imaginação não mais como faculdade de formar, mas sim de deformar imagens. O uso do
termo em negativo, na forma contraditória de seu significado antecedente, esclarece
imediatamente a total e irrestrita liberdade desta nova imaginação, independente e
autônoma, de pé sobre suas próprias pernas. Sem causas, essa imaginação transformada
anula o interesse psicanalítico por vivências traumáticas no passado do poeta. As novas
imagens são, elas mesmas, causas de um passado próximo que, paradoxalmente, projeta-se
adiante, concretizando o que Felício (1994) chama de determinismo às avessas:
ausência. Imaginar é ausentar-se, lançar-se a uma vida nova [...]. O devaneio nos transporta
alhures” (1994b, p.10).
A vivacidade da imagem sonhada pelo poeta transforma-se em impulso que conduz
o leitor à deriva, em direção a uma nova vida imaginária. O autor usa os fortes termos
alívio e ardor – sentimentos opostos - para caracterizar o efeito produzido no sonhador,
pelo movimento ou dinamismo nele instaurado pela imaginação, pois: “um belo poema é
como ópio ou álcool. Deve produzir em nós uma indução dinâmica” (1994b, p.10). Como
se sabe, indução em Bachelard traduz criação. Portanto, o dinamismo poético faz do leitor
um criador de imagens próprias, que descobre nos matizes fugidios do devaneio de um
poeta mudanças que só ele intui, transformações que lhe são próprias e que revelam
segredos de sua alma mesma, às vezes, nem por ele conhecidos. A partir dessa forte
sedução, exercida transubjetivamente, por efeito da criação do poeta, tem início no leitor
uma profusão de novas imagens48.
Assim, lendo progressivamente a poética bachelardiana, esta reflexão sobre a
metodologia de contrários conquista um nível ulterior de complexidade, devido ao
evidenciar-se do papel fundamental que nela ocupa a dinamogenia da alma poética. A
questão dos incontáveis termos bachelardianos que descrevem o movimento, configura um
mobilismo imaginado e generalizado que deixa a marca do dinamismo sobre imagens que,
audaciosamente, deformam a percepção da realidade até fazer-nos experimentar o estado
fluido do psiquismo imaginante (1994b, p.11), que acaba por afirmar o realismo da
irrealidade, sempre no embate entre contrários, para obter, assim, o máximo de
expressividade dos termos que utiliza.
Do mesmo modo, quando diz: “No reino da imaginação a toda imanência se junta
uma transcendência” (1994b, p.12), a inversão à qual recorre, em seu juízo poético,
manifesta a vantagem de uma descrição - por vias ambíguas e paradoxais - de realidades
imaginárias, situadas além de nossa experiência comum num domínio ao qual a
expressividade poética impõe a superação do pensamento comum, habituado às
48
Segundo o filósofo: “Seguir num jardim o desabrochar das flores oferece modelos da dinâmica das
imagens”. Pensa-se, então, no impacto que teria acometido Bachelard diante da experiência de imagens, às
quais nos habituamos, que reproduzem, acelerando em frações de segundos, devido à multiplicação de
fotogramas, o lento desabrochar das flores.
105
Além disto, nota-se que a imaginação material revela em si aspectos que a definem
como ambivalência, enquanto, se por um lado sonha a matéria, por outro, materializa o
imaginário. A duplicidade de conotações, no princípio mesmo da demonstração, serve para
caracterizar ainda mais a metodologia de ambivalências – que se busca afirmar – na prática
intelectual de um pensador em si mesmo dicotômico, já que, simultaneamente à sugestão de
polaridades e contradições, o pensamento fluido de Bachelard preocupa-se também em
refutar objeções que apontem contradições em seu procedimento.
Com tal propósito, ele afirma o dinamismo essencial ao devaneio dos quatro
elementos primordiais, precavendo-se, em tal modo, de uma possível objeção por
contradição à mobilidade do imaginário, caso surgisse na consideração de um dos
elementos algum princípio de fixidez e monotonia da imaginação. Mas, ao contrário, o
psiquismo sonhador é sempre dinâmico. O devaneio poético caracteriza-se como atividade
de sublimação e transcendência, a saber, uma essencial prática de superação.
Este procedimento de investigação parece evidenciar, com progressiva clareza, as noções
de novidade e dinamismo como núcleo da questão que envolve as frequentes contradições e
ambiguidades num mecanismo demonstrativo, ou melhor, numa metodologia dinâmica de
exposição e discussão de princípios essenciais à evolução do saber. Aos poucos, vai se
tornando próxima a linha de raciocínio que permitirá formular a razão específica deste
procedimento por ambivalências. Em última análise, se verá que, ao explicar a oposição
existente entre pensamento cinético – que procede segundo ligações geométricas e
topográficas entre conceitos da mente – e pensamento dinâmico – que, ao contrário, evolui
através de saltos e rupturas - em modo, portanto, mais compatível com a dialética da
imaginação – como se verá adiante, Bachelard nos indica, especificamente, a linha de
argumentação que se deve seguir.
Por enquanto, vislumbrando o raciocínio que permitirá reunir estas intuições e
demonstrações num discurso sensato, antecipa-se a surpresa de encontrar a chave do
segredo das oposições bachelardianas. Chave encerrada, por sua vez, em uma ulterior
oposição, configurando em tal modo o que se poderia chamar de uma meta polarização,
uma verdadeira metodologia demonstrativa, fundada sobre um esquema de construção
conceitual abissal, uma autêntica de construction abimée.
107
dialético de direções imaginárias traz consigo mesmo uma dificuldade que o autor supera,
utilizando o mecanismo de inversão de imagens, a ser considerado doravante caracterizado
em sua valência metodológica, a saber, como instrumento mesmo da análise filosófica.
O filósofo reconhece a poética aquática ou terrestre como campo de investigação
estética que melhor se adapta à análise da queda nos vórtices do imaginário. Mas mesmo
assim, justifica-se, afirmando no ensaio sobre o ar a oportunidade de tratar a imaginação da
queda abissal como imagem de uma ascenção invertida. Saída paradoxal para uma
emboscada do pensamento filosófico.
Bachelard não se importa com o fato que talvez, figurar-se em termos estéticos uma
inversão da ascenção possa implicar no discurso filosófico dificuldades maiores que aquela
a ser superada por tal inversão. Supõe-se que o hábito de recorrer, no pensamento e na
escrita, a figuras ambíguas e paradoxais, situe o pensador além do desprezo, preconceito e
rejeição intelectual que o racionalismo acadêmico dedica, em geral, à oposição como
procedimento do pensamento demonstrativo.
Em tal modo, Bachelard (1994b) reflete sobre os dilemas do imaginário cósmico,
nos moldes de uma racionalidade renovada, que não vê risco nem ameaça de insensatez49 ao
propor seu pensamento sobre a imaginação da vertigem que confunde a razão, sobre o
símbolo ambíguo da árvore aérea que inverte os parâmetros da imaginação terrestre e aérea
ou ainda sobre a inspiração que da figura contraditória de uma declamação muda. “O gênio
reúne pensamento e imaginação.
No gênio, a imaginação produz o pensamento” (1994b, p.24), afirma o filósofo,
causando no leitor a sensação de um orgulho aporético, que instiga e incentiva o intelecto
ao enfrentamento de ambivalências e ambiguidades, às quais confia, com frequência, o
desenvolvimento de suas argumentações mais ousadas. A dinâmica de oposições, através
da qual ele examina o simbolismo da altitude como núcleo de imagens do devaneio aéreo,
nos ensina também o ideal de viver contra o peso, viver verticalmente na coragem de
reerguer-nos – dos fracassos existenciais e das recaídas em erros – aos valores de
crescimento e elevação, formulados numa imagética de altura, de luz e de paz.
49
Objeções por insensatez são uma tradição do pensamento filosófico, desde Santo Anselmo d’Aosta (séc.
XI), cujo argumento ontológico para a demonstração da existência de Deus, em termos de Id quod maius
cogitari nequit (Ente do qual não se pode pensar um maior) torna-se alvo de uma objeção que, embora fosse
elaborada com o rigor do raciocínio filosófico, não obtém poder de prova, pois fora expressa por um
indivíduo insensato (stolto). A objeção ficou, então, conhecida como obbiezione dello stolto.
112
Dessa maneira, ao citar a Ode a uma grega, de Keats: “As melodias que se ouvem
são doces, mas as que não se ouvem são ainda mais doces” (1994b, p.281), o autor nos
conduz consigo ao lugar onde a ressonância da imagem supera sua manifestação concreta –
escrita ou declamada que seja – ingressando no campo misterioso e quase inacessível do
devaneio profundo, que traz consigo novos parâmetros de realidade, que inverte regras
lógicas, funda ontologias, manifestando o irreal como campo de existência poética. A frase
citada parece confirmar, na inversão do poeta, o que nos ensina a teoria da segunda leitura,
a saber, com a intensificação da meditação, novas significações emergem do poema,
custódio de segredos infinitos, palavra muda que guarda em si a doçura do que não se ouve
em superfície. E nesta delicada harmonia, muitas vezes oculta na página literária, “o
pensamento fala e a palavra pensa” revela Bachelard (1994b, p.282), utilizando sempre
jogos ambíguos de dicotomias invertidas, como meio de acesso a significados
inexprimíveis e mesmo inexistentes na linguagem comum, na horizontalidade linear e
monótona da lógica acadêmica. Ele nos inspira trajetos de um raciocínio transversal,
adequado a conteúdos expressivos dinâmicos, em permanente mutação de valores,
metafóricos e dialéticos.
Se Bachelard, com Keats, sugere a possibilidade de uma expressão poética do
imperceptível, com os Pequenos poemas em prosa, de Baudelaire (1869), ele parece revelar
a função precisa do uso da contradição em campo poético: “Quem não sonhou com o
milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo, assaz maleável e contrastante para
adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da
consciência” (1994b, p.283), canta o poeta atormentado, na convicção de que a polaridade
poética represente o milagre que acessa movimentos, ondulações e sobressaltos da alma, do
devaneio e da consciência.
“Em três linhas, Baudelaire designou todos os aspectos fundamentais do dinamismo
da prosa”, comenta Bachelard (1994b, p.283), colhendo a oportunidade para acentuar a
polifonia e o panlogismo que em sua vigência imaginária instaura o universo poético –
entre o real e o irreal – como reino das diferenças e da diversidade de palavras, símbolos e
pensamentos.
A filosofia estética bachelardiana, tomando a poesia como fenômeno do silêncio,
investiga também a dicotomia existente entre a leitura e a audição do poema, entre a poesia
114
É esta, então, a verdadeira função do poema. O estupor e surpresa com o qual são
acolhidas as inusitadas novidades do poeta servem para relembrar-nos nossa habilidade
para a criação instantânea de significações inéditas, nossa capacidade de tecer sonhos
novos, de sonhar o insonhável, pois, o signo poético – imagem com a qual o poeta molda e
remodela, constrói e reconstrói, seu devaneio – não é recordação nem lembrança e, nem
mesmo, a marca de um passado. É a satisfação de uma emergência da imaginação, do
desejo humano de criar universos imaginários.
Pura ousadia, a imagem literária representa na imaginação a metamorfose que
somos na realidade, onde – seguindo o fio bachelardiano das negações afirmativas ou dos
50
O ritual mágico que separa num instante a racionalidade conceitual do devaneio imagético nos traz à mente
o verso de Lupicínio Rodrigues, na canção Felicidade: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é
que a gente voa quando começa a pensar”, no qual é o pensamento mesmo que sonha e que, portanto, voa.
51
Terroir seria aqui o termo adequado, de uso frequente na Borgonha, terra natal de Bachelard, le terroir
traduz no cenário dos vinhedos não somente o solo como terreno, mas também a influência de fatores
climáticos, a direção e a força dos ventos, a integração dos elementos naturais, e assim, traz em si todo o
environnement circunstante.
115
paradoxos sensatos – o indivíduo, para pensar-se como ser, deve abjurar seus próprios
erros, como diz Bachelard em O idealismo discursivo (1934), afirmando também que:
É fechando os olhos que nos preparamos para ver [...], logo, só conseguirei me
descrever como sou se disser o que não quero ser. Só aparecerei com clareza a
mim mesmo como a soma de minhas renúncias. Meu ser é minha resistência,
minha reflexão, minha recusa (1970, p.85).
p.286-287 ). E vai além, ao afirmar a realidade dos “duplos, triplos e quádruplos sentidos
poéticos” (1994b, p.287).
Diga-se que, junto ao aspecto da metodologia de contrários - como seu motor - a
presente pesquisa progride, ao ilustrar com o que foi dito, a mobilidade de imagens que,
possibilitando sínteses violentas, caracterizam a linguagem como função de imprudência
humana e expressão princeps do exagero imaginário.
Ao se projetar no bachelardismo a ligação entre os termos que descrevem a
perspectiva de seu dinamismo, com aqueles que, paralelamente, traçam o característico
contexto de ambivalências e contradições, chama-se em causa o Bachelard ledor de
Friedrich Nietzsche, que cita, de La volonté de puissance (p.217): “Dotado de uma vista
mais sutil, verás todas as coisas instáveis”. A instabilidade de todas as coisas do todo, pois,
funda paradoxalmente o ponto de vista que coliga dinamismo e negação, ao inserir todo o
arco da investigação intelectual na prática de um pensamento aberto, liberto das amarras
milenares que o paralisavam no cativeiro do conceito de absoluto, rija delimitação da
atividade reflexiva contingente, desvalorizada no confronto com a realidade inteligível das
ideias eternas e universais, e dos conceitos primeiros como modelos de toda lógica
reflexiva.
Além do dinamismo das forças que, em conflito, configuram indivíduo e mundo, e
que são decorrentes do cancelamento da noção de absoluto, por obra da metáfora da morte
de deus, encontramos outro possível foco da leitura bachelardiana do filósofo alemão, na
ideia de construção de si como obra de arte.
Partindo da interrogação de Píndaro sobre como alguém se torna o que é, a autora52
investiga na obra de Nietzsche (Gaia ciência, Zaratustra e Ecce homo) a noção de
construção de si enquanto obra de arte, como uma solução para a náusea existencial
decorrente da ausência de justificação ao problema do sofrimento presente na vida humana.
Somente como fenômeno estético, a existência - liberando-se de seu aspecto cruel - torna-se
suportável, sem fazer recurso à consolação metafísica, contando unicamente com a humana
capacidade de recriar-se como obra de arte, de inventar um novo papel e uma nova forma
de agir, dando assim um novo estilo ao próprio caráter. Fundamental nesta transformação
52
Caixa Cultural do Rio de Janeiro, Ciclo de Palestras: Nietzsche: Filosofia, Arte e Vida. (Orgs.). André
Masseno e Tiago Barros. E anotações durante a palestra em 26 de junho de 2012 de Rosa DIAS: “Nietzsche: a
vida como obra de arte”, Rio de Janeiro.
117
da humanidade é a tarefa de disciplinar os impulsos que dominam o corpo, em sua luta pelo
predomínio de um sobre os outros, cada um tentando impor sua própria vontade de poder,
tendência fundamental da vida.
Esta pluralidade de impulsos corpóreos em lutaage através do intelecto e da
vontade, meras faculdades instrumentais com as quais o corpo alcança seus fins específicos,
ressaltando portanto que a decisão de se modificar não é da ordem da consciência. É o
inconsciente corpóreo que nos guia. Mesmo assim, o ser humano ainda pode se reeducar
para superar a tristeza da existência. Contra a imutabilidade e fatalidade do caráter, o
indivíduo faz surgir, em si mesmo, um novo ser, capaz de tornar-se o que ele é. Esta
necessidade de autossuperação institui a necessidade de reorganização da própria vida
como estímulo ao processo constante de superação do homem. Com tal finalidade, em O
andarilho e sua sombra (in: NIETZSCHE, 2008) encontra-se o princípio de organizar a
própria vida segundo o que é mais próximo e seguro. Portanto, bem mais próximo do que
as quimeras da imortalidade ou mesmo da divindade, estão os aspectos mais simples do
modo de vida de cada um, como a moradia e o regime alimentar, por exemplo. Assim, o
olhar volta-se às pequenas coisas da vida, aos conselhos propícios à boa saúde, pois, para
um bom domínio de si como guia a ser o que se é, torna-se necessário superar o fundo
primitivo de bestialidade presente no homem, evitando a satisfação dos impulsos como uma
fatalidade.
Sem caluniar os impulsos, o pensamento nietzscheano (NIETZSCHE, A genealogia
da moral, SP – Companhia das letras, 2009) prevê que a Grande Razão que preside cada ser
vivo os dobre sob o jugo de uma severa disciplina, propondo o exercício de uma ascese
como meio de luta, como técnica de subjugação de si, visando a superação do estado em
que o homem se encontra. Um ascetismo temporário torna-se necessário à boa organização
dos impulsos, transformando Nietzsche em filósofo médico que prescreve curas lentas para
enfermidades da alma, consideradas como decorrentes de estilos de vida negligentes; o que
por outro lado, revela o ego como um embuste ideal que sucumbe à lógica
desidentificadora da reinvenção de si mesmo.
A afirmação da vida como invenção refuta a noção de sujeito como ficção. Quem
faz o eu é o corpo e a sua razão. É a unidade corpórea que proporciona a identidade do eu,
como realidade móvel, como identidade que difere a cada instante. Fazer o eu adquire
118
“seres que se deslocam para mudar” (1994b, p.290), os quais relatam claramente o
movimento como uma vontade interior de mudança. Não se trata mais do simples “estudo
objetivo e visual do movimento, estudo cinemático” (1994b, p.290).
Migramos assim para o domínio do saber retificado, para uma análise da
experiência renovada do movimento, enquanto esta mesma, além dos traçados numéricos
de gráficos e linhas no papel, leva em consideração fundamentalmente a vontade de mover-
se. Este tipo de abordagem bachelardiana da questão do movimento ilustra com eloquência
uma forma de deslocamento num eixo polar de investigação. A saber, abandona-se o ponto
de vista técnico – fundado sobre a exterioridade fenomênica do problema em pauta – para
migrar em direção à consideração de referências concernentes ao âmbito oposto, da
interioridade54.
Os seres que se movem tornam-se, pois, causas iniciais de movimento, devendo
portanto, serem estudados segundo as diretivas mencionadas acima, a saber, praticando
uma variante do típico procedimento bachelardiano por inversões metodológicas, que nesse
caso, prevê o desprezo do procedimento clássico da mecânica – filosofia de descrição
cinemática (1994b, p.290) – substituído pela nova démarche da pesquisa – filosofia de
produção dinâmica – que, como anunciado, levará em consideração a ordem da
interioridade do movimento, acolhendo, portanto, as experiências de dinamismo
acumuladas nas análises da imaginação material, ponto de vista anteriormente desprezado
pela pesquisa científica.
Nota-se assim mais esta aplicação do princípio bachelardiano de dualismos
dicotômicos, segundo o qual o filósofo distingue, no estudo das noções de mudança e
movimento, essas duas possibilidades de démarche filosófica: por descrição cinemática ou,
inversamente, por produção dinâmica; visando enriquecer a discussão sobre o tema do
movimento, enxertado no domínio da vontade e da imaginação, capazes que são, como
visto, de produzir uma profusão de imagens materiais e dinâmicas. Será visto ainda que a
perspectiva bachelardiana da imaginação, com suas imagens materiais e dinâmicas, corrige
a défaillance de uma análise que, restrita ao cinematismo, não conseguia atingir o
54
Notamos tratar-se aqui da mesma inversão de rota, com a qual vimos Bachelard fundar sua nova
modalidade de crítica literária, ou seja, após rejeitar a racionalização conceitual como critério crítico da
produção estética, ele instaura a modalidade de uma segunda leitura do poema; uma leitura com a alma e não
mais somente com a mente lógica, apta portanto a fomentar vivências profundas de experiências poéticas.
121
O leitor despercebido poderia nem mesmo notar aí a sofisticada tese filosófica que
Bachelard traduz em palavras tão simples, que escorrem fluidas no corpo de seu texto. A
percepção e o consentimento à mobilidade interior, ou melhor, a constituição – é o termo
que usa – de tal dinamismo intrínseco ao ente que deve conjugar devir e ser. Equivale à
afirmação de um ser essencialmente em devir, afirmação do devir como verdade incerta de
um ser que é mutante. Delicada conquista de uma tese filosófica fundamental, alcançada
aqui em duas linhas. Remete-se, portanto, à negação do absoluto que foi visto pairar sobre a
filosofia de Bachelard, assim como sua atenciosa leitura de Nietzsche, filósofo do devir.
No que concerne a presente tese, pode-se avançar a proposta que convalida o uso
metodológico frequente de contradições e ambiguidades como principal motor da evolução
dinâmica de um saber que se constrói como abertura à mutação permanente. E se antes se
buscava – numa ideal compilação de listas de termos bachelardianos dinâmicos e polares –
o fundamento mesmo para nossa proposta, agora, após o anúncio da tese defendida no
volume aéreo, sabe-se que a contradição de termos opostos, utilizada como dinâmica de
afirmação e reformulação de um saber em estado de permanente retificação, traduz como
método de conhecimento a verdade instável e portanto dialética do ser mesmo.
O corte gnoseológico que tal análise produz no panorama da teoria clássica do
conhecimento tende a tornar-se ainda mais profundo se a reflexão for girada para a
dinamogenia do ato de conhecer, que rege subjetividade e objetividade como polos
dialéticos de mudança permanente, enquanto ambos representam realidades in fieri que se
constituem, reciprocamente, no ato mesmo de seu encontro ou embate:
Não ter acesso à ontologia da imagem significa, em poucas palavras, que não se dá
o fenômeno do retentissement poético, como ressoar do simbolismo que, eclodindo da
mente criadora do poeta, comove o leitor, abrindo as portas de sua interioridade, de sua
alma e de seu coração, no pulular de imagens germinais que determina a proliferação de
imagens novas.
Logo, representações contempladas como espetáculos exteriores, na cena poética
bachelardiana, não são mais que simples promessas frustradas de um devaneio profundo
que, somente ao nutrir-se de intimidade, desabrocha em mutação criativa. Promessas de
uma dinamogenia – radicalmente dialética – possível somente na interioridade do
psiquismo tocado pela comoção do poema55. Se a força criativa não transforma paisagem
em vivência, em experiência, não sentimos o drama do impulso material, nem a “enorme
contradição da vida, que ao mesmo tempo sobe e desce, se eleva e hesita, se transforma e se
endurece” (1994b, p. 297). Na verdade, sem experimentá-la interiormente, em modo
emotivo profundo, não advém o processo mesmo de valorização da imagem, que
permanece, pois, impotente para exprimir a vida, definida nietzscheanamente56 como
atividade de valoração do conteúdo de nossas vivências.
Para Bachelard (1994b, p.297), trata-se de viver, simultaneamente, “a valorização
da vida e a desvalorização da matéria”, diz o autor – numa inversão terminológica que logo
em seguida contradiz a si mesma - solicitando os leitores a se entregarem à imaginação
material, buscando imagens alquímicas no pensamento daqueles que mais sonharam e
valorizaram a matéria, projetando em seus diversos estágios todos os graus da busca pelo
55
A exigência de aprofundamento íntimo, como quesito imprescindível à realização do projeto poético
bachelardiano, que requer comoção, contato com a interioridade de si e a sucessiva transformação do fruidor
de poemas, confirma o que já referimos como êxito de nossa dissertação de mestrado: O devaneio cósmico e o
conhecimento de si, Gaston Bachelard, da alma poética à androginia da alma; onde vimos o autor mesmo
conquistar e anunciar a consciência da ambivalência de sua própria alma.
56
Fernand Turlot, ex-aluno de Bachelard na antiga Faculté des Lettres de Dijon, em correspondência enviada
a Jean-Jacques Wunenburger, e publicada no último número do Bulletin Bachelard, relembra que o mestre
dedicou o curso de 1940-41ao estudo de Nietzsche, passando do vouloir-vivre de Schopenhauer à volonté de
puissance nietzscheana, pensando um futuro livro sobre a Vontade. A recente publicação confirma Bachelard
como profundo conhecedor e estudioso do pensamento de Nietzsche. Turlot afirma que, para Bachelard, as
obras deste último filósofo alemão com plano mais rigoroso eram as menos interessantes: “Suas grandes obras
são heteróclitas[...]em Nietzsche, a vida aceitará perder-se, à condição de sentir-se potente. O ser quer ser
potente mesmo se tivesse, para isso, que perder todos seus bens mundanos[...]. Nietzsche quis ser forte,
sobretudo contra certas ideias (por exemplo, religiosas). No fundo, com um querer forte, não existe mais
crença” (TURLOT, F. Souvenirs, Bulletin n.14, Les années dijonnaises de Gaston Bachelard, 1930-1940.
Dijon, Association des amis de Gaston Bachelard, 2012).
127
57
A negação do contraditório à tese defendida, em verdade, é um velho método de progresso do
conhecimento filosófico, usado mesmo em lógica clássica, como no caso do conhecimento através da via
negationis, utilizado pela filosofia medieval para demonstração dos atributos divinos: negando ao ser supremo
todas as qualidades contingentes do criado, lhe é atribuída a existência suprema.
128
profundidade: “Ao longo da ascenção, se produz uma descenção58. em toda parte e num
único ato, alguma coisa sobe porque alguma coisa desce” (1994b, p.298).
Como escola de ambiguidades, na alquimia – misturando-se às imaginações
materiais, terrestre e aérea – num devaneio de dualidade, ao mesmo tempo em que forças
aéreas cuidam da ascensão da substância purificada, o processo alquímico recorre à forças
terrestres que atraem impurezas para baixo. Em total ambivalência, é a descenção mesma
que favorece a ascenção. Quanto maior a atração para baixo, mais facilmente ascenderá à
sua pureza total, o substrato restante. Quanto mais suja estiver a matéria corpórea, mais
forte será a vontade de limpá-la, recita um princípio da imaginação material dinâmica.
Assim, cedendo a mais um comportamento dicotômico, o alquimista adiciona
impurezas ao corpo a ser limpo. “Sujam para melhor limpar, promovendo o que Bachelard
chama de maniqueismo do movimento” (1994b, p.299), ao unir duas solicitações contrárias
numa participação dupla e ambivalente ao mesmo ato de decantação, no qual se vê pois,
duas qualidades opostas serem unidas para melhor divergir. Somente o devaneio poético,
afirma o filósofo (1994b, p.299) pode viver perfeitamente tamanha contradição das leis
lógicas do pensamento químico: “Só o sonho pode viver perfeitamente a participação ativa
a duas qualidades contrárias”. Uma única sentença de Bachelard reúne o sentido dos dois
grupos de termos – de oposição e movimento – pois, ao afirmar que toda evolução exige o
sigilo de um destino duplo, ele assume como postulado do pensamento que todo dinamismo
de transformação resulta de ambivalentes encontros entre polaridades divergentes.
Da alquimia, um salto decisivo traduz a dicotomia como lei do psiquismo ativo,
afirmando que no coração humano “trabalham forças coléricas e forças pacificadoras”
(1994b, p.299) que dialetizam, pois, os dois dinamismos divergentes da vida. A saber, as
dinâmicas de transformação e de conservação, sob o impulso criativo da imaginação
material, que – superando seu aspecto meramente cinético – integra em sua meditação as
substâncias imaginárias que a animam, oferecendo ao devaneio seu suporte de
materialidade. A imaginação formal deve ser integrada pelo dinamismo do pensamento
poético, de modo a criar uma dupla participação, seja no contexto cinético da representação
muda, da figura geométrica, seja aquele pessoal do movimento íntimo da alma, da dinâmica
de suas emoções e sentimentos.
58
Expressão cunhada pelo devaneio alquímico (1994b, p298).
129
Parece-nos, portanto, que a imagem da sublimação material, como foi vivida por
gerações de alquimistas pode explicar uma dualidade dinâmica em que matéria e
impulso agem em sentido inverso, ao mesmo tempo que permanecem
intimamente solidários. [...] A imaginação de um movimento requer a imaginação
de uma matéria. À descrição puramente cinemática de um movimento (mesmo se
metafórico), deve-se acrescentar a consideração dinâmica de uma matéria
trabalhada pelo movimento (1994, p.299-300).
continuamente, renova suas imagens. “É pela imagem que se produz a mudança” (1994b,
p.301), afirma Bachelard, indicando a dualidade do ato com o qual a linguagem literária,
através de suas imagens, deforma e extrapola a linguagem conceitual habitual. Na
expressão poética, ele indica um movimento do psiquismo que evolui em duas direções
opostas, pois deseja, simultaneamente, aglutinar a mudança insuflada pelo desejo de
novidades e a segurança sugerida pelo instinto de conservação. Em tal modo, a imagem
literária bifurca-se em duas perspectivas contraditórias, em dois devires incompatíveis, por
um lado a pessoa sente o ímpeto social de expansão, exuberância e expressão, e por outro
lado, cede ao desejo de intimidade. Mas,
aos jogos de pensamento que, para melhor conhecer, opõem por inversão, qualidades
contrastantes do saber.
Em seus dois volumes terrestres, Bachelard (1996b, p.2) parte da indicação de uma
oposição, com a qual “começam, para nossas teses da imaginação material e da imaginação
dinâmica, dificuldades e paradoxos sem fim”
criativo de ideias, a polêmica resulta sempre como motor do intelecto. Mas, sobretudo, ele
confirma como papel prioritário da literatura o surpreender, criando “imagens novas,
imagens que renovam os arquétipos inconscientes. Essa novidade é signo da potência
criadora da imaginação [...] função da literatura e da poesia é reanimar a linguagem criando
novas imagens” (1996b, p.6). Ser um veículo de novidades é, pois, o fato estético que
garante dignidade criativa à imagem literária. Aliás, citando a definição de Jacobi do ato de
filosofar como atividade de descoberta das origens da linguagem, Bachelard, que considera
a imagem literária mesma como origem de linguagem, nos permite concluir que filosofar é
criar imagens sempre novas, imagens que não são cópias nem de percepções passadas nem
de outras imagens prévias.
Ele cita também Unamuno, que assinala – na origem da linguagem – a ação de um
metapsiquismo, de uma psique que supera a noção habitual de psiquismo, em sua limitação
à velhas representações repetidas, cópias de imagens sem força criativa. Acena-se assim a
um superpsiquismo que não pode ser senão uma qualidade renovada do surhomme, da
humanidade que adquire a nova potência da imaginação criadora. Logo, se a imaginação
vive de contradições – como já se viu com Dagognet (1960) – se ela institui a linguagem
com as imagens que cria, intuí-se aqui um vínculo de recíproca dependência, entre
contradições e ambiguidades como qualidades do imaginário e, também, como dinâmica de
linguagem, dinâmica do modo em que a humanidade expressa a realidade.
Partindo, portanto, do fato literário considerado em sua qualidade de espelhamento
recíproco de dinamismos reais e imaginários, ocorre reivindicar como característica criativa
da humanidade o dualismo de funções reais e irreais que constituem, no fundo, todo ato de
criação estética. A afirmação do papel constitutivo e fundador da imaginação, seja em
relação à linguagem, seja em relação à literatura – como evento da linguagem escrita – nos
permite compreender um aspecto fundamental da novidade que se revela sempre na
imagem poética. A novidade imaginada cria a démarche de renovação do dinamismo
psíquico daqueles que cedem ao gozo literário.
cristalizações vegetais que, porém, enrijecem a doçura do ser. Sonhos de pedra implicam,
simultaneamente a tomada de distância, o recuo e a busca interior por “forças íntimas”
(1996b, p.12). Surpreendendo-nos, novamente, com sua máscara nietzscheana, ao dominar
tais forças, o sonhador “sente brotar em si um devaneio da vontade de poder” (1996b,
p.12). A imaginação das forças envolve também combates com a gravidade no devaneio do
voo, da queda e na imaginação das forças de aprumo, de redressement ou retomada do ser.
Simbolismos logicamente contrários, mas coligados como paradoxos, nas inversões polares
vigentes no mundo do imaginário.
Em La terre et les rêveries du repos (1992b), a imaginação de forças materiais
converte-se em imagens da intimidade e do interior das coisas, devaneios antitéticos de
refúgio na gruta, imagem de repouso. Ou no labirinto, imagem de movimento. Buscando
sempre a dinâmica da superação contínua de novidades, a imaginação penetra o interior
substancial das coisas, “quer ver o invisível” (1996, p.14) e encontra intimidades em
conflito dialético entre repouso e agitação: “Sob a superfície tranquila, admiramo-nos
sempre ao encontrarmos a matéria agitada” (1996b, p.14), diz Bachelard, justapondo
imagens contrárias. O raciocínio polarizador progride por intermédio de imagens dinâmicas
do “movimento retorcido” (1996b, p.15), em imagens do labirinto animal e vegetal,
integrados no simbolismo dualista de dois seres terrestres, a serpente e a raiz, dialetizados
como arquétipos de nosso inconsciente.
Em meio a tantas e paradoxais divergências, o autor “confessa” mais um de seus
procedimentos metodológicos, ao desculpar-se pela insuficiência de sua análise. Ele diz que
“julgamos não dever fragmentar alguns de nossos documentos literários. Quando nos
pareceu que uma imagem se desenvolvia em vários registros, agrupamos suas
características, apesar do risco de perder a homogeneidade dos capítulos” (1996b, p.16).
Também se depara com a mesma urgência, decorrente do modo em que se busca fundar a
hipótese desta tese acerca de um método por oposições e inversões no procedimento teórico
da reflexão bachelardiana. Ele mesmo anuncia:
(TRR). É, portanto, o dinamismo material e espiritual que guia toda sua pesquisa, e
descreve a dinamização do ser, no ato literário: “Quando pegamos as matérias terrestres,
com mãos curiosas e corajosas, elas excitam em nós a vontade de trabalhá-las. Uma
imaginação ativista, uma vontade que, ao sonhar, dá um futuro à sua ação” (1992b).
Bachelard dedica os dois volumes terrestres ao estudo da dinâmica do devaneio
poético segundo uma perspectiva bipolar. A saber, conforme analise o dinamismo da
vontade, que combate a resistência da matéria, expresso poeticamente pelo devaneio da
vontade; ou inversamente, conforme estude o dinamismo de interiorização do ser, que
acolhe o convite do poema ao mergulho na própria interioridade, expresso no devaneio do
repouso. O autor coloca portanto o primeiro estudo da imaginação terrestre “sob o signo da
preposição contra”, e o segundo, “sob o signo da preposição dentro” (1992b, p.2).
Interiorização e oposição representam o dualismo que rege a análise do devaneio terrestre e,
por conseguinte, caracterizam também eixos fundamentais aos quais convergem os
argumentos deste estudo. Tal atividade onírica ou real de oposição à matéria que,
incessantemente resiste ao esforço humano de dominá-la, oferece a oportunidade para uma
ulterior investigação de ambiguidades dualistas da imaginação, que encontra nas imagens
da profundeza ou do aprofundamento um arquétipo constituído pelas marcas dicotômicas
da hostilidade e do acolhimento. Além disto, a terra é também indicada como (Le
cosmopolite) “elemento muito apropriado para ocultar e manifestar as coisas que lhe são
confiadas” (1992b, p.1).
Prosseguindo com procedimento dualista e divergente, Bachelard (1992b)
“confessa” que apesar de ter escrito sua filosofia do imaginário terrestre em dois volumes,
não pretendia separar totalmente os dois pontos de vista sobre o devaneio que envolve
estímulos e impressões derivados da substancialidade da terra. E mais uma vez opondo
conceito à imagem, ensina que imagens “não são conceitos, não se isolam em sua
significação. Tendem a ultrapassar sua significação. A imaginação é multifuncional”
(1992b, p.2-3). Ele refere-se assim à abertura semântica característica das imagens que
acolhem, produzem ou, ao contrário, derivam da pluralidade de estímulos e sensações,
impulsos e pulsões que, frequentemente, manifestam em sua estrutura o estado de
dinamogenia dialética. Tal estado, por outro lado, é característico de toda oposição polar,
de toda dualidade.
141
Mais do que isto, o filósofo admite, em ambígua inversão, que para considerar os
dois aspectos de divergência da imaginação terrestre, que acabara de distinguir, seria
necessário reuni-los. Ambivalência do método bachelardiano que o faz distinguir vontade e
repouso para depois reuni-los, ao tratar do devaneio terrestre como um todo. Bachelard
(1992b) atesta, ademais, que a síntese ambivalente que sentimos em ação nas imagens
terrestres pode unir - em mutação ou evolução dialética - as proposições já nomeadas, do
contra e do dentro que, uma vez reunidas, solidariza em modo dinâmico os movimentos -
entre si contraditórios - de extroversão e introversão.
Uma profusão de oposições polares, dualismos ambíguos e ambivalentes
divergências, junto a contradições, paradoxos e demonstrações que procedem por inversão
de seus próprios termos, como já assinalado, povoam as demonstrações bachelardianas,
caracterizando seu filosofar como um pensamento ondulante e labiríntico em seu
dinamismo incomum, um raciocínio envolvente que parece enroscar-se em torno a si
mesmo, quase a determinar um centro de convergência da racionalidade - vista nos termos
amplos, de um cogitari aberto - que, ao superar-se, inclui em seus trajetos, intuições,
sensações e afetos da alçada da comoção estética. Neste âmbito incerto, uma convicção que
aflora progressivamente a este esforço de classificação de argumentações formuladas
segundo este peculiar critério maniqueísta acaba por expor a uma confirmação e a uma
descoberta, como aspectos divergentes de uma mesma intuição.
Por um lado, confirma-se o hibridismo de um pensamento que se afirma andrógino
e hermafrodita, ao reconhecer e proclamar - ainda que tarde, como diz Bachelard - sua
polaridade de anima e animus, de feminino e masculino, de coração e mente, de poema e
teorema. Por outro lado, descobre-se a razão que parece ter determinado o autor à invenção
de uma metodologia decididamente fundada sobre uma dinâmica abertura à evolução
dialética de conceitos e de imagens.
Trata-se de determinações peculiares aos objetos mesmos de investigação -
conceitos e imagens - respectivamente, nas duas vertentes do pensamento bachelardiano. A
renovação da objetividade implica, numa das vertentes, a necessidade simultânea de
renovar também a abordagem que possibilitaria a renovação também de seu estudo, sob o
prisma de um essencial dinamismo – característico da nova objetividade - que exige uma
abordagem dialética capaz, por isso mesmo, de evoluir seguindo as mudanças e
142
transformações da realidade mesma que estuda. Deixa-se, portanto, este argumento para o
próximo capítulo, dedicado à caracterização do método por oposições, como procedimento
demonstrativo comum, seja epistemológico, seja poético.
Retornando à classificação de argumentos por oposição de polaridades, mas
seguindo, ao mesmo tempo, a convicção afirmada no parágrafo anterior, nota-se que a
filosofia da imaginação material, ao revelar um determinado aspecto da materialidade do
mundo, ao expressar o simbolismo poético de sua intimidade substancial, simultaneamente
mantém oculto e remoto o coração material da realidade exterior, o núcleo central das
diferentes matérias. “Mal se retira um véu, estende-se outro sob os mistérios da substância”
(1992b, p. ), diz Bachelard, a respeito deste movimento dialético entre revelação e
ocultamento da interioridade material do mundo.
Por isso a imaginação transforma e transcende as sensações primárias despertadas
em nós, por influxo da realidade material, convertendo-as em imagem poética, imagem que
guarda o eco da matéria que a inspira, mas acede também em contexto afetivo mais
profundo, onde ressoam arquétipos do inconsciente. À mesma maneira, palavras também
chegam até nós, envoltas em nuvens de significados e valores muitas vezes paradoxais,
ambivalentes e ambíguos – que são determinantes na mutação dialética – também dualista –
que ocorre, seja quando palavras evoluem dinamicamente, tornando-se sensações, seja ao
inverso, quando estas últimas transmutam-se em imagens.
imaginação entrega-se à impressões mal fundadas. Por isso, imagens materiais passam por
ilusórias, entre homens de razão” (1992b). Portanto, pode-se concluir que, segundo
Bachelard, ilusórias seriam somente as imagens inspiradas em impressões mal fundadas,
enquanto outras imagens poéticas, fruto de uma autêntica atuação criativa da imaginação,
em sua total autonomia e liberdade, desvinculam-se das sensações e das impressões da
sensibilidade, enquanto possíveis causas. Tais imagens referem-se à novidade dos mundos
criados ex novo pela dinamogenia mesma do imaginário. Não fosse que, ao concluir sua
frase, o filósofo torna a confundir as águas, afirmando: “Seguiremos a perspectiva dessas
ilusões” (1992b).
Como ocorre em outras ocasiões, no texto bachelardiano, nota-se que o autor não
segue um logicismo estrito em suas reflexões. Certos panoramas permanecem nebulosos,
certas definições, conforme a proliferação de imagens, exigem sucessivas retificações ou
renovações em seu significado. Assim como não define bem, certos termos que toma
emprestado à tradição filosófica, sem deter-se em percursos da história filosófica de certas
noções, pois, ao contrário, lhe serve somente o uso terminológico da noção, lhe serve como
título, sem que pretenda filosofar sobre o assunto. É o que acontece com as várias noções
de derivação psicanalítica e também com o termo fenomenologia. Assim, a questão da
derivação sensível das imagens não é definida em modo rigoroso, já que é afirmada em um
contexto, enquanto em outro momento o imaginário resulta livre de causas e totalmente
autônomo diante de eventos e percepções do passado. Nota-se que, certas vezes, o campo
mesmo da pesquisa sobre o imaginário, sendo em si pouco propenso a deixar-se capturar
por definições lógicas rigorosas, justifica a expressão utilizada no título adotado aqui:
filosofia do inexato. Adia-se esta interessante investigação à outra oportunidade, pois sua
extensão, alteraria o rumo de nosso estudo.
Êxito no devaneio da intimidade de substâncias materiais é o alcance de um repouso
intimo e intenso do ser que no jogo das oposições polares é o inverso preciso da
“imobilidade externa das coisas inertes” (1992), acrescenta o mestre à classificação de
dicotomias e ambivalências aqui estipulada, confirmando concomitantemente o status quo
do ser humano no estatuto do existente. Bachelard reforça a oposição ou inversão de termos
como estratégia argumentativa: seduzidos pela penetração onírica da matéria, “define-se o
144
ser pelo repouso, pela substância, em sentido oposto ao nosso esforço em La terre et les
rêveries de la volonté para definir o ser humano como emergência e dinamismo” (1992b).
O processo de pensamento enroscado - abissal e labiríntico como a imagética
abimée, do nouveau roman francês - ao qual se fez referência antes, exemplifica-se, neste
caso, se pensarmos que poética e ciência - ou, anima coração e animus mente - representam
já o dualismo dicotômico principal na obra do filósofo. Mesmo assim, a bipolaridade do
tema enrosca-se sobre si mesmo, vorticosamente, inabissando-se por espelhamento e
polarizando o campo de pesquisa de uma das vertentes, ela mesma já resultante da
dualidade original entre o poema e o teorema. Assim, Bachelard caracteriza o psiquismo
em ação na metafísica do repouso como “involutivo” (1992b). Fala de um ensimesmamento
do imaginário material, de um “enrolamento em si mesmo”, afirmando: “Buscamos um
conjunto de imagens dessa involução” (1992b); que o filósofo encontraria nos poemas do
repouso no refugio da caverna, no enraizamento da casa ventre materno, todas imagens
isomorfas ou isótropas, a saber, todas tendo em seu significado a mesma referência
originária à mesma forma ou movimento em direção às fontes do repouso. Uma real
topografia da meditação poética.
qualquer estabilidade, de onde se conclui que, nesse estado, os valores oníricos entram em
contradição polar com sua própria dinâmica interior. Interessante perspectiva de incertezas.
A segunda anotação pressente o estranhamento causado pelo postulado de um
absoluto de potências noturnas e subterrâneas, como alvo; causa estranhamento porque
Bachelard se opõe à ideia de absoluto. Aqui também valores oníricos parecem entrar em
contraste com o próprio dinamismo de abertura e evolução permanente que constitui o
estatuto ontológico do imaginário. A citação termina, afirmando valores do inconsciente
absoluto como guia da pesquisa. Conclusão ideal da classificação aqui adotada de situações
que configuram uma metodologia de contradições no campo da filosofia poética.
Após apresentar a hipótese sobre o procedimento demonstrativo do pensamento
bachelardiano, seja em epistemologia, seja na poética, se verá como tratar o assunto,
ousando cruzamentos e interferências entre as duas vertentes do dualismo fundamental
deste autor.
60
Fenicio cita: BACHELARD La terre et les rêveries de la volonté, p. 91.
147
p.283). Certamente, classificar a função de renovação exercida pela imagem segundo o viés
da categoria da diferença ou diferenciação poderia ser feito, já que significados sempre
diversos provocam, por sua vez, sonhos e devaneios também novos e inéditos, que logo se
enraízam na palavra escrita, transformando a literatura mesma em uma “emergência da
imaginação” (1994B, p. 283). Relembrando que o símbolo junguiano apresenta uma
tradução de tendências arcaicas em imagens, se pode ler:
imagem literária, através das divergências e antinomias de uma nova lógica do devaneio
poético.
dinamismo do devaneio poético, por meio de “grandes sínteses que dão caráter mais regular
à imaginação” (BACHELARD, 1994b, p.19) no projeto paradoxal de uma ciência do
imaginário,62 que teria por fundamento a realidade múltipla e fluida do simbolismo de
metáforas cósmicas, regido por uma lei dupla que, por um lado, afirma: “Uma matéria que
não é ocasião de ambivalência psicológica não encontra seu duplo poético que lhe permite
transposições sem fim” (BACHELARD, 1997, p.17).
E por outro lado, rejeita a possibilidade de percepção da matéria que é difusa, em
estado de imobilidade. Dessa dupla lei primordial, a autora deriva três princípios e seis leis
da valorização. O primeiro princípio estabelece que a imaginação, ao rejeitar a lógica da
consciência – lógica da identidade e lógica da não contradição – situa-se no domínio do
pré-lógico, numa área de incoerência próxima ao inconsciente cultuado pelos surrealistas.
O segundo diz que a imaginação ignora as exigências da realidade, atuando em total
liberdade no que concerne à causalidade, ao tempo e espaço e a suas dimensões: “o interior
do objeto pequeno é grande” (BACHELARD, G., 1992b, p.13).
O terceiro e último princípio da imaginação estabelece que o caráter afetivo do
devaneio literário instaure uma relação pessoal com as coisas da realidade, transformando
assim objetos imaginados em valores que, por sua vez, são codificados em seis leis da
valorização, das quais, cita-se a última que, ao discutir a ambivalência do dinamismo
dialético intrínseco à imaginação material, funda a primazia da contradição, que a todo
valor coliga um respectivo antivalor. Imagens valorizadas adquirem, pois, sua força, no
jogo dialético dos contrários.
Ilustra-se a vertente alquímica desse jogo de contrários, ao se referir na busca da
perfeição alquímica a total submissão da matéria à própria dissolução – goethiano morrer
para renascer / Sterb und werden – a fim de preparar a substância perfeita da pedra
filosofal. Desta maneira, a contradição ingressaria então – justificadamente, como categoria
primordial – no estatuto mesmo da imaginação.
Felício (1994) afirma também que o esquema fundamental da ordenação de
imagens, estratégia seguida por Bachelard para alcançar a formulação dessas leis do
imaginário, desenrola-se em procedimentos por analogia, por inversão e por contradição.
62
Com tal projeto, Bachelard responderia à questão posta pelo surrealismo e acenada por Felício: “A quand
les philosophes dormants?” (BRÉTON, 2001, p.40).
150
63
Confessa-se ter cedido aqui à tentação de desvendar paradoxos que são, por definição, insolúveis. Nota-se,
porém, que, mesmo nesse caso, a solução indicada, longe de reduzir o enigma à compreensão “clara e
evidente”, confirma uma dicotomização do intelecto, sugerindo a polaridade de seu objeto, ao mesmo tempo,
afetivo e racional.
152
64
Minkowski (1963, p.426-7) cita uma passagem de L’air et les songes: “No reino da imaginação, a toda
imanência acrescenta-se uma transcendência. É a lei mesma da expressão poética superar o pensamento.”
(1994b, p.12). E comenta: “A imanência e a transcendência não aparecem mais como antônimos, um
excluindo o outro, como quer o pensamento discursivo. Coexistem sem contradizerem-se, num movimento
comum, num vai e vem contínuo[...]. Ao clássico “um e outro”, substitui-se agora, “um e outro”, já que, como
dirá Bachelard, existe aí, como alhures, “trajeto” e não “permanência”.
65
BACHELARD (1994b, p.14): “Então se impõe o realismo do irreal”.
153
destino da chama é verticalidade, queimar-se para cima, ao alto. E tornar-se luz. Notou-se ,
oportunamente, que a reflexão metafórica do fogo refere-se sempre à luta antagônica entre
contraditórios - combate nietzscheano de forças - neste caso específico, luta da luz com as
trevas, pela conquista da iluminação, como valor que se instaura sobre o próprio contrário.
Chama e consciência compartilham o mesmo destino de simbolismo dicotômico, de
retorno à própria residência, ao alto, após cumprir embaixo sua missão. Queimar injustiças
para ascender às alturas.
A rêverie da vela – como metáfora ética – sonha a chama como arquétipo do devir e
do ser mesmo do rêveur. Para o sonhador a chama é, de fato, símbolo de seu “iluminar,
destruindo-se”; outra versão do “morra e torne-se” (Stirb und werde) goetheano. La flamme
d’une chandelle, de 1961, institui, portanto, as linhas diretivas para uma reflexão sobre a
transcendência do ser que considere o devaneio verticalizante da chama como vetor que
arrasta o sujeito em suas forças ascendentes, expandindo os confins da realidade, ao guiar o
sonhador à conquista dos cumes oníricos dos poemas. “Um sonhador de vontade
verticalizante que recebe sua lição diante da chama aprende que deve reerguer-se.
Reencontra a vontade de queimar ao alto, de ir, com todas suas forças, ao topo do ardor”.
(BACHELARD, 1996c, p. 58).
Assim, a indução de uma ascese imaginária, eixo de forças ascensionais que vige
nos sonhos de voo – rêves de vol – alivia o ser, ajudando o psiquismo a abandonar o fundo
– bas fond – do ser, dirigindo-se ao alhures dos sonhos poéticos, que é representado por um
acima de.
O devaneio verticalizante é o mais liberador dos devaneios. Não existe meio mais
seguro de bem sonhar do que sonhar num alhures. Mas o alhures mais decisivo
não é o alhures que está acima?[...] Vivendo no Zenith do objeto reto,
acumulando devaneios de verticalidade, conhecemos uma transcendência do ser.
(BACHELARD, 1996c, p. 57).
O dinamismo que nos arrasta para cima, reerguendo-nos aos picos e cumes de
montes imaginários, ilustra a configuração de turbilhões íntimos, no qual a polaridade de
154
66
BACHELARD, 1996c, p.66: “Ainsi la philosophie commence là où le philosophant se philosophise lui-
même, c’est à dire se consume et se renouvelle[...]un être se rend libre en se donnant ainsi le destin d’une
flamme.”
67
Tanto que, para Bachelard (1996c, p.136), o cogito da rêverie apresenta-se como: “je rêve le monde, donc le
monde existe comme je le rêve”.
155
Para que essas grandes figuras sejam psicologicamente ativas em nós, devemos vivê-las
como tentativas - ou melhor, como tentações – de superar nossa própria natureza. Somos
tentados de viver o humano, o mais que humano[...]. Parece que em todo esforço de
cultura, somos o Prometeu de nós mesmos. O passado é argila sob dedos que sonham.
Tínhamos algo a fazer. O fizemos, nesse passado de estudo. Mas tudo ainda está por fazer,
inicialmente, nós mesmos. (BACHELARD, 1988, p. 116)
filosófico como metáfora de uma natureza ardente do ser. Ato extremo de uma paixão
fatal.
A maior lição do Empédocles filósofo foi então ter afirmado a união íntima,
união tenaz de amor e ódio. Empédocles é o precursor da filosofia da
ambivalência. Ele inscreveu o amor e o ódio no mecanismo do Universo. Como
essa ambivalência não estaria no coração do homem? (BACHELARD, 1988, p.
165).
Enfim, o autor questiona-se sobre a hipótese de que o fim da Obra seja também o
fim da vida, pois, quem escreve sobre o fogo aguarda, inevitável, o mesmo destino de
Empédocles. A reflexão tardia do filósofo poeta abre-se ao silêncio da interioridade, à
definitiva solidão da palavra: “Através da superação da realidade a imaginação nos revela
nossa realidade” (1996b, p.353). Em tal modo, o gozo mítico da chama se extingue no
silêncio que postula a solidão como seu acontecimento, valorização poética do destino da
rêverie, o devaneio intenso de uma longa experiência literária encontra sua realização
definitiva ao transformar-se em silenciosa solidão. O fervilhar dialético de imagens torna-
se, enfim, declamação muda do dualismo dicotômico que guiou seu pensamento ao calar-se
da eloquência imagética. Em ambivalente polarização, é a fonte mesma da linguagem que,
ao final, transmuta-se em silêncio. E assim, após tanto devaneio, a palavra faz-se silêncio, a
transubjetividade faz-se solidão:
A poesia abandona o tempo horizontal, que liga o ser ao devir dos outros e do
mundo, descobrindo o tempo vertical, no qual, a única referência é autossincrônica: está no
centro de si mesmo. No instante poético, o tempo não escorre mais. Ele esguicha ou jorra,
de modo que – fora da duração comum – o ser pode viver, simultaneamente, no instante
criado pela poesia, a oscilação de contrários fundamentais como num êxtase de queda.
Em conclusão, observa-se que o desenvolvimento da hipótese deste estudo, no
domínio do devaneio estético, exigiu que fosse manifestada quase a mesma audaciosa
imprudência intelectual, proposta a ser investigada enquanto nova metodologia
bachelardiana. Foi preciso abandonar horizontes para ousar verticalidades, como único
procedimento capaz de abrir acesso à novidade dinâmica de um raciocínio que se faz
aderente ao ser mesmo da imagem poética, que deseja residir na instabilidade das imagens,
confirmando a noção de uma revolução copernicana da imaginação, na qual a comoção não
se dá através da adesão subjetiva ao objeto poético, mas sim, na busca de transformações na
tonalidade emotiva da subjetividade mesma; essa sim, determinada à novidade, devido a
sua participação experimental à vibração e impulsos sugeridos pela imagem. Categoriza-se,
em tal modo, uma nova mudança de parâmetros da sensibilidade artística, enquanto vetor
da crítica literária, demonstrando que a energia imagética, ou mesmo a qualidade e o tônus
69
“Ce qu’il admirait chez l’homme, c’est ce pouvoir d’être à la fois lui-même et un autre, lui-même et plus
que lui-même – ce qu’il est et plus que ce qu’il est, toujours vacillant sur le bord d’un progrès, toujours prêt à
franchir une étape nouvelle, à s’ouvrir à un monde nouveau”. (LESCURE, 1983, p.14).
161
da criação não provêm do objeto contemplado, mas sim, da tensão com a qual o sujeito, no
ato mesmo do gozo estético, com ele se compromete.
Tendo então experimentado, no texto, a valorização arquetípica e metafórica de
imagens cósmicas – frequentemente paradoxais, devido ao conúbio que traduzem, de
motivações eminentemente ambivalentes – nos aproximamos, com o mesmo modo de
conhecimento aproximado afirmado em sede epistemológica, à afirmação da alteridade
como situação primordial do ser, exposto como é – em suas derrotas e fracassos – à
experiência do negativo que o fortalece, pois, ao renová-lo – na superação de obstáculos e
em suas íntimas retificações – o adéqua ao ritmo mesmo do devir, traduzido nos devaneios
da interioridade em que encontra, de forma simbólica, a dinâmica de perpétuos reinícios
como estratégia propícia à suas retomadas (redressement).
E se recomeça, sempre, partindo do interstício da consciência, situado entre razão e
emoção, como sito fértil para a criação de novas significações valorizadoras, que atuam nas
mudanças subjetivas, preservando a paradoxal potência do coração, que ao descobrir a
alegria como conquista aprende a buscar coerência entre contrários. Por isso tenta-se
coligar a primitividade do imaginário e a ambivalência das imagens elementares com o
dinamismo de mutação e aperfeiçoamento do ser. E por isso, também, antes de reunir, no
próximo capítulo, antagonismos bipolares provenientes do pensamento que reflete sobre
criatividade científica e estética - através da criação de conceitos e imagens - conclui-se,
afirmando o projeto roupneliano de redenção do ser na Arte, por intermédio da intuição
estética que renova a força poética (BACHELARD, 1931 II, p.97-100).
Trata-se de uma retomada de si ou redenção, essencialmente contemplativa, que se
deve realizar através da clarividência íntima e da intensidade de consciência; e cuja raiz se
encontra na força que nos permite aceitar a vida com seus conflitos e contradições, situando
o nada absoluto nas duas bordas do instante (BACHELARD, 1931 II, p. 99), ou seja,
vivendo exclusiva e intensamente o momento presente, instante vivenciado que restituímos
em nosso devaneio, na escuta da voz interior. A experiência intima e profunda desse
instante é a mais adequada tradução da necessidade metafísica afirmada por Roupnel, a
saber: fazer caber no pensamento sínteses de motivações contrárias. Portanto, estética e
episteme, em Bachelard, situam-se bem distantes da reflexão tradicional, que procede por
princípios absolutos no domínio do confronto constante com alteridades, enquadrando-se
162
disso, convém notar que Bachelard ressalta aprender a sonhar como condição primária da
plena realização de si mesmo, condição da afirmação de uma consciência alerta e
despertada. Logo, após ser exposta a surpreendente reformulação da racionalidade, exigida
pelo novo conceito microfísico de corpúsculo, resultará evidente o que, dito agora soa
paradoxal, ou seja: cientistas também sonham. Projetam novidades, buscando ampliar os
limites tangíveis do saber de cada época. Sem essa atividade, essencialmente imaginativa, a
ciência moderna não teria se desenvolvido como saber tecnológico da contemporaneidade,
pois, a imaginação inventiva – mesmo aplicada na pesquisa, por meio de equações
matemáticas – tem papel decisivo no percurso de intensa complexidade. É com este intuito
que progride a investigação científica, tecendo noções imponderáveis, consideradas mesmo
ininteligíveis pela mentalidade empírica do realismo imediato.
Logo, para justificar a antecipação aqui feita do sonho científico como conclusão
deste item, recorre-se à concepção dialética do tempo fragmentado em instantes –
argumento do terceiro item deste capítulo – que apresenta a intrigante noção de
dialeticidade temporal70 como movimento que atribui a considerações anteriores, sentidos
inéditos, alcançáveis somente no desenvolvimento ulterior delas mesmas. Sentidos que se
revelam a posteriori – em momentos sucessivos da argumentação – alargando, porém, o
significado do momento precedente da investigação. Na verdade, é o que se tentou fazer
situando esta referência a uma conclusão futura, no início da argumentação que a ela
conduzirá. Um jogo dialético.
O primeiro item será dedicado à noção microfísica de corpúsculo (BACHELARD,
1951). Esta é relacionada ao desafio lançado pela revolução científica, em termos de
abertura e de evolução da epistemologia, enquanto disciplina do novo espírito racional, bem
delineado por Bachelard (1972c), em sua Conferência à Academia científica parisiense, a
ser discutida, ressaltando a interessante inversão com a qual o autor, ao defender suas
ideias, tende a manter-se numa posição mais conservadora, diante da provocação dos
epistemólogos presentes que parecem instigá-lo a uma tomada de posição ainda mais
ousada. Significativo indício de abertura à pesquisa, na época.
70
Ocorre ressaltar que mais adiante, nesta noção, veremos concordar dois pesquisadores, a saber: Vera Felício
e Jean Lescure.
165
Neste item, toma-se em análise a abertura dos limites da razão, segundo dois pontos
de vista. Inicialmente serão discutidas as novidades sobre o tema, apontadas no debate de
Bachelard com ilustres filósofos e epistemólogos, que sucedeu sua palestra sobre A
natureza do racionalismo71, em 1950, na Sociedade Francesa de Filosofia de Paris.
Na segunda parte deste item, será ressaltado em que modo esta natureza retificada
da racionalidade científica se aplica, como física atômica, na formulação da nova noção de
corpúsculo, decorrente da natureza insólita que a teoria e experimentação científica atribui
às partículas atômicas.
Neste domínio, focalizam-se as conquistas da nova ciência, que apesar de ter
superado o marco de seu centenário, continua a surpreender aqueles que a seguem,
71
BACHELARD, 1972, p.45.
166
progridem inexoravelmente, exigindo da razão humana níveis cada vez mais altos de
especialização e capacidade de desvendar complexidades sempre maiores.
Serão abordados então os termos bachelardianos desse complexo percurso desde a
renovação da ratio científica até a elaboração do sonho corpuscular da ciência
contemporânea. Busca-se sempre ressaltar os momentos teóricos específicos, dos quais,
devido às dualidades e oposições neles traçadas, se poderá obter mais especificações do
procedimento aqui qualificado como uma metodologia de ambiguidades e antagonismos.
Suas sementes, confirmadas por sucessivas conquistas da pesquisa bachelardiana, já se
encontravam mesmo na noção de obstáculo científico e de psicanálise do conhecimento
que, a bem ver, num claro movimento de reflexão por oposições, esboçaram os limites
daquele outro da pura racionalidade – o mundo subjetivo de estímulos extracientíficos – ao
qual o autor dedicaria sucessiva, mas também concomitantemente, seu encantamento pelo
imaginário. “Direcionar o racionalismo do passado do espírito ao futuro do espírito, da
lembrança à tentativa, do elementar ao complexo, do lógico ao sobrelógico, eis aqui as
tarefas indispensáveis a uma revolução espiritual” (BACHELARD, 1972c, p.7).
Bachelard (1993a) cita Jules Laforgue. Desta referência pode-se tomar a indicação
precisa não tanto de como proceder neste último capítulo desta tese, mas sim daquilo que
sem romper com a inteligibilidade que caracteriza o procedimento aqui adotado – enquanto
reflexão acadêmica – se deve necessariamente deixar para trás, para tornar profícuo o
procedimento desta análise. “Método, Método, que queres de mim? Sabes bem que comi do
fruto do inconsciente” (LAFORGUE apud BACHELARD, 1993a, p.1).
No caso do presente estudo, por exigência de precisão, convém substituir,
idealmente, inconsciente por imaginário. De qualquer forma, tal sentença serve
perfeitamente como referência ao rigor e precisão de uma metodologia acadêmica
tradicional que se teve que superar para enfrentar o audacioso desafio que constitui este
tema de estudo. Como já afirmado precedentemente, o dinamismo dialético com o qual
Bachelard abre os domínios de sua reflexão traz consigo tamanha e permanente força de
mutação que seria impossível obter êxito nesta pesquisa, se tivessem sido obedecidos os
procedimentos metodológicos tradicionais.
Em tal modo, junto à frase com a qual Laforgue rejeita o método clássico do saber
subsídios no texto bachelardiano mesmo serão coletados, quando – introduzindo A água e
167
nos quadros mesmos da ciência daquela época. Sem uma radical revolução no estatuto
teórico da ciência, sem a abertura na inteligibilidade dos quadros de racionalização do real,
os estudos sobre o átomo, formulados no bojo das transformações científicas do início do
século XX, certamente não teriam podido manifestar toda a dinâmica de sua evolução,
como ao contrário, verificou-se nas décadas sucessivas, e prossegue até hoje, com a
experimentação atômica e nuclear.
Portanto, o dualismo de oposições justifica-se como estratégia dialética do saber,
requisitada pela evolução científica mesma. Confirmando o método da imprudência de
Bachelard, Canguilhem (1972c, p.5) qualifica como impávida a razão que ousa opor-se à
sua própria tradição, na certeza de encontrar sua justificação na evolução científica. Logo,
como já apontado, a oposição – neste caso – significa uma precisa e necessária exigência da
metodologia epistemológica, sem a qual todo progresso seria impedido. Mais uma
confirmação de que é a ciência quem instrui a razão e não ao contrário, como erroneamente
afirmara, por séculos, a tradição racional, que pretendia desenvolver a ciência segundo
exigências da racionalidade.
Assim, uma nova racionalidade investe toda a tradição da razão, percorrendo
trajetos que se situam além do formalismo clássico do passado, sem nenhum
comprometimento com a realidade empírica do objeto que estuda. Ao contrário, o objeto
científico surge como êxito da pesquisa racional, aspecto já referido neste estudo.
Inicialmente é sempre um objeto teórico à espera de comprovação empírica. Impõem-se,
então, o que Canguilhem chama de “dialética do não juízo, ou des-juízo” (p. 5), que destitui
a razão da função de juiz severo do real, conforme seu quadro teórico de postulados a
priori. A razão deve constantemente revolucionar o ambiente da pesquisa, abrindo espaço
para sua qualificação criativa, que passa, pois, a compartilhar com a imaginação, enquanto
ambas são criadoras de novas realidades.
Bachelard (1972c) parece inspirar-se no procedimento alquímico de submissão da
substância a todo tipo de tormento e decomposição, para fazê-la renascer renovada –
costumava-se mesmo sujá-la bastante para promover sua purificação – quando submetida a
razão ao escárnio e desprezo para acentuar a necessária transformação da racionalidade.
Assim, em O surracionalismo (1972c), ele afirma que: confunde-se frequentemente a ação
da razão com o recurso às certezas da memória, pois tudo aquilo que, após várias
169
princípio de não contradição” (p. 9). Aos olhos de Bachelard, tal junção do espírito de
finesse ao espírito geométrico significou a libertação da razão dela mesma. Grande
conquista na história das ciências, que disponibilizaria a racionalidade às imponderáveis
conquistas que seguiriam. Infelizmente, o autor acusa lógicos formalistas de terem feito
mau uso desta recém conquistada liberdade racional, desencantando o espírito de
racionalidade, ao enquadrá-lo em “formas vazias de pensamento, que o surracionalismo
tem o dever de retomar, preenchendo-as psicologicamente e recolocando-as em movimento
e em vida” (p.9).
Mestre atencioso em seu exercício de renovação e abertura das formas de pensar,
Bachelard sugere como melhor modo de realização da tarefa surracionalista “ensinar essas
geometrias múltiplas deixadas na sombra pelo ensino oficial e pragmático”
(BACHELARD, 1972c, p. 9). Propõe a reindividualização da razão, desconcertando o
raciocínio elementar e endurecido dos filósofos dogmáticos, que bloqueiam a evolução do
racionalismo, estagnando-o ao nível da cultura científica básica. Ao ouvi-los repetir
infinitamente a equação sobre a soma dos ângulos do triângulo, ele apresenta como
resposta: “Isto depende” (p. 9), ou seja, depende dos axiomas escolhidos pela
argumentação. O verdadeiro mestre, portanto, é aquele que sabe dialetizar espíritos,
confrontando-os com as bruscas mutações que permeiam a evolução do conhecimento.
Divulgando os paradoxismos da racionalidade científica de sua contemporaneidade,
o autor realiza a tarefa que anuncia como imprescindível. Ou seja, “desorganizar o
racionalismo esclerosado” (BACHELARD, 1972c, p.10), sobretudo, ao expor o espírito
racional – recentemente transformado pela evolução dinâmica que se instaura com a
cientificidade atômica – ao incessante trabalho de retificação de suas certezas, como
exercício dialético de mutação nos domínios do conhecimento científico. Como Bachelard
mesmo diz, ensinando a “desaprender para melhor compreender” (p.10). O projeto de
transformação da razão, em termos de surracionalidade, desenvolve-se em torno do eixo de
reformas intelectuais da experiência primeira, da percepção imediata da realidade como
principal obstáculo ao pensamento racional.
Ao enunciar este princípio do racionalismo experimental, Bachelard (1972c) admite
que diante da experiência física, a razão “toma uma atitude clara e felizmente ambígua"
(p.10) ao abandonar a rigidez do a priori, acolhendo o a posteriori. Em tal modo, o uso da
171
A razão felizmente inconclusa não pode mais dormir em sua tradição; não pode
mais contar com a memória para recitar suas tautologias. Incessantemente, deve
provar e provar-se. Encontra-se em luta com os outros e, sobretudo, consigo
mesma. Desta vez, ela tem a garantia de ser incisiva e jovem (BACHELARD,
1972c, p.12).
1972c, p.16). Isto equivale dizer que a razão é sempre ambígua, visto que ele mesmo ensina
que a racionalidade se afirma, sempre, abatendo obstáculos e preconceitos, ou seja, sua
atividade desenvolve-se sempre nos termos polêmicos.
A nova versatilidade com a qual o espírito científico – evoluindo em modo dialético
– capacita-se à funcionalidade em áreas de conhecimentos, anteriormente considerados
ambíguos, contraditórios ou mesmo desconhecidos, como no caso do micro universo da
física atômica, conduz Bachelard à crítica do formalismo da lógica clássica72 que, enquanto
descreve um tipo de conhecimento definido por sua generalidade, caracteriza-se como uma
física do objeto qualquer73, a saber, como a normatização de todo objeto de conhecimento,
subssumido sob tais normas lógicas universais.
Negando a diferença entre os objetos, a ideia mesma de objeto qualquer torna-se a
realização do princípio de identidade. Entretanto, o advento da microfísica impõe a divisão
desta lógica do objeto qualquer em lógica do micro objeto e lógica do macro objeto, visto
que não parece existir alguma lógica que englobe as duas físicas do objeto qualquer macro
e micro. Na verdade, na multipolarização da razão provocada pela descoberta de novos e
distintos campos de conhecimento, a noção de objeto qualquer perde sua validade diante da
constatação da existência de tantas objetividades quantos os divergentes campos específicos
de novos saberes.
Surge daí o entusiasmo do autor devido à descontinuidade epistemológica que se
afirma entre a física e a microfísica, a seu ver, ocasião de uma “liberação vertiginosa: a
liberação do espírito de si mesmo” (BACHELARD, 1972c, p.30). Classificando
divergências sob forma de confronto entre multipolaridades, o autor indica a possibilidade
de oposição intelectual entre três diferentes modalidades espirituais. Em primeiro lugar, cita
aqueles que refletem sob o signo da necessidade, para os quais bastaria uma só objeção ou
contradição para justificar a rejeição de uma tese ou a ruína de um inteiro sistema de
pensamento. Em seguida, aponta a reflexão que se submete ao princípio da generalidade,
72
Segundo Bachelard, a lógica pura restringe a psicologia da razão, até torná-la absurda, fazendo da razão
“aquilo que rejeita o signo psicológico”, abrindo assim a estrada para nossa designação como espírito
qualquer. Ele afirma: “A lógica pura seria o pensamento de qualquer um, estudando qualquer coisa, em
qualquer lugar e em qualquer época” (1972C, p.31).
73
Com o mesmo argumento, Bachelard (1972c) critica também a teoria do conhecimento kantiana,
afirmando-a válida somente em relação ao objeto qualquer, universal. Perderia validade para objetos que não
se deixem normatizar pela generalidade, como no caso dos objetos da microfísica, que instauram a diferença
no domínio desta universalidade objetiva.
175
da fenomenologia do ser humano” (p. 36) que o descreva nos termos de uma promoção de
ser, em sua essencial e dinâmica tensão, enriquecendo a ontologia pelo acréscimo de uma
dinamologia do existente.
74
Tanto que nos últimos quinze anos, grandes centros mundiais de estudo da filosofia abriram específicos
departamentos de pesquisa filosófica aplicada ao progresso da ciência biológica que, ao conquistar técnicas de
clonagem do patrimônio genético de seres vivos, determina a necessidade de reflexão sobre questões éticas
fundamentais, concernentes aos diversos níveis de implicação da noção mesma de manipulação e
interferência na vida humana.
178
Enquanto homens de ciência sabem melhor que qualquer outro, que a ciência não se
destrói, nenhuma crise interna pode freiar seu desenvolvimento, que sua potência de
integração permite-lhe aproveitar daquilo que a contradiz. Uma modificação nas bases da
ciência implica um crescimento em seu cume. Quanto mais escavamos a ciência, mais ela
se ergue[...]. A condenação de um método, na ciência moderna, é imediatamente a
proposta de um método novo, de um método jovem, de um método dos jovens [...].
Trocando de métodos, a ciência torna-se cada vez mais metódica. Estamos em estado de
racionalismo permanente (BACHELARD, 1972c, p.43).
75
Nesta citação encontra-se uma analogia com a antiga sabedoria chinesa que, nas páginas do Livro das
mutações ou I Ching esclarece que na escrita tradicional chinesa o ideograma que traduz a noção de crise
significa ao mesmo tempo perigo e oportunidade.
181
76
Não só Bachelard deixa florescer em seu texto infinitas argumentações baseadas em inversões, oposições e
divergências, como também, ao buscar suporte teórico em outros autores, parece mirar diretamente naqueles
raciocínios formulados a partir do mesmo eixo de dicotomias polares, como se realmente divergências e
ambiguidades dualistas fossem vetores de maior esclarecimento, uma vez aplicados em sua disciplina.
77
Bachelard encarrega-se da tarefa de esclarecer a trama polarizadora das duas noções em dois volumes,
cujos títulos jogam, do mesmo modo, com a inversão das duas noções de racionalismo e materialidade: O
racionalismo aplicado, de 1949 e O materialismo racional, de 1953.
182
78
A seção foi transcrita e publicada sob o título: Da natureza do racionalismo (BACHELARD, 1972c, p.45).
183
permanente dos próprios parâmetros de inteligibilidade do real, o que, por outro lado,
conduz a racionalismos regionais que determinam a aplicação de conhecimentos e
princípios racionais – técnicos e científicos – a setores específicos do saber.
Tal mudança de fundo no processo da pesquisa racional, com a sucessiva abertura a
uma pluralidade metodológica inédita, em última análise, é o que conduz a mente humana a
rejeitar o passado de crenças em verdades absolutas, em vista de um futuro constituído
primordialmente por conhecimentos retificados nos quadros de um saber que permanece,
entretanto, aproximativo: “Ao não dar suficiente atenção às reformas dos métodos
científicos, os defensores de um racionalismo absoluto e unitário se privam das ocasiões de
uma reforma filosófica” (BACHELARD, 1972c, p.45-6).
Com a típica ousadia de sua alma andrógina, que não teme diversidades temáticas,
Bachelard realiza – em breve parênteses ao discurso racionalista – um corte divergente que
floreia o pensamento rigoroso com uma nota de ambivalência e ambiguidade. Qualificando-
se como “defensor de pontos de vista arriscados, dos quais sinto a fraqueza” (p. 46-7),
como um modesto filósofo, nada mais que um alvo para objeções, Bachelard (1972c)
aproveita a ocasião de seu filosofar no outono da vida, para declarar a saudade que sente de
uma certa antropologia.
Refere-se assim ao tema do homem das vinte e quatro horas, incluído –
transversalmente – em uma conferência sobre a natureza do racionalismo, em clara
admissão do caráter fundamental da totalidade humana, no estatuto mesmo da
racionalidade. As grandes seguranças da existência situam-se do lado noturno, diz o
filósofo, polarizando o discurso, ao mesmo tempo em que – com certa nota de ironia –
afirma deixar de lado este tema para limitar-se ao homem racionalista, ao homem super
despertado, pois, à noite não se é racionalista. Não se dorme com equações na cabeça
(BACHELARD, 1972c, p.47). Ele refere-se também à função da imaginação, ativa nos
estudiosos de matemática que, nas brumas do “despertar, encontram o que não encontraram
ao fim da vigília” (p.47). Refere-se à capacidade racionalista da noite, mas somente para
afirmar não conhecê-la, situando o caráter fundamental do homem racionalista no “esforço
de clareza” (p.47), que acumula nas horas diurnas.
Trata-se, obviamente, de aspectos dualistas opostos, porém complementares, cuja
pertinência recíproca deve ser exaltada pelo discurso filosófico aberto, pelo intelecto
184
O homem das vinte e quatro horas, o homem despertado, o homem racionalista, o homem
que aproveita desta hora rara do dia, quando sente em si a tonalidade racionalista, conhece
uma atividade de renovação, de recomeço! É necessário retomar tudo. Não é possível
fundar-se sobre lembranças da véspera. Não é por que demonstraram alguma coisa ontem
que poderão demonstrar seu corolário hoje. Sim, em vossa cultura de racionalista, existe o
fato puro e simples de que, se necessário, podem recomeçar [...] atualidade essencial à
razão (BACHELARD, 1972c, p.49).
saber – “não pode recomeçar o que fez ontem”, diz Bachelard (p. 49), desprezando o
aspecto repetitivo no qual a cultura racionalista encontra sua certeza, segurança, garantia e
estabilidade:
científico, que devem ser superados, mesmo se permanecem, como dados teóricos do
passado de uma cultura específica: “Não se pode julgar sem sermos injustos [...] Não nos
deparamos exatamente com ideias claras e bem organizadas, num primeiro ato de
pensamento”, diz Bachelard (1972c, p.50), formulando a dicotomia de contrários que
sugere iniciar o trabalho conceitual sendo injustos, mas, concomitantemente, instalando em
nós mesmos o ideal de justiça: “Começa-se sendo injustos, e instala-se em si o ideal de
justiça” (p.50).
Os termos descrevem a convivência de diretivas intelectuais contraditórias, ao
propor a ação injusta sob tutela de um ideal justo. Bachelard (1972c) completa seu
raciocínio sempre de modo antitético e ambivalente, reabrindo a perspectiva de totalidade
do homem das vinte e quatro horas, que ele considera o homem noturno, como
ancestralidade, vinculado à origem e ao começo, “sempre em contato com uma espécie de
vida numa matriz, num cosmos, de onde sai ao despertar. E ali existe sempre um começo”
(p. 51). Contrariamente, na cultura científica, a ideia de começo está sempre em mutação,
subjugada ao julgamento por parte da evolução do pensamento científico que encontra
sempre “velhos sistemas a liquidar” (p.51). Esta é a contínua tarefa crítica que implica uma
noção de ciência como uma via sem fim, jamais terminada e sempre em processo de
renovação, de retificação e de superação de si mesma.
Invertendo o enfoque, Bachelard (1972c) apresenta o homem noturno no gozo de
uma vida confortável e contínua, que não requer o esforço dialético de uma busca crítica
permanente por defeitos nos sistemas de racionalidade. Convém frisar que a reorganização
do conhecimento científico não pode, portanto, realizar-se de uma vez só, num só golpe
como diz ele: “a filosofia racionalista é essencialmente uma filosofia que trabalha” (p. 52).
Eis então que a especificação da divergência entre as duas posturas, do homem noturno
oposta àquela do homem das luzes, da razão, serve a Bachelard para evidenciar o sentido de
ensaio, de tentativas, sem o qual não se dá a reformulação do saber.
Isto faz do racionalismo, como visto neste estudo, uma prática intelectual
essencialmente aberta, em vias de aperfeiçoamento contínuo, sempre à procura de
aberturas, de dialéticas, de eventos (BACHELARD, 1972, p.52), como oportunidades de
renovação do conhecimento, o que parece sugerir uma das razões pelas quais o filósofo
dedica tanto esmero à enumeração e busca de situações nas quais o saber ingressa no
187
Este racionalismo dialético não pode ser automático, nem pode ser inspirado na
lógica: mas deve ser cultural, quer dizer que não se elabora no segredo de um
gabinete de estudos, nem na meditação das possibilidades mais ou menos
evanescentes de um espírito pessoal. O racionalista deve apegar-se à ciência
assim como ela é, ele deve instruir a si mesmo na evolução da ciência humana e,
consequentemente, ele deve aceitar uma longa preparação para receber a
problemática de seu tempo (BACHELARD, 1972, p.53).
propostos continuamente pela pesquisa científica. Ele indica, então, a “pequena dialética de
problemas como origem certa para consequências maravilhosas e inesperadas”
(BACHELARD, 1972c, p.53). E diz que “Grandes problemas iniciam em modo pequeno”
(p.53). Consequentemente, o racionalista deve comprometer-se com o conhecimento
científico de sua época, de seu tempo.
Cabe realçar que será esta mesma necessidade de comprometimento com o
racionalismo de sua contemporaneidade a garantir destaque às relações sociais da ciência
como uma sua qualidade intrínseca. Toca-se assim o tema comunitário da cidade científica,
que apesar de fugir ao interesse imediato desta pesquisa, é reconhecido como um dos
pilares fundamentais do edifício epistemológico bachelardiano.
Entretanto, sobre o mesmo tema, interessa assinalar mais uma ocasião na qual o
filósofo toma a tangente das dicotomias – opondo, idealmente, as faculdades de ciências e
de letras – para formular, simultânea e ambivalentemente, a denúncia de uma “aberração do
racionalismo” (BACHELARD, 1972c, p.54), e a afirmação de uma característica
primordial à essência da racionalidade contemporânea. Por um lado, valendo-se de indícios
presentes na cultura, na educação e nos programas de ensino, ele cita a Sociedade de
Ciências parisiense e a Faculdade de Ciências como cúmplices da tendência científica ao
“fechamento sobre uma sociedade bem constituída” (p.54), tendência instaurada “por
racionalistas solitários que pretendem constituir as bases da ciência longe das escolas”
(p.54).
Por outro lado, ele diz que na Faculdade de Letras, enquanto filósofo, recebe
confissões de “falsos cientistas” (BACHELARD, 1972c, p.54), inquietações que não ousam
confiar a colegas da Faculdade de Ciências. Assim, valendo-se da oposição entre
fechamento científico e livre discussão filosófica, Bachelard declara como característica
fundamental da razão, a participação do racionalista na escola:
O racionalista deseja estar na escola, ele está sempre na escola. Quando existem
mestres que não estão mais na escola, então não trabalham mais, então
abandonaram, precisamente a atividade da cidade científica, da qual são
ilustrações, não são necessariamente operários (BACHELARD, 1972, p.54).
afirma que, para ser atual, o trabalho do racionalista deve segmentar-se. Surge assim o tema
já introduzido no capítulo inicial, da polarização que opõe múltiplos racionalismos
regionais à singularidade de um racionalismo geral, cuja tematização permanece bastante
vaga – na economia do texto epistemológico bachelardiano –, pois o autor não faz senão
anunciar que a especialização do trabalho científico, aplicado às diferentes disciplinas
racionais deverá sucessivamente reunir-se sob a ótica de uma racionalidade geral.
Esta é aqui apresentada em sua vertente de polêmica contra a existência noturna,
como se bastasse desvalorizar “as potências da noite” (BACHELARD, 1972, p.55), para
atribuir ao uso da razão sua característica de generalidade, mas, após poucas linhas, afirma
também que não se deve proclamar um racionalismo geral que afaste do domínio racional o
estudo de “valores humanos superiores” (p. 55) como os valores morais e particularmente,
os valores estéticos:
Vocês se surpreenderiam - ouso falar por mim – que um filósofo racionalista se
ocupe um pouco com problemas da imaginação e faça psicanálise do fogo, que
ele busque sonhos da água ou do ar. Sou noturno na hora certa, não é mesmo!
(BACHELARD, 1972, p 55).
nossa atenção para a predileção de Bachelard (1972) por âmbitos que evidenciam regiões
de ambivalência entre os saberes.
Considerando o dualismo que divide o racionalismo em geral e regionais, nota-se
que segundo o filósofo, quando o cientista trabalha num domínio regional dos sistemas de
racionalidade, necessariamente, ele se vê obrigado a abandonar a racionalidade geral,
“porque [...] somos obrigados a deixar de lado os temas gerais que proporcionam uma
adesão demasiado fácil; torna-se então necessário entrar em polêmica e organizar
conceitualmente, as relações ocasionadas por tais racionalismos regionais” (BACHELARD,
1972, p.58).
Diante destes novos desafios da razão, Bachelard aponta ainda uma ulterior
característica desta nova démarche da racionalidade, que se estende especializando-se e
superando a generalidade do conhecimento. Apesar de sua vasta extensão, o racionalismo
evolui intensificando o nível de precisão com o qual se segmenta em suas especialidades.
Logo, sempre seguindo em clima de ligeira ambiguidade, o filósofo introduz o
“pensamento axiomático” (p.58-9), como manifestação do valor de fundamento e de
fundação deste novo uso da razão.
Resolve assim o enigma da extrema variabilidade e mutação, constantemente ativo
nas bases do mecanismo conceitual de funcionamento da razão, encontrando em seu
próprio movimento intelectivo a origem do moto dinâmico de sua evolução. Isto por que as
bases da racionalidade constantemente se reorganizam sob a tutela de variáveis que são
axiomáticas. Ou seja, transformam-se, seguindo exigências manifestadas por verdades
evidentes em si mesmas, originando, portanto, novas conceitualizações não só permitidas
nos estatutos da racionalidade, mas também só lidas o bastante para que, sobre elas, o
raciocínio prossiga em sua atividade construtiva e retificadora. Sendo assim, “É necessário
engajar-se numa axiomática como uma modificação da cultura. Uma axiomática representa
precisamente a oportunidade que tem o espírito de rejuvenescer, de se afirmar e se
reorganizar” (BACHELARD, 1972, p.59).
São, portanto, os conjuntos de axiomas que fundam os novos conhecimentos
responsáveis, seja pelas novas especializações, seja pelo desenvolvimento da atividade
científica, que – decididamente – foge ao modelo das construções isoladas de um
pesquisador solitário. Bachelard (1972) adverte que “Construções solitárias não são
192
79
Em recente entrevista, publicada nas páginas amarelas da revista Veja de 1/8/2012, o físico Daniel Zajfman -
presidente do Instituto Weizmann de Ciência, em Tel Aviv, Israel – confirma a liberdade do cientista como requisito
fundamental para o desenvolvimento da pesquisa científica. Afirma que os maiores avanços da ciência derivam de
pesquisadores não envolvidos com a solução de nenhum problema específico. Cita como exemplo a criação dos aparelhos
de raio X e a Internet, que não surgiram como soluções para nenhum dilema da humanidade. A Instituição, cuja diretora,
Ada Yonath, recebeu em 2009 o Prêmio Nobel em química, tem como característica própria não focalizar a pesquisa na
solução de problemas imediatos, mas sim, trabalhar com a necessidade de entender o funcionamento da natureza, fonte
inexaurível de novos conhecimentos. Entre os mil pesquisadores e mil estudantes que frequentam o Instituto, curiosidade
e paixão pela ciência são atributos básicos. O israelense aponta também uma característica peculiar do povo de Israel,
como estímulo ao desenvolvimento científico: o hábito da discussão, uma variante do espírito polêmico de Bachelard, pois
“Sem o questionamento audacioso e quase insolente, não haveria avanço na pesquisa”. A aproximação com Bachelard se
dá também na questão da imensa diversificação dos estudos sobre fontes de energia renovável, que abrirá a perspectiva da
discussão sobre dependência de um combustível único, o petróleo. Aqui a solução não será única, mas múltipla e regional,
conforme as características dos países.
80
Concordando com Bachelard, Zajfman afirma: “As descobertas são resultado de intenso trabalho cerebral
dos cientistas. O conhecimento apenas não é suficiente. O conhecimento está disponível com facilidade na
internet e nos livros. Não é porque alguém sabe muito que é capaz de fazer muito. Se fosse assim, qualquer
um poderia se tornar cientista”.
193
exercida pelo embate polêmico – pela oposição de pontos de vista – que se desdobra entre
os especialistas. A discussão de alguns exemplos precisos ilustra o terreno de dualismos e
ambiguidades, privilegiado por Bachelard como campo de teorização da prática científica.
Rejeitando, pois, conceitos apriorísticos do saber, a oposição entre absolutização e
aplicabilidade domina o confronto entre as diversas posições destes representantes diretos
do saber científico.
O primeiro aspecto abordado concerne, em ambiente einsteiniano, ao papel
fundamental atribuído no cálculo da simultaneidade, à “aproximação” (p. 61) que, enquanto
diferencial entre as mecânicas nova e antiga, serve à epistemologia bachelardiana como
definição do conhecimento científico. A renovação de Einstein parte, por conseguinte, da
rejeição do caráter de evidência a priori do conceito de simultaneidade, verdadeiro
“eletrochoque para os filósofos” segundo Bachelard (1972, p.61).
Logo, negando o caráter absoluto à simultaneidade, Einstein a retifica enquanto
conceito experimental, carente de definição nos termos de uma experiência possível. Ou
seja, tecnicamente, trata-se de uma noção ambígua que sendo experimental não pode ser
dada pela experiência: “Não é um conceito imediato! É necessário fabricar este conceito!
Não é um conceito inicial”, afirma Bachelard (1972, p.61).
Portanto, para se definir um conceito como este de simultaneidade, deve-se
construir um sistema de postulados e suposições, configurando uma provável experiência
científica. No caso, afirma-se que um raio luminoso percorre no mesmo tempo o trajeto de
A a B e vice-versa, de B a A. Entretanto, a igualdade temporal não é um dado de
experiência. Os dois tempos, de ida e de retorno “são postulados iguais”, se pode ler em
Bachelard (1972, p. 62). Sendo o postulado, exatamente o princípio não demonstrado de
um argumento ou teoria. Então, as axiomáticas representam estas estruturas de axiomas e
de postulados, sobre cuja validade a ciência não se manifesta. Postulados são afirmados,
quando servem, e basta. Justificam-se pela coerência mesma da teoria que passam a
integrar. Assim funciona a estrutura axiomática do racionalismo.
A definição destas funções basilares não tem sentido algum para o procedimento
científico que se afasta cada vez mais da intuição imediata e primeira da realidade. Por isso
a relatividade, em 1905, rejeita o conceito de simultaneidade absoluta como intuição clara e
194
[...]numa construção formal que ainda não é nada, mas que, num certo momento
começa a girar e bruscamente, faz surgir a coerência! Hoje sabemos que,
axiomáticas mais ricas, também provocam em nós este mesmo choque de
objetividade, de realidade, independentemente de nosso pensamento, que
provocam a apreciação de nosso pensamento (ULLMO apud
BACHELARD,1972, p.64).
Jean Beaufret, filósofo heideggeriano, intervém para concluir que este momento de
avaliação da axiomática torna-se algo análogo ao momento poético, sugerindo então “a
presença do poético no coração mesmo da axiomática” (apud ULLMO, in BACHELARD,
1972, p.67), como manifestação de um tema já por si mesmo supra regional, que seria
conveniente tentar decifrar. Em tal modo, Beaufret instiga Bachelard a fazer “o que ele não
quer fazer” (p. 66), ou seja, expor sua alma polarizada durante o debate que segue à
conferência em questão.
Acredita-se, portanto, que seguir a argumentação em suas entrelinhas – por
conseguinte, não se pode evitar as extensas citações que seguirão – fornecerá a rara
oportunidade de colher dados de pesquisa no momento de confronto aberto entre
imaginário e racionalidade, as duas forças dialéticas que, operando em sistema de
dicotomia ambivalente, garantem a atuação de uma dinamogenia do discurso, que anima
também toda a produção intelectual de Bachelard, que logo percebe onde seu interlocutor
deseja conduzi-lo: “O senhor deseja atrair-me ao domínio que eu não quis examinar. É
insidioso, pois realiza muito bem seu trabalho de sedução” (BACHELARD, 1972c, p. 67).
Prepara-se, com estas palavras, a penetrar na região ambígua da convergência de
perspectivas que, por outro lado, sempre se esmerou em manter separadas.
O instante profundo ressoa, como se abrisse o caminho para o coração de um
mistério que se revela, ocultando-se, e se mantém oculto em suas revelações. Momento de
androginia híbrida entre perspectivas de reunião e separação, de abertura e fechamento, que
configuram paradoxos, sob a forma de bipolaridades por inversão; a saber, fazem surgir no
discurso: separações que reúnem e reuniões que separam.
196
O Senhor me diz: O Senhor não quer falar sobre a poesia da noite, mas não nos
dirá que não exista uma poesia das matemáticas! Conheço o tema: poderíamos
desenvolvê-lo; mas isto seria bastante perigoso. Seria a consequência das alegrias
matemáticas; teríamos que falar das alegrias do matemático, das alegrias do
físico: existem algumas bem grandes! Eu chamo isto de tonalidade (tonus)!
(BACHELARD, 1972, p. 67, grifo nosso).
Quando encontramos um teorema belo, ele é belo depois de ser formulado, pois,
antes disso... miséria! O que é ele? (BACHELARD, 1972c, p.69).
Beaufret (Apud BACHELARD, 1972c) esclarece que aquilo que disse não pretendia
ser um convite à metáfora, mas sim, “uma investigação sobre o comprometimento com o
racionalismo daquilo que Sauriau chama de poética da lucidez” (BEAUFRET apud
BACHELARD, 1972, p.69), que Bréhier (1876-1952) – inserindo-se no debate – diz ser o
mesmo que Bachelard chama de “empirismo do racionalismo” (p.69). Este último lança
então de uma rara e preciosa definição. Rara e preciosa enquanto cunhada por um filósofo
que não ama sínteses nem definições, ao contrário, como visto, para Bachelard, todo
progresso do saber deriva sempre de complexidades progressivas.
Bachelard diz que o racionalismo não é privilégio único de físicos e químicos: “O
racionalismo é uma filosofia que tem algo a fazer, pois está coligada a tarefas científicas”
(p. 70). Dito isto, ele passa a discorrer sobre imagens, afirmando que “a vida nas imagens
não pertence ao reino da imaginação”, pois o que tomamos nas imagens da vida noturna são
as realidades mesmas desta vida noturna. Formula mais uma inversão de termos,
aprofundando o discurso ao defender a seguinte ideia, claramente ambígua: não formamos
imagens, ao contrário, são elas que se formam em nós. Assim sendo “não existe atividade
construtiva no sonho que por isso, à vezes é tão desorganizado. Consequentemente, quando
dizemos que o matemático tem imaginação, não podemos dizer que ele tem um movimento
de imagens” (BACHELARD, 1972c, p.70).
Na ótica deste estudo, sugestionado ou pressionado pelas objeções dos colegas, na
ocasião Bachelard, sem formular teorias nem enveredar-se pelos meandros de discursos
acadêmicos, tece considerações – em tom de conversa entre filósofos – sobre aquilo que
não faz em tantas outras ocasiões e cuja falta, sentimos muito enquanto estudiosos de seu
pensamento. Quer se dizer que se intui nestes breves comentários o mesmo delicado
esforço de distinção comentado anteriormente. Trata-se de distinguir sem amputar, sem
congelar suas vertentes em dois universos em ruptura, distintos sim, mas do mesmo modo,
complementares.
Separação tout court entre razão e imaginário seria o ponto de vista inicial da
psicanálise do conhecimento objetivo, anterior, portanto à abertura efetivada em A
psicanálise do fogo, que bem ao gosto do autor transforma a simples questão do divórcio
200
entre duas opostas perspectivas do pensamento, num universo de pesquisa mais complexo,
como se pode ver através do desdobramento de seus estudos, após o ciclo da metafísica da
imaginação cósmica. Apesar de reconhecer a imaginação que permeia a atividade
científica, imaginação do matemático, no caso; ele se preocupa em distinguir desta, a livre e
total entrega de si ao movimento do devaneio imaginário, que guia a criação do poeta.
Assim, Bachelard salvaguarda a integridade de suas duas vertentes, assegurando,
simultaneamente, o fundamental jogo de forças contrárias que nutre a vivacidade de seu
pensamento. Veja-se então em que termos ele cede à insistência dos interlocutores e passa a
discorrer sobre o imaginário:
Passei dez anos de minha vida estudando as imagens por elas mesmas, assim
como se apresentavam, sobretudo na criação incondicionada da obra poética. Se
alguém diz: Vou fazer uma bela imagem!, ele não a fará; não se pode querer fazer
uma bela imagem. É uma espécie de dom, não do espírito, mas da alma [...] sim,
é uma graça, uma graça noturna (BACHELARD, 1972c, p. 71).
81
Stéphane Lupasco, filósofo oriundo da România, formado na Sorbonne, estudando Einstein e a mecânica
quântica, chegou a desenvolver uma lógica não aristotélica, por intermédio de suas objeções ao fundamental
princípio clássico tertium non datur ou lei do terceiro excluído. A teoria lupasquiana prevê a superação do
esquema dualista vigente na lógica tradicional, integrando os valores "verdadeiro" ou "falso" com a noção
ambígua de um terceiro estado possível, que chama: estado-T, situado - além da contraditória bivalência –
num ulterior padrão de complexidade.
201
escolha de Bachelard que, ao invés de usar o termo lógica, a seu ver, mais condizente com
o projeto de modificação dos antigos parâmetros de uso da razão, em grande parte
superados pelas transformações científicas da época, prefere usar racionalismo, termo
historicamente imbuído de significação metafísica, que pressupõe uma estrutura objetiva de
racionalidade do real, o que, em outros termos, dificultaria qualquer projeto de
transformação ou mudança nos modos de desdobramento da racionalidade.
A segunda questão de Lupasco verte sobre os possíveis critérios racionais na
direção desta mudança das funções de racionalidade: “O que justificaria tais
modificações?” (LUPASCO apud BACHELARD, 1972c, p.71). Quais os critérios de um
racionalismo aplicado, que se define, portanto – em suas diferentes aplicações – como uma
forma de racionalidade “incessantemente modificável?” (p.71). Pressente-se aqui o risco de
um círculo vicioso – que surge da tentativa de evitar o pragmatismo de um critério de
mudança fundado sobre o êxito – ao indicar o racionalismo como critério de sua própria
transformação.
Segundo Bachelard (p.72), o termo lógica – em seu formalismo intrínseco –
descreve uma atividade essencialmente vazia, sem relações com a matéria. Trata-se de
“uma atividade que consiste em instalar-se num formalismo absoluto, sem esse voto de
formalização, não se faz lógica [...]. A lógica não se deve aplicar!” (p.72). Por conseguinte,
a qualidade especificamente lógica que Bachelard reconhece à ciência consiste no fato de
que a arquitetura conceitual – com a qual se erguem teorias – deve ser construída segundo
regras tais que evitem contradições. Mas isto concerne à estrutura lógica das linguagens que
permitem a expressão clara do pensamento racional.
Contrariamente, o racionalismo tece uma rede conceitual que prevê a necessidade
de aplicações experimentais. Como atividade axiomática de reorganização de saberes, a
prática racionalista do cientista permite questionar a experiência, possibilitando também
aquilo que o autor qualifica como função específica do filósofo epistemólogo, a saber,
cometer imprudências metodológicas, “dizer coisas exageradas” (BACHELARD, 1972c,
p.73).
202
Tal inovação no procedimento que reúne filosofia e ciência adquire assim o mérito
funcional de promover a abertura82 do pensamento questionador que, sistematizando
interconceitos, nas fronteiras dos conheciments especializados, supera a dependência de
critérios na pesquisa: “Não busco por critérios. Não tenho critérios gerais! Tenho um
critério experimental” (p. 73). Lançando mais uma objeção, Wolff (apud BACHELARD,
1972c, p.74) designa aquilo que Bachelard chama de racionalismo regional como o método
que se aplica a domínios específicos do conhecimento, enquanto o que mais lhe interessa
conhecer seria o que existe de comum entre os vários métodos aplicados aos vários
domínios (p.74). Ele argumenta que sob a variedade de métodos diferentes, reencontramos
as mesmas exigências fundamentais do raciocínio humano:’ é o velho princípio de
identidade e de não contradição que governa sempre o pensamento” (p.74).
Ao mesmo modo, Wolff identifica a busca de uma certa identidade, de certas
invariáveis, em todas as construções científicas83. Trata-se, a seu ver, de uma “orientação
constante do pensamento” (p.74), que impede que cada nova descoberta provoque
explosões na razão. “Somos todos racionalistas”, reage Bachelard (p.74), reduzindo a
intervenção de Wolff à inutil revendicação de uma necessidade de clareza que, na verdade,
constitui a história do racionalismo presente em qualquer manual do ensino de segundo
grau.
O ilustre psiquiatra e filósofo Eugéne Minkowski (1884-1972), teórico do
racionalismo macio, afirma que, ao ouvir Bachelard, “sob influência do clima que o Senhor
soube criar” (p. 74), perdeu de vista a ideia simplista que tinha do termo racionalismo:
82
Wolff, também presente à Conferência, corrobora a prática de abertura dos saberes: “Hoje em dia todos se
rendem conta que é necessário alargar o racionalismo tradicional”.
83
Como no caso da velocidade da luz em Einstein e a consideração da energia como fator mais importante do
que a massa, na ciência da época.
203
tudo o que não for racionalismo, na vida diurna, tem origem noturna. Em tal modo,
Minkowski defende a existência de fatores extra racionalistas que intervêm na atividade
científica ou filosófica, e sem origem noturna, colaboram em termos de comparação, ao
entendimento da natureza do racionalismo mesmo. A segunda questão minkowskiana verte
sobre a aproximação de dois termos fundamentais da conferência de Bachelard, a saber,
“racionalismo progressivo” e mecanismo do “re” – reorganização, recomeço, renovação – e
questiona se os dois movimentos: de progresso e de renovação, tenham, em nossas vidas, a
mesma origem.
Seria inadmissível a hipótese de um cirurgião que desenvolve sua atividade
inspirado em sonhos noturnos. “Seria uma catátrofe” afirma Bachelard (1972, p.76) em sua
resposta, caracterizando a tonalidade racionalista como qualidade de total dedicação e
adaptação à atividade específica de cada profissão. Reserva, ao contrário, à potência de um
“existencialismo da noite”, a função de prover ao repouso do racionalista, pois “se o
matemático tem sono ruim, não encontrará seus teoremas” (p.76). O psiquismo cansado
necessita bons sonhos, “sonhos aquáticos”...
Tente sonhar que de noite, entre seus lençóis, encontram-se numa água doce,
perfumada e morna! E, consequentemente, recebam todas as potências noturnas!
Mas quando chega o dia, quando se encontram diante de suas folhas de papel, se
forem matemáticos, diante de seus quadros negros, empenhem-se em não
permanecerem na água e na lama! (BACHELARD, 1972c, p.76).
científico” (p.77-8)84. O cientista mesmo deve tentar formular contra exemplos que possam
desmentir suas hipóteses, apresentando casos e moldes para os quais o método utilizado não
funciona. Lenoble (Apud BACHELARD, 1972c) se apresenta ao debate, argumentando que
em pleno século XVII, quando Descartes e Galileu fundam seus sitemas de pensamento,
apesar de possuírem a “tonalidade racionalista”, devido aos pouquíssimos fatos e dados de
física matemática dos quais dispunham para formalizar seus axiomas, pode-se pensar que a
fórmula: “A natureza é escrita em linguagem matemática”, tenha sido na verdade um
grande sonho85.
Acredita-se que, ademais, ao tentar investigar o momento específico de troca de
saberes, quando uma metodologia demonstrada infrutífera é substituída por novos
procedimentos de pesquisa, Lenoble toque um aspecto importante para o trajeto que traçado
nesta tese, de individuação de modos de desenvolvimento e progresso do conhecimento, na
contramão do hábito de pesquisa tradicional e acadêmico. Ele introduz sua pergunta,
constatando que Bachelard cita experiências que transformaram tão profundamente o
mundo material – referindo-se às novidades da revolução relativista e quântica – a ponto de
serem consideradas elas mesmas como novas atitudes racionalistas.
Deste ponto de vista, pode-se pensar às profundas transformações no que concerne
mesmo a ideia de realidade, analisada no capítulo 1 dedicado à epistemologia. Relembra-se
que a nova concepção de materia, além de propor um objeto de estudo invisível e quiçá
mesmo inexistente, ousou formalizar também uma concepção material em termos de
energia, de eletromagnetismo quântico, de saltos de eletricidade que mantém coesa a
matéria concreta, constituída, portanto, essencialmente por espaços vazios. Vê-se assim que
efetivamente, experiências realizadas em laboratórios de física tranformaram-se em atitudes
fundamentais à racionalidade científica da modernidade. Tais razões conduzem Lenoble a
84
Identifica-se uma metáfora perfeita da época de novidades derivadas da cientificidade relativista e quântica no retorno –
proposto pelo interlocutor Lenoble – à questão do encontro entre o “homem do dia” e o “homem da noite”, momento
“capital para a ciência, da ideia brilhante, da invenção, da hipótese”. Lenoble focaliza sua interrogação no momento de
troca de saberes, com termo foucaultiano – para quem tal momento permanece um enigma – quando o aparecimento de
uma nova axiomática permite a observação de fatos novos. O que existe entre os dois momentos ou estados da ciência,
entre a falência de um método e a formulação de um novo método? Momento instável “de novas hipóteses, de imagens
que servem como esquema diretivo para uma sistematização possível”.
85
Lenoble (p.78) traça uma analogia entre duas imagens presentes nos escritos cartesianos – a alma que reside
no corpo como o piloto no navio e o homem que carrega uma lanterna mágica – e o homem noturno
bachelardiano.
205
E agora, quando veem toda esta contabilidade e esta ordenação, estas guias técnicas!...
Diremos: Este raio, acreditam que seja simples? Não, não! Coloquem-no num campo
suficientemente forte, ele se desdobrará e se desenrolará! Existe, por conseguinte uma
206
A esta mesma tarefa, entregara-se Bachelard há quase trinta anos: defender o novo
racionalismo quântico, epistemologizar as novidades da experimentação científica. Para
isto, ele in primis deveria estabelecer um novo estatuto de investigação que lhe fosse
próprio e lhe consentisse praticar sem receio toda abertura de pensamento necessária à
compreensão filosófica do novo saber científico. Foi esta a ocasião perfeita para que o
filósofo lançasse mão de seus novos hábitos de reflexão e análise configurada neste estudo
– em termos de dinamismo espiritual – no quadro geral de sua metodologia por oposições e
ambiguidades.
Parece que, em fim de contas, tudo se resolva numa “questão de rapidez de
compreensão” (p.80). A mecânica quântica coloca – natural e rapidamente – os “cérebros
em ação” (p.80), habilitando-os ao deslocamento de compreensão e de racionalidade86 que
parece, portanto, caracterizar o desenvolvimento da ciência tout court, desde sempre
notadamente, nos momentos de renovação efetiva de todo protocolo do saber. A
racionalidade é sempre equívoca e torna-se cada vez mais difícil. Além disto, como
Bachelard mesmo recorda, em outro artigo87 desta coletânea sobre o racionalismo, o
espírito racional prepara seus próprios eventos, liberando-se, portanto, do confinamento
numa experiência racionalista particular: “O espírito científico pode beneficiar-se da
essencial pluralidade de diferentes sistemas de racionalidade” (p.91).
Concluindo o debate, Bréhier (apud BACHELARD, 1972c, p.83) confirma a
acolhimento positivo – por parte de uma audiência de peritos do pensamento
epistemológico – à urgência defendida por Bachelard em entregar-se à tarefa de renovação
da racionalidade dos anos 5088, ao ler (p.83) ao público a carta escrita para a ocasião por M.
Benda, que vê uma essencial continuidade entre a tese de Bachelard e Brunschvicg. Para
ele, Bachelard nega a atitude racionalista legitimamente, pois “existem fatos na natureza
86
Bachelard cita a epígrafe de um livro de FRANK, sobre Einstein: “O que existe de mais incompreensível?
É que o mundo mesmo seja compreensível”. Idem, p.80.
87
O novo espírito científico e a criação de valores racionais (BACHELARD, 1972c, p. 89).
88
O autor defende além do mais, a inserção imediata da mecânica quântica no currículo de formação superior.
Idem, p.80.
207
que não provém do racionalismo [...] existe um mundo de fenômenos que escapará sempre
à explicação racional” (p.83). Realmente, segundo o filósofo, seria uma grande desgraça, se
a ciência conseguisse explicar tudo, “pois no dia em que tudo será explicado, me pergunto
o que teríamos a fazer” (p.83).
Uma última provocação de Bréhier oferece a Bachelard a ocasião que esperava para
expor com vigor seu ultimato intelectual. Não há como voltarmos atrás: “A mecânica
quântica e a física nuclear não podem ser explicadas sobre a base única dos princípios da
física ordinária”89 (p.83).
Após ser focalizada esta asserção bachelardiana, passa-se agora à investigação
entorno da nova noção de corpúsculo, no intuito de analisar em que modo o discurso
retificado da epistemologia bachelardiana, renovando os princípios da física ordinária,
aborda a questão da natureza insólita das partículas atômicas, formulando novos princípios
racionais, com os quais torna-se possível a descrição teórica da novidade quântica e
nuclear.
Antes, porém, misturam-se, brevemente, as cartas na mesa, entre ratio e devaneio,
através da criatividade, como função de uma consciência que raciocina e sonha - em seus
conceitos e em suas imagens - para ressaltar como, em fim de contas, a mesma abertura nos
procedimentos racionais, exigida pela ciência para lidar com os aspectos mais insólitos da
materialidade microfísica, pode ter guiado a atenção e o discurso bachelardiano acerca de
aspectos ambíguos e contraditórios que, a bem ver, terminam por constituir uma técnica de
análise que se adapta muito bem seja à ciência, seja ao imaginário.
Nota-se então que para o primeiro Bachelard, de La formation de l’esprit
scientifique (1996a), a imaginação é a expressão do caos da natureza. É rêverie, como
afirmação da continuidade entre consciência e inconsciência, no decurso de instintos
primordiais e arquetípicos que podem acometer, subjugando, a clareza da reflexão
científica. Com o prosseguir de suas pesquisas, Bachelard reabilita o imaginário poético,
tornando-se receptivo ao aspecto mais criativo da imaginação, não só como faculdade de
produzir imagens, mas também de deformá-las, para induzir no leitor experiências de
devaneio poético e reflexões sobre a criatividade humana.
89
Assim Bachelard responde à ingênua objeção do emérito medievalista, que pedia que lhe citasse um só
texto científico que deixe de lado enunciados no formato: dado isto, segue aquilo, utilizando portanto o
mesmo racionalismo em vigor há trinta séculos (BRÉHIER apud BACHELARD, 1972c, p.83).
208
A tarefa é difícil, requer a rejeição das convicções de base empirista e realista que
direcionam nosso hábito de percepção comum ao mundo natural circunstante, como quadro
do real e de tudo o que, nele, se dá ao nosso conhecimento. Entretanto, o desafio lançado à
mente é intrigante, enquanto sugere os novos meios de uma tecnologia da percepção que,
subvertendo milênios desse naturalismo gnoseológico, em pouco mais de um século -
tempo bastante breve, em termos de arqueologia do saber - gerou descobertas estonteantes,
sobretudo, nos campos da microfísica e da microbiologia. É o caso do acelerador de
partículas e do mapeamento do genoma humano, como também nas neurociências, no que
concerne às funções específicas dos neurotransmissores cerebrais.
Além disso, aqui será aprofundado o que no primeiro capítulo foi tratado, nos
termos de uma descrição de procedimentos retificados do novo espírito científico,
abordando-se, agora diretamente, a natureza mesma do corpúsculo como enigma de uma
209
90
Nota-se que a polêmica entre Bachelard e Meyerson prossegue, quando este último defende, em: La
déduction relativiste (Payot, Paris, 1925), o ponto de vista que afirma a novidade do saber relativista
einsteiniano como dedução do sistema newtoniano, promovendo uma forçosa visão de continuidade entre o
conhecimento físico de Newton e Einstein. Bachelard lhe responde com “A indução relativista”, que afirma
uma ruptura entre Einstein e Newton. Para Bachelard, indução significa invenção, no caso, invenção com a
qual os novos princípios da relatividade rompem radicalmente com os fundamentos da teoria de Newton.
91
Antes dos estudos e experiências do cientista americano Benjamim Franklin (1706 -1790), a investigação
sobre a eletricidade baseava-se na constatação de fenômenos essencialmente materiais como fricção, atração e
repulsão. Em época de pleno mecanicismo, aplicava-se à eletricidade generalizações das leis da mecânica,
reduzindo-a a atributo de corpos materiais. Franklin identifica as cargas positiva e negativa e demonstra que
os raios eram fenômenos de natureza elétrica. Em tal modo, coliga o eletromagnetismo à eletricidade que
passaria então a ser entendida como fluido que perpassa a matéria e não mais como simples atributo de corpos
materiais. Sucessivamente, o físico e matemático britânico, James Clerk Maxwell (1831-1879), ao cunhar a
teoria moderna do eletromagnetismo, que serviria de base à relatividade restrita de Einstein, completa a obra
de desubstancialização da eletricidade e dos elétrons, demonstrando a propagação de campos elétricos e
magnéticos à velocidade da luz, considerada como fenômeno de propagação de ondas elétricas e magnéticas
(teoria da luz como efeito eletromagnético). Em 1864, Maxwell demonstra que forças elétricas e magnéticas
possuem a mesma natureza, podendo, portanto, converter-se umas nas outras, a segunda do referencial de
pesquisa. Os estudos de Maxwell contribuíram também ao desenvolvimento da mecânica quântica. As noções
de corpo e substância foram assim definitivamente banidas do campo de investigação da eletricidade.
213
contorno realista para uma realidade que, em sua ambiguidade, subverte e desconcerta a
pesquisa física clássica. Elétrons são definíveis somente em contextos de racionalidade
experimental, logo, comportam a interferência desse novo pensamento ontológico capaz de
elaborar a ambiguidade presente nos conceitos da física contemporânea. Uma vez
descritivos de realidades que podem, inclusive, se apresentar ao mesmo tempo, como onda
e como corpúsculo, os elétrons podem estar e não estar em determinadas localizações.
Efetiva-se em tal modo a total ruptura com os procedimentos de base materialista,
utilizados até então pela pesquisa física.
Percebe-se que a noção de corpúsculo – elétrons e prótons – é vetor de
ambiguidades, porque rejeita o aspecto concreto derivado de sua fundação em termos de
substrato material e substancial, ponto pacífico da ciência física anterior. É um erro pensar
a eletricidade como atributo de um corpo material preexistente, seja ele grande ou pequeno.
Aprofundando a categorização antisubstancialista da realidade subatômica, a ciência física
caminha sempre em direção a uma maior abstração, predispondo-se teoricamente à
aceitação da ambiguidade responsável pela caracterização desta nova objetividade, segundo
os moldes de uma ontologia que, portanto, se deve considerar “dispersa”.
O racionalismo aplicado, que propõe Bachelard, acata o trabalho com
ambiguidades, porque inventa e produz, ele mesmo, novos fenômenos que são radicalmente
antitéticos àqueles do positivismo que dominava o panorama intelectual da época. Esses
novos fenômenos são essencialmente construções axiomáticas, donde concluímos que,
devido à realidade não corpórea do corpúsculo, não podemos discorrer sobre cargas
elétricas corpusculares em termos substanciais. Substância deixa de ter sentido, eliminando
tangencialmente qualquer risco de que a nova ontologia da ciência instaure o irracionalismo
no reino material, pois ela se desenvolve num território que se encontra além da noção de
substância, no esquecimento desta.
Neste sentido pode-se dizer que a nova física é determinista, pois constrói, ela
mesma, a realidade que estuda.
A segunda tese paradoxal elaborada por Bachelard decreta a impossibilidade de
determinar as dimensões do corpúsculo. Podemos atribuir-lhe somente uma ordem de
grandeza, uma zona de influência, e já que ele não possui existência empírica concreta será
apreendido a partir da área, onde, no âmbito de uma determinada experimentação, torna-se
214
possível detectar sua atividade, registrando o rastro de sua presença, decorrente de sua
passagem como facho de luz e energia. O corpúsculo é essa zona onde vigora sua influência
e sua atividade. “Logo, o corpúsculo só existe nos limites do espaço em que age. A
existência corpuscular tem caráter essencialmente energético” (BACHELARD, 1951,
p.108).
Além disso, a ordem de grandeza do elétron – 10-13 – é dada pela distância de
aproximação entre dois elétrons, em velocidade limite. “Em tal modo o corpúsculo não é
definido em seu ser, como coisa inerte, mas em sua potência de oposição” (1951, p.109).
Esta forma inédita de medição da dimensão do corpúsculo em termos de dinamismo
ressalta a incompatibilidade da filosofia corpuscular contemporânea com a caracterização
do átomo ou corpúsculo segundo a noção clássica de impenetrável92 – herança do atomismo
filosófico, que perde seu caráter absoluto enquanto diretamente relacionada, pois, com a
ideia de substância – que alguns epistemólogos da época, ainda não conscientes da recente
novidade científica, insistiam em aplicar à realidade atômica. Por isso Bachelard adverte
sobre a necessidade de rejeitar interferências do atomismo filosófico na conceituação da
ciência molecular.
Sem se adentrar no mérito da discussão bachelardiana com a filosofia realista que,
segundo ele, poderia objetar que não conhecemos precisamente a grandeza do corpúsculo
devido à “insuficiência de nossos conhecimentos”, serão evidenciadas duas questões
diretamente coligadas ao tema desta tese. A primeira observação concerne à distinção que
Bachelard faz entre realismo filosófico, que continua a considerar o corpúsculo como um
corpo minúsculo qualquer, que deve, portanto, ser mensurável; e o realismo da física,
sensível à evidente impossibilidade de proceder, segundo a ideia de uma medida absoluta
da realidade subatômica. Não se pode medir elétrons com réguas, pois, a ideia de medida
em termos absolutos e rigorosos aplica-se somente à realidade substancial.
A nova física mede certas zonas de influência atômica, utilizando o conceito
variável de quantas de ação. Em microfísica, a grandeza de um corpúsculo só pode ser
inferida. Razão pela qual a discussão deve, então, verter sobre os métodos de inferência
utilizados. Logo, entre as duas formas de realismo citadas, a única válida é aquela da física
92
Segundo o ponto de vista substancialista da física clássica, na lei moderna dos volumes, os gases eram
considerados conglomerados de moléculas em movimento e sob pressão que, para o pensamento da época,
podiam copenetrar-se, tornando possível a ocupação por dois corpos distintos de um mesmo local do espaço.
215
elementos, suscitada pela composição, mas trata-se de uma visão do espírito, pois o
elemento isolado não tem geometria” (p.110).
Prosseguindo na ordem de complexidade das construções químicas, depara-se com
o paradoxo de estruturas complexas, que são mais conhecíveis do que estruturas mais
simples. A geometria atômica será tanto mais ativa quanto mais complexa for sua ordem de
composição, logo, mesmo se os conjuntos de elétrons que constituem o átomo foram
desgeometrizados pela química quântica, passando do átomo à molécula, portanto subindo
na escala de complexidade, a geometria da matéria aparece, fazendo da molécula algo
como um “pequeno corpo dotado de geometria, que possui grandezas determináveis, como
um edifício [...] O químico é um construtor de moléculas que, frequentemente, cria
moléculas [...]. A geometria molecular é uma guia para a química inventiva”
(BACHELARD, 1951, p.111).
Conclui-se então que a realidade corpuscular mais complexa é mais conhecível,
porque conhecemos melhor aquilo que sabemos construir: “Quanto mais participamos à
construção do edifício molecular, melhor o conhecemos” (1951, p.111). Inversamente,
onde não se dá mais conjunção construtiva de corpúsculos, perdemos o ponto de vista
geométrico. A partícula simples, em si, é uma perda de estrutura, o que implica que o
corpúsculo isolado não tem geometria.
Na verdade, a zona de influência e probabilidades que evidenciam a presença do
corpúsculo é sempre resultado de prévias construções fenomenotécnicas, perceptível,
portanto, somente no constructo complexo. Na natureza não se dá a existência de elétrons,
que são criação de uma determinada tecnologia fenomenotecnológica. Logo, o sentido
atribuído ao corpúsculo numa determinada estrutura ou nível ontológico é radicalmente
variável conforme a mudança dessa estrutura, ou seja, as partículas dependem do contexto
no qual são situadas.
Esta extrema variação ontológica da realidade subatômica, até hoje, causa estupor
em certa literatura filosófica da ciência. Por tal razão, Einstein teria afirmado que a física
que construiu poderia ter sido escrita, estando ele fechado numa sala, sem observar o
mundo, pois se trata de uma abstração que surpreende por funcionar uma vez fora da sala.
Um outro cientista, poderia ter elaborado uma construção conceitual diferente. Surge daí o
esclarecimento bachelardiano sobre a noção de determinismo técnico, como inexistente na
217
natureza, porém inscrito pela ciência sobre um mundo essencialmente indeterminado, como
vontade humana de domínio sobre aquilo que se constrói. Um determinismo científico que
desceu do céu à terra, onde na verdade nada é determinado.
As teses prosseguem, delineando inexoravelmente o contorno de uma nova e
extraordinária objetividade racional, que subverte todo pensamento científico clássico,
devido ao dinamismo com o qual acolhe em si, mudanças e transformações. O dinamismo
intrínseco ao núcleo atômico, a saber, a própria dinâmica molecular é o processo mesmo
que determina nosso único meio de conhecimento da realidade microfísica. Visto que,
como foi dito aqui, os cientistas avaliam a presença de corpúsculos através dos fachos de
energia que demonstram sua passagem pelo espaço ou sito tecnológico instaurado na
pesquisa. Daí, em campo de probabilidades, surge a possibilidade de indicações sobre o
spin atômico, ou seja, sobre a orientação que a realidade sub molecular estudada tende a
seguir; elaborando tais informações, a pesquisa pode prever colisões de partículas que
conduzirão a investigação a estágios subsequentes de evolução.
Parece possível concluir que, se por um lado, a epistemologia da primeira metade
do século passado encontrava-se diante do desafio de traduzir, em termos filosóficos, o
profundo e desconcertante teor de subversões causadas à lógica do realismo positivista –
com a qual até então se discorria sobre ciência, expressando nesses termos toda sua
evolução – pelas descobertas concernentes uma nova realidade atômica, em si mesma
repleta de ambiguidades e contradições. Por outro lado, todo antagonismo ínsito no novo
objeto do saber químico e físico complicava-se exponencialmente por tratar-se de uma
objetividade a ser estudada na dinâmica de suas incessantes transformações, e não mais
como a realidade inerte e estática que até então fora alvo da cientificidade.
Nestas primeiras conclusões, encontra-se já a confirmação de uma justificativa
plausível à metodologia com a qual Bachelard, em sua vertente epistemológica - e com o
intuito de esclarecer a vanguarda do pensamento e da prática de laboratórios que já
exerciam esse saber reformado - espelha tal controversa objetividade no dinamismo de
bipolaridades antagônicas, aporias e inversões, que formalizam sua irreverente pedagogia
por contradições.
A quarta tese sobre a realidade paradoxal do corpúsculo que afirma: “Já que não se
pode atribuir uma forma determinada ao corpúsculo, também não se pode atribuir-lhe um
218
lugar preciso. Atribuir-lhe um lugar preciso, não seria como atribuir-lhe efetivamente, do
exterior, e em modo negativo, uma forma?” (BACHELARD, 1951, p.111).
Este é o ponto de ruptura total com a imaginação cartesiana, diz Bachelard,
referindo-se certamente à lei da física newtoniana, que só admite o conhecimento de
realidades cuja posição e direção são claramente determináveis. A física do corpúsculo
contradiz, portanto, um quesito fundamental do realismo filosófico, a saber, o princípio que
exige a existência situada do objeto estudado que, portanto, perde seu valor absoluto,
devido ao princípio de indeterminação de Heisemberg, que impede notícias simultâneas
sobre a posição e o momentum, sobre a direção e o vetor do elétron.
Não há mais sentido algum em situar o objeto num ponto específico do espaço,
mesmo porque, como visto, a principal característica da nova objetividade corpuscular é
seu incessante movimento, razão que imprime o mesmo dinamismo a seus prováveis
métodos de conhecimento. A existência localizada perde a primazia que tinha como
princípio da ontologia pontual, superada cientificamente como determinação
fenomenológica de um dasein, de um “ser aí como consciência com o dedo apontado sobre
as coisas” (BACHELARD, 1951, p. 112).
Bachelard (1951) esclarece que o postulado de designação direta do objeto indica
realismo e fenomenologia como posturas filosóficas fundadas sobre o pensamento da
realidade comum, inaptas, pois, à abordagem da microfísica: “A ciência contemporânea
exige um novo ponto de partida. Ela propõe ao filosofo o curioso problema de um novo
ponto de partida” (p.112).
No domínio da revolução epistemológica instaurada pela descoberta da microfísica,
a aplicação da pesquisa técnica sobre o elétron recusa fenômenos imediatos, gestos
mecânicos e intuições geométricas, considerando que a investigação, mais do que a
situação dos objetos da realidade, volta o olhar para organizações inteligíveis de objetos do
pensamento, para uma numenologia que constitui os objetos da experimentação nuclear,
atômica e molecular. Nota-se que, ao usar o termo numeno, Bachelard não se refere ao
objeto em si kantiano, mas sim ao objeto experimental que, por resultar de uma construção
da inteligibilidade técnica, pode guardar em si ambiguidades e contradições, se comparado
ao objeto comum da experiência cotidiana.
219
Ainda na questão do dinamismo como aspecto essencial do real, cabe ressaltar, por
um lado, a ligação que, em tal modo, se estabelece entre o regime dinâmico que dá origem
às partículas microfísicas e a imagem literária, que também não é estática, ao contrário,
vive somente na mutação de seus instantes, em estado de dinamismo fundamental.
Por outro lado, o movimento revela sua essencialidade mesmo na concepção realista
e materialista que assume Bachelard, ao afirmar a existência de uma realidade que reage às
tentativas de conhecimento, configurando portanto, o dinamismo de resistência como
aspecto primordial do real. A realidade é a sua resistência, resulta das páginas de La terre et
les rêveries de la volonté (1948). Ademais, a realidade subatômica, fruto teorético do
93
Na experiência que prevê a iluminação de uma nuvem de elétrons, direcionando sobre ela um feixe de
fótons, só podemos afirmar existentes os elétrons iluminados experimentalmente pelo choque de fótons.
Portanto, no campo da microfísica: “devemos apreciar a existência em termos de experiência e não podemos
reter afirmações válidas sobre a localização de um objeto fora das circunstancias experimentais de sua
localização”. Refere-se novamente ao caso em que para ver onde está um corpúsculo, temos de iluminá-lo,
realizando uma experiência bastante complexa: “Para a região onde se pressente a presença de corpúsculos
[...] dirige-se então um feixe de luz, um feixe de fótons [...].”. Nesta experiência, podemos apreender não só a
existência, mas também o devir do corpúsculo. Sabendo onde ele está, podemos inferir aonde ele vai,
aumentando a probabilidade de nossas previsões (BACHELARD, 2010, p.27).
222
não renovam seu pensamento. Mudariam, se percebessem a novidade que constitui a noção
de corpúsculo como resultado de uma construção tecnológica aplicada à realidade. O
Bachelard epistemólogo prioriza a ideia de uma natureza construída pela ciência e, a partir
da oposição entre natureza e conhecimento, admite que a ciência pensa contra a natureza,
ordena seu mundo caótico, “sintetizando incessantemente uma crescente diversidade de
novas matérias” (BACHELARD, 1990, p.4).
O pensamento científico, inversamente à tendência conservadora do realismo
filosófico, reflete continuamente sobre os fenômenos de criação e aniquilação, concernentes
à realidade molecular, para alcançar maior compreensão das mudanças que ocorrem a nível
corpuscular, pois só entenderemos bem a ciência contemporânea se tivermos como base de
reflexão essa contínua transformação daquilo que percebemos sob o apelativo natureza:
Bachelard expôs, nas seis teses citadas, teorias e experiências aptas a revelar a
natureza paradoxal do corpúsculo, visando assim ressaltar a ruptura que a reflexão
epistemológica contemporânea instaura em relação às intuições filosóficas do atomismo
tradicional. De acordo com seu propósito, conclui-se, evidenciando aí um modelo da
transformação que a pesquisa científica impôs à racionalidade aristotélico-cartesiana que
procedia, até então, segundo o hábito de um raciocínio lógico fundado sobre conexões de
princípios de certeza absoluta do cogito, o qual, partindo da observação da natureza,
deduzia leis e categorias universais, hipoteticamente, suscetíveis de aplicação a todo e
qualquer ente.
Em tal modo, o rigor do intelecto humano alcançaria o entendimento dos mistérios
de funcionamento e progresso do mundo, considerado segundo o modelo de um mecanismo
perfeito. Os tijolos da construção do universo, que são as partículas como realidade
fundamental da microfísica, revelam-se à experimentação em toda sua impermanência
amorfa, desindividualizada e suscetível de aniquilação, subvertendo assim as regras do
cogito, ao instaurar uma reforma ontológica do conhecível que abre, inexoravelmente, os
225
Como se pode propor relacionar nossas intuições sensíveis a seres que escapam
de nossa intuição? O tempo dos comportamentos ingênuos terminou. [...] uma
ligação de ideias contemporâneas com dados sensíveis não apresenta mais
nenhum interesse. A ciência contemporânea separou-se completamente da pré-
história dos dados sensíveis. Ela pensa com seus aparelhos e não com os órgãos
sensíveis (BACHELARD, 1951, p. 117).
Pode-se então dar essa formula como exemplo da involução do pensamento filosófico.
Efetivamente, a noção de um corpúsculo definido como “um pequeno pedaço de espaço”,
nos reconduziria a uma física cartesiana, a uma física democriteana, contra as quais é
preciso pensar se quisermos abordar os problemas da ciência contemporânea. A noção de
corpúsculo concebida como um pequeno corpo, a noção de interação corpuscular,
concebida como choque entre dois corpos, eis exatamente as noções obstáculo, noções de
bloqueio da cultura contra as quais devemos nos prevenir (BACHELARD, 1951, p. 120).
Não se pode nem mesmo dizer que os corpúsculos sejam dados ocultos. Mais do
que descobri-los é necessário inventá-los. Os corpúsculos se situam no limite
227
94
Nota-se com frequência, no discurso bachelardiano, a utilização do termo realidade como noção ambígua
que compartilha de uma significação ambivalente, situando-se, geralmente, entre as ideias de algo que está
longe e inalcançável, e, de algo que é construído pela técnica.
228
O nêutron, por não ter nenhuma carga elétrica, escapa ao “senso elétrico” que a
técnica fornece ao homem do laboratório de nossos tempos; o nêutron é
“invisível” na câmera de Wilson. Então, deve-se formular um novo estatuto
ontológico para apreciar sua “realidade”. Em suma, com o nêutron, trata-se de
uma realidade formulada por suas consequências (BACHELARD, 1951, p. 158).
Hoje preferimos considerar prótons e nêutrons como dois estados de uma mesma
partícula. Com tal hipótese, deve-se dizer que o estado nêutron é um estado
instável da partícula, que possui certa tendência a transformar-se no estado
229
Seguindo ideias tão novas, nos convencemos de que um realismo incondicionado que dá
um estatuto ontológico definido aos corpúsculos pode provocar bloqueios no pensamento.
A dinamologia que aqui sucede à ontologia ingênua encontra-se porém num período de
230
imagem é sempre novidade. Por isso mesmo não dura, morre ao final de seu instante para
renascer sempre nova. Se durasse, a imagem não poderia ser o devaneio sempre novo que
se impõe e logo morre jovem.
Somente sentindo sua repercussão - como origem de uma total adesão do sujeito à
nova imagem - entramos em contato com o ser das imagens. O ato poético caracteriza-se,
portanto, como evento imediatista, no qual a comoção intimista brota súbito do brilho em
que perdura a criação poética de uma imagem. Somente a fenomenologia da imaginação,
definida rigorosamente como “estudo do fenômeno da imagem poética no momento em que
emerge na consciência, como produto direto do coração, da alma e do ser do homem em
sua atualidade” (1994c, p.2), permite esclarecer filosoficamente o problema da imagem
poética.
Em A poética do espaço, Bachelard (1994c) utiliza especificamente polêmica,
oposição e paradoxo, como recursos metodológicos, para apresentar a noção fundamental
de transubjetividade da imagem. Veja-se como, na economia de seu texto, a referência a
tais mecanismos insólitos na perspectiva de ensaios teóricos, adquire, como defendido neste
estudo, o status de elemento probatório que concorre, em modo decisivo, ao esclarecimento
de suas questões filosóficas. No intento de delinear fenomenologicamente as imagens
literárias, o autor anuncia que modificará o teor de suas análises anteriores acerca do
imaginário, nas quais ainda tentava proceder “fiel ao hábito da filosofia das ciências”
(BACHELARD, 1994c, p.3), a saber, afastando toda interpretação pessoal intimista no
processo de elaboração de sua teoria das imagens.
A busca por objetividade logo se manifesta como inadequada à reflexão sobre as
imagens literárias dos quatro elementos da cosmologia. De modo que, Bachelard introduz
seu ensaio, valendo-se de uma inversão polêmica na própria ordem metodológica da
exposição que tecerá. Abandona o que qualifica como “método da prudência científica (p.
3), que se manifestara como insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação. “Aliás,
a atitude prudente não é já a recusa da dinâmica da imagem?” (BACHELARD, 1994c, p.3),
indaga o autor. Em tom quase existencialista, ele admite sua dificuldade em abandonar
certos hábitos intelectuais, como no caso, a prudência.
A seu ver, tal questão configura-se como autêntico drama da cultura, vetor do
paradoxo inerente à fenomenologia da imaginação que atesta a atração exercida por uma
233
Para sentir uma tela, a pessoa deve projetar-se no centro que dá origem e sentido
à imagem representada. A alma possui uma luz ou visão interior que traduz no
mundo das cores vibrantes [...]. Para compreender a pintura é necessário
participar de uma luz interior, do foco do qual parte a iluminação da cena. É
necessário viver o sentido íntimo da imagem (BACHELARD, 1994c, p 5).
equação italiana: “traduttore traditore” (BACHELARD, 1994c, p.8). Nota-se assim que o
estudo fenomenológico do devaneio poético, valendo-se do instrumento da repercussão das
imagens, manifesta e confirma seu “valor de origem” (1994c, p.8).
Por um lado, propicia a ousada análise bachelardiana a fundação de uma inédita
abordagem da literatura, segundo os moldes de uma ontologia do poético; e, por outro lado,
sem temer ambiguidades – ou melhor, usando-as mesmo como instrumento de pesquisa –
torna-se vetor de uma categorização, também inédita, da novidade semântica instaurada no
psiquismo pela imagem poética, como fundamento da criatividade do ser falante, que
promove, em tal modo, a consciência à condição de origem de novos significados
imaginários.
Outra oposição polar, cujo efeito pedagógico convém ressaltar, instaura a dicotomia
entre o leitor feliz – autêntico fenomenólogo da leitura – que adere total e intimamente ao
encanto das imagens, que lê e relê, sabendo que lhe dizem respeito, e os rigorosos críticos
literários – que tudo sabem e tudo julgam – a propósito dos quais, Bachelard cunha a
paradoxal inversão: “Às avessas do complexo, fazem um simplexo (simplexe) de
superioridade.” (BACHELARD, 1994c, p.9). Ao defender a imagem como acontecimento
psíquico, ele nos alerta também para o novo status da poesia, enquanto fenômeno de
consciência, de uma consciência potencializada em sua sensibilidade lírica, que o autor
qualifica como “iluminada” (1994c, p.9), rejeitando, portanto, o ponto de vista habitual da
crítica literária, que tende à qualificação dos devaneios imaginários como uma forma de
criatividade irracional, proveniente das forças obscuras que povoam o inconsciente.
De modo que, mesmo quando não se refere diretamente a oposições, dicotomias e
polaridades, nota-se em suas demonstrações a força velada de raciocínios
fundamentalmente construídos no eixo de tensão que conecta dualidades, adquirindo, pois,
de imediato, maior evidência e clareza, derivadas naturalmente do embate com
configurações contrárias àquilo que se pretende afirmar.
Em tal modo, a força dinâmica de transformação do verso, que se renova seguindo o
fluxo perene de movimento da imaginação, torna-se objeto de apreensão imediata ao ser
confrontada com as “razões de fixação e forças de centralização” (1994c, p.11)
reivindicadas, ao contrário pela linguagem conceitual. Tal dialética permanente – como
mola de evolução da produção literária e poética – permite que a individualidade do leitor
238
possa reconhecer-se naquilo que lê, mais um fato significativamente paradoxal, que
Bachelard exprime no estupor da constatação de que a imagem poética manifesta sempre
aspectos da totalidade da alma do leitor: “O sujeito falante encontra-se inteiramente na
imagem poética [...], pois, se não se entregar sem reservas, não penetra o espaço poético da
imaginação” (BACHELARD, 1994c, p.11)96.
Na criatividade da imaginação poética, a consciência adquire – através das
surpreendentes configurações de imagens – uma “linguagem nova” (1994c, p.12), feita de
rupturas, oposições e divergências com tudo que lhe é habitual no cotidiano. A consciência
rompe não só com a causalidade do passado, mas também com significados e experiências
do presente, para ingressar no domínio da “sublimação absoluta” (p.12) – que nada sublima
– ao consentir que a imagem permaneça em seu próprio domínio, sem referência a
significados provenientes de âmbitos estranhos àquele da imagem mesma, ou seja, sem
adicionar ou referir a imagem a conteúdos que lhe sejam externos.
Bachelard defende em tal propósito a necessidade de um método de leitura estética
da obra de arte que saiba distinguir entre os dois tipos de sublimação. A saber, aquela usada
na psicanálise que, ao contrário, atribui às imagens valências decorrentes de um juízo
racional; e a sublimação propriamente denominada absoluta, praticada pelos leitores
fenomenólogos, que gozam da imagem mesma, que se expande, repercutindo unicamente
nos valores do ser que lhe é próprio. Tal ruptura com significações exteriores – decorrente
da tutela da imagem em seu estado originário de sublimação absoluta – adquire importância
decisiva para o desabrochar de potencialidades inéditas do poema; sem ela, Bachelard
acredita impossível que a poesia revele sua “exata polaridade” (1994c, p.14)97.
Imagens são inesperadas, surpreendentes e imprevisíveis, por que não buscam
antecedentes que as expliquem, mas são, ao contrário, tomadas – fenomenologicamente –
96
Na mesma ocasião, Bachelard cita o fenomenólogo holandês VAN DEN BERG, J.H. (1914-2012), The
phenomenological approach in Psychology, que, a propósito do contato com as coisas do mundo, propiciado
pela linguagem poética, afirma outro paradoxo: Vivemos constantemente uma solução de problemas que não
tem esperanças de solução para a reflexão (BACHELARD, 1994c, p. 11). O fenômeno poético situa a
individualidade no eixo de seu próprio mundo, feito de relações, paisagens e coisas. A poesia vivenciada em
profundidade nos coloca, pois, em contato com o universo. As coisas nos falam, diz Bachelard (idem).
97
Como de costume, o autor não determina o significado desta polaridade do poético, à qual se refere,
entretanto, considerando que no trecho em questão ele discorre sobre poesia pura, lida em estado de
repercussão poética, e não segundo suas ressonâncias na exterioridade – que abriria o devaneio à mistura da
comoção poética com as paixões da vida – pode-se entender a polarização poética como eixo fundamental na
consideração da autenticidade ou originalidade da imaginação literária.
239
pelo que são em seu próprio ser, ou seja, em sua pura repercussão. Para o autor, trata-se de
“viver o invivido, abrir-se a uma aventura da linguagem” (BACHELARD, 1994c, p.13). A
imprevisibilidade das imagens é o que mais surpreende na poesia, razão principal da
ruptura com o raciocínio lógico e linear de críticos e psicanalistas, cujas causas “não
permitem predizer a imagem literária em sua novidade” (1994c, p.13). Por conseguinte, a
poesia autêntica – aquela que promove nossa libertação – se dá, unicamente, como produto
de “criação absoluta” (p.13). A raridade desta forma nobre de poesia, ao contrário,
frequentemente “misturada a paixões” (p. 14), oferece oportunidade para mais uma
demonstração da pedagogia bachelardiana por inversões. Ele diz: Mas aqui, a raridade e
exceção não confirma, mas contradiz a regra e instaura regime novo (p.14).
Tratando-se de Bachelard (1994c), a novidade da linguagem não poderia senão
derivar da contradição de regras. Confirmando a necessidade que defendera, de não levar-se
a sério e de zombar de si mesmo, após tantas oposições metodológicas, o autor afirma, sem
dúvida com sarcasmo: “Digo em sentido polêmico, embora a polêmica quase não esteja
presente em nossos hábitos” (p.14).
A ruptura fenomenológica com o passado, que permite o livre fluxo da novidade
estética e intelectual, manifesta-se ao olhar bachelardiano na consideração da pintura como
arte autônoma, que supera todo o conhecimento específico de uma época – sobre história e
técnicas da arte – para experimentar novos pontos de partida, que solicitam ao artista a
coragem de um certo “esquecimento do saber, um não saber” (BACHELARD, 1994c,
p.15), posto em prática como técnica de superação do velho conhecimento. Em tal modo, a
nova obra faz-se efetivamente, criação de um início absoluto, livre das técnicas e mesmo da
cultura estética do passado.
Raros artistas alcançaram este vértice da pintura, fundando movimentos e estilos,
que logo se tornam parâmetros para a sensibilidade pictórica, aplicada ao surgimento de
novas tradições no mundo das artes, partindo idealmente de uma ruptura com a prática de
sua época. O mesmo dinamismo de abertura e evolução que instaura tais fluxus de rejeição
ou superação da cultura de determinados períodos determina na arte poética o jogo de
imagens que brilham como “superação de todo dado da sensibilidade (BACHELARD,
1994c, p.15), confirmando assim o não saber como condição da criatividade literária.
240
de dimensões como cenário interior e não como dado objetivo: “São dois polos de uma
projeção de imagens [...]. Trata-se de uma participação intima no movimento da imagem
[...] a impressão da imensidão está em nós, não está ligada necessariamente a um objeto”
(p. 20).
Seguindo intuições junguianas, Bachelard (1994c) esboça uma topografia do ser
íntimo sobre o traçado da casa, cuja imagem - em seus recantos e refúgios - oferece a
estrutura de análise da alma humana. Para ele, “nossa alma é uma moradia”
(BACHELARD, 1994c, p.19). A poética da casa enriquece aspectos empíricos das
residências ao considerá-los na perspectiva dos valores humanos que, ao se integrarem a
eles, ajudam a sonhá-los. Em tal modo, gavetas, cofres e armários tornam-se “refúgios
efêmeros ou abrigos ocasionais” (1994c, p.19). Ao mesmo tempo em que a residência serve
como dilatação da experiência intimista de quem ali reside, um devaneio protetivo “nos
sugere cantos onde gostaríamos de nos encolher [...]. Só mora com intensidade aquele que
já soube encolher-se” (p.19). Logo, pode-se notar que uma certa dialética do interno e do
externo, do aberto e fechado, dirige o jogo entre exterioridade e intimidade, numa dinâmica
de contrários que funda a tensão semântica essencial à defesa do ponto de vista do filósofo.
Repulsão ou rejeição e atração são termos contrários que, porém, aplicados à imagem da
casa, “não resultam em experiências contrárias” (p.19), afirma Bachelard (1993a),
propondo – como sempre – perspectivas de contrariedade como estímulo à compreensão da
realidade que estuda.
Em A poética do devaneio, de 1960 – que representa a efetiva coroação da
fenomenologia como principal modalidade de abordagem do imaginário poético –
Bachelard (1993a) refere-se, com clara intenção polêmica98, à insustentabilidade de um
método rigoroso, puramente lógico, como instrumento de análise de certos domínios –
como no caso da imaginação literária – nos quais se verifica certo contágio entre
consciência e apelos inconscientes, como cerne mesmo da criatividade estética. Parte-se já,
portanto, da delimitação de um campo de pesquisa essencialmente híbrido ou, como se
poderia dizer, hermafrodita, enquanto fruto de uma coexistência de aspectos contrastantes e
heterodoxos. Nota-se, em tal modo, que a ambiguidade ou ambivalência instaura-se no
98
Bachelard escolhe como epígrafe a citação de Jules Laforgue que já encontramos nesta tese: “Método,
método, que queres de mim? Bem sabes que comi do fruto do inconsciente” (LAFORGUE apud
BACHELARD, 1993a, p.1).
242
momento mesmo em que o autor anuncia o novo objeto de sua pesquisa. Disso depende e a
isso se vincula, seja o dinamismo, seja a evolução de seu universo polarizado na
complementaridade de episteme e devaneio.
Na obra em questão, a metodologia fenomenológica distingue-se decididamente
como uma tomada de consciência, vista essa também em seu aspecto de duplicidade, pois,
se por um lado, representa a possibilidade de comunicação imediata com a consciência
criadora do poeta, por outro lado, esta prise de conscience das imagens volta-se também
sobre a individualidade do leitor, que é conduzido ao movimento instintivo de retorno sobre
sua própria intimidade. Uma dupla consciência de maravilhamento, anuncia Bachelard
(1993a, p.1), que formula outra distinção de complementaridade, ao opor, por um lado uma
consciência de racionalidade, consciência “encadeada na cadeia de Verdades” (1993a, p.1)
e, por outro lado, uma livre e autônoma consciência imaginante.
Dicotomias polarizadoras servem sempre como distinção esclarecedora do campo
de indagação, como no caso do duplo paradoxo que ele formula em seguida, referindo-se à
inversão de uma dúvida recíproca – porém às avessas – que coliga o leitor ao
fenomenólogo, ambos questionando-se sobre a plausibilidade da integração de um método
fenomenológico às imagens literárias. O primeiro interlocutor ideal, não compreende bem
por que “sobrecarregar um livro de devaneios poéticos com questões filosóficas do método
fenomenológico?” (BACHELARD,1993a, p.2) enquanto na mente do segundo, a questão se
põe nos seguintes termos: “por que escolher matéria tão fluida como as imagens para expor
princípios fenomenológicos? (1993a, p.2).
Trançando enigmas e supostas contradições, Bachelard (1993a) prossegue na
enunciação de suas reflexões. A bem ver, concorda-se com o filósofo ao se acreditar que
nada possui maior força demonstrativa do que provocar o embate de uma tese com o seu
contraditório99. Bachelard propõe a prova dos nove de tal procedimento teórico, partindo
igualmente de uma oposição dualista que, no caso, confronta a figura do filósofo –
fenomenólogo – àquela do psicólogo que “descreve o que observa, mede e classifica”
(1993a, p.2):
99
Na história da filosofia, tal técnica demonstrativa desfrutou de grande prestígio, notadamente durante o
período de reflexão metafísica medieval, quando era conhecida como demonstração por absurdo, ou seja,
confiava-se a demonstração da validade de uma proposta ao evidente absurdo do raciocínio que a ela se
opunha.
243
encenadas no universo sonhado pelo poema, que segundo Bachelard (1993a, p.10), deve
sempre ser tomado como originário “ímpeto de devir humano”:
Devaneios poéticos são hipóteses de vida que alargam nossas vidas, dando-nos
confiança no universo: 1 mundo se forma no nosso devaneio: o nosso mundo.
Mundo sonhado que nos ensina possibilidades de engrandecimento de nosso ser
(BACHELARD, 1993a, p. 7-8).
Por um lado, o devaneio poético, ao constituir uma nova configuração de mundo - como
panorama para a vivência por parte do leitor de sua total e irrestrita felicidade de leitura -
simultaneamente, lhe oferece também a possibilidade de imaginar para si mesmo uma nova
identidade, coerente à experimentação da nova realidade que acaba de criar-se.
Em tal modo, através da interiorização maniqueísta de novas conotações de
personalidade, o leitor se renova na imaginação de um novo eu, fruto da metamorfose
poética que o fará alcançar seu ideal de felicidade. Um não eu que se torna todo seu, no
processo de dinamogenia que dirige a manifestação de imagens no curso de sua leitura. E,
por outro lado, este mesmo dinamismo que nutre a imaginação do leitor – abrindo-lhe as
portas para a percepção de configurações que são, essencialmente, irreais – finalmente, o
torna livre da necessidade de submeter-se à função do real, fazendo dele um “testemunho
de uma normal e útil função do irreal que protege o psiquismo da brutalidade de um não eu
(mundo) hostil, de um não eu estranho (1993a, p.12).
Opondo-se radicalmente ao costume psicológico de reduzir o devaneio à mera
evasão da realidade, Bachelard insiste no papel fundamental da consciência na dinâmica da
comoção que faz vibrar o leitor de poemas. O fato que defenda a existência e a pertinência
de uma poética do devaneio denota – em suas palavras – a força de coerência da qual
usufrui o leitor que saiba formular e cultivar valores poéticos. “A poesia constitui ao
mesmo tempo o sonhador e seu mundo”, afirma Bachelard (1993a, p.14), distinguindo
especificamente as forças atuantes no sonho noturno, daquelas que constituem o devaneio
da consciência poética, quase a propor metáforas de desintegração e de coesão como seus
relativos referenciais de significação: “Enquanto sonho noturno, pode desorganizar uma
alma, propagar durante o dia as loucuras experimentadas durante a noite, o bom devaneio
ajuda a alma a gozar do seu repouso, a gozar de uma unidade fácil” (p.14).
Ademais, Bachelard (1993a) propõe como meta poética – como objetivo de sua
explanação poética – o estímulo, ou quiçá a realização, de uma utópica inversão:
estimulando a manifestação de uma consciência de poeta, na sensibilidade dos
fenomenólogos da leitura, ele pretende educar-nos em direção à superação de uma fácil
“expressão poética, guiando-nos ao desenvolvimento de uma autêntica consciência de
criador” (p.15). Como sempre, confia o esclarecimento de seus propósitos intelectuais ao
ambíguo jogo de inversão dos termos da demonstração.
248
termina por afirmar a liberdade do leitor, acima da comoção emotiva derivada da leitura.
“Nisso a poesia, ápice da alegria estética, é benéfica (p.22). Conclui o filósofo que,
intensificando o benefício proporcionado ao leitor pela aventura literária das páginas
escritas, formula a bela imagem do paraíso celeste como uma imensa biblioteca.
Em verdade, o que parece cada vez mais definir a abordagem científica e estética de
Bachelard é seu esforço permanente em instaurar condições para abertura e mutação no
domínio do trabalho de criatividade intelectual, seja através de conceitos, seja através de
imagens. Por tal razão, antes de tratar a questão da dialeticidade do tempo, abordam-se –
como seu prolegômeno – algumas temáticas específicas como, por exemplo, a posição
fundamental ocupada pela imaginação inventiva na reformulação do saber, tema que traz
consigo a necessidade de se considerar, com atenção, a renovação de postura à qual o novo
dinamismo da mente convoca, seja o sujeito estético – diante da ruptura de esquemas
teóricos do pensamento criativo – seja o cientista ou epistemólogo – diante da criatividade
do pensamento matemático, eixo lógico de evolução da nova epistemologia. Ambos se
confrontam com o movimento de abertura da consciência que dinamiza as regras de sua
atividade de raciocínio e de imaginação. Movimento decretado vigorosamente pela
dinâmica polisignificação da obra bachelardiana.
100
Portanto, como bem demonstra Marlize Rego (2006, 2012) ., em seus estudos
sobre o filósofo da ruptura, a dinâmica das formas de pensamento, que realizam a potência
inventiva da imaginação, apontam para a necessidade de um processo contínuo de invenção
de novos significados e de novas realidades. Logo, enquanto produtora de novas
possibilidades, a imaginação assume o papel de principal responsável pela renovação
artística e científica, rejeitando a noção positivista e realista da realidade como coisa única,
determinada e estática, que teria na arte a sua reprodução, e na ciência, a sua descrição.
100
REGO, M., palestras inéditas: O ato criador na epistemologia de Gaston Bachelard, Simposio Gaston Bachelard:
Razão e Imaginação; BULCÃO, M.(Org.) UERJ, 2006; Filosofia do não: perspectivas do racionalismo contemporâneo –
III. Coloquio Gaston Bachelard, Mestre na arte de criar, pensar, viver. Catarina Sant’Anna (org.). UFBA – Salvador,
2012.
251
Ora, a ciência contemporânea pretende conhecer fenômenos e não coisas. Ela não é de
modo algum coisista. A coisa não é mais do que um fenômeno parado [...] já não se pode,
como outrora, conceber os objetos naturalmente em repouso – como coisas – e procurar
em que condições eles podem mover-se [...]. O objeto estabilizável, o objeto imóvel, a
coisa em repouso formavam o domínio de verificação da lógica aristotélica. Perante o
pensamento humano, apresentam-se agora outros objetos que, esses sim, não são
estabilizáveis, que não teriam, em repouso, nenhuma propriedade e, consequentemente,
nenhuma definição conceitual [...]. (BACHELARD, 2009, p. 97-98).
Os nossos hábitos de lógica aristotélica estão de tal forma enraizados que não
sabemos trabalhar nesta penumbra conceptual que reúne o corpuscular e o
ondulatório, o pontual e o infinito. É, no entanto, nesta penumbra que os
conceitos se difratam, que eles interferem, que eles se deformam [...]
(BACHELARD, 1994a, p.99).
252
Bachelard afirma que não é possível, a partir das novidades conceituais apresentadas pelas
novas teorias científicas no início do século XX, tais como as geometrias não euclidianas,
as teorias da relatividade e da física quântica, tratar os objetos da realidade de mesma
forma. Ele critica fortemente os princípios da lógica clássica e as inferências
metodológicas cartesianas, considerados, segundo ele, como insuficientes para explicar o
comportamento dos elementos infinitesimais. Esses princípios - identidade, contradição,
terceiro excluído - assim como a evidência e a adequação, previstas pelo método
cartesiano, apesar de estarem consonantes com a física newtoniana, e de descrever com
precisão os fenômenos do mundo das certezas e da comunicação, não sustentam o
funcionamento dessa nova realidade proposta pela microfísica. (REGO, 2012)
Por outro lado, no domínio das artes figurativas e da literatura, nota-se que a
superação bachelardiana da crítica estética – que se viu fundar-se sobre a novidade
psicanalítica – opondo-se à redução do ato criador aos traumas do artista – “redução da flor
ao estrume”, diz Bachelard (1994c. p.12) – instaura, da mesma forma, uma insuperável
ruptura de parâmetros com todo o panorama da crítica estética de sua época que, segundo
ele, pecava ao reduzir o originário impulso de criatividade aos conceitos da mente, à pura
racionalidade do espírito, apesar do encantamento recíproco que vigorou entre psicanálise e
surrealismo. Entretanto, ocorre notar, o aspecto psicanalítico que mais atraiu os surrealistas
foi o realce no qual a nova doutrina da alma apresentava o universo inconsciente, a saber, o
253
oposto exato de uma redução analítica aos conceitos da mente. Surgia assim, com
Bachelard, uma nova posição do sujeito diante da obra de arte, como convite à fruição
enquanto experiência interior, como estímulo ao gozo estético daqueles que sabem deixar-
se comover em profundidade diante da criação expressa em poemas, pinturas ou esculturas.
Em tal modo, se verá convergir a reflexão de dois especialistas bachelardianos – Felício e
Wunenburger – no ponto exato onde se encontra em jogo a evolução mesma de nossa
investigação, a saber, a afirmação do caráter de dinamismo que, reunindo ciência e poesia,
reveste toda obra bachelardiana.
No arco de nossa pesquisa, observa-se que sem uma decisiva ruptura com a linearidade e
regularidade exigidas pelo pensamento lógico analítico, se dificultaria a compreensão do raciocínio
de Bachelard. Toda sua obra encontra-se impregnada por duplos sentidos e significações veladas.
No fluxo de mutação, segundo o qual evolui seu pensamento, viu-se com frequência um mesmo
termo assumir sentidos ambíguos e mesmo contraditórios. Comfrontou-se, então, com a necessidade
de assumir um procedimento de leitura e investigação mais livre e aberto a tais flutuações
semânticas, guiado pela claridade da evidência à qual o discurso bachelardiano, em si mesmo,
sempre reconduz.
A mesma urgência de superação dos rigorosos parâmetros lógicos, vigentes no
domínio da ratio tradicional, que foi visto erguer-se com força teórica no domínio da
racionalidade científica, manifesta-se também, em modo ainda mais evidente, na
perspectiva do imaginário. Em sua filosofia da negação, Bachelard demonstrou que os
princípios clássicos da inteligibilidade do ser – identidade, não contradição e terceiro
excluído – não são absolutos. O espírito deve, portanto, retomar sua fundamental função de
mutação como condição da possibilidade de pensar-se a contemporaneidade; conditio sine
qua non. Excluindo tal urgência de dinamismo da mente humana, o formalismo linear do
pensamento tradicional teria conduzido toda evolução ao impasse.
Este estudo foi assim conduzido a um conceito-chave para a compreensão de toda
produção bachelardiana; aliás, deve-se referir não à singularidade de um único conceito,
mas a um grupo de noções que traduzem, todas, a ideia fundamental do movimento. Parece
mesmo que o segredo da metodologia por ambiguidades, que se busca evidenciar, encontra-
se sob o influxo da ideia de movimento. A rejeição bachelardiana à noção de absoluto –
como origem de imobilismo letárgico – pode ter direcionado o autor à aceitação
incondicional do destino de devir e transcendência do ser, sendo também causa do pulular
254
[...] em sua profundidade, o ser humano tem o destino da água que corre. A água
é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o
fogo e a terra. O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto.
Incessantemente, alguma coisa de sua substância desmorona. [...] A morte
cotidiana é a morte da água [...]. (BACHELARD, 1997, pp.8-9)
Será defendida, portanto, a ligação dialética entre os dois grupos de termos: aqueles
que descrevem a negação como mola da metodologia das contradições e aqueles que
afirmam o movimento como chave da dinâmica evolutiva que rege, seja o pensamento, seja
a realidade. No elemento aquático, tal dinamismo de oposições se manifesta claramente:
“Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite. Para
sonhar o poder necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade”. De novo, se
nota não só a estrutura polar, por inversão, da frase – a gota cria e dissolve, gota como
inusitado símbolo de poder – como se vê, também, que se trata de uma polaridade
paradoxal que, alcançando o efeito desejado de dinamização das imagens do elemento
aquático, traduz em poema, um impulso vital inesgotável.
Felício (1994), no estudo já citado, identifica na poética e na epistemologia
bachelardianas a atuação de um método negativo – essencialmente dinâmico e, portanto
dialético – que se opõe ao formalismo estático do pensamento tradicional:
255
Tanto no trabalho da ciência para romper os obstáculos, e que vive das tensões, como na
poética, onde as ambivalências das imagens são ressaltadas, a “dialética dinâmica” é a
base comum da compreensão do papel do imaginário. O cientista deve remanejar seus
conhecimentos, questionando as origens absolutas como falsos pontos de partida; e o poeta
deve propor novos mundos a partir do dinamismo e da abertura da imaginação. Apesar da
diversidade, poética e epistemologia se complementam graças a uma raiz comum: a
“dialética dinâmica” (FELICIO, 1994, p.XII).
Com ele, os processos dinâmicos do sujeito que conhece tornar-se-ão mais essenciais que
as propriedades de representação do objeto. A potência de conhecimento ou de sonho de
nossas representações provêm menos das características internas das ideias ou imagens do
que de uma energia intelectual do sujeito, de um tônus psíquico. A criação de imagens na
256
poesia, como a invenção conceitual na ciência, põem em jogo forças cuja intensidade e
orientação são os fatores essenciais de nosso trabalho intelectual (WUNENBURGER,
2003, p. 29).
mostra que rupturas e contradições são oportunidades para que novos saberes superem
velhas ilusões.
(Ao significado tradicional do termo dialética) Bachelard opõe dialética como polêmica
antifilosófica, isto é, como “prática científica” que afirma a existência dos objetos da
ciência e procede por reorganizações totais do saber, sempre prontas para uma nova
fragmentação. O conhecimento é “produção histórica”, enquanto movimento de
totalização e fragmentação sucessivas. A dialética é um movimento recorrente que consiste
em colocar em evidência o sentido que o desenvolvimento ulterior da ciência confere a
uma doutrina anterior, sentido que só emerge a posteriori. Sendo uma dialética recorrente,
o presente dá sentido ao passado, permitindo revivê-lo de maneira transformada e
realizada. Logo, dialética significa: determinação das recorrências inscritas na história da
ciência, ad infinitum, porque a polêmica não se esgota nunca. A dialética é recorrente e
aberta e assim a filosofia da ciência física é a única que se aplica determinando uma
ultrapassagem de seus princípios, isto é, “se ela raciocina, é preciso experimentar; se ela
experimenta, é preciso compreender” (BACHELARD apud FELÍCIO, 1994, P.9). Por isso,
Para Bachelard, ela é a única filosofia aberta (FELÍCIO, 1994, pp.8-9).
101
FELÍCIO, 1994, p.8: “A dialética de Gaston Bachelard é diferente das dialéticas platônica e hegeliana. Em Platão,
dialética equivale à ciência do Bem ou do Uno, ela absorve as demais ciências e surge contra certas concepções dos
sofistas. A dialética como ciência universal é o conhecimento dos elementos de todos os seres. Único método capaz de
revelar o Bem, pois busca penetrar a natureza, a essência de cada coisa. Enquanto as demais artes estão sujeitas às
opiniões, a dialética dá a razão da essência de cada coisa (Platão, A República - Livro VII). Para Hegel, dialética significa
contradição e movimento imanente da negação determinada, movimento reflexionante da consciência rumo ao espírito (in
Fenomenologia do espírito.) e do ser, rumo à ideia (in Ciência da lógica). A contradição é o processo de autoprodução
das determinações que instauram os momentos superados e conservados do particular no seio do universal. Em Platão, a
alternância do Mesmo e do Outro terminam na ideia do Bem, princípio de todas as formas. Em Hegel, a contradição
encontra seu término no Saber Absoluto”.
258
102
Neste mesmo sentido, Lescure ressalta a dialeticidade do poema, que renega seu próprio sentido e resiste ao próprio
significado como estratégia para escogitar sempre significações inéditas. “O poema é sempre renascente, sempre secreto e
evidente. Segundo o poeta, aos olhos do autor, um livro de outra época pode ser retomado ou renegado. O escritor, no
fluxo de instantes, avançou e, ao reconsiderar seu escrito, percebe significações que, ele mesmo, não concebera. Ademais,
ao escrever um novo livro, sua percepção do precedente muda. Donde resulta que a conduta de vida é o que, enfim,
restitui um significado inédito às primeiras intuições” (LESCURE, J. Introdução à poética de Gaston Bachelard, 1965).
103
Sem poder desenvolver a questão a fundo, colhe-se de qualquer modo a oportunidade de ressaltar aqui outra sintonia
com a reflexão nietzscheana sobre o sentido profundo do trágico, como embate de forças que se reunindo e se
dissociando, incessantemente, configuram e devastam a totalidade do real.
259
104
BACHELARD (1992 a, p.109) apud Baudelaire (Mon couer mis à nu): “quando criança, senti no meu coração dois
sentimentos contraditórios: horror e êxtase pela vida”.
260
105
Bachelard refere à importância decisiva da obra sobre Ritmanálise, do Prof. Pinheiro dos Santos, da Universidade do
Porto: Praticamos seções de ritmanálise [...] reencontramos serenidade e repouso em ritmos mais naturais e tranquilos,
vivendo essas diferenças temporais bem reguladas. O ritmo interior de retomadas ajuda a curar a alma sofredora com uma
vida e um pensamento rítmicos, liberando antes a alma das falsas permanências, das durações malfeitas, desorganizando-a
temporalmente [...], seguindo adiante com nossa filosofia da negatividade, dissociando o tecido temporal, delirando
ritmos malfeitos, pacificando ritmos forçados, excitando ritmos languidos, buscando sínteses do ser na sintonia do devir,
animando a vida com os timbres ligeiros da liberdade intelectual (BACHELARD, 1972a, p.X).
263
através da ideia de uma temporalidade capaz de descrever cada vida, segundo a cadência de
seu próprio fluir.
O tempo seria então a ritmicidade – ou sistema de instantes – segundo o qual, cada
vivência particular constitui sua permanência no fluxo inconstante do devir; quer dizer, o
ritmo é quem constrói a duração que, respeitando a instabilidade e insegurança da vida e do
pensamento, não devem ser nem muito uniformes, nem muito regulares. São fluxos
dialéticos de vivências singulares, que nascem e morrem em cada instante e, como a
imagem poética, para permanecerem, devem, cada vez, ser retomadas pelo pensamento.
Lescure (1965) afirma que cada instante tem sua claridade investida pela sombra
das potencialidades não vividas que contém: “O que existe do tempo nunca é nada além do
instante que vivemos. Mas, na complexidade do instante presente, podemos viver surpresa
e protesto, coisas passadas e futuras, reconhecimento e projeto” (LESCURE, 1965, in:
BACHELARD 1992a, p.119). Esse tempo interrompido manifesta uma insubstituível
presença: “A consciência que nasce no instante e nele vai morrer torna o passado
inteligível, de uma inteligência viva que excita novas rupturas em direção a novas
surpresas, à invenção de novas experiências. “O homem é só, desolado e abandonado de si
mesmo, isolado do próprio passado pelas margens do instante” (p.127). Esse tempo
esfarrapado representa o heterogêneo, “sem limites nem identidade abordável” (p.127). O
tempo estoura, esfacelando, em cada instante de irrupção do real, num vórtice de aparições
instantâneas, a rigorosa perspectiva de seu projeto. Em cada instante, viver e morrer. “O
homem é uma decisão” (LESCURE, 1965, p. 127).
Para seguir a imponderabilidade do instante, Lescure (1965) propõe então um
“método de leitura descontínuo” de Bachelard (LESCURE, 1965, p.133), “filósofo da
consciência noturna” (p.123) que em cada instante interrompe o curso do raciocínio e segue
verticalidades do instante” (p.133). Em tal modo, torna-se possível – destruindo e
reconstruindo a ordem de sua obra, lendo-a pelo avesso e pelo direito – revelar suas
perspectivas inesperadas. Ademais, esse seria o único tipo de leitura em sintonia com a
consideração da imagem como pura origem, como raiz de realidade e com a temporalidade
do instante como limiar que recomeça sempre, que incessantemente abandonamos e
reencontramos. A cada instante, o instante morre e renasce. A impermanência e
provisoriedade do ser no fluxo do devir seria então o pressuposto lógico do esfacelamento
264
do tempo em instantes, como também da sina humana de sermos “os seres da conversão e
da metamorfose” (p.127, p.141) e da função poética como arte de nos transformar, pois o
homem bachelardiano não é dado, ele se faz.
Seguindo as audaciosas inversões de Bachelard, o tempo instantâneo, em sua perene
possibilidade de recomeços ressalta nossa realidade como sequência ininterrupta de
surpreendentes novidades. “Cada instante é o que dá sentido à história insensata que
vivemos (p.146). “O homem é a vasta energia de sua transmutação. Essa é a sua liberdade”
(p.147). Somos a possibilidade de sermos o que não somos. “Existimos sempre no tempo
de um esguicho” (LESCURE, 1965, p. 148).
265
CONCLUSÃO
O pensamento de uma complexidade viva não pode contentar-se com um alargamento das
categorias do discurso. De modo mais profundo, acha-se posto em causa o próprio
fundamento lógico do pensamento [...]. Poder-se-á então esperar que a razão ponha em
causa as condições axiomáticas consagradas de sua operatividade ou, pelo menos, que ela
atenue, em certas condições, os seus procedimentos de formulação de enunciados, que ela
tenha em conta a violência que impõe às representações de certos fenômenos ou
acontecimentos, [...], não se poderia dar lugar a transgressões lógicas [...] numa
racionalidade plural, disseminatória, que se encontra perante a tarefa temível de fazer
vacilar por vezes os seus próprios princípios constituintes [...] (WUNENBURGER, 1990,
p.153).
266
desta tese -. A saber, aqueles de uma primeira lista de termos da polaridade dicotômica e,
sucessivamente, aqueles de uma segunda lista - que surgiu com o andamento da pesquisa -
de termos do dinamismo de transformação permanente.
Mais uma vez, tomou-se como guia o próprio autor, que jamais se preocupou em
definir tais termos, utilizando-os segundo seu significado imediato. Portanto, apresentando
o capítulo conclusivo, faltaria somente a referência à indicação bachelardiana da
imprudência como método (1972c, p.11), preciosa sugestão, sobretudo devido à
necessidade de coligar os dois âmbitos de estudo, ciência e poesia, atribuindo à filosofia o
papel de elemento de ligação, sobre o qual foi depositada, portanto, a responsabilidade pela
indicação dos parâmetros comuns, capazes de caracterizar a novidade metodológica aqui
esboçada, como procedimento teórico com o qual o autor enfrenta o desafio inerente aos
dois domínios de sua obra.
Cabe, então, retomar o texto de Wunenburger (1990) para reforçar algumas
conclusões a que chegamos ao término desta tese.
O primeiro aspecto a ressaltar é a nova perspectiva intelectual de transbordamento
da univocidade racional clássica permite a compreensão de outros dois fatores
fundamentais a esta abordagem do pensamento bachelardiano, sob o prisma das oposições
dualistas. Por um lado, o mestre de Lyon ressalta a divergência de sentidos que assume a
noção de “diferenciação” (WUNENBURGER, 1990, pp.251-252), segundo os pontos de
vista opostos do pensamento dualista ou do pensamento identitário. Para ele, este segundo
modo de pensar “continua prisioneiro de um postulado de simplicidade e de
substancialidade das formas (grifo meu). Não consegue gerar um dinamismo fundador de
uma rotação das diferenças” (p.252). Enquanto o pensamento da dualidade “permite
compor conjuntamente homogêneo e heterogêneo, [...] de tal modo que eles se encontram
conjugados segundo maior solidariedade, mas também dispostos segundo a oposição mais
forte” (p. 252).
A nosso ver, tal distinção, mesmo se delicada, constitui fator essencial ao
desdobramento deste trabalho, pois, contrariamente à concepção identitária, a dualidade
atribui ao dado “uma tensão em profundidade, a uma conexão entre polos extremos”, que
veremos constituir o eixo do aspecto ontológico assumido pelo dinamismo bachelardiano,
que desvincula totalmente as ideias de natureza e devir dos conceitos de simplicidade e de
268
Quaisquer que sejam os modos de abordagem (...), o pensamento acha sempre, diante de
si, um real rebelde, que se esquiva no momento mesmo em que nos aproximamos.
Qualquer ciência, mesmo pluralizada, descobre diante de si um dado que lhe escapa [...]
um excedente. Qualquer saber, simples ou complexo, não é mais que um olhar sobre o
mundo que nos engloba sem que possamos [...] compreendê-lo totalmente. (1990, p. 259).
Impulsionado por sua extrema paixão pelas novidades expressas no âmbito da abertura
de consciência, Bachelard não hesitou em “confrontar-se com as revoluções científicas da
relatividade einsteiniana e da física quântica, dos anos 20” (WUNEMBURGER, 2011,
pp.9-10). Foi portanto, um dos primeiros filósofos a mergulhar na busca por compreensão
e, sucessivamente, na divulgação das “hipóteses surpreendentes da nova física matemática”
(2011, p.11). Iniciava assim sua duradoura tarefa de formulação de uma nova epistemologia
– coerente com o avanço da pesquisa microfísica – adequada à tradução das retificações
técnicas da ciência, em termos de inteligibilidade filosófica. Nesta missão - pela vertente de
sua expressão poética – Bachelard assume os riscos e incógnitas inerentes ao confronto
com a materialidade universal - no viés dos elementos primordiais - atribuindo
definitivamente o marco da bipolaridade antagônica à sua produção intelectual.
Uma das conclusões importantes a destacar no término da tese é que Bachelard reúne
vida e pensamento através deste seu exemplo pessoal da abertura de consciência que
erguera a princípio de sua nova epistemologia. Cede ao imaginário vislumbrado no
exercício de sua postura de expansão da racionalidade científica, dicotomizando a própria
consciência na polaridade - que conservaria até o final da vida – de alma e espírito,
devaneio e razão, imagem e conceito. Bachelard, em seu “trabalho de abertura e de
construção de conhecimentos” (2011, p.11), nos ensina, assim, a “pensar duplamente”
(2011, p.11).
razão106. E, “com prazer transgressivo assumido” (2011, p.14), Bachelard, após cunhar
definitivamente a ideia de dinamismo da mente no domínio epistemológico:
106
«Na grande tradição dos inventores de paradoxos, Oscar Wilde (1854-1900) [...] apresentou o paradoxo como: «a
verdade da minoria, da mesma forma que o chavão é a verdade da maioria... Nós, seres comuns, podemos ver os objetos
apenas em tres dimensões». Quando ouvimos ou lemos um paradoxo, «ganhamos um saber que não tínhamos. Ficamos
mais sagazes e temos consciência disto. E esta é a unica forma válida de saber». Paradoxo em grego significa a expressão
de um ponto de vista contrário à opinião comumente aceita. Como um choque de visões contraditórias. O paradoxo revela
uma verdade básica: a natureza da ambivalência humana». (WILDE, O. Apud BECKSON, K., O melhor de Oscar Wilde.
coletânea de aforismos de Oscar Wilde; Rio de Janeiro: Garamond, 2003, pp.11-13). Beckson indica outros dois
momentos nos quais o esteta do dandismo inglês exprime seu conceito de verdade, extraordináriamente consoante com o
pensamento bachelardiano: «A via do paradoxo é o caminho da verdade. Para testar a realidade, precisamos vê-la na corda
bamba. Quando as verdades se tornam acrobatas, podemos julgá-las» (WILDE. O retrato de Dorian Gray; Apud
BECKSON, 2003, pp.11-13). «Em arte, verdade é aquilo cujo contrário também é verdadeiro» (WILDE, O. A verdade das
máscaras; ensaio, 1895, apud BECKSON,K., 2003, pp.11-13).
107
Relata-se esta citação pelo poder de síntese com o qual o Prof. Wunenburger, em poucas linhas, ao referir as principais
fontes de criação da filosofia estética de Bachelard, além de definir com rigor a função da fenomenologia no pensamento
do devaneio poético, defende também o aspecto fundamental – para a novidade do bachelardismo – da reflexão sobre os
movimentos de vanguarda que o inspiram.
271
suas imagens. “É pela imagem que se produz a mudança” (BACHELARD, 1994b, p.301).
Acreditar nas imagens é o segredo do dinamismo psíquico (1994b, p.297).
Cabe, então, retomar a noção antecipada na introdução deste trabalho, quando se
disse que na busca por antagonismos bipolares, encontrou-se o moto dinâmico, ambos
entrelaçados como núcleo de força da filosofia de Bachelard. Surgiu daí a questão das duas
listas de termos referentes à polarização e ao dinamismo, que esta tese afirmou como
principal vetor de expressão e evolução do pensamento bachelardiano. Portanto, como
tarefa conclusiva, convém agora analisar com atenção o modo no qual estas duas estruturas
de organização e de criação intelectual se afirmam como eixo de inteligibilidade da obra de
Bachelard, a partir da noção herdada do poeta romântico alemão, Novalis, que indicava o
dinamismo do imaginário como fonte do ser e do pensamento (LECOURT apud
WUNENBURGER, 2011, p.29).
Um dos intuitos primordiais da tese foi, pois, demonstrar que a reflexão
bachelardiana apresenta também a noção de dinamismo como centro ao qual convergem
dois temas. Por um lado, encontra-se sua noção de temporalidade fragmentada e
interrompida nos instantes que a constituem. Por outro lado, seu desprezo pelo imobilismo
decorrente da noção de absoluto dirige o pensamento às mudanças do devir – no ideal de
um perene movimento – expresso nos termos da transformação dinâmica que rege o real.
Encontra-se, portanto, na noção de conhecimento como dinâmica de superação e de
renovação, como movimento de aproximação à verdade situada sempre além, o mais
importante vínculo positivo com o desenvolvimento de uma metodologia de contrários, que
desperta o intelecto da preguiça do conhecimento comum, instigando-o à invenção de
novidades.
A deformação de imagens, como significado preciso do termo imaginação, cria
através de devaneios dicotômicos – no jogo de mutações simbólicas – o mesmo efeito de
renovação e progresso gerado em campo epistemológico pelo mecanismo de aproximação à
verdade, na contínua retificação de conceitos científicos. Como se uma insuperável abertura
à ambivalência, ínsita, seja nas imagens, seja nos conceitos, constituísse a produção do
saber estético e científico como evoluções de uma fundamental potência de transformação
das representações de consciência. Em tal modo: “A trajetória filosófica descontinua e a
dupla face, cruza dois tipos de inteligibilidade das operações do espírito” (2011, p. 33),
272
comoções. A frieza da mente depara-se então com o calor da sensibilidade, num exemplo
único de demonstração direta – através da estrutura complexa e ambivalente de seu próprio
raciocínio – da rede de polarizações dinâmicas que tece como fundamento do real.
Entretanto, nisto mesmo que se acabou de afirmar, surge a chave de volta desta tese,
a saber, o alto nível de especialização da inteligibilidade técnica, constituída na pesquisa
nuclear, revela como fundo do real, um dinamismo originário que colide e contradiz
convicções e assunções da racionalidade ingênua, fundada no olhar preguiçoso e positivista
da razão ocidental, que, por um lado, cede ao encanto aristotélico do contato imediato com
a realidade, logo reduzida a mecanismo de matematizações do cogito cartesiano. Por outro
lado, busca a cura de todo mal empírico – ou seja, do movimento como devir que tudo
arrasta à devastação – na hipostatização de um absoluto de valores positivos, como
fundamento e resolução da fundamental contradição do real.
A racionalidade ocidental em dois mil anos de reflexão resolveu seu essencial
paradoxo, imobilizando o devir nas categorias da metafísica. Portanto, as ambiguidades,
antagonismos e oposições que foram ressaltadas neste trabalho, são tais, somente diante
deste saber paliativo, que não difere muito – em termos qualitativos – do saber comum, é
somente uma sua especialização. A verdadeira inteligibilidade dos procedimentos técnicos
e científicos da contemporaneidade se deixa contradizer, aceita que a realidade se
contradiga e prossegue adiante, aprimora-se em seu próprio erro, qualificando-se, pois,
como conhecimento retificado.
Por isso Bachelard é tão nietzscheano, pois, assume do filósofo do devir, a coragem
diante da inevitável e incessante transformação, aplicando-a como princípio do novo saber
científico. E, ao revesti-la epistemologicamente, permite que seu espírito dance - como todo
filósofo verdadeiro - na analogia que funda no imaginário, enquanto plano de consciência
complementar à razão científica; ambos corajosos e dispostos a assumir a contradição como
característica fundamental do real. Logo, todos os termos que indicam contradição, são tais,
somente diante do realismo ingênuo. O verdadeiro saber científico, usa a contradição como
chave de progresso do conhecimento. E nisto, ciência e imaginário se aproximam, pois
ambos assumem a contradição em sua fundamental criatividade.
274
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