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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Marcelo José de Carvalho

Por uma filosofia do inexato:


dinamismo de polaridades e método em Gaston Bachelard

Rio de Janeiro
2013
Marcelo José de Carvalho

Por uma filosofia do inexato:


dinamismo de polaridades e método em Gaston Bachelard

Tese apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de
Doutor, ao programa de Pós-Graduação
em Filosofia, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Filosofia moderna e Contemporânea.

Orientadora: Profª. Dra. Marly Bulcão Lassance Britto

Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA

B119 Carvalho, Marcelo José de.


Por uma filosofia do inexato: dinamismo de polaridades e
método em Gaston Bachelard / Marcelo José de Carvalho. –
2013.
279 f.

Orientador: Marly Bulcão Lassance Britto.


Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Bachelard, Gaston, 1884-1962. 2. Filosofia francesa -


Teses. I. Britto, Marly Bulcão Lassance. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

CDU1 (44)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a
fonte.

___________________________ _________________________
Assinatura Data
Marcelo José de Carvalho

Por uma filosofia do inexato:


dinamismo de polaridades e método em Gaston Bachelard

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
programa de Pós-Graduação em Filosofia,
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Filosofia
Moderna e Contemporânea.

Aprovada em 12 de março de 2013.

Banca Examinadora:

_______________________________________________
Profª. Dra. Marly Bulcão Lassance Britto (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

_______________________________________________
Profª. Dra. Dirce Eleonora Sollis
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

_______________________________________________
Profª. Dra. Rosa Dias
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

_______________________________________________
Profª. Dra. Teresa Castelão Lawless
Grand Valley State University – Michigan, USA

_______________________________________________
Profª. Dra. Constança Marcondes Cesar
Universidade Federal de Sergipe

Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a Antonio Alessandro Bova,

companheiro de minha vida há 34 anos.

Concedei-me Senhor,

Serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar,

Coragem para modificar aquelas que posso

e Sabedoria para distinguir umas das outras.


AGRADECIMENTOS

Sem a ajuda que recebi, na forma de colaboração, estímulos e amizade...

este projeto não teria podido realizar-se, portanto, divido o mérito com:

Edmundo Dias,

Rosalina Aparecida Rodrigues,

Kátia Rosendo

e com os adorado(a)s:

Tita di Kristianden, Duque, Fiona, Naná, Argo, Dante, Lili, Kiki

e Zita di Kristianden e Zito (in memoriam)

Agradeço também, especialmente:

Constança Marcondes Cesar,

Dirce Eleonora Solis,

Elena Garcia,

Rosa Dias,

Teresa Castelão Lawless,

a joia rara e preciosa que foi a orientação de Marly Bulcão Lassance Britto

e ao Programa de Bolsas de Estudo da CAPES.


Em todo caso, antes de mais nada, é necessário romper os impulsos
de uma expressão refletida, psicanalisar as imagens familiares para
aceder às metáforas e, sobretudo, às metáforas de metáforas. Então
compreenderemos como Petitjean possa ter escrito que a Imaginação
[...] constitui um reino autóctone, autógeno. Concordamos com este
ponto de vista: mais que a vontade, mais que o instinto vital, a
Imaginação é a força mesma da produção psíquica. Psiquicamente,
somos criados por nosso devaneio. Criados e limitados por nosso
devaneio, pois é o devaneio que desenha os últimos confins de nosso
espírito. A imaginação trabalha em seu ápice, como uma chama, e é
na região da metáfora de metáfora, na região dadaísta onde o sonho,
como viu Tristan Tzara, é o ensaio de uma experiência, quando o
devaneio transforma formas anteriormente já transformadas, que se
deve buscar o segredo das energias mutantes.
Gaston Bachelard.

Ensinando a revolução da razão, multiplicaríamos as razões para


revoluções espirituais [...].
Devemos ir para o lado onde pensamos mais, onde a razão ama
sentir-se em perigo [...] para as regiões da imprudência intelectual.
[...]. Reconhecer [...] o caráter metodológico das sãs transmutações
[...].
[...]. Dito de outra forma, no reino do pensamento, a imprudência é
um método [...].

[...] falei de aberturas possíveis, estamos sempre em vias de formular


hipóteses. Estamos sempre buscando encontrar circunstâncias
espirituais diferentes. Não podemos contentar-nos com o método: o
método está sempre em discussão. Gostaríamos – e acredito que seja
algo que não é lá muito cartesiano – gostaríamos que o método
fracassasse. A maior benesse do pensamento científico, nós o
encontramos, quando o método cai em pane, enguiça, quando não
funciona. Tudo vai bem, quando vocês tiverem um acidente de
método! Vocês refletem: o método deve ser trocado!
Gaston Bachelard.
RESUMO

CARVALHO, Marcelo José de. Por uma filosofia do inexato: dinamismo de polaridades e
método em Gaston Bachelard. 2013. 279 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.

Esta tese apresenta um exame da lógica da negação ou ambiguidade essencial da


consciência, como núcleo metodológico da filosofia de Gaston Bachelard. Seu ponto de
partida é a consideração da “filosofia do não” – reformulação do pensamento estruturada
sobre a necessidade epistemológica de opor-se ao modo de conhecimento clássico – como
valorização da negatividade, da crítica e da contradição, novos vetores de progresso dos
saberes estético e científico. O jogo de oposições assume nesta abordagem o papel de
estímulo que impulsiona a expansão da consciência, ao ressaltar a lógica das contradições
que, em tal modo, revela simultaneamente – como fundamento da investigação
bachelardiana – a necessidade de abertura e valorização da imaginação criadora, em sua
aptidão ao vislumbre de novas estratégias do saber. O primeiro capítulo aborda a atuação
deste dinamismo de polaridades e ambivalências como estratégia de demonstração e
crescimento do saber epistemológico de Bachelard; o segundo, realiza um percurso análogo
no campo da poética, estudando imaginação e devaneio como fulcros de infinitas e fecundas
contradições. O terceiro capítulo explora as possibilidades desta lógica das oposições, que
põe em relevo a complementaridade entre ciência e arte, e possibilita a compreensão da obra
bachelardiana como unidade essencial.

Palavras-chave: Dinamismo. Polaridade. Ambiguidade. Renovação. Racionalidade.


Devaneio.
RESUMÉ

CARVALHO, Marcelo José de. Pour une philosophie de l’inexacte: dinamisme des
polaritès et méthode chez Gaston Bachelard. 2013. 279 f. Tese (Doutorado em Filosofia) -
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2013.

Cette thèse presente un examen de la logique de la négation, sois disant de


l’ambiguité essenciel de la conscience, come noyau méthodologique de la philosophie de
Gaston Bachelard. Le point de départ est la consideration de la “Philosophie du non” – une
reformulation de la pensée structuré sur la nécessité epistémologique de s’opposer à la
manière classique de connaissance – comme valorization de la négativité, de la critique et de
la contradition, nouveaux moyens de progress des savoirs esthétique et scientifique. Le jeux
des oppositions reçoit dans cette considération le role d’une stimulation que pousse
l’expansion de la conscience, et que réleve une logique des contradictions capable pourtant
de réveler en simultanéité – comme un fondement de la recherche bachelardiénne – la
nécessité de ouverture et de valorization de l’imagination créatrice, dans sa capacité de
indiquer des nouvelles stratégies du savoir. Le premier chapitre aborde la mise à jour du
dinamysme des polarités e des ambivalences comme un instrument de la démonstration et de
la croissance du savoir epistémologique chez Bachelard; le deuxième chapitre réalize un
parcours analogue dans le champ poétique, en étudiant l’imagination et la rêverie comme
des centres de contradictions infinies et fécondes. Le troisième chapitre explore les
possibilité de cette logique des oppositions que met l’accent sur la complementariété qui
existe parmis science et art, origine à son tour de la possibilité d’une compréhension de
l’oeuvre bachelardienne comme unité essenciel.

Paroles clées: Dinamisme. Polarité. Ambiguité. Renovation. Racionalité. Rêverie.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 9

1 GASTON BACHELARD E A RENOVAÇÃO DA EPISTEME......................... 15

1.1 Ciência versus Experiência: Diagnóstico de uma ruptura.....................................19

1.2 Por uma racionalidade renovada.............................................................................43

1.3 Reorganizando o saber como filosofia do não........................................................54

2 DINAMISMO DE TRANFORMAÇÃO NO IMAGINÁRIO POÉTICO...........62

2.1 Primitividade e transubjetividade..........................................................................65

2.2 Ambivalência elementar e aperfeiçoamento alquímico........................................79

2.3 A imaginação cósmica e a transmutação dinâmica do fogo...............................145

3 ENTRE RAZÃO E DEVANEIO..........................................................................163

3.1 Racionalismo retificado e a nova noção de corpúsculo......................................165

3.2 Espaço e repouso: ambiguidades poetizadas......................................................230

3.3 A temporalidade dialética.....................................................................................250

CONCLUSÃO........................................................................................................265

REFERÊNCIAS....................................................................................................274
9

INTRODUÇÃO

A tese aqui apresentada – que consiste em aprofundamento da dissertação de


mestrado1 na qual se demonstrou a visão bachelardiana de uma subjetividade ambígua –
tem por finalidade primordial investigar, ao longo da obra de Gaston Bachelard, a
configuração de um procedimento sui generis de pensar: trata-se de evidenciar como neste
autor a questão das dicotomias, ambivalências, ambiguidades, contradições e antinomias,
que ele incansavelmente enumera, cita e indica, indiferentemente, nas duas vertentes de sua
pesquisa, epistemológica e poética, alcança o formato de uma modalidade dinâmica do
pensamento, vindo a ser o principal procedimento metodológico2 utilizado ao longo de sua
obra.
O objetivo primordial deste estudo surgiu durante um encontro com a Emérita
Professora Marly Bulcão que, ao ver a lista de termos referentes ao antagonismo de
bipolaridades, cuidadosamente selecionados por mim, durante uma primeira leitura da obra
bachelardiana, sugeriu que se elaborasse a partir dela o projeto desta tese. Além dos termos
acima citados, tal lista continha também dos seguintes termos: divergência, paradoxo,
dualismo, dualidade, alteridade, bipolaridade, binário, negação, inversão, aporia, oposição,
polaridade, antagonismo, rejeição, subversão. A pesquisa sobre o dinamismo de polaridades
inerente à produção intelectual de Gaston Bachelard reservava, entretanto, uma surpresa
que será evidenciada ao final do terceiro capítulo e na conclusão desta tese, pois na busca
por contradições como vetores metodológicos da filosofia bachelardiana, encontravam-se
com a mesma frequência - e como objetos de valorização ontológica - termos referentes ao
dinamismo, com os quais se iniciou, então, a formulação de uma segunda lista, constituída
pelos nomes que a dinâmica do ser e do real assume na obra em questão. São eles:
evolução, dinamismo, abertura, transformação, reformulação, transmutação, movimento,

1
DE CARVALHO, M.J., O devaneio cósmico e o conhecimento de si – Gaston Bachelard – da alma poética
à androginia da alma; UERJ – 2007.
2
Quando nos referimos ao procedimento sui generis que pretendemos identificar na obra bachelardiana,
utilizando o termo metodologia de contradições não atribuímos o mesmo significado que as palavras teriam,
segundo a tradição do pensamento filosófico, mas, ao contrário, pensamos em uma filosofia do não, à qual o
autor se refere explicitamente.
10

mutação, mudança, dialética, dinamogenia, renovação, mobilidade, agilidade, verticalidade,


superação, proliferação, retificação. Todos estes, fundamentais à compreensão do
pensamento bachelardiano em termos de uma inusitada metafísica da realidade, vista aqui
essencialmente em seu incessante devir.
Essa pesquisa possui um segundo objetivo, configurado como caminho dos opostos,
que é uma abordagem radical cognitiva da subjetividade ambígua, anunciada por
Bachelard, considerando o próprio intelecto como ambiente no qual se instaura a polaridade
entre o conceito científico e a imagem poética, o que se constitui como uma ambiguidade
originária, raiz da androginia filosófica3. O trabalho pretende demonstrar, portanto, que,
desde suas primeiras elaborações teóricas sobre a arte poética, o autor, sem jamais admiti-lo
explicitamente, mas procedendo sempre nesta direção, propõe uma leitura dicotômica de
seus campos de interesse – ciência e poesia – como a única capaz de levantar todos os
desdobramentos envolvidos na especificidade de cada um; configurando deste modo o
procedimento de pensar através da ambivalência, partindo do ambiente científico4, de
maneira a encontrar um campo fértil no que concerne à trajetória do imaginário.

Um filósofo que formou todo seu pensamento ligando-se aos temas fundamentais da
filosofia das ciências, que seguiu, o mais precisamente possível, a linha do racionalismo
ativo e crescente da ciência contemporânea, deve esquecer seu saber, romper com todos
os hábitos de pesquisas filosóficas, se quiser estudar os problemas colocados pela
imaginação poética. [...]. Se houver uma filosofia da poesia, essa filosofia deve nascer e
renascer no momento em que surgir um verso dominante, na adesão total a uma imagem
isolada, no êxtase da novidade da imagem. A imagem poética é um súbito relevo do
psiquismo.5

Os volumes epistemológicos afirmam um saber aproximativo e provisório, válido


como superação de erros (o que caracteriza a noção de episteme como autêntica, apenas no
confronto com o conhecimento falso que urge ultrapassar) no âmbito das teorias que
constroem, com os próprios objetos experimentais, também seu valor de verdade. Nos
textos da poética será indagada a atividade do imaginário, que adquire peculiar dinamismo
no confronto com imagens que se contradizem. Neste âmbito, em Instant poétique et
instant métaphysique, Bachelard (1992a) afirma-se o instante poético como ambiente no

3
DAGOGNET,F.,1960, p.35.
4
“[...] son épistémologie comporte-t-elle à la fois une histoire de la vérité et une psychologie des erreurs”
THERRIEN,V, 1970.
5
BACHELARD,1994c, p.1.
11

qual polos ambivalentes quase se tocam, anunciando a frequente convergência de termos


contraditórios, como metáforas da ambivalência humana fundamental.

Jamais o instante poético foi mais completo do que neste verso ondes se pode associar,
simultaneamente, a imensidão do dia e da noite. Jamais fizemos sentir tão fisicamente a
ambivalência dos sentimentos, o maniqueísmo dos princípios.6

Com tal procedimento será apontado que a paradoxal lógica das diferenças na unidade
proposta por Bachelard, nas mãos deste filósofo iconoclasta, transforma-se, por um lado,
em instrumento de revelação de um simbolismo oculto nas imagens que se mostram. Desta
forma, nos aproxima da origem da força imaginativa. Por outro lado, constitui a dinâmica
de fundo de uma reflexão filosófica capaz de conduzir o pensamento à profunda
modificação exigida como estratégia de abordagem e esclarecimento de novos saberes da
ciência contemporânea.
Aprofundando a temática desta breve introdução, cabe ressaltar a existência na
história da filosofia de um aspecto paradoxal que, desde seus primórdios, continua ainda
hoje a surpreender especialistas do pensamento humano. E não se trata da incógnita que
incumbe sobre as origens do ser, nem do universo; trata-se, ao contrário, do aspecto
misterioso que reveste qualquer explicação do encontro entre estes dois termos. O fato do
conhecimento, como abertura originária da consciência à realidade que a circunscreve,
originou a série de ismos que tentam descrevê-lo: realismo, idealismo, empirismo e
racionalismo, confirmando, portanto, a complexidade da questão que se caracteriza como
paradoxo, pois apesar destes íngremes desenvolvimentos teóricos que buscam seu
esclarecimento, a relação da mente com o mundo constitui, segundo opinião comum, uma
evidente convicção da cotidianidade.
No domínio desta ambiguidade, insere-se esta tese, como investigação sobre os
panoramas de abertura da racionalidade e do imaginário, propostos pela filosofia de
Bachelard, pesquisador criativo da resistência que o mundo inflige ao conhecimento, na
difícil conquista de uma relação positiva com a diferença, com o transbordamento que todo
“outro”, e mesmo o real em si, manifestam – ocultando-se persistentemente, diante dos

6
BACHELARD, (1939) “Instant poétique et instant métaphysique”, Paris: Stock,1992a, p.110. Do mesmo modo, em: La
Terre et les rêveries du repos (pp.290-322), Bachelard faz convergir ambiguidades na imagem da raiz, como metáfora da
vida subterrânea, que é capaz de sugerir o paradoxo de um devaneio em duas direções, pois trazendo a linfa da terra aos
ramos penetra o mundo dos mortos. A raiz torna-se, então, árvore subterrânea, para a qual a Terra é espelho que reflete
um crescimento em direção contrária, para baixo. Ver também: DAGOGNET, F. (1960, p.80).
12

limites do cognoscível –. “A produção da diferença, coisa contrária às leis gerais do


pensamento é, falando de modo rigoroso, inexplicável” (LALANDE apud
WUNENBURGER, 1990, p.11). Enquanto bachelardiano, Wunenburger afirma: “Desejo e
dever de qualquer pensamento é superar o desvio que o separa de um real preexistente, cuja
diversidade e complexidade o desafiam” (p.11). Portanto naquilo que excede sempre a
capacidade do pensamento humano de representar-se o real, encontra-se o fundamento da
possibilidade de afirmar, na obra de Bachelard, vestígios operativos daquilo que este estudo
pretende caracterizar como um procedimento metodológico que se desdobra, segundo a
peculiar dinâmica de uma frequente oposição entre ambíguas polaridades.

Qualquer empreendimento especulativo tenta, com Sísifo, trepar às alturas do mundo, mas
depressa perde seu ponto de apoio e é arrastado numa queda vertiginosa. Sempre que a
razão crê ter apreendido, nas malhas de seus conceitos, as pepitas de ouro disseminadas no
fluxo incessante das coisas não retêm senão grãos de areia. O gênio maligno está presente
no conhecimento. A primitiva inadequação das palavras e das coisas torna frágeis as
tentativas para traçar o mapa do mundo (WUNENBURGER, 1990, p.11-12).

Diante da ameaça de fracasso do conhecimento, a razão parece retroceder em busca


por estabilidade, e renegando o próprio ímpeto – como os renegantes do Zaratustra
nietzschiano, que após terem afirmado a morte de deus, por temor de uma autonomia
desconhecida – fundam novos ídolos, aos quais se submetem em adoração. A razão tenta
então “canalizar o múltiplo por meio de sistemas classificatórios, de linguagens e códigos,
[...] por meio de uma lógica identitária que amarra fluxos e refluxos das coisas a princípios
simples, a substâncias em número limitado” (1990, p.12). Identifica-se nesta redução da
complexidade aos formalismos da lógica o vetor de todo pensamento clássico enquanto
prática de uma racionalidade unívoca e unitária, caracterizada por seu aspecto reducionista,
legitimando a indagação: “A ortodoxia aristotélico-cartesiana que subsumiu o diverso nas
suas categorias identitárias não leva a uma leitura miniaturizada, anêmica das coisas?”
(1990, p.13).
Este estudo pretende portanto, demonstrar que a lição bachelardiana de uma
incansável polêmica de oposição à unilateralidade do conhecimento estético e científico,
em vista de uma renovação das aplicações teóricas e práticas da consciência manifesta
torna evidente a “ilusão de inteligibilidade” (p.13) resultante da racionalidade clássica,
pragmática e omnisciente, que se exprime em termos de refutação categórica das
diferenças. Este vício da razão “impede o pensamento de ir ao encontro da complexidade
13

do mundo” (1990, p.14), impede a criação do hábito de uma “uma visão sinóptica” (p.14),
de um pensamento mais aberto e dinâmico como instrumento de retificação do “reino da
identidade triunfante” (p.14), que sucumbe diante da perspectiva de valorização de uma
maior complexidade e pluralidade do real. Opondo-se ao dogmatismo intelectual,
Bachelard ressalta a abertura do espírito à mutação - e portanto à oposição, enquanto aceite
de um confronto com o outro, com o diverso de si mesmo – como exercício da tarefa de
subsumir nos traçados racionais “as relações de contrariedade, as configurações polares, de
uma lógica não identitária” (1990, p.16):

De fato, a razão acha-se destronada de sua soberania monárquica há mais de um


século, em consequência da proliferação de ciências que estendem a investigação
do real a estratos cada vez mais surpreendentes, sob impulso também de
filosofias da suspeita que fazem surgir, sob a superfície das representações claras
e distintas, profundidades inquietantes [...]. O racionalismo clássico foi durante
muito tempo suficiente para regular as relações do homem com as coisas e dos
homens entre si. O homem contemporâneo tem necessidade urgente de uma
bússola para abrir caminho em meio aos escombros da razão (1990, p.15).

Em sua essência, este estudo servirá para demonstrar o aspecto de efetiva evolução
do conhecimento que reveste a filosofia crítica de Bachelard, ao proceder, por um lado, ao
esclarecimento das subversões criptografadas no novo saber microfísico e, por outro lado, à
crítica impiedosa do ideal de identidade universal do racionalismo clássico. Este aspecto de
dinamismo ambivalente, a bem ver, é o segredo intelectual que confere ao raciocínio
bachelardiano sua grande força. “Não será este o momento em que as ciências canônicas se
veem chamadas à humildade epistemológica, dada a desproporção crescente entre a
racionalidade clássica e as novas configurações descobertas no real?” (1990, p.17).
O primeiro capítulo volta-se para o domínio da racionalidade científica, no qual a
novidade da realidade microfísica demonstra situações nas quais o máximo nível alcançado
pela racionalidade científica, aplicado no rigor de uma fenomenotécnica constituída ad hoc
na vanguarda da experimentação nuclear da época, revela uma realidade material
contraditória e inconstante, que contradiz – em evidente ruptura – as convicções milenares
do materialismo, do realismo e do empirismo ingênuos.
No segundo capítulo, elabora-se a perspectiva do devaneio poético, inicialmente
como percurso de fundação e encontro de uma identidade própria que se constitui na
entrega de si ao dinamismo rítmico fundamental à ontologia imagética que guia o leitor a
transformar-se em criador. A tangente da imaginação criativa define a metodologia de
14

contradições e ambiguidades como valorização onírica das infinitas ambivalências e


contrastes que constituem o fundamento ontológico do imaginário. Ao perceber a dinâmica
de polarização como ambivalência antagônica fundamental da natureza e de seus elementos
primordiais, Bachelard focaliza a valorização do estado de dicotomia ou dualidade como
melhor método, ou modo7, de apreensão e de conhecimento da realidade, sobre a qual
exerce sua reflexão, como uma forma de arte.
O terceiro capítulo propõe uma pesquisa paralela, de alguns textos científicos e
poéticos, nos quais será ressaltada a noção de vida como estado de metamorfose
permanente, definição que Bachelard aprende com os poetas, confirmando idealmente
aquilo que a microfísica já lhe ensinara com sua nova noção de corpúsculo; cuja elaboração
teórica assinala decisiva contribuição da reflexão bachelardiana à retificação que atualiza o
saber científico. Em tal modo, esta tese enfoca o projeto bachelardiano como proposta de
uma nova metodologia, completa em sua capacidade de abraçar o dinamismo e a
ambiguidade que caracterizam, por um lado, a humanidade e o mundo e, por outro lado, o
modus de conhecimento inexato que constitui o elo gnoseológico fundamental entre os dois
termos.

7
Valendo-se da justificativa apresentada na introdução deste trabalho, volta-se a reivindicar se o direito de uso dos termos
metodologia e método, num contexto que foge ao significado assumido pelos termos no arco da tradição filosófica, sem
por isso perder precisão demonstrativa. O jogo de ambiguidades e ambivalências vigente sobre toda realidade qualifica o
objeto mesmo do estudo como incerto, em sua multiplicidade de aspectos contrastantes. Isto exige, portanto que, ao
abordá-lo, o estudioso desenvolva instrumentos de análise que lhe permitam seguir a natureza inconstante sobre a qual se
debruça. Para nosso autor, fiel à pedagogia da desobediência aos mestres, que ele mesmo teoriza, ao formular seu
complexo de Prometeu, importa que a análise proceda, que dê frutos em seus belos livros. Bachelard não se dedica a
discussões sobre o método que utiliza. Ele procede, e quando necessário, muda sua abordagem, anunciando e nominando,
simplesmente, a nova metodologia que passa a usar, sem longas justificativas. Assim o fez ao trocar a psicanálise de Freud
pela teoria dos arquétipos junguianos e, sucessivamente, pela fenomenologia.
15

1 GASTON BACHELARD E A RENOVAÇÃO DA EPISTEME

Os indivíduos que aceitam a mudança, que se abrem à inovação, que renegam os


preconceitos do passado, a estagnação e a regressão[...]participam de uma sociedade
mais desejável do que uma sociedade na qual os indivíduos alimentam-se, sem crítica, dos
valores ankylosées do passado. Nesse sentido, a realidade moral deve ser tão fluida e
mutante quanto a realidade científica. Todas as duas são criadas pelo mesmo sujeito que
deseja objetividade e universalidade e todas as duas correspondem a um estado de
dialetização permanente entre a teoria e a evidência empírica, sempre num espírito de
abertura e transformação.
Teresa Castelão. Gaston Bachelard et les études critiques de la science,
2010.

Para o escritor e filósofo francês, Tournier (2010), a originalidade de Bachelard está


na sua invenção de uma nova disciplina, a desmistificação das ciências. Ele usa a filosofia
como chave múltipla para revelar o que é vulgarmente considerado como obscuro e secreto,
diz Tournier. Nada resiste à lâmina afiada de sua dialética. Sua obra abre novas
perspectivas para a reflexão filosófica, desenvolvida sucessivamente por Canguilhem,
Foucault, Derrida, Deleuze e Dagognet.
Lecourt (1974, p.13), para quem o aparecimento “filosófico” de Bachelard
constituiu um acontecimento histórico, afirma: “Em breve: que sejam discutidas,
contestadas, retificadas ou simplesmente utilizadas, as categorias elaboradas por Bachelard,
em seus livros de epistemologia estão presentes, ativas, em quase todos os debates
importantes de hoje”.
Bulcão (1999), apresentando o pensamento científico bachelardiano como resposta
à exigência de uma nova reflexão filosófica, adequada às profundas transformações difusas
na comunidade científica de seu tempo, indica dois fatores principais, determinantes de sua
originalidade: a ruptura com a tradição e sua capacidade antecipatória de questões
fundamentais no debate epistemológico contemporâneo:

O surgimento das geometrias não euclidianas, da teoria da relatividade, das mecânicas


quânticas e ondulatórias impuseram nova leitura e reformulação epistemológica dos
pressupostos do racionalismo clássico. Bachelard, como precursor dessa nova leitura,
desvela nas teorias científicas um novo modelo de racionalidade que será explicitado pela
categoria de racionalismo aplicado (BULCÃO, 1999, p. 149).
16

Por outro lado, Cavaillès8 afirma a importância do pensamento de Bachelard para a


atual “Epistemologia do novo paradigma da ciência”, mesmo como antecipação da
“revolução cibernética” das conquistas termodinâmicas de Prigogine e da Escola de
Bruxelas, e dos trabalhos de Atlan, que aplicam a teoria da informação à organização
biológica. No campo epistemológico, a revolução tecnicocientífica do início do século XX
esboça a necessidade de uma lógica da diferença como possibilidade de um conhecimento
que se afirma, dizendo não, acerca de uma verdade que surge no processo de retificação de
erros do passado. Isto coloca em questão os princípios filosóficos da tradição fundamentada
na identidade, e adianta, em muitos sentidos, o projeto filosófico de autores como Foucault,
Deleuze e Derrida.
Visando evidenciar os principais propósitos de sua epistemologia, nota-se,
inicialmente, que Bachelard percorre o desenvolvimento histórico do pensamento
epistemológico, assinalando com ênfase o progresso gerado pelas novas doutrinas
científicas de sua época, afirmadas como retificação e evolução, por antítese ou integração
das teorias, das quais foram herdeiras.

O espírito científico é essencialmente uma retificação do saber, um alargamento


dos quadros do conhecimento. Ele julga seu passado histórico, condenando-o.
Sua estrutura é a consciência de seus erros históricos.[...]. A própria essência da
reflexão é compreender que não tínhamos compreendido (BACHELARD, 1991,
p.177-8).

Para o autor, a novidade do espírito científico contemporâneo é indicada na mutação


das modalidades de confronto entre teoria e experiência, com o surgimento de um espírito
de síntese que funda a realidade em torno da reflexão inerente aos projetos elaborados pela
comunidade científica. Refletindo sobre a revolução causada no ambiente científico pela
nova física einsteiniana, Bachelard afirma que a observação científica reconstrói a
realidade. A epistemologia trasforma-se em fenomenotécnica, ou técnica de construção
científica de novos fenômenos, por meio de novas fórmulas ou experiências de laboratório,
no cruzamento entre emprírico e teórico. Assim, a ciência dá origem e constrói o mundo
como sua autoverificação. O pensamento experimental contemporâneo reconstrói os dados

8
CAVAILLÈS apud BULCÃO (2009, p.203).
17

imediatos do real, superando enganos da intuição perceptiva. A verdade torna-se retificação


do erro e a experiência empírica não é mais fundamento do pensamento científico.
Nos primórdios do século XX, ocorre a ruptura definitiva com os esquemas teóricos
do passado recente. À época, encontram-se em ação tanto uma profunda evolução
intelectual quanto uma revolução filosófica. Tomando como exemplo a recente microfísica
– que surge em oposição ao realismo científico dos séculos anteriores, constituindo,
portanto, mais uma prova para o argumento deste estudo.
Bachelard afirma que somente sob esta perspectiva de maior complexidade racional,
com ajuda da matemática, torna-se possível pensar o fenômeno enquanto síntese teórica
carente de verificação. As noções da doutrina quântica e da mecânica ondulatória são
construídas através da matematização da experiência. O progresso nas ciências é
determinado pelo aparecimento de métodos, exigidos pela progressiva necessidade de
racionalização da realidade. Tal progresso converge e centra-se na ideia de matéria como
energia irradiada (rayonnement). O eléctron, última fração do átomo, que constitui a
realidade material das coisas, não é mais um objeto individualizável, uma partícula, mas
uma onda, uma irradiação de energia.
Das ondas e partículas do mundo atômico aos microfenômenos da física
matemática, o objeto do novo espírito científico perde sua definição e, extrapolando aos
parâmetros da evidência empírica imediata, põe alicerces para uma nova ciência capaz de
tratar a incerteza enquanto princípio de novos procedimentos teóricos. Com a formulação
do Princípio de Indeterminação, de Heisemberg – que estabelece a impossibilidade de
medir, simultaneamente, a posição e a velocidade ou impulso de uma partícula, subtraindo-
nos o conhecimento exato do estado de um determinado sistema físico – a ambiguidade
gerada pela impossibilidade de uma descrição científica pontual do estado atual de um
corpúsculo da física torna-se o fundamento da descrição científica. Pois, “Ao não
concederem suficiente atenção às reformas dos métodos científicos, os defensores de um
racionalismo absoluto e unitário privam-se das ocasiões de uma reforma filosófica”
(BACHELARD, 1972, p.45).
Dentre as análises de Bachelard, surge a consideração de que a ciência não dispõe
de uma filosofia adequada, cuja tarefa principal seria tornar evidente o quanto poderiam
aprender os filósofos, ao meditarem sobre o pensamento científico contemporâneo. A
18

filosofia está atrasada, visto que é a ciência que instrui a razão, esta última deve obedecer
àquela, rompendo, portanto, relações com o passado. Esta é a tese central da Philosophie du
non, ensaio sobre uma filosofia do novo espírito científico, de 1940, que assinala também a
renúncia definitiva à ambição de um único ponto de vista, no âmbito das ciências9.
Bachelard enfoca, em primeiro plano, a disponibilidade à abertura e à dialética, pois
considera a verdade como filha da discussão e das contradições. No panorama de sua
época, ele ressalta a falta de uma filosofia da ciência, capaz de explicar a alternância
contraditória, no novo pensamento científico, de a priori e a posteriori, de racionalismo e
empirismo, de universal e particular. A filosofia das ciências desenvolveu-se dialeticamente
entre estas duas polaridades, progredindo por conversões e transformações em seus
próprios princípios. A crescente complexidade da razão e do pensamento científico supera a
tendência ao realismo dos séculos precedentes e impõem, à ciência, a via do pluralismo
filosófico.
O real da ciência é uma criação progressiva de suas respectivas teorias, o
conhecimento equivale a um processo constante e aproximativo de redefinição.
Conciliando ciência e filosofia, o autor sublinha que a evolução filosófica de um conceito
científico – assim como o desenvolvimento de um conhecimento específico – segue uma
ordem de desenvolvimento que prevê as seguintes etapas: realismo, empirismo e
racionalismo, que por sua vez, evolui da perspectiva newtoniana à einsteiniana, chegando
até o racionalismo dialético. Não existe um conhecimento absoluto e indiscutível da
realidade, visto que o princípio de negação reveste uma função primária, seja no âmbito
filosófico ou científico. A filosofia da ciência é uma pesquisa sobre o desconhecido: novas
descobertas possibilitam a negação de conhecimentos anteriores. Esta é a filosofia do não.

[...]definir a filosofia do conhecimento científico como uma filosofia aberta, como a


consciência de um espírito que funda-se trabalhando sobre o desconhecido, buscando no
real aquilo que contradiz conhecimentos anteriores. Antes de mais nada, é necessário
tomar consciência do fato de que uma nova experiência diz não à velha experiência[…].
Mas, este não nunca é definitivo para um espírito que sabe dialetizar seus princípios
(BACHELARD, 1940, p.9-10).

9
CANGUILHEM (1963, p.441)“La philosophie du non n’a rien à voir[…] avec une dialectique a priori. En particulier,
elle ne peut guère se mobiliser autour des dialectiques hégéliennes”.
19

1.1 Ciência versus Experiência: Diagnóstico de uma ruptura.

Finalmente a filosofia bachelardiana, apesar de suas duas trajetórias opostas e divergentes,


pode ser concebida como uma filosofia da diferenciação, da verdadeira diferenciação, pois,
somente a razão pode superar a natureza e a pobreza do campo fenomênico.[...].Imagem e
conceito reúnem-se no negativo de uma filosofia não redutora,[...]na crítica das filosofias
que suprimem as diferenças, das filosofias da unidade ou da síntese.[...] nos dois casos o
cogito descobre um mundo que restitui ao filósofo sua felicidade.[…]nada mais oposto à
matéria do devaneio do que aquela dos físicos[...].Mas, antinomia tão radical,
sublinhamos, que autoriza o jogo didático das conversões e até mesmo uma incessante
interseção entre a rejeição constante do real e a superação do dado fenomênico e a
condenação impiedosa e polêmica do naturalismo, do continuísmo e dos filósofos da
generalidade. Portanto, essa filosofia não poderia escapar de sua unidade, mas [...], uma
verdadeira filosofia da diferença não poderia, como outras, realizar uma unidade fácil e
explícita, sem renegar seu princípio e seu sopro. Não se deve dicotomizar excessivamente
essa filosofia, para não suprimir ou diminuir, com isso, sua metafísica de oposições.
(DAGOGNET, 1986, p. X).

O presente trabalho trata, na obra de Bachelard, de um número consistente de


indícios aptos para fundamentar a inicial intuição – eixo desta tese - de que o procedimento
bachelardiano se sustente sobre sugestões de ambiguidades devidas, principalmente, à
ruptura da nova ciência – mecânica einsteiniana e física quântica – com os parâmetros de
conhecimento comum do realismo imediato.
Como já mencionado, com o início do século XX, a ciência começa a tratar objetos
infinitamente pequenos que se subtraem à visão do homem e, ao mesmo passo, a pesquisa
torna-se capaz de hipotizar objetos de estudo, frutos de teorias, objetos teóricos, sobre os
quais passa a exercitar posteriormente o trabalho de experimentação. A realidade última
desta objetividade teorizada pela ciência é incerta, oscilante entre onda e partícula. Somente
a observação decidirá, finalmente, seu status ontológico.
Tentando, desse modo, esclarecer o trabalho que vinha sendo feito nos laboratórios
da cidade científica, Bachelard sugere então novos parâmetros de aplicabilidade, complexos
e dinâmicos, para a racionalidade científica contemporânea. Além disto, outro motivo de
ambiguidade residiria no fato de sua argumentação teórica, por um lado, demonstrar a
evolução da episteme através de cortes e negações, no que concerne aos saberes tradicionais
e, por outro lado, descrever a conservação, no quadro evolutivo da ciência, do
conhecimento parcial que acaba de ser superado. O novo saber rompe com o antigo saber
20

que acaba de ser superado, mas o engloba enquanto continua a fornecer uma explicação de
um âmbito parcial da realidade.
Na virada do século XIX para o XX, as mudanças decorrentes da descoberta e
afirmação da nova física quântica – com sua mecânica ondulatória e a teoria da relatividade
– configuram noções e teorias no cenário da racionalidade científica, que serão
responsáveis pela subversão dos parâmetros tradicionais de reflexão, empregados até então
no pensamento da ciência, segundo Pessanha (1985). O autor cita Bachelard, afirmando que
as grandes conquistas da ciência, no século XX, sobretudo em matemática, física e química,
indicam não apenas um avanço, mas a instauração de um novo espírito científico, com
novos pressupostos epistemológicos, em uma atividade que é mais do que simples
descoberta, é criação: “A ciência experimenta então aquilo que Nietzsche chama de tremor
de conceitos, como se a Terra, o Mundo, as coisas adquirissem uma outra estrutura”
(PESSANHA, 1985, p.X).
Concomitantemente a esta transformação, tornam-se prementes novas elaborações
filosóficas, capazes de abraçar o dinamismo dos renovados esquemas de procedimento
científico. A busca da difícil adequação entre doutrina teórica e aplicação pragmática – ou
melhor, adequação entre a nova técnica científica que exige a reelaboração constante dos
princípios de sua racionalidade mesma – associada à repercussão desta singular exigência
de novidade sobre o espírito da época, circunscrito entre suas vertentes positivista e
espiritualista, abre um espaço sui generis para a reflexão.
Bachelard (1951), tratando da ciência microfísica, afirma que “Ao seguir a
descoberta de certos corpúsculos da física contemporânea, somos filosoficamente
conduzidos a modificar muitas ideias sobre o caráter direto do objeto” (p.157), ou seja, a
técnica requer uma nova contextualização filosófica da noção de objetividade. Afirma que
“As propriedades elétricas dos corpúsculos parecem ser, doravante, os elementos
fundamentais da explicação da natureza das coisas” (p.157). O filósofo apresenta nesse
texto a noção de nêutron como partícula, que, por não ter carga elétrica, resulta invisível à
técnica do laboratório científico, convocando, portanto, a filosofia a “formular um novo
estatuto ontológico para apreciar sua realidade” (p.158). No caso do nêutron, “trata-se de
uma realidade formulada por suas consequências” (p.158).
21

O nêutron, prossegue Bachelard (1951), é uma realidade indireta, inferida a partir de


uma ciência racionalmente organizada, mas que deverá, não obstante, ser reorganizada a
partir da técnica. Ele torna-se, por conseguinte, o objeto tipo do racionalismo aplicado e do
materialismo técnico, determinando junto à decisiva evolução da física nuclear também a
afirmação de uma atividade incessante de reconstrução, por parte da ciência
contemporânea. O nêutron traz consigo a nova força nuclear, instaurando um campo de
novidade e abertura na mecânica racional clássica, insuficiente à abordagem da nova
partícula atômica, sem submeter-se antes a profundas modificações.
Desta forma, fica-se mais próximo daquilo que mais interessa a este estudo e que
segue a definição citada de De Broglie (Apud BACHELARD, 1951, p.159): “Preferimos,
hoje, considerar próton e nêutron como dois estados de uma mesma partícula [...] com
tendência a transformar-se”. Tal experiência de transmutação nuclear, na origem de todas
as coisas, é o que determina o dinamismo, e não o geometrismo, como essência da
realidade: o núcleo possui a possibilidade ou tendência de tomar para si os dois estados
próton e nêutron que Bachelard (1951, p.162) mesmo define como “existência corpuscular
dualizada”.
Relembra-se assim um tema bachelardiano que tratamos em precedente ocasião10,
ou seja, a ideia da androginia e do hermafroditismo como tendência fundamental do real.
Tais novas doutrinas das entidades fundamentais do atomismo e, portanto de toda realidade,
levam o filósofo a decretar o realismo incondicionado que fornece estatuto ontológico
definido aos corpúsculos, como evento capaz de provocar paradas ou interrupções do
pensamento (des arrêts de pensée), instaurando o dinamismo que sucede à ontologia
ingênua do realismo tradicional.
Como afirma Dominique Lecourt (1974, p.48), a respeito da ambiguidade do
discurso bachelardiano, polarizado entre a denúncia da inadequação do pensamento
tradicional filosófico, face à nova prática científica e o repetido, porém jamais concretizado
anúncio de uma nova filosofia capaz de harmonizar práxis e theoresis, uma nova filosofia
que, apesar de merecê-la, a ciência ainda não havia conquistado, “Na coexistência desses
dois discursos, existe um enigma a resolver-se”. Por que então, ao denunciar a insuficiência

10
Em nossa Dissertação de Mestrado: O devaneio cósmico e o conhecimento de si - Gaston Bachelard - da alma poética à
androginia da alma, Uerj – 2007.
22

da reflexão filosófica de seu tempo – essencialmente positivista e espiritualista – em


justificar os procedimentos da nova ciência, teria Bachelard, repetidamente, anunciado a
urgência de uma nova filosofia, capaz de dar conta de tal tarefa, deixando-a afinal, sem
realização?
Como se sabe, o filósofo deve aprender na escola do cientista, pois é a ciência que
educa a razão, portanto, mesmo sem ter formulado um rigoroso sistema filosófico,
Bachelard indica, em todos os seus volumes epistemológicos, parâmetros específicos para a
formulação de uma nova teoria do saber científico. Por que apontar uma emergência sem
tentar solucioná-la?
Lecourt (1974) denomina este impasse com o termo enigma, sugerindo a possível
razão do fato, por ele defendido, de o filósofo não ter ido além do simples anúncio da
necessidade de uma nova reflexão. Ou será talvez que somente uma filosofia da antinomia,
irrealizável e contraditória, poderia abraçar todos os paradoxos da nova cientificidade?
Inicialmente o termo lecourtiano será aqui utilizado, expandindo desde já, sua significação
até a outra coexistência enigmática notória, em âmbito bachelardiano, o binômio razão /
imaginação, que constitui o que se convencionou identificar como as “duas almas” de nosso
autor.
Pessanha (1985, p.V) aponta que “Bachelard[...]soube traduzir em linguagem
filosófica o significado e as decorrências para o problema do conhecimento da revolução
instaurada pela relatividade de Einstein, pela física quântica ou pela geometria não
euclidiana”. Esta tradução filosófica da novidade científica não constituiria por si só o
traçado de um renovado pensamento epistemológico? Não seria uma nova filosofia? Ou
melhor, pode-se exigir mais do que tais indícios de uma nova elaboração do saber, de um
pensador tão asistemático quanto Bachelard? Neste ponto, acreditamos que um confronto
Pessanha/Lecourt poderá sugerir novos rumos à pesquisa bachelardiana.
A tarefa de investigar a trajetória epistemológica bachelardiana11, a partir da qual se
busca indicar no âmbito do enigma lecourtiano os primeiros símbolos ou indícios de uma
inédita urgência em valorizar ou elaborar o campo do imaginário, decorrente das exigências
conceituais expressas pela revolução científica dos primórdios do século XX, cuja
descoberta das novas mecânicas – quântica e ondulatória – esboça um extraordinário objeto

11
Notadamente nos volumes: NES 1934, FES 38, PN 40, RA 49, MR 53.
23

de cientificidade que, por um lado, é infinitamente pequeno, de forma a tornar-se invisível,


subtraindo-se aos sentidos corpóreos do pesquisador. Mas, por outro lado, a nova
objetividade, o novo objeto científico, sem a intervenção da observação, toma para si a
liberdade de contrariar o princípio tradicional de identidade ou de não contradição,
caracterizando-se simultaneamente como onda e partícula. Será o ato de observação a
definir sua efetiva modalidade de existência.
Neste período de renovação dos padrões da cientificidade, nem mesmo a noção de
matéria sobreviverá ilesa. Cabe trazer neste momento a explicação de Bachelard (1972):

A ciência contemporânea cria uma natureza nova, no homem e fora do homem. A


criatividade do espírito nunca foi tão manifesta, tão ativa. Através da multiplicação e
aprofundamento dos valores de racionalidade, o destino intelectual da ciência acelera-se.
Torna-se mesmo[...] imprevisível. O racionalismo da ciência é uma filosofia aberta
(BACHELARD, 1972, p.99).

Ao contrário, a noção de matéria sofrerá uma dramática transformação, que, ao


perder sua característica de sólida e maciça realidade, passa a ser revestida pela ideia de
uma nova entidade física, constituída em sua maior parte por espaços vazios. Esta nova
ideia de matéria mantém-se coesa, essencialmente devido ao movimento de elétrons,
portanto a reações eletrônicas – ou melhor, saltos quânticos – verificados continuamente
em seus núcleos atômicos no vazio de suas moléculas. Tende-se, desta maneira, a um
conceito de matéria que, volatilizando-se, parece espiritualizar-se, enquanto o que antes
fora intangível, ou seja, a realidade da energia faz-se cada vez mais contornável e
mensurável. O procedimento epistemológico soube contextualizar a noção, ininteligível até
então, de uma realidade física e objetiva, caracterizável simultaneamente por dois modos de
ser – entre si, contraditórios – como veremos no caso das partículas subatômicas que são
descritas em modo ambíguo, concomitantemente, como onda e partícula.
Entre experiência cotidiana e verdade científica, outra oposição caracterizada como
metodológica aos fins explicativos da nova epistemologia bachelardiana é que se deve
necessariamente instaurar uma ruptura epistemológica, visando a superação dos obstáculos
representados por opiniões, hábitos e dogmas, que influenciam o cientista na pesquisa,
apresentando-se como preconceitos, emoções ou hábitos culturais. Para conhecer a
realidade é preciso abandoná-la – oposição conhecimento e abandono da realidade – a ideia
constitui a experiência e o sistema produz ou inventa a realidade:
24

Toda a epistemologia de Bachelard se inclinará e proporá exprimir esta troca sem fim entre
razão e natureza. O pensamento vazio e o mundo desconhecido entristecem e morrem por
terem sido cortados um do outro, já que a consciência só vive dos seus projetos ou
realizações, já que, pelo seu lado, o universo manifesta a força dos conhecimentos
organizados. Os títulos de duas de suas últimas obras sublinham este aspecto: um
racionalismo aplicado, mas também um materialismo racional[…] solidariedade ativa
entre o objetivo e o teórico: o pensamento muda com experiências novas, estas por seu
lado, atualizam o conjunto dos teoremas (DAGOGNET, 1986, p.22).

Evidencia-se mais um procedimento explicativo por oposição, no texto acima


citado, entre um racionalismo que deve dar conta da realidade, prevendo sua própria
aplicação ao campo empírico e um materialismo que, inversamente, racionaliza-se ao ser
subsumido pela atividade do intelecto subjetivo. A ruptura entre o saber e o conhecimento
comuns – empíricos ou imediatos – e o conhecimento especializado e científico torna-se, no
sistema teórico da ciência, proposto por Bachelard, o principal motor de evolução e
progresso do saber – que o autor indica, notadamente, com mais uma aplicação da sua
metodologia de oposições. Neste caso, entre saber comum e conhecimento cientifico,
enquanto única via à superação dos obstáculos: “Conhecemos somente contra ou apesar dos
conhecimentos anteriores [...]” (DAGOGNET, 1986, p23).
“A ciência cresce com revoluções e não com evoluções, o seu desenvolvimento dá-
se através de rupturas e não lentas maturações[...]”(p.14). A ciência avança através das
perturbações da descontinuidade. Ao cientista, interessa formular uma pergunta, à qual a
teoria pretende oferecer uma resposta: o sentido e a construção do problema são as
principais características do espírito científico.
De forma distinta, o conhecimento vulgar, segundo definição de Bachelard, possui
sempre mais respostas que perguntas, de modo a oferecer com frequência uma resposta
para tudo – a oposição entre respostas e perguntas serve a Bachelard para caracterizar a
atividade científica como habilidade na formulação de novas indagações sobre o estatuto da
natureza.
A ciência recria um mundo, no qual não existe qualquer realidade perceptível, de
imediato; é um universo muito distante do nosso cotidiano. O real científico consiste em
um sistema teórico, no qual a comunidade científica elabora os próprios dados com base na
superação teórica do fato empírico12. Temos aqui uma confluência de oposições: a primeira,

12
BACHELARD (1996a, p.46) “[…] ce qu’il y a de plus immédiat dans l’expérience première, c’est encore nous-mêmes,
nos sourdes passions, nos désirs inconscients…”.
25

acima citada, entre real científico e fato empírico. Serve para introduzir a próxima, a ser
vista no trecho que segue, entre duas atitudes, aquela do medir imediato do realista, e uma
outra, oposta, portanto, que instaura o necessário para uma lenta e cuidadosa aproximação
do cientista ao objeto de seu estudo. Aqui, portanto, se vê Bachelard se opor, medir e
aproximar:

[…]divórcio entre o pensamento do realista e o pensamento do cientista. O


realista pega imediatamente o objeto particular na palma da mão. E já que o
possui, ele o descreve e mede[…]. Ao contrário, desse objeto primitivamente mal
definido, o cientista se aproxima . E primeiramente, ele se prepara para medi-lo.
Ele discute as condições de seu estudo; determina a sensibilidade e o alcançe de
seus instrumentos. Finalmente, é seu método de medição, mais que o objeto da
medição, que o cientista descreve. O objeto medido é somente um degrau
particular da aproximação do método de medida. O centista acredita no realismo
da medida mais que na realidade do objeto (BACHELARD, 1996a, p.213.)

Para resolver a questão dos obstáculos que bloqueiam o conhecimento autêntico,


Bachelard (1996a) introduz a hipótese de uma psicanálise do conhecimento objetivo e do
espírito científico, com a finalidade de expulsar da conceitualização científica qualquer
motivação afetiva e emocional, de origem inconsciente13 Método de ascese e purificação, a
psicanálise do conhecimento serve então como instrumento de inibição de impulsos e
instintos naturais, deixando o cientista racionalmente livre para seguir em direção à pureza
da ciência e do espírito14.
Tal procedimento teórico – terminológicamente inspirado nas então recentes e ainda
pouco conhecidas pesquisas de Freud – seria capaz de individualizar e cancelar obstáculos
epistemológicos, por meio de uma catarse benéfica ao progresso da ciência e da verdade.
Este progresso é verificado no reconhecimento e na retificação de saberes, errados ou
superados, eliminando os obstáculos responsáveis pela redução do saber científico à
estagnação, à inércia e à regressão. Trata-se de uma total refundação do sistema do saber,
no qual o pensamento científico, sacrificando presumíveis certezas da vida cotidiana,
afirma a supremacia do conhecimento abstrato. Somente uma completa revolução do

13
BACHELARD (Idem, p.38): “Une science qui accepte les images est, plus que toute autre, victime des métaphores.
Aussi l’esprit scientifique doit-il sans cesse lutter contre les images, contre les analogies, contre les métaphores.”
14
GAGEY (1969, p.203) “Aqueles que aqui são considerados obstáculos epistemológicos ao desenvolvimento do
pensamento científico receberão, sucessivamente, um tratamento teórico diferente, por mãos do Bachelard estudioso do
imaginário poético.” Cfr. GAGEY, J. Gaston Bachelard ou la conversion à l’imaginaire, 1969, p.203.
26

pensamento científico poderia superar o obstáculo do realismo, convicto de possuir as


chaves da realidade.
A epistemologia bachelardiana tem o mérito de ter dado partida à reflexão e à
divulgação da ciência contemporânea, no que concerne à sua qualidade de pensamento
abstrato. Afirma, ao contrário, a descontinuidade como característica científica peculiar,
como aquilo que a conduz em direção ao progresso, por intermédio da rediscussão de
teorias precedentes, a fim de aprimorá-las, retificando seus erros. Vê-se intervir aqui, mais
uma vez, a consideração da positividade do negativo, no delicado jogo de contraposições
bachelardiano, pois, a consideração da descontinuidade – uma característica, portanto,
negativa – recebe apreciação positiva como aquilo que guia a ciência a seu progresso, ao
longo de um itinerário cujas ambiguidades e dicotomias serão sempre evidenciadas por
Bachelard, em seu teor didático e metodológico. Ou seja, nos aspectos, segundo os quais,
tais figuras colaboram com uma compreensão mais profunda da matéria mesma que, em
cada passo da investigação, é tomada como objeto de análise.
É o que acontece na ciência, com a polaridade entre as noções de abstrato e
concreto. Na teoria científica, a síntese entre os dois polos – com a finalidade do
conhecimento – está direcionada à matematização progressiva da experiência, elaborando
explicações dos fatos da vida real e criando novos fatos, sempre mais complexos, que, por
sua vez, exigirão verificações mais elaboradas. “Reflexões sobre reflexões” é a sintética
definição bachelardiana da ciência contemporânea. Historicizando o percurso do
pensamento científico, ele critica a concepção positivista, que, ao reduzir a epistemologia à
abstração típica das entidades lógicas, difundia a noção de ciência enquanto evolução
unitária e contínua.
Em La formation de l’esprit scientifique, de 1938, Bachelard analisa a evolução
histórica do pensamento epistemológico, até alcançar esta nova disposição abstrata do
espírito de conhecimento do mundo, inaugurada em 1905, pela teoria da relatividade de
Albert Einstein. Historicamente, a ciência desenvolveu-se a partir de observações diretas do
mundo real, para, em seguida, alcançar, pela aplicação progressiva de esquemas
geométricos à natureza, a superação total dos enganos empíricos nas teorias complexas do
abstratismo matemático.
27

As ciências podem progredir, somente superando o que Bachelard define como


obstáculos epistemológicos, gerando argumento em favor da hipótese desta tese enquanto
formaliza mais uma ideia de oposição, desta vez entre progresso científico e obstáculo
epistemológico, sugerindo, além disto, uma ulterior polaridade ou oposição entre uma
noção abstrata (o progresso) e uma realidade empírica, pois, ao primeiro obstáculo, a
opinião, segue-se o conhecimento imediato mesmo ou experiência primária da realidade
empírica.
Compêndio dos erros do estado pré-científico, o obstáculo pode ser sobretudo
verbal, atuando quando a sugestão de uma única palava ou imagem representa a explicação
completa de um fenômeno. Outros obstáculos ao pensamento científico correto são a visão
substancialista, que tende a explicar fenômenos através de falsas virtudes ou qualidades
“escondidas” dos corpos - entes físicos; e a visão animista, que postula a vida como
substância universal em circulação na natureza. Os fenômenos imediatamente perceptíveis
enganam, desencadeando paixões e desejos subjetivos; parecem representações evidentes,
mas ao contrário, são responsáveis pelo atraso no desenvolvimento do saber.
É o que nos diz Bachelard no trecho que segue, no qual caracteriza a modificação
espiritual que contradiz o passado, abrindo o acesso à ciência, acesso que portanto se dá
através de uma via negationis. Nesse trecho cria-se ainda oposição entre conhecer
claramente e ofuscar, entre juventude e velhice do espírito, entre ter preconceitos e aceitar
modificações. Em tal modo, enumerando contraposições, procede o pensamento
bachelardiano no desenvolvimento de suas temáticas. A isto, faz-se referência em
metodologia de oposições.

Diante do real, aquilo que acreditamos conhecer claramente ofusca aquilo que deveríamos
saber. Quando se apresenta à cultura científica, o espírito nunca é jovem. Ele é mesmo
muito velho, pois tem a idade de seus preconceitos. Ter acesso à ciência, significa
rejuvenescer espiritualmente, aceitar uma brusca modificação que deve contradizer um
passado (BACHELARD, 1996a, p.14).

Somente o objeto científico é verdadeiro, apesar de não se dar à percepção empírica


direta e imediata, nquanto concebido no âmbito de uma teoria, única capaz de fundamentá-
lo. Nada é dado, tudo é construído, prossegue Bachelard (1996 a, p.15), indicando – entre o
dado imediato e o objeto teórico construido – uma oposição que contrapõe a nova ciência,
aqui tratada, ao conceito positivista de conhecimento que, como se sabe , partia da imediata
28

apreensão de dados empíricos, colhidos no contato direto com a experiência, a saber, sem
necessidade alguma de elaboração subjetiva do mesmo.
Contrariamente, como já visto aqui – segundo o conceito bachelardiano de
fenomenotécnica – dados são construídos como resultado da aplicação de um trabalho
técnico e científico. Neste sentido, a razão é fenomenotécnica, já que realiza seus próprios
objetos de pesquisa. Pode-se afirmar, por conseguinte, que progresso científico significa
superação de obstáculos epistemológicos, no contínuo processo de retificação dos erros
presentes nas teorias do passado. Afirma-se assim a oposição entre conhecimento imediato
e ciência, que implica na ruptura com a ideia de que a experiência comum seja origem
racional da experiência científica; conceito este radicalmente rejeitado pela epistemologia
bachelardiana, desde as primeiras obras do autor.
A novidade das obras epistemológicas bachelardianas representa a superação da
filosofia da ciência do positivismo, que considera os dados empíricos como único
fundamento do conhecimento humano. Além disto, em oposição à noção em vigor no
pensamento científico de sua época, que afirmava o desenvolvimento das ciências pelo
acúmulo de conhecimentos – sob a perspectiva de um ininterrupto e contínuo progresso do
saber – Bachelard instaura a ótica de um progresso epistemológico descontínuo, através de
cortes teóricos bruscos (coupures), inversões, fraturas ou rupturas com concepções
anteriores15. Sua Filosofia do não instaura a noção do saber científico, que procede por
contínuas aproximações à verdade em uma trajetória em que cada nova conquista envolve a
negação do momento precedente, do saber superado, mas preservado, como aplicação
limitada no campo geral destes novos saberes16.
Como melhor exemplo desta superação que, ao mesmo tempo em que nega, engloba
o saber original enquanto fração do saber mais amplo, cita-se a física einsteiniana, que,
procedendo além de Newton, mantém em seu interior a parcela de universo justificada, até
então esclarecida pela física newtoniana. Seu novo modelo epistemológico, abandonando a

15
Como nos faz notar PESSANHA (1985) em seu ensaio Bachelard: As asas da imaginação, os conceitos de obstáculo e
corte epistemológicos são essenciais à formulação da ideia de descontinuidade, relacionada à história da ciência.
16
BULCÃO (1999, p.153 e 157) “Ao admitir que a ciência progride de forma descontínua, Bachelard propõe uma nova
concepção de história das ciências.[...]fazer história das ciências significa analisar, a partir do presente as teorias do
passado, procurando mostrar como se deu a produção de conceitos científicos, através da superação dos obstáculos
epistemológicos [...] o conhecimento do presente auxilia na compreensão do passado.[...]. Com Bachelard a ciência
deixou de ser uma descrição da realidade para se tornar uma construção, na qual teoria e técnica se dialetizam, produzindo
assim o objeto a ser conhecido.”
29

pretensão de fundar um saber absoluto, emerge através da investigação sobre os


procedimentos da pesquisa, em sua vigência, na cidade científica contemporânea a
Bachelard.
Deste modo, o esforço de esclarecimento racional, promovendo a evolução do
conhecimento técnico, aplica-se sobre práticas e teorias renovadas pelo momento histórico
de surgimento da ciência eisnsteiniana. Concomitantemente, conquistas teóricas da
microfísica propõem um modelo de objetividade, fruto – surpreendente e paradoxal – do
construtivismo instável de uma racionalidade sui generis, diante da tradição absolutista que,
através de fórmulas e técnicas fisico químicas, instaura a possibilidade da necessária e
permanente retificação do pensamento científico, vigoroso em sua perene mutação. Mutatis
mutantis, a nova ciência afirmaria a noção de conhecimento aproximado – e, portanto,
sempre provisório, da verdade.
Tal renovação da metodologia científica, desvelada com rigor nas análises
bachelardianas, abre portas ao paradigma epistemológico da contemporaneidade Este, na
renúncia ao imediatismo natural do ambiente empírico, prevê a intervenção da criatividade
do sujeito, embora preservando a formulação de critérios de objetividade, já que a
formulação de novas teorias, novas modalidades de experimentação e mesmo de novos
laboratórios. Como é o caso do acelerador subterrâneo de partículas, na Suíça, que provoca
a colisão de feixes de partículas subatômicas, os tijolos do universo, tornando possível
registrar e mensurar novas exigências teóricas até então impossíveis de serem investigadas.
Neste sentido afirma-se a capacidade humana de invenções criativas como força
intrínseca capaz de estender o âmbito de prováveis comprovações e descobertas,
proporcionando, por conseguinte, o alargamento da objetividade mesma – no menor nível
do subatômico – aplicada à microciência física, química e biológica. Tais disciplinas, após
quase um século de pesquisas inerentes ao mundo científico do objeto ínfimo, ampliaram
enormemente nossos campos do saber, embora fossem tais objetos subtraídos aos sentidos
humanos, contrariando, portanto, antigos parâmetros de cientificidade das teorias do século
XIX, fundadas unicamente sobre os dados da experiência empírica.
Bachelard encontra no início do século XX, principalmente nos princípios da
relatividade de Einstein, uma nova ciência que contestava os fundamentos do procedimento
newtoniano. Também a geometria não euclidiana tinha superado o pensamento geométrico
30

clássico, assim como a mecânica quântica e ondulatória opunha-se, contradizendo-o, ao


saber unico, absoluto e universal, sólido princípio da física tradicional.
Neste estudo trabalha-se com uma época de profunda transformação, quando dois
sistemas de racionalidade ou dois tipos de racionalismo, contradizendo-se, preparam a
superação do racionalismo clássico de Galileu e Newton, que recorria à experiência para
provar certezas. E o racionalismo que surge com a revolução quântica, que Bachelard
qualificará como um racionalismo aplicado à experiência, pois, mesmo partindo de objetos
teóricos construídos através de fórmulas matemáticas, encontra aplicabilidade no campo
experimental, abrindo caminho para novas investigações científicas. Não se trata mais de
um saber absoluto, mas de novos conhecimentos teóricos que, perseverando na atividade de
pesquisa, buscam ampliar os campos de possível aplicabilidade da tecnologia à realidade.
Surgiria assim a necessidade de uma severa crítica ao modelo racionalista de
ciência, fundado na busca por certezas absolutas. A comunidade filosófica reconhece, na
figura de Bachelard, o pensador capaz de trazer-lhes novidades e informações sobre os
recentes progressos nos quadros da atitude epistemológica. Seria, portanto, seu
compromisso criticar a tradição de um pensamento racional que não se adequava mais às
exigências impostas pela comunidade científica. Ao contrário, o panorama clássico do
pensamento físico e químico não servia mais para dar razão às novas descobertas, que
instauram irremediáveis conflitos teóricos, pois surgiam contrariando, contestando e
contradizendo abertamente a visão de mundo vigente nos ambientes epistemológicos da
época.
Professor de química e filósofo, Bachelard estava, portanto, apto a refletir acerca da
fratura ou ruptura epistemológica em vigor nas duas primeiras décadas do século passado.
Momento em que duas épocas do conhecimento científico se confrontam, o sistema
newtoniano e a reflexão einsteiniana, fazendo surgir a urgência de atualização dos
princípios mesmos da reflexão científica. Bachelard é racionalista, mas contesta com vigor
o modelo gnoseológico enraizado na busca abstrata pelos parâmetros de uma certeza
absoluta. A ciência é racional, seu discurso é o dizer verdadeiro, fundado sobre princípios
de racionalidade que são, porém, históricos, e não absolutos. Eles vigoram em um
determinado momento, em um certo contexto, podendo perder validade em outros
momentos ou sistemas sucessivos.
31

Um dos pensadores da tradição que, apesar da admiração, Bachelard criticará, é


Kant (1724 -1804), em cujo sistema se vê convergir o registro dos dois sistemas do
conhecimento. Por um lado o racionalismo, que funda a certeza do saber em nossas
supostamente atávicas ideias inatas. Pela vertente oposta, somos a tábula rasa do empirismo
que promove o conhecimento como fato empírico, todo ancorado aos dados primeiros da
experiência.
Importa sublinhar que racionalismo e empirismo culminam no pensamento
kantiano, que opera integrando-se à física de Newton, razão pela qual o saber kantiano não
se compromete com a descoberta de certezas, já reconhece um conhecimento verdadeiro na
ciência de Newton. Tratava-se somente de fundar rigorosamente os parâmetros de sua
constituição e de seu funcionamento. Dito de outra maneira, Kant buscava a chave mesma
do saber, ao investigar em que modo seria possível construir a ciência verdadeira, ou
melhor: tratava-se de saber como se constituem juízos sintéticos a priori que fazem do
sistema newtoniano, uma ciência verdadeira.
Para a formação destes juízos, lança-se mão, igualmente, de um a priori inato ou
rede de parâmetros intrínsecos ao intelecto humano que propiciam o conhecimento externo
– noção proveniente de uma herança racionalista, enquanto derivação da ideia inata – nas
vestes das intuições a priori das categorias de espaço e tempo. Assim constitui-se o
aparelho conceitual da apreensão dos dados e impressões imediatas da realidade,
sistematizadas graças à sua evolução de intuições empíricas a elementos subsumidos e,
portanto justificados, no procedimento lógico da racionalidade científica.
Todo o processo verifica-se à luz da revolução copernicana de Kant, inversão,
segundo a qual, o conhecimento sensível e objetivo passa a depender das formas a priori da
intuição. Não são mais os elementos de nossa racionalidade que se devem adaptar aos
dados da empiricidade, para absorvê-los como fatores do saber. Mas, ao contrário, são os
dados empíricos que devem submeter-se às formas a priori do meu modo de conhecimento.
O a priori, como espaço e tempo, justificam-se para Kant como elementos da razão e, como
sempre, garantias da veracidade do conhecimento.
Bachelard usa terminologia de Ferdinand Gonseth, ao afirmar que a teoria kantiana
elaborou uma física do objeto qualquer, ao assumir, como postulado, que o a priori da
razão se adequaria a todo e qualquer conhecimento, o que se manifestaria como incorreto,
32

pois, o a priori funciona, exclusivamente, junto a objetos portadores de certa


especificidade. Ou seja, somente com os objetos que se subsumem ao espaço e localização
euclidiana e ao tempo newtoniano.
A evolução dos conhecimentos científicos sobre a matéria significa, para os
cientistas, um esforço de superação da própria natureza e da experiência comum: com a
ciência contemporânea, a humanidade ingressa em um mundo novo. O conceito
bachelardiano de cité scientifique, enquanto reunião atemporal de todos os cientistas e seus
estudos, sintetiza a ideia de uma comunidade espiritual que compreende pesquisadores e
suas respectivas descobertas, onde cada novo cientista é chamado a contribuir ao processo
de uma racionalidade cujo progresso se dá por meio de uma progressiva complexidade. De
modo que, o materialismo ou ciência da matéria constitui-se na atuação da consciência
retificante, ou seja, na busca do pensamento científico pela matéria mesma, além das coisas
do mundo: logo, negando o objeto, o materialismo racional descobre a matéria.
Segundo as novas perspectivas da ciência – particularmente na química, mecânica e
física quânticas, moleculares e atômicas – a vida traduz-se em uma organização complexa,
na qual homogeneidade e simplicidade não são dados primários, mas valores conquistados,
resultados de uma técnica e de um progressivo processo de purificação. A substância jamais
se apresenta pura; somente a técnica pode torná-la tal, a pureza é o resultado de uma
operação humana. Os conceitos fundamentais para a compreensão das novas teorias sobre a
constituição da matéria, formuladas durante a revolução científica do início do século XX –
assim como das noções de átomo, molécula, número atômico e organização de elétrons –
promoveram uma progressiva ordenação racional do saber humano aplicado à natureza.
Ao longo do processo cultural secular, passo a passo, o racionalismo, soube
substituir-se ao empirismo ingênuo da pré-ciência, até excluí-lo totalmente da explicação
dos fenômenos. O novo reino da racionalidade do século XX passou a ser revestido de
qualidade filosofal, como condição para compreender e elaborar sínteses cada vez mais
complexas. A linguagem da ciência é constituída por uma permanente revolução semântica:
somente quando imaginamos o inimaginável domínio do núcleo atômico – sublinha
Bachelard – verificou-se a efetiva ruptura de continuidade entre o pensamento comum e o
científico. Não pode existir continuidade cultural entre espírito científico e senso comum.
33

O progresso científico cria novas matérias, produz inovações. Somente uma descoberta é
capaz de subverter todo um setor da ciência.
Os estudos epistemológicos17 e a metafísica do imaginário parecem articular-se, em
Bachelard, na elaboração dos dois conceitos cardinais de sua filosofia da ciência,
notadamente, aqueles de ruptura epistemológica e filosofia aberta; pois tais noções exigem
a prática de uma disposição de superação do dado empírico (factual), enfatizado em suas
pesquisas poéticas
Serviam novas ferramentas teóricas para o pensamento do sujeito e da realidade,
tarefa árdua, à qual Bachelard não se subtrairá, desprezando referências a princípios
absolutos e forjando, pouco a pouco, e concomitantemente ao desenvolvimento da
pesquisa, um novo e fértil ambiente para a reflexão epistemológica da época, sustentada por
uma noção de verdade científica como êxito do confronto com seu contrário, o erro. De
modo que, o conhecimento verdadeiro constrói-se com noções retificadas ou corrigidas
dialeticamente na oposição e superação das falhas anteriores. Compreende-se, então, que o
saber epistêmico se impõe enquanto ruptura com o mundo incerto dos fenômenos dados,
enquanto fenomenotécnica, ou seja, construção de eventos teóricos inerentes às novas
doutrinas científicas. Noções abordadas aqui na consideração do novo saber, ou melhor, de
A filosofia do não, como oposição aos fundamentos da reflexão epistemológica
característica da época de Bachelard.
Ao tratar do fundamental processo de renovação da racionalidade científica,
Bachelard apresenta os desdobramentos intelectuais de uma nova dialética lógica, como
indispensável exercício espiritual que predispõe o espírito do savant a adotar e promover
transformações na ordem do pensamento científico de sua contemporaneidade.
Renovando o fluxo mesmo da atividade intelectiva, ao intervir diretamente sobre as
tradicionais categorias de substância e de a priori do conhecimento, o espírito humano se
transforma e se atualiza no exercício de uma racionalidade renovada, capacitando-se, por

17
Na epistemologia de Bachelard, a abertura em direção ao imaginário é necessária para a formulação de hipóteses. A
própria descoberta científica é, sobretudo, intuição, imagem poética, visto que fulgura o estudioso, reunindo seus
conhecimentos anteriores, mesmo sem evidenciar ligações causais: “Le véritable moteur de l’investigation c’est
l’imagination des éventualités et des possibles et impossibles”: GUIOMAR, M. Gaston Bachelard et son double: une
poétique dialéctisée. In Revue d’esthétique, 3-4/1970, p.426.
34

conseguinte, à renovação da inteligibilidade mesma, que por sua vez modificaria toda
lógica e seus conceitos18, através do instrumento privilegiado de suas múltiplas dialéticas.
Será necessário, portanto, realçar, mesmo brevemente, a defesa bachelardiana desta
nova lógica, como vetor de evolução – na prática e na teoria – de uma racionalidade
científica, cujas exigências não eram mais satisfeitas no âmbito da lógica clássica, de matriz
aristotélica ou kantiana, que Gonseth denomina “Lógica do objeto genérico”, enquanto
fundada sobre um objeto qualquer, individualizável, porém, segundo a especificidade de
sua localização física e da manutenção de sua substância.
A demonstração que pretende desqualificar a lógica clássica enquanto lógica
absoluta, parte daí, pois, ao manter sua especificidade – segundo os princípios físicos do
espaço euclidiano – o objeto mesmo qualifica sua lógica como doutrina da possibilidade de
pensarmos corretamente uma determinada classe de objetos. Ou seja, doutrina do
pensamento de um objeto qualquer nos limites de uma determinada classe de objetos –
objetos estáticos da apreensão imediata – e não de um objeto qualquer em absoluto. Mesmo
a lógica transcendental ou geral, ao determinar regras para o pensamento de um objeto
específico, torna-se lógica aplicada ao particular.

A ciência nos dá um objeto que contraria a localização euclidiana e a permanência


substancial. Então, o objeto genérico da antiga epistemologia era relativo a uma classe
particular, logo: conclui-se que as condições da experiência para Kant, num pensamento
novo, não são mais necessárias. A crítica de Kant serve para a classe de objetos genéricos
do conhecimento comum e científico clássico. Mas as ciências clássicas foram abaladas: o
micro objeto não obedece aos princípios do objeto, portanto: o criticismo deve se
reformular (BACHELARD, 1994a. p. 107).

A microfísica trabalha com objetos teóricos que são duplamente especificados


devido à interdição – consequente ao Princípio de Incerteza de Heisenberg – da separação
entre as qualidades espaciais (localização) e dinâmicas (movimento e velocidade) do micro
objeto. A nova ciência ocupa-se de fenômenos e não mais de coisas estáticas. Bachelard
(1994a, p.110) aplica aqui mais uma inversão “conheço objetos em movimento e busco
como considerá-lo em repouso. Não é possível pensar objetos em repouso e ver como se
movem”.

18
Será mostrado adiante, Bachelard analisar as conquistas de Korzybisk, com as quais demonstra o valor da lógica não
aristotélica, inclusive no domínio da metodologia pedagógica.
35

Doravante, a tarefa do novo espírito científico será aquela de representar fenômenos


matematicamente, no âmbito de um espaço e de um tempo que não serão mais aqueles
empíricos, da intuição imediata, serão sim objetos pensados, conceitos abstratos do
pensamento:

O pensamento científico contemporâneo trabalha no plano da representação. O mundo dos


fenômenos científicos é nossa representação intelectualizada. Esse é o mundo no qual
pensamos. O mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive. O pensamento rompe
com as obrigações da vida (1994a, p.110).

A investigação científica sobre micro objetos exige, então, uma física dinâmica do
objeto genérico que respeite a ligação entre suas funções dinâmica e de localização.
Portanto, o novo objeto científico não deve mais ser descrito estaticamente, como na lógica
clássica. Novas teorias fundam novos objetos não estáveis, dinâmicos, razão pela qual se
impõe a necessidade de mudança do sistema lógico de conhecimento científico, pois
“Servem tantas lógicas quantos forem os tipos de objetos genéricos” (1994a, p.111).
Bachelard (1994a) usa a análise lógica de proposições da ciência, para confirmar a
urgência de abandonarmos o princípio de identidade – tradicional fundamento da lógica
aristotélica – diante da evidência com a qual novos objetos científicos exibem propriedades
opostas. Vale referenciar o caso do elétron, que é, concomitantemente, corpúsculo e onda
em evidente estado de contradição, visto que as duas propriedades se excluem mutuamente.
Logo, um mesmo sujeito – o elétron – exibe dois predicados que se contradizem.
Contrariamente, a lógica não aristotélica da microfísica cancela o caráter absoluto do
sujeito, o que possibilita a apresentação das diversas manifestações do predicado: “em
certos casos o elétron é corpúsculo, em outros, é onda” (BACHELARD, 1994a, p.112):

Nosso hábito de lógica aristotélica não nos permite reunir corpúsculo e onda, pontual e
infinito, o que formaria uma penumbra conceitual na qual não conseguimos proceder. Mas
é nessa penumbra que conceitos se deformam. A lógica necessita de uma reforma
(BACHELARD, 1994a, p.112).

Bachelard cita o volume de 1937, A lógica não aristotélica e a crise na ciência, cujo
autor, Oliver Reiser (Scientia, 1937, t.III), estabelece uma relação de derivação e de
dependência necessárias entre dois binômios: lógica aristotélica e física newtoniana / física
não newtoniana e lógica não aristotélica. A nova lógica (panlógica) abrange toda a antiga
36

lógica (lógica restrita), que permanece verdadeira se aplicada a um setor delimitado do


novo conhecimento19. Interessa a Bachelard a demonstração realizada por Reiser, da
derivação de certas proposições da física clássica do princípio de identidade – postulado da
lógica de Aristóteles – pois, em tal modo:

Reconhecemos então que o corpo de postulados da física clássica (nota nº 4) não


é mais do que um corpo de suposições particulares, indispensáveis para a vida
comum, solidárias com a lógica aristotélica, que é a lógica indispensável para a
vida comum, mas que perde, assim, seu caráter de lógica absoluta
(BACHELARD, 1994a, p.120).

Assim, Reiser fornece uma lista de oito proposições:


1. Aquilo que é, é;
2. Um objeto é aquilo que é, quer dizer, é idêntico a si próprio em todos os aspectos;
3. Um objeto é onde está;
4. O mesmo objeto não pode estar, ao mesmo tempo, em dois locais diferentes;
5. Dois objetos diferentes não podem ocupar ao mesmo tempo o mesmo lugar;
6. Para passar de uma posição à outra, todo objeto tem que percorrer o espaço
interposto,
o que, para ser feito, exige um tempo determinado;
7. O mesmo objeto, ou acontecimento, pode ser observado ao mesmo tempo de dois
pontos de vista diferentes;
8. Dois acontecimentos diferentes podem produzir-se simultaneamente, e podem ser
considerados simultâneos do mesmo ponto de vista.

Estes são postulados da física clássica derivados do princípio de identidade, de não


contradição ou do terceiro excluído, que, entretanto, não são verdades lógicas nem
princípios a priori evidentes em si mesmos. É o hábito que nos faz considerá-los evidências

19
Para demonstrar a relação de homegeneidade e pertinência entre lógica aristotélica e física newtoniana, Reiser funda a
distinção entre os postulados de tautologia e de identidade. Enquanto a tautologia exige a permanência do significado de
uma palavra, a identidade exige a permanência das qualidades do objeto, constituindo assim uma lei da natureza, ou seja,
de um certo nível da realidade. Não é uma lei absoluta, mas ao considerá-la tal, a transformo num
postulado.(BACHELARD, 1994a, p. 114)
37

absolutas. Dialetizando-os ou subvertendo a evidência que lhes deriva do uso frequente


destas simples proposições, revela-se seu caráter de postulados.
Tornando evidente a derivação ou proximidade entre estes postulados da física
clássica e a lógica aristotélica, surge espontânea a conclusão: “a dialética dos postulados
implica a possibilidade de uma dialética para a lógica aristotélica” (BACHELARD, 1994a,
p.120) que, por conseguinte, não poderá mais ser considerada como lógica única e absoluta:
“Se admitirmos que as três primeiras proposições da lista são, na ciência física,
consequências diretas do postulado da lógica aristotélica, isto é, da lei de identidade, a
ligação necessária entre a lógica tradicional e a física clássica fica estabelecida”
(BACHELARD, 1994a, p.120).
Atesta-se assim o vínculo que reúne no mesmo sistema ternário: lógica aristotélica,
geometria euclidiana e física newtoniana, eixo de coerência do antigo espírito científico,
como núcleo homogêneo de intuições fáceis. Na verdade, o império universal desta tripla
solidariedade de princípios lógicos, matemáticos e físicos logo manifestaria sua
vulnerabilidade, ao ser investida pelas mudanças dialéticas que abalaram o aspecto
geométrico desta coalizão, dando origem às geometrias não euclidianas, fundamentais para
o desenvolvimento da nova ciência da relatividade eisnteiniana.
Bachelard (1994a) acusa os filósofos de atraso na compreensão e difusão da
abertura dialética que propiciaria o desenvolvimento de uma filosofia de oposição, uma
filosofia do não. Para ele, “os filósofos perderam contato com a cultura científica
contemporânea” (p.121), continuando a buscar a compreensão da geometria e da física, a
partir das certezas propostas pela lógica aristotélica.
O movimento dialético, portanto, ao subverter o dinamismo que lhe é próprio, os
domínios nos quais se instaura, ocasiona, com suas rupturas e mutações, a abertura de
velhos sistemas do conhecimento - que manterão vigência e validade de aplicação setorial
no domínio de novas teorias do saber – proporcionando o salto com o qual o espírito
retoma sua função de mutação, transformando – concomitantemente – a si mesmo e a todo
pensamento de sua época. “A ciência contemporânea o convida para um novo pensamento,
conquistando-lhe um novo tipo de representação, portanto, um novo mundo”
(BACHELARD, 1994a, p.122).
38

Apesar do grande interesse com o qual Bachelard se debruça sobre a pesquisa de


Reiser, ele admite não ter encontrado em escritos deste alguma aplicação para a nova
epistemologia, cuja possibilidade ele mesmo demonstrara como corolário da pesquisa sobre
os oito postulados da física clássica. Em seu esforço para demonstrar a possibilidade de
construção de uma nova lógica eficaz e precisa, fundando-se sobre o não aristotelismo,
Bachelard encontra, então, nova linfa no trabalho teórico de Paulette Février20. Este associa
seu postulado lógico não aristotélico ao postulado físico de Heisenberg21, determinando em
lógica o mesmo veto físico em obter valores precisos e simultâneos sobre as situações
geométrica e dinâmica do corpúsculo: “Proposições que designam, do corpúsculo, sua
localização e seu estado dinâmico precisos são logicamente incomponíveis”
(BACHELARD, 1994a, p.123).
Tais pesquisas decretam a necessidade de parâmetros lógicos diferentes e mais
amplos, conduzindo os pesquisadores a enfrentar a urgência de ampliar o campo de
abrangência do raciocínio exato e preciso, seja através de um novo valor de verdade, além
do verdadeiro e do falso, seja através de novas leis lógicas, leis especiais, que permitam a
resolução das questões engendradas pelos novos dilemas do pensamento científico.
Considerando o postulado lógico Février, acima citado, nota-se que tais proposições
podem formar enunciados verdadeiros – ou terem isoladamente valor de verdade – somente
se estiverem referidas a corpúsculos diferentes. Esta nova lógica impede, pois, sua
composição se forem proposições relativas ao mesmo corpúsculo: “pela primeira vez,
proposições verdadeiras isoladamente, não são verdadeiras se reunidas. São proposições
incomponíveis” (BACHELARD, 1994a, p.124). Todos estes são parâmetros novos de
procedimento científico, que ilustram, portanto, novas tentativas de ampliar, no confronto
com a tradição do pensamento, o arco de possibilidades da racionalidade abstrata.
O estudo dos sistemas energéticos e dinâmicos da mecânica quântica procede,
segundo a avaliação dos valores possíveis, atribuíveis às trocas de energia que se verificam
no sistema mesmo. Logo, o cientista trabalha com espectros numéricos que podem ser
descontínuos. Février prova, portanto, que a nova lógica, constituída pelas mecânicas de
20
Comunicação apresentada na Academia Francesa das Ciências. Congresso de Filosofia de 1937, cuja importante
contribuição para o novo saber científico seria assinalada pelo Congresso Científico de Varsóvia, em 1938.
21
O Princípio de Incerteza de Heisenberg determina a impossibilidade de atribuição simultânea de valores exatos, seja à
variável que designa a localização, seja àquela que designa o estado dinâmico. Ou seja, não é possível determinar
concomitantemente a localização e o movimento ou velocidade de um mesmo corpúsculo.
39

Heisenberg (princípio de incerteza) e Schrodinger (mecânica ondulatória), é uma lógica de


três valores, de modo que um novo sistema ternário, superando a lógica dualista, do
verdadeiro ou falso de Aristóteles, reúne a física de Heisenberg, a matemática de
Schrodinger e a lógica de Février (BACHELARD, 1994a, p.125).
Além da reformulação matemática que engendra em seu bojo novas leis físicas, a
busca por possíveis modalidades de atualização do espírito científico conduzem Bachelard
– além da especificidade do universo científico – à busca por renovação no campo da
didática e da pedagogia, entendendo o dinamismo evolutivo da formação mesma como
elemento fundamental para o desenvolvimento da nova racionalidade científica:

Nós que tentamos extrair as novas maneiras de pensar, devemos dirigir-nos para as
estruturas mais complicadas. Devemos aproveitar todos os ensinamentos da ciência, por
muito especiais que sejam, para determinar novas estruturas espirituais. Devemos
compreender que a aquisição de uma forma de conhecimento se traduz automaticamente
numa reforma do espírito. É, pois, necessário dirigir nossas investigações no sentido de
uma nova pedagogia [...] vamos tomar por guia os trabalhos [...] da escola não aristotélica
fundada na América por Korzybski (Apud BACHELARD, 1994a, p.126).

Os estudos de Korzybski22, aos quais se refere Bachelard na citação acima,


prosseguem na busca por condições para o desenvolvimento de uma nova lógica não
aristotélica, que possam promover então a reforma das ciências, simultaneamente,
restaurando ao pensamento sua ligação fundamental com o progresso da vida humana,
ligação esta que se estabelece na reforma dos métodos pedagógicos e didáticos de formação
do indivíduo.

Korzybiski propõe uma educação não aristotélica que considere o cérebro da


criança inacabado, como 1 organismo aberto, de funções psíquicas abertas. Mas
para educar um psiquismo aberto, servem educadores não aristotélicos. Para isto
é necessário psicanalizá-los (Apud BACHELARD, 1994a, p.128).

Educadores devem desenvolver um shifting character, uma disponibilidade a


mudanças, segundo uma técnica de segmentação da própria personalidade, de divisão

22
Bachelard refere-se ao trabalho do Conde Alfred Korzybski (1933): Science and sanity. In: Introduction to non
ariatotelian systems and general semantics.
40

espiritual de si mesmo, fundamental à sua capacitação como transmissores da experiência


de abertura, na qual se traduz a principal prática formativa do ensinamento não aristotélico.

Segundo Korzybski (1933), a não identidade expressa uma função essencialmente


terapêutica, já que o ideal de identificação é considerado uma obsessão que precisa cura e
terapia. A abertura à novidade impõe a necessidade de aprendermos a liberar-nos do
mesmo, procedendo em direção ao outro. Nesta educação à abertura, chave da pedagogia
não aristotélica, um mestre aprende ensinando, enquanto desenvolve a tarefa da radical
transformação do psiquismo humano.

Deste modo, o novo método pedagógico prevê o enlace de noções bastante insólitas
e ambíguas, como a ideia de cruzamento e encruzilhada de conceitos, vetores de dualidade
ou pluralidade de interpretações e sentidos possíveis, voltados à constituição de
perspectivas sempre duplas, que visam superar a psicologia da forma, desenvolvendo
técnicas de não identidade e de não elementarismo:

É possível constituir novas condutas no psiquismo[...]erguer o psiquismo humano através


de conceitos (labirintos intelectuais) nos quais, essencialmente, os conceitos de
cruzamento dariam, pelo menos, uma dupla perspectiva de conceitos utilizáveis. Chegado
ao conceito de encruzilhada, o espírito não teria, pois, que escolher simplesmente entre
uma interpretação verdadeira e útil, por um lado, e uma interpretação falsa e nociva, por
outro. Estaria em face de uma dualidade ou de uma pluralidade de interpretações. Deste
modo [...] o conceito será essencialmente uma encruzilhada em que a liberdade metafórica
tomará consciência de si própria (e desta) pluralidade de sentidos possíveis
(BACHELARD, 1994a, p.129).

Resulta evidente a proposta de desenvolvimento de dualidades – assim como de


pluralidades de sentidos – conforme tentativa de ruptura da identidade, esforço, visando à
promoção do que Korzybski (Apud BACHELARD, 1994a, p.128) chama de “shifting
character”, ou seja, de uma personalidade não mais encarcerada aos vínculos do monismo
e da identidade. Portanto, a principal tarefa do formador, segundo a nova perspectiva
pedagógica, não aristotélica, seria estimular a multiplicação de ligações conceituais
possíveis, abrindo decididamente o âmbito do conhecimento e do raciocínio intelectual à
investigação de inusitadas possibilidades, nas quais o psiquismo liberto exercerá, sem
limitações, sua primordial função de invenção de novidades.
41

Todo sistema educacional de Korzybski funda-se sobre a grande liberdade de


construção dialética, exercida pela matemática enquanto disciplina educadora da
consciência à prática da criatividade. Formalismo simbólico que atua por si mesmo, a
matemática e a física representam “a base da saúde intelectual e geral” (Apud
BACHELARD, 1994a, p.132).

Outro fator fundamental que, ao método Korzybski, atrai a atenção de Bachelard –


enquanto filósofo da abertura – é a relevante urgência com a qual se prospecta uma
revolução semântica que liberte a linguagem mesma das arestas restritivas de seu
monolinguismo, adaptando-a em modo dinâmico e versátil ao ritmo de uma civilização em
estado de perene mutação:

Korzybski denuncia o monolinguismo como sendo um acorrentamento, uma


privação sem liberdade[...]queria reagir contra a ontologia da linguagem; queria
substituir a palavra concebida como um ser, pela palavra concebida como uma
função [...]sempre suscetível de variações. A sua nova semântica (new semantics)
tende a fornecer a consciência das significações múltiplas. A regra educativa
essencial é tomar consciência das estruturas variáveis (Apud BACHELARD,
1994a, p.80).

Em uma decisiva demonstração de versatilidade dialética, a filosofia da linguagem


de Korzybski prevê como único método de consideração rigorosa da estrutura formal de
uma linguagem, a invenção de outra linguagem que possua estrutura diferente da primeira,
como nova perspectiva, a partir da qual, torna-se possível analisar a linguagem inicial. Ele
fornece como melhor exemplo desta dialética das estruturas semânticas, a invenção da
geometria não euclidiana, como passagem de uma “conceitualização fechada, bloqueada e
linear à outra, aberta, livre e ramificada” (BACHELARD, 1994a, p.133), na qual a palavra
paralela perde seu ser absoluto para tornar-se “instante de um novo sistema semântico”.

Ao analisar a proposta de mutação oferecida pelos estudos de korzybskianos,


Bachelard (1994a) oferece, entretanto, a possibilidade de se experimentar a mobilidade
essencial dos conceitos, alertando, concomitantemente, a não se depositar confiança sobre
42

conceitos que não possam ser dialetizados, sobre conceitos cujo rigor de formulação
impeça qualquer mobilidade ou variação em sua significação.

A dicotomia de oposição entre as duas dinâmicas que regem a atividade do


psiquismo, instituindo duas funções do raciocínio que pode operar, por um lado, em
sistema de abertura e, por outro lado, em sistema de fechamento, em última análise, cria, já
por si só, uma variação de perspectivas que permite a prospecção de alguma novidade no
domínio das estruturas que determinam o funcionamento da mente como enlace de redes
conceituais. Ou seja, a própria possibilidade de uma avaliação em negativo dos rigores do
intelecto aristotélico, depende, in primis, de que o crítico vislumbre ao menos o esboço de
uma pedagogia não aristotélica. É a abertura mesma que nos permite avaliar o fechamento.

Para termos alguma garantia de termos a mesma opinião acerca de uma ideia
particular, é preciso pelo menos que tenhamos tido sobre ela opiniões diferentes.
Se dois homens se querem entender verdadeiramente, têm primeiro que se
contradizer. A verdade é filha da discussão e não filha da simpatia
(BACHELARD, 1994a, p.134).

O diagnóstico bachelardiano chega, portanto, pontual, ao denunciar como doença de


nossa civilização a incapacidade, da qual sofremos, de mobilizar o nosso pensamento.
Visando, pois, a promoção de maior dinamismo no âmbito do raciocínio abstrato das
ciências, a reunião dos três autores comentados, Reiser, Korzybski e Février, revela que, ao
corrigir-se e retomar-se continuamente, o pensamento aprende uma nova modalidade de
funcionamento, livre do determinismo imposto por velhos hábitos racionais. A doutrina
bachelardiana pretende, então, minar a qualificação de realidade absoluta do edifício lógico
clássico – fundado sobre a solidariedade existente entre geometria euclidiana, lógica
aristotélica e metafísica kantiana –, abrindo espaço para incríveis conquistas teóricas, de
vasta aplicação prática, situadas, in fieri, no destino do novo espírito científico.
43

1.2 Por uma racionalidade renovada

Em um breve texto de 1935, O idealismo discursivo, Bachelard trata da permanente


oscilação existente entre a retificação contínua do saber – processo este já em si mesmo
antitético em relação ao cogito cartesiano, como intuição imediata de ideias. Significaria,
em outras palavras, uma direta apreensão da verdade – e a desconstrução mesma de sujeito
e objeto, qualificando-os como diversidades desencontradas. Segundo Bachelard, sujeito e
objeto não são polos definidos rigorosamente, são oposições em tensão que oscilam. Assim,
ele define a si próprio, à própria subjetividade: “sou o limite de minhas ilusões perdidas”.
Apesar dos termos em Bachelard serem frequentemente equívocos, apresentando
significados que não são unívocos, mas sim variantes – o que nos obriga a reconstruir
significados, buscando indícios nos meandros dos textos –, pode-se ver aí uma importante
declaração de princípio em vibrante contraste com a concepção do saber científico
tradicional. Não se dá uma ideia de objetividade enquanto experimentação imediata do
dado sensível, por parte de algum sujeito “em geral”, onicompreensivo. As ideias não são
imediatamente objetivas, não se apresentam com a carga intrínseca de verdade. Para
Bachelard, o interesse da pesquisa focaliza não um ideal de objetividade, mas sim o
processo, bem mais realista, de objetivação, ou seja: o mecanismo que propicia a
construção da ideia, seu processo de formação.
Via mestra da tarefa é a própria atitude de psicanálise do conhecimento objetivo,
tecla sobre a qual bate o filósofo desde os primórdios de seu trabalho em epistemologia.
Afastando-nos dos grilhões do subjetivismo, objetivamos ideias. Uma possível ontologia
bachelardiana certamente refletiria este processo de construção do ser mesmo, ou seja, da
ideia e da subjetividade. O objeto científico que nunca repete o caráter imediato do dado é,
ao contrário, um resultado desta construção. Por outro lado, o sujeito desaparece enquanto
ser unívoco, repleto de obstáculos a serem afastados, ele é o conjunto de entraves que se
verificam pelo fato do saber não ser imediato.
A subjetividade autêntica recai sobre o conjunto da cidade científica, que
desancorada dos rígidos parâmetros do binômio sujeito-objeto, exercita em maior liberdade
o jogo dialógico de um saber que não teme o erro e nem muito menos sua retificação. Ao
contrário, saúda a reformulação das teorias como oportunidade de construção de uma nova
44

razão mais abrangente. “Foi bom errar”, diz Bachelard, pois o objeto teórico é sempre o
resultado desta nova construção racional. Portanto, o diálogo sujeito/objeto, enquanto
diversidades desencontradas, representa o motor que dá origem à forma de conhecimento
que Bachelard promove, porque a reconhece nos laboratórios e nas mesas de trabalho da
cidade científica. Saber cientificamente é dialogar e refazer. É uma forma operativa do
cogitamus e não mais a cartesiana intuição do eu.
A teoria antecede o encontro com o real e promove a imediata superação da
empiria. O contato inicia-se já sobre bases teóricas de formulação do mundo mesmo. O
processo de objetivação, intrínseco ao conhecimento científico, faz brotar no ato mesmo de
conhecimento o sujeito que conhece e o mundo circunstante. Na reflexão epistemológica
bachelardiana não existe sujeito nem objeto dados. É o sujeito cognoscente mesmo, que, ao
constituir objetos em suas teorias, constitui do mesmo modo a si próprio, pois “A essência
do real é dinâmica e não geométrica [...]. E ainda, “O racionalismo que deseje servir ao
conhecimento científico deve incessantemente retomar o exame e a reforma de suas bases.
Trata-se realmente de uma filosofia que trabalha” (BACHELARD, 1951).
A ciência, como variedade de saberes e técnicas empregadas no mundo concreto,
vista, portanto, em sua qualidade de – racionalismo aplicado –, termo bachelardiano
ambiguo que, unindo duas noções divergentes, razão e experiência, descreve uma ratio
operativa aplicada ao real da experiência cotidiana. Encontra-se, por sua natureza mesma,
profundamente associada a questões históricas e sociais, tanto no interior quanto fora da
cidade científica, o que pode, ao mesmo tempo, estimular ou bloquear seu
desenvolvimento, de acordo com o contexto em que se enquadre. Amplia-se assim a
questão da ambiguidade provocada pelo embate de ideias divergentes utilizadas por
Bachelard – tecnicamente, como suposto neste estudo – na descrição dos precedimentos
adotados pela nova ciência.
Segundo Bachelard (1951), empirismo e racionalismo não justificam a prática
científica de sua época. O autor confronta os dois termos – utilizando, portanto, a oposição
entre racionalismo e empirismo como procedimento metodológico, didático e explicativo,
conforme a argumentação aqui exposta a favor do que uma metodologia e ambiguidades
pretendem demonstrar – para afirmar que razão absoluta e real absoluto são conceitos
45

inúteis. A razão se constrói no diálogo com a experiência, em uma troca contínua das
respectivas verdades.
Esta novidade epistemológica do pensamento de Bachelard surge no volume de
1949: O racionalismo aplicado. Encontra-se em seus volumes epistemológicos a
elaboração de princípios para a renovação da doutrina da ciência que, contestando os
fundamentos da epistemologia newtoniana vigente em fins do século XIX, pretendiam,
simultaneamente, criar o espaço necessário para a reflexão sobre as novas doutrinas físicas
do início do século XX.
Tratava-se idealmente, como acenado acima, de psicanalisar a mentalidade de um
século ainda dominado pela perspectiva do racionalismo positivístico, que não era mais
suficiente para dar razão das recentes descobertas de Heisenberg, Bohr, Einstein e de
Broglie, entre outros. A mecânica clássica de Newton representava idealmente o ápice de
uma reflexão fundada sobre as perspectivas do progresso da razão e da ciência que,
partindo da assunção positivista do fundamento empírico de todo conhecimento, adequava-
se à noção racionalista de um saber integralmente fundado sobre princípios de razão, ou
seja, sobre elementos absolutos e a priori, verificáveis na experiência.
A ciência da época de Bachelard, cuja superação constitui um compromisso para a
sua reflexão, buscando a universalidade de certezas absolutas, alicerce do conhecimento
verdadeiro, integrava perfeitamente o racionalismo clássico e o positivismo comtiano,
portanto. Apesar de toda hipótese derivar da observação da experiência – o que reduziria
todo conhecimento à mera empiricidade – sobre a base de tais dados de fato. Isto, segundo
o rigor da lógica argumentativa, a razão construía suas hipóteses e sucessivamente buscava-
se comprovação empírica, o que justifica o dito newtoniano hipóteses non fingo, ou seja:
não se inventam hipóteses, uma vez provadas, tornam-se teses. A formulação de leis
racionais permitiam, finalmente, a previsão de novos fatos científicos.
Bachelard (1951) se opõe a essa razão universalizante da tradição, afirmando, com
Einstein, uma razão da descontinuidade. Supera o princípio aristotélico da identidade, em
defesa da ambiguidade. O panorama permanecia idêntico ao classicismo da racionalidade
de Descartes, Spinoza, Malebranche e Leibniz: o conhecimento verdadeiro fundava-se
sobre a certeza universalizante das ideias inatas ou de razão, cujo encadeamento
desenvolvia-se rigorosamente, transformando verdades contingentes e circunstanciais em
46

princípios de razão, até alcançar a hipóstase última de uma razão universal (Deus ou
harmonia preestabelecida de Mônadas), que se erguia como garantia de toda a epopeia do
conhecimento.
Todo racionalismo funda o conhecimento verdadeiro sobre certezas universais,
assim como o Positivismo observa o conhecimento partir da experiência para fundar
hipóteses racionais, as leis definitivas da razão. Até o início do século XX, portanto, todo
progresso da razão e da ciência ainda tinham seu cume na mecânica clássica de Newton,
cientista cujo sistema de saber era permeável à herança racionalista-positivista: suas
hipóteses baseavam-se na observação direta do mundo empírico, porém, a elaboração
racional da informação colhida diretamente da experiência e sintetizada em leis do
conhecimento, permitia a previsão de novos fatos e, desse modo, de novas leis.
A racionalidade que investe a mecânica contemporânea funciona como uma física
apta a trabalhar com incertezas23 constrói os objetos requeridos pelas teorias, contrariando
todos os princípios vigentes nas regras da ciência em uso até o final do século XIX. O
micro objeto é algo sem dimensão e sem forma. Segundo a definição de Louis de Broglie:
“prótons e neutrons são dois estados da mesma partícula [...] com tendência à
transformação” (BACHELARD, 1951, p.159).
A física de Newton partia da aceitação da existência do objeto e dali estudava seu
movimento. Ao contrário, a microfísica não admite objetos previamente existentes. Ela
busca registrar o movimento do objeto, para considerar a posteriori a sua presença. A
equação gerada por seu movimento define o objeto presente, através de indícios deixados
pelo rastro de sua passagem - ao projetar um feixe de luz numa câmara fechada, na qual se
disparam nêutrons, uns contra outros-. Além disto, se a velocidade for maior do que a luz, o
objeto desaparece. Portanto, sua existência mesma depende de sua velocidade.
Encontra-se o fundamento do racionalismo aberto bachelardiano na afirmação de
que princípios e categorias da razão mudam. Razão pela qual Bachelard opôs-se aos moldes
que estruturavam o saber científico, deixando, porém, sem explicação, fundamentais
procedimentos matemáticos aplicados às novas teorias físico-químicas de sua época. O
positivismo da lógica kantiana não satisfazia a exigência de uma elaboração teórica que
garantisse o sentido da doutrina microfísica, nem da mecânica quântica; novas fronteiras do

23
Princípio de indeterminação de Heisemberg.
47

conhecimento que urgia convalidar e justificar, através de uma reflexão profunda sobre a
renovação da doutrina epistemológica, que fosse capaz de oferecer fundamentação lógica às
inovações da prática científica. Instaurava-se assim o fantasma da provisoriedade no
Panthéon do saber absoluto, ou seja, na doutrina da ciência mesma. A certeza é
circunstancial e não universal. A física de Newton representou a verdade, e continua a
representá-la, em relação a um determinado sistema ou momento do saber, mas deixa de
representá-la no sistema da cientificidade contemporânea.
A certeza é uma utopia. Aprendemos a refletir sobre o incerto. Existem atualmente
muitas lógicas. Entre elas, existe uma lógica que pensa a contradição mesma. As certezas
do novo saber científico encontram sua vigência dentro de determinados parâmetros. A
afirmação euclidiana de que “por um ponto só é possível traçar uma paralela” encontra o
campo de seu valor de verdade limitadamente, dentro dos confins do espaço plano. Já no
espaço curvo, por um ponto é possível que passem múltiplas paralelas. A revolução
científica fragmenta o racionalismo, desenvolvendo racionalidades específicas para os
diferentes campos do conhecimento. Existe então o racionalismo da mecânica, da física, da
química, da sociologia etc. Cada setor do saber vai fundar seu racionalismo de validade
regional, superando desta forma o mito da visão global e da universalidade das técnicas e
métodos de conhecimento24.
A ideia bachelardiana de racionalismos regionais, que presupõe, em seu bojo, a
noção de um ulterior racionalismo integralizante que se ocupará em estabelecer conexões e
afinidades entre as diversas redes do saber, já foi apontada aqui. A revolução científica,
promovida pelos estudos de Einstein, Planck, Bohr, Heisenberg, de Broglie e Dirac, soube

24
Lógicas Paraconsistentes: NEWTON da COSTA, engenheiro, matemático e filósofo brasileiro (UFPR, USP, Unicamp
e UFSC), empregando o método axiomático, formulou noções lógicas inéditas e fundamentais, como na teoria da “quase
verdade ou verdade parcial” ou da “incompletude ou indecidibilidade” de proposições da teoria dos sistemas dinâmicos.
Nos anos 1950 e 1960, ou seria entre 1950 e 1960, desenvolve pesquisas de notoriedade mundial: Lógicas
paraconsistentes, ao lado ou além da consistência, termo cunhado em 1976 pelo filósofo peruano F.M. Quesada, para
descrever esta lógica considerada não clássica e heterodoxa. Isto se deu por rejeição ao tradicional princípio de não
contradição, possibilitando assim a fundação de sistemas dedutivos inconsistentes,ou seja, capazes de admitir em si a
contradição ou teses contraditórias,que mantêm seu rigor ao prever que nem todas suas fórmulas constituam teoremas do
sistema em questão (COSTA, 1993; 1997, 1999). Segundo a consideração dos sistemas lógicos paraconsistentes, uma
sentença e a sua negação podem ser ambas verdadeiras; a conclusão destas proposições podem adquirir valores além de
verdadeiro e falso, como no caso de valores indeterminados ou inconsistentes. Um exemplo prático da nova lógica,
aplicada a paradoxos semânticos, admite a sentença: “o homem é cego, mas vê”; apesar da lógica clássica excluir que uma
pessoa que enxerga, logo, não cega, possa ser cega, a lógica paraconsistente admite uma pessoa que é cega para
determinadas coisas, possa ver outro tipo de coisas. A partir de 1991, o célebre periódico Mathematical Reviews, da
American Mathematical Society, inseriu em seus anais uma seção sobre lógica paraconsistente, ampliando-a, após 2000
sob o título de “lógicas admitindo inconsistências”. Tal tipo de lógica constitui um tópico de estudo oficial da matemática,
cujo desenvolvimento encontra aplicação em variados campos da pesquisa contemporânea (ARRUDA, 1990).
48

impor o distanciamento crítico dos fenômenos imediatamente disponíveis à percepção


sensorial, dotando o espírito científico de uma notável carga de novidade e complexidade.
Bachelard (1998) abre o debate para investigar e conhecer o renovado valor filosófico,
implícito nas transformações que se tinham firmado no interior da prática científica: “A
cultura científica requer que se viva um esforço do pensamento […] a dificuldade é uma
característica fundamental da ciência contemporânea […] ela já não pode mais ser simples”
(BACHELARD, 1998, p.214).
A lição filosófica da experiência científica evidencia o fato de que, para
compreender um novo fenômeno, é preciso reorganizar os princípios do saber, engendrando
assim uma teoria da ciência que, fundada sobre o esforço do pensamento em afirmar
sínteses construtivas, representa também a beleza do procedimento epistemológico, visto
que das dificuldades da razão, deriva-nos o dom da consciência cultural. O materialismo
racional, como atividade básica de descoberta do espírito humano, constitui o núcleo da
obra homônima bachelardiana, de 1953.
Bachelard refletiu sobre um novo espírito científico, um novo momento para a
racionalidade. Os saberes de Descartes e Newton tinham sido ultrapassados. A realidade do
nosso conhecimento é perspectivista. Operamos sempre a partir de um determinado ponto
de vista, utilizando como instrumentos reflexivos determinados princípios. Só assim
podemos falar em certezas que, porém, são sempre circunstanciais. Mudando a situação de
aplicação do saber, mudam os princípios utilizados, instrumentalmente, pelo conhecimento,
como muda também o nível de certeza que poderemos alcançar. Assim, a simultaneidade
do movimento é uma certeza unicamente na perspectiva do tempo e do espaço
newtonianos. Se estívessemos posicionados na lua, veríamos diferente.
Em sua comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia, em 195025, Bachelard
define a noção de racionalismo, pela qual, ele mesmo, se considera um racionalista.
Afastando categoricamente a concepção tradicional do racionalismo, único e geral,
enquanto filosofia dos princípios gnoseológicos que, sobre o ato do conhecimento, prioriza
estruturas racionais elementares e fixas, universais e absolutas, Bachelard (1972c) sugere
que o surgimento “tardio”, em segunda instância, desta organização racional da
experiência, que se daria em regime de segunda aproximação (do abstrato ao real), quando

25
BACHELARD. De la nature du Rationalisme. In: L’engagement rationaliste, Paris-PUF, 1972c, p.45.
49

o contato empírico com o mundo já teria perdido qualquer significação, não reflete mais o
progresso da organização racional do saber científico. Mais adiante será visto que a
racionalidade que o filósofo defende é já, in primis, uma abordagem teórica do real.
“O progresso da organização racional do saber cientifico”, impõe, como “fator ativo
das transformações radicais da experiência”, diz Bachelard (1998, p.47), a noção de
racionalismo como uma filosofia investigativa capaz de promover a assimilação de novos
conhecimentos. Original potência de transformação do mundo, a atitude racionalista,
portanto, em seu funcionamento, não pode depender de estruturas rígidas, mas deve
também poder transformar-se aplicativamente, segundo princípios sempre em
reestruturação, como uma arquitetura perenemente em desconstrução e reconstrução, nos
múltiplos campos do saber que, portanto, obedecem a sistemas lógicos diferentes.
Contrariando a perspectiva de uma razão definitiva em suas certezas e
universalizante em sua abrangência, a ciência contemporânea aprendeu a inventar novas
axiomáticas variáveis. Estes representam o conjunto de princípios epistemológicos, eixo de
um determinado saber, ramificando o racionalismo geral em vários segmentos de
conhecimentos e técnicas específicos e particulares, para atender deste modo às exigências
de constantes reformas de suas modalidades operacionais, avançadas pela nova
racionalidade do sec XIX. Surgia assim a noção de racionalismos regionais, já citada
anteriormente, teorizada por Bachelard, em 195326. Cada área do saber, biologia, mecânica,
química, física, possui um registro de racionalidade específico. Motivo pelo qual o filósofo
cunhou o termo racionalismos regionais, superando irremediavelmente a generalidade
racionalista cartesiana.
Como antecipado aqui, Bachelard deixou somente menção à concepção de um
sucessivo racionalismo integralizante, que teria por função reunir em um único modus
operandi todos os setores de especialização da racionalidade científica. Após a citada
conferência à comunidade filosófica parisiense, M Bréhier, ao abrir o debate, felicita o
filósofo por ter tornado o racionalismo difícil: “O racionalismo não é esta coisa fácil e chata
que se resume em algumas fórmulas” (BREHIER, apud BACHELARD, 1972c). Diz
também que Bachelard soube transformar o racionalismo triunfante, aquele da verdade e
certeza absolutas, em racionalismo militante e ativo. Ou seja, aquele mesmo que o filósofo

26
In: Le matérialisme rationnel,1990.
50

teorizara como árduo procedimento de construção do objeto – e, portanto, do sujeito - da


ciência. E conclui, afirmando algo fundamental ao nosso propósito, ou seja, reconhece que
o filósofo, além de argumentos, trouxe também informação à Academia dos Filósofos
reunida para a ocasião. Isto vem então a confirmar a Bachelard o papel de pioneiro na
reflexão epistemológica francesa do séc XX. Falando sobre a natureza do racionalismo, ele
informa, atualiza os filósofos franceses sobre os progressos da reflexão sobre a doutrina da
ciência, situando-se portanto, ele mesmo, na vanguarda da reflexão epistemológica sobre a
reforma dos quadros da racionalidade científica naquele país.

Bachelard insiste, sobretudo, na necessidade de uma dialética contínua, na


medida em que toda nova forma de abstração, de novo, revela sempre uma
inadequação ou impureza, obrigando, assim a razão, incessantemente, a voltar-se
contra si mesma [...]. (WUNEMBURGER, 2003).

A análise bachelardiana acerca da relação entre experiência empírica e organização


racional da teoria epistemológica indica que o pensamento científico moderno instaura-se
sobre a experimentação instrumental aplicada à experiência objetiva. A associação entre
ideia e experiência é a causa determinante do desenvolvimento da ciência. Tal
procedimento, traduzido como um Racionalismo aplicado (1949) foi apresentado – como
instrumento de transformação e de retificação da realidade, prática que se torna acessível ao
cientista como dupla conversão, capaz de liberá-lo tanto do realismo quanto do idealismo.
No mundo da técnica científica pode-se realizar o que não existe na natureza: a
ruptura epistemológica defendida pela nova ciência refunda o conhecimento. Ao invés de
sentir-se bloqueado pela ambivalência entre os dois pólos da realidade – ser manifesto
(perceptível), e ser escondido (não evidente, porém individualizável pela teoria) – o sujeito
surpreende-se com o campo de estudo inédito, descortinado graças à dialética mesma,
inerente à polaridade. Para captar o objeto científico é necessário um método, um conjunto
de técnicas e práticas que integram o procedimento capaz de conduzir o estudioso ao
objetivo projetado, assim como é indispensável formular uma pergunta para, em seguida,
respondê-la. Na nova epistemologia, no domínio da ciência teórica, os dados são
resultados; as demonstrações científicas constituem o fenômeno, que assim é recriado
técnicamente, no âmbito da teoria, afirmando a primazia da reflexão abstrata sobre a
percepção empírica.
51

Bachelard (1998) exemplifica quanto dito com a novidade dos estudos sobre a
eletricidade, que não mais partiam da observação de fenômenos elétricos, mas da aplicação
do racionalismo técnico a certos eventos naturais, com a consequente criação de um novo
universoresultante da união entre invenção teórica e descoberta experimental. Logo, o
racionalismo aplicado constitui-se pela interseção entre razão e experiência, assim como a
ciência compreende a dupla perspectiva, da teoria e da experimentação A saber, as
conquistas da racionalidade devem ser aplicadas à realidade na formulação de novas
técnicas e teorias que, por sua vez, irão proporcionar o aparecimento de novos fenômenos,
num contínuo movimento de refundação do saber.
O conceito fundamental da revolução científica do século XX é energia. A matéria é
uma organização energética. Cada ser é passível de definição nestes termos, já que todo
fenômeno é, em si, uma manifestação de energia. Neste novo cenário teórico, a ciência
torna-se o trait d’union entre pensamento abstrato e experiência concreta, ou melhor, torna-
se uma atividade abstrato-concreta, justamente como Bachelard (1998) define a filosofia do
racionalismo aplicado. O cientista não parte da experiência imediata: um novo
conhecimento é sempre formulado enquanto antítese daquele que o precedia como
superação de seus erros. Ele substitui, portanto, o saber fechado e estático por um
conhecimento aberto e dinâmico, configurando, em tal modo, mais uma oposição no
dinamismo dialético do conhecimento. Por isso, a ciência recorre a uma catarse
intelectual27, na qual o autor, sugerindo a contraposição entre espíritos poético e científico,
indica os perigos para o conhecimento científico, representados por impressões primitivas,
por adesões ou simpatias conceituais de origem inconsciente e por devaneios e delírios
subjetivos. Em Bachelard, diz Dagognet (1986, p.35), “as ambivalências e os conflitos se
resumem todos em movimento,dinamismo e metamorfose”.
Após tecer, neste excursus, o movimento conceitual que instaura a urgência de uma
nova racionalidade aberta e dinâmica, apta, portanto, a dar razão da complexidade que se
instaura no domínio do novo pensamento científico no início do século passado, chega-se à
finalidade primordial deste estudo. Ou seja, a intenção de investigar, ao longo da obra de
Gaston Bachelard, a configuração de um procedimento sui generis de pensar: trata-se de
evidenciar como, neste autor, a questão das dicotomias, ambivalências, ambiguidades,

27
BACHELARD. La Psycanalyse du Feu, (1938), 1972b.
52

contradições e antinomias, que ele incansavelmente enumera, cita e indica,


indiferentemente, nas duas vertentes de sua pesquisa, epistemológica e poética, alcança o
formato de uma modalidade dinâmica do pensamento, vindo a constituir o principal
procedimento metodológico utilizado ao longo de sua obra e configurado como caminho
dos opostos.
Esta é uma abordagem radical cognitiva de uma subjetividade ambígua, anunciada
por Bachelard, ao considerar o próprio intelecto como ambiente no qual se instaura a
polaridade entre o conceito científico e a imagem poética, o que se constitui, portanto,
como ambiguidade originária entre razão e devaneio, raiz da androginia filosófica28.
A referência aqui feita ao procedimento sui generis que se pretende identificar na
obra bachelardiana, utilizando o termo metodologia de contradições, não atribui o mesmo
significado que as palavras teriam, segundo a tradição do pensamento filosófico. Mas, ao
contrário, pensa-se em uma filosofia do não, à qual o autor se refere explicitamente, talvez
exaltando a negação – que reverbera como dicotomias, ambivalências e paradoxos – como
ingrediente fundamental de seu novo método de conhecimento. Interessa a este estudo
afirmar a novidade da constatação de que o verdadeiro método científico deve ser capaz de
contradizer a si próprio, deve utilizar em suas demonstrações a tensão e o vigor existentes
entre as múltiplas polaridades que contempla, entendendo com isto mesmo, provocar a
evolução e o progresso do conhecimento humano.
Portanto, mesmo em ambiente científico, a noção de ambiguidade reveste uma função
central na obra de bachelardiana. Entre os valores lógicos da verdade e da falsidade, entre o
que é e o que não é, uma nova rede de possibilidades parece se tecer. A nova realidade
quântica pode simultaneamente ser e não ser. Como em um jogo de espelhos, princípios
fundamentais para a compreensão da novidade científica, são também noções cardinais da
criatividade do espírito. Logo, o conhecimento específico do tema das polaridades enquanto
procedimento do pensar originário, nas duas vertentes da teoria bachelardiana, parece
possibilitar uma renovada compreensão de Bachelard, que ousa, finalmente, propor, mesmo
preservando a integridade de cada vertente, uma compreensão integral de sua obra – apta
portanto, a incluir em sua constituição tanto a dinâmica de seu projeto científico quanto
aquela de sua atividade estética e crítica literária.

28
DAGOGNET, 1960, p.35.
53

Deste modo, a razão na audácia bachelardiana rompe com os esquemas de


pensamento da tradição e resgata sua função de turbulência e agressividade, instaurando o
âmbito de uma sobrerracionalidade, como superação da antiga coerência objetiva e
racional, decididamente insuficiente para dar conta, com o início do século XX, não
somente dos desafios da nova ciência subatômica, como também da extraordinária
iconoclastia dos movimentos estéticos da modernidade europeia, os ismos: dadaísmo,
futurismo, surrealismo, cubismo. O cenário de fundo, seja científico ou estético, ilustra,
então, primariamente a migração dos parâmetros da racionalidade em direção à nascente
complexidade sobrelógica da autêntica revolução espiritual proposta por Bachelard, como
abertura ao pensamento da novidade ou como postura essencialmente disponível a
multiplicar as ocasiões de pensar. Em Bachelard (1996) a dicotomia não se supera jamais
nas últimas linhas da última página de seu último volume (poético), ele afirma ainda o
desejo de voltar a ocupar-se da leitura/escrita de um texto difícil (científico):

Após tanto devaneio, sinto-me tomar pela pressa de instruir-me ainda mais, de
descartar, consequentemente, o papel branco para estudar num livro, num livro
difícil, sempre um pouco difícil demais para mim. Na tensão diante de um livro
com desenvolvimento rigoroso, o espírito se constrói e se reconstrói
(BACHELARD, 1996, p.111).

Nota-se, portanto, que esta época impõe à epistemologia o confronto com a


exigência de novos instrumentos teóricos, consequente à revolução científica que vimos
iniciar-se com a doutrina da relatividade einsteiniana, com a física quântica (mecânica
ondulatória) e com os novos paradigmas matemáticos e químicos, no início do século XX.
Esta revolução do pensamento científico constitui o pano de fundo da dialética binária de
polaridades, cujo exame é também proposto aqui, tornando evidente o fato de que as
categorias tradicionais do pensar de então não eram mais suficientes para a reflexão acerca
das novidades propostas pela comunidade científica da época.
Em última análise, pode-se afirmar que enquanto o conhecimento permanece
subjugado ao ideal de uma verdade absoluta, o imobilismo da inteligência termina por
estancar as forças vibrantes do racionalismo. Somente adotando um procedimento criativo,
que ouse o confronto com as polaridades e contradições que se apresentam ao
conhecimento, somente assim a ciência pode evoluir, progredindo em direção ao seu
destino de surracionalidade.
54

A proposta deste estudo visa evidenciar a configuração de um novo procedimento


metodológico29 na obra bachelardiana. Convém notar que a necessidade de renovação
afirma-se, simultaneamente, nos dois planos do pensamento/razão e da
empiricidade/matéria, pois a realidade imediata, objeto primeiro dos órgãos sensitivos, já
não constitui mais nenhum parâmetro para o novo conhecimento físico. A nova
objetividade científica constrói-se no âmbito das teorias, seguindo o projeto da razão
caracterizado enquanto fenomenotécnica capacitada à construção de seus próprios objetos.
Ou seja: a nova razão trata novos objetos, no projeto radical de renovação da abordagem
científica do real. O dinamismo de dicotomias e ambiguidades que constitui o “método
surracionalista” de Bachelard associa “mobilidade, efervescência e alegria” ao exercício da
razão, promovendo “a razão polêmica à categoria de razão constituinte”. O que é o
mesmo que dizer que o cientista supera a crítica como tarefa inicial – pars destruens – do
método e conquista novos campos de exercício para o saber científico. Logo, a conquista
espiritual da qual fala o autor é essencialmente uma nova liberdade racional.

1.3 Reorganizando o saber como filosofia do não

Será a mecânica da relatividade que, por não ser newtoniana, romperá com tais
princípios. A questão do a priori sofrerá um forte abalo, engendrando um período de crise
do conhecimento. Em La philosophie du non, (1940) Bachelard defende então a pertinência
de uma lógica não aristotélica e não kantiana, como uma abordagem teórica estratégica,
capaz de resolver, assumindo-as em seu interno, as inúmeras antinomias causadas pela
reviravolta científica da física e da química, no âmbito da superação da física de Newton.
Uma lógica de inclusão de opostos, afirmada enquanto superação, mas não anulação do
cogito racionalista.
Na verdade, como Ferdinand Gonseth (ano), antes dele, Bachelard ousou esclarecer
diante da comunidade filosófica e científica um fato que poucos tematizaram. Trata-se da
extraordinária notícia de que o a priori kantiano funcionava unicamente no âmbito de um

29
“Outra razão acentua o valor dos métodos múltiplos [...] é que toda crise profunda no método é
imediatamente consciência da reorganização do método” (BACHELARD, 1972c, p. 42).
55

determinado modelo de ciência,a ciência newtoniana-euclidiana – modelo de saber


superado pelas descobertas de Einstein. Em tal modo, como demonstrara Gonseth, a lógica
de Kant não pode ser considerada como a lógica do objeto qualquer. Ao contrário, trata-se
de uma lógica que só se aplica a certos objetos, àqueles existentes na vigência do sistema
de mundo newtoniano.
A lógica kantiana não se aplica aos objetos da ciência contemporânea, é inadequada
à teorização dos corpúsculos - micro matéria ou ondas de elétrons - objetos da física
quântica ou da microfísica. A mecânica quântica não se estrutura, segundo o parâmettro
deste a priori gnoseológico. Portanto, admite-se com Bachelard que Kant não nos dá a
chave de todo e qualquer objeto, e nem mesmo de todo e qualquer conhecimento.
Bachelard (1994a) propõe a escolha de uma filosofia aberta, que saiba dizer “não”
aos sistemas totalizantes do passado. Ao mesmo tempo, convida os cientistas a evitar
elementos subjetivos em suas pesquisas. Para o pensamento científico contemporâneo, o
mundo no qual pensamos não é o mesmo no qual vivemos. Em A filosofia do não (1940), o
pensamento rompe relações com as obrigações da vida.

Romper com o objeto […] significa dispensar o que existe de sorrateiramente


subjetivo. Aqui, pensar contra, contradizer, significa levantar-se explicitamente
contra uma objetividade que, emprenhando-se de subjetividade, perdeu sua
verdadeira natureza de objeto e, consequentemente, seu valor científico
(POULET, 1965, p.3).

A filosofia do não é uma reorganização do saber, na qual, como já referido, novos


sistemas complementares englobam aquilo que negam. O autor aborda a microfísica,
considerada como uma nãofísica clássica. Em sua evolução, as ciências físicas teriam
superado os princípios de sua própria fundação, obedecendo à necessidade de
reformulações teóricas, capazes de justificar as conquistas da pesquisa. A teoria microfísica
indicaria, além da experiência, uma região de “transcendência empírica”.
O elétron enquanto fundamento da realidade traduz a audácia metafísica do
pensamento que supera o kantismo, estabelecendo o noumeno como guia da pesquisa.
Quem, senão a filosofia, ousaria propor tais aventuras ao espírito científico?30. A
metodologia científica mesma exige a renúncia aos próprios hábitos e lógicas, abrindo

30
Na opinião de Dagognet (1986), toda a obra bachelardiana converge para o racionalismo aberto, com suas
constantes conversões e mudanças prospéticas.
56

caminho para uma pedagogia de ruptura e uma dialética da descontinuidade. Bachelard


(1994a) defende uma semântica nova, que promova o aparecimento da consciência dos
múltiplos significados e das estruturas variáveis. Portanto, é necessário liberar-se dos
velhos hábitos do pensamento e romper com o determinismo cerebral, em direção a funções
psíquicas abertas. São benéficos os educadores “psicanalizados”, afirma Bachelard (1994a),
que saibam aprender enquanto ensinam, que estejam dispostos a rever, sempre que preciso,
o próprio saber: a educação não aristotélica dá origem a funções espirituais que estimulam a
atividade criativa do pensamento. Logo, a ciência contemporânea conduz o espírito ao
exercício de mudanças: os novos rumos da ciência - relatividade, teoria quântica e
mecânica ondulatória – representam a reforma do velho saber, fundado sobre a lógica
aristotélica, a geometria euclidiana e a física newtoniana.
Os estados geométrico e dinâmico da mesma partícula atômica, por exemplo,
representam proposições incompatíveis, verdadeiras se isoladas, não verdadeiras se
reunidas. Assim, na teoria torna-se fundamental a instituição de uma nova lógica que
supere o princípio de verdade e falsidade das proposições da lógica clássica. Bachelard
(1994a, p.129) defende a noção de uma “educação à deformação”, uma fé na transformação
radical da psyché e da natureza humana como superação dos princípios da psicologia da
forma. Não há mais necessidade de verdadeiro e falso, mas sim de abertura à pluralidade de
interpretações que permitam ao cientista a tomada de consciência de sua liberdade
metafísica. A evolução científica requer este pluralismo racional para progredir. O sistema
da razão absoluta não satisfaz mais as exigências metodológicas da teoria. Na ótica desta
nova proposta filosófico-epistemológica torna-se inteligível a disponibilidade à inclusão, no
campo do estudo, de teorias opostas.
O estágio de desenvolvimento da mentalidade científica, na época de Bachelard –
após as grandes inovações das primeiras décadas do século XX – ao superar a estrutura
unívoca do saber, exigia a capacidade de compreensão de teorias diferentes, mediante a
modificação das regras do raciocínio. Nosso autor – citando Jean Louis Destouches,
pesquisador das condições de coerência lógica entre teorias diferentes e, em oposição a
57

Poincaré31 – afirma que a síntese lógica de teorias inconciliáveis requer uma modificação
espiritual profunda32:

Destouches coloca o pensamento científico contemporâneo diante de um dilema:


ou conservamos a unidade espiritual, tomando por contraditórias teorias
divergentes, confiando no futuro que decidirá que, ao menos, uma das duas
teorias opostas era falsa, ou senão, unificaremos as teorias opostas, modificando
como conveniente, as regras elementares do raciocínio, que parecem ser
solidárias com uma estrutura invariável e fundamental do espírito
(BACHELARD, 1994a, p.142).

Com Aristóteles, a lógica formal nos ensinava a pensar. Na vigência da nova


ciência, a razão inventa ou cria as novas categorias para o pensar, gerando contradição com
o modelo tradicional de conhecimento da realidade. A razão aprende a contradizer-se e a
afirmar-se com mais vigor devido a seus erros. A nova razão científica se contradiz, e em
suas contradições confirma-se como força de pensamento, adapta-se à reflexão
epistemológica. A razão torna-se madura o bastante para decidir mudar suas próprias leis:
se não for mais oportuno para seu progresso pensar em determinado modo, a ciência exige
um pensar diferente e cria novas categorias aplicativas.
A atualidade da cidade científica não permite mais a afirmação de uma lógica
universal que nos ensine como pensarmos. Agora é a ciência mesma que nos mostra de que
forma a razão está pensando, pois as duas instâncias, ciência e razão, são históricas, vivem
e se afirmam no panorama da historicidade.
A ciência à qual Bachelard (1994a) aplica seu saber abala notoriamente os
princípios da velha lógica aristotélico/tomista/cartesiana. Tome-se como exemplo o
conceito tradicional de substância, superado pela noção de corpúsculo como novo modelo
explicativo da física quântica, um princípio do conhecimento sem delimitação espaço-

31
Henri Poincaré (1854-1912), físico-matemático francês, que participou ativamente do debate epistemológico
de sua época sobre a interpretação das novas teorias científicas (relatividade einsteiniana e física quântica),
opõe à fundação puramente lógica de entes matemáticos (logicismo de Peano, Frege e Russel), a sua
concepção intuicionística da matemática (fundada, portanto, sobre dados intuitivos), considerando a realidade
uma cômoda convenção, apta a representar relações, entre o que, de outro modo, seriam considerados entes
inacessiveis. Além disto, teorias científicas não seriam em si verdadeiras ou falsas, pois formulações
conceituais são meramente convencionais, permitindo a organização dos fenômenos. Suas teorias, por
conseguinte, desqualificariam qualquer procedimento científico puramente lógico ou, por “meras” definições,
tornando inaceitável a ideia destouchiana da unificação de teorias opostas, através de uma modificação de
regras no raciocínio humano.
32
Ponto de convergência com os estudos bachelardianos sobre a metafísica do imaginário.
58

temporal, sem identidade específica e, sobretudo, sem substância. Com tal conceito, a física
teórica encontra-se bem além do velho substancialismo. Até mesmo Kant admitia a
substância como categoria do nosso modo de pensar. Enganava-se, porém, ao considerar a
obrigatoriedade de pensarmos, sempre utilizando tal categoria.
Bachelard e a física de sua época rejeitam tal obrigação. Einstein constrói toda a sua
física sem recorrer à noção de substância. Ao contrário, a ideia de substância tornou-se um
obstáculo para o pensamento epistemológico contemporâneo e Bachelard usa o termo
“desubstancialização” como um novo parâmetro de pensamento que encontra respaldo na
prática científica, sobretudo no domínio das micro-partículas.
Em Bachelard (1972c, p.16), a questão das múltiplas dialéticas acena à
possibilidade de uma lógica da razão contraditória. E mesmo sem justificar a frequente
referência a ambiguidades, contradições e antinomias, estas parecem sugerir uma
fundamental “dinâmica da contradição” do ser e do real, lembrete da “fecundidade do
negativo”, pois o espírito que diz não à anterioridade institui novas aberturas e
possibilidades. Em tal modo, rompendo com as noções tradicionais de “absoluto” e de
“identidade”, o autor afirma a noção de saber como “convergência de múltiplas dialéticas
retificadoras”, radical indefinição que torna inteligível uma pluralidade de interpretações da
realidade33.
Um breve ensaio, originalmente publicado em 1936, na revista parisiense
Inquisitions, O Surracionalismo34, traduz a principal implicação em torno da noção
bachelardiana de uma razão transformada, renovada, ou melhor, retificada – consequente às
conquistas teóricas de Einstein, Heisenberg, de Broglie e outros, citados anteriormente. O
aflorar desta nova razão funda, simultaneamente, a urgência de uma revolução espiritual,
única habilitada a transgredir as leis do raciocínio lógico tradicional, subvertendo-as e
instaurando novos esquemas de possibilidades para o pensamento desta nova objetividade
físico-científica. Tal implicação é tácita: transformações nas regras do raciocínio requerem
33
BACHELARD (1972c, p.16) “Na verdade, não importa em qual época, temos dificuldades a instalar-nos
numa posição puramente racionalista. Quando combatemos erros, direta e vigorosamente, não rompemos
completamente com seu princípio. Existe, portanto, na base de uma atividade polêmica, uma ambiguidade
essencial”.
34
Inserido, adequadamente, na abertura da coletânea póstuma, organizada por Canguilhem, em 1972, com o
título O compromisso racionalista: L’Engagement rationaliste, Paris: PUF, 1972.
59

uma nova configuração do espírito, um novo pensamento da subjetividade que,


reformulando-se, em uma nova capacidade de compreender e de sentir, pensa a si mesma,
assim como ao próprio objeto de pesquisa, segundo novas modalidades, sui generis, ou
mesmo contraditórias. Revoluções do pensamento exigem revoluções espirituais:

E, no entanto, para pensar, quanta coisa há primeiro que desaprender! E então,


virar o racionalismo do passado do espírito, da lembrança para a tentativa, do
elementar para o complexo, do lógico para o surlógico, eis algumas tarefas
indispensáveis para uma revolução espiritual [...] em suma, é preciso devolver à
razão humana sua função de turbulência e de agressividade. Contribuiremos
assim para fundar um surracionalismo que multiplicará as ocasiões de pensar
(BACHELARD, 1972c, p.7).

Opondo-se, portanto, ao exercício da razão enquanto princípio de um conhecimento


imutável e absoluto, próprio dos lógicos formalistas, o surracionalismo atribui-se o dever
de praticar novas dialéticas, ensinando, junto às geometrias múltiplas, a revolução da razão
mesma: dois motivos suficientes à exaltação de uma revolução espiritual.
Neste sentido, considerou-se relevante analisar, nesta tese, o tema das contradições,
dicotomias e ambiguidades, que não se superam jamais, e que devem, portanto, ser tomadas
como aquilo que na verdade são. Ou seja, conforme aspectos estruturais da realidade e
também como constituição original da dinâmica do pensamento predominante em
Bachelard, seja no âmbito científico, que se acaba de ver, seja naquele da estética, que será
visto a seguir.
O autor propõe uma superação ideal da contradição, na realização da felicidade do
repouso, na repercussão ou no ecoar, entre autor e leitor, das imagens poéticas. Mas se trata
aqui de uma conquista da interioridade que desenvolve a capacidade de aceitação, realizada
na intimidade da mesa de leitura ou de trabalho, modalidade bachelardiana de existência
máxima. A aceitação da ambiguidade aponta para o espírito, em si mesmo contraditório, a
felicidade como possibilidade de repouso nas imagens literárias.
Neste ponto, este estudo concorda com o parecer apresentado pelo prof.
Wunemburger, durante palestra proferida em 2009, na Puc-Rio. Naquela ocasião, ao propor
uma releitura da psicopatologia, segundo um novo modelo ternário, deixando
definitivamente para trás o superado enquadramento binário (razão e loucura/ saúde e
doença), Wunemburger (2009), em vôo de grande síntese, resolve o que é denominado a
questão da androginia, abordando a unidade como um fato originário, como o ponto
60

interno e intermediário de equilíbrio entre opostas polaridades. A unidade está na tensão


que une os contrários, pertence ao sistema da oposição, não está fora dele, mas é inerente à
dinâmica mesma da oposição.
Não se trata então de tentar superar os contrários numa unidade externa ou posterior
a eles, deve-se, ao contrário, mudar os parâmetros de nosso raciocínio lógico polarizador,
para compreendermos esta unificação que existe já no centro da linha de tensão que une os
opostos, polarizando-os.
Neste ponto cabe ressaltar que a própria questão da ambiguidade, na perspectiva de
sua solução wunemburgeana, constitui tema ainda não tratado por nenhum, dentre os vários
e principais comentadores do pensamento de Bachelard, nacionais e internacionais,
consultados em nossa ampla pesquisa. Confirma-se, portanto, a originalidade da abordagem
desta dinâmica de contradições, como procedimento metodológico utilizado pelo autor nas
duas vertentes de sua obra. Acreditando-se, entretanto, que o pensador deva ser
compreendido de forma autêntica em sua totalidade, procura-se abordar a poética como
uma espécie de consequência das conquistas teóricas realizadas no âmbito epistemológico,
ou seja, como referente à exigência da racionalidade quântica, em promover a abertura de
novas possibilidades do pensar.
Embora afirme em Le matérialisme rationnel, de 1953, a dinâmica de oposições
como princípio metodológico, Bachelard (1990) jamais dedicou o necessário
desenvolvimento teórico a este procedimento dicotômico. Será, então, intuito deste estudo
demonstrar o procedimento bachelardiano por ambiguidades e antinomias, transitando pela
duplicidade de sua alma, visando evidenciar, em sua obra, o confronto de contrários como
método de análise e definição de conceitos.
O binômio instante e ambiguidade, tematizado no breve artigo: Instant poétique et
instant méthaphysique, de 1939 possibilita a vivência estética de polaridades antitéticas,
fundando uma analogia de dinâmicas fundamentais para a compreensão das antinomias
presentes na nova ciência da época. O confronto entre termos contrários harmoniza-se
também com o sentimento fundamental de ambiguidade e dicotomia, inerentes à própria
subjetividade. Na polaridade de luz e treva, conceito e imagem, ciência e poesia, surge uma
rara confissão pessoal:
61

Acabo de viver, durante uns doze anos - período que Bachelard dedica à
35
elaboração dos cinco volumes cósmicos - todas as circunstâncias da divisão do
materialismo entre imaginação e experiência. E esta divisão [...], pouco a pouco,
impôs-se a mim como um princípio metodológico (BACHELARD, 1990, p.17).

Tal divisão é apontada como principal responsável pela oposição radical entre um
materialismo imaginário, ou seja, o devaneio da matéria formulado nos citados volumes, e
o materialismo inerente à ciência, por ele denominado instruído. Seguindo esta dinâmica de
oposições, torna-se possível distinguir elementos da “convicção humana” atribuíveis, por
um lado, aos sonhos e imagens; por outro, à razão e à experiência.
O presente estudo tem, portanto, como objetivo, demonstrar que a utilização da
dinâmica de contrários constitui em Bachelard um método de trabalho. Em campo
epistemológico, a dialética de oposições ou dinamismo de antinomias, tomado como
hipotético procedimento metodológico, evolui devido à urgência mencionada, manifestada
nas experimentações da nova microfísica, de uma consideração capaz de dar conta dos
frequentes aspectos contraditórios inerentes a uma mesma realidade: pensamos, novamente,
na aporia ínfima de uma partícula, realidade primária do mundo subatômico, que,
contrariando o tradicional Princípio de Identidade, é, ao mesmo tempo, onda e substância
molecular, matéria e energia. A partícula atômica adquire sua configuração definitiva
somente a partir da determinante observação subjetiva.

35
Os volumes cósmicos são: La psychanalyse du feu (1938), L’eau et les rêves, essai sur l’imagination de la
matière (1941), L’air et les songes, essai sur l’imagination du mouvement (1943), La terre et les rêveries de
la volonté, essai sur l’imagination de la matière (1948) e, La terre et les rêveries du repos, essai sur les
images de l’intimité (1948).
62

2 DINAMISMO DE TRANFORMAÇÃO NO IMAGINÁRIO POÉTICO

Todo esboço de mudança e transformação surge inicialmente no domínio do


devaneio poético, onde o psiquismo, continuamente, renova suas imagens. [...] É
pela imagem que se produz a mudança.
Gaston Bachelard. L’air et les songes

Ao serem traçadas neste capítulo as linhas de força da imaginação poética, será


mantido o enfoque sobre a indicação de oposições, contradições e ambiguidades que guiam
esta análise em geral. Em tal modo, discutindo polaridades no âmbito da poética, tem-se
como objetivo geral, neste capítulo, a demarcação de um campo do imaginário como
terreno de novidades e conquistas do bachelardismo, indicando assim o novo método de
abordagem estética, disseminado pelo Bachelard voraz ledor de livros, seja na leitura da
poesia, seja na atividade crítica que desenvolve em literatura e nas artes plásticas. Em
ambas, rejeitando a mera compreensão conceitual, o autor sugere o “consentimento” a um
envolvimento pessoal - mais profundo e emocional do que uma simples primeira leitura -
que daria, então, acesso ao autêntico devaneio sonhador da imaginação criadora.
Em modo específico, um primeiro item será dedicado à caracterização da aventura
simbólica que, entre cosmicidade e metafísica, imerge Bachelard no devaneio de imagens
poéticas dos quatro elementos, matéria primordial da natureza, conduzindo-o enfim à
afirmação de uma primitividade andrógina do ser, cuja polaridade se encontraria espelhada
nas duas vertentes mesmas de sua obra filosófica. Veremos a noção de transubjetividade da
leitura abrir o espaço da interioridade, no qual o ser mesmo do leitor, vivenciando valores
arquetípicos de sua própria contingência, funda o contato profundo consigo mesmo, como
ocasião de retomada e ascese.
O segundo item abordará, então, a questão dos quatro elementos e da matéria, como
ocasião de manifestação da ambivalência e de polaridade que mina o conceito de
univocidade perfeita do ser, cujo autêntico estatuto ontológico, mais que em termos
absolutos, parece concretizar-se nos moldes do aperfeiçoamento in fieri, praticado nos ritos
da obra alquímica. No terceiro item, em sintonia com a pesquisa poética do último
Bachelard, será concluído o capítulo, com o aprofundamento temático do fogo enquanto
signo de transmutação, que parece reger todo dinamismo vigente na oposição de
polaridades. Em tal modo, afirma-se, pois, a integração de ambiguidades – do ser e do
63

mundo – como êxito concreto da comoção estética que nos liberta, portanto, do vínculo
atávico ao real, segundo moldes clássicos de uma relação unívoca e monista, exclusiva de
qualquer alteridade.
Ambiguidades e divergências aparecem, então, ao longo desta exposição, como
ingredientes fundamentais ao novo procedimento estético metodológico inaugurado por
Bachelard que, desprezando a redução da criatividade ao rigor conceitual do intelecto
analítico, nos guia em mergulho profundo no domínio das imagens, em busca de
significações inéditas, geradas a partir da potência de criação semântica do imaginário,
função nobre da mente ou consciência humana, o que será visto aqui desdobrar-se na
imaginação de novos sentidos de nossa realidade.
Entretanto, na argumentação deste estudo, ou seja, ao se discutir ambiguidades e
polaridades no âmbito da poética, ao procedimento metodológico escolhido não deverá
interessar tanto a definição precisa e rigorosa de conceitos quanto a tentativa – menos exata
em termos lógicos, porém, mais profícua no que concerne aos objetivos de nossa reflexão –
de circunscrição do ambiente de ideias derivantes da hipótese lançada sobre a filosofia
bachelardiana, enquanto domínio intelectual em fermento sob vigência de um pensamento
polarizador e dicotômico, que evolui por sucessivas oposições e contrariedades, em
permanente embate contra os rigores do monismo mental do qual padece a civilização.
Em tal modo, o confronto de múltiplas probabilidades traça, na Obra do filósofo,
um ideal de comprometimento com procedimentos aptos à promover abertura e pluralidade
nos registros que ativam a criatividade da consciência humana. Portanto, o principal
instrumento do método que mais se adapta à presente pesquisa será a descrição mesma dos
momentos nos quais a questão das ambiguidades polarizantes é abordada no pensamento de
Bachelard. Assim, empregando um método que evita definições prévias e exatas, pode-se
assistir ao fervilhar semântico instaurado pelo procedimento bachelardiano, dialogando
diretamente com seus escritos. A ausência de definições resulta então proposital. É quase
um requisito para se ingressar no universo de oposições e ambivalências que desencadeiam
o pulular de novos significados e realidades, no reino imaginário da criação estética.
O que se apresenta não será o desenvolvimento de implicações conceituais, mas o
brotar de sentidos e significados pertinentes à hipótese levantada no contexto mesmo da
novidade, vista como fruto da imaginação, que traduz também o núcleo central da
64

investigação bachelardiana sobre a potência criativa da imaginação poética, segundo o


pensamento elaborado deste estudo. Procedendo de outra maneira, certamente se arrisca a
perda do núcleo, incerto e fugaz, de todo o ponto de vista aqui defendido.
Este indeterminismo radical, que faz o mestre de ambiguidades reivindicar,
concomitantemente, seja a inteligibilidade do imaginário, seja o caráter criativo da
mentalidade científica, é o ponto a partir do qual se toma o impulso para refletir sobre um
conjunto de temas relativos aos seres metamórficos que somos. Com este fim, será utilizada
uma seleção de citações que conduzem à individuação de um núcleo de argumentações,
centrado na questão da ambiguidade, que, porém, foge à objetividade da disputa entre
conceitos precisos, já que este procedimento adotado por este estudo, invés de camuflar ou
contornar, servirá para tornar ainda mais evidente o modus reflexivo bachelardiano, que
nem sempre segue o encadeamento rigoroso de juízos lógicos e racionais, com o qual
procederia a abordagem dos mesmos problemas, nos moldes tradicionais do pensamento
filosófico. Aqui serão vistas emoções conceitualizarem-se sob a intuição criativa de
Bachelard, o que torna verdadeiro também o inverso, ou seja, conceitos subvertem-se em
emoções e sentimentos da subjetividade mesma.
Abre-se, portanto, na presente pesquisa, o imenso arco de corolários derivantes
todos do radical embate de contrários investigados em sua função estratégica como base de
novidades e dinamismo no domínio de um fundamental método de progresso do
pensamento filosófico que foi visto, portanto, evoluir em miríades de dialéticas que,
incansavelmente, Bachelard funda, nomeando-as conforme a contingência de cada
momento de suas análises, ao longo de toda sua Obra.
Tal procedimento de eleição, por parte do filósofo, institui por si só a notável
complexidade de perspectivas teóricas, com a qual deverá confrontar-se o estudioso que
pretenda investigar a questão das ambiguidades e polaridades em Bachelard, no momento
de construir o fio de Ariadne que possa conduzi-lo através dos obstáculos que se interpõem
ao projeto de recavar sistematicidade propícia à compreensão de escritos que, por outro
lado, exigem o abandono dos instrumentos tradicionais com os quais procedem análises
acadêmicas rigorosas, seja no domínio da racionalidade, seja naquele da imaginação. A
investigação de uma metodologia que, por certos aspectos, subverte ou abandona percursos
rígidos, fixados pela prática de uma milenar lógica do raciocínio, no momento mesmo em
65

que erige a abertura a novas aventuras do pensamento – como bússola da produção


intelectual – desafia o investigador a fazer o mesmo, ou seja, a buscar novas modalidades
de abertura do pensamento, novos modos de pensar diferente. Sem esta atitude de
renovação dos parâmetros mesmos da pesquisa, se arriscaria perder o tesouro escondido nas
entrelinhas da obra bachelardiana, a saber, o tema das polaridades como chave da
complexidade deste autor.
Na proposta do tema deste trabalho, percebe-se a exigência de superar o
encadeamento ortodoxo de ideias, estrutura que certamente manifestaria certa precariedade,
considerando que a presente tarefa convoca ao confronto entre polaridades, a saber, no caso
específico, convoca a conceitualizar imagens e, vice-versa, a imaginar conceitos. A atrativa
das digressões contínuas atenta contra a teórica ordem da reflexão. Contornada a
dificuldade, resta catalogar estímulos e oportunidades comprometidas com a proposta de
uma nova metodologia de investigação do campo imagético, no qual o frequente confronto
com o negativo funda uma dinâmica de abertura à novidade que nos remete à significação
de transcendência. Em última análise, trata-se de contrariar o tradicional procedimento do
espírito que evolui sobre significações unívocas de conceitos absolutos, invertendo a rota
para uma incerta construção do devir como destino mesmo do pensamento e da
humanidade.

2.1 Primitividade e transubjetividade

Entretanto, se a proposta deste estudo, por um lado, parece atentar contra a precisa
ordem do raciocínio lógico, por outro lado, ela nos insere num só golpe na vibração
profunda da complexidade bachelardiana, que pulsa em torno da ideia de primitividade da
imagem e do ser, noção com a qual Bachelard manifesta a oportunidade de despsicanalizar-
nos, desnaturalizar-nos, desfilosofizar-nos, tornando-nos acolhedores às vibrações e
repercursões de uma nova realidade. Logo, no que concerne à fundamental noção de
primitividade, pode-se notar que José Ternes (2003, p.115), em sua leitura do Lautrémont
bachelardiano, define a imaginação sonhadora e literária, segundo a caracterização
engendrada por suas funções de risco e imprudência, ao mesmo modo sui generis, em que a
razão humana se caracteriza por suas funções de turbulência e agressividade. Para Ternes,
66

seriam essas as qualidades que melhor traduzem o espírito de toda Obra de Bachelard,
convergindo à mesma exigência de uma relação viva e fecunda com a ancestralidade do ser
e do saber, coligando, portanto os níveis onto e gnoseológicos de uma origem que
incessantemente se renova, seja em sua polarização objetiva, como imagem, seja naquela
subjetiva, como sonhador acordado.
Nestes termos, pode-se pensar que a ideia de primitividade surge de uma abordagem
da poesia enquanto metafísica instantânea36 que, por sua vez, propõe a visada da imagem
poética como princípio sem causa, como autonomia absoluta, sem passado nem futuro,
como significação arquetípica de um simbolismo afetivo que eclode no instante mesmo da
comoção causada pelo poema. A Arte nos conduz ao lugar primordial de nosso ser (1992a,
p.98). Além disso, ocorre ressaltar que o instinto agressivo lautreamontiano, enquanto
afirmação das bases arcaicas da vida, ou mesmo, como impetuoso modo de ser da
linguagem poética, ao mesmo tempo em que rejeita inércia e conservadorismo, afirma o
dinamismo da estrutura primária do ser e do conhecimento, qualidades que assumem papel
fundamental na hipótese aqui formulada para um estudo do bachelardismo.
Na dissertação de mestrado37, foi demonstrado que Bachelard reconhece sua dupla
natureza na polaridade de sua alma. Androginia que, aceita, guia o ser à contínua mutação,
como sua dimensão originária. Nisto o poeta é representante da natureza humana, enquanto
único capaz de persistir em estado de metamorfose permanente, situação esta que é própria
ao ser das 24 horas, protótipo da antropologia bachelardiana, que admite o indivíduo
inteiro: diurno e noturno, racional e poético.

Afirma-se então a poética cósmica enquanto percurso capaz de desvelar o ser


mesmo como mutante, ambíguo, ambivalente e contraditório. Um ser mutante, uma
individualidade in moto, que se torna íntima a si mesma, meditando oposições, como por
exemplo, entre expansão e intimidade, entre mergulho e ascese. Faça-te centro, Fais-toi
centre, é o lema bachelardiano de resistência naquilo que é caracterizado como o eixo
polar da tensão criativa. Como resultará adiante, a filosofia cósmica de Bachelard,

36
BACHELARD, G. (1939). Instant poétique et instant métaphysique in: L’intuition de l’instant,
Paris:Stock, 1992.
37
CARVALHO, J. M.de. O devaneio cósmico e o conhecimento de si. Gaston Bachelard: da alma poética à
androginia da alma. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Universidade Federal do Rio de Janeiro/UERJ,
2007.
67

enquanto devaneio elementar sobre a matéria primordial da natureza, converte-nos ao


dinamismo de um ser que retoma a si mesmo, aceitando-se ambíguo.

A totalidade do individuo mutatis mutantis está no alternar-se continuo que, sem


jamais resolvê-las, integra polaridades. Somos uma obra que emerge, superando-se, em
constante reformulação. Portanto, o envolvimento dinâmico, no perene fluxo de contrários,
resultou, como fundamental modus operandi bachelardiano.

No capítulo anterior sobre epistemologia, já houve oportunidade de mostrar como a


dupla formação de Bachelard, qualificando-o como cientista e como filósofo - razão última
de sua alma androgina - o tornou mediador na crise de renovação do saber científico de sua
época. Como um tradutor, ele transportou as novas teorias dos laboratórios de física e
química para o campo da discussão filosófico-epistemológica. Foram qualificadas então as
duas vertentes do autor como espelho mesmo no qual se reflete a característica andrógina
comum a toda humanidade.
Um trajeto de abismos e vetas conduz Bachelard à confissão de sua alma ambígua e
andógina, ensinando-nos, por conseguinte, que somos múltiplos e somos mutantes. Somos
uma multipolaridade contraditória, em constante reformulação. “Diante de um só objeto, o
sujeito sente sua multiplicidade” (DR, 236). A abertura desta subjetividade, maleável e
flexível, às transformações propostas pelo devir, constitui, na visão desta tese, a condição
de possibilidade, ou mesmo, a pedra fundamental de todo estudo sobre o imaginário
bachelardiano dos elementos cósmicos.
O aspecto mais entusiasmante e, por outro lado, intrigante, da filosofia de Gaston
Bachelard é, sem dúvida alguma, a proposta que existe em suas entrelinhas de uma
perspectiva na qual movimento e dinamismo, e suas consequentes novidades, surgem como
chaves de acesso ao seu pensamento como um todo. É o dinamismo que instaura a
novidade. A propulsão ao movimento conduz, continuamente, todas as coisas a
contradizerem-se, permitindo constantes aberturas de novos pontos de vista sobre o real,
que subvertem, com frequência, parâmetros e concepções do passado. Por isto, é indicada a
oposição entre termos e características dos temas abordados, assim como suas polaridades e
ambiguidades, como notas distintivas de uma dinâmica metodológica em constante
reformulação, de uma verdadeira pedagogia da mutação, diga-se assim, pois, longe de
68

evitar transformações, o novo procedimento metodológico e pedagógico de Bachelard, cuja


caracterização constitui o principal objetivo deste trabalho, conduz a realidade mesma à
busca de seu devir.
Dito isto, convém notar que, neste modo de ver, qualquer abordagem da poética
bachelardiana deve iniciar pela superação do maior risco que sobre ela incumbe, ou seja, o
risco de uma leitura fragmentaria e parcial e portanto incompleta. Com isso, afirma-se o
interesse e empenho em desenvolver uma análise que faça jus à noção de um pensamento
aberto, defendido em toda a obra do filósofo. Para tanto não se poderia prescindir de uma
reflexão, mesmo que breve, sobre a duplicidade de almas do autor, noção que se revelará
como nota determinante no desenvolvimento mesmo de todo arco de seu pensamento
complexo.
A novidade metodológica bachelardiana anuncia-se nos termos de um
“procedimento por ambivalências”, verificável no âmbito do exercício de reflexão fundado
em oposições e antinomias que, em modo paradoxal, promovem a unidade do pensamento
filosófico a partir do dinamismo de tensão que, opondo termos contrários, instaura, pois,
entre os mesmos uma ligação caracterizada pelo sentido de permanência irremediável.
Quando a imaginação se deixa capturar por duas qualidades opostas, surge na
poética a oportunidade de comoção íntima e de reconhecimento do logos literário que se
desdobra sobre ambivalências e contrários, nos quais a alma e o coração do leitor podem
espelhar suas próprias antíteses e contradições. Assim acontece com as imagens de um rio,
que furioso em suas corredeiras, transmite violência, ou em seu fluxo lento e macio mostra
a paz do repouso. Assim também o imaginário do fogo devasta florestas com impiedade
vulcânica ou acalenta tenros e ternos devaneios de lareiras domésticas.
Nesta abordagem, investiga-se o panorama de uma subjetividade ambígua e em
contínua reformulação, vibrante entre polaridade e androginia, no eixo de dualidades que,
constituindo o indivíduo, é recavado por Bachelard no binômio junguiano das noções
antitéticas, mas complementares, de Anima e animus, cujo embate é atenuado pela
consideração das noções em estado de dualidade complementar, como uma unidade
dualista. Por outro lado, Ionel Buse, filósofo bachelardiano croata, afirma que a androginia
não reside na síntese, mas na coexistência dos contrários (BUSE, 2004, p.51):
69

Anima e animus funcionam como par de contrários no inconsciente de cada


indivíduo. Cada homem trás em si a imagem do eterno feminino, assim como
cada mulher trás uma marca do masculino. “O inconsciente mantém em nós essas
potências de androginia” (BUSE, 2004 p.47).

O raciocínio andrógino seria então mais uma artimanha de um método descrito em


A água e os sonhos, como “esperteza e imprudência”, como estratagema útil na fronteira de
um saber que se subtrai diante do rigor de certezas lineares. François Dagognet (1986, p.47)
afirma que, em Bachelard, ambivalências e conflitos resumem-se todos em movimento,
dinamismo e metamorfose. Mas como seria possível pensar que tanta mudança possa
desembocar numa metafísica do repouso? Ou seja, como conciliar dualismo, metamorfose e
transmutação com repouso, tranquilidade e solidão? Talvez, recorrendo ao paradoxo
enunciado no fragmento de Heráclito: “É no movimento que as coisas se repousam”. Ou
talvez, apelando à introdução de As palavras e as coisas, onde Michel Foucault (2002) cita
Borges, cuja extraordinária taxinomia (ou classificação) de animais, numa enciclopédia
chinesa, revela os limites do nosso pensamento – o mesmo – sugerindo os encantos de um
“outro” pensamento capaz de abraçar aquilo que resultaria impossível, na ótica do mesmo.
O polifilosofismo bachelardiano guia em direção a esta abertura a significados
múltiplos, à garantia não mais do cogito, mas do cogitamus a uma conceitualização mais
aberta e sobretudo mais livre. O “espírito e coração se reconciliam, completando-se”
(BACHELARD, 1992, p.57). Ou seja, ele ensina a conviver com a ambiguidade e mostra
que rupturas e contradições são oportunidades para que novos saberes superem velhas
ilusões. Marly Bulcão, emérita teórica de Gaston Bachelard no Brasil, afirma a este
propósito:

É necessário abandonar preconceitos, deixar de lado posturas tradicionais e


buscar nos textos bachelardianos a originalidade polifilosófica de seu
pensamento, no qual posturas consideradas antes, como contrárias e excludentes,
deixam de ser, então, antagônicas[...]. Assim, dialética significa recusa do
absoluto, relativização da razão que mostra todo saber como relativo (BULCÃO,
2009, p.64).

Ao deformar em tal modo o esquema lógico de fundação empírica do conhecimento,


o filósofo afirma, em última análise, a prioridade da reflexão abstrata sobre a percepção,
70

fundando portanto o que anunciamos como procedimento bachelardiano de ambivalências,


método sui generis aqui hipotizado e que encontra convergência temática com a proposta
do eminente especialista bachelardiano, da universidade de Lyon, Prof. Jean-Jacques
Wunemburger38, de um modelo ternário em psicopatologia que insere um ponto de
equilíbrio na oposição entre razão e loucura, entre saúde e doença. A unidade seria então, o
fato originário da oposição, no fluxo que reúne em seus extremos polaridades opostas.
Assim, mudando os parâmetros do raciocínio lógico polarizador, um outro tipo de
pensamento, não tradicional, abre-se à noção ambígua de uma unidade intrínseca à
dualidade existente na tensão mesma que, polarizando-os, une os opostos.
Mesmo uma primeira leitura de textos bachelardianos surpreende em suas infinitas
referências a termos indicativos de dialéticas, polaridades e contradições. Foi o que, in
primis, sugeriu a este estudo o Dinamismo de polaridades como trajetória profícua para
uma investigação sobre a metodologia específica do pensamento de Gaston Bachelard.
Trata-se do desafio de tecer uma racionalidade imaginária, ou uma inteligibilidade do
percurso imagético, utilizando os instrumentos de uma imaginação racional, para
demonstrar um procedimento sui generis de pensar por ambivalências cujo motor principal
se encontra nas dicotomias, ambiguidades, contradições e antinomias frequentemente
referidas pelo autor. Um caminho de opostos, uma metodologia de contradições, enquanto
filosofia do não. Assim, a reflexão filosófica traduz o dinamismo de um psiquismo
andrógino, de um pensamento que rompe com la tradição para renovar-se e progredir. O
dinamismo de polaridades, como procedimento de um pensar originário refletido nas duas
vertentes do autor, põe em ato uma revolução espiritual que, após Bachelard, multiplicaria
as ocasiões de pensar da contemporaneidade.
Jean Lescure (1983), amigo e comentador de Bachelard, narra que o dinamismo
intrínseco à vida filosófica foi tema dos últimos cursos de Bachelard na Sorbonne dos anos
50. Por outro lado, a filha de Bachelard, Suzanne, confirma em nota de rodapé, em
Fragmentos de uma poética do fogo (1988), a intenção do autor de desenvolver
ulteriormente o tema do hermafroditismo da Fênix. Logo, dinamismo e androginia
enlaçam-se na última reflexão do filósofo como temas significativos.

38
WUNEMBURGER. Palestra proferida na Puc-Rio, Rio de Janeiro, 2009.
71

A poética do devaneio (1960) diz que “a idealização, por obra da função do irreal é
o que doa dinamismo à vida” (BACHELARD, 1993a, p.50), o que nos conduz à dialética
de projeções idealizantes39 presentes na mesma obra, como eixo do amor andrógino
descrito por Balzac, em Séraphitus-Séraphita, romance filosófico ao qual Bachelard dedica
interessante análise. Também em O direito de sonhar se conhece simultaneamente o
masculino e o feminino na linguagem sem censura do devaneio, onde a dualidade mesma
instaura uma dinâmica de idealização projetiva ou projeção idealizante dos valores de
virilidade/feminilidade, que ao se constituirem em realidade psíquica concreta, promove a
intuição de si próprio enquanto ser andrógino:

Incessantemente, o inconsciente murmura e, ouvindo tais murmúrios,


compreendemos sua verdade [...] um homem e uma mulher falam na solidão de
nosso ser [...] E no devaneio livre falam para confessar seus desejos, para
comungar na tranquilidade de uma natureza dupla bem afinada (BACHELARD,
1993a, p.49-50).

A primitividade andrógina do psiquismo humano, ambígua herança junguiana,


constitui a fundamental alteridade do ser, na obra poética madura de Bachelard. Tal
dualidade, porém, não manifesta conflito ou antagonismo; ao contrário, nossa androginia
primordial é harmoniosa. Além disso, ao confessar a descoberta de sua alma ambígua e
andrógina, Bachelard refere-se, frequentemente, à retomada de si (redressement), conceito
fundamental enquanto possibilidade de instaurar uma mutação, uma transformação na vida
que nos é própria.
Os signos decisivos dessa transformação individual encontram-se no volume
póstumo, Fragmentos de uma poética do fogo (1988), que reúne anotações sobre três mitos
do fogo enquanto paradigmas da alteridade humana. Seguindo tal dinâmica do psiquismo
mítico, com Empédocles me destruo, resgatando-me, na desobediência de Prometeu, para
renascer feníceo.
Uma imensa variedade de temas girava em torno ao núcleo da ambiguidade
andrógina, que Bachelard ousou erguer à possibilidade do ser, instaurando, solidamente, a

39
O pintor pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti sintetiza em seu quadro: How they met themselves, o tema bachelardiano
deste ser hermafrodita apaixonado. O quadro refigura o encontro de dois casais de amantes, numa imagem
extraordinariamente em sintonia com a mecânica da idealização amorosa bachelardiana. Em suma, o autor argumenta que
ao apaixonar-se, o indivíduo, já em si mesmo duplo de Animus e anima - masculino e feminino – projeta o ideal de um ser
amado, que por sua vez também encarna a mesma duplicidade. Logo, diz Bachelard (1993a, p.51) “mesmo só, sou
quatro”.
72

incerteza como alicerce ontológico do real. Desprovidos de absoluto, somos seres


andróginos e ambíguos: eis aí uma definitiva conquista para a reflexão da
contemporaneidade. Conceber a dinâmica da consciência como radical androginia equivale
a afirmar o hermafroditismo da alma como alternativa, seja ao monismo da mente, seja a
polaridades em ruptura.
François Dagognet (1960, p.41) diz que a androginia da imaginação significa
ausência de separação. É, portanto, a androginia o que nos faz completos. A dualidade
bachelardiana nos integra e nos religa, instaurando a totalidade entre os circuitos polares da
consciência que, ao invés de dicotomizar, definitivamente seus termos os reúne em
coincidentia oppositorum, no fluxo mesmo que os opõem enquanto contrários, numa
irreconciliável bipolaridade.
Gagey (1969) dizia que todo leitor consciente de Bachelard deve indagar-se sobre
o que acontece ao ser no percurso do imaginário. Avança-se então a hipótese de que o
bachelardismo enquanto caleidoscópio mutante de infinitas possibilidades mostra que o ser
pode recomeçar-se, ele sabe como retomar a si próprio, como transformar-se. E
conhecendo-se ambíguo, termina por aceitar-se contraditório. Esta seria a nova realidade
ontológica do ser que aprende, assim, a fundar-se enquanto totalidade constituída por
oposições e negações, por múltiplas contrariedades. Ao individualizar-se, constrói para si
mesmo um novo ser, como coincidência ambígua de toda oposição.

Portanto, na convergência de polaridades que representa o ser humano


bachelardiano, somente uma pedagogia de ambivalências (GAGEY, 1969, p.78) pode
articular o pluralismo de perspectivas como saber andrógino constituído bem mais por
dúvidas do que por certezas. Será o teu destino de filósofo aquele de encontrar tua claridade
em tuas contradições íntimas? Estaria você condenado a definir teu ser através de suas
hesitações, suas oscilações, suas incertezas? (BACHELARD, 1993b, p.244)

Na perspectiva destes saberes múltiplos, incertos, enquanto radicalmente


aproximativos e sempre em vias de progresso por autossuperação, pode-se reconhecer a
ideia de um radical de indeterminismo na ordem mesma dos princípios do saber que se
impôs, in primis, ao epistemólogo, enraizando-se sucessivamente no âmbito da poética,
onde floresceria como lei do ser enquanto realidade polar focalizada sobre a figura do poeta
73

como protótipo dessa humanidade votada a existir sempre em estado de permanente


transformação.

Tal subjetividade maleável, comprometida com as transformações decorrentes de


um contato estreito com a própria interioridade, bem se adapta às exigências do método
bachelardiano, de leitura em profundidade ou “segunda leitura”, com o qual Bachelard,
propondo o comprometimento direto do leitor, toca o abismo de nosso ser duplo e sugere a
descida em nossa caverna sombria. Em tal modo, o devaneio poético ensina a imaginar,
proporcionando ao leitor a possibilidade presente de sonhar-se diferente do que é. Uma vez
aberta a opção dos sonhos de mudança íntima, surge simultaneamente a mola de
transformação como novidade e aprimoramento do ser. Um grupo de breves citações
bachelardianas servirá para qualificar-nos como a metamorfose ambulante que somos:

Acreditávamos que iríamos ver um universo, mas é o coração do homem, o


coração obscuro com seus sofrimentos que está no centro de tudo (1993b, p.149).
Se me observo, je est un autre (1993b, p.235).
Conheço-me naquilo que de mim abandono (...) Só conseguirei me descrever
como sou se disser o que não quero ser (...) só aparecerei com clareza a mim
mesmo como soma de minhas renúncias (...) meu ser é minha resistência, minha
reflexão, minha recusa (...) é pela renúncia que o mosteiro é uma comunidade (...)
sou o limite de minhas ilusões perdidas (1970, p. 96/97)
Transformando a matéria, nós mesmos nos transformamos, pois o espírito sabe
construir-se e reconstruir-se. (1994d, p.37)

A disponibilidade do leitor em expor-se à imagética de acontecimentos


desconhecidos torna-se revelador de uma anti-identidade móvel, de superação permanente.
Em La terre et les rêveries du repos, Bachelard (1992b) afirma que, sob a influência das
imagens, penetramos em nosso próprio mistério, através de uma meditação que é mergulho
na profundidade do ser. Nisto é vista a confissão do projeto do imaginário cósmico dos
quatro elementos, a saber, uma seleção de imagens que desvelam mistérios da interioridade,
promovendo o contato com a penumbra da alma, ao guiar o rêveur para dentro, para o
centro de si. “Ao se contemplar, em seu elemento favorito como em um espelho, o
sonhador se esforça para coincidir consigo mesmo” (FELÍCIO, 1994, p.63). Tal meditação
tende a transformar todo externo em espaço interior, antecipando a exata função do
devaneio alquímico.
Coligada à apresentação da mutabilidade do ser, ressalta-se uma primeira definição
dentre outras a sererem indicadas, apresentada pelo filósofo, de sua própria arte, vista aqui,
74

igualmente, em termos de dinamismo: (1996c, p.66): « A filosofia começa onde o filósofo


filosofiza a si mesmo, quer dizer, se consuma e se renova. O ser se liberta dando-se o
destino da chama ». Filosofar significa, portanto, deixar-se consumar para renovar-se,
donde recavamos que transformações espirituais ocorrem no attimo mesmo da leitura.
(1996c, 112): “O espírito aprende a reconstruir-se na tensão diante de um texto rigoroso »,
pois é o pensamento que nos exercita ao devir.
Em verdade, sabe-se que o filósofo exalta a renovação humana como doloroso
percurso através de uma dialética de fracassos e penas que ao nos tornar Fênix de nós
mesmos, nos faz consciência de cinzas. Ao mesmo modo, D’Annunzio, que ele cita, afirma:
“O ser totaliza-se no instante de sua perda”. Visto que o devaneio poético é mestre de
contradições, Dagonet (1986, p.51) sugere que as dialéticas, sempre múltiplas, possuem,
portanto, a mesma dificuldade a resolver:
assumir a contradição, ao invés de cancelá-la (...) as grandes imagens vivem de
contradições flagrantes (...) a racionalidade deve elevar-se até aos excessos da
expressão delirante ou exuberante. Deve viver a ruptura das significações que o
poeta opera audaciosamente (Dagognet, 1986, p.51).

Revela-se aqui o papel fundamental da contribuição que Bachelard recebe de Freud


e de Jung: “A psicanálise convoca o ser a viver fora das tocas do inconsciente, a entrar nas
aventuras da vida, a sair de si mesmo. Existe uma rêverie do caminho” (1994c, p.29). Neste
cenário de contínuas transformações, a poesia surge como metafísica instantânea, na qual o
autor harmoniza ambivalências e contradições, traduzindo assim o segredo de uma alma.
Vê-se então toda a pesquisa bachelardiana sobre o imaginário convergir para a busca do
autêntico, mesmo se sempre provisório, saber de si enquanto eixo do universo poético do
devaneio.

Sonhando a profundidade, sonhamos nossa profundidade. Sonhando a virtude


secreta da substância, sonhamos nosso ser secreto. Mas os maiores segredos de
nosso ser escondem-se de nós mesmos, lá onde estão, no segredo de nossas
profundidades (1992b, p.51).

Compreende-se então que todos os textos poéticos são autobiográficos:

Toda grande filosofia é a autoconfissão de seu autor e uma espécie de mémoire


involuntária e despercebida (NIETZSCHE, Para além do bem e do mal).
75

É de nós mesmos que o escritor nos fala[…]comunicamo-nos com o escritor, pois


nos comunicamos com as imagens guardadas no fundo de nós mesmos (1993a,
p.168).

A imaginação, irredutível à percepção sensível, é invenção de um sentido novo, é


abertura à mudança subjetiva, é o espaço da liberdade. Logo, o devaneio seria, por
definição, a atividade inovadora da consciência com a qual, no percurso de imagens
poéticas, o ser retoma a si próprio, transforma-se, se conhece ambíguo e, portanto
contraditório. E conhecendo-se pelo que é, em seu permanente vir a ser, aprende a fundar-
se enquanto realidade precária, individuação inexata, sempre in fieri e toujours nouvelle.
Neste sentido, “Todo ser possui sua fogueira secreta” (1996c, p. 170)  que permite
experimentar os deslocamentos – déplacements – próprios à linguagem do poeta, cuja
liberdade afirma valores de impulso vital e de uma perpétua superação, centrais ao
psiquismo propulsor de novidades e inventor de surrealidades.
Considera-se então a inexorável autonomia e liberdade do devaneio como fonte de
metamorfose e de elevação do ser. O voo onírico, descrito em L’air et les songes, é a
realização deste instinto de leveza, um dos mais profundos do ego. A elevação ou ascese
torna-se o sonho de uma vida instintiva, que através da palavra inserida numa poética do
excesso, inflama-se contra o conformismo retórico. O espírito deve, portanto, desenvolver
funções psíquicas abertas, fundamentais para a experimentação da total e irrestrita liberdade
de pensamento, em vigor no devaneio do imaginário poético. Abre-se, pois, no jogo de
instantes, o destino de sermos aquilo em que nos tornamos. “Eis-me aqui, então, uma
matéria de dúvida (matière de doute), uma matéria de dualidade que fermenta, pesada e
leve, conforme se enriqueça ou se evapore. Em mim, meditante – alegria e estupor – o
universo vem contradizer-se” (1993b, p. 235).
“Où suis-je, moi qui suis?”, pergunta-se o pensador, sugerindo a existência, no
mundo das imagens, de uma espécie de cogito subterrâneo, com o qual: “Nos escondemos
de nós mesmos”, mas que ao mesmo tempo serviria também para “descermos em nosso
próprio mistério”, revelando-nos. Paradoxalmente, aquilo que nos esconde é também aquilo
que nos revela. Nesta rede de citações e sugestões, tecida por este estudo, Bachelard refere-
se com frequência a tarefas que parecem definir a existência humana como esforço
permanente de retomada, (1992a, p.6): “[...] desenhar, com a história subjetiva de nossos
erros e de nossas culpas, o modelo objetivo de uma vida melhor e mais clara”.
76

Alude assim à tarefa de reerguer-se após cada experiência de perda, fracasso,


frustração, recompondo, em perene devir, fragmentos instáveis de subjetividades mutantes.
Bachelard instaura, como eixo do imaginário literário, a noção de arte poética como
exercício transformador de si no devaneio. Ascese aqui não significa renúncia a si, mas ao
contrário, é uma transfiguração do sujeito que permanece consigo mesmo. Afirma-se assim
a noção de filosofia simultaneamente como arte terapêutica e como estilo de vida. O que
remete à possibilidade bachelardiana de uma maneira de ser essencialmente estética, a
partir da consideração do devaneio poético como uma prática de si, um mergulho no
exercício transformador dos sonhos literários.
Bachelard exalta Mallarmé como precursor da ideia de poesia como ruptura de
nossos hábitos poéticos (1993b, p.157), poesia como vibração ontológica, pois (1993b,
p.158): “na alma do poeta, é o ser mesmo que cresce e diminui, se abre e se fecha, desce e
sobe”. Trata-se de uma atitude de renovação ou retomada da individualidade nas aventuras
poéticas no devaneio cósmico-literário. Pelo mesmo viés, a poética bachelardiana se afirma
como experiência transformadora da instável identidade do leitor ao tornar-se exercício ou
prática de si no devaneio. Quando participamos de uma imagem nova, que reflete em si o
dinamismo do cosmos, nos tornamos seres despertados pela profunda transformação
espiritual que sobrevém no silêncio da razão e na escuta da própria interioridade. Eis aqui a
lição do ledor, sonhador acordado: (1994d, p.59-60): “Entrar numa noite efêmera para
aprender a dinâmica do despertar”, pois: (1996c, p.112): “Todo devir do pensamento, todo
futuro do pensamento, encontra-se na reconstrução do espírito”.
Nesse âmbito – como será visto ao se tratar do mito de Empédocles – se o autor
arrisca queimar-se no fogo, na água, decididamente mergulhará, afogando-se, qual Narciso.
Para tomar impulso bem no fundo e ressurgir em voo livre no vértice aéreo das alturas, de
onde, repercorrendo o eixo de verticalidade, tornará aos devaneios da terra, confrontando-
se, de um lado, com as durezas e molezas do livre exercício da vontade e do outro, com os
espaços interiores da intimidade e do repouso, mantendo-se em estado de consciência
sonhadora, mas desperta, ao longo de todo o percurso.
Traço fundamental do bachelardismo é o impulso à permanente evolução, à
incessante dinâmica de elaboração e transformação da realidade. Neste âmbito, a trajetória
de devaneios, traçada nos cinco volumes cósmicos, mantém uma mesma finalidade
77

primordial, a saber: suscitar uma tomada de consciência individual. “Nos reencontramos


penetrando em nós mesmos” (1992a p.100).
Entretanto o autor confessa, nos anos 50 (1994d), que costumava ler de modo
errado, exclusivamente para acumular ideias, até compreender que imagens literárias
possuem vida própria e autônoma. Surgiria desta intuição a noção de leitura em
profundidade de um texto já lido em primeira abordagem, com olhos de racionalidade, em
estado de Animus. Voltando a debruçar-se sobre o mesmo poema, a alma pode deleitar-se
numa leitura tranquila e vagarosa, atenta aos sinais de mudança que, por vezes, escondem-
se entre as palavras.
A segunda leitura se faz em estado de Alma, na cadência de um tempo que não é
mais aquele das rápidas conexões gramaticais e semânticas, mas sim o tempo interior do
devaneio, que ama surpreender-se com novos significados de uma mesma frase, numa
disponibilidade ao inesperado que torna acessível ao leitor o resgate da complexidade de
valores estéticos e metafóricos envolvidos no fato literário: “Tenho a melancólica
impressão de ter aprendido, escrevendo, como deveria ter lido. Tendo lido tanto, gostaria de
reler tudo” (1992b, p.58). Por outro lado, a leitura lenta da alma busca a transubjetividade
da literatura, no superamento de si, através de imagens compartilhadas com o autor na
interseção de existências poéticas:

Em comunhão com as imagens dos poetas, faço-me só com a solidão dos outros.
Eis aqui então a imagem simples, o rêveur está na sua mesa, acende seu lampião,
sua vela. Então me recordo e me reencontro: sou o guardião que ele é. O mundo é
para mim, como para ele, o livro difícil iluminado pela chama de uma vela
(1996c, p.53).

Gagey (1969) confirma esse reencontro consigo na experiência de leituras solitárias,


descrevendo imagens poéticas como trajetórias em direção ao sujeito mesmo. Reencontro
que também traduz confronto com sofrimento e angústia. E Bachelard confessa seu
desassossego. Admite, em intimidade com seu leitor, a contingência humana das derrotas e
fracassos que o acomunam a todos, revelando por outro viés a mesma instável e delicada
fragilidade originária do ser.

Quando todas as experiências estão feitas, quando todos os livros estão lidos,
quanto é triste a carne! (1996a, p.192).
78

O homem morre pela dor de ser um homem, de realizar cedo e sumariamente


demais sua imaginação e por esquecer enfim, que poderia ser um espírito (1968,
p.21).
Para estarmos totalmente a sós, não deve haver muita luz. Devemos manter um
pouco de sombra ao nosso redor (1992b, p.193).

Exaltando a dimensão do silêncio, Bachelard confessa sentimentos de uma universal


inquietação:
A solidão é necessária [...] pondo-nos diante de nós mesmos, a solidão nos
conduz a falar conosco, a viver desse modo uma meditação ondulante que
repercute em todo canto suas próprias contradições e que tenta infinitamente uma
síntese dialética íntima. É quando o filósofo está sozinho que ele melhor se
contradiz (1993b, p.244).
O verdadeiro silêncio é aquele da alma: retorno à solidão do ser, onde o dormente
se recolhe, se reconhece e se conhece; então as palavras do pensador dirigem-se a
si mesmo: fique calma, oh minha dor! (1994d, p.56). 
Conheço muitas vertigens. O vazio me atrai e me assusta (1996c, p.53-54).

Ao mesmo tempo, porém, em inversão bipolar, o filósofo admite que: “Se à noite
experimentamos o sentimento de termos fracassado em nossas vidas, com o surgir do sol,
podemos renascer”  (LESCURE, 1983, p.192). Como se sabe, o êxito deste percurso é a
conquista de uma solidão feliz, na tranquilidade do repouso. Entretanto, para os casos de
desequilíbrio em psiquismos sofredores, Bachelard prevê, como devaneio terapêutico, a
sugestão de uma imagética rítmica que reintegre nossas ambiguidades, restaurando com
poemas os ritmos polares do dinamismo vital:

É necessário curar a alma que sofre através de uma vida rítmica, de um


pensamento rítmico, liberando a alma das falsas permanências, das durações
malfeitas, desorganizando-a temporalmente (1972a, p. X).
No abismo subterrâneo de nossos sonhos, após uma queda longa e lenta, sentimos
o movimento inverso, dinamicamente dialetizado que nos reergue (1993b, p.159).
Experimentando, na vida poética, o dinamismo dialético vigente entre contrários,
o ser torna a vibrar ao transcender o paradoxo das imagens que acolhem em si
movimentos contrários (1993b, p.162).
Nos transferimos à raiz do ser dinâmico ao assumir a imaginação paradoxal de
um movimento que quer o próprio contrário. Só a imaginação poética
experimenta tal paradoxo (1993b, p.161).

Visando caracterizar a ambiguidade que reside na noção de subjetividade defendida


por Bachelard, este estudo tenta derivar das frequentes confidências do filósofo um arco de
valores adequados à realização do humano destino de superação, bem delineado através das
notórias noções de surracionalité, surrealité e surhumanité que, em última análise,
manifestam-se como tarefas do sonhador autêntico. As mesmas que, vibrando com sua
79

natureza instável, assumem a configuração de uma ética sui generis, uma ética de
sentimentos e de intimidade, cuja abordagem, devido à especificidade do tema da
metodologia por oposições, será adiada para uma próxima oportunidade. A ambígua
polaridade, ínsita no âmago mesmo da individualidade, que se busca caracterizar aqui,
funciona na economia da obra poética de Bachelard como o principal motor de novidades,
o que vale dizer, de transformação subjetiva. É porque somos ambíguos e polares que a
contínua mudança se abre qual destino para a humanidade.

2.2 Ambivalência elementar e aperfeiçoamento alquímico

O próximo passo contempla, portanto, a tentativa de individuar temáticas que


proporcionem coligar os dois momentos acima referidos. A saber, o momento de
intimidade, de contato do leitor consigo mesmo, com suas ambiguidades camufladas, cujo
modelo é a confissão bachelardiana sobre a própria bipolaridade Anima et Animus; e o
momento de afirmação da mutação permanente como dinâmica de sua identidade, em
tensão com polos de alteridade, que tem por protótipo a etérea transformação do leitor em
criador.
Parte-se da noção de alquimia, que ao propor o espelhamento entre ser humano e
cosmos – ambos envolvidos nos ciclos metafóricos de transmutações – parece indicar, pois,
à individualidade seu destino de mutação e evolução. Na crítica que faz (1996a) à
pseudociência dos séculos precedentes à revolução einsteiniana, o savant da epistéme
nutriu-se nas transmutações de essências da alquimia, tendo lido, provavelmente, este
destino humano de evolução por mutação no espelhamento metafórico recíproco, na
polaridade que vige entre universo e singularidade – ambos em estado de moto contínuo –
no circuito das transmutações alquímicas. Desse modo, invertendo protocolos do
pensamento, aquilo que num âmbito se caracterizara como argumento de negação, ou seja,
alquimia como não ciência, migrando ao campo poético, torna-se estatuto ontológico,
afirmação princeps da natureza in fieri do ser, do dinamismo de abertura à novidade e à
mudança, que em modo permanente transforma antagonismos em mola de renovação da
subjetividade.
80

A investigação alquímica parte de uma pergunta fundamental que situa no cerne da


questão das polaridades e contradições existentes, em moto dialético, na intimidade do ser:
"Como poderia o alquimista purificar a matéria, sem antes purificar a própria alma?”
(1996a, p.50). Na busca pela concentração e pureza da substância, a mutação alquímica
alcança, em sucessivas destilações, significado de via mestre ao renascimento espiritual
ocasionado na prática do laboratório alquímico pelo confronto entre aspectos conflitantes,
vistos enquanto opostos, seja no interior das substâncias, seja na intimidade do alquimista
em virtude do mecanismo de espelhamento visto em ação entre micro e macro cosmos. O
Athanor ou alambique é o espaço da metamorfose substancial, espelho de mutações
pessoais.
Debruçando-se sobre velhos tratados alquímicos, Bachelard (1992b) revela o
segredo da purificação do espírito na transmutação da matéria, sugerindo por intermediação
da alquimia um procedimento metafórico de askésis, como progresso e evolução da alma.
Buscou-se notícia sobre tal questão na obra Alquimia, de 1961, do estudioso suíço
florentino Titus Burkhardt (1996), que confirma que a finalidade da Alquimia, ars regia, na
realização de sua Obra, é a exaltação do ser eterno e a revelação da realidade espiritual que
reside no mais profundo da alma, como o “mais que humano”, ao qual nos habituou
Bachelard.
A verdadeira obra alquímica se realiza, portanto, dentro do alquimista que renega a
separação entre espírito e matéria, entre mundo sensível exterior e o mundo suprassensível
da interioridade. Burkhardt (1996) esclarece que os procedimentos empíricos de
cristalizações, fusões e calcificações metálicas são meros símbolos operativos, são a
evocação ou expressão simbólica de um processo interior que concerne à natureza espiritual
da condição humana, são reflexos das mutações internas de uma alma.
Portanto, a alquimia é a arte da transfiguração da alma, arte que não concerne,
porém, a uma estética exterior, mas que tende a fazer renascer a alma do artista. “O
processo interior, revelado na transformação metálica, é expresso “somente em símbolos,
metáforas e imagens, para que somente santos, sábios ou almas iluminadas possam
compreendê-los” (Sinésio, filósofo platônico de Alexandria, séc. IV). A doutrina refere-se,
portanto a núcleos de tensão dialética entre signos antitéticos. Valores novos que eclodem
da oposição entre corrupção e geração da matéria. Atraído pela mística da purificação
81

alquímica, que se subtrai a qualquer interpretação puramente racional, Bachelard (1992b)


vislumbra na prática do alquimista o arquétipo da fundamental identidade mutante, da qual,
em breve, faria-se arauto.
Considerando a realidade alquímica como trompe-l’oeil do que jaz na interioridade
da substância, renova-se o comprometimento de Bachelard com o convite ao mergulho, ao
qual alude Rilke: "Vocês olham para fora, ao exterior, mas isso, sobretudo, é o que agora,
não devem fazer. Ninguém pode lhes aconselhar e ajudar, ninguém. Existe um só caminho.
Penetrem em si mesmos".
Além disso, a afirmação que o mestre Brunschwicg repetia: "Tudo está em tudo",
não faz senão convalidar, na alquimia, a consideração do dinamismo bipolar de reflexos
recíprocos entre natureza humana e universo. E Bachelard faz-se, então, filósofo do
universo, (1994d, p.28): "Os espetáculos do universo ilustram os mistérios da natureza
humana". Resulta claramente que sua poesia cósmica ilustra mistérios da natureza humana.
Logo, se eventos cósmicos são metáforas de nossa intimidade em seus sete volumes sobre
os quatro elementos primordiais, Bachelard (1949,1997,1994b,1996b,1992b,1996c,1988)
mostra estágios de aprimoramento da interação entre natureza e humanidade.
Nosso destino de transcendência, refletido e refletente a partir dos fenômenos
cósmicos, vem a ser subsumido na lei do dinamismo que constitui o eixo mesmo da
verticalidade universal. Em tal modo, a digressão alquímica nos reconduz à noção de
interioridade enquanto locus de metamorfose permanente, inegável condição do ser no
mundo que recebe enfoque centralizador no projeto bachelardiano, através da proposta de
uma nova antropologia que contempla o novo ethos do ser humano, capaz de abraçar a
condição de ambivalência, ou melhor, de plurivalência da humanidade na tensão bipolar de
identidade e alteridade.
Sob o impulso do dinamismo de superação e ascese, o indivíduo, ao perseverar em
sua natureza instável e antitética, encontra aí mesmo estímulo para proceder à revelação de
seu devir de sobrehumanidade. “para ser efetivamente um espírito, é necessário que o ser
humano seja uma vontade tensa em direção a seu destino, uma vontade de regeneração.”
(1993b, p.130), pois “O destino dos homens é solidário com uma ação de transcendência”
(1993b, p.133).
82

Na convergência dos campos de pesquisa, a imagem poética emerge na consciência


como produto do coração, da alma e do ser do homem. Afirma-se como prática de mundos
interiores, ao longo de percursos imaginários que instituem valores artísticos e poéticos
como guias de superação, aliados à definição do filosofar como estudo dos inícios. Um
começar que traz consigo a consciência do inextinguível direito de recomeçar. Em Le droit
de rever, a filosofia é tomada como a ciência das origens eleitas. É o ato íntimo de um
sujeito plástico em sua ação de renovação. Sujeito que recusa, resiste e inventa a si mesmo,
aplicando o poder do espírito que dialetiza toda unidade (1993b, p.235):

Qual bizarra característica do pensamento filosófico, qual estranho caminho dos


filósofos onde todo ponto é encruzilhada? mesmo ao progredir, o pensamento
filosófico dobra-se sobre si mesmo (1993b, p.234).
Só conseguirei me descrever como sou se disser o que não quero ser. Sou a soma
de minhas renúncias. Meu ser é minha resistência, minha reflexão, minha recusa.
Sou o limite de minhas ilusões perdidas (1970, p.96).

O destino bachelardiano de autossuperação e de transcendência, ressalta o pensar


mesmo, como ocasião de renovação interior. Seja no devaneio, seja retificando objetos
inteligíveis. Simultaneamente o sujeito também se renova, retomando-se, diverso do que
era. É dessa mudança na interioridade que jorra a criação de novos valores e realidades.

Em modo mais intuitivo, a ambivalência bem amarrada, revela-se através de seu


caráter temporal: ao invés do tempo masculino e valente que se lança rompendo
amarras, ao invés do tempo doce e submisso que chora arrependido, eis aqui o
instante andrógino. O mistério poético é uma androginia (1993b, p.226).

Tendo visto a questão da disponibilidade à transformação interior como motor na


criação de novidades, passa-se à individuação de pontos nevrálgicos de ambiguidades e
bipolaridade. Assim como de tensão entre identidade e alteridade, nos volumes de
metafísica cósmica que Bachelard dedicou – de 1938 a 1948 –, ao estudo da poética dos
quatro elementos naturais, ampliando em tal modo o tema da oposição dualista – como
gerador de novas instâncias no psiquismo – à sua significação universal. Quer dizer,
coligando humanidade e mundo circunstante através da imaginação material e do devaneio
poético que se aplica a sonhar enigmas do fogo, da água, do ar e da terra, fundando um
pensamento filosófico em termos de estética criadora, que abraça nossa ancestralidade mais
fundamental, elementar mesmo, por assim dizer, “Psíquicamente, somos criados e limitados
83

somente por nossos sonhos. São eles que desenham os últimos confins de nosso espírito”
(BACHELARD, 1972b, p.181).
Poderá se ver assim que ao inaugurar seu trajeto poético no imaginário cósmico
primordial, Bachelard não perderá oportunidade de inventar e exaltar oposições – como
princípios explicativos – nesse primeiro ensaio – daquilo que viria a constituir seu primeiro
passo na renovação da filosofia estética. Aliás, esta também usufrui do confronto entre
homem e universo como situação propícia à profusão de imagens sobre as potências
elementares. Segue-se, brevemente, a fluência na qual ele apresenta seus devaneios
inspirados na natureza, para recolher exemplos de polaridades dicotômicas utilizadas com o
intuito de gerar clareza ou comoção.
Logo na abertura de La psychanalise du feu (1972b), seu autor nota que: “Se aquilo
que se modifica lentamente se explica através da vida, aquilo que se modifica depressa é
explicado pelo fogo” (1972b, p.19). Como se pode ver, muitas vezes a divergência se
apresenta em fatos simples do quotidiano, como nesta ocasião em que o autor confronta a
mudança lenta com a mudança rápida, opondo o lânguido e duradouro escorrer do tempo de
uma vida à fúria voraz e imediata com a qual o fogo extingue as matérias às quais adere:

O fogo é íntimo e universal [...]. Entre todos os fenômenos é ele realmente o


único que pode aceitar as duas valorações opostas: o bem e o mal. Brilha no
paraíso. Arde no inferno. É doçura e tortura. É calor doméstico e apocalipse. É
prazer para a criança que se senta com juízo à lareira; no entanto, castiga qualquer
desobediência de quem pretende brincar demasiado perto das chamas. É um deus
tutelar e terrível, bom e mau. Pode contradizer-se: é, portanto, um dos princípios
de explicação universal. É tolerância de julgamento que aceita as mais flagrantes
contradições (BACHELARD, 1972b, p.19).

A longa citação introduz à sequência de contrariedades lógicas e de oposições


polares, que serão recolhidas aqui para – através da frequência com a qual o autor lança
mão desta inusitada estratégia pedagógica – evidenciar o recurso metódico e persistente de
Bachelard à dinâmica de embate entre forças contrárias como procedimento teórico de sua
reflexão. Após polarizar intimidade, domesticidade e universalidade, bem e mal, doçura e
tortura, prazer e castigo, tutela e terror, ele formula o princípio que, neste modo de ver, rege
toda a dinâmica de opostos que serve como alicerce à sua obra: o fogo torna-se princípio de
explicação universal devido à evidente capacidade de contradizer-se.
84

Ocorre aqui ressaltar dois aspectos fundamentais deste princípio: por um lado, o
intrínseco e cativante movimento das chamas surge já como motor que rege todo
dinamismo. O próximo item retomará essa caracterização da dança ígnea como origem de
transformação e evolução. Por outro lado, a menção a um princípio explicativo
contraditório contraria e repulsa, rigorosamente, toda e qualquer formulação lógica das leis
do raciocínio.
É possível reconhecer, porém, que não se trata de um juízo inconsequente e
irresponsável. Pois, acima do espanto causado pelo surpreendente e destemido conceito de
um ente que, por mérito de sua própria contraditoriedade, se erguer qual princípio
universal, afirma-se a suspeita de que tal temeridade intelectual, na verdade, funde-se sobre
um antigo axioma explicativo da racionalidade ocidental. Trata-se do princípio de que os
similares explicam-se reciprocamente40, portanto, qualquer contradição poderia encontrar
esclarecimento em algum outro fator contraditório. Afirma-se, pois, o aspecto contraditório
fundamental da realidade mesma, ou do universo – se faltassem razões para afirmarmos tal
contradição universal, bastaria relembrar o devir como destino de corrupção de toda criação
– atenua-se o escândalo da razão pelo fato de que um ente também contraditório, ou seja, o
fogo, possa em qualquer modo – ou melhor, em força dessa semelhança – dar razão àquilo
que por si só permanece inexplicável, a saber, a própria realidade universal.
Debruçando-se sobre antigos textos médicos do século XVIII, o filósofo cita tenras
tolices substancialistas, camufladas como ciência, sem deixar de observar que, apesar da
total ausência de argumentos com sentido objetivo, o texto convence, pois totaliza a força
de persuasão do médico e a força insinuante do remédio. Eis que a oposição entre
objetividade e falsa convicção serve como ocasião de demarcação dos obstáculos que
devem ser combatidos para que o saber científico afirme sua objetividade. Portanto, mais
um exemplo de bipolaridades mencionadas no discurso filosófico, com a intenção didática
de esclarecimento do argumento tratado.
Sua busca pela presença inconsciente do elemento ígneo no espírito do savant – na
caça ao obstáculo à renovação do discurso e prática da ciência, que, como se sabe,
terminará por submetê-lo à sua fascinação – parte do aceno a mais uma dualidade. Neste

40
(1992a, p. 98) “No domínio da razão, basta aproximar dois temas obscuros, para que se sobreponha a
claridade da evidência. Então, com o antigo mal compreendido, criamos uma novidade fecunda”.
85

caso, será o respeito infantil pelo fogo que se verá divergir em dois polos: o respeito
natural, instintivo, resultante de um reflexo, e o respeito ensinado, fruto de uma proibição
convencional social. Segundo Bachelard, na origem do conhecimento infantil do fogo, o
que faz a criança retirar o dedo da chama é a repreensão dos mais velhos, logo, é a
proibição que toma posição, antes mesmo da ação do instinto. Entretanto, logo em seguida,
o autor admite a interferência dos dois fatores, natural e social, que colaboram na origem do
conhecimento infantil do fogo. Primeiro chega a palmada dos pais, fundamento do respeito
infantil pelo encanto elementar, que, porém, “castiga sem ser preciso queimar” (1972b,
p.24). Em caso de desobediência, com a dor, intervém o instinto de afastar o dedo da
chama. O reflexo natural, portanto, é posterior.
E aqui se vê intervir, de novo, a experiência do negativo, que instaura a
ambiguidade no domínio do conhecimento. Ouçam-se as palavras do filósofo: “A
experiência natural só vem depois, para fornecer uma prova material inesperada e obscura
demais para dar lugar a um conhecimento objetivo” (1972b, p.24). Deduz-se, pois, que a
prova da qual se poderia esperar maior esclarecimento e entendimento sobre a questão do
brotar do conhecimento infantil do fogo, é, ela mesma, obscura demais para constituir-se
em saber operativo. Trata-se de uma prova duvidosa, uma prova que nada prova. De
qualquer forma, nota-se que a origem do conhecimento pessoal que se tem sobre este
elemento é atribuída, então, à confluência de dois fatores. Por um lado, o fenômeno natural
instintivo e, por outro lado, as implicações sociais ou proibições, decorrentes das
experiências primitivas com o fogo, como, por exemplo, a prevenção de incêndios e
queimaduras.

Além disto, nestas páginas de 1938 (1972b) encontra-se também uma primeira
menção àquilo que nas anotações da edição póstuma de 1988, Fragments d’une poétique du
feu, servirá para configurar o “Complexo de Prometeu” enquanto aventura da maturidade,
conquistada através da mítica desobediência. Em tal modo, atribui valor positivo a uma
experiência com forte conotação de negatividade: “A criança quer fazer como o pai e qual
pequeno Prometeu, rouba-lhe os fósforos e corre para o campo, onde acende sua primeira
fogueira” (1972b, p.7). Na narrativa bachelardiana, esta primeira fuga infantil, levando a
caixa de fósforos para o campo – que aliás, como dito, determina precocemente um
temperamento ígneo – adquire força expressiva ainda maior, porque à criança camponesa
86

que “conhece esse fogo que arde entre três pedras” é contraposta à criança metropolitana,
“criança da cidade, que nunca provou ameixas silvestres assadas ou lesmas na brasa” e que,
portanto, crescerá “alheia ao Complexo de Prometeu” (1972b, p.25).

Voltando a atenção ao que se pode chamar de arquitetura do texto bachelardiano,


percebe-se que ambiguidades polares, por vezes, manifestam-se também sob forma de
construção labiríntica41. Neste caso, a construção abissal se dá quando Bachelard, ao
afirmar que a psicanálise do conhecimento objetivo traz consigo a vantagem de possibilitar
o “exame de uma zona menos profunda do que aquela onde se manifestam instintos
primitivos” (1972b, p.26), institui no discurso uma zona intermediária à dualidade entre
inconsciente e pensamento científico.

Este espaço de intermediação, interno à dicotomia entre ciência e inconsciência, por


sua vez também se polariza enquanto domínio que manifesta, em si mesmo, a necessidade
humana de compreender através de cortes bipolares: o princípio de utilidade que rege nossa
vida prática e o desejo de intelectualidade - característica da evolução humana -, que nos
leva a “querer saber tanto ou mais do que nossos pais e mestres e ainda mais do que eles”.
Polaridades no interior de outras polaridades, que formam o cenário desconcertante de uma
ambiguidade abissal que, porém, na pena de Bachelard, sob o lume de sua chama, tornam-
se princípios de esclarecimento do seu pensamento.

Já na época de A psicanálise do fogo (1938) – portanto no momento inaugural de


sua aventura estética em campo poético, quando a elaboração teórica do devaneio e do
imaginário apresentava-se ainda em modo incipiente –, a reflexão bachelardiana começa a
apresentar frutos em forma de teoria. Discorrendo sobre a fácil atração que as metáforas
exercitam umas sobre as outras, formando núcleos de metáforas coordenadas –
sucessivamente ele as afirmará isomorfas como as imagens poéticas –, ele apresenta o
espírito poético como sintaxe de metáforas, como estrutura de linguagem simbólico-
metafórica . Um diagrama simétrico de coordenadas da imaginação. Tese arriscada que o

41
Estende-se tal artifício do pensamento estético à literatura e cinema do Nouveau Roman francês, com Alain Robe-
Grillet e Marguerite Duras, para relembrar aquilo que se denominou construction abimée, ao apresentar narrativas internas
a narrativas e projetar imagens dentro de imagens. Nesse sentido, tornou-se clássica a cena de L’année dernière à
Marienbad, na qual a câmera escorre ao longo de um corredor do palácio neoclássico, exibindo a fuga de portais, que
aparecem na projeção cinematográfica da imagem como uns dentro dos outros.
87

faz logo perceber e denunciar o risco que tais termos pudessem sugerir a imposição de uma
rede de realidade lógica à liberdade de criação poética. Sem privar-se de certo tom
ambíguo, o autor conclui que, somente quando o poema desabrochar, é que se poderá
descobrir seu realismo e sua lógica intima.

Deve-se fazer referência aqui à polisignificação dos termos grifados, pois


certamente não se trata de realismo nem de lógica tradicional, mas de um significado novo,
nascente da comoção que a obra mesma traz consigo, possibilitando o seguinte paradoxo:
“às vezes, imagens realmente diversas, que se acreditavam hostis, heteróclitas, dissolventes,
fundem-se numa imagem adorável” (1972b, p.180). Eis então que a atestação de que o
hostil torna-se adorável – conjugando antônimos –, esclarece, em perfeito modo, que o
realismo desta lógica refere-se à realidade do imaginário. É uma lógica interna, emotiva e
sentimental e não a lógica formal do pensamento convencional.
Pode-se concluir, portanto, que o realismo e a lógica íntima do poema, que se
revelam somente ao desabrochar do mesmo, referem-se certamente àquilo que Bachelard
identifica como natureza ontológica da poesia, e que acredita-se poder estender aos
fenômenos estéticos em geral, quer dizer, já que o ser de uma obra de arte se encontra em
sua qualidade de retentissement, de vibrar o mistério de sua criação, até fundar o contato
profundo com seu fruidor, seu autêntico desabrochar não pode ser senão a comoção que, a
partir da experiência artística, do encontro com a Obra ou imagem, instaura-se em sua
interioridade sensível. Tal noção foi a principal conquista que Bachelard deve à aplicação
da nascente fenomenologia ao domínio artístico, pois ao acolher o poema no momento
mesmo em que surge na mente do poeta, ele intui o vínculo essencial entre o ser da imagem
e sua função de comoção.
Mesmo se, ao serem formuladas tais conclusões, estendendo o discurso
bachelardiano, é possível notar que tal efeito estético derivante, em contexto ontológico, do
embate com a obra literária – capaz de promover transformações na individualidade do
fruidor – também será ocasião de novos paradoxos e ambiguidades no domínio da arte.
Cada mudança – em seu significado de novo conhecimento – afirma, pois, uma noção ou
estado interior antes desconhecido à subjetividade mesma em que se instaura a novidade:
“Na base das certezas íntimas de uma alma sensível e culta, resta sempre a lembrança de
uma ignorância essencial” (1992a, p.5).
88

O próprio conhecimento interior, por ser adquirido, traz consigo o sentido de culpa
original, já que toda origem traduz nosso “fracasso na glória de sermos intemporais, de não
despertarmos nós mesmos, para permanecermos nós mesmos”. Como efeito da comoção
estética interior, mudamos e evoluímos, nos transformamos. E quem nos traz essa lição de
luz é o mundo obscuro, no qual se dá o embate com a arte. O ser, porém, encontrará em si
mesmo, na própria solidão, os meios para uma retomada de si, afirma Bachelard, ao
discorrer sobre Siloe - a fonte de juventude intelectual (1992a), com a qual Gaston Roupnel
introduz sua noção de arte como redenção. Esta “faz concordar o início do ser com o início
do pensamento” (1992a, p.5), extraindo desse novo sentido de si a restauração do poder de
criação subjetivo. A dialética deste “instante de conhecimento nascente” torna-se origem da
intuição. Assim, “o mistério torna-se claro” no exato momento em que o fracasso torna-se
sucesso, ao exibir a “consciência do irracional” no fato imediato da renovação espiritual
que brota da ignorância.
Portanto, desfrutar de poemas, em estado de meditação solitária, nos recompensa
com novas e originais intuições portadoras de significação metafísica, enquanto conduz o
espírito a seu destino de evolução e superação. Mas, para isso, é necessário situar “no limiar
da leitura, o misterioso refúgio da personalidade” (1992a p.8). Nossa intimidade mais
profunda deve estar disponível à aventura que pode derivar de nossa exposição ao
retentissement do poema, dado que tal novidade da intuição só pode ser experimentada
diretamente em sua fonte e origem.
Mais adiante, apresentando seu pensamento primeiro sobre o imaginário poético,
Bachelard, entre outras imagens, indica nas figuras do surrealismo uma cintilação do
espírito que revela sua luz profunda. Seria esta a função decisiva da imaginação, a qual “de
um monstro faz um recém-nascido” (1972b). Enigma de ambiguidades que, porém,
apresenta a mesma estrutura explicativa que se está evidenciando, ou seja, uma paradoxal
divergência criada pelo embate de termos dicotômicos, anunciando que monstros do
inconsciente, refigurados nas imagens do surrealismo, no instante em que fazem brotar a
comoção estética verificada através do encanto do espectador – raptado, por exemplo,
diante dos quadros e instalações de Salvador Dalí – cria na alma ternura análoga ao afago
de um bebê.
89

A estrutura metafórica – ou diagrama poético –, origem da lógica interior que se


acaba de citar, recebe uma atribuição fundamental por parte do filósofo:

Mas um diagrama poético não é simplesmente um desenho, deve descobrir a


maneira de integrar as hesitações e ambiguidades, pois só elas nos podem libertar
do realismo, só elas nos permitem sonhar. Não se faz poesia no seio de uma
unidade. O único não tem propriedade poética. Na impossibilidade de
alcançarmos imediatamente a multiplicidade requerida, podemos utilizar a
dialética como se fosse um estrondo ou tumulto que desperta ressonâncias
adormecidas (1972b, p.180)

Assim, algo fundamental para a presente pesquisa foi alcançado. A saber, a lógica
interior ou a comoção estética, integrando ambiguidades, liberta dos vínculos com o real,
permitindo-nos aceder aos sonhos acordados da obra poética.

É a Arte que nos liberta da rotina literária e artística. Ela cura o cansaço de nossa
alma e rejuvenesce a percepção desgastada. Restitui à expressão degradada o
sentido ativo e a representação realista. Trás de volta a verdade à sensação e a
probidade à emoção. Ela nos ensina a usar nossos sentidos e nossas almas como
se nada ainda tivesse deturpado seu vigor nem arruinado sua clarividência. Ela
nos ensina a ver e escutar o Universo como se só agora tivéssemos sua sã e
imediata revelação (1992a, p. 98)

Bachelard oferece, deste modo a seu leitor atencioso, o primeiro esboço


esclarecedor do papel desempenhado pelas ambiguidades. Servem para transferir-nos além
do cotidiano, aos domínios da surrealidade, da surracionalidade. Servem para abalar a
linearidade pacata e entediante da razão que se subjuga à realidade empírica. Como um
susto criativo, a vibração que ecoa no gozo de imagens poéticas nos transforma em figuras
de uma sobrehumanidade, enquanto portadores ou praticantes desta forma de percepção
estética ampliada, mais vasta e aberta que a mera percepção sensível de contornos e formas.
Aqui se trata de Gaudio Animae, prazer ou felicidade da alma.

No capítulo dedicado à epistemologia, foi possível observar o alcance – em termos


de pensamento científico –, da crítica bachelardiana ao princípio lógico da identidade,
responsável pela estagnação do saber. No domínio do imaginário, a unidade, o único, é
destituída de qualquer qualidade poética. Não nos faz sonhar. Para isto, faz-se necessária a
polifonia de significados distintos – a multiplicidade de infinitas possibilidades do
90

simbolismo metafórico das imagens –. Para sonharmos, devemos abrir-nos ao estrondoso


tumulto decorrente das dialéticas bachelardianas, acreditando que essas, sim, possam
despertar nossas ressonâncias adormecidas.

Clara definição da dialética, que não se pode deixar de utilizar no momento


oportuno, por se tratar de um alicerce da análise que se vem desenvolvendo aqui: o
dinamismo dialético de Bachelard, em última instância, pode ser considerado como origem
ou consequência – em uma imprudente dualidade – da aplicação dos termos de oposição e
contrariedade, incumbência a se demonstrar neste estudo como motor da obra do filósofo.

Com fortes antecipações de uma elaboração teórica do imaginário poético, que


surgiria somente mais tarde, Bachelard refere-se ao poeta Armand Petitjean, que conheceu
ainda muito jovem, segundo o qual a imaginação alcança sua determinação através da
“agitação da dialética do pensamento” (1972b, p.181). Todos os embates entre sugestões
opostas, toda oposição e ambiguidade no domínio da criação são então exercícios que
aprimoram e estimulam a imaginação como fonte de devaneios. Trata-se de superar o
determinismo das regras do pensamento formal, quebrando “os impulsos da expressão
reflexa”, rompendo com as leis do raciocínio tradicional, para ascender ao reino das
metáforas de metáforas.

Segundo Petitjean, a imaginação, como mola da produção psíquica, constitui um


reino autóctone e autógeno, livre de determinações psicológicas. Como se supõe, “o
segredo das energias mutantes” (1972b, p.181) guarda em si o tesouro da criação artística.
É, portanto, este segredo aquilo que o filósofo deve buscar. Nesta direção apontam todas as
contradições e dialéticas enumeradas a seguir. É o fio de Ariadne para este trabalho, aquele
que poderá aproximar esta pesquisa ao enigma da mutação constante.

Como anteriormente indicado, o diagrama poético – ou, convém repetir, a estrutura


metafórica que dá origem à lógica interior que, por sua vez, conduz à emoção estética –
longe de impor qualquer rigor ao poema ou obra de arte, deve, ao contrário, “suscitar uma
decomposição das forças” (1972b, p.181), derrubando o ideal da unidade de composição.
91

Trata-se aí de uma consequência lógica do princípio bachelardiano42 que se viu afirmar a


correlação entre a ausência de qualidade poética da unicidade e a riqueza semântica, germe
de devaneios, presente na multiplicidade. Logo, quanto mais variadas forem as forças –
imagens, palavras e signos – confluentes no momento de criação, mais intenso será o valor
de universalidade impresso na obra de arte. Bachelard volta a afirmar a urgência de
abertura à pluralidade de contornos na arte, fomentando a profusão de imagens portadoras
das transformações que renovam o psiquismo. “A imagem se torna ativa através das
metáforas que a decompõem” (1972b, p.182), afirma o filósofo, surpreendendo o leitor com
a ideia contraditória de uma realidade que, ao decompor-se, encontra sua atividade. São
estes, os choques que vitalizam o pensamento estático e o psiquismo inerte.

Assim Bachelard ativa a chama do devaneio como símbolo de superação renovadora


que, em última análise, traduz o significado de transcendência. O fogo é, portanto, entre os
elementos, o melhor veículo da fundamental dialética que intercorre entre sujeito inflamado
pela força das imagens e o objeto inflamante. “O fogo íntimo se dialetiza em todas as suas
propriedade, a tal ponto que basta inflamar-se para se contradizer” (1972b, p. 182). Assim o
autor indica a potência de transformação ínsita nas imagens do fogo, pois, para o sujeito
inflamar-se, significa conceder-se totalmente, acolhendo em si, ou melhor, colorindo-se ele
mesmo com a tonalidade primordial do elemento que o inspira. O sentimento que se deixa
invadir pelas labaredas do puro fulgor acumula contrários. Torna-se, por isso, sujeito a
metafísicas elementares que insuflam transformações contínuas. “Então o ser amante
pretende tornar-se puro e ardente, único e universal, instantâneo e permanente. Assim, a
personagem de Vielé-Griffin murmura: “Um bafo quente me abrasa, um grande calafrio me
gela” (1972b, p.183).

42
Seguindo a mesma linha de pensamento, se diz que: “Somente quando todos ao meu redor forem diferentes,
poderei sentir-me igual a eles”, ou seja, a raiz da igualdade entre seres humanos encontra-se, paradoxalmente,
no fato de sermos, todos, igualmente diferentes uns dos outros. Do mesmo modo, nas reuniões dos grupos de
Alcóolicos Anônimos (AA) – irmandade mundial fundada na prática do programa de 12 passos para a
recuperação do alcoolismo – durante as quais, membros sóbrios compartilham a própria história, em
depoimentos pessoais, a probabilidade que o visitante possa se reconhecer numa dessas narrativas
autobiográficas, estimulando-se, por espelhamento, a ingressar na recuperação, aumentará conforme a
diversidade das histórias que ouve. Ou seja, quanto mais experiências diferentes o novo ouvir, maior será a
possibilidade de que alguma delas possa tocar-lhe a alma.
92

Entregue à dialética ígnea, “a consciência de arder, já é resfriar-se” (1972b, p.183).


O temperamento poético reversível, moldado pelos sentimentos do fogo devido à
complexidade que alcançam na roda de suas mutações, torna-se traduzível somente pela
instável e flexível lógica da ambiguidade, raiz fecunda de “dialéticas vivas que conferem ao
sonho sua liberdade e sua função de psiquismo criador” (1972b, p. 184).

Conforme se poderá ver progredir a reflexão bachelardiana sobre o imaginário


poético, direcionada à elaboração de uma autêntica filosofia da imaginação – firmemente
ancorada à sua ontologia da imagem – será possível perceber que o recurso frequente do
dinamismo polar de termos ou realidades divergentes e antagônicas, concomitantemente,
também se afirmará cada vez mais como instrumento de análise e exposição. Ou mesmo
como elemento integrante à dinâmica de formulação de novas teses e teorias num domínio
de renovação do saber que, de maneira sui generis, adapta a precisão da indagação
conceitual ao campo incerto e fugaz do devaneio literário tomado não mais como fuga
onírica da realidade, mas sim como criação de novas realidades estéticas que encontram seu
fundamento na transubjetividade, esta que se viu instaurar-se no instante de fruição artística
entre a obra e o sujeito que a contempla ou medita.

A volúpia da criação, sob formas diversas e em diferentes ocasiões, mistura


polaridades, extrapola a demarcação rigorosa entre sujeito e objeto, rompendo barreiras e
renovando os termos da comoção espiritual que, provocando reações instintivas, faz com
que a subjetividade se objetive em novas criações e, inversamente, tonaliza o contemplante
segundo o reflexo interior de matizes criativas. Provoca – no ímpeto de influxo da alma – a
subjetivação da obra, que deixa de ser objetividade inerte e destacada, tornando-se estímulo
à criatividade. Uma original dinâmica de transmutações que na prática da dialética entre
imaginação e matéria confirma o papel fundamental da arte enquanto criação de beleza
etérea, fundamento de novas e concretas realidades.
Neste sentido, entre os cinco volumes cósmicos, o primeiro no qual o filósofo se
concederá, sem hesitação, o direito de sonhar em profundidade os devaneios materiais –
que encontra, cultivando o hábito literário da leitura poética – será dedicado ao ensaio sobre
a imaginação da matéria, sob o título: L’eau et les rêves. Trata-se de um ensaio filosófico
que se configura, portanto como abordagem dualista, um mix de devaneio poético e
93

conceituação racional, com o qual o filósofo inicia, constituindo bases conceituais para um
novo pensamento do imaginário que não teme, pois, o embate entre polaridades – matéria e
imaginação – que, formalmente, segundo a reflexão filosófica tradicional, tenderiam à
recíproca exclusão.
Entretanto, nas páginas de L’eau et les rêves, vê-se a divergência confluir em modo
complementar, integrando diferenças numa modalidade de pensamento dinâmico que
conduz à renovação da reflexão estética através da abertura constante do raciocínio ao
confronto com dicotomias e negações que, em clima de ambiguidade, dialetizam os
procedimentos do espírito, fazendo progredir o conhecimento. “As forças imaginantes de
nossas mentes desenvolvem-se em duas linhas diferentes. Umas encontram seu impulso na
novidade e na natureza, as outras escavam o fundo do ser, onde querem encontrar o
primitivo e o eterno” (1997, p.41).
A atividade espiritual da imaginação surge, então, como dinâmica polar que
consente a distinção de dois tipos de imaginação, ambas produtoras e proliferadoras de
imagens. Uma delas é “formal”, e alcança seu objeto através da percepção visual; a segunda
modalidade de imaginação é “material”, propõe o embate direto com o aspecto concreto do
mundo, através do movimento criativo das mãos. Enquanto a imaginação formal
contempla, à distância, as arestas e contornos da realidade, dando origem ao vício de
ocularidade – que, em última análise, reduz o objeto a uma ideia da mente, assim como
reduz a imaginação mesma à lembrança da memória – a imaginação material procede ao
embate criativo com as substâncias reais, encontrando de imediato a solidez da matéria.
E assim Bachelard, qualificando-se como filósofo iconoclasta em sua busca pela
raiz da força imaginante fala em “encontrar por trás das imagens que se mostram, as
imagens que se ocultam” (1997, p.41). Mais oposições e alteridades bipolares que realizam
com primor sua função. Ou seja, aquela de esclarecer a diferença entre o aspecto concreto
de uma imaginação fraca - ocular e visual -, que sonha somente aquilo que vê no real, e a
verdadeira imaginação criativa, entregue ao devaneio forte e profundo, causado pelo
embate – criador de obras – com a matéria do mundo. A imaginação material concretiza,
portanto – entre muitos outros – os devaneios do ceramista, do ferreiro e do poeta cósmico.
Esta imaginação que mergulha na substância desfruta de uma total liberdade dos
vínculos com a realidade, ela sabe sonhar mais intensamente, sabe ousar mais em seu
94

devaneio. Para evidenciar esta força criativa da imaginação material, o autor fala em
vegetação obscura e flores negras, criando binômios que incomodam enquanto costuma-se
atribuir à vegetação, à luz de que necessita e às flores, as cores em que brilham. O
desconforto que surge com estas imagens ambíguas serve para preparar o espírito ao
mergulho no ser mesmo das substâncias, com o qual a modalidade material de imaginação
traz à tona novidades inusitadas e surpreendentes – geralmente ambíguas e contraditórias –
sonhadas sob o influxo da profundidade poética da matéria.
Bachelard sugere que a meditação de uma matéria específica pode ajudar a
desenvolver uma imaginação aberta. Pode-se supor que isso se dê, sobretudo, devido ao
aspecto de dinamismo inerente às transformações, às quais a matéria se submete sem perder
sua original substância. Se meditada em profundidade, “a matéria é o princípio que, a
despeito de qualquer deformação ou fragmentação, continua sendo ela mesma” (1997,
p.3).
Exemplificando sua capacidade de suportar o confronto com a negatividade ou
contradição, a matéria independe totalmente de suas formas. Essa extraordinária capacidade
de ileso acolher oposições, mesmo as mais radicais, que por ventura a deformem ou
fragmentem, abre a porta dos sonhos. A realidade permite a liberdade do devaneio, em suas
mais ousadas experimentações. A matéria do real não lhe impõe nenhuma limitação,
enquanto se deixa valorizar polarmente, numa dualidade de sentidos: por um lado, a
matéria se oferece à imaginação como mistério insondável, conforme o devaneio a penetra,
seguindo o impulso de aprofundamento que a matéria mesma emana. Por outro lado, dela
surge o milagre de uma força inexaurível. De um modo ou de outro, meditar a matéria,
neste caso, fogo, água, ar e terra, torna-se escola de dinamismo evolutivo e de
transmutações para o pensamento que se exercita na arte do devaneio poético.
Encontra-se em Bachelard um modo de reflexão que potencializa a ambiguidade,
geralmente instaurada pelos mecanismos da polarização de perspectivas, que, por sua vez,
desfruta das diversas vozes negativas, nas quais se propõe qualquer oposição. É o caso da
demonstração que sem limitar-se à simples polarização dicotômica de seu objeto de estudo,
inverte também a ordem mesma na qual tal objetividade se dá ao pensamento usual. Assim,
exemplificando o que está afirmado , o autor desenvolve, nos meandros da emoção estética,
uma análise que contrapõe imaginação e devaneio à contemplação e percepção, invertendo
95

também a convicção – desestruturada através de sua valorização, por obra do imaginário –


do senso comum, que afirma a anterioridade da percepção sensível daquela realidade que,
sucessivamente, é transformada no devaneio poético43. “Sonhamos antes de contemplar”,
diz Bachelard, argumentando que toda paisagem é uma experiência onírica, antes de ser
algo concreto, contemplado na realidade exterior.
Toda poética ou filosofia dos elementos materiais constitui um ensinamento
ambivalente, cujo devaneio reúne, tornando comum – em dicotomia de reciprocidade –
“convicções do coração e instruções da realidade” (1997, p.7), ambos os termos coligados
num processo mútuo de esclarecimento recíproco. Portanto, segundo Bachelard, todo
elemento material – ao dar origem a semelhantes certezas ambivalentes, fundadas na
antinomia que relaciona convicções interiores da subjetividade sonhadora com belas
imagens do mundo exterior – tende a atrair o leitor ao aprofundamento na imagem poética,
que lhe revelará a estrutura mesma de duplicidade da imaginação, das formas e das
substâncias. Além disto, o onirismo substancial, propondo o aprofundamento do devaneio
nas imagens elementares, rompe a visão horizontal do elemento , propondo a existência, em
cada um deles, de uma profundidade que se transforma num autêntico destino para o
sonhador – como convite a um tipo particular de existência – . Trata-se de experimentar o
destino “essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser” (1997, p.8).
Na linha das dicotomias e dualidades, Bachelard faz uso da imagem do enxerto44 (la
greffe), como conceito essencial para a compreensão da imaginação, aquele que nos faz
perceber, de um lado, a exuberância das formas inerentes à imaginação material, e de outro
lado, a riqueza e densidade das matérias no seio da imaginação formal. Para o autor, “A
arte é natureza enxertada” (1997, p.15), enquanto a noção de enxerto simboliza a união das
duas atividades - uma sonhadora e outra conceitual – necessárias à produção de uma obra

43
Deve-se a tal convicção o fenômeno que percebemos em qualquer museu de arte contemporânea, quando
visitantes menos experientes tentam reconhecer em imagens deformadas, que tendem à abstração, indícios de
alguma realidade concreta. Manifestam, geralmente, o incômodo do realismo frustrado com a pergunta: “Isso
o que é? O que representa?”. E, num desejo de concretismo ainda mais profundo, sempre no ambiente do
museu, no degrau sucessivo ao visitante frustrado, colocam-se aqueles, supostamente mais preparados à
fruição da arte, que contemplam plaquinhas com o nome dos pintores, antes mesmo de olhar a imagem.
Procuram reconhecer a entidade física por trás da imagem etérea. Traduzem, portanto, a mesma convicção
comum que postula a prioridade do concreto sobre o abstrato.
44
Método de propagação vegetal no qual se introduz, com um corte no caule, a parte viva de uma planta em
outra (chamada cavalo) para que nessa se desenvolva, em simbiose com o organismo que a acolhe. Termo
usado também, em caso de implante de tecido ou órgão de um ser vivo em outro organismo vivente.
96

poética. Tal noção encaixa-se bem na ótica de nosso interesse, pois funciona como
intermediário ou elemento de ligação, fazendo interagir polaridades divergentes, função,
por isso, fundamental na produção de um autor que identifica oposições dicotômicas por
toda parte.
Mesmo quando se trata de descrever o objetivo de L’eau et les rêves, enquanto
ensaio de estética literária, Bachelard não perde a oportunidade de fundar mais uma
polaridade: “Nosso livro tem o duplo objetivo de determinar a substância das imagens
poéticas e a adequação das formas às matérias fundamentais” (1997, p.15), referindo-se
sempre à dicotomia explicativa de seu princípio da imaginação dupla, formal e material.
Como já apontado, retornam em mente as construções abissais da literatura
francesa: polaridades dentro de outras polaridades, dicotomias que se explicam
antagonicamente. Os próprios poetas também são classificados de modo divergente,
separados entre duas categorias: “Poetas distraídos” que cantam a superfície da água, e os
“Poetas mais profundos” conectados à água viva que renasce de si. Neste caso também
vemos a polarização tornar-se ainda mais complexa, devido ao recurso à inversão ambígua
e paradoxal da sentença que segue: “Mas é permanecendo longamente na superfície
refulgente que compreende-se o valor da profundidade” (1997 p.16).
O trecho seguinte acrescenta fundamentos reveladores de um trajeto profícuo em
termos de análise teórica do procedimento bachelardiano por ambiguidades, paradoxos e
contradições, que se pretende demonstrar nesta ocasião. A ausência de referências
específicas do filósofo, sobre o uso de tal metodologia, certamente dificulta esta
investigação, mas, ao perseverarmos será adiada a formulação de conclusões específicas a
um momento mais avançado da pesquisa. O pensador de polaridades admite diretamente
em suas palavras e, em segunda leitura, dado que até mesmo a leitura se duplica:

Às matérias originais ligam-se ambivalências profundas e duradouras. Propriedade


psicológica tão constante que se pode enunciar como lei primordial da imaginação a sua
recíproca: uma matéria que a imaginação não pode fazer viver duplamente não pode
desempenhar o papel psicológico de matéria original[...]. Uma matéria que não é ocasião
de ambivalência psicológica não pode encontrar o seu duplo poético que permite
transposições sem fim. É necessário haver dupla participação: do desejo e do medo, do
bem e do mal, do branco e do preto, para que o elemento material envolva a alma inteira
[...] Maniqueísmo do devaneio (BACHELARD, 1997, p.16-7).

Na linguagem poética, ambivalências e polaridades assumem então o status


privilegiado de lei primordial da imaginação, não somente enquanto, diga-se assim, uma
97

propriedade de linguagem, mas sim, enquanto reflete uma qualidade ínsita na matéria
mesma, ou – como parece, ao enunciar a ligação recíproca que abre a citação acima –
enquanto atributo psicológico da linguagem, que a imaginação, no instante do devaneio
profundo, transmite e faz ecoar na matéria, dotando-lhe de originalidade. Fazendo-a viver
duplamente, o devaneio insere a imagem material no eixo polar de contrários, repercutindo
nela a tensão de oposição ou inversão, qual linfa capaz de criar o êxtase poético.
Sente-se bem nesta integração ou complementaridade entre qualidades antinômicas
de um mesmo ente ou substância, a sombra ou fantasma de uma totalidade perdida. Quase
como réplica da grande obra alquímica, ao fazer vibrar o ente no arco tenso que coliga
todas suas divergências, no domínio ambíguo do paradoxo – frequência exata em que vibra
o reino imaginário – como neblina na serra, sentimos erguer-se, lânguida, a bruma de uma
totalidade perdida e superada, se suposto como válido na filosofia da imaginação o
princípio epistemológico que, valorizando a dinâmica de uma aproximação permanente,
rejeita o absoluto.
Na poética, Bachelard postula o vigor da sublimação absoluta, que transcende a
imagem sem referi-la a outrem que não o ser de seu retentissement. Ao mesmo modo,
pode-se supor que no eixo rijo, mas vibrante, que coliga a qualidade à sua negação, notas
contraditórias transcendem-se numa vibração dicotômica que gera o êxtase da palavra. Por
isso a referência à bruma ou fantasma de uma totalidade absolutamente sublimada na
imagem. A transcendência resolve-se no inexaurível dinamismo de uma superação que
comove, criando novidade na linguagem poética.
A matéria é então ocasião de ambivalências, que são ditas psicológicas, enquanto
derivadas da alma, e da imaginação que a faz viver duplamente, representando ao mesmo
tempo uma dinâmica qualitativa original da matéria. Ser ambivalente nos torna semelhantes
ao princípio material do universo. Autóctone ou reflexa, a ambivalência gera uma
polaridade na matéria, instaurando seu duplo poético. O surgimento desta dicotomia de
oposição entre a matéria e seu duplo, diz o filósofo, é o que dá origem a transposições sem
fim que, por sua vez, permite o pulular de imagens. A infinita capacidade de transpor-se da
matéria, de pôr-se além, permanecendo nela mesma, traduz sua dança no arco teso que
reúne o vibrante ecoar de suas qualidades contrárias, no eixo mesmo da palavra poética.
98

Nesse eixo de linguagem comovente, a matéria ou elemento – fogo, água, ar e terra – nega-
se e se inverte, opondo-se a si mesma.
A participação, dupla e simultânea, às tonalidades contraditórias de suas qualidades
é o que atrai a alma sensível do poeta e, por conseguinte, a alma de seu leitor. O que se
esconde, entretanto, nessa anamnese da comoção poética é o elo que nos liga à matéria,
pois, aquilo que nos seduz na dança elementar de contrários é a consciência que temos de
nossas próprias contradições. A vibração do paradoxo material repercute nossa própria
ambiguidade. A valorização dicotômica do ser material, ao fazer-se poética de antinomias,
atenua o véu que, na intimidade, sela nossas polaridades e, no instante do poema, instante
poético e metafísico, nossas almas, vibrando, saltam no paradoxo, dançam entre
contrários... O maniqueísmo do devaneio é a chave de volta de nossos esforços.
No domínio do imaginário, o maniqueísmo das qualidades materiais instiga a
dialética que dá vida ativa à palavra poética. “Assim a água elementar de Poe coloca um
universo em movimento [...]. Lendo Poe, compreendemos a vida das águas mortas”, diz
Bachelard (1997, p.18).
Bachelard diz que no poema de Edgar Allan Poe alcançamos a rara – enquanto
ambígua – compreensão do significado vida, em algo morto. Palavra do poeta. A
imaginação material nutre-se, portanto, nesta polaridade da matéria, no materialismo duplo
que anima o devaneio sobre elementos materiais que buscam “casamento ou combate,
aventuras que apaziguem ou excitem” (1997, p.18).
A atração por polarizações não pode evitar o devaneio das misturas materiais. Aqui,
a água imaginária, como solvente universal, torna-se para Bachelard o “esquema
fundamental das misturas, elemento das transações” (1997, p.18-19) entre os polos de toda
oposição. Assim o filósofo nos apresenta a massa de barro – mistura de água e terra – como
paradigma da relação entre causa formal e causa material da imaginação e das imagens.
Esquema fundamental da materialidade que tem seu emblema no empastar do padeiro e do
ceramista. Duas formas arcaicas e ultra significativas de criação material, que, entretanto,
combinando matérias heterogêneas, muda a perspectiva do que foi dito nesta tese sobre a
dança polar da matéria, em meio às suas notas contrárias como campo de sublimação
absoluta. Ali não se dá propriamente uma mudança de estado do elemento material que
permanece sendo ele mesmo.
99

Na mistura substancial que o filósofo analisa – no caso das massas – terra e água,
elementos distintos, dão origem ao barro, fusão elementar que transforma os termos iniciais
num terceiro termo distinto. Tal dialética das misturas, ou das massas, serve a Bachelard
para demarcar confins entre a imaginação material e a imaginação formal, pois, como ele
diz:

A mão ociosa e acariciante (...) pode se encantar com uma geometria fácil. Ao
contrário, a mão trabalhadora e imperiosa aprende a dinamogenia essencial do
real ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como uma
carne amante e rebelde. Acumula assim todas as ambivalências
(BACHELARRD, 1997, p.19).

O real em si, visto em sua dinamogenia, também acumula ambiguidades, enquanto a


matéria – idêntica ao ser humano – resiste e cede, ama e se rebela. Conquistando novas
dualidades, os elementos materiais aumentam seu valor de originalidade, sua potencialidade
de criação de novidade, princípio primeiro que direciona o dinamismo do imaginário. O
termo dinamogenia, tipicamente bachelardiano, apesar de não muito frequente em suas
páginas, descreve o dinamismo de evolução que institui um eixo central do universo
poético. Ao se ver que a dinamogenia também pode acolher ambiguidades, propõe-se reunir
como complementares ideais os dois grupos de termos utilizados com frequência por
Bachelard, concernentes, por um lado, ao movimento de abertura e de evolução; por outro
lado, os paradoxos da polaridade. Tais termos definem o ambiente teórico da presente
investigação.
“O ser humano adquire dinamogenia na frequentação das águas violentas” (1997,
p.22), diz o filósofo, que apesar de definir-se um homem de rios e córregos e não de
oceanos e mares - somente aos trinta anos de idade viu o mar pela primeira vez -, estudando
imagens aquáticas, não deixará de referir-se ao magnetismo das ondas, obra prima dentre as
criações estéticas da natureza. “A vontade de ataque anima o homem que nada[...]. Fluxo e
refluxo da cólera que ribomba e repercute” (BACHELARD, 1997, p.21-2).
O movimento perene das ondas do mar caracteriza de modo exemplar a dinâmica de
encantamento e rapto de uma alma poética diante do fenômeno da sublimação absoluta –
causa de transcendência em si mesma – que traz consigo a cadência exata na qual se sente
100

pulsar o universo, no sincronismo de sua criação permanente45. Sua liquidez de linguagem


não é metáfora de nada além dela mesma. A mesma voz da água ecoa nos riachos,
manifestando o fato que Bachelard (1997, p.22) chama de “O mais extremo de nossos
paradoxos[...]. A linguagem das águas é uma realidade poética direta[...]. A água é uma
realidade poética completa[...]. Tal liquidez dá origem a uma excitação psíquica especial
que evoca as imagens da água”.
Ao ressaltar esta excitação do psiquismo, o filósofo atribui à imaginação - em seu
papel de formação de imagens que ultrapassam a realidade - o caráter extremo de
formação da humanidade à superação. Um status formativo extremo. A imaginação é uma
escola de sobrehumanidade, função de sublimação absoluta que conduz o ser à lei do
dinamismo como razão princeps de sua evolução espiritual: “Um homem é um homem na
proporção em que é um super-homem. Deve-se definir um homem pelo conjunto das
tendências que o impelem a ultrapassar a humana condição” (1997, p.23).
Esta ultrapassagem afilia-se à noção de reformulação ou renovação enquanto
superação de si, em si mesmo. Nestas passagens, o Bachelard nietzscheano anuncia seu
super-homem enquanto abertura de novas capacidades do homem, que aprende e
desenvolve uma surracionalidade como nova faculdade de lidar com uma nova realidade,
ou seja, com a surrealidade, inventada incessantemente pelo devaneio da imaginação.
Essa é a transmutação do homem, resultado de sua imprudente frequentação do
permanente dinamismo de abertura do psiquismo. São os novos tipos de visão, pertinentes
de uma vita nova que exige renovação também dos ideais formativos, segundo sua conexão
ao andamento de uma nova lei pedagógica: a nova humanidade só enxerga se tiver visões e
só as terá se for educada aos devaneios, assim como à imaginação criadora de visões e de
novidades. Por isso o poeta cita D’annunzio: “Os acontecimentos mais ricos ocorrem em
nós muito antes que a alma se aperceba deles. E, quando começamos a abrir os olhos para o
visível, há muito que já estávamos aderentes ao invisível”46, para definir a poesia primordial
como “função de despertar, adesão ao invisível” (1997, p.24), que maravilhando-nos nos
faz aderir ao nosso destino íntimo: despertar para o invisível. A imaginação, senhora das

45
“O rumor das ondas enche a imensidade do céu ou o interior de uma concha” (BACHELRD, 1997, p.21).
46
D’ANNUNZIO, G. Contemplazione della morte, 1912.
101

correspondências dinâmicas entre contrários, nos faz experimentar os dois movimentos,


sempre divergentes, do imaginário que acolhe em si todo tipo de polaridade de oposição.
Portanto, ambiguidade e movimento ocupam posição central no decurso de nossa
exposição. Cada uma dessas noções traz consigo, nas várias obras estudadas, um corolário
de ideias coligadas que, enfim reunidas, constituirão o eixo do trajeto que se está
delineando. Essas duas noções, na convergência de suas múltiplas significações,
representam, pois, o trait d’union fundamental à constituição final de uma rede de intuições
e argumentações que nos aproximará à possibilidade de indicar, efetivamente, a presença de
uma metodologia sui generis, no procedimento teórico de Bachelard.
O ensaio de 1943, L’air et les songes foi dedicado em seu subtítulo à imaginação do
movimento, no qual o jogo de antônimos bachelardiano – que nos introduz
progressivamente à novidade de seu pensamento reformado, adquirindo talvez seu mais alto
e intenso índice de expressividade. O elemento aéreo, em seu espaço vazio47, lugar de
infinitudes, acolhe com primor todos os fenômenos da imaginação relativa à mobilidade, à
mudança ou transformação e ao dinamismo.
Lendo-se toda filosofia bachelardiana dos elementos - ou metafísica elementar -
como resgate das noções de matéria e corpo, desprezadas pela reflexão ocidental -
idealizante e visualística - em sua redução da percepção empírica a uma contemplação
passiva de reflexos das ideias e conceitos da mente, percebe-se, com nitidez, a perspectiva
de abertura e renovação que se instaura no domínio do pensamento contemporâneo – Vale
notar também, nos volumes de filosofia cósmica, o exemplo prático que nos dá Bachelard,
do dinamismo de abertura e mutação, princípio fundamental de movimento, expresso em
seu pensamento estético. Pois, investigando imagens poéticas dos elementos primordiais, o
mestre mudaria a metodologia três vezes: dos símbolos do inconsciente freudiano migra às
metáforas arquetípicas de Jung, para, finalmente, priorizar a abordagem fenomenológica

47
Lembra-se a máxima do budismo Zen: “Naquilo que é seu vazio, está o uso do vaso”, já que somente o
vazio é cheio de espaço. Encontra-se aí ocasião para constatar, como bem demonstra CABRAL; REZENDE,
2012, a oposição de perspectivas entre Ocidente e Oriente, na consideração da questão dos contrários como
fundo abissal de toda forma de civilização. O volume descreve a lógica ocidental como lógica de binômios e
apresenta a mudança de estações em um jardim, como metáfora arquitetônica de uma unidade de pluralidades
- os diferentes estados do jardim - que se reconfigura em cada momento. Além disso, enquanto no Ocidente a
bipolaridade fundamental dos princípios prevê a subjugação ou domínio de um sobre o outro: bem e mal, luz
e trevas, diabo e inocência, no Oriente, os contrários (Yin e Yang) harmonizam-se, enquanto momentos de
uma única totalidade universal.
102

como único acesso seguro ao ser nascente da imagem, no instante da criação poética, e
também, como acesso seguro à vibração e repercussão, com as quais a imagem emociona
leitores, no momento fecundo da comoção estética.
Movimento e mutação são as duas ideias-chave que nos instalam, de imediato, no
cerne de um pensamento que ama definir-se através de múltiplas dialéticas que, inspirando-
o à contínua dinâmica de evolução, superação e renovação, terá também o mérito de
conduzi-lo à realização de seu destino de transcendência, instalando-o no domínio de uma
permanente abertura à multiplicidade de perspectivas de atuação e, notadamente, à
polisignificação de suas imagens e metáforas. Deste modo, abre-se também uma Via reggia
à interação com a diversidade – com o outro de si e, portanto, com as diferenças – via que
atravessa toda ambiguidade de colóquios dicotômicos ou antinômicos, abertos às
divergências e polarizações existentes nas oposições, negações e contradições.
Ao anunciar o novo conceito de uma imaginação madura e autônoma, que
finalmente se viu ter audácia e temeridade para, diante de seus opositores, declarar
liberdade dos vínculos com a realidade concreta que – subtraindo-lhe dignidade – a
reduziam à condição de vestígios de percepções ou lembrança do passado, o filósofo define
a imaginação não mais como faculdade de formar, mas sim de deformar imagens. O uso do
termo em negativo, na forma contraditória de seu significado antecedente, esclarece
imediatamente a total e irrestrita liberdade desta nova imaginação, independente e
autônoma, de pé sobre suas próprias pernas. Sem causas, essa imaginação transformada
anula o interesse psicanalítico por vivências traumáticas no passado do poeta. As novas
imagens são, elas mesmas, causas de um passado próximo que, paradoxalmente, projeta-se
adiante, concretizando o que Felício (1994) chama de determinismo às avessas:

(A imaginação) é a faculdade que muda as imagens e nos liberta das imagens


primeiras. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, não há
imaginação, mas memória[...]. A imaginação deve ser considerada como uma
experiência de novidade e de abertura (FELICIO, 1994).

A poética bachelardiana inverte os termos tradicionais da reflexão filosófica sobre o


fenômeno da comoção estética, ou mesmo, do devaneio literário – como evento
determinado pela percepção da obra de arte – ressaltando, com vigor, a centralidade do
princípio imaginário que, ao ancorar em si mesmo a atividade espiritual da imaginação,
impede sua fixação numa forma definitiva. Em última análise, é a configuração dinâmica
103

do devaneio que descarta sua restrição às sedutoras características da percepção imediata.


“Uma imagem estável e acabada corta as asas da imaginação sonhadora que não se deixa
aprisionar em nenhuma imagem: é uma imaginação sem imagens” (1994b, p.8). Invertendo,
pois, o ponto de vista da análise bachelardiana, afirma-se ser o poema mesmo, como
aspiração a imagens novas, que determina o psiquismo humano em sua essencial busca por
novidades.
Ao indicar na imaginação a persistente oposição entre constituição e mobilidade e
ao mesmo tempo, desfrutando da técnica que o caracteriza – aquela que antes de esclarecê-
las polariza toda noção apresentada – o autor fixa sua tensão criativa mais adiante, na
proliferação das metáforas de metáforas que nascem da imagem, ao invés de procurar no
passado indícios ou causas da atual determinação imagética.
De novo se vê delinear-se um campo dinâmico de mutação, como domínio
primordial para a análise do imaginário, pois: “a imaginação é antes de tudo um tipo de
mobilidade espiritual (...) a imaginação do movimento determina a mobilidade das
imagens” (1997, p.8-9). Deduz-se portanto que o dinamismo, fundamental na determinação
da imagem como ulterior ponto de germinação de imagens sucessivas, pertence ao espírito.
É fruto da condição de abertura permanente da mente humana que, por sua vez, funda a
dinâmica de evolução, capaz de dotar nossas vidas com a tonicidade e vitalidade
características do imaginário.
A imagem é expressão de um pensamento, no devir do psiquismo, é o ser mesmo
que se exprime na palavra poética, no movimento que nos arrebata, atraindo-nos no êxtase
do devaneio. Movimento e dinamismo representam, pois, as chaves da novidade ínsita no
pensamento filosófico de Bachelard, que as revela ao mostrar a propulsão à mutação como
licença para que as coisas, continuamente, se contradigam.
Por isso, oposição, polaridade e ambiguidade transformam-se – sob a intuição
criativa de Bachelard – em princípios metodológicos, diga-se assim, já que conduzem a
realidade mesma à busca por seu devir. Aquilo que imaginamos, supera o que vemos ou
dizemos, pois a palavra mesma é vetor de devaneios sedutores que – em seu anseio por
alteridades, duplos sentidos e metáforas – situam o ledor sonhador bem além dos limites
perceptivos da realidade: “Perceber e imaginar são tão antitéticos quanto presença e
104

ausência. Imaginar é ausentar-se, lançar-se a uma vida nova [...]. O devaneio nos transporta
alhures” (1994b, p.10).
A vivacidade da imagem sonhada pelo poeta transforma-se em impulso que conduz
o leitor à deriva, em direção a uma nova vida imaginária. O autor usa os fortes termos
alívio e ardor – sentimentos opostos - para caracterizar o efeito produzido no sonhador,
pelo movimento ou dinamismo nele instaurado pela imaginação, pois: “um belo poema é
como ópio ou álcool. Deve produzir em nós uma indução dinâmica” (1994b, p.10). Como
se sabe, indução em Bachelard traduz criação. Portanto, o dinamismo poético faz do leitor
um criador de imagens próprias, que descobre nos matizes fugidios do devaneio de um
poeta mudanças que só ele intui, transformações que lhe são próprias e que revelam
segredos de sua alma mesma, às vezes, nem por ele conhecidos. A partir dessa forte
sedução, exercida transubjetivamente, por efeito da criação do poeta, tem início no leitor
uma profusão de novas imagens48.
Assim, lendo progressivamente a poética bachelardiana, esta reflexão sobre a
metodologia de contrários conquista um nível ulterior de complexidade, devido ao
evidenciar-se do papel fundamental que nela ocupa a dinamogenia da alma poética. A
questão dos incontáveis termos bachelardianos que descrevem o movimento, configura um
mobilismo imaginado e generalizado que deixa a marca do dinamismo sobre imagens que,
audaciosamente, deformam a percepção da realidade até fazer-nos experimentar o estado
fluido do psiquismo imaginante (1994b, p.11), que acaba por afirmar o realismo da
irrealidade, sempre no embate entre contrários, para obter, assim, o máximo de
expressividade dos termos que utiliza.
Do mesmo modo, quando diz: “No reino da imaginação a toda imanência se junta
uma transcendência” (1994b, p.12), a inversão à qual recorre, em seu juízo poético,
manifesta a vantagem de uma descrição - por vias ambíguas e paradoxais - de realidades
imaginárias, situadas além de nossa experiência comum num domínio ao qual a
expressividade poética impõe a superação do pensamento comum, habituado às

48
Segundo o filósofo: “Seguir num jardim o desabrochar das flores oferece modelos da dinâmica das
imagens”. Pensa-se, então, no impacto que teria acometido Bachelard diante da experiência de imagens, às
quais nos habituamos, que reproduzem, acelerando em frações de segundos, devido à multiplicação de
fotogramas, o lento desabrochar das flores.
105

correspondências fáceis entre inteligível e sensível. No país da imaginação tal


correspondência é abalada.
A mobilidade das figuras imaginárias que se combinam, formando imagens do
devaneio, rompe a ligação entre imaginário e real, frequente e simultaneamente, invertendo
os termos dessa relação, que se transformam em mecanismos de transfiguração poética do
real, mudança que projeta o ser no desconhecido e inesperado mundo de significações
novas. Neste cenário poético é a ausência de qualquer correspondência com o habitual que
nos faz sonhar em profundidade:

Nessa transposição, a imaginação faz brotar flores maniqueístas que confundem


as cores do bem e do mal, que transgridem leis dos valores humanos [...]. A
imaginação é uma das formas da audácia humana. Dela recebemos um
dinamismo renovador (BACHELARD, 1994b, p.13).

A técnica de criar polaridade por oposição de termos é figura dominante nas


explanações bachelardianas. Ocorre que, em poucas linhas de um trecho, o autor acumule
divergências, transformando a leitura na extraordinária aventura de uma teoria estética
renovadora de parâmetros intelectuais. Enumerando sucessivas referências deste tipo, no
texto de introdução a L’air et les songes, torna-se possível sentir o efeito desestabilizador
de certezas decorrentes do procedimento metódico da razão tradicional. Como dito em
poucas linhas no extrato acima, Bachelard afirma a existência de uma dinâmica dupla e
polar, como causa de sublimação; a primeira dessas duas dinâmicas é discursiva, e tende ao
além; a segunda é dialética, e procura um ao lado.
Logo em seguida, o autor refere-se a viagens imaginárias evasivas – constituídas
por imagens inconsistentes – que adaptam a vida imaginativa à evasão, à flutuação e à
inconsistência. Todos termos negativos, com os quais o autor deseja mostrar a divergência
da atividade imaginária que, diferente da racionalidade, sabe proliferar mesmo em
domínios cujos significados apresentam-se privados de uma rigorosa exatidão lógica.
Entretanto, tais incoordenações geram um “esquema de coerência pela mobilidade”,
justifica-se Bachelard (1994b, p.14), que conclui, utilizando termos da contradição entre o
rigor da tradição e a liberdade da novidade, inseridos ad hoc a formar ulteriores
polaridades: “Um ser privado da função do irreal e tão neurótico quanto aquele privado da
função do real” (1994, p.14).
106

Além disto, nota-se que a imaginação material revela em si aspectos que a definem
como ambivalência, enquanto, se por um lado sonha a matéria, por outro, materializa o
imaginário. A duplicidade de conotações, no princípio mesmo da demonstração, serve para
caracterizar ainda mais a metodologia de ambivalências – que se busca afirmar – na prática
intelectual de um pensador em si mesmo dicotômico, já que, simultaneamente à sugestão de
polaridades e contradições, o pensamento fluido de Bachelard preocupa-se também em
refutar objeções que apontem contradições em seu procedimento.
Com tal propósito, ele afirma o dinamismo essencial ao devaneio dos quatro
elementos primordiais, precavendo-se, em tal modo, de uma possível objeção por
contradição à mobilidade do imaginário, caso surgisse na consideração de um dos
elementos algum princípio de fixidez e monotonia da imaginação. Mas, ao contrário, o
psiquismo sonhador é sempre dinâmico. O devaneio poético caracteriza-se como atividade
de sublimação e transcendência, a saber, uma essencial prática de superação.
Este procedimento de investigação parece evidenciar, com progressiva clareza, as noções
de novidade e dinamismo como núcleo da questão que envolve as frequentes contradições e
ambiguidades num mecanismo demonstrativo, ou melhor, numa metodologia dinâmica de
exposição e discussão de princípios essenciais à evolução do saber. Aos poucos, vai se
tornando próxima a linha de raciocínio que permitirá formular a razão específica deste
procedimento por ambivalências. Em última análise, se verá que, ao explicar a oposição
existente entre pensamento cinético – que procede segundo ligações geométricas e
topográficas entre conceitos da mente – e pensamento dinâmico – que, ao contrário, evolui
através de saltos e rupturas - em modo, portanto, mais compatível com a dialética da
imaginação – como se verá adiante, Bachelard nos indica, especificamente, a linha de
argumentação que se deve seguir.
Por enquanto, vislumbrando o raciocínio que permitirá reunir estas intuições e
demonstrações num discurso sensato, antecipa-se a surpresa de encontrar a chave do
segredo das oposições bachelardianas. Chave encerrada, por sua vez, em uma ulterior
oposição, configurando em tal modo o que se poderia chamar de uma meta polarização,
uma verdadeira metodologia demonstrativa, fundada sobre um esquema de construção
conceitual abissal, uma autêntica de construction abimée.
107

A sublimação recorrente, ativa no devaneio poético, assim como a ambivalência que


a distingue em sublimação cinemática e sublimação dinâmica, tornam-se mais
compreensíveis após a distinção à qual recorre o filósofo, ao categorizar o movimento que
percebemos no real - através da visão - como puramente cinemático, ou seja, não
dinamizado. O movimento visual é mera sucessão externa de instantes, em si estáticos. Não
se trata, pois, da vivência de um dinamismo interior. Nossa intuição de figuras da
imaginação formal não determina nossa participação em nenhum tipo de dinamismo
substancial. Somente a relação de simpatia com uma matéria pode determinar nossa
indução ou nossa participação ativa no dinamismo do imaginário.
O dinamismo só se realiza efetivamente em ocasião de uma fusão íntima entre nosso
ser e a realidade, somente numa indução material e dinâmica - ou “ducção”, como um
“canal de passagem” - diz Bachelard (1994b, p.16), exemplificando a ocorrência de uma
correspondência de materialidade entre nosso ser íntimo e as coisas do mundo.
Ao aprimorar o modo profundo de leitura e compreensão íntimas - Einfühlung - o
leitor sonhador deixa-se fundir em união com a matéria específica poetizada no devaneio,
acessando, simultaneamente, a densidade do ser e a energia do devir. Neste estado de
atenção interior ao conteúdo poético, os fenômenos do mundo exterior incitam a
individualidade à mudança, através de suas lições de mobilidade substancial. O dinamismo
onipresente nas obras de Bachelard encontra assim seu arquétipo numa verdadeira física da
imaginação dinâmica, outra vertente pela qual o autor promove a integração da polaridade
que liga subjetividade e objetividade.
Em tal modo, experimentando o rapto poético dos fenômenos aéreos do voo e da
queda imaginários, o leitor exercita, como princípios fundamentais do imaginário, a subida,
a ascensão e a sublimação verticalizante. A imaginação dinâmica transforma, então, a
característica mobilidade das imagens em realidade íntima que o sujeito experimenta na
aventura de sua interioridade sonhadora, como consciência de um alívio, como sensação de
alegria e ligeireza. Assim a alma percebe o ideal de evolução do psiquismo num eixo
imaginário de verticalidade, representado como realidade essencialmente polar, entre altos
e baixos, que repercutem na interioridade subjetiva - através de seu diferencial vertical,
positiva ou negativa - que, por sua vez, originam as sensações divergentes de alívio e
108

leveza ou de peso e opressão, constituindo o que Bachelard (1994b, p.18) chama de


“dialética do entusiasmo e da angústia”.
O critério ascensional de verticalidade, aprofundado no estudo do ar, define nesta
perspectiva de estudo, outro parâmetro essencial à pesquisa e exposição de teorias estéticas,
fundamentado essencialmente nos moldes de uma ambivalência dicotômica e polar, capaz
de gerar o primeiro princípio da imaginação ascensional que determina toda metáfora de
altura, elevação, profundidade, abaixamento ou queda, como axiomáticas. Ou seja, como
imagens que sem serem explicadas por nenhum outro simbolismo explicam elas mesmas
todo o resto, enquanto mais naturais e envolventes, dotadas de expressividade mais intensa
– no domínio da interioridade – do que as metáforas visuais que apesar disto, por serem
concretas e formais – ao contrário das imagens dinâmicas da altura – exprimem-se com
maior facilidade através da linguagem.
Toda análise precedente oferece ao autor a ocasião para proferir mais um de seus
princípios ambivalentes, conferindo, ao mesmo tempo, maior vigor demonstrativo à tese de
fundo aqui desenvolvida, que busca caracterizar, demonstrativamente, o procedimento da
investigação bachelardiana nos termos de uma metodologia de ambiguidades. Ao propor a
valorização vertical como princípio essencial do imaginário poético, Bachelard integra duas
modalidades de seu procedimento simbólico, a saber: valorização e verticalização, em
único e novo princípio do devaneio polar: “Toda valorização é uma verticalização” (1994b,
p.18).
De novo assinala-se, na ambivalência destes dois termos, uma construção em forma
de abismo. Ou seja, o princípio polar manifesta em um de seus dois termos - na
verticalização - outra polaridade, a saber, a oposição de subida e descida, ascensão e queda
do psiquismo, enquanto eixos de verticalidade. Em cima de uma dicotomia, constrói-se,
pois, uma polaridade que a integra como um de seus termos, configurando uma dialética de
princípios ambivalentes, característica da formulação de um saber estético dinâmico que
evolui em estado de permanente abertura e mutação.
O eixo vertical, como princípio polar do devaneio poético, “O homem enquanto
homem não pode viver horizontalmente” admite Bachelard (1994b, p.19). Instiga a
imaginação à mutação e à criação permanentes, cuja antítese é representada pelo hábito,
pela repetição de imagens comuns. A oposição bachelardiana entre criação e hábito atribui
109

à divergência, novamente, o papel de princípio de explicação e de evidência da


dinamogenia que impulsiona o domínio da imaginação material criadora.
Diante da constatação do caráter excessivamente imaterial e etéreo da imagética
aérea, surge outra formulação dualista de um princípio estético. Na verdade, trata-se aqui de
uma dualidade negativa, dos modos pelos quais as imagens aéreas, em seu alto índice de
desmaterialização, podem ser vistas como criativamente inoperantes, por serem demasiado
inertes ou fugazes. Inércia e fugacidade representam, então, o duplo risco no qual incorre o
devaneio aéreo, apesar do impulso ou amplificação que o ato de imaginar recebe sempre –
não importa sobre qual matéria se exerça – da tonicidade inerente à palavra poética que
dinamiza o psiquismo.
Bachelard oferece um exemplo pessoal do princípio filosófico de não tomar-se
demasiado a sério durante a pesquisa, ao questionar-se sobre o aspecto paradoxal, e mesmo
contraditório, ínsito em sua tentativa de constituir o estudo das imagens aéreas - inertes e
fugidias, que se evaporam ou se cristalizam - como um dos fundamentos de sua filosofia da
imaginação material. O filósofo parece superar a dúvida, como sempre, aceitando a
ambivalência no processo dialético mesmo de construção das demonstrações filosóficas, ao
afirmar que as imagens aéreas devem ser apreendidas “entre os dois polos dessa
ambivalência sempre ativa” (1994b, p.21).
Aqui também a inserção da ambiguidade no mecanismo demonstrativo arrasta o
raciocínio num vórtice de negação e divergências polares, dentro do qual – como
Empédocles no Etna – Bachelard salta feliz, admitindo não restar-lhe senão “mostrar a
dupla derrota do nosso método” (1994b, p.21). Pede, portanto, ajuda ao leitor, que deverá
apreender “no intervalo do sonho e do pensamento, da imagem e da palavra” (1994b, p.21),
o dinamismo de uma linguagem que “ao mesmo tempo sonha e pensa” (1994b, p.21). Eis
aqui um pensamento filosófico que procede e evolui, utilizando ambivalências e
contradições como instrumento mesmo de pesquisa:

As palavras asa e nuvem são as provas dessa ambivalência do real e do


imaginário. O leitor fará delas uma realidade desenhada ou um movimento
sonhado[...]. Pedimos que o leitor não só viva essa dialética, esses estudos
alternados, mas que os reúna numa ambivalência em que se compreende ser a
realidade um poder de sonho e o sonho uma realidade. Ai de mim! breve é o
instante dessa ambivalência. Confesso que bem depressa se vê ou se sonha
(BACHELARD, 1994b, p.21).
110

Só na aceitação da ambivalência será possível compreender o paradoxo dessa


inversão binária entre sonho e realidade. Como se pode ver, ambivalências também se
configuram em abismos, umas dentro das outras. Mesmo sublimando o imaginário material
no discurso escrito do poema, entra em jogo, na alma do poeta, a oscilação divergente entre
impressão da imagem e expressão da palavra. Inexaurível dualidade entre imaginação e
realidade, por sua vez também sublimada na afirmação que descreve imagens como
realidades psíquicas e simultaneamente referem toda mobilidade externa ao dinamismo
interno que as imagens aéreas induzem em nosso ser.
A figura principal e mais eloquente do onirismo dinâmico que Bachelard nos revela
é, sem dúvida alguma, o sonho de voo. Trata-se de experiência imaginária, comum a todos,
do impulso de superação e transcendência, na qual vemos convergir, em abundante
proliferação de imagens e de sensações inusitadas, o valor de sublimação que as ideias
mesmas de paradoxo e de contradição assumem na perspectiva do filósofo. Segundo
Bachelard, na experiência noturna do sonho de voo, forças criadoras da imaginação nos
permitem distinguir “o que há de concreto e universal em poemas obscuros e evasivos”
(1994b, p.23). Como evidenciado aqui também, o autor privilegia o embate entre
qualidades contrárias como novo recurso semântico, como tática intelectual de uma
pedagogia renovada que explora a ruptura de limites humanos - vigente em sua poética das
asas – como instrumento de uma análise imprudente, que progride, criando dualidades
ambíguas, valorizadas, entretanto, como chaves de acesso – ou mesmo de fundação – de
uma nova filosofia estética, um novo saber filosófico, mais profundo e autêntico, sobre os
enigmas do imaginário poético.
O autor indica outro dado primeiro da imaginação dinâmica – sempre bipolar e
antagônico – na polaridade contrária ao voo, ou seja, na queda imaginária, cuja
consideração negativa fornece ocasião para sugestão de metáforas da corrupção moral. O
eixo de polarização verticalizante da imaginação, em sua característica fundamental,
aparece, portanto, como campo de experiências polares do dinamismo dialético que faz
proliferar a função imagética do devaneio, que percorre livremente metáforas fundamentais,
seja em direção à transcendência ascencional, seja na direção inversa, àquela que conduz ao
tormento da descida abrupta na escuridão dos abismos e das quedas abissais. Tal jogo
111

dialético de direções imaginárias traz consigo mesmo uma dificuldade que o autor supera,
utilizando o mecanismo de inversão de imagens, a ser considerado doravante caracterizado
em sua valência metodológica, a saber, como instrumento mesmo da análise filosófica.
O filósofo reconhece a poética aquática ou terrestre como campo de investigação
estética que melhor se adapta à análise da queda nos vórtices do imaginário. Mas mesmo
assim, justifica-se, afirmando no ensaio sobre o ar a oportunidade de tratar a imaginação da
queda abissal como imagem de uma ascenção invertida. Saída paradoxal para uma
emboscada do pensamento filosófico.
Bachelard não se importa com o fato que talvez, figurar-se em termos estéticos uma
inversão da ascenção possa implicar no discurso filosófico dificuldades maiores que aquela
a ser superada por tal inversão. Supõe-se que o hábito de recorrer, no pensamento e na
escrita, a figuras ambíguas e paradoxais, situe o pensador além do desprezo, preconceito e
rejeição intelectual que o racionalismo acadêmico dedica, em geral, à oposição como
procedimento do pensamento demonstrativo.
Em tal modo, Bachelard (1994b) reflete sobre os dilemas do imaginário cósmico,
nos moldes de uma racionalidade renovada, que não vê risco nem ameaça de insensatez49 ao
propor seu pensamento sobre a imaginação da vertigem que confunde a razão, sobre o
símbolo ambíguo da árvore aérea que inverte os parâmetros da imaginação terrestre e aérea
ou ainda sobre a inspiração que da figura contraditória de uma declamação muda. “O gênio
reúne pensamento e imaginação.
No gênio, a imaginação produz o pensamento” (1994b, p.24), afirma o filósofo,
causando no leitor a sensação de um orgulho aporético, que instiga e incentiva o intelecto
ao enfrentamento de ambivalências e ambiguidades, às quais confia, com frequência, o
desenvolvimento de suas argumentações mais ousadas. A dinâmica de oposições, através
da qual ele examina o simbolismo da altitude como núcleo de imagens do devaneio aéreo,
nos ensina também o ideal de viver contra o peso, viver verticalmente na coragem de
reerguer-nos – dos fracassos existenciais e das recaídas em erros – aos valores de
crescimento e elevação, formulados numa imagética de altura, de luz e de paz.
49
Objeções por insensatez são uma tradição do pensamento filosófico, desde Santo Anselmo d’Aosta (séc.
XI), cujo argumento ontológico para a demonstração da existência de Deus, em termos de Id quod maius
cogitari nequit (Ente do qual não se pode pensar um maior) torna-se alvo de uma objeção que, embora fosse
elaborada com o rigor do raciocínio filosófico, não obtém poder de prova, pois fora expressa por um
indivíduo insensato (stolto). A objeção ficou, então, conhecida como obbiezione dello stolto.
112

A reflexão bachelardiana sobre a imagética aérea assinala o amadurecimento de sua


produção filosófico-literária, nestes primeiros anos de dedicação ao imaginário poético que,
sucessivamente, permaneceria como uma constante em sua vida de pensador. Sem abrir
mão do ingrediente ambíguo de divergências e inversões com os quais dinamiza o processo
de construção de uma nova teoria estética, Bachelard aprofunda a investigação sobre a
imagem literária, realçando a função da imaginação na formulação mesma da linguagem.
Seu pensamento começa a alcançar um nível mais alto de abstração, ao mesmo tempo em
que se faz sempre mais próximo à função criativa que produz o poema. Toma o rumo certo
do procedimento por complexidades crescentes, único que lhe assegura o contato direto
com a fonte mesma do devaneio poético, com o instante fecundo em que surge a imagem
como origem de linguagem, como novidade semântica, como criação de novas
significações, como metáforas do êxtase na escrita literária.
Audição, imaginação, fala e escrita são as funções fundamentais com as quais, nos
anos 40, Bachelard começa a traçar sua teoria da imagem literária, valendo-se – como se
está assinalando neste estudo – de uma metodologia de demonstrações por via aporética
que, entretanto, não transcreve jamais conflitos ou ansiedades da razão nem da imaginação,
para os quais não se vislumbre solução. Os paradoxos da ambivalência que cita e constrói,
continuamente, não são estradas sem saída do pensamento, não representam negações
definitivas nem impasses da investigação. Ao contrário, percebe-se que são estratégias por
intermédio das quais o pensador aprofunda ou alarga o campo mesmo da pesquisa,
alcançando assim regiões limítrofes fora do alcance da racionalidade cartesiana, que deseja
sempre prosseguir no enlace de claras evidências, demonstráveis por força de uma lógica
conceitual estrita e tradicional.
Seus dualismos ambíguos abrem a possibilidade de uma lógica do talvez, uma
lógica do pode ser, uma lógica do quem sabe, ampliando os confins da reflexão sobre a
narrativa literária até abranger na pesquisa filosófica o incerto domínio do devaneio lírico e
poético, com suas sugestões de um além, com sua busca por uma profundidade íntima e
emotiva. As contradições que tece são da ordem da surpresa que comove, da comoção que
desmonta o formalismo da razão, criando o contato direto com a novidade que exprime a
verdade instantânea do ser e da imagem.
113

Dessa maneira, ao citar a Ode a uma grega, de Keats: “As melodias que se ouvem
são doces, mas as que não se ouvem são ainda mais doces” (1994b, p.281), o autor nos
conduz consigo ao lugar onde a ressonância da imagem supera sua manifestação concreta –
escrita ou declamada que seja – ingressando no campo misterioso e quase inacessível do
devaneio profundo, que traz consigo novos parâmetros de realidade, que inverte regras
lógicas, funda ontologias, manifestando o irreal como campo de existência poética. A frase
citada parece confirmar, na inversão do poeta, o que nos ensina a teoria da segunda leitura,
a saber, com a intensificação da meditação, novas significações emergem do poema,
custódio de segredos infinitos, palavra muda que guarda em si a doçura do que não se ouve
em superfície. E nesta delicada harmonia, muitas vezes oculta na página literária, “o
pensamento fala e a palavra pensa” revela Bachelard (1994b, p.282), utilizando sempre
jogos ambíguos de dicotomias invertidas, como meio de acesso a significados
inexprimíveis e mesmo inexistentes na linguagem comum, na horizontalidade linear e
monótona da lógica acadêmica. Ele nos inspira trajetos de um raciocínio transversal,
adequado a conteúdos expressivos dinâmicos, em permanente mutação de valores,
metafóricos e dialéticos.
Se Bachelard, com Keats, sugere a possibilidade de uma expressão poética do
imperceptível, com os Pequenos poemas em prosa, de Baudelaire (1869), ele parece revelar
a função precisa do uso da contradição em campo poético: “Quem não sonhou com o
milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo, assaz maleável e contrastante para
adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da
consciência” (1994b, p.283), canta o poeta atormentado, na convicção de que a polaridade
poética represente o milagre que acessa movimentos, ondulações e sobressaltos da alma, do
devaneio e da consciência.
“Em três linhas, Baudelaire designou todos os aspectos fundamentais do dinamismo
da prosa”, comenta Bachelard (1994b, p.283), colhendo a oportunidade para acentuar a
polifonia e o panlogismo que em sua vigência imaginária instaura o universo poético –
entre o real e o irreal – como reino das diferenças e da diversidade de palavras, símbolos e
pensamentos.
A filosofia estética bachelardiana, tomando a poesia como fenômeno do silêncio,
investiga também a dicotomia existente entre a leitura e a audição do poema, entre a poesia
114

lida e a poesia declamada - cunhando, como visto, o extraordinária expressão – declamação


muda – no intuito de assinalar a riqueza de significações que advêm, ao meditarmos o
poema com calma, numa leitura lenta, silenciosa e reflexiva, como se a infinidade de
valores comoventes fosse o tesouro escondido no verso, a linfa secreta que exige, portanto,
a busca, atenciosa e calma, por ligações (liaisons) entre o desenho das palavras no papel e o
vórtice de ressonâncias e vivências interiores que dela deriva.
Para o filósofo, a mera audição do poema “não sonha as palavras em profundidade”
(1994b, p.283). No fenômeno da audição – dominado pelo injusto privilégio das
sonoridades – o pensamento não encontra a ocasião para efetuar a troca de registro entre
suas funções de realidade e irrealidade50, não se transforma em devaneio, mas permanece na
ordem dos conceitos sem transpor o véu imaginário que, opondo conceitos a imagens,
funda em seu alhures o domínio de vigência da significação poética, instaurando assim o
terreno51 onde surge com vigor a ação significante da imagem poética.

Para merecer o título de imagem literária, é necessário um mérito de


originalidade. Uma imagem literária é um sentido em estado nascente. A velha
palavra recebe um novo significado. Mas ainda não basta. A imagem literária
deve se enriquecer de um onirismo novo. Significar outra coisa e fazer sonhar
diferentemente. Dupla função da imagem literária (1994b, p.283).

É esta, então, a verdadeira função do poema. O estupor e surpresa com o qual são
acolhidas as inusitadas novidades do poeta servem para relembrar-nos nossa habilidade
para a criação instantânea de significações inéditas, nossa capacidade de tecer sonhos
novos, de sonhar o insonhável, pois, o signo poético – imagem com a qual o poeta molda e
remodela, constrói e reconstrói, seu devaneio – não é recordação nem lembrança e, nem
mesmo, a marca de um passado. É a satisfação de uma emergência da imaginação, do
desejo humano de criar universos imaginários.
Pura ousadia, a imagem literária representa na imaginação a metamorfose que
somos na realidade, onde – seguindo o fio bachelardiano das negações afirmativas ou dos

50
O ritual mágico que separa num instante a racionalidade conceitual do devaneio imagético nos traz à mente
o verso de Lupicínio Rodrigues, na canção Felicidade: “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é
que a gente voa quando começa a pensar”, no qual é o pensamento mesmo que sonha e que, portanto, voa.
51
Terroir seria aqui o termo adequado, de uso frequente na Borgonha, terra natal de Bachelard, le terroir
traduz no cenário dos vinhedos não somente o solo como terreno, mas também a influência de fatores
climáticos, a direção e a força dos ventos, a integração dos elementos naturais, e assim, traz em si todo o
environnement circunstante.
115

paradoxos sensatos – o indivíduo, para pensar-se como ser, deve abjurar seus próprios
erros, como diz Bachelard em O idealismo discursivo (1934), afirmando também que:

É fechando os olhos que nos preparamos para ver [...], logo, só conseguirei me
descrever como sou se disser o que não quero ser. Só aparecerei com clareza a
mim mesmo como a soma de minhas renúncias. Meu ser é minha resistência,
minha reflexão, minha recusa (1970, p.85).

Em uma decisiva declaração do papel afirmativo da negação, Bachelard traça aqui


uma modalidade de percepção do ser que passa na pessoa humana através da renúncia.
Estremecendo, todo andaime metafísico que ergue a noção tradicional de subjetividade
sobre princípios e valores absolutos, ao terminar o artigo definindo sua meditação como
uma deformação do pensamento, uma desconstrução que, entretanto, adquire valência
positiva, alcançando status de retificação do conhecimento de si, no estatuto de um saber
em renovação que não teme afirmar: “Sou o limite de minhas ilusões perdidas” (1970,
p.97). Extremo e refinado jogo dialético de inversão da racionalidade, no qual a
proximidade entre duas noções negativas afirma, ao contrário, um aprimoramento da
consciência, pois, ao perder ilusões, promove-se maior evidência, desperta-se o ser.
Tamanho é o alcance da reflexão – indefinida e silenciosa – que se aplica às
imagens literárias. Uma só imagem basta para transportar-nos a um universo outro da
realidade. Por isso, no reino do imaginário toda oposição transmuta-se em valoração, em
afirmação que, negando o dado, abre o espaço do desconhecido e do inusitado, onde
qualquer inovação da linguagem dinamiza a imaginação e faz da imagem literária um
explosivo que deflagra as noções comuns da percepção empírica em miríades de
mobilidades, de sublimações e libertações. Bachelard procede como topógrafo ao definir a
imagem literária como “relevo psíquico [...]. Ela grava ou eleva. Ela encontra a
profundidade ou sugere uma elevação” (1994b, p.286). Em tal modo, ele funda o terreno da
verticalidade como perspectiva do imaginário, onde a imagem pesa e deprime o psiquismo
ou alivia e revigora a alma, “Sobe ou desce entre céu e terra” (1994b, p.286).
Assim, em seu verticalismo a imagem exprime múltiplos significados em diversas
linguagens: “É polifônica por ser polisemântica” (1994b, p.286), diz o filósofo, alargando
sempre o âmbito do saber no qual desenvolve suas pesquisas, promovendo a consciência
dos duplos sentidos da imagem como “atividade linguística normal e fecunda” (1994b,
116

p.286-287 ). E vai além, ao afirmar a realidade dos “duplos, triplos e quádruplos sentidos
poéticos” (1994b, p.287).
Diga-se que, junto ao aspecto da metodologia de contrários - como seu motor - a
presente pesquisa progride, ao ilustrar com o que foi dito, a mobilidade de imagens que,
possibilitando sínteses violentas, caracterizam a linguagem como função de imprudência
humana e expressão princeps do exagero imaginário.
Ao se projetar no bachelardismo a ligação entre os termos que descrevem a
perspectiva de seu dinamismo, com aqueles que, paralelamente, traçam o característico
contexto de ambivalências e contradições, chama-se em causa o Bachelard ledor de
Friedrich Nietzsche, que cita, de La volonté de puissance (p.217): “Dotado de uma vista
mais sutil, verás todas as coisas instáveis”. A instabilidade de todas as coisas do todo, pois,
funda paradoxalmente o ponto de vista que coliga dinamismo e negação, ao inserir todo o
arco da investigação intelectual na prática de um pensamento aberto, liberto das amarras
milenares que o paralisavam no cativeiro do conceito de absoluto, rija delimitação da
atividade reflexiva contingente, desvalorizada no confronto com a realidade inteligível das
ideias eternas e universais, e dos conceitos primeiros como modelos de toda lógica
reflexiva.
Além do dinamismo das forças que, em conflito, configuram indivíduo e mundo, e
que são decorrentes do cancelamento da noção de absoluto, por obra da metáfora da morte
de deus, encontramos outro possível foco da leitura bachelardiana do filósofo alemão, na
ideia de construção de si como obra de arte.
Partindo da interrogação de Píndaro sobre como alguém se torna o que é, a autora52
investiga na obra de Nietzsche (Gaia ciência, Zaratustra e Ecce homo) a noção de
construção de si enquanto obra de arte, como uma solução para a náusea existencial
decorrente da ausência de justificação ao problema do sofrimento presente na vida humana.
Somente como fenômeno estético, a existência - liberando-se de seu aspecto cruel - torna-se
suportável, sem fazer recurso à consolação metafísica, contando unicamente com a humana
capacidade de recriar-se como obra de arte, de inventar um novo papel e uma nova forma
de agir, dando assim um novo estilo ao próprio caráter. Fundamental nesta transformação
52
Caixa Cultural do Rio de Janeiro, Ciclo de Palestras: Nietzsche: Filosofia, Arte e Vida. (Orgs.). André
Masseno e Tiago Barros. E anotações durante a palestra em 26 de junho de 2012 de Rosa DIAS: “Nietzsche: a
vida como obra de arte”, Rio de Janeiro.
117

da humanidade é a tarefa de disciplinar os impulsos que dominam o corpo, em sua luta pelo
predomínio de um sobre os outros, cada um tentando impor sua própria vontade de poder,
tendência fundamental da vida.
Esta pluralidade de impulsos corpóreos em lutaage através do intelecto e da
vontade, meras faculdades instrumentais com as quais o corpo alcança seus fins específicos,
ressaltando portanto que a decisão de se modificar não é da ordem da consciência. É o
inconsciente corpóreo que nos guia. Mesmo assim, o ser humano ainda pode se reeducar
para superar a tristeza da existência. Contra a imutabilidade e fatalidade do caráter, o
indivíduo faz surgir, em si mesmo, um novo ser, capaz de tornar-se o que ele é. Esta
necessidade de autossuperação institui a necessidade de reorganização da própria vida
como estímulo ao processo constante de superação do homem. Com tal finalidade, em O
andarilho e sua sombra (in: NIETZSCHE, 2008) encontra-se o princípio de organizar a
própria vida segundo o que é mais próximo e seguro. Portanto, bem mais próximo do que
as quimeras da imortalidade ou mesmo da divindade, estão os aspectos mais simples do
modo de vida de cada um, como a moradia e o regime alimentar, por exemplo. Assim, o
olhar volta-se às pequenas coisas da vida, aos conselhos propícios à boa saúde, pois, para
um bom domínio de si como guia a ser o que se é, torna-se necessário superar o fundo
primitivo de bestialidade presente no homem, evitando a satisfação dos impulsos como uma
fatalidade.
Sem caluniar os impulsos, o pensamento nietzscheano (NIETZSCHE, A genealogia
da moral, SP – Companhia das letras, 2009) prevê que a Grande Razão que preside cada ser
vivo os dobre sob o jugo de uma severa disciplina, propondo o exercício de uma ascese
como meio de luta, como técnica de subjugação de si, visando a superação do estado em
que o homem se encontra. Um ascetismo temporário torna-se necessário à boa organização
dos impulsos, transformando Nietzsche em filósofo médico que prescreve curas lentas para
enfermidades da alma, consideradas como decorrentes de estilos de vida negligentes; o que
por outro lado, revela o ego como um embuste ideal que sucumbe à lógica
desidentificadora da reinvenção de si mesmo.
A afirmação da vida como invenção refuta a noção de sujeito como ficção. Quem
faz o eu é o corpo e a sua razão. É a unidade corpórea que proporciona a identidade do eu,
como realidade móvel, como identidade que difere a cada instante. Fazer o eu adquire
118

assim um sentido capital na visão de Nietzsche, em oposição ao perigo do nihilismo


passivo que, ao considerar tudo já feito, tende à afirmação de que nada valeria à pena.
Rosa Dias afirma então a possibilidade deleuziana de criar-se uma nova
subjetividade, desprendendo-se de si mesmo, para enfrentar os perigos da travessia de uma
vida que traduz, no sentido de experiência ou experimentação, a noção de passagem ou
viagem em direção ao novo estilo, ao novo caráter. O aforismo do andarilho, em Humano
demasiado humano é a exata metáfora desta (des)subjetivação, deste desenraizamento de si,
que se cristaliza no privilégio do apátrida que, tendo se reencontrado, sabe conceder-se
ocasionais perdas de si, durante a travessia, acolhendo novidades com amor. Consagrando-
se em cada instante ao que é necessário, na insignificância da vivência diária, dá-se estilo
ao próprio caráter, acumulando força na vontade que faz da vida um esforço em direção à
potência. Este ideal de nomadismo espiritual sugere comportar-se como um viajante,
acolhendo forças estrangeiras na escuta das vozes que, junto às diferentes situações, trazem
consigo novas maneiras de viver, que por sua vez, também não serão duradouras, já que
tornar-se o que se é implica mudança contínua. Tornar-se o que se é refuta a ideia de
finalidade estática, ao se afirmar a necessidade contínua de reinterpretar-se e reorganizar-
se, dando forma simultaneamente ao projeto artístico de um novo caráter.
Tal processo de permanente expansão realiza a arte de tornar-se o que se é,
reconhecendo como próprio, tudo o que se fez. Este é o sentido da lenta cura nietzschiana
para a doença do homem - cura contra o nihilismo, a metafísica e o medo - que se
fundamenta sobre a necessidade constante de afirmação da vida como vontade de potência
do homem que usa seus obstáculos para instaurar o trabalho experimental que,
hierarquizando em ascese, os impulsos, pulsões e instintos – raízes do mal-estar humano –
instaura um regime de educação do corpo, visando substituir à ideia de objetivo, a prática
diária de um crescimento irrefreável.
Durante quase dois milênios e meio, o Ocidente caracterizou o pensamento como
um reflexo platônico do cintilante esplendor do Ser, ocultado atrás de um alto muro, por
cima do qual sua luz projeta o contorno de certas formas, no fundo de uma caverna, onde a
humanidade, amarrada nessa direção, contempla tais sombras, como se fosse essa a
realidade. Somente no ocaso do século XIX, conquista-se o pensamento do Abgrund,
119

pensamento da falta de fundamento53, expresso no tripé conceitual que reúne Nietzsche,


Marx e Freud em uma nova concepção da realidade contingente, de uma humanidade sem
deus e, portanto, fruto da determinação de forças econômicas e inconscientes.
Existia, portanto, ainda nas primeiras décadas do século XX, a expectativa por uma
abertura na reflexão intelectual capaz de proclamar-se, em autonomia diante do pensamento
absoluto como expressão ambígua e antagônica de uma razão em busca de reformulação,
talvez, nos termos mesmos de um pensamento imprudente e dinâmico, como aquele que
Bachelard emprega no estudo da imagética literária, caracterizando-a em L’air et les
songes, essencialmente como dinamismo, como movimento em oposição à rigidez da
filosofia do conceito.
Bachelard (1994b, p.289) alega que Bergson (1934) “em sua revolução contra a
filosofia do conceito” batia-se, também, contra a mesma rigidez do pensamento – em
campo de evolução genética – ao indicar como tarefa metafísica o estudo direto da
mudança que, entretanto, não se deixa explicar pelo movimento sob pena de tomarmos o
efeito movimento, pela causa, mudança, já que, segundo Bachelard, a investigação sobre a
noção de movimento exige que a metafísica proceda ao exame de “seres nos quais uma
mudança íntima é causa do movimento” (1994b, p.289). Ele encontra a razão de tal
exigência, em Bergson, para logo desenvolvê-la numa rigorosa teoria filosófica,
fundamental à linha de raciocínio que está sendo seguida neste estudo.
O filósofo da continuidade temporal, Bergson (1934), argumenta que a precisão
matemática dos métodos científicos que definem o movimento em sua relação com o
espaço termina por reduzi-lo à geometria, desprezando totalmente o poder de devir que, em
última análise, representa a essência mesma do movimento. Ao considerá-lo, unicamente,
como objeto de estudo da mecânica, diz Bachelard (1994b, p.290): “o movimento reduz-se
ao transporte no espaço de um objeto que não muda”.
Trata-se de uma paradoxal tradução científica do movimento como realidade
constante que, ao ser considerada pelo viés de suas relações de exterioridade, não mudaria.
A partir daí, o olhar profundo do poeta desloca o foco de estudo para a interioridade dos
53
Sobre tal questão, o filósofo italiano Emanuele Severino argumenta em seus volumes de história da
filosofia moderna e contemporânea, que o remédio - como noção de Ser eterno e imutável, de Absoluto -
formulado pela tradição do pensamento, contra o terror devido à instabilidade do devir, teria sido pior,
causando portanto mais danos, do que a própria doença - o devir - que pretendia curar, pois tornou-se, ele
mesmo, causa de imobilismo do pensamento.
120

“seres que se deslocam para mudar” (1994b, p.290), os quais relatam claramente o
movimento como uma vontade interior de mudança. Não se trata mais do simples “estudo
objetivo e visual do movimento, estudo cinemático” (1994b, p.290).
Migramos assim para o domínio do saber retificado, para uma análise da
experiência renovada do movimento, enquanto esta mesma, além dos traçados numéricos
de gráficos e linhas no papel, leva em consideração fundamentalmente a vontade de mover-
se. Este tipo de abordagem bachelardiana da questão do movimento ilustra com eloquência
uma forma de deslocamento num eixo polar de investigação. A saber, abandona-se o ponto
de vista técnico – fundado sobre a exterioridade fenomênica do problema em pauta – para
migrar em direção à consideração de referências concernentes ao âmbito oposto, da
interioridade54.
Os seres que se movem tornam-se, pois, causas iniciais de movimento, devendo
portanto, serem estudados segundo as diretivas mencionadas acima, a saber, praticando
uma variante do típico procedimento bachelardiano por inversões metodológicas, que nesse
caso, prevê o desprezo do procedimento clássico da mecânica – filosofia de descrição
cinemática (1994b, p.290) – substituído pela nova démarche da pesquisa – filosofia de
produção dinâmica – que, como anunciado, levará em consideração a ordem da
interioridade do movimento, acolhendo, portanto, as experiências de dinamismo
acumuladas nas análises da imaginação material, ponto de vista anteriormente desprezado
pela pesquisa científica.
Nota-se assim mais esta aplicação do princípio bachelardiano de dualismos
dicotômicos, segundo o qual o filósofo distingue, no estudo das noções de mudança e
movimento, essas duas possibilidades de démarche filosófica: por descrição cinemática ou,
inversamente, por produção dinâmica; visando enriquecer a discussão sobre o tema do
movimento, enxertado no domínio da vontade e da imaginação, capazes que são, como
visto, de produzir uma profusão de imagens materiais e dinâmicas. Será visto ainda que a
perspectiva bachelardiana da imaginação, com suas imagens materiais e dinâmicas, corrige
a défaillance de uma análise que, restrita ao cinematismo, não conseguia atingir o

54
Notamos tratar-se aqui da mesma inversão de rota, com a qual vimos Bachelard fundar sua nova
modalidade de crítica literária, ou seja, após rejeitar a racionalização conceitual como critério crítico da
produção estética, ele instaura a modalidade de uma segunda leitura do poema; uma leitura com a alma e não
mais somente com a mente lógica, apta portanto a fomentar vivências profundas de experiências poéticas.
121

dinamismo fundamental para ancorar o pensamento do movimento nas experiências de uma


vida.
Aliás, para Bachelard, o melhor modo de se conhecer a vida passa através da
produção de suas imagens, o que faz da imaginação o domínio de eleição para a meditação
sobre a vida (BACHELARD, 1994b, p.291). Aquilo que parece ser uma paradoxal mistura
de termos distintos, confundindo irreal e concreto, imaginação e vida, configura-se, na
visão do filósofo, como abertura do panorama de pesquisa, pois, “se toda meditação da vida
é meditação da vida psíquica” (1994b, p.291), daquilo que era visto enquanto paradoxo
surge o esclarecimento que indica no impulso do psiquismo, a raiz da continuidade mesma
que observamos na duração temporal. A intuição imaginante será, por conseguinte, o
fenômeno capaz de demonstrar como o próprio psiquismo dura, enquanto a vida em si
parece oferecer, em toda ocasião, o espetáculo da luta de polaridades opostas, oscilando
continuamente, em modo cego, entre necessidade e satisfação de suas exigências primárias.
Comentando a demonstração bergsoniana do valor dinâmico da duração (1994b,
p.291), que reúne em si uma polaridade entre passado e futuro, Bachelard, nos oferecendo a
oportunidade de aprofundar a análise de seu modo paradoxal de filosofar através da
contínua oposição de termos contrários, define critérios importantes do seu procedimento
de crítica filosófica, fundada sobre imagens materiais – dinâmicas e ativas – ou seja, de
uma crítica imaginária que nos conduz além da abordagem tradicional da questão, segundo
uma dialética fácil como aquela exercida na análise meramente conceitual e lógica. Para
Bachelard, a imaginação supera o logicismo, porque trabalha com a união dos contrários.
Veja-se, portanto, a solução que apresenta na consideração – por imagens – da
duração como fusão de desígnios do passado e de aspirações do futuro, solidarizados na
qualificação do presente como instante de mutação permanente, “soma de um impulso e de
uma aspiração” (1994b, p.292), no qual nos sentimos arrebatados por um movimento. Ou
melhor, por uma imagem dinâmica que, para ser vivida em sua vontade, como afirmado
precedentemente, deve nascer em nós mesmos, promovendo o que foi anunciado como uma
migração dos parâmetros exteriores da crítica filosófica para a ordem da interioridade.
Recorrendo à imaginação aérea como coleção de imagens do movimento, Bachelard
encontra no devaneio do voo onírico a transcrição de uma experiência vivida que nos
constitui como móbil (1994b, p.293), respeitando deste modo a exigência de uma
122

percepção interior da mobilidade, a qual, ao mesmo tempo em que inverte o


direcionamento da meditação, de fora para dentro da subjetividade, também constitui uma
elevação no nível de complexidade definida pela questão que, desta maneira, enquadra-se
no mecanismo teórico que busca um maior esclarecimento e compreensão dos tópicos da
pesquisa, inserindo-os na dinâmica de um pensamento retificado, que procede, valendo-se
das dicotomias apresentadas em esquemas de polarização. Vê-se assim que a principal
dificuldade na procura de imagens da duração experimentada em nossa interioridade
cristaliza-se na consequente necessidade de caracterizar o ser mesmo, simultaneamente,
como “movido e movente, como móbil e motor, como impulso e aspiração” (1994b, p.293).
Trata-se de uma síntese de “ser movido” e “ser movente”, sugerida à atenção do filósofo
pela questão inicialmente formulada na intuição bergsoniana do movimento.
O intelecto refinado de Bachelard anuncia com potente abstração a tese defendida
no ensaio sobre o ar: “Para se constituir como móbil que sintetiza em si o devir e o ser, é
necessário realizar em si mesmo a impressão direta do alívio” (1994b, p.294). Apesar de o
presente estudo limitar os dois primeiros capítulos à coleta de indícios sobre a proposta de
uma metodologia filosófica que se desenvolve sobre o terreno instável de inversões e
ambiguidades, podendo pois – sem, por isso, comprometer sua precisão – ser denominada
de metodologia incerta e mesmo, adiando conclusões para o término do trabalho, salta já
aos olhos, nas palavras com as quais Bachelard anuncia a tese acima, quesitos centrais para
o progresso da análise tecida aqui. Refere-se aqui à consideração da experiência pessoal de
alívio - como ocorre, por exemplo, nos momentos de repouso da alma, nos instantes de
satisfação consigo mesmo, ou ainda, com o andamento ziguezagueante dos eventos
mundanos, como condição necessária para a constituição de nossa mobilidade interior.
Vejam-se as duas constatações consideradas importantes para esta tese. Em primeiro
lugar, retorna o mesmo processo de interiorização na ordem mesma da reflexão, já
mencionada anteriormente. Trata-se de constituir-se como móbil, onde constituir-se móbil,
equivale a aceitar-se como ente em devir num mundo que muda, ceder à contínua
transformação que comanda o passar do tempo universal. Mas o filósofo não para por aí,
vai além, afirmando - a segunda constatação - que tal mobilidade serve a sintetizar devir e
ser na interioridade mesma do ente.
123

O leitor despercebido poderia nem mesmo notar aí a sofisticada tese filosófica que
Bachelard traduz em palavras tão simples, que escorrem fluidas no corpo de seu texto. A
percepção e o consentimento à mobilidade interior, ou melhor, a constituição – é o termo
que usa – de tal dinamismo intrínseco ao ente que deve conjugar devir e ser. Equivale à
afirmação de um ser essencialmente em devir, afirmação do devir como verdade incerta de
um ser que é mutante. Delicada conquista de uma tese filosófica fundamental, alcançada
aqui em duas linhas. Remete-se, portanto, à negação do absoluto que foi visto pairar sobre a
filosofia de Bachelard, assim como sua atenciosa leitura de Nietzsche, filósofo do devir.
No que concerne a presente tese, pode-se avançar a proposta que convalida o uso
metodológico frequente de contradições e ambiguidades como principal motor da evolução
dinâmica de um saber que se constrói como abertura à mutação permanente. E se antes se
buscava – numa ideal compilação de listas de termos bachelardianos dinâmicos e polares –
o fundamento mesmo para nossa proposta, agora, após o anúncio da tese defendida no
volume aéreo, sabe-se que a contradição de termos opostos, utilizada como dinâmica de
afirmação e reformulação de um saber em estado de permanente retificação, traduz como
método de conhecimento a verdade instável e portanto dialética do ser mesmo.
O corte gnoseológico que tal análise produz no panorama da teoria clássica do
conhecimento tende a tornar-se ainda mais profundo se a reflexão for girada para a
dinamogenia do ato de conhecer, que rege subjetividade e objetividade como polos
dialéticos de mudança permanente, enquanto ambos representam realidades in fieri que se
constituem, reciprocamente, no ato mesmo de seu encontro ou embate:

Mover-se num movimento que envolve o ser, num devir de leveza, é já


transformar-se em ser movente. Precisamos ser massa imaginária para nos
sentirmos autor autônomo do nosso devir. Para isso é necessário tomar
consciência desse poder íntimo que nos permite mudar de massa imaginária e
converter-nos em imaginação, na matéria que convém ao devir de nossa duração
presente. [...] “podemos fazer fluir em nós mesmos tanto o chumbo quanto o ar
leve” [...] podemos constituir-nos como o móbil de uma queda ou de um impulso.
(1994, p.294, grifo nosso)

O enlace, pois, de ontologia e gnoseologia, o vínculo entre as ordens distintas do ser


e do conhecimento soa como a obra de um filósofo bailarino, relembrando a metáfora
nietzscheana que simboliza a transformação íntima do espírito que se dispõe a seguir um
tipo de meditação que envolve a conquista da mobilidade interior com inusitadas e
divergentes experiências de queda ou de impulso, de entristecimento ou de exaltação.
124

Valoriza-se assim o alcance de uma qualidade intrínseca como abertura da individualidade


à ambivalência. Valoração por inversão, por ambiguidade e negação, que se opõe
drasticamente ao cogito ergo sum, às certezas claras e distintas do procedimento cartesiano
por conceitos absolutos. O ser que se abre à dualidade e à contradição em sua própria
interioridade deve, forçadamente, abandonar os métodos rígidos de um saber certo e seguro
para aviar-se à percepção da realidade paradoxal de uma forma incerta de vida, de uma
existência fraca – debole – que o mantém vinculado às incertezas polares do mundo.
A intuição de um impulso aliado à sensação de alívio interior dota o filósofo com a
leveza necessária à sua dança de conceitos e imagens, pois quanto mais leve for a pipa,
mais alto voará, verdade do imaginário que ressoa em nossa infância permanente. Fazer-se
aéreo se torna metáfora do cogito dinâmico que sabe aceitar-se mutante, disposto a
experimentar a vida como fenômeno da impermanência, reino da contradição que se
desenvolve em termos de negação e rejeição, ao promover, simultaneamente, aberturas de
renovação e de superação.
O jogo de inversão bachelardiano aplica-se, também, à descrição que faz da
maleabilidade da matéria imaginária que nos constitui como ser em mutação: uma
“Meditação ativa e ação meditada” (1994b, p.300) promove a consciência de sermos uma
força ativa, diz o Bachelard nietzscheano. Força que se constitui em oposição, em
antagonismo a outras forças, dando origem à imagem do ser no crisol, onde “se cristaliza
ou se sublima, cai ou sobe, se enriquece ou se despoja, se recolhe ou se exalta” (1994b,
p.300).
A dialética deste devaneio de transmutação efetua-se, certamente, através da
dinâmica, permanente e contínua, de valoração das imagens que por sua vez é fruto do
constante exercício de um cogito valorizante, que age – sobretudo no domínio das imagens
literárias – através da aplicação de “dialéticas extremas de enriquecimento e de libertação”
(1994b, p.302).
Surge assim mais uma chave interpretativa do uso metodológico de oposições
polares nas obras estéticas de Bachelard. São o fomento da transmutação que possibilita a
dinâmica de valoração do ser através das imagens. Por isso, quanto mais etérea e ligeira for
a realidade, o ser e a imagem – todos coligados pelo fenômeno do retentissement – maior
será sua possibilidade de movimento. Tal exigência decreta o elemento aéreo como
125

fundamental ao livre devir e à evolução do psiquismo humano, levando o filósofo a


categorizar a leveza dos elementos aéreo e ígneo – do ar e do fogo – como produtora de
exuberâncias dinâmicas, como observado nos valores de decolagem que inspiram a
abertura ao futuro; enquanto – na riqueza imaginária infinita de seus minerais – a terra é
definida, por inversão, como o elemento onírico “dinamicamente mais inerte” (1994,
p.299).
A imaginação é essencialmente valorização de imagens que, manifestando beleza,
revelam a crença que nos liga ao imaginário como segredo do dinamismo psíquico (1994,
p.296-297). Este ao explicitar sua função – ou seja, imaginando – concomitantemente
valoriza imagens, por intermédio das quais, promove também a transformação do ser e de
toda realidade, pois, no ato do devaneio, um engajamento fundamental envolve – em estado
de sincronia cósmica – a matéria, suas imagens e movimentos, sobretudo movimento de
subida e descida – com a evolução mesma da vida. Portanto, ao serem referidos os
múltiplos termos que descrevem dinamismo e oposição a qualidades comuns aos domínios
do sonho literário, o processo de mutação dialética por intermédio de divergências
polarizadas, estende-se por todos os respectivos níveis, reais e irreais, pelos quais se
explicam os impulsos do dinamismo imaginário, justificando assim a qualificação da
filosofia estética de Bachelard como metodologia de uma dinâmica de oposições.
Em sua rigorosa seleção e ordenação de imagens do devaneio cósmico, o juízo
descriminante do filósofo submete as imagens da mente a uma ulterior divisão, pois aquelas
que se reduzem a meras ilustrações de movimentos exteriores – como no exemplo que cita
de um jato d’água que sobe e cai – não se transformam em vivência do dinamismo interno.
“É só uma ilustração conceitual, visual, como um movimento desenhado, não é um
movimento vivido, não desperta nossa participação” (1994b, p.297).
Isenta dessa força imagética, fundamental à instauração mesma do processo
fenomenológico de compartilhamento - entre autor e leitor - das experiências de uma vida
imaginária, a imagem poética, despotencializada em sua exterioridade, não se converte em
metáfora de metáforas. Desse modo, não abre, portanto, acesso ao nível ontológico da
imaginação. Não permite viver as imagens literárias em sua total e irrestrita liberdade e
autonomia, nem do passado, nem da racionalidade lógica, nem, muito menos, da realidade
mesma.
126

Não ter acesso à ontologia da imagem significa, em poucas palavras, que não se dá
o fenômeno do retentissement poético, como ressoar do simbolismo que, eclodindo da
mente criadora do poeta, comove o leitor, abrindo as portas de sua interioridade, de sua
alma e de seu coração, no pulular de imagens germinais que determina a proliferação de
imagens novas.
Logo, representações contempladas como espetáculos exteriores, na cena poética
bachelardiana, não são mais que simples promessas frustradas de um devaneio profundo
que, somente ao nutrir-se de intimidade, desabrocha em mutação criativa. Promessas de
uma dinamogenia – radicalmente dialética – possível somente na interioridade do
psiquismo tocado pela comoção do poema55. Se a força criativa não transforma paisagem
em vivência, em experiência, não sentimos o drama do impulso material, nem a “enorme
contradição da vida, que ao mesmo tempo sobe e desce, se eleva e hesita, se transforma e se
endurece” (1994b, p. 297). Na verdade, sem experimentá-la interiormente, em modo
emotivo profundo, não advém o processo mesmo de valorização da imagem, que
permanece, pois, impotente para exprimir a vida, definida nietzscheanamente56 como
atividade de valoração do conteúdo de nossas vivências.
Para Bachelard (1994b, p.297), trata-se de viver, simultaneamente, “a valorização
da vida e a desvalorização da matéria”, diz o autor – numa inversão terminológica que logo
em seguida contradiz a si mesma - solicitando os leitores a se entregarem à imaginação
material, buscando imagens alquímicas no pensamento daqueles que mais sonharam e
valorizaram a matéria, projetando em seus diversos estágios todos os graus da busca pelo

55
A exigência de aprofundamento íntimo, como quesito imprescindível à realização do projeto poético
bachelardiano, que requer comoção, contato com a interioridade de si e a sucessiva transformação do fruidor
de poemas, confirma o que já referimos como êxito de nossa dissertação de mestrado: O devaneio cósmico e o
conhecimento de si, Gaston Bachelard, da alma poética à androginia da alma; onde vimos o autor mesmo
conquistar e anunciar a consciência da ambivalência de sua própria alma.
56
Fernand Turlot, ex-aluno de Bachelard na antiga Faculté des Lettres de Dijon, em correspondência enviada
a Jean-Jacques Wunenburger, e publicada no último número do Bulletin Bachelard, relembra que o mestre
dedicou o curso de 1940-41ao estudo de Nietzsche, passando do vouloir-vivre de Schopenhauer à volonté de
puissance nietzscheana, pensando um futuro livro sobre a Vontade. A recente publicação confirma Bachelard
como profundo conhecedor e estudioso do pensamento de Nietzsche. Turlot afirma que, para Bachelard, as
obras deste último filósofo alemão com plano mais rigoroso eram as menos interessantes: “Suas grandes obras
são heteróclitas[...]em Nietzsche, a vida aceitará perder-se, à condição de sentir-se potente. O ser quer ser
potente mesmo se tivesse, para isso, que perder todos seus bens mundanos[...]. Nietzsche quis ser forte,
sobretudo contra certas ideias (por exemplo, religiosas). No fundo, com um querer forte, não existe mais
crença” (TURLOT, F. Souvenirs, Bulletin n.14, Les années dijonnaises de Gaston Bachelard, 1930-1940.
Dijon, Association des amis de Gaston Bachelard, 2012).
127

aprimoramento e pela perfeição. Assim, o processo químico de destilação das substâncias e


de purificação dos metais reflete o aperfeiçoamento da vida, razão pela qual a pedra
filosofal é custódia do “segredo da saúde, da juventude e da vida” (1994b, p.298).
Do mesmo modo, se abordarmos as imagens do devaneio somente em estado de
animus, a saber, analisando-as com o espírito de racionalidade – como foi dito no caso da
pura exterioridade das imagens – em tal caso, a imagem também não prolifera, não pulula
em miríades de novas imagens. Bachelard (1994b, p.298) sugere, em várias ocasiões, o
onirismo profundo do pensamento alquímico – ao qual, portanto, deve-se retornar – como
antítese deste devaneio frustrado ou bloqueado pelas duas principais causas de estagnação
da dinamogenia poética, a saber, a racionalização e a exterioridade das representações
simbólicas. Já foi observada a contemplação exterior da imagem – ou sua mera
representação mental – como obstáculo à experimentação interior de seu conteúdo poético.
Basta acrescentar que, da mesma forma, quando a imagem é racionalizada –
processo que configura o principal vício da crítica literária tradicional – o devaneio é
privado de todos seus valores oníricos. É oportuno notar, também, como a típica dinâmica
expositiva bachelardiana por inversão, intermediada pela negação da tese oposta ou
contraditória ao argumento principal, a ser defendido pelo autor, alcança sempre o objetivo
de aprofundar o nível de conhecimento da tese mesma que lhe interessa afirmar57.
Indicando o ressoar interior de impulsos antagônicos, ativos no processo de
destilação alquímica, Bachelard (1994b, p.297) mostra o que falta à imagem exterior do
jato d’água; e cuja ausência, como já dito, obstaculiza e bloqueia sua vivência em termos de
onirismo profundo. Vista como procedimento de purificação, a destilação praticada no
laboratório alquímico, ao mesmo tempo em que eleva a substância, também a alivia de suas
impurezas, e tal ambivalência simultânea, na convivência contraditória dos movimentos
divergentes de subida e descida, de elevação e alívio, propostos uno actu, em
concomitância, cria o paradoxo capaz de ativar todos os poderes oníricos do devaneio em

57
A negação do contraditório à tese defendida, em verdade, é um velho método de progresso do
conhecimento filosófico, usado mesmo em lógica clássica, como no caso do conhecimento através da via
negationis, utilizado pela filosofia medieval para demonstração dos atributos divinos: negando ao ser supremo
todas as qualidades contingentes do criado, lhe é atribuída a existência suprema.
128

profundidade: “Ao longo da ascenção, se produz uma descenção58. em toda parte e num
único ato, alguma coisa sobe porque alguma coisa desce” (1994b, p.298).
Como escola de ambiguidades, na alquimia – misturando-se às imaginações
materiais, terrestre e aérea – num devaneio de dualidade, ao mesmo tempo em que forças
aéreas cuidam da ascensão da substância purificada, o processo alquímico recorre à forças
terrestres que atraem impurezas para baixo. Em total ambivalência, é a descenção mesma
que favorece a ascenção. Quanto maior a atração para baixo, mais facilmente ascenderá à
sua pureza total, o substrato restante. Quanto mais suja estiver a matéria corpórea, mais
forte será a vontade de limpá-la, recita um princípio da imaginação material dinâmica.
Assim, cedendo a mais um comportamento dicotômico, o alquimista adiciona
impurezas ao corpo a ser limpo. “Sujam para melhor limpar, promovendo o que Bachelard
chama de maniqueismo do movimento” (1994b, p.299), ao unir duas solicitações contrárias
numa participação dupla e ambivalente ao mesmo ato de decantação, no qual se vê pois,
duas qualidades opostas serem unidas para melhor divergir. Somente o devaneio poético,
afirma o filósofo (1994b, p.299) pode viver perfeitamente tamanha contradição das leis
lógicas do pensamento químico: “Só o sonho pode viver perfeitamente a participação ativa
a duas qualidades contrárias”. Uma única sentença de Bachelard reúne o sentido dos dois
grupos de termos – de oposição e movimento – pois, ao afirmar que toda evolução exige o
sigilo de um destino duplo, ele assume como postulado do pensamento que todo dinamismo
de transformação resulta de ambivalentes encontros entre polaridades divergentes.
Da alquimia, um salto decisivo traduz a dicotomia como lei do psiquismo ativo,
afirmando que no coração humano “trabalham forças coléricas e forças pacificadoras”
(1994b, p.299) que dialetizam, pois, os dois dinamismos divergentes da vida. A saber, as
dinâmicas de transformação e de conservação, sob o impulso criativo da imaginação
material, que – superando seu aspecto meramente cinético – integra em sua meditação as
substâncias imaginárias que a animam, oferecendo ao devaneio seu suporte de
materialidade. A imaginação formal deve ser integrada pelo dinamismo do pensamento
poético, de modo a criar uma dupla participação, seja no contexto cinético da representação
muda, da figura geométrica, seja aquele pessoal do movimento íntimo da alma, da dinâmica
de suas emoções e sentimentos.

58
Expressão cunhada pelo devaneio alquímico (1994b, p298).
129

Parece-nos, portanto, que a imagem da sublimação material, como foi vivida por
gerações de alquimistas pode explicar uma dualidade dinâmica em que matéria e
impulso agem em sentido inverso, ao mesmo tempo que permanecem
intimamente solidários. [...] A imaginação de um movimento requer a imaginação
de uma matéria. À descrição puramente cinemática de um movimento (mesmo se
metafórico), deve-se acrescentar a consideração dinâmica de uma matéria
trabalhada pelo movimento (1994, p.299-300).

Bachelard nos ensina, portanto, a coragem de um comprometimento decisivo e


radical com os níveis mais profundos de nossa imaginação. “Devemos engajar-nos em
nossas imagens” (1994, p.300), aconselha o mestre, indicando as vias infinitas do devaneio
poético como percurso de superação e, por isso mesmo, de realização espiritual do
indivíduo, cujo destino de transcendência traça – nas linhas de uma evolução dinâmica –
seu próprio futuro de surhumanité, surracionalité e surrealité. Somos destinados a realizar-
nos somente superando-nos, dialetizando confins entre racional e irracional, entre real e
irreal. O imaginário é o campo de tal conquista. Para realizá-la, porém, impõem-se a
necessidade de superar as representações e figuras geométricas da imaginação formal,
dando uma matéria a nossos sonhos, encarnando-os, para então entregar-nos
imprudentemente às aventuras de uma materialidade cósmica meditada em toda sua infinita
gama de qualidades inversas, divergentes e contraditórias.
O embate com os paradoxos da matéria sonhada no poema dinamiza o psiquismo,
direcionando-o ao seu destino de superação permanente. “Na negra matéria se pressagia
uma ligeira brancura. [...] A claridade repele o negrume” (1994b, p.301), adverte
Bachelard, referindo-se à ambivalência polar que desperta o psiquismo do sono habitual
nos rigores monótonos do racionalismo lógico.
Encontra-se ainda em L’air et les songes uma análise fundamental para o êxito
desta pesquisa. Bachelard - tirando conclusões da dialética de libertação que domina a cena
do devaneio aéreo, nas figuras da leveza e do voo oníricos - situa o tema da liberdade
humana no domínio mesmo da imagem literária. Portanto, o filósofo argumenta, baseando-
se essencialmente na dinâmica de contrários aqui defendida como metodologia renovada e
retificada diante dos desafios apresentados em sua contemporaneidade à racionalidade, e
manifestados, indistintamente, nos dois âmbitos de seus estudos. Todo esboço de mudança
e transformação surge inicialmente no domínio do devaneio poético, onde o psiquismo,
130

continuamente, renova suas imagens. “É pela imagem que se produz a mudança” (1994b,
p.301), afirma Bachelard, indicando a dualidade do ato com o qual a linguagem literária,
através de suas imagens, deforma e extrapola a linguagem conceitual habitual. Na
expressão poética, ele indica um movimento do psiquismo que evolui em duas direções
opostas, pois deseja, simultaneamente, aglutinar a mudança insuflada pelo desejo de
novidades e a segurança sugerida pelo instinto de conservação. Em tal modo, a imagem
literária bifurca-se em duas perspectivas contraditórias, em dois devires incompatíveis, por
um lado a pessoa sente o ímpeto social de expansão, exuberância e expressão, e por outro
lado, cede ao desejo de intimidade. Mas,

Quando o ser vive sua linguagem geneticamente, entregando-se de coração e alma à


atividade literária, à imaginação falante, as duas perspectivas de expansão e intimidade se
revelam curiosamente homográficas. A imagem é tão bela, luminosa e ativa ao falar do
universo como ao falar do coração. Expansão e profundidade, no momento em que o ser se
descobre com exuberância, estão dinamicamente ligadas. Induzem-se mutuamente. [...] a
exuberância do ser revela sua profundidade. Reciprocamente, parece que a profundidade
do ser íntimo é uma expansão, em relação a si mesma. Colocando a linguagem em seu
lugar, no extremo da evolução humana, ela revela sua dupla eficácia. Infunde-nos suas
virtudes de clareza e suas forças de sonho (1994, p.302).

Com grande eloquência, Bachelard mesmo defendendo a promoção imagética do


pensamento, afirma que a filosofia aplicada na reflexão sobre o destino humano deve
necessariamente exprimir-se com uma linguagem viva, que aplica a riqueza das imagens
poéticas ao estudo do sujeito enquanto convergência de “meditação e expressão, soma de
pensamento e sonho” (1994b, p.301).
Para concluir este excursus bachelardiano, através das ambiguidades e contradições
apresentadas ao pensamento filosófico pela metafísica dos elementos primordiais,
examinam-se os duplos desafios propostos pela imaginação das forças e da intimidade,
elencados nos dois volumes de 1948, ambos a respeito da ambivalência intrínseca ao
devaneio terrestre que, polariza-se, divergindo entre poética do esforço e poética da
intimidade. Em tal dualidade de oposição, Bachelard contempla, por um lado,
trabalhadores, artistas e artesãos que imprimem o vigor de sua criação sobre a matéria
resistente, criando ocasiões para as alegrias musculares do devaneio da matéria sólida
transformada na ação das mãos e, por outro lado, imagens da intimidade que brotam da
matéria terrestre sonhada pelos poetas. Portanto, a terra exprime sua potencialidade poética,
segundo o duplo prisma da ação criativa e do repouso feliz.
131

É oportuno assinalar que tal divergência não deriva simplesmente de algum


maneirismo na argumentação do filósofo, mas, ao contrário, a subdivisão da poética
terrestre em duas obras, faz ressaltar a dicotomia essencial, intrínseca à natureza mesma do
elemento estudado, segundo um modus filosófico adequado à meditação da diversidade ou
diferença que caracteriza seu objeto de estudo. Nessa ocasião, a dicotomização do estudo
impõe-se, pois, como metodologia que acolhe a ruptura de perspectivas da poética terrestre
em duas obras, relativamente dedicadas às imagens da atividade e do repouso. Vemos aí
uma confirmação eloquente da hipótese que vem sendo defendida aqui acerca da habilidade
intelectual com a qual Bachelard desdobra sua pesquisa nos moldes de uma metodologia de
polaridades.
Mais uma vez será encontrado em Friedrich Nietzsche, especificamente no filosofar
alegórico, metafórico e simbólico que dá voz ao eremita Zarathustra, o modelo de um
raciocínio intelectual liberto dos rígidos padrões lógicos com os quais o pensamento
moderno decretava suas leis formais de idealização da objetividade, transformada portanto,
em polo abstrato de um pensamento certo – sempre claro e evidente – em sua busca pelo
conhecimento absoluto. É reconhecido aqui por isto nas duas vertentes bachelardianas de
renovação do saber, o ecoar da mesma modalidade de reflexão livre, que o filósofo alemão,
paradoxalmente, dedica no livro acima citado, a todos e a ninguém.
Rosa Dias (2011) cita o aforismo nietzscheano 128 de Além do bem e do mal:
“Quanto mais abstrata for a verdade que queres ensinar, tanto mais ainda precisas seduzir
para ela os sentidos” (p.374) argumentando que “Utilizando-se de uma alegoria, Nietzsche
quer trazer para as noções abstratas, para determinados conceitos que se cristalizaram de
modo a impedir que se tenha acesso a eles, imagens que os tornem palpáveis, tácteis e
visíveis” (p. 374). Refere-se a um filosofar que traduz noções abstratas em imagens
palpáveis, aproximando-se bastante do procedimento executado na filosofia estética
bachelardiana que, de sua parte, em La terre et les rêveries de la volonté, cita (1996b, p.2)
Baudelaire: “Quanto mais a matéria é sólida, mais sutil e laborioso é o trabalho da
imaginação”, referindo-se às dificuldades de devanear sobre a intimidade de uma matéria
tão sólida e real quanto a terra. Puxa-se aqui então um fio de analogias entre abstração e
sensibilidade, entre solidez e sutileza, para coligar Nietzsche e Baudelaire como adeptos
132

aos jogos de pensamento que, para melhor conhecer, opõem por inversão, qualidades
contrastantes do saber.
Em seus dois volumes terrestres, Bachelard (1996b, p.2) parte da indicação de uma
oposição, com a qual “começam, para nossas teses da imaginação material e da imaginação
dinâmica, dificuldades e paradoxos sem fim”

Efetivamente, diante dos espetáculos do fogo, da água e do céu, o devaneio que


busca a substância sob aspectos efêmeros não era, em modo algum, bloqueado
pela realidade. Na verdade, estávamos diante de um problema da imaginação:
tratava-se precisamente de sonhar uma substância profunda para o fogo, [...] de
imobilizar, diante da água fugidia, a substância desta fluidez, [...] imaginar em
nós a substância desta leveza (do ar), a substância desta liberdade (aérea): Em
breve, matérias sem dúvidas reais, mas inconsistentes pediam para ser imaginadas
em profundidade (1996b, p.2).

A imaginação terrestre, ao contrário, trabalha com imagens materializadas que tem


como referência o mundo concreto e consistente de matérias, duras ou moles, mas sempre
resistentes à ação do sonhador. No ambiente terrestre de pedras, metais, madeira, lama e
gomas, as substâncias impelem ao embate corpóreo, estimulado, também, através da
atração das mãos que, sobre elas, desejam agir para transformá-las, como vimos ao
tratarmos da oposição entre imaginação material e formal. O elemento terrestre oferece,
pois, como matéria de devaneio, substâncias que - devido à sua consistência intrínseca -
oferecem maior dificuldade e resistência ao abandono do sonho poético. “Com a substância
da terra, a dualidade de matéria e forma é tão manifesta, evidente e real que não vemos
como dar corpo a devaneios relativos à intimidade da matéria” (1996b, p.2), admite o
filósofo, que utiliza a dicotomia entre a resistência que as imagens terrestres oferecem ao
devaneio poético, e o aspecto diáfano – acolhedor de poemas – das substâncias sonhadas no
devaneio característico dos demais elementos, para debater sobre a função da imagem.
Neste debate, Bachelard recorre à polêmica que o opõe à filosofia realista –assim
como à psicologia – consideradas seus adversários, ao objetarem que a imaginação é
determinada pela prévia percepção de imagens da realidade. Primeiro vemos e depois
imaginamos, afirmam, reduzindo a imaginação a uma espécie híbrida, mistura de
percepções e lembranças. A polêmica resume-se numa oposição por inversão: O fundo da
cultura realista é o conselho de bem ver, que domina nosso paradoxal conselho de bem
sonhar, fiéis ao onirismo dos arquétipos, enraizados no inconsciente humano (1996b, p.3).
133

A primeira das duas obras a respeito de imagens materiais do devaneio terrestre


será, então, dedicada à refutação desta doutrina realista. E, como ocorre com frequência, o
impulso do discurso filosófico surge do dinamismo dialético que rege toda polêmica - como
tensão entre polaridades opostas - e procede, defendendo o “caráter primitivo e
psiquicamente fundamental da imaginação criadora” (1996b, p.3) que, do mesmo modo,
coliga o devaneio ao significado arcaico dos jogos polares de paradoxos, contradições e
ambiguidades. A imaginação não pode reduzir-se nem à reprodução nem à recordação de
percepções. Funda-se, assim, o valor de dignidade psíquica da função do irreal. A
imaginação portanto, não copia nem recorda. Ela cria ex novo imagens e mundos inéditos.
Resumindo, a imaginação imagina imagens imaginadas (1996b, p.3). Imagens que,
por isso mesmo, são desvinculadas dos rigores da lógica racional e de seu domínio, extenso
sobre toda realidade; domínio que rejeita qualquer contraditório, negando como insensato
todo embate com as filosofias da diferença. Libertas de tal jugo, as imagens literárias -
artísticas em geral - podem contradizer-se, opondo-se umas às outras, em paradoxais
divergências e aporéticas ambivalências, em turbilhões de dicotomias e inversões.
Frequentemente, imagens manifestam “pulsões inconscientes e forças oníricas” (1996b,
p.4TRV, p. ) que migram, ressoando, até alcançar o estado de consciência desperta.
Bachelard afirma o que a imagem é, através da constatação daquilo que ela não é. Ela é
anterior, é uma “aventura da percepção” (1996b, p.4). Mais do que reprodução da realidade,
a imagem bachelardiana é sublimação de arquétipos, derivação simbólica de nossa
primitividade inconsciente. Aqui também, como de costume, não faltam explicações
antagônicas e bipolares. O mestre ensina que a imagem vive em estado de bipolarismo
congênito - entre psíquico e físico - gozando, pois de uma dupla realidade. Esta qualidade
ou natureza polar da imagem aproxima os sonhadores ao universo imaginado, religando-os
na leitura lenta e profunda, numa leitura em dualidade de almas, almas que divergem como
seres hermafroditas.
Assim, em sua paixão fervorosa pela literatura, veículo de beleza da linguagem,
Bachelard descreve um modo ritual de leitura, como dedicação cotidiana de horas a fio à
“lenta leitura, linha por linha, resistindo à sedução das histórias, parte consciente dos
livros” (1996b, p.6). Ou seja, mesmo na meditação de palavras escritas, ele encontra algo a
que resistir e opor-se. Virtude de um polemista nato. No cenário bachelardiano do embate
134

criativo de ideias, a polêmica resulta sempre como motor do intelecto. Mas, sobretudo, ele
confirma como papel prioritário da literatura o surpreender, criando “imagens novas,
imagens que renovam os arquétipos inconscientes. Essa novidade é signo da potência
criadora da imaginação [...] função da literatura e da poesia é reanimar a linguagem criando
novas imagens” (1996b, p.6). Ser um veículo de novidades é, pois, o fato estético que
garante dignidade criativa à imagem literária. Aliás, citando a definição de Jacobi do ato de
filosofar como atividade de descoberta das origens da linguagem, Bachelard, que considera
a imagem literária mesma como origem de linguagem, nos permite concluir que filosofar é
criar imagens sempre novas, imagens que não são cópias nem de percepções passadas nem
de outras imagens prévias.
Ele cita também Unamuno, que assinala – na origem da linguagem – a ação de um
metapsiquismo, de uma psique que supera a noção habitual de psiquismo, em sua limitação
à velhas representações repetidas, cópias de imagens sem força criativa. Acena-se assim a
um superpsiquismo que não pode ser senão uma qualidade renovada do surhomme, da
humanidade que adquire a nova potência da imaginação criadora. Logo, se a imaginação
vive de contradições – como já se viu com Dagognet (1960) – se ela institui a linguagem
com as imagens que cria, intuí-se aqui um vínculo de recíproca dependência, entre
contradições e ambiguidades como qualidades do imaginário e, também, como dinâmica de
linguagem, dinâmica do modo em que a humanidade expressa a realidade.
Partindo, portanto, do fato literário considerado em sua qualidade de espelhamento
recíproco de dinamismos reais e imaginários, ocorre reivindicar como característica criativa
da humanidade o dualismo de funções reais e irreais que constituem, no fundo, todo ato de
criação estética. A afirmação do papel constitutivo e fundador da imaginação, seja em
relação à linguagem, seja em relação à literatura – como evento da linguagem escrita – nos
permite compreender um aspecto fundamental da novidade que se revela sempre na
imagem poética. A novidade imaginada cria a démarche de renovação do dinamismo
psíquico daqueles que cedem ao gozo literário.

Literatura é uma explosão da linguagem. A química prevê uma explosão quando


a probabilidade de ramificações é maior do que a probabilidade de término. Ora,
no ímpeto das imagens literárias, ramificações se multiplicam, palavras não são
simples termos, não terminam em pensamentos, mas têm o porvir da imagem. A
poesia ramifica o sentido da palavra envolvida numa atmosfera de imagens.
(1996b, p.7).
135

A poesia surrealista, devido à sua extrema liberdade linguística e expressiva,


aparece como exemplo de linguagem multirramificada, que dá origem à extraordinária
definição do poema como um “cacho de imagens” (1996b, p.7). As múltiplas ramificações
da imagem causam ao sonhador não só a abertura de inusitados percursos imaginários, mas
promove também, em sentido inverso, o acolhimento de uma multiplicidade de novos
significados metafóricos e arquetípicos, provenientes do fundo de experiências atávicas da
humanidade.
Tal riqueza de ramificações das imagens justifica também o dualismo que exigiu a
divisão da pesquisa sobre a terra em dois volumes distintos. O devaneio terrestre não segue
via única, mas, inversamente, abre-se numa bifurcação conforme a divergência mesma que
rege o devaneio das imagens terrestres. Desfrutando de uma classificação segundo a
oposição de duas polaridades contrárias, o autor divide as imagens terrestres de acordo com
a tendência que manifestam à extroversão ou à introversão, caso imaginem forças ou
intimidade, atividade ou repouso.
O implante dualístico desta filosofia da imagem progride na consideração de sua
derivação dicotômica, seja da imaginação extrovertida, origem de devaneios ativos que
convidam a agir sobre a matéria; seja da imaginação introvertida, com a qual o devaneio
reconduz aos refúgios da intimidade. A divergência entre atividade e repouso resulta,
claramente, como estratégia expositiva ou metodológica com que o autor expõe os êxitos de
sua pesquisa sobre a terra. Do mesmo modo como se viu ocorrer no caso do espelhamento
entre as contradições da imaginação e da realidade do leitor, aqui a ambivalência da
imaginação acarreta a dupla edição, necessária à publicação da pesquisa sobre poética
terrestre. No domínio das imagens criadoras, o antagonismo bipolar de atividade e repouso,
funda a dualidade dos volumes que concluem o devaneio cósmico.
Em última análise, cria-se assim uma corrente polar entre duas qualidades
antagônicas da imagem, no interior da qual, desenvolve-se, portanto uma dinâmica de
oposição. Os devaneios de introversão e extroversão criam, nesse caso, o fio de tensão em
que surge a vida dialética da imagem terrestre: “Toda imagem se desenvolve entre os dois
polos, elas vivem dialeticamente seduções do universo e certezas da intimidade. [...] As
imagens mais belas são frequentemente focos de ambivalência” (1996b, p.10). Deduzimos,
portanto que o duplo movimento de introversão e extroversão, enquanto manifestam o
136

paradoxal núcleo de valoração de imagens, exige, simultaneamente, o reconhecimento da


ambivalência como lei ontológica das imagens poéticas.
Assim, ao seguir a lei da ambivalência que impõe ambiguidade aos devaneios da
vontade e do repouso, encontra-se o dinamismo dialético de matérias duras e moles, “que
comanda todas as imagens da matéria terrestre” (1996b, p.10), apresentando a noção de
resistência como sua primeira característica substancial. A terra, enquanto elemento, torna-
se, o principal exemplo da dinâmica de oposições investigada por Bachelard nas
meditações solitárias sobre o imaginário literário. Numa forma de espelhamento poético,
esse aspecto paradoxal do devaneio literário é refletido – através das imagens – em modo
também duplo, a saber, a oposição aparece no poema como qualidade universal, como
ambivalência da matéria, e pessoal, na dicotomia interior do leitor criador. Por isso mesmo,
na prática literária do autor – enquanto leitor e escritor – o dinamismo de oposições,
universais e pessoais, transforma-se em procedimento metodológico de investigação
filosófica, o que, aliás, é bastante pertinente, já que a ambiguidade foi afirmada como lei
intrínseca à imagem. Convém mesmo que a filosofia estética possa abordar o objeto de seu
estudo, segundo os parâmetros de uma metodologia compatível com a natureza do mesmo.
Bachelard ensina que a terra, como objeto de estudo, se distingue dos outros três
elementos devido à “resistência da matéria terrestre que ao contrário é imediata e
constante” (1996b, p.11), enquanto fogo, água e ar, em seu natural estado de ambivalência
congênita, intercalam características hostis com suavidades, dando ao autor a dupla
oportunidade de, por um lado, formular mais uma versão de sua metodologia de
contradições polares e, por outro lado, de afirmar a consequente necessidade de sonhar tais
elementos através de uma ambivalência de brandura e malignidade, necessária à apreensão
dos valores oníricos dos elementos.
Nota-se que, afirmar a necessidade de meditar os elementos em sua ambivalência de
características contrastantes, para apreender seus valores oníricos, institui, categoricamente,
o que é denominado de metodologia de contradições e ambiguidades, pois, ao perceber a
dinâmica de qualidades polares que caracteriza os elementos em si mesmos, justamente,
Bachelard focaliza a valorização deste estado de dicotomia ou dualidade como melhor
137

método, ou modo59, de apreensão e de conhecimento da realidade sobre a qual exerce sua


reflexão, como uma forma de arte.
À filosofia da imaginação material cabe não só perceber ou apreender aspectos
inusitados da matéria. Ela deve sobretudo investigá-los na busca pela realidade originária
da imaginação material, na busca por sua primitividade que, como se sabe, é representada
pelo influxo de atração e de encantamento – um canto de sereias – que seu ressoar exercita,
conduzindo o leitor, com suas obras e imagens, à experiência do devaneio profundo. No
trabalho de criação artística e artesanal sobre a matéria dura, em combate corpo a corpo,
abre-se mais uma porta aos sonhos poéticos, pois, instaura-se ali a dialética da imaginação e
da vontade, dualismo de sonho e ação, que instiga o leitor a criar, e vice versa, inspira o
artista a sonhar. Bachelard indica também a polaridade de síntese que se verifica na
imaginação das matérias moles e duras, que atraem o trabalho de mãos criativas ao
dinamismo masculino da forja, ao toque suave da argila.
Existe também o imaginário que rejeita e recusa o envolvimento ou participação do
“ser que imagina”, como ocorre com imagens literárias inspiradas por rochedos ou imagens
da petrificação (1996b, p.12), eloquentemente citadas por Bachelard, ao introduzir-nos ao
primeiro volume do imaginário terrestre. Precisamente em introdução, onde tem por
costume apresentar – aproximando-se ao rigor acadêmico – objeto e método do estudo,
logo ali, onde ocorre precisão e síntese, para definir em poucas páginas o panorama
específico da pesquisa, um dos poucos exemplos citados de imagens literárias terrestres,
dentre as miríades de imagens contidas no corpo do texto, implica rejeição, oposição e
negação.
O combate dialético de contraditórios define o instinto do salto e o desejo de
preservação – no caso do rochedo – enquanto a petrificação nos envolve em devaneios de
59
Valendo-nos da justificativa que apresentamos na introdução deste trabalho, voltamos a reivindicar o direito
de uso dos termos metodologia e método, num contexto que vemos fugir ao significado assumido pelos
termos no arco da tradição filosófica, sem por isso nada perder em rigor demonstrativo. O jogo de
ambiguidades e ambivalências vigente sobre toda realidade, qualifica o objeto mesmo do estudo como
incerto, em sua multiplicidade de aspectos contrastantes. Isto exige, portanto que, ao abordá-lo, o estudioso
desenvolva instrumentos de análise que lhe permitam seguir a natureza inconstante sobre a qual se debruça.
Para nosso autor, fiel à pedagogia da desobediência aos mestres, que ele mesmo teoriza, ao formular seu
complexo de Prometeu, importa que a análise proceda, que dê frutos em seus belos livros. Bachelard não se
dedica à discussões sobre o método que utiliza. Ele procede, e quando necessário, muda sua abordagem,
anunciando e nominando, simplesmente, a nova metodologia que passa a usar, sem longas justificativas.
Assim o fez ao trocar a psicanálise de Freud pela teoria dos arquétipos junguianos e, sucessivamente, pela
fenomenologia.
138

cristalizações vegetais que, porém, enrijecem a doçura do ser. Sonhos de pedra implicam,
simultaneamente a tomada de distância, o recuo e a busca interior por “forças íntimas”
(1996b, p.12). Surpreendendo-nos, novamente, com sua máscara nietzscheana, ao dominar
tais forças, o sonhador “sente brotar em si um devaneio da vontade de poder” (1996b,
p.12). A imaginação das forças envolve também combates com a gravidade no devaneio do
voo, da queda e na imaginação das forças de aprumo, de redressement ou retomada do ser.
Simbolismos logicamente contrários, mas coligados como paradoxos, nas inversões polares
vigentes no mundo do imaginário.
Em La terre et les rêveries du repos (1992b), a imaginação de forças materiais
converte-se em imagens da intimidade e do interior das coisas, devaneios antitéticos de
refúgio na gruta, imagem de repouso. Ou no labirinto, imagem de movimento. Buscando
sempre a dinâmica da superação contínua de novidades, a imaginação penetra o interior
substancial das coisas, “quer ver o invisível” (1996, p.14) e encontra intimidades em
conflito dialético entre repouso e agitação: “Sob a superfície tranquila, admiramo-nos
sempre ao encontrarmos a matéria agitada” (1996b, p.14), diz Bachelard, justapondo
imagens contrárias. O raciocínio polarizador progride por intermédio de imagens dinâmicas
do “movimento retorcido” (1996b, p.15), em imagens do labirinto animal e vegetal,
integrados no simbolismo dualista de dois seres terrestres, a serpente e a raiz, dialetizados
como arquétipos de nosso inconsciente.
Em meio a tantas e paradoxais divergências, o autor “confessa” mais um de seus
procedimentos metodológicos, ao desculpar-se pela insuficiência de sua análise. Ele diz que
“julgamos não dever fragmentar alguns de nossos documentos literários. Quando nos
pareceu que uma imagem se desenvolvia em vários registros, agrupamos suas
características, apesar do risco de perder a homogeneidade dos capítulos” (1996b, p.16).
Também se depara com a mesma urgência, decorrente do modo em que se busca fundar a
hipótese desta tese acerca de um método por oposições e inversões no procedimento teórico
da reflexão bachelardiana. Ele mesmo anuncia:

A imagem não deve ser estudada em pedaços. Ela é precisamente um tema de


totalidade. Ela chama à convergência impressões mais diversas, provenientes dos
vários sentidos. Com tal condição a imagem assume valores de sinceridade e
seduz o ser em sua totalidade (1996b, p.16).
139

Da mesma forma, tenta-se recolher e agrupar os vários registros, segundo os quais


as imagens literárias se apresentam no poema, conforme o esquema do antagonismo
bipolar. Reunindo ocasiões em que o aspecto ambíguo e contraditório do devaneio se faz,
ele mesmo, principal objeto de atenção no estudo. Evitou-se fragmentar imagens de acordo
com suas notas divergentes, ou seja, tentativas de ajustar ambiguidades. Ao contrário, o
método mesmo empregado consiste, em última análise, em evidenciá-las como elementos
de demonstração do argumento defendido. Buscou-se, portanto, documentar o maior
número possível de situações nas quais eixos polares de ambiguidades foram investidos
pelo autor com a função de princípios esclarecedores dos trajetos percorridos pelo intelecto,
em sua aplicação da reflexão filosófica ao imaginário literário.
Em tal modo, contradições e polaridades foram respeitadas como aventuras da razão
que ousa confrontar-se com a função do irreal, a saber, com o devaneio poético, visto como
principal performance ou démarche dessa função, como seus frutos amadurecidos em
forma de considerações poéticas de filosofia estética. Para isso, foi posta em risco a lógica
da homogeneidade conceitual acadêmica, argumentando-se sobre as situações férteis para o
desenvolvimento desta tese, conforme as mesmas se apresentam nos documentos
estudados. Enfrentou-se a arriscada ameaça ao formalismo lógico da racionalidade
tradicional – roteiro seguro para o desenvolvimento de pesquisas – pois, assumir a livre
ordenação de imagens literárias, conforme foram coletadas nas fontes bachelardianas,
implica uma estrutura de texto com maior dinamismo de abertura em suas argumentações,
se confrontado ao rigor do formalismo lógico, que determina as estruturas demonstrativas
das argumentações racionais.
Tendo avaliado tal risco, pôde-se concluir que a imprudente e dinâmica construção
do texto em estado de abertura permanente – a estímulos e indícios provenientes de várias
direções contrastantes – constitui, em âmbito bachelardiano, o procedimento mais indicado
ao desenvolvimento de nossa nova teoria. Desobedeceu-se ao formalismo acadêmico na
construção do texto, para respeitar o propósito da pesquisa, a saber, nas palavras do mestre:
“não tirar das imagens sua vida, ao mesmo tempo, múltipla e profunda” (1992b, p. )
Em verdade, ao propor sua filosofia dos elementos ou matérias primordiais, o que
Bachelard deseja estudar são as “impressões e solicitações dinâmicas que se ativam em nós
quando formamos imagens materiais das substâncias elementares do universo terrestre”
140

(TRR). É, portanto, o dinamismo material e espiritual que guia toda sua pesquisa, e
descreve a dinamização do ser, no ato literário: “Quando pegamos as matérias terrestres,
com mãos curiosas e corajosas, elas excitam em nós a vontade de trabalhá-las. Uma
imaginação ativista, uma vontade que, ao sonhar, dá um futuro à sua ação” (1992b).
Bachelard dedica os dois volumes terrestres ao estudo da dinâmica do devaneio
poético segundo uma perspectiva bipolar. A saber, conforme analise o dinamismo da
vontade, que combate a resistência da matéria, expresso poeticamente pelo devaneio da
vontade; ou inversamente, conforme estude o dinamismo de interiorização do ser, que
acolhe o convite do poema ao mergulho na própria interioridade, expresso no devaneio do
repouso. O autor coloca portanto o primeiro estudo da imaginação terrestre “sob o signo da
preposição contra”, e o segundo, “sob o signo da preposição dentro” (1992b, p.2).
Interiorização e oposição representam o dualismo que rege a análise do devaneio terrestre e,
por conseguinte, caracterizam também eixos fundamentais aos quais convergem os
argumentos deste estudo. Tal atividade onírica ou real de oposição à matéria que,
incessantemente resiste ao esforço humano de dominá-la, oferece a oportunidade para uma
ulterior investigação de ambiguidades dualistas da imaginação, que encontra nas imagens
da profundeza ou do aprofundamento um arquétipo constituído pelas marcas dicotômicas
da hostilidade e do acolhimento. Além disto, a terra é também indicada como (Le
cosmopolite) “elemento muito apropriado para ocultar e manifestar as coisas que lhe são
confiadas” (1992b, p.1).
Prosseguindo com procedimento dualista e divergente, Bachelard (1992b)
“confessa” que apesar de ter escrito sua filosofia do imaginário terrestre em dois volumes,
não pretendia separar totalmente os dois pontos de vista sobre o devaneio que envolve
estímulos e impressões derivados da substancialidade da terra. E mais uma vez opondo
conceito à imagem, ensina que imagens “não são conceitos, não se isolam em sua
significação. Tendem a ultrapassar sua significação. A imaginação é multifuncional”
(1992b, p.2-3). Ele refere-se assim à abertura semântica característica das imagens que
acolhem, produzem ou, ao contrário, derivam da pluralidade de estímulos e sensações,
impulsos e pulsões que, frequentemente, manifestam em sua estrutura o estado de
dinamogenia dialética. Tal estado, por outro lado, é característico de toda oposição polar,
de toda dualidade.
141

Mais do que isto, o filósofo admite, em ambígua inversão, que para considerar os
dois aspectos de divergência da imaginação terrestre, que acabara de distinguir, seria
necessário reuni-los. Ambivalência do método bachelardiano que o faz distinguir vontade e
repouso para depois reuni-los, ao tratar do devaneio terrestre como um todo. Bachelard
(1992b) atesta, ademais, que a síntese ambivalente que sentimos em ação nas imagens
terrestres pode unir - em mutação ou evolução dialética - as proposições já nomeadas, do
contra e do dentro que, uma vez reunidas, solidariza em modo dinâmico os movimentos -
entre si contraditórios - de extroversão e introversão.
Uma profusão de oposições polares, dualismos ambíguos e ambivalentes
divergências, junto a contradições, paradoxos e demonstrações que procedem por inversão
de seus próprios termos, como já assinalado, povoam as demonstrações bachelardianas,
caracterizando seu filosofar como um pensamento ondulante e labiríntico em seu
dinamismo incomum, um raciocínio envolvente que parece enroscar-se em torno a si
mesmo, quase a determinar um centro de convergência da racionalidade - vista nos termos
amplos, de um cogitari aberto - que, ao superar-se, inclui em seus trajetos, intuições,
sensações e afetos da alçada da comoção estética. Neste âmbito incerto, uma convicção que
aflora progressivamente a este esforço de classificação de argumentações formuladas
segundo este peculiar critério maniqueísta acaba por expor a uma confirmação e a uma
descoberta, como aspectos divergentes de uma mesma intuição.
Por um lado, confirma-se o hibridismo de um pensamento que se afirma andrógino
e hermafrodita, ao reconhecer e proclamar - ainda que tarde, como diz Bachelard - sua
polaridade de anima e animus, de feminino e masculino, de coração e mente, de poema e
teorema. Por outro lado, descobre-se a razão que parece ter determinado o autor à invenção
de uma metodologia decididamente fundada sobre uma dinâmica abertura à evolução
dialética de conceitos e de imagens.
Trata-se de determinações peculiares aos objetos mesmos de investigação -
conceitos e imagens - respectivamente, nas duas vertentes do pensamento bachelardiano. A
renovação da objetividade implica, numa das vertentes, a necessidade simultânea de
renovar também a abordagem que possibilitaria a renovação também de seu estudo, sob o
prisma de um essencial dinamismo – característico da nova objetividade - que exige uma
abordagem dialética capaz, por isso mesmo, de evoluir seguindo as mudanças e
142

transformações da realidade mesma que estuda. Deixa-se, portanto, este argumento para o
próximo capítulo, dedicado à caracterização do método por oposições, como procedimento
demonstrativo comum, seja epistemológico, seja poético.
Retornando à classificação de argumentos por oposição de polaridades, mas
seguindo, ao mesmo tempo, a convicção afirmada no parágrafo anterior, nota-se que a
filosofia da imaginação material, ao revelar um determinado aspecto da materialidade do
mundo, ao expressar o simbolismo poético de sua intimidade substancial, simultaneamente
mantém oculto e remoto o coração material da realidade exterior, o núcleo central das
diferentes matérias. “Mal se retira um véu, estende-se outro sob os mistérios da substância”
(1992b, p. ), diz Bachelard, a respeito deste movimento dialético entre revelação e
ocultamento da interioridade material do mundo.
Por isso a imaginação transforma e transcende as sensações primárias despertadas
em nós, por influxo da realidade material, convertendo-as em imagem poética, imagem que
guarda o eco da matéria que a inspira, mas acede também em contexto afetivo mais
profundo, onde ressoam arquétipos do inconsciente. À mesma maneira, palavras também
chegam até nós, envoltas em nuvens de significados e valores muitas vezes paradoxais,
ambivalentes e ambíguos – que são determinantes na mutação dialética – também dualista –
que ocorre, seja quando palavras evoluem dinamicamente, tornando-se sensações, seja ao
inverso, quando estas últimas transmutam-se em imagens.

Tal substancialização condensa imagens numerosas e variadas, nascidas em


sensações distantes da realidade presente, tanto que um universo sensível parece
estar dentro da matéria imaginada[...]. Assim, o antigo dualismo entre cosmo e
microcosmo, entre universo e homem, já não é suficiente para proporcionar a
dialética dos devaneios do mundo exterior (1992b).

Bachelard agora, explorando a dialética do pequeno e do grande, e ao mesmo


tempo, confirmando a habilidade da imaginação em criar mundos novos, inéditos, nos atrai
à surrealidade do sonho poético de panoramas que superam e ultrapassam o mundo habitual
de nossas experiências: “trata-se de um ultracosmos e de um ultramicrocosmos” (1992b),
afirma, enquanto nos conduz para as profundezas interiores à pequenez da matéria, até o
principio dos germes.
Tal aventura no centro da matéria, no mundo do infinitamente pequeno, em busca
do segredo das substâncias, dá origem a devaneios mal definidos, nos quais, diz o autor: “a
143

imaginação entrega-se à impressões mal fundadas. Por isso, imagens materiais passam por
ilusórias, entre homens de razão” (1992b). Portanto, pode-se concluir que, segundo
Bachelard, ilusórias seriam somente as imagens inspiradas em impressões mal fundadas,
enquanto outras imagens poéticas, fruto de uma autêntica atuação criativa da imaginação,
em sua total autonomia e liberdade, desvinculam-se das sensações e das impressões da
sensibilidade, enquanto possíveis causas. Tais imagens referem-se à novidade dos mundos
criados ex novo pela dinamogenia mesma do imaginário. Não fosse que, ao concluir sua
frase, o filósofo torna a confundir as águas, afirmando: “Seguiremos a perspectiva dessas
ilusões” (1992b).
Como ocorre em outras ocasiões, no texto bachelardiano, nota-se que o autor não
segue um logicismo estrito em suas reflexões. Certos panoramas permanecem nebulosos,
certas definições, conforme a proliferação de imagens, exigem sucessivas retificações ou
renovações em seu significado. Assim como não define bem, certos termos que toma
emprestado à tradição filosófica, sem deter-se em percursos da história filosófica de certas
noções, pois, ao contrário, lhe serve somente o uso terminológico da noção, lhe serve como
título, sem que pretenda filosofar sobre o assunto. É o que acontece com as várias noções
de derivação psicanalítica e também com o termo fenomenologia. Assim, a questão da
derivação sensível das imagens não é definida em modo rigoroso, já que é afirmada em um
contexto, enquanto em outro momento o imaginário resulta livre de causas e totalmente
autônomo diante de eventos e percepções do passado. Nota-se que, certas vezes, o campo
mesmo da pesquisa sobre o imaginário, sendo em si pouco propenso a deixar-se capturar
por definições lógicas rigorosas, justifica a expressão utilizada no título adotado aqui:
filosofia do inexato. Adia-se esta interessante investigação à outra oportunidade, pois sua
extensão, alteraria o rumo de nosso estudo.
Êxito no devaneio da intimidade de substâncias materiais é o alcance de um repouso
intimo e intenso do ser que no jogo das oposições polares é o inverso preciso da
“imobilidade externa das coisas inertes” (1992), acrescenta o mestre à classificação de
dicotomias e ambivalências aqui estipulada, confirmando concomitantemente o status quo
do ser humano no estatuto do existente. Bachelard reforça a oposição ou inversão de termos
como estratégia argumentativa: seduzidos pela penetração onírica da matéria, “define-se o
144

ser pelo repouso, pela substância, em sentido oposto ao nosso esforço em La terre et les
rêveries de la volonté para definir o ser humano como emergência e dinamismo” (1992b).
O processo de pensamento enroscado - abissal e labiríntico como a imagética
abimée, do nouveau roman francês - ao qual se fez referência antes, exemplifica-se, neste
caso, se pensarmos que poética e ciência - ou, anima coração e animus mente - representam
já o dualismo dicotômico principal na obra do filósofo. Mesmo assim, a bipolaridade do
tema enrosca-se sobre si mesmo, vorticosamente, inabissando-se por espelhamento e
polarizando o campo de pesquisa de uma das vertentes, ela mesma já resultante da
dualidade original entre o poema e o teorema. Assim, Bachelard caracteriza o psiquismo
em ação na metafísica do repouso como “involutivo” (1992b). Fala de um ensimesmamento
do imaginário material, de um “enrolamento em si mesmo”, afirmando: “Buscamos um
conjunto de imagens dessa involução” (1992b); que o filósofo encontraria nos poemas do
repouso no refugio da caverna, no enraizamento da casa ventre materno, todas imagens
isomorfas ou isótropas, a saber, todas tendo em seu significado a mesma referência
originária à mesma forma ou movimento em direção às fontes do repouso. Uma real
topografia da meditação poética.

Nessa perspectiva, o inconsciente comanda e dirige. Os valores oníricos tornam-


se estáveis, regulares. Visam ao absoluto das potências noturnas e subterrâneas.
Tais valores do inconsciente absoluto nos guiaram na pesquisa da vida
subterrânea, que é um ideal de repouso.

Conclui-se o capítulo de estética, avaliando as afirmações fundamentais expressas


na citação precedente. Encantadora admissão de uma guia inconsciente na produção
filosófica, análoga talvez àquela com a qual Sigmund Freud, com sua afirmação do
inconsciente, abismou a pesquisa médica na Viena de sua época, apresentando um discurso
racional, e portanto, produto de consciência, sobre uma perspectiva que tem por guia o
inconsciente.
Assim, foram vistos em Bachelard oposições por inversão, paradoxos divergentes e
dualidades em contradição. Mas o que mais surpreende é a “estabilização / regularização de
valores oníricos que visam ao absoluto de potências de involução do imaginário” (1992b).
Sobre este aspecto, duas anotações: a primeira relata o incomum estado estável e regular
em um domínio regido pelo dinamismo que, por definição, desestabiliza e desregula
145

qualquer estabilidade, de onde se conclui que, nesse estado, os valores oníricos entram em
contradição polar com sua própria dinâmica interior. Interessante perspectiva de incertezas.
A segunda anotação pressente o estranhamento causado pelo postulado de um
absoluto de potências noturnas e subterrâneas, como alvo; causa estranhamento porque
Bachelard se opõe à ideia de absoluto. Aqui também valores oníricos parecem entrar em
contraste com o próprio dinamismo de abertura e evolução permanente que constitui o
estatuto ontológico do imaginário. A citação termina, afirmando valores do inconsciente
absoluto como guia da pesquisa. Conclusão ideal da classificação aqui adotada de situações
que configuram uma metodologia de contradições no campo da filosofia poética.
Após apresentar a hipótese sobre o procedimento demonstrativo do pensamento
bachelardiano, seja em epistemologia, seja na poética, se verá como tratar o assunto,
ousando cruzamentos e interferências entre as duas vertentes do dualismo fundamental
deste autor.

2.3 A imaginação cósmica e a transmutação dinâmica do fogo

Antes de concluir a visada sobre a imagética bachelardiana, no domínio de sua


metafísica cósmica, retornando - como fez Bachelard - ao dinamismo que rege o devaneio
ígneo, será aberto um espaço de digressão dedicado à busca de uma convergência daquilo
que se individua em sua filosofia cósmica, com tópicos principais da pesquisa sobre A
imaginação simbólica nos quatro elementos bachelardianos (1994), de Vera Felício. Tal
procedimento constitui, na visão aqui adotada, etapa fundamental para o progresso do
presente estudo.
Trata-se de referência a suas conquistas teóricas, no domínio do simbolismo
metafórico como eixo do dinamismo de ambiguidades presente no pensamento estético
bachelardiano. Não se poderia deixar de lado, portanto, o argumentar com o qual Felício
(1994) afirma que no discurso sobre os elementos primordiais, Bachelard demonstra a
imaginação simbólica como um “sistema de imagens antagonistas” (FELÍCIO, 1994), que
instauram um pensamento aberto a significações múltiplas - polisignificação - constituindo
146

assim, o antagonismo mesmo de imagens como principal motor do “dinamismo dialético da


função simbólica” (FELÍCIO, 1994).
Mais uma vez, se vê antagonismo e dinamismo reunidos na filosofia bachelardiana.
Logo, essa mobilidade do símbolo funda o dinamismo dialético do devaneio que,
manifestando uma intrínseca ambivalência ou duplicidade de sentidos, induz Bachelard a
evidenciar em cada imagem uma ambiguidade fundamental, bem caracterizando a
polisignificação imagética através do antagonismo de oposições vigente em toda forma
simbólica bipolar.
A dialética se dá na contradição e não na síntese dos contrários. A imaginação
simbólica exige um dinamismo na medida em que é um “sistema de tendências
antagonistas” [...]. Bachelard propõe um ecumenismo dualista, isto é, dialético,
do imaginário (FELÍCIO, 1994).

Vera Felício (1994) identifica uma interessante dinâmica de polarização na


definição bachelardiana do estatuto ontológico da imagem literária, considerada, seja como
um puro produto da imaginação - em seu ato de ruptura com o dado - seja como o produto
deformado da imaginação. Outra dicotomia resolve a dificuldade, ao afirmar que a imagem
faz valer um “realismo da metáfora” contra o “realismo do objeto imaginado” (FELÍCIO,
1994). Vê-se assim o dinamismo de oposições migrar, diretamente, das demonstrações de
Bachelard às páginas de seus comentadores, revelando-se férteis no esclarecimento de
pontos focais da doutrina do imaginário. Felício (1994) cita Bachelard que se refere ao:
“simples encanto da imagem comentada, que toma sentido e vida nas metáforas”60.
Entende-se assim que a imagem literária em sua máxima liberdade “desimagina para
melhor reimaginar” (BACHELARD apud FELÍCIO, 1994, p.26).
Mais uma negação que revela caráter pedagógico, pois serve a esclarecer que
mesmo se a imagem literária, para realizar-se em livre devaneio, requer versão em palavras
escritas, não por isso perde dinamismo, nem se subjuga à percepção sensorial. No discurso
escrito, constata-se simplesmente sua fusão com outras metáforas, o que deixa a imagem
livre de qualquer redução racionalista de sua origem e potência criativas.
A imagem literária, segundo a natureza mesma da imaginação – vista como potência
autônoma que, gratuitamente, diversifica e faz proliferar imagens, multiplicando assim as
tonalidades do real – manifesta sempre um novo sentido em seu estado nascente (1994B,

60
Fenicio cita: BACHELARD La terre et les rêveries de la volonté, p. 91.
147

p.283). Certamente, classificar a função de renovação exercida pela imagem segundo o viés
da categoria da diferença ou diferenciação poderia ser feito, já que significados sempre
diversos provocam, por sua vez, sonhos e devaneios também novos e inéditos, que logo se
enraízam na palavra escrita, transformando a literatura mesma em uma “emergência da
imaginação” (1994B, p. 283). Relembrando que o símbolo junguiano apresenta uma
tradução de tendências arcaicas em imagens, se pode ler:

O amador de imagens deve-se colocar à escuta da natureza, registrar mensagens de um


pensamento universal em que o homem que imagina é só o receptáculo ocasional. Nessa
perspectiva, a imaginação significa um processo de abdicação, de disponibilidade para
uma realidade estranha à realidade comum. Imaginar é entregar-se aos poderes do
imaginário. A imaginação é atenção a uma realidade superior ou “surrealidade”, domínio
do desconhecido, mas realidade de direito, pois, imaginando-a, não se faz senão
reconhecer sua existência (FELÍCIO, 1994).

Surge assim a visada da imaginação enquanto poder autônomo que se opõe à


natureza como uma potência de recusa, numa ação de superação em direção à surrealidade.
Logo, em sintonia com a tese de fundo aqui adotada, Felício sugere o compartilhamento
entre Bachelard e o líder dos surrealistas, Andrè Bréton, de um mesmo comprometimento
intelectual com a questão, permanente, de duas tendências que se enfrentam: “Existe um
ponto onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o
incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente?” (Bréton,
2001, p.154).
A esse respeito, o avançar desta investigação sugere também um fundo de
contradições e dualidades que – originadas em nossa primitividade, na zona cega dos
instintos – ao manifestar-se, através da ambiguidade presente nas imagens literárias,
desvela toda riqueza expressiva do imaginário, alcançando um vértice de simbolização
arquetípica que supera toda potência de racionalização.
A surrealidade, em mãos de poetas e artistas em geral, representa a rara, e talvez
única, possibilidade expressiva de novidades fundamentais, situadas além da compreensão
lógica e da realidade do cotidiano. A paradoxal alteridade do imaginário transporta a
consciência de mundos intocáveis aos sentidos da percepção física, como também, de
princípios da razão em sua busca por identidades. Entretanto, esse confim onírico de
negações e diferenças se manifesta em sua acessibilidade à tradução que dele nos dá a
148

imagem literária, através das divergências e antinomias de uma nova lógica do devaneio
poético.

Segundo Bachelard, esse onirismo permite que a imagem viva da e na


ambiguidade, pq não é simples metáfora, mas metáfora de metáfora. Nestes
termos, ele fala de uma síntese entre pensamento lógico e pensamento mágico,
para compreender a natureza contraditória do universo imaginário. Bachelard
evidencia uma “segunda razão” de tipo alógico que completa a primeira razão de
tipo cartesiano, a fim de dar lugar ao surracionalismo. Em tal modo, à razão
absoluta e imutável, opõe-se o “contraditório como fundamento do entendimento,
exigindo a reconsideração das oposições entre realidade e irrealidade, entre objeto
e sujeito, entre conhecimento e ignorância, entre verdade e falsidade”.
(BACHELARD apud FELÍCIO, 1994).

A função fundamental da imaginação metafórico-simbólica seria, então, devolver à


língua sua função imagética, superando ou cancelando a oposição entre os domínios do
lógico e do ilógico: A “imaginação produtora”, única verdadeira, se caracteriza pela
incompatibilidade radical com toda forma de lógica. E nesse sentido ela desorienta os
espíritos racionalistas” (FELÍCIO, 1994).
Nietzsche afirma uma atividade instintiva originária, como força artística criadora
de ficções: “[...]esse instinto que nos impulsiona a formar metáforas, esse instinto
fundamental do homem, de que não se pode fazer abstração um único instante, pois se faria,
então, abstração do próprio homem” 61. A atividade simbólica metaforizante traduz, pois, a
essência mesma do homem que se define, portanto, como um animal metafórico. A
consciência fala por metáforas, e o conceito é também um produto de metáforas, enquanto
fruto de um processo de generalização.
Felício (1994) instaura entre metáfora e conceito a dinâmica de um jogo polar de
antíteses, que em vez de negar, integra seus termos: “Graças ao conceito, o homem coloca o
universo sob o signo da lógica, sem saber que continua a mais arcaica atividade metafórica”
(FELÍCIO, 1994). A seu ver, seja Nietzsche, seja Bachelard comprometem-se na
recuperação desta atividade metafórica arcaica, ainda anterior ao conceito, ambos
convergindo na ideia de conceito como “metáfora petrificada, endurecida (FELÍCIO,
1994).
Para Felício (1994), as obras de poética cósmica representam a busca por um
princípio de organização de metáforas, uma busca por constantes e regularidades no
61
FELÍCIO cita NIETZSCHE. O livro do filósofo, p.195.
149

dinamismo do devaneio poético, por meio de “grandes sínteses que dão caráter mais regular
à imaginação” (BACHELARD, 1994b, p.19) no projeto paradoxal de uma ciência do
imaginário,62 que teria por fundamento a realidade múltipla e fluida do simbolismo de
metáforas cósmicas, regido por uma lei dupla que, por um lado, afirma: “Uma matéria que
não é ocasião de ambivalência psicológica não encontra seu duplo poético que lhe permite
transposições sem fim” (BACHELARD, 1997, p.17).
E por outro lado, rejeita a possibilidade de percepção da matéria que é difusa, em
estado de imobilidade. Dessa dupla lei primordial, a autora deriva três princípios e seis leis
da valorização. O primeiro princípio estabelece que a imaginação, ao rejeitar a lógica da
consciência – lógica da identidade e lógica da não contradição – situa-se no domínio do
pré-lógico, numa área de incoerência próxima ao inconsciente cultuado pelos surrealistas.
O segundo diz que a imaginação ignora as exigências da realidade, atuando em total
liberdade no que concerne à causalidade, ao tempo e espaço e a suas dimensões: “o interior
do objeto pequeno é grande” (BACHELARD, G., 1992b, p.13).
O terceiro e último princípio da imaginação estabelece que o caráter afetivo do
devaneio literário instaure uma relação pessoal com as coisas da realidade, transformando
assim objetos imaginados em valores que, por sua vez, são codificados em seis leis da
valorização, das quais, cita-se a última que, ao discutir a ambivalência do dinamismo
dialético intrínseco à imaginação material, funda a primazia da contradição, que a todo
valor coliga um respectivo antivalor. Imagens valorizadas adquirem, pois, sua força, no
jogo dialético dos contrários.
Ilustra-se a vertente alquímica desse jogo de contrários, ao se referir na busca da
perfeição alquímica a total submissão da matéria à própria dissolução – goethiano morrer
para renascer / Sterb und werden – a fim de preparar a substância perfeita da pedra
filosofal. Desta maneira, a contradição ingressaria então – justificadamente, como categoria
primordial – no estatuto mesmo da imaginação.
Felício (1994) afirma também que o esquema fundamental da ordenação de
imagens, estratégia seguida por Bachelard para alcançar a formulação dessas leis do
imaginário, desenrola-se em procedimentos por analogia, por inversão e por contradição.

62
Com tal projeto, Bachelard responderia à questão posta pelo surrealismo e acenada por Felício: “A quand
les philosophes dormants?” (BRÉTON, 2001, p.40).
150

Confirma-se assim o aspecto decisivo desempenhado por certos dinamismos de negação e


oposição em todo sistema de pensamento bachelardiano. Os trajetos de introspecção
descritos nos volumes cósmicos se valem da potência instintiva de valorização das
imagens.

[...] na zona do instinto, metáforas que desafiavam a razão e pareciam absurdas


reencontram legitimidade, seguindo as transformações pelas ambivalências e
inversões de todo o dinamismo onírico [...] é o ponto de vista onde o leitor se
coloca fora da racionalidade habitual, o que permite o jogo permanente de
contrários (FELÍCIO, 1994, p. 90).

Assim, a centralidade que atribuída neste estudo a todas as figuras bachelardianas de


negação e polaridade – entre paradoxais ambiguidades – pretende demonstrar que o uso
frequente de tais esquemas antagônicos traduz sua precisa convicção de que o rigor da
racionalidade tradicional – em seus desdobramentos estético e científico – não bastava mais
para dar razão à vasta gama de novas teorias e novos sentimentos, novos fatos e
experiências, situados no confim de uma surracionalidade. Estes deveriam, portanto,
encontrar expressão através de uma renovação de esquemas do conhecimento, numa nova
metodologia – de saberes surpreendentes e inesperados – que caracteriza as relações
dialéticas inerentes à atividade do espírito, como dinâmicas de abertura permanente em
evolução.
A nosso ver, as imagens da poesia cósmica solicitam, nos temas de seu devaneio,
este mesmo alargamento da capacidade cognitiva da humanidade, através do sistema polar
de estímulos recíprocos – chamado ato cognitivo – que intercorrem entre sujeito e objeto.
Nessas inversões entre os dois polos do conhecimento, a autora aponta, ainda, uma relação
de “simbiose ou conaturalidade” (FELÍCIO, 1994) que se instaura em bipolaridade,
nutrindo de imagens o devaneio do poeta. Já que, a seu ver, imagens cósmicas são ao
mesmo tempo carregadas de “sentido e ininteligíveis” (FELÍCIO, 1994).
Tal sentença, ao confirmar a carga expressiva do paradoxo em si, nos transporta de
imediato à região da surrealidade, além dos confins da racionalidade linear, pois, como
seria possível definir, simultaneamente, algo carregado de sentido como ininteligível, sendo
a presença mesma de sentido o que define a inteligibilidade da razão?
151

Parece claro que, neste caso, o uso do paradoxo intenciona – desafiando a


horizontalidade do pensamento acadêmico tradicional – demonstrar que o apelo à
cosmicidade dos elementos naturais, como fermento de inspiração poética, gera comoção
da alma, ocasionando sua percepção emocional, de modo que, o mesmo objeto possa
resultar – concomitantemente – sensato ao coração e ininteligível à razão63. Tal comoção
estética, integrando ambiguidades, nos liberta da exclusividade de nosso vínculo com o
real.
Como visto, “A terra e os devaneios da vontade” e “A água e os sonhos” fundam a
realidade autônoma da imagem literária como alicerce da noção de imaginação material, a
partir da qual, Bachelard constitui sua filosofia do mundo imaginário. Como já apontado
aqui, a imagem literária representa, em tal modo, uma “emergência da imaginação”, a
saber, não há nenhuma realidade que seja a ela antecedente. O instante mesmo de sua
expressão configura-se como um evento de mutação que dá origem à imagem – declamada
ou escrita que seja – que, por sua vez, surge como origem de linguagem, rompendo
qualquer ligação com a percepção.
Assim, a imagem nasce como novidade dinâmica e móvel, como um novo ser de
linguagem, desvinculado e em oposição ao passado da percepção. Esta liberdade radical
que caracteriza sua origem, ativa, simultaneamente, sua potencialidade de gerar uma
ulterior profusão de imagens, livres e autônomas como sua fonte original. A técnica de
oposição de polaridades – neste caso, através do confronto entre imagem literária e
reprodução do objeto, na mente de quem o percebe – serve a Bachelard para evidenciar
autonomia e mobilidade como características essenciais do fenômeno de emergência do
devaneio que a imagem poética é.
Em La terre et les rêveries du repos (1948), Bachelard define arquétipo como uma
“série de imagens que resumem a experiência ancestral do homem” (1992b, p. 211) diante
das situações da vida. São os símbolos ou imagens fundamentais – origem de imagens e de
metáforas – que nutrem o imaginário poético. Estas unidades primordiais, formas germinais
de imaginação, são a origem do devaneio, sabem como fazer-nos sonhar, porque se tornam

63
Confessa-se ter cedido aqui à tentação de desvendar paradoxos que são, por definição, insolúveis. Nota-se,
porém, que, mesmo nesse caso, a solução indicada, longe de reduzir o enigma à compreensão “clara e
evidente”, confirma uma dicotomização do intelecto, sugerindo a polaridade de seu objeto, ao mesmo tempo,
afetivo e racional.
152

“na dialética dinâmica do simbólico objeto de múltiplas valorizações contraditórias”


(FELÍCIO, 1994, p.114).
Tal valorização arquetípica conquista veemente força nas três metáforas míticas do
fogo – Prometeu, Empédocles e Fênix – ícones do dinamismo de transmutação simbólica,
com o qual, em modo eloquente, Bachelard – pensador de mudanças e movimentos –
escolheu encerrar sua vida de reflexões, já que no início dos anos 60, quando em devaneios
incandescentes, volta a refletir sobre o fogo – desta vez, focalizando a chama da vela e
certas personagens da mitologia ígnea – aquilo que na verdade o filósofo nos propõe são as
grandes linhas de uma poética da intimidade, delineada ao aproximar-se da morte.
Seguindo os lampejos da ambivalente consciência do devaneio literário, poderá se
observar o desdobrar-se do dinamismo antitético – em suas polaridades e divergências –
conduzir a reflexão ao encontro do silêncio solitário e feliz. A luta antagônica entre
contraditórios, como na chama, que de fato ilumina destruindo-se, cria uma ocasião de
vislumbre da transcendência64 do ser. Logo, naquele alhures representado pelos sonhos
poéticos, a polaridade de luz e trevas torna-se ponte entre real e irreal65, entre ser e não ser,
sito no qual são experimentados os temas da filosofia do imaginário como aplicações
concretas do dinamismo de penumbras e clarões que fixam o ritmo instável de nosso
incerto devir. Em tal modo, a imagem poética faz-se vetor de novidades e, entre o estupor e
a comoção do poema, perpetua a renovação da realidade. Por fim, no reflexo tênue da luz
de uma vela, a existência máxima, à qual refere-se o poeta, conquista sua efetividade,
superando – na linguagem inflamada de sua literatura excessiva – o campo do real e do
humano em derradeira transcendência do devaneio mesmo.
Contudo, mesmo na vida tranquila e delicada da reflexão diante de uma chama de
vela, tomada como doce instrumento de pesquisa da alma, faz-se presente um estado de
tensão, característica polêmica do dinamismo antitético bachelardiano – de polaridades e
divergências – que se viu guiar o pensamento andrógino deste autor. Consequentemente, o

64
Minkowski (1963, p.426-7) cita uma passagem de L’air et les songes: “No reino da imaginação, a toda
imanência acrescenta-se uma transcendência. É a lei mesma da expressão poética superar o pensamento.”
(1994b, p.12). E comenta: “A imanência e a transcendência não aparecem mais como antônimos, um
excluindo o outro, como quer o pensamento discursivo. Coexistem sem contradizerem-se, num movimento
comum, num vai e vem contínuo[...]. Ao clássico “um e outro”, substitui-se agora, “um e outro”, já que, como
dirá Bachelard, existe aí, como alhures, “trajeto” e não “permanência”.
65
BACHELARD (1994b, p.14): “Então se impõe o realismo do irreal”.
153

destino da chama é verticalidade, queimar-se para cima, ao alto. E tornar-se luz. Notou-se ,
oportunamente, que a reflexão metafórica do fogo refere-se sempre à luta antagônica entre
contraditórios - combate nietzscheano de forças - neste caso específico, luta da luz com as
trevas, pela conquista da iluminação, como valor que se instaura sobre o próprio contrário.
Chama e consciência compartilham o mesmo destino de simbolismo dicotômico, de
retorno à própria residência, ao alto, após cumprir embaixo sua missão. Queimar injustiças
para ascender às alturas.

O mundo, na intimidade de seu mistério, quer o destino de purificação. O mundo


é o germe de um mundo melhor, como o homem é o germe de um homem
melhor, como a chama amarela e pesada é o germe de uma chama branca e
ligeira. Alcançando através de sua brancura, através do dinamismo da conquista
da brancura, seu lugar natural, a chama não obedece unicamente à filosofia
aristotélica (BACHELARD, 1996c, p. 31).

A rêverie da vela – como metáfora ética – sonha a chama como arquétipo do devir e
do ser mesmo do rêveur. Para o sonhador a chama é, de fato, símbolo de seu “iluminar,
destruindo-se”; outra versão do “morra e torne-se” (Stirb und werde) goetheano. La flamme
d’une chandelle, de 1961, institui, portanto, as linhas diretivas para uma reflexão sobre a
transcendência do ser que considere o devaneio verticalizante da chama como vetor que
arrasta o sujeito em suas forças ascendentes, expandindo os confins da realidade, ao guiar o
sonhador à conquista dos cumes oníricos dos poemas. “Um sonhador de vontade
verticalizante que recebe sua lição diante da chama aprende que deve reerguer-se.
Reencontra a vontade de queimar ao alto, de ir, com todas suas forças, ao topo do ardor”.
(BACHELARD, 1996c, p. 58).
Assim, a indução de uma ascese imaginária, eixo de forças ascensionais que vige
nos sonhos de voo – rêves de vol – alivia o ser, ajudando o psiquismo a abandonar o fundo
– bas fond – do ser, dirigindo-se ao alhures dos sonhos poéticos, que é representado por um
acima de.
O devaneio verticalizante é o mais liberador dos devaneios. Não existe meio mais
seguro de bem sonhar do que sonhar num alhures. Mas o alhures mais decisivo
não é o alhures que está acima?[...] Vivendo no Zenith do objeto reto,
acumulando devaneios de verticalidade, conhecemos uma transcendência do ser.
(BACHELARD, 1996c, p. 57).

O dinamismo que nos arrasta para cima, reerguendo-nos aos picos e cumes de
montes imaginários, ilustra a configuração de turbilhões íntimos, no qual a polaridade de
154

luz e trevas forma um instante sublime de imagética metafísica. A lição da chama


bachelardiana, nos recorda o dever de reerguer-nos, o imperativo de reposicionar-nos de pé,
após fracassos e perdas. A chama ilustra essa transcendência, informando a alma a
propósito de um alhures pessoal.
Para o poeta Novalis também, a filosofia da chama ensina a superação de si, já que,
para renovar-se é necessário filosofar-se, consumindo-se.66 No imaginário poético do fogo o
tema da superação – da realidade e de si mesmo – assume valor irremediável perante a
aproximação da morte. E assim, a imagem da fênix parece preanunciar-se através da
necessidade declarada de arder com o poeta, de experimentar o claro-escuro do próprio
devir como aplicação concreta dos temas da filosofia do imaginário. O poeta sabe doar
penumbra e clarões à realidade, afirma o autor, e expressando o real através do irreal, ele
“vive [...] no claro-escuro de seu ser” (BACHELARD, 1996c, p.80).
Em tal modo, a intensidade das reflexões sobre o dinamismo imagético do poema
conquista uma densidade de visões íntimas e pessoais, em polêmica com o sentido comum,
adormentado no torpor de seus próprios hábitos. Por isto, a poesia deve fazer-nos
experimentar, no vetor da palavra escrita, estupor e felicidade. Cada uma de suas imagens
deve ser convite ao leitor, para acolher e viver uma verdade diversa, uma novidade sobre si
mesmo e sobre o mundo. Bachelard ama espelhar-se na imagem da solidão do trabalhador
intelectual, diante da página branca como deserto infinito a atravessar no doloroso nada da
escritura:

Diante da página branca [...] encontro-me, de fato, em minha mesa de existência.


Sim, foi ali que conheci a existência máxima, existência tensa para um em frente,
um mais alto, para um em cima[...]em toda minha volta, existe repouso e
tranquilidade; meu ser só[...]que busca ser, é tenso na necessidade de ser um
outro ser [...]um mais-que-ser (BACHELARD, 1996c, p. 111).

Afirmação pessoal do surhomme – übermensch nietzscheano – que confirma o


imaginário em seu aspecto cósmico de construção de novas realidades67 prontas a acolher o
novo ser. “Na tensão diante de um livro, com um desenvolvimento rigoroso, o espírito se

66
BACHELARD, 1996c, p.66: “Ainsi la philosophie commence là où le philosophant se philosophise lui-
même, c’est à dire se consume et se renouvelle[...]un être se rend libre en se donnant ainsi le destin d’une
flamme.”
67
Tanto que, para Bachelard (1996c, p.136), o cogito da rêverie apresenta-se como: “je rêve le monde, donc le
monde existe comme je le rêve”.
155

constrói e se reconstrói” (BACHELARD, 1996c, p. 112). Logo, para Bachelard, o momento


tenso da escrita ou da leitura em profundidade, constitui o attimo no qual ocorrem
transformações espirituais profundas: construir-se e reconstruir-se, dupla atividade na qual
reside, segundo o autor, o sentido profundo do devir do pensamento.
Bachelard (1996) confessa ter descoberto, tardiamente – no estudo da linguagem
literária – que imagens não são somente modos de expressão, mas como afirma nas duas
poéticas cada nova imagem literária contém os germes de uma ontologia poética
fundamental. Portanto, para viver os deslocamentos – déplacements – próprios da
linguagem poética enquanto vetor de contínuas novidades, é necessário que o leitor
desenvolva e cultive a “consciência caleidoscópica” (BACHELARD, 1996c, p. 32) que –
no instante de abertura instaurado no poema – vive a dinamogenia intrínseca à proliferação
imagética do devaneio.
A renovação da linguagem – a cargo das novidades que surgem na dinâmica
autônoma e permanente da criação de devaneios – ou melhor, o aspecto evolutivo da
filosofia da linguagem, manifestada pelo último Bachelard, nos põe diante da realidade de
imagens poeticamente excessivas – de influxo surrealista – onde a liberdade de imaginação
exonera o poema de elos com a realidade racional. Na ambição de promover os valores
poéticos do impulso vital e da superação do ser, a imagem consegue transmitir um excesso
de vida. Eis aqui o aspecto inesperado da reflexão do último Bachelard. Pela exaltação
psíquica da imagem excessiva e pela consequente metamorfose da palavra poética mesma,
o autor sugere o dinamismo de uma dupla elevação do ser, que evolui segundo
metamorfoses de uma superação, não só dos objetos mundanos, como também de sua
própria experiência existencial.
Na dialética permanente de abertura à transformação, chave de acesso à
inteligibilidade do trajeto indicado pelo filósofo, o forte dinamismo imaginário, segundo
uma poesia do excesso, contribui à criação de uma linguagem inflamada – já que somente o
imaginário ensina a linguagem a se superar (BACHELARD, 1988, p. 64) – destinada a
arrastar o psiquismo dos leitores em direção a sugestões de rejuvenescimento e
imortalidade, de fato, características essenciais do fogo. Em tal modo, a convivência com
motivos e personagens do surrealismo parece ter movido Bachelard à afirmação de um
156

direito da linguagem ao excesso poético, em oposição ao conformismo retórico de sua


época.
Com seu anti-lautreamontismo, ele havia superado a revolta simples, harmonizando
na rejeição da bestialidade instintiva, dois temas antagônicos. A saber, a urgência em
resgatar – pela noção de imaginação material – a corporalidade e a materialidade excluídas
da reflexão filosófica tradicional e, por outro lado, a violência com a qual a matéria
afirmava-se – como carne violada e dilacerada – em sua crítica à monstruosa criatura
literária de Isidore Ducasse. O ímpeto da descoberta de uma matéria tão cruel e
excessivamente sonhada, a ponto de apresentar-se esquartejada, atenua-se num devaneio
material mais sutil, apto a revalorização da matéria em sua dignidade de objeto da reflexão
filosófica, projeto do autor realizado nos volumes de poética cósmica, sonhando a
materialidade universal.
Vinte e seis anos após a morte de Bachelard, sua filha Suzanne organizou a
publicação de seu dossier de anotações inéditas, Fragments d’une Poétique du Feu.
Segundo sua filha, desde 1959, Bachelard aspirava retomar o tema inaugural de seus
estudos sobre os elementos, o fogo, cuja reflexão - em La psychanalise du feu - fora
realizada ainda em estado de espírito racionalizzante, atraído sim pelo devaneio ao qual, no
entanto, não sabia como ceder livremente. Sua anima poética ainda era refém de seu
animus racionalista. Portanto, o filósofo guardara em si o desejo de completar sua Obra de
poética cósmica, entregando-se, por fim, ao devaneio do fogo. O título do esboço de Obra
inicial, exprimia seu interesse por um novo tema, o fogo vivido, com o qual visava enfrentar
a interiorização do fogo, nas três figuras ícones68 do misticismo ígneo: Empédocles, modelo
simbólico da supressão de si, Prometeu, como libertação da consciência através da
desobediência, e a Fênix como renascimento perpétuo.
O tema, portanto, era o mesmo mencionado acima: consumar-se para renascer
transformado. O anúncio desta interiorização simbólica do fogo já ressoava nas imagens
literárias cultivadas em suas duas poéticas, do espaço e do devaneio. Será, entretanto, no
aprofundamento teórico de seu primeiro elemento, que se verá abrir-se ao autor a
oportunidade de viver intensamente a dialética do psiquismo expresso por intermédio da
68
“Entre a psicologia dos heróis e a cosmologia do céu estabeleceu-se um campo de metáforas extremas. Os
devaneios cósmicos eram, em alguma maneira, encarnados em homens lendários. Sonhando grande,
engrandecíamos o homem à mesura do mundo” (BACHELARD, 1988, p. 172).
157

ambivalente polarização de anima e animus, verdade intrínseca constitutiva de nossa


humanidade.
A Fênix, a primeira das três figuras dos fragmentos sobre o fogo, representa um ser
literário que se inflama de seu próprio arder, para renascer das próprias cinzas. Ser da
grande contradição da vida e da morte, sensível a todas as belezas contraditórias
(BACHELARD, 1988, p. 104). Enquanto ser poético, ela nos introduz no reino literário das
palavras inflamadas, representando a morte triunfante, na glória da fogueira. Para
Bachelard, o desejo de arder e a consciência da própria morte: O fogo nos obriga a
imaginar a morte (BACHELARD, 1988, p. 138) encerram o sentido fenomenológico da
Fênix (1988, p.74) que, ademais, assume também um valor de ressurreição e renascimento
universais: Ser da fábula dupla: inflama-se de seu próprio fogo; renasce de suas próprias
cinzas. Deveremos tentar viver este duplo milagre, nós que já não acreditamos mais no que
imaginamos (BACHELARD, 1988, p. 62). O pássaro do alhures é símbolo de uma
eternidade que vive (BACHELARD, 1988 p.87), signo cósmico de transformação e
arquétipo da imaginação do fogo, no qual o incêndio vivido, conduz à renovação do mundo.
Representa o fogo masculino e o calor feminino, numa clara menção ao hermafroditismo do
imaginário, tema ao qual, segundo Suzanne, Bachelard teria afirmado o desejo de dedicar
um amplo tratado (in: BACHELARD, 1988, p. 102).
A segunda figura da lendária arqueologia é o Prometeu literário, herói racional,
inventor da ciência (BACHELARD, 1988, p. 132) que rouba o fogo do céu, metáfora da
luz espiritual, da consciência, para doá-lo aos homens. O dom do fogo-luz-consciência abre
ao homem um novo destino (BACHELARD, 1988, p. 128). O ser de fronteira é uma
bipolaridade híbrida de deus e homem. Protótipo da aquisição do conhecimento – através
do duplo ideal de desobediência de pais e mestres, visando à evolução ascética ao ser
superior – Prometeu encarna a vontade de superação da natureza humana, na tensão
dicotômica entre o que somos e o que podemos vir a ser.

Uma espécie de prometeísmo difuso vincula-se à aquisição de conhecimentos. Esses


conhecimentos chegam até nós de outros, dos livros, mas eis que são profundamente
nossos ao erguer-nos acima de nós mesmos, acima da natureza comum. Uma espécie de
potência orgulhosa dá vigor ao trabalho do espírito. As múltiplas figuras de Prometeu
[...]vêm enraizar-se em nós para encorajar uma psicotécnica da superação de si.
(BACHELARD, 1988, p. 114)
158

Para que essas grandes figuras sejam psicologicamente ativas em nós, devemos vivê-las
como tentativas - ou melhor, como tentações – de superar nossa própria natureza. Somos
tentados de viver o humano, o mais que humano[...]. Parece que em todo esforço de
cultura, somos o Prometeu de nós mesmos. O passado é argila sob dedos que sonham.
Tínhamos algo a fazer. O fizemos, nesse passado de estudo. Mas tudo ainda está por fazer,
inicialmente, nós mesmos. (BACHELARD, 1988, p. 116)

A contribuição fornecida pela interpretação psicanalítica deste mito à formulação de


uma poética da humanidade consiste em considerar que a natureza humana emerge desta
luta contra os deuses, valorizada pelo rapto e doação do fogo como símbolo de luz, e em
última análise, metáfora da consciência. Para Bachelard, tal leitura parece indicar um
destino espiritual para a humanidade que, em ímpeto de mutação, vê a figura prometeica
como signo de possibilidade de uma reconciliação metafísica entre deuses e homens.
Exemplo de desobediência construtiva, os atos prometeicos assinalam um progresso na
autonomia da ação humana de transformação da própria situação, já que o ladrão do fogo
possui consciência de sua inteligente e audaciosa temeridade, dando lugar, portanto, a mais
uma confirmação da dialética de antagonismo bipolar, enquanto o herói situa-se numa
relação de complementariedade com seu próprio irmão gêmeo, Epimeteu, representação
metafórica da estupidez.
A terceira e última figura do simbolismo ígneo desenha uma memória potente do
filósofo Empédocles, que busca a morte, lançando-se na cratera do vulcão siciliano Etna.
Imagem poética da anulação de si, do consagrar-se ao fogo. Empédocles é o anti-Prometeu,
filósofo do nada, símbolo da morte do mundo. Porém, segundo Bachelard, o filósofo pré-
socrático do ser busca na morte a total purificação, na esperança de um renascimento
análogo ao da Fênix, pois, visto que “tornamo-nos o que somos, […] é preciso ser chama
para jogar-se no Etna” (BACHELARD, 1988, p.155).
Empédocles realiza o ato extremo de um espírito consciente de sua absoluta solidão.
Seu ato realiza a “dialética concreta de ser e não ser” (BACHELARD, 1988, p.142),
persegue seu destino de herói, “destino-ruptura que contradiz o curso da vida ordinária” (p.
148); “concedendo-se ao fogo, o filósofo aceita o destino do Espírito, do Espírito fora da
vida, que recusa ser freado pela vida” (p.151) e, tornando-se um ser de fogo, deixa-se
consumar pelo paradoxal prazer da chama. “Todo homem tem, assim, sua fogueira secreta”
(p.170). Uma fogueira íntima, uma fogueira desejada, uma fogueira querida, para apagar
com o fogo as chamas interiores (p.170). Conturbante verdade, intrínseca ao suicídio
159

filosófico como metáfora de uma natureza ardente do ser. Ato extremo de uma paixão
fatal.

A maior lição do Empédocles filósofo foi então ter afirmado a união íntima,
união tenaz de amor e ódio. Empédocles é o precursor da filosofia da
ambivalência. Ele inscreveu o amor e o ódio no mecanismo do Universo. Como
essa ambivalência não estaria no coração do homem? (BACHELARD, 1988, p.
165).

Enfim, o autor questiona-se sobre a hipótese de que o fim da Obra seja também o
fim da vida, pois, quem escreve sobre o fogo aguarda, inevitável, o mesmo destino de
Empédocles. A reflexão tardia do filósofo poeta abre-se ao silêncio da interioridade, à
definitiva solidão da palavra: “Através da superação da realidade a imaginação nos revela
nossa realidade” (1996b, p.353). Em tal modo, o gozo mítico da chama se extingue no
silêncio que postula a solidão como seu acontecimento, valorização poética do destino da
rêverie, o devaneio intenso de uma longa experiência literária encontra sua realização
definitiva ao transformar-se em silenciosa solidão. O fervilhar dialético de imagens torna-
se, enfim, declamação muda do dualismo dicotômico que guiou seu pensamento ao calar-se
da eloquência imagética. Em ambivalente polarização, é a fonte mesma da linguagem que,
ao final, transmuta-se em silêncio. E assim, após tanto devaneio, a palavra faz-se silêncio, a
transubjetividade faz-se solidão:

Penetrar em nós mesmos é só o primeiro estágio desta meditação em forma de


mergulho.[...] descer em nós mesmos determina [...] uma outra meditação. [...]. E,
com frequência, pensamos descrever somente um mundo de imagens, quando, ao
mesmo tempo, descemos em nosso próprio mistério (BACHELARD, 1988, p.
260).

A perspectiva de um significado íntimo do poema, no dualismo polar que


desdobrar-se nas obras de Bachelard, confirma a noção de uma dinâmica de oposições
como eixo de evolução de sua reflexão, pois, a bem ver, o sonhador de imagens penetra em
si mesmo somente para proceder adiante, para superar-se no prazer dessa poética da
androginia ou filosofia do ser andrógino que manifesta – na rêverie da alma – a
permanência da vertente feminina no psiquismo subjetivo, já que toda imagem do
inconsciente deve ser considerada hermafrodita, enquanto polo de pertinência de qualidades
contrastantes. Portanto, assumir para si o valor do hermafroditismo da alma constitui-se em
160

alternativa à inconciliável e incerta dualidade que investe o destino da humanidade. O


progresso, a progressividade, era para ele, a própria natureza do homem[...]. Ele teria
podido dizer: homem é aquilo que avança ou, homem é aquilo que se supera (LESCURE,
1983, p.14).69
Este mesmo poder de metamorfose faz de sua dialética binária de polaridades e
complementariedades, de inversões e alteridades, uma dialética feliz, que mesmo inexata,
funciona em modo harmônico.

Para Bachelard éramos, efetivamente, nós mesmos, seja opondo-nos a nós


mesmos, que cedendo-nos [...]. Não é aquele que cede ou aquele que se opõe, que
define o ser que ele é – é aquilo que cada um de nós se torna, após ter cedido ou
ter-se oposto [...]. Persuadido de que o homem não é a soma de um passado, mas
que se produz em sucessivas descobertas (LESCURE, 19883, p.13).

A poesia abandona o tempo horizontal, que liga o ser ao devir dos outros e do
mundo, descobrindo o tempo vertical, no qual, a única referência é autossincrônica: está no
centro de si mesmo. No instante poético, o tempo não escorre mais. Ele esguicha ou jorra,
de modo que – fora da duração comum – o ser pode viver, simultaneamente, no instante
criado pela poesia, a oscilação de contrários fundamentais como num êxtase de queda.
Em conclusão, observa-se que o desenvolvimento da hipótese deste estudo, no
domínio do devaneio estético, exigiu que fosse manifestada quase a mesma audaciosa
imprudência intelectual, proposta a ser investigada enquanto nova metodologia
bachelardiana. Foi preciso abandonar horizontes para ousar verticalidades, como único
procedimento capaz de abrir acesso à novidade dinâmica de um raciocínio que se faz
aderente ao ser mesmo da imagem poética, que deseja residir na instabilidade das imagens,
confirmando a noção de uma revolução copernicana da imaginação, na qual a comoção não
se dá através da adesão subjetiva ao objeto poético, mas sim, na busca de transformações na
tonalidade emotiva da subjetividade mesma; essa sim, determinada à novidade, devido a
sua participação experimental à vibração e impulsos sugeridos pela imagem. Categoriza-se,
em tal modo, uma nova mudança de parâmetros da sensibilidade artística, enquanto vetor
da crítica literária, demonstrando que a energia imagética, ou mesmo a qualidade e o tônus

69
“Ce qu’il admirait chez l’homme, c’est ce pouvoir d’être à la fois lui-même et un autre, lui-même et plus
que lui-même – ce qu’il est et plus que ce qu’il est, toujours vacillant sur le bord d’un progrès, toujours prêt à
franchir une étape nouvelle, à s’ouvrir à un monde nouveau”. (LESCURE, 1983, p.14).
161

da criação não provêm do objeto contemplado, mas sim, da tensão com a qual o sujeito, no
ato mesmo do gozo estético, com ele se compromete.
Tendo então experimentado, no texto, a valorização arquetípica e metafórica de
imagens cósmicas – frequentemente paradoxais, devido ao conúbio que traduzem, de
motivações eminentemente ambivalentes – nos aproximamos, com o mesmo modo de
conhecimento aproximado afirmado em sede epistemológica, à afirmação da alteridade
como situação primordial do ser, exposto como é – em suas derrotas e fracassos – à
experiência do negativo que o fortalece, pois, ao renová-lo – na superação de obstáculos e
em suas íntimas retificações – o adéqua ao ritmo mesmo do devir, traduzido nos devaneios
da interioridade em que encontra, de forma simbólica, a dinâmica de perpétuos reinícios
como estratégia propícia à suas retomadas (redressement).
E se recomeça, sempre, partindo do interstício da consciência, situado entre razão e
emoção, como sito fértil para a criação de novas significações valorizadoras, que atuam nas
mudanças subjetivas, preservando a paradoxal potência do coração, que ao descobrir a
alegria como conquista aprende a buscar coerência entre contrários. Por isso tenta-se
coligar a primitividade do imaginário e a ambivalência das imagens elementares com o
dinamismo de mutação e aperfeiçoamento do ser. E por isso, também, antes de reunir, no
próximo capítulo, antagonismos bipolares provenientes do pensamento que reflete sobre
criatividade científica e estética - através da criação de conceitos e imagens - conclui-se,
afirmando o projeto roupneliano de redenção do ser na Arte, por intermédio da intuição
estética que renova a força poética (BACHELARD, 1931 II, p.97-100).
Trata-se de uma retomada de si ou redenção, essencialmente contemplativa, que se
deve realizar através da clarividência íntima e da intensidade de consciência; e cuja raiz se
encontra na força que nos permite aceitar a vida com seus conflitos e contradições, situando
o nada absoluto nas duas bordas do instante (BACHELARD, 1931 II, p. 99), ou seja,
vivendo exclusiva e intensamente o momento presente, instante vivenciado que restituímos
em nosso devaneio, na escuta da voz interior. A experiência intima e profunda desse
instante é a mais adequada tradução da necessidade metafísica afirmada por Roupnel, a
saber: fazer caber no pensamento sínteses de motivações contrárias. Portanto, estética e
episteme, em Bachelard, situam-se bem distantes da reflexão tradicional, que procede por
princípios absolutos no domínio do confronto constante com alteridades, enquadrando-se
162

ambas numa perspectiva de instabilidade, na qual sujeito e objeto compartilham com o


mundo uma temporalidade que não dura. E, em laços de oposições, realizam como destino,
o fluxo de devir dos instantes.
163

3 ENTRE RAZÃO E DEVANEIO

Este último capítulo se dedica ao pontual mergulho nas obras de Bachelard, em


busca deste procedimento do raciocínio por ambiguidades e oposições dualistas, o que se
evidenciou como principal método expositivo – e, portanto, didático pedagógico – de suas
ideias. Sobre tal questão, cabe ressaltar dois pontos fundamentais: o primeiro, especificando
o que foi dito, chama atenção ao fato de que o procedimento por ambiguidades e oposições
não executa somente a função de exposição de ideias, pois atua também como motor
dialético que funda argumentações inéditas. Trata-se, portanto de uma particular e
específica metodologia generativa de novas ideias, novas teorias, assim como de novos
horizontes de pesquisa. Um verdadeiro método de criação.
O segundo ponto a ressaltar serve para relembrar que tal mecanismo dialético de
geração de novidades teóricas é plenamente operativo nas duas vertentes bachelardianas, já
que ambas tomam impulso na própria situação de ruptura que encontram como
configuração dos campos teóricos nos quais se desdobram, considerando as mudanças
radicais que se manifestam com o novo século, seja no domínio da ciência, seja naquele da
arte. Surgia, assim, a urgência de um novo estatuto operativo para o inteiro universo da
criação estética e científica.
Afirmando, então, rupturas como ponto de partida de toda produção teórica do
autor, estão reunidas, neste capitulo, argumentações – que convalidam a proposta de uma
metodologia por oposições – selecionadas diretamente em quatro obras de Bachelard, duas
científicas e duas poéticas: A atividade racionalista da física contemporânea (1951) e O
compromisso racionalista (1972c), na vertente epistemológica; e A poética do espaço
(1994c) e A poética do devaneio (1993a), na vertente estética; das quais resultam
nitidamente o pensamento gerador da dinâmica por antíteses ora defendida. Procura-se
chegar assim, à afirmação definitiva da hipótese que guiou este estudo, ou seja, à existência
de um procedimento bachelardiano que se desdobra por intermédio do recurso frequente a
ambiguidades, oposições e contradições, como motor dialético, por um lado, de retificação
e aproximação permanentes do conhecimento, e por outro lado, como método de subversão
de ideias, fermento de proliferação de novidades científicas e estéticas. Entretanto, antes
164

disso, convém notar que Bachelard ressalta aprender a sonhar como condição primária da
plena realização de si mesmo, condição da afirmação de uma consciência alerta e
despertada. Logo, após ser exposta a surpreendente reformulação da racionalidade, exigida
pelo novo conceito microfísico de corpúsculo, resultará evidente o que, dito agora soa
paradoxal, ou seja: cientistas também sonham. Projetam novidades, buscando ampliar os
limites tangíveis do saber de cada época. Sem essa atividade, essencialmente imaginativa, a
ciência moderna não teria se desenvolvido como saber tecnológico da contemporaneidade,
pois, a imaginação inventiva – mesmo aplicada na pesquisa, por meio de equações
matemáticas – tem papel decisivo no percurso de intensa complexidade. É com este intuito
que progride a investigação científica, tecendo noções imponderáveis, consideradas mesmo
ininteligíveis pela mentalidade empírica do realismo imediato.
Logo, para justificar a antecipação aqui feita do sonho científico como conclusão
deste item, recorre-se à concepção dialética do tempo fragmentado em instantes –
argumento do terceiro item deste capítulo – que apresenta a intrigante noção de
dialeticidade temporal70 como movimento que atribui a considerações anteriores, sentidos
inéditos, alcançáveis somente no desenvolvimento ulterior delas mesmas. Sentidos que se
revelam a posteriori – em momentos sucessivos da argumentação – alargando, porém, o
significado do momento precedente da investigação. Na verdade, é o que se tentou fazer
situando esta referência a uma conclusão futura, no início da argumentação que a ela
conduzirá. Um jogo dialético.
O primeiro item será dedicado à noção microfísica de corpúsculo (BACHELARD,
1951). Esta é relacionada ao desafio lançado pela revolução científica, em termos de
abertura e de evolução da epistemologia, enquanto disciplina do novo espírito racional, bem
delineado por Bachelard (1972c), em sua Conferência à Academia científica parisiense, a
ser discutida, ressaltando a interessante inversão com a qual o autor, ao defender suas
ideias, tende a manter-se numa posição mais conservadora, diante da provocação dos
epistemólogos presentes que parecem instigá-lo a uma tomada de posição ainda mais
ousada. Significativo indício de abertura à pesquisa, na época.

70
Ocorre ressaltar que mais adiante, nesta noção, veremos concordar dois pesquisadores, a saber: Vera Felício
e Jean Lescure.
165

No segundo item, serão balizados os procedimentos teóricos – de investigação


estética e de apresentação didática de seus resultados – da nova metodologia bachelardiana
por ambiguidades e oposições com a perspectiva do novo saber literário, fruto das duas
obras primas que expõem o amadurecimento da arte poética de Bachelard, aplicado às
concepções estéticas de espaço e devaneio (1994c e 1993a). No terceiro item, serão
discutidas algumas observações sobre temporalidade e dialética, apresentadas quais
princípios de possibilidade do incessante ritmo de mutação no qual Bachelard situa sua
perspectiva de criatividade e renovação da racionalidade e do imaginário literário. A
fragmentação bachelardiana do tempo nos instantes que o constituem, será considerada
como alicerce insubstituível da visada do bachelardismo – que se tentou traçar – em termos
de dinamismo e transformação.

3.1 Racionalismo retificado e a nova noção de corpúsculo

Quando se estudava a matéria, tentando resumi-la em seus quatro elementos, em suas


quatro espécies de átomos, a fenomenologia nos entregava imagens sedutoras; o fogo tem
a faísca, a água tem uma gota, a terra tem um grão, o ar é sensível no movimento da
poeira. Aqui, nada. Nenhuma corpuscularização natural. Nada, absolutamente nada, no
conhecimento comum que nos colocasse na justa via de isolamento de um corpúsculo. E
todas as imagens são enganadoras (BACHELARD, 1951, p.122).

Neste item, toma-se em análise a abertura dos limites da razão, segundo dois pontos
de vista. Inicialmente serão discutidas as novidades sobre o tema, apontadas no debate de
Bachelard com ilustres filósofos e epistemólogos, que sucedeu sua palestra sobre A
natureza do racionalismo71, em 1950, na Sociedade Francesa de Filosofia de Paris.
Na segunda parte deste item, será ressaltado em que modo esta natureza retificada
da racionalidade científica se aplica, como física atômica, na formulação da nova noção de
corpúsculo, decorrente da natureza insólita que a teoria e experimentação científica atribui
às partículas atômicas.
Neste domínio, focalizam-se as conquistas da nova ciência, que apesar de ter
superado o marco de seu centenário, continua a surpreender aqueles que a seguem,

71
BACHELARD, 1972, p.45.
166

progridem inexoravelmente, exigindo da razão humana níveis cada vez mais altos de
especialização e capacidade de desvendar complexidades sempre maiores.
Serão abordados então os termos bachelardianos desse complexo percurso desde a
renovação da ratio científica até a elaboração do sonho corpuscular da ciência
contemporânea. Busca-se sempre ressaltar os momentos teóricos específicos, dos quais,
devido às dualidades e oposições neles traçadas, se poderá obter mais especificações do
procedimento aqui qualificado como uma metodologia de ambiguidades e antagonismos.
Suas sementes, confirmadas por sucessivas conquistas da pesquisa bachelardiana, já se
encontravam mesmo na noção de obstáculo científico e de psicanálise do conhecimento
que, a bem ver, num claro movimento de reflexão por oposições, esboçaram os limites
daquele outro da pura racionalidade – o mundo subjetivo de estímulos extracientíficos – ao
qual o autor dedicaria sucessiva, mas também concomitantemente, seu encantamento pelo
imaginário. “Direcionar o racionalismo do passado do espírito ao futuro do espírito, da
lembrança à tentativa, do elementar ao complexo, do lógico ao sobrelógico, eis aqui as
tarefas indispensáveis a uma revolução espiritual” (BACHELARD, 1972c, p.7).
Bachelard (1993a) cita Jules Laforgue. Desta referência pode-se tomar a indicação
precisa não tanto de como proceder neste último capítulo desta tese, mas sim daquilo que
sem romper com a inteligibilidade que caracteriza o procedimento aqui adotado – enquanto
reflexão acadêmica – se deve necessariamente deixar para trás, para tornar profícuo o
procedimento desta análise. “Método, Método, que queres de mim? Sabes bem que comi do
fruto do inconsciente” (LAFORGUE apud BACHELARD, 1993a, p.1).
No caso do presente estudo, por exigência de precisão, convém substituir,
idealmente, inconsciente por imaginário. De qualquer forma, tal sentença serve
perfeitamente como referência ao rigor e precisão de uma metodologia acadêmica
tradicional que se teve que superar para enfrentar o audacioso desafio que constitui este
tema de estudo. Como já afirmado precedentemente, o dinamismo dialético com o qual
Bachelard abre os domínios de sua reflexão traz consigo tamanha e permanente força de
mutação que seria impossível obter êxito nesta pesquisa, se tivessem sido obedecidos os
procedimentos metodológicos tradicionais.
Em tal modo, junto à frase com a qual Laforgue rejeita o método clássico do saber
subsídios no texto bachelardiano mesmo serão coletados, quando – introduzindo A água e
167

os sonhos – o filósofo afirma ter tentado tornar-se racionalista em relação ao fogo,


admitindo, inversamente, a decisão consciente de ceder ao devaneio da água para
mergulhar profundamente no onirismo aquático.
Analogamente, após terem sido obedecidos os critérios racionais de distinção entre
epistemologia e poética – como fez Bachelard – dedicando a cada vertente um
capítuloanálise viu-se o autor empregar, indistintamente, em seus dois domínios de
pesquisa, ressaltam-se aqui diversas ocasiões, nas quais a argumentação bachelardiana
investiga situações de contraste e de oposição. Logo, serão reunidos – neste mesmo
capítulo – textos referentes às duas áreas de estudo, como também argumentos pertinentes à
hipótese desta tese, presente em alguns textos de comentadores da obra
bachelardiana.Georges Canguilhem relata, em 1972c, na introdução de O compromisso
racionalista, ocasiões nas quais o autor defendeu a ideia de comprometimento como valor
próprio ao racionalismo específico, que via surgir em sua época. Em O racionalismo
aplicado, de 1949, Bachelard descreve o racionalismo como filosofia aplicada, já que desde
1936 afirmava em– O surracionalismo – a impossibilidade de um racionalismo puro. A
novidade que interessa a esta pesquisa, em tal questão, diz respeito ao objeto com o qual a
racionalidade bachelardiana se sente comprometida. Nas palavras de Canguilhem, trata-se:

[...]de um comprometimento pela racionalidade da razão contra sua própria


Tradição.[...]. Para Bachelard, trata-se de um comprometimento pela razão, contra aquela
forma de racionalismo, uma espécie de superstição científica, expressão beata de um
primeiro sucesso de racionalização. Tanto é verdadeiro que o racionalismo de Gaston
Bachelard é a contestação de um racionalismo eufórico, que ele inventa em termo para
distingui-lo deste último, aquele de surracionalismo, que se apela à agressividade da razão
sistematicamente divisa contra si mesma. O racionalismo polêmico é radical de modo
diverso da polêmica racionalista[...]. Para esperar tornar-se racionalista, mais do que uma
preocupação em desvalorizar preconceitos é necessário valorizar a dialética do não juízo
(déjugement). O compromisso racionalista é uma revolução permanente (CANGUILHEM,
1972c, p.5).

Decidiu-se transcrever a longa citação pelas referências a questões fundamentais à


hipótese deste trabalho. Inicialmente, a oposição da razão à sua própria tradição, dita tão
claramente, é aquilo que se está tentando demonstrar como exigência formulada pela
evolução
dos parâmetros de cientificidade que, como foi visto ao se tratar de epistemologia,
manifestara-se
168

nos quadros mesmos da ciência daquela época. Sem uma radical revolução no estatuto
teórico da ciência, sem a abertura na inteligibilidade dos quadros de racionalização do real,
os estudos sobre o átomo, formulados no bojo das transformações científicas do início do
século XX, certamente não teriam podido manifestar toda a dinâmica de sua evolução,
como ao contrário, verificou-se nas décadas sucessivas, e prossegue até hoje, com a
experimentação atômica e nuclear.
Portanto, o dualismo de oposições justifica-se como estratégia dialética do saber,
requisitada pela evolução científica mesma. Confirmando o método da imprudência de
Bachelard, Canguilhem (1972c, p.5) qualifica como impávida a razão que ousa opor-se à
sua própria tradição, na certeza de encontrar sua justificação na evolução científica. Logo,
como já apontado, a oposição – neste caso – significa uma precisa e necessária exigência da
metodologia epistemológica, sem a qual todo progresso seria impedido. Mais uma
confirmação de que é a ciência quem instrui a razão e não ao contrário, como erroneamente
afirmara, por séculos, a tradição racional, que pretendia desenvolver a ciência segundo
exigências da racionalidade.
Assim, uma nova racionalidade investe toda a tradição da razão, percorrendo
trajetos que se situam além do formalismo clássico do passado, sem nenhum
comprometimento com a realidade empírica do objeto que estuda. Ao contrário, o objeto
científico surge como êxito da pesquisa racional, aspecto já referido neste estudo.
Inicialmente é sempre um objeto teórico à espera de comprovação empírica. Impõem-se,
então, o que Canguilhem chama de “dialética do não juízo, ou des-juízo” (p. 5), que destitui
a razão da função de juiz severo do real, conforme seu quadro teórico de postulados a
priori. A razão deve constantemente revolucionar o ambiente da pesquisa, abrindo espaço
para sua qualificação criativa, que passa, pois, a compartilhar com a imaginação, enquanto
ambas são criadoras de novas realidades.
Bachelard (1972c) parece inspirar-se no procedimento alquímico de submissão da
substância a todo tipo de tormento e decomposição, para fazê-la renascer renovada –
costumava-se mesmo sujá-la bastante para promover sua purificação – quando submetida a
razão ao escárnio e desprezo para acentuar a necessária transformação da racionalidade.
Assim, em O surracionalismo (1972c), ele afirma que: confunde-se frequentemente a ação
da razão com o recurso às certezas da memória, pois tudo aquilo que, após várias
169

experiências similares, conhecemos bem, “nos dá a impressão de coerência objetiva e


racional” (p.7).
Enquanto, seguindo o verdadeiro sentido da nova razão, que ele denomina razão
viva – como citado na epígrafe de abertura desta tese e retomado aqui sob um novo enfoque
– “para pensar, deveríamos antes desaprender muitas coisas” (BACHELARD, 1972c, p.7).
Deste modo, para restituir à razão “sua função de turbulência e de agressividade” (p.7), faz-
se necessário “levar a razão a duvidar de sua obra e dividir-se sistematicamente, em cada
uma de suas atividades” (p.7). É o princípio de uma incerta polirracionalidade. O autor
pretende promover a fundação de uma nova racionalidade, ou surracionalismo,
multiplicando assim as possibilidades do pensamento. Trata-se de resgatar a fluidez da
razão e da sensibilidade, visando a renovação da experiência que temos do mundo físico, ao
se promover, simultaneamente, a possibilidade de compreender e sentir de modo novo.
Para Bachelard, a constituição de uma nova percepção – por obra de uma razão
experimental, cuja tarefa é a reformulação sobrerracional do real – prevê uma força
dinâmica de renovação que instaura três novas construções surracionalistas. A saber, um
duplo movimento de divisão dialética da razão em duas direções, uma interna, outra
externa. Em terceiro lugar, os surempiristes, que derivam da ação destas duas dialéticas em
oposição. As grandes linhas deste projeto de reformulação surracional da realidade que o
autor expõe em O surracionalismo serão seguidas, brevemente, como se poderá ver.
Em primeiro lugar, Bachelard (1972c) afirma que a dialética interna do pensamento
racional surge simultânea e independentemente em campo filosófico e científico, por um
lado, por obra de Hegel, que dialetiza o pensamento metafísico. Por outro lado, por obra de
Lobatchevsky, que dialetiza o pensamento geométrico. Bachelard objeta à dialética
hegeliana o fato de ser uma construção a priori, razão de uma “liberdade de espirito
demasiadamente incondicional e desértica” (p.8). Ademais, a dialética hegeliana a priori
“corresponde àquelas sociedades onde somos livres para fazer qualquer coisa, mas onde
não temos nada à fazer (p, 8). Então somos livres para pensar, mas não temos nada o que
pensar”.
Inversamente, Lobatchevski (Apud BACHELARD, 1972c, p.9), ao aplicar sua
dialética a posteriori sobre a noção particular de paralela, atribuiu “mobilidade,
efervescência e alegria” à atividade espiritual da razão, “amaciando as aplicações do
170

princípio de não contradição” (p. 9). Aos olhos de Bachelard, tal junção do espírito de
finesse ao espírito geométrico significou a libertação da razão dela mesma. Grande
conquista na história das ciências, que disponibilizaria a racionalidade às imponderáveis
conquistas que seguiriam. Infelizmente, o autor acusa lógicos formalistas de terem feito
mau uso desta recém conquistada liberdade racional, desencantando o espírito de
racionalidade, ao enquadrá-lo em “formas vazias de pensamento, que o surracionalismo
tem o dever de retomar, preenchendo-as psicologicamente e recolocando-as em movimento
e em vida” (p.9).
Mestre atencioso em seu exercício de renovação e abertura das formas de pensar,
Bachelard sugere como melhor modo de realização da tarefa surracionalista “ensinar essas
geometrias múltiplas deixadas na sombra pelo ensino oficial e pragmático”
(BACHELARD, 1972c, p. 9). Propõe a reindividualização da razão, desconcertando o
raciocínio elementar e endurecido dos filósofos dogmáticos, que bloqueiam a evolução do
racionalismo, estagnando-o ao nível da cultura científica básica. Ao ouvi-los repetir
infinitamente a equação sobre a soma dos ângulos do triângulo, ele apresenta como
resposta: “Isto depende” (p. 9), ou seja, depende dos axiomas escolhidos pela
argumentação. O verdadeiro mestre, portanto, é aquele que sabe dialetizar espíritos,
confrontando-os com as bruscas mutações que permeiam a evolução do conhecimento.
Divulgando os paradoxismos da racionalidade científica de sua contemporaneidade,
o autor realiza a tarefa que anuncia como imprescindível. Ou seja, “desorganizar o
racionalismo esclerosado” (BACHELARD, 1972c, p.10), sobretudo, ao expor o espírito
racional – recentemente transformado pela evolução dinâmica que se instaura com a
cientificidade atômica – ao incessante trabalho de retificação de suas certezas, como
exercício dialético de mutação nos domínios do conhecimento científico. Como Bachelard
mesmo diz, ensinando a “desaprender para melhor compreender” (p.10). O projeto de
transformação da razão, em termos de surracionalidade, desenvolve-se em torno do eixo de
reformas intelectuais da experiência primeira, da percepção imediata da realidade como
principal obstáculo ao pensamento racional.
Ao enunciar este princípio do racionalismo experimental, Bachelard (1972c) admite
que diante da experiência física, a razão “toma uma atitude clara e felizmente ambígua"
(p.10) ao abandonar a rigidez do a priori, acolhendo o a posteriori. Em tal modo, o uso da
171

noção de ambiguidade na descrição do princípio de abertura e transformação da


racionalidade joga a favor deste estudo, trazendo mais uma demonstração da pertinência
desta proposta em prol de uma metodologia de ambiguidades e contradições, como via
maestra para a afirmação da renovação espiritual requisitada pela nova cientificidade.
A nova racionalidade com a qual trabalha Bachelard já havia conquistado sua
maioridade – considerando a publicação de O surracionalismo em 1935/36 – apesar de ter-
se afirmado há pouco, com as transformações do pensamento científico da primeira década
do século XX. Era madura o bastante para suportar os rigores da contínua exposição a
contradições, paradoxos e negações, dínamos dialéticos de sua própria evolução.
Abandonando o ideal milenar de regularização das imperfeições empíricas,
adaptadas à perfeição estática e a priori das normas lógicas, a razão humaniza-se no embate
com a oposição, com ambivalências e divergências, nas quais se exercita a superação e
renovamento de suas retificações, como fermento de sua própria evolução, o que faz da
história científica a narrativa ou exposição “dos infortúnios da razão, das lutas ilusórias
contra ilusões” (BACHELARD, 1972c, p.10). Tomando distância do imediatismo de uma
cientificidade construída sobre as bases simples da experiência imediata, desrespeitando o
princípio de unidade da racionalidade, o pluralismo experimental torna-se ingrediente
fundamental ao progresso científico, abatendo simultaneamente a noção abstrata, que
considerava a razão em si mesma como uma tradição a ser respeitada.
Mais uma vez, raciocinando por intermédio de um mecanismo de inversão de ideias,
aplicado na demonstração da novidade científica e, portanto, como princípio de
conhecimento, ou melhor, como método de exposição da cientificidade, ao constatar o fim
da noção de desenvolvimento contínuo da cultura científica, que postulava o
enriquecimento monótono do estatuto científico, Bachelard afirma que o momento impõe a
descoberta de ideias, mais do que de coisas, e logo, o simples agora é o informe enquanto o
elementar, agora é composto: “A forma elementar revela-se polimorfa, no instante mesmo
em que a forma maciça tende ao amorfo” (p. 10), e descreve tal mutação com três
expressões inquietantes em sua polarização, ele diz: “A experiência se divide”, “a
simplicidade muda de campo”, “a unidade cintila” (p.10-11).
A nova racionalidade é um verdadeiro dinamismo de mutação e abertura que não
teme mais os riscos da aventura intrínseca à conquista de novos conhecimentos. Enquanto
172

físico e químico, informado e experiente pela atividade de docência acadêmica em tais


disciplinas, Bachelard conhece as exigências da nova racionalidade científica e luta na
certeza de que será o próprio progresso histórico do conhecimento científico a convalidar
os princípios e a metodologia incerta, ambígua e paradoxal, exigidos pela razão
experimental, da qual se faz arauto. Não hesita, portanto, ao decidir sobre o impasse –
equacionado na forma de uma opção dualista – em que se encontra a cultura racional de sua
época, dicotomizada entre a rejeição “de nossas grosseiras seguranças pragmáticas ou dos
novos conhecimentos aleatórios e inúteis” (BACHELARD, 1972c, p.11), diz o filósofo,
aplicando sua recomendação de zombar de si mesmo, ao qualificar como inútil aquilo que
sabe ser imprescindível. Ele não hesita porque é cientista, sabe que deve optar pelo perigo e
pelo risco: devemos ir para o lado “onde pensa-se mais, onde experimenta-se mais
artificialmente (BACHELARD, 1972c, p.11).
Arriscar é uma função essencial à cientificidade. Uma experiência que funcione,
torna-se origem de transformação espiritual. Experiências que não fazem senão confirmar o
que sei e o que sou não servem à radical exigência de uma metodologia científica que
abrace a transformação e a transmutação como motor de qualquer novidade. Segundo sua
recomendação pela imprudência do pensamento, “cada descoberta determina um novo
método que arruina o método precedente” (BACHELARD, 1972c, p.11), ele justifica o
sacrifício de qualquer “mau sinal de prudência, conformismo, constância e lentidão” (p.11).
Diante do confronto ambíguo entre dialéticas a priori e dialéticas experimentais, o
autor vê, na libertação do real dos rigores do apriorismo racional, uma realização da nossa
liberdade espiritual, pois, a realidade não pode mais nos desmentir, logo, “nada mais nos
oprime”, agora que a evolução da razão mesma – superado o domínio da coerência estática
– abre espaço à coerência dinâmica, compatível com a mobilidade do psiquismo, afirma
Bachelard, indicando a revolução psíquica de seu século como início da viagem espiritual
da razão, para bem distante da imediatez do real.
Consequentemente, seu momento histórico rejeita “o gosto pelo porto, pela certeza,
pelo sistema” (BACHELARD, 1972c, p. 12), como rejeita também o julgamento por
antecedentes, pela origem, pela causa ou razão. O autor soube fornecer, com suas
pesquisas, subsídios para a afirmação do dinamismo das dialéticas racionais que substituiria
o racionalismo fechado da tradição por um racionalismo aberto à transformação:
173

A razão felizmente inconclusa não pode mais dormir em sua tradição; não pode
mais contar com a memória para recitar suas tautologias. Incessantemente, deve
provar e provar-se. Encontra-se em luta com os outros e, sobretudo, consigo
mesma. Desta vez, ela tem a garantia de ser incisiva e jovem (BACHELARD,
1972c, p.12).

O dinamismo de abertura que caracteriza o novo espírito científico empurra a


racionalidade ao confronto com domínios que se definiam, até então, como ilógicos e
irracionais.
Raramente Bachelard se detém a explicar a démarche com a qual a nova
racionalidade científica passa a exercer-se, mesmo em situações anteriormente situadas fora
de seu alcance. Disto deriva a aproximação entre o termo razão, anteriormente circundado
pela evidente allure de clareza e distinção, a noções como conflito, contradição e
ambiguidade, que definem por si só todo o contrário da racionalidade. Assim, em modo
bastante paradoxal, Bachelard argumenta que ao combater direta e vigorosamente os erros
que encontra em seus procedimentos, “não rompemos completamente com seu (do erro)
princípio” (BACHELARD, 1972c, p.16).
Deste modo, o autor afirma a presença de uma certa mentalidade ambígua, como
um tipo de contágio ou comprometimento que permitiria então o embate da razão com tais
zonas de perigo e conflito, sob a vigência de valores opostos àqueles da racionalidade,
como se em toda polêmica entre razão e erro ocorresse uma espécie de troca substancial
capaz de instaurar o germe da ambivalência no cerne mesmo da atividade racional.
Utilizando-se de um raciocínio análogo, ele já havia demonstrado como, na prática do
conhecimento aproximado, certos âmbitos do saber, que mesmo quando definitivamente
superados por saberes mais abrangentes, mantinham neste novo âmbito uma zona restrita
de validade que continuava a obter esclarecimento através dos mesmos princípios
retificados.
Exemplo disto seria a física newtoniana que, mesmo retificada e superada pela
teoria da relatividade, na nova visão de Einstein, mantinha sua pertinência como princípio
explicativo de um pequeno setor deste novo, mais complexo e amplo domínio do
conhecimento científico. Bachelard conclui o raciocínio, citado acima, sobre a não total
ruptura da razão com o princípio do erro que combate, afirmando a existência de uma
“ambiguidade essencial na base de toda atividade polêmica da razão” (BACHELARD,
174

1972c, p.16). Isto equivale dizer que a razão é sempre ambígua, visto que ele mesmo ensina
que a racionalidade se afirma, sempre, abatendo obstáculos e preconceitos, ou seja, sua
atividade desenvolve-se sempre nos termos polêmicos.
A nova versatilidade com a qual o espírito científico – evoluindo em modo dialético
– capacita-se à funcionalidade em áreas de conhecimentos, anteriormente considerados
ambíguos, contraditórios ou mesmo desconhecidos, como no caso do micro universo da
física atômica, conduz Bachelard à crítica do formalismo da lógica clássica72 que, enquanto
descreve um tipo de conhecimento definido por sua generalidade, caracteriza-se como uma
física do objeto qualquer73, a saber, como a normatização de todo objeto de conhecimento,
subssumido sob tais normas lógicas universais.
Negando a diferença entre os objetos, a ideia mesma de objeto qualquer torna-se a
realização do princípio de identidade. Entretanto, o advento da microfísica impõe a divisão
desta lógica do objeto qualquer em lógica do micro objeto e lógica do macro objeto, visto
que não parece existir alguma lógica que englobe as duas físicas do objeto qualquer macro
e micro. Na verdade, na multipolarização da razão provocada pela descoberta de novos e
distintos campos de conhecimento, a noção de objeto qualquer perde sua validade diante da
constatação da existência de tantas objetividades quantos os divergentes campos específicos
de novos saberes.
Surge daí o entusiasmo do autor devido à descontinuidade epistemológica que se
afirma entre a física e a microfísica, a seu ver, ocasião de uma “liberação vertiginosa: a
liberação do espírito de si mesmo” (BACHELARD, 1972c, p.30). Classificando
divergências sob forma de confronto entre multipolaridades, o autor indica a possibilidade
de oposição intelectual entre três diferentes modalidades espirituais. Em primeiro lugar, cita
aqueles que refletem sob o signo da necessidade, para os quais bastaria uma só objeção ou
contradição para justificar a rejeição de uma tese ou a ruína de um inteiro sistema de
pensamento. Em seguida, aponta a reflexão que se submete ao princípio da generalidade,
72
Segundo Bachelard, a lógica pura restringe a psicologia da razão, até torná-la absurda, fazendo da razão
“aquilo que rejeita o signo psicológico”, abrindo assim a estrada para nossa designação como espírito
qualquer. Ele afirma: “A lógica pura seria o pensamento de qualquer um, estudando qualquer coisa, em
qualquer lugar e em qualquer época” (1972C, p.31).
73
Com o mesmo argumento, Bachelard (1972c) critica também a teoria do conhecimento kantiana,
afirmando-a válida somente em relação ao objeto qualquer, universal. Perderia validade para objetos que não
se deixem normatizar pela generalidade, como no caso dos objetos da microfísica, que instauram a diferença
no domínio desta universalidade objetiva.
175

que diante da insegurança dos “sistemas fechados, acolhem conhecimentos aberrantes”


(p.31). A terceira modalidade reflexiva aceita a generalidade como necessidade,
transformando o conhecimento geral em conhecimento necessário. Esta terceira modalidade
espiritual caracteriza a formação dos princípios do conhecimento.
Ademais, no breve artigo comentado, A psicologia da razão (1972), Bachelard
afirma executar uma psicanálise do conhecimento racional, discorrendo sobre a noção de
axioma ou verdade evidente por si mesma, cuja formação desdobra-se em três fases
sucessivas, partindo da inversão que opõe – no que diz respeito à ideia de construção –
racionalidade à realidade, pois, quando se está diante de uma construção real e concreta,
percebendo sua solidez, avalia-se que a mesma deve ter fundações estáveis.
No reino do espírito ou pensamento, ocorre o contrário, diz o autor. “É preciso ter
construído para poder fundar. Faz-se o teto antes do porão” (BACHELARD, 1972c, p.32).
Lentamente, raciocínios sensatos dão origem à claridade como uma luz primeira, de
evidência clara e distinta que instauram ideias em sua ordem necessária. Surgem assim os
axiomas como verdades necessárias e apodíticas.
Na segunda fase de formação da evidência – fase da constatação da realidade sólida
e absoluta dos axiomas – os mesmos tornam-se independentes das elaborações teóricas que
fundam, não deixando mais espaço para dúvidas sobre sua natureza. Razão pela qual nos
convencemos de que proposições não duvidosas merecem se tornar axiomas. Bachelard
(1972c) qualifica esta fase como uma curiosa revolução da razão que – em surto de
funcionalismo – passa a tratar postulados como axiomas, gerando a tentadora liberdade de
produzir a priori diferentes axiomáticas.
Na terceira e última fase desta liberdade fictícia, Bachelard (1972c) rejeita a
possibilidade de uma “atividade espiritual puramente formal” (p. 33). Para ele se tem a
verdadeira ordem dos pensamentos, quando o primeiro deles for também consequência
daqueles que o seguem. A rigidez absoluta da definição lógica de axioma implica o risco de
que ele não consiga fundar a demonstração, por déficit de uma noção da própria origem e
fertilidade. Acredita-se que a digressão concedida aqui à tese bachelardiana sobre a
psicologia da razão contribua de modo fundamental para a reflexão sobre novos
procedimentos racionais, como o caso estudado, de uma razão ambígua que procede de
modo incerto, através de oposições, negações e contradições. Tanto que o autor, sem temer
176

a exploração de todas as démarches da racionalidade, para multiplicar pontos de vista,


conclui o artigo, retomando a ideia de obstáculo epistemológico, para confirmar a
importância de uma razão polêmica: “Acredito que nos instruímos contra alguma coisa,
talvez mesmo contra alguém ou contra si mesmo [...] somente as crises da razão podem
instruir a razão” (p.34). Assim, multiplicando problemas e dificuldades, ganhamos, com o
aumento de nossas tarefas, “o dinamismo espiritual que nos permitirá realizá-las” (p.33).
A palestra O problema filosófico dos métodos científicos (1972c), proferida em
abertura do Congresso de Filosofia das Ciências, dará a possibilidade de recolher mais
elementos em favor da tese que ora se defende. Comme d’habitude, o tom inaugural é
polêmico, pois o filósofo parte da denúncia do estupor causado pela constatação do
desprezo dedicado pela filosofia contemporânea às filosofias que tratam do conhecimento
científico. O esforço conceitual dos homens de ciência é visto de maneira abstrata ou, ao
contrário, como valores meramente utilitários.
O ponto a se ressaltar é este: “A ciência não passa de uma pequena aventura, uma
aventura no país quimérico da teoria, nos labirintos tenebrosos das experiências artificiais”
desabafa Bachelard (1972c, p. 35), que uma vez mais formula, segundo os termos de um
“incrível paradoxo” (p.35), uma visão geral sobre o objeto de seu estudo: “Segundo as
críticas da atividade científica, o estudo da natureza desviaria os cientistas dos valores
naturais, a organização racional das ideias prejudicaria a aquisição de novas ideias” (p.35).
Bachelard (1972c) ataca filósofos defensores da clareza originária do espírito, que
afirmam um conhecimento “direto, imediato e intuitivo”, e transformam a própria
ingenuidade em virtude e método, ao confundirem – na “embriaguez de personalidade” (p.
36) que caracteriza a filosofia contemporânea – visões pessoais com sentidos universais e,
acreditando-se enraizados no ser mesmo, “encontram a glória na própria singularidade”
(p.36).
Na verdade, segundo Bachelard (1972c), o pensamento científico autêntico acarreta
uma “promoção da existência e do ser” (p.36), a qual chama atenção, propondo uma
concepção dinâmica do ser pensante que promove o pensamento como uma força não
substancial. Assim o autor abate a milenar teoria do movimento como doença do ser e,
numa inversão metodológica, propõe a noção de ser como obstrução ao movimento, como
uma interrupção do devir. O método bachelardiano prescreve, pois, uma “inversão radical
177

da fenomenologia do ser humano” (p. 36) que o descreva nos termos de uma promoção de
ser, em sua essencial e dinâmica tensão, enriquecendo a ontologia pelo acréscimo de uma
dinamologia do existente.

Em outros termos, parece-me que a existência da ciência se define como um progresso do


saber [...]. Em breve, a ciência é uma das testemunhas mais irrecusáveis da existência
essencialmente progressiva do ser pensante [...]. O que será então a filosofia das ciências?
Será uma fenomenologia do homem estudioso, do homem tenso em seu estudo, e não
somente um vago balancete de ideias gerais e de resultados adquiridos. Ela nos mostrará o
drama cotidiano do estudo cotidiano, descreverá a rivalidade e cooperação do esforço
teórico com a pesquisa experimental, nos situará no centro do conflito perpétuo de
métodos, caráter manifesto e tônico da cultura científica contemporânea (BACHELARD,
1972c, p.37).

As transformações e reformulações metodológicas que determinaram ao longo da


história a renovação contínua do conhecimento científico, a bem ver – e como afirma
Bachelard – testemunha o essencial processo de promoção de existência do ser humano,
pois a conquista progressiva de um maior refinamento de racionalidade torna evidente o
papel fundamental revestido neste processo de crescimento, pelo caráter filosófico do
espírito científico. Dito de outra maneira, o patrimônio científico progride, porque a
racionalidade enquanto capacidade humana de conhecimento evolui, “confiante e
consciente de sua autonomia e audácia” (BACHELARD, 1972c, p.38).
A autonomia e audácia da razão humana descrevem, pois – no exemplo citado pelo
autor – a renovação das ciências matemáticas, desde os gregos, passando pelo
renascimento, por Descartes, Newton e Leibniz, até alcançar a relatividade newtoniana e
todas suas aplicações no campo da microfísica. Bachelard cita também as ciências
biológicas que passam em nossos dias, por um processo de evolução fundamental a partir
das novas possibilidades de manipulação genética do genoma humano. Torna-se assim
claramente perceptível como o progresso científico se realiza através das conquistas
alcançadas devido à capacidade de reformulação e evolução do espírito humano74.

74
Tanto que nos últimos quinze anos, grandes centros mundiais de estudo da filosofia abriram específicos
departamentos de pesquisa filosófica aplicada ao progresso da ciência biológica que, ao conquistar técnicas de
clonagem do patrimônio genético de seres vivos, determina a necessidade de reflexão sobre questões éticas
fundamentais, concernentes aos diversos níveis de implicação da noção mesma de manipulação e
interferência na vida humana.
 
178

Manifestando-se sobre Ciência e método – tema do Congresso – Bachelard dá


indicações precisas sobre a abertura do domínio científico a procedimentos experimentais,
que por si só configuram novas variantes metodológicas. Questão que concerne diretamente
ao frequente modus bachelardiano de argumentar sob a forma de oposição dualista de
conceitos ou de contradições e ambiguidades, que apesar de não encontrar definição
específica enquanto metodologia – em termos de um rigoroso formalismo da pesquisa –
não deixa, portanto de caracterizar uma novidade relevante ao propósito do dinamismo de
abertura que o filósofo ergue à condição de componente essencial no exercício do
pensamento racional ou imagético.
Bachelard refere que Goethe, qualificando as regras metodológicas de Descartes
como hábitos evidentes do intelecto, que toma por verdade somente o que for evidente,
segundo a ordem de certas verdades de base, afirma que o discurso do método cartesiano
não traz nenhuma ajuda. O cientista parte sempre de uma metodologia de oposição que
rejeita a experiência empírica e o senso comum, como visto no primeiro capítulo desta tese.
Ele goza de uma variedade de métodos especializados, constituídos ad hoc para aplicação
nas diversas disciplinas. O método representa um “truque (ruse), um estratagema útil na
fronteira do saber”, diz Bachelard (1972c, p.39).
O progresso histórico do saber científico, padronizando uma base de procedimentos
standard – relativos sobretudo à matematização dos dados – sem os quais não se dá
conhecimento autêntico, conquistou simultaneamente uma ampla margem de liberdade do
espírito que se dedica à pesquisa. É como se a dinâmica de contradições se encontrasse
estavelmente plantada no cerne do psiquismo, como nobre atributo do intelecto que, ao
progredir, seguindo seu destino de complexidade progressiva, alarga cada vez mais o
espectro de sua radical liberdade de atuação, pois o método científico floresce sempre em
zona de risco e – invertendo a perspectiva cartesiana – situa a dúvida sempre à sua frente,
como certeza de conquistas futuras.
Deste modo, o cientista nunca teme pôr em jogo a própria constituição do método
de sua pesquisa, sempre pronto a retificações e reestruturações exigidas pelos desafios que
constituem o futuro de sua investigação. Junto à liberdade, a ciência conquista sua
versatilidade metodológica. E mais uma vez, Bachelard recorre à noção de paradoxo para
esclarecer o dinamismo do saber científico de seu tempo:
179

O espírito científico vive na estranha esperança que o método mesmo encontre o


fracasso total. Pois a derrota é o fato novo, a ideia nova [...] que vem afrontar os
velhos mestres e rir da ingenuidade dos velhos livros [...] de bom grado nos
afastamos de um método regularmente fecundo demais. Um tal método acaba
passando da condição de método de descoberta àquela de método de ensino. A
clareza, às vezes, é uma sedução que faz vítimas na categoria dos professores [...]
que, satisfeitos com uma clareza antiga, retrocedem de uma geração [...] certos
métodos possuem somente um passado. Mas [...] o método não saberia ser uma
rotina (BACHELARD, 1972c, p.40).

Bachelard (1972c) ilustra a grande liberdade e mobilidade da metodologia científica


com as palavras de Goethe: “Quem quer que persevere em sua pesquisa, cedo ou tarde, é
levado a mudar de método” (p.40). Mas ao mesmo tempo adverte que seria um erro
considerar a questão do método científico segundo o parâmetro de uma mobilidade
exagerada, “como uma série de procedimentos sem ligação com o corpo de verdades
profundas” (p.40). Na verdade, o autor insiste em afirmar que o saber científico moderno
manifesta constantemente sua potência de integração de novas conquistas e novos
conhecimentos. Mesmo um saber particular, valendo-se da fecundidade de seu método de
especialização, obtém como fruto da pesquisa o alargamento da cultura (BACHELARD,
1972c, p.40), razão pela qual o autor se opõe às críticas contra a especialização do saber,
afirmando que, muitas vezes, o termo cultura geral define estudos da juventude e
ensinamentos dos velhos mestres, tornando-se uma desculpa pelo desinteresse do saber.
De modo que, os dois termos citados: integração e especialização do saber
desenham a história do desenvolvimento científico nos dois últimos séculos. Além do mais,
num típico exemplo de inversão – como estratégia bachelardiana de demonstração
conceitual – é provável que o saber demasiado especializado, para o filósofo, não seja
senão um elemento da cultura geral do cientista que adquire “coerência de vida numa
especialização profunda”, que manifesta a “coragem da inteligência”, diz Bachelard (p.41),
construindo sua demonstração a partir da ambiguidade presente na antítese entre cultura
geral e saber especializado que, em última análise, exige que o espírito se abra à vastidão
do mundo, numa carga imensa de leituras e informações novas.
Assim, de uma em forma antitética a qualquer impasse na pesquisa, a especialização
científica alarga a abrangência de sua busca por novos saberes, garantindo simultaneamente
o valor da multiplicidade metodológica que traz em seu bojo. A possibilidade de refletir
180

sobre a caracterização de especificidade que o autor apresenta a respeito da questão do


método científico torna evidente o valor da noção de abertura do domínio de racionalidade,
como pré-requisito fundamental à evolução mesma da ciência moderna. Deste modo,
reforçando a potência demonstrativa liberada no confronto entre termos de oposição,
Bachelard se refere à razão que apesar do movimento de seus métodos, dá à ciência
moderna uma feliz estabilidade. Ele diz: “toda crise profunda no método é imediatamente
uma consciência da reorganização do método” (p. 42)75.
Em aparente ambivalência, a divergência dualista dos termos sugere o movimento
como causa de estabilidade. A crise de um determinado método torna-se ocasião ou
oportunidade para a formulação de um novo procedimento mais abrangente. Portanto, para
que o progresso do saber científico possa evoluir, torna-se necessário garantir a mobilidade
de suas múltiplas metodologias: “evidentes conflitos do método” (BACHELARD, 1972c,
p.42).
Bachelard afirma, satisfeito, indicando mais uma oposição, desta vez entre os
esforços para fundar e para construir a ciência, termos metafóricos que não devem nos
impressionar, pois a seu ver, invertendo os termos em ambiguidade, o edifício da ciência
pode ser construído sem ter sido fundado, assim como pode ser fundado sem que isso
signifique que tenha sido construído. Ironicamente, Bachelard não dá exemplos,
lamentando-se que suas solenes funções de presidente do congresso sobre ciência e método
o privam do prazer de vivas e amistosas polêmicas. Em tal modo, ele nos parece indicar
numa mesma frase, e veladamente, três ingredientes de seu típico procedimento
demonstrativo: ser irônico, zombar de si mesmo e causar polêmica. Aos quais adicionamos
a inversão de termos que segue:

Enquanto homens de ciência sabem melhor que qualquer outro, que a ciência não se
destrói, nenhuma crise interna pode freiar seu desenvolvimento, que sua potência de
integração permite-lhe aproveitar daquilo que a contradiz. Uma modificação nas bases da
ciência implica um crescimento em seu cume. Quanto mais escavamos a ciência, mais ela
se ergue[...]. A condenação de um método, na ciência moderna, é imediatamente a
proposta de um método novo, de um método jovem, de um método dos jovens [...].
Trocando de métodos, a ciência torna-se cada vez mais metódica. Estamos em estado de
racionalismo permanente (BACHELARD, 1972c, p.43).

75
Nesta citação encontra-se uma analogia com a antiga sabedoria chinesa que, nas páginas do Livro das
mutações ou I Ching esclarece que na escrita tradicional chinesa o ideograma que traduz a noção de crise
significa ao mesmo tempo perigo e oportunidade.
181

Desta forma, os termos de uma antinomia polarizadora indicam a condenação de um


método como renascimento e renovação rejuvenescedora da metodologia. A instável
mobilidade do método perpetua o valor metodológico da ciência. Confirmando o valor
demonstrativo atribuído ao embate polar de termos opostos, Bachelard (1972c) afirma em
seguida, que o dinamismo contínuo da atividade científica de racionalização manifesta-se
de modo ainda mais evidente, ao considerarmos o eixo dicotômico que – unindo teoria e
experiência – cria um centro metafísico no qual convergem as relações entre o espírito e as
coisas: “situação dialética do pensamento científico moderno” (p.43).
Bachelard diz ser tal situação bem descrita no livro de M. Koyré sobre Galileu, que
propõe um movimento inverso à busca das proposições teóricas, por sua verificação
experimental, ao afirmar que, “para ser considerado científico, um fato deve antes ser
verificado teoricamente, deve integrar-se à uma teoria racional” (p. 43) 76. Dessume-se daí
que uma simples soma de fatos não basta para constituir uma ciência, ou melhor, que “o
empirismo não é mais uma filosofia autosuficiente” (p. 43).
O cientista exerce sua função, elaborando tal polaridade. Ele deve tecer suas
descobertas, combinando as noções divergentes de razão e experiência77. Concluindo sua
fala inaugural neste congresso sobre ciência e método, Bachelard indica como última lição
filosófica de uma filosofia das ciências modernas, a seguinte afirmação: “o homem das
ciências modernas deve realizar-se na humanidade científica de sua época” (p.44), o que,
segundo a aplicação do hábito bachelardiano das inversões, equivale a dizer que a ciência
moderna é uma realização da humanidade do cientista, noção que serviria a diminuir a
distância entre as conquistas da racionalidade científica e o modo aproximativo e incerto –
sempre sujeito à reformulações – com o qual desdobra-se a aventura humana do
conhecimento.
Seguindo tal linha de pensamento, pode-se concluir que paradoxos e contradições
pertinentes à contingência e à limitação de nossos saberes servem para caracterizar os

76
Não só Bachelard deixa florescer em seu texto infinitas argumentações baseadas em inversões, oposições e
divergências, como também, ao buscar suporte teórico em outros autores, parece mirar diretamente naqueles
raciocínios formulados a partir do mesmo eixo de dicotomias polares, como se realmente divergências e
ambiguidades dualistas fossem vetores de maior esclarecimento, uma vez aplicados em sua disciplina.
77
Bachelard encarrega-se da tarefa de esclarecer a trama polarizadora das duas noções em dois volumes,
cujos títulos jogam, do mesmo modo, com a inversão das duas noções de racionalismo e materialidade: O
racionalismo aplicado, de 1949 e O materialismo racional, de 1953.
182

procedimentos do pensamento humano, que se ergue à condição de racionalidade científica.


“O cientista faz a ciência ao mesmo modo em que a ciência faz e educa o cientista”
(BACHELARD, 1972c, p 44), inversão ambivalente com a qual Bachelard aproxima os
dois polos de um dualismo insuperável que vê, de um lado, a unilateralidade do
conhecimento humano, incapaz de abraçar, de uma só vez, a totalidade do conhecível. De
outro lado, a ciência enquanto tentativa, sempre retificável, de um saber que se define,
exatamente, através de suas aproximações de verdades jamais absolutas, mas sempre
superadas em sua parcialidade. Acima de qualquer dúvida ou incerteza, segundo o filósofo,
na tensão do estudo, compreendemos que “a ciência é um modelo de progresso espiritual
que nos permite ser atores de um grande destino humano” (p. 45).
Prossegue-se com a coleta dos dados, avaliando – como anunciado no início deste
item – os autos de uma seção da Sociedade Francesa de Filosofia, de 195078, em que
Bachelard, introduzindo a questão da organização racional do saber científico, enquanto
militante de um pensamento aberto, define o racionalismo como potência de assimilação de
conhecimentos novos, como vetor de transformações radicais da experiência humana. Ele
abandona, portanto, a visão tradicional do racionalismo como tendência a uma forma de
pensamento conservadora, fundada sobre certezas do saber absoluto, para instaurar, a
fundamento da atividade racional, uma abertura do pensamento conceitual como
perspectiva da reformulação dinâmica e permanente do raciocínio lógico. A afirmação das
ciências materiais como campo de maior evidência desta potência do pensamento em
transformar o mundo material, “transpondo atitudes racionalistas” (BACHELARD, 1972c,
p. 45), conduz o filósofo a duas conclusões importantes.
Em primeiro lugar, ele dessume daí a inutilidade da pressuposição de estruturas
racionalistas elementares, pois: “frequentemente, as organizações racionais da experiência
aparecem na segunda aproximação ao real” (p.45), quando o contato empírico com o real
perde significado.
Logo em seguida, como segunda conquista em direção à renovação da
racionalidade, ele afirma que “a liberdade moderna de posição de axiomáticas diferentes
compromete (engage) o racionalismo geral em diferentes domínios” (p.45). Ou seja, por
um lado Bachelard funda a necessidade – evidenciada pelo racionalismo – de reformulação

78
A seção foi transcrita e publicada sob o título: Da natureza do racionalismo (BACHELARD, 1972c, p.45).
183

permanente dos próprios parâmetros de inteligibilidade do real, o que, por outro lado,
conduz a racionalismos regionais que determinam a aplicação de conhecimentos e
princípios racionais – técnicos e científicos – a setores específicos do saber.
Tal mudança de fundo no processo da pesquisa racional, com a sucessiva abertura a
uma pluralidade metodológica inédita, em última análise, é o que conduz a mente humana a
rejeitar o passado de crenças em verdades absolutas, em vista de um futuro constituído
primordialmente por conhecimentos retificados nos quadros de um saber que permanece,
entretanto, aproximativo: “Ao não dar suficiente atenção às reformas dos métodos
científicos, os defensores de um racionalismo absoluto e unitário se privam das ocasiões de
uma reforma filosófica” (BACHELARD, 1972c, p.45-6).
Com a típica ousadia de sua alma andrógina, que não teme diversidades temáticas,
Bachelard realiza – em breve parênteses ao discurso racionalista – um corte divergente que
floreia o pensamento rigoroso com uma nota de ambivalência e ambiguidade. Qualificando-
se como “defensor de pontos de vista arriscados, dos quais sinto a fraqueza” (p. 46-7),
como um modesto filósofo, nada mais que um alvo para objeções, Bachelard (1972c)
aproveita a ocasião de seu filosofar no outono da vida, para declarar a saudade que sente de
uma certa antropologia.
Refere-se assim ao tema do homem das vinte e quatro horas, incluído –
transversalmente – em uma conferência sobre a natureza do racionalismo, em clara
admissão do caráter fundamental da totalidade humana, no estatuto mesmo da
racionalidade. As grandes seguranças da existência situam-se do lado noturno, diz o
filósofo, polarizando o discurso, ao mesmo tempo em que – com certa nota de ironia –
afirma deixar de lado este tema para limitar-se ao homem racionalista, ao homem super
despertado, pois, à noite não se é racionalista. Não se dorme com equações na cabeça
(BACHELARD, 1972c, p.47). Ele refere-se também à função da imaginação, ativa nos
estudiosos de matemática que, nas brumas do “despertar, encontram o que não encontraram
ao fim da vigília” (p.47). Refere-se à capacidade racionalista da noite, mas somente para
afirmar não conhecê-la, situando o caráter fundamental do homem racionalista no “esforço
de clareza” (p.47), que acumula nas horas diurnas.
Trata-se, obviamente, de aspectos dualistas opostos, porém complementares, cuja
pertinência recíproca deve ser exaltada pelo discurso filosófico aberto, pelo intelecto
184

imprudente que alarga as fronteiras do conformismo racional, abrindo nichos panorâmicos,


que propiciam o exercício da dinamogenia dialética com a qual o intelecto executa seu
destino mutante de reformulação permanente.
Nesta ocasião, diante da plateia de intelectuais que resume, em si mesma, um
panorama do racionalismo filosófico francês, Bachelard faz dançar conceitos em paradoxal
ambivalência, pois, ao mesmo tempo em que distingue, reúne em uma experiência
etimologicamente religiosa – de religio, religação – que funda a bipolaridade como êxito
inesperado e surpreendente do discurso intelectual. Em verdade, ele reúne para distinguir,
porém – como é tarefa desta tese frisar – assim fazendo, obtém, ao contrário, a finalidade
inversa, ou seja, aquela de distinguir reunindo.
E Bachelard (1972c) prossegue em clima dicotômico, entre diurno e noturno,
repetindo que deixará de lado o “lirismo profundo” (p.47), com o qual o homem se libera
do vínculo à vida clara e desperta, buscando conexão com gerações precedentes, segundo
Bachelard, que sugere assim, o imaginário noturno como lugar de ancestralidade
arquetípica. Ele volta a afirmar que rejeita o exame do homem noturno nessa conferência,
mas de novo o faz somente para indicar as heranças e sequelas deixadas pelo notambulismo
no seio diurno da existência. Ao menor aceno de devaneio, dormimos durante “frações de
vida solar” (p.48). Mas, para caracterizar o homem racionalista, é preciso recorrer às horas
felizes, isentas daquela sedução das convicções profundas, nas quais nada separa “o que
acreditamos no coração do que buscamos no espírito” (p. 48). Nota-se então que o contínuo
e divergente enfoque deste eixo de dualidade serve, no desenvolvimento da argumentação,
para esclarecer em reciprocidade dialética, cada um dos polos da oposição.

O homem das vinte e quatro horas, o homem despertado, o homem racionalista, o homem
que aproveita desta hora rara do dia, quando sente em si a tonalidade racionalista, conhece
uma atividade de renovação, de recomeço! É necessário retomar tudo. Não é possível
fundar-se sobre lembranças da véspera. Não é por que demonstraram alguma coisa ontem
que poderão demonstrar seu corolário hoje. Sim, em vossa cultura de racionalista, existe o
fato puro e simples de que, se necessário, podem recomeçar [...] atualidade essencial à
razão (BACHELARD, 1972c, p.49).

O racionalismo define-se então como um pensamento diariamente recomeçado. A


atualidade racional não pode encontrar seu fundamento numa lembrança de ontem. Por isso
Bachelard retoma e recomeça sempre suas aulas, reconquistando os raciocínios que utiliza.
Tal filosofia do recomeço – que evolui devido ao permanente estado de reorganização do
185

saber – “não pode recomeçar o que fez ontem”, diz Bachelard (p. 49), desprezando o
aspecto repetitivo no qual a cultura racionalista encontra sua certeza, segurança, garantia e
estabilidade:

O racionalista é um fator de repetição: repete sempre a mesma coisa, que dois e


dois fazem quatro! Os racionalistas são espíritos pequenos: referem-se aos
princípios que dirigem o conhecimento, referem-se ao princípio de contradição,
de não contradição ou de identidade e depois disso, acabou! Consequentemente é
a filosofia de um dia que é sempre o mesmo! (BACHELARD, 1972c, p.50).

Tal juízo de desqualificação racionalista impõe-se, porém, somente quando não


vivemos a experiência da autêntica cultura racionalista, enquanto “filosofia do “re”, “re”,
“re”: recomeçar, renovar, reorganizar” (p.50). E ainda, “Organiza-se racionalmente
somente aquilo que se reorganiza. Consequentemente, o pensamento racionalista está
sempre em instância não só de recomeço – seria dizer pouco – não somente de
reconstituição, mas de reorganização” (p. 50), Assim Bachelard esclarece, afirmando
também que os fatores desta renovação devem ser colhidos na contemporaneidade e não
nas claridades, ou evidências, da ratio de épocas passadas.
O dinamismo de mutação que defende como fundamento da racionalidade científica
moderna impõe-se em sua obra de forma tão proeminente que o faz cunhar o termo:
“pensamento de reorganização” (p.50), como síntese de uma necessária abertura
epistemológica, que foi investigada com seriedade , no capítulo inicial desta tese. Pode-se
pensar também que no esforço de renovação da mentalidade de uma época, o embate entre
polaridades opostas –típico modus evolutivo aplicado, estrategicamente, nas demonstrações
bachelardianas – desempenhe a função de desmonte das conjunturas intelectivas que devem
ser superadas, representando, portanto a pars destruens no mecanismo de evolução
dialético conceitual que deve instaurar as novas modalidades de aplicação deste
pensamento em reformulação.
O racionalismo deve, portanto, ser definido segundo seu valor de reorganização e,
partindo desta certeza, que testemunha a favor da pesquisa bachelardiana – enquanto
atividade intelectual de um pensamento em busca de transformação e movimento – ele será
visto agora propor, mais uma vez, a interseção de conceitos reciprocamente contrários, ao
afirmar - na reorganização de um pensamento racionalista - a necessidade de reconhecer e
julgar, de modo pejorativo e injusto, os aspectos da organização passada do pensamento
186

científico, que devem ser superados, mesmo se permanecem, como dados teóricos do
passado de uma cultura específica: “Não se pode julgar sem sermos injustos [...] Não nos
deparamos exatamente com ideias claras e bem organizadas, num primeiro ato de
pensamento”, diz Bachelard (1972c, p.50), formulando a dicotomia de contrários que
sugere iniciar o trabalho conceitual sendo injustos, mas, concomitantemente, instalando em
nós mesmos o ideal de justiça: “Começa-se sendo injustos, e instala-se em si o ideal de
justiça” (p.50).
Os termos descrevem a convivência de diretivas intelectuais contraditórias, ao
propor a ação injusta sob tutela de um ideal justo. Bachelard (1972c) completa seu
raciocínio sempre de modo antitético e ambivalente, reabrindo a perspectiva de totalidade
do homem das vinte e quatro horas, que ele considera o homem noturno, como
ancestralidade, vinculado à origem e ao começo, “sempre em contato com uma espécie de
vida numa matriz, num cosmos, de onde sai ao despertar. E ali existe sempre um começo”
(p. 51). Contrariamente, na cultura científica, a ideia de começo está sempre em mutação,
subjugada ao julgamento por parte da evolução do pensamento científico que encontra
sempre “velhos sistemas a liquidar” (p.51). Esta é a contínua tarefa crítica que implica uma
noção de ciência como uma via sem fim, jamais terminada e sempre em processo de
renovação, de retificação e de superação de si mesma.
Invertendo o enfoque, Bachelard (1972c) apresenta o homem noturno no gozo de
uma vida confortável e contínua, que não requer o esforço dialético de uma busca crítica
permanente por defeitos nos sistemas de racionalidade. Convém frisar que a reorganização
do conhecimento científico não pode, portanto, realizar-se de uma vez só, num só golpe
como diz ele: “a filosofia racionalista é essencialmente uma filosofia que trabalha” (p. 52).
Eis então que a especificação da divergência entre as duas posturas, do homem noturno
oposta àquela do homem das luzes, da razão, serve a Bachelard para evidenciar o sentido de
ensaio, de tentativas, sem o qual não se dá a reformulação do saber.
Isto faz do racionalismo, como visto neste estudo, uma prática intelectual
essencialmente aberta, em vias de aperfeiçoamento contínuo, sempre à procura de
aberturas, de dialéticas, de eventos (BACHELARD, 1972, p.52), como oportunidades de
renovação do conhecimento, o que parece sugerir uma das razões pelas quais o filósofo
dedica tanto esmero à enumeração e busca de situações nas quais o saber ingressa no
187

campo paradoxal das contradições e ambiguidades, pois em cada momento de crise ou


dificuldade da razão, ali mesmo é provável que se verifique a ocasião para uma nova
retificação que fará progredir aquele determinado âmbito de conhecimento.
Por isso vale à pena seguir com atenção – segundo o propósito desta tese – a
descrição dos procedimentos de reorganização da racionalidade que o autor apresenta.
Bachelard (1972) sugere mover a pedra fundamental de uma teoria e observar, pois: “se
nada mudar, as fundações estavam mal feitas, assim surgiram os grandes sucessos das
revoluções racionalistas modernas” (p.52). Segundo ele, procedendo deste mesmo modo,
Einstein, ao remover conceitos até então considerados fundamentais, realizou descobertas
extraordinárias para a física contemporânea, pois exigiu que se definisse a simultaneidade –
revelando não se tratar de um conceito fundamental –. Ao ser removida da base dos
conceitos de espaço e tempo, a simultaneidade deu lugar ao desabamento de teorias
obsoletas, mantidas por eras como conhecimento verdadeiro. Assim o temerário gênio
racionalista abate velhos mitos dogmáticos e, com sua prática experimental, funda
novidades, reorganizando regiões específicas do saber.
Em tal modo, Bachelard (1972) demonstra que, nas entrelinhas de suas retificações,
a cultura científica ensina a prática de uma atividade racionalista “aberta e progressiva” (p.
52), introduzindo simultaneamente as duas noções fundamentais, de racionalismo aberto e
racionalismo dialético:

Este racionalismo dialético não pode ser automático, nem pode ser inspirado na
lógica: mas deve ser cultural, quer dizer que não se elabora no segredo de um
gabinete de estudos, nem na meditação das possibilidades mais ou menos
evanescentes de um espírito pessoal. O racionalista deve apegar-se à ciência
assim como ela é, ele deve instruir a si mesmo na evolução da ciência humana e,
consequentemente, ele deve aceitar uma longa preparação para receber a
problemática de seu tempo (BACHELARD, 1972, p.53).

Segundo Bachelard (1972), são os pequenos problemas, “modestas situações de


laboratório”, que abrem maiores possibilidades de renovação na pesquisa, possibilidades de
“abrir pequenas portas ou janelas no saber” (p. 53). São raríssimas as situações que tornam
possível a abertura de “perspectivas essencialmente novas” (p.53).
Vê-se aqui mais uma indicação da coerência metodológica com a qual o autor
persegue e investiga os momentos de aporia ou de contradição da razão, exatamente como
ocasiões propícias à renovação do modo com o qual a mente humana responde aos desafios
188

propostos continuamente pela pesquisa científica. Ele indica, então, a “pequena dialética de
problemas como origem certa para consequências maravilhosas e inesperadas”
(BACHELARD, 1972c, p.53). E diz que “Grandes problemas iniciam em modo pequeno”
(p.53). Consequentemente, o racionalista deve comprometer-se com o conhecimento
científico de sua época, de seu tempo.
Cabe realçar que será esta mesma necessidade de comprometimento com o
racionalismo de sua contemporaneidade a garantir destaque às relações sociais da ciência
como uma sua qualidade intrínseca. Toca-se assim o tema comunitário da cidade científica,
que apesar de fugir ao interesse imediato desta pesquisa, é reconhecido como um dos
pilares fundamentais do edifício epistemológico bachelardiano.
Entretanto, sobre o mesmo tema, interessa assinalar mais uma ocasião na qual o
filósofo toma a tangente das dicotomias – opondo, idealmente, as faculdades de ciências e
de letras – para formular, simultânea e ambivalentemente, a denúncia de uma “aberração do
racionalismo” (BACHELARD, 1972c, p.54), e a afirmação de uma característica
primordial à essência da racionalidade contemporânea. Por um lado, valendo-se de indícios
presentes na cultura, na educação e nos programas de ensino, ele cita a Sociedade de
Ciências parisiense e a Faculdade de Ciências como cúmplices da tendência científica ao
“fechamento sobre uma sociedade bem constituída” (p.54), tendência instaurada “por
racionalistas solitários que pretendem constituir as bases da ciência longe das escolas”
(p.54).
Por outro lado, ele diz que na Faculdade de Letras, enquanto filósofo, recebe
confissões de “falsos cientistas” (BACHELARD, 1972c, p.54), inquietações que não ousam
confiar a colegas da Faculdade de Ciências. Assim, valendo-se da oposição entre
fechamento científico e livre discussão filosófica, Bachelard declara como característica
fundamental da razão, a participação do racionalista na escola:

O racionalista deseja estar na escola, ele está sempre na escola. Quando existem
mestres que não estão mais na escola, então não trabalham mais, então
abandonaram, precisamente a atividade da cidade científica, da qual são
ilustrações, não são necessariamente operários (BACHELARD, 1972, p.54).

O ponto de vista dualista se reapresenta no trabalho analítico de Bachelard – como


componente específico do método com o qual apresenta o êxito de seus estudos –. Ele
189

afirma que, para ser atual, o trabalho do racionalista deve segmentar-se. Surge assim o tema
já introduzido no capítulo inicial, da polarização que opõe múltiplos racionalismos
regionais à singularidade de um racionalismo geral, cuja tematização permanece bastante
vaga – na economia do texto epistemológico bachelardiano –, pois o autor não faz senão
anunciar que a especialização do trabalho científico, aplicado às diferentes disciplinas
racionais deverá sucessivamente reunir-se sob a ótica de uma racionalidade geral.
Esta é aqui apresentada em sua vertente de polêmica contra a existência noturna,
como se bastasse desvalorizar “as potências da noite” (BACHELARD, 1972, p.55), para
atribuir ao uso da razão sua característica de generalidade, mas, após poucas linhas, afirma
também que não se deve proclamar um racionalismo geral que afaste do domínio racional o
estudo de “valores humanos superiores” (p. 55) como os valores morais e particularmente,
os valores estéticos:
Vocês se surpreenderiam - ouso falar por mim – que um filósofo racionalista se
ocupe um pouco com problemas da imaginação e faça psicanálise do fogo, que
ele busque sonhos da água ou do ar. Sou noturno na hora certa, não é mesmo!
(BACHELARD, 1972, p 55).

Ainda indagando a perspectiva de divergência das duas vertentes do racionalismo,


Bachelard propõe o tema da existência ou não de um espírito científico verdadeiramente
universal, que, a seu ver, se existisse, representaria uma fraqueza da racionalidade, pois
considera a especialização como uma feliz necessidade da atualidade científica, razão de
um “espírito vigoroso”, origem do “tônus racionalista” (p.55), que garante o dinamismo de
evolução dialética do saber racional aplicado aos problemas concretos da realidade. A
menção que faz em seguida, a uma ulterior dicotomia, projetada no campo do racionalismo,
oferece ao autor a ocasião para reconfirmar o aspecto dinâmico como elemento
fundamental às aplicações práticas da razão.
O autor segmenta desta vez a racionalidade em seus aspectos prático e filosófico,
argumentando que ao focalizar a atenção somente sobre os aspectos filosóficos do uso da
razão, lidamos com um racionalismo que na verdade não trabalha, não se submete aos
perigos da dialética, não se divide, “dando a impressão de ser como uma máquina de
repetição (p. 55) ou, como quando definimos em sua claridade inicial aquilo que, ao
contrário, requer um esforço de iluminação íntimo cotidiano” (BACHELARD, 1972, p.56).
190

Nos termos de um paradoxo, Bachelard (1972) demonstra que a noção de


especialização com a qual trabalha a física moderna, ao contrário de restringir, alarga o
espírito do cientista; inicialmente, pelo fato que só através de notável cultura geral alcança-
se a especialidade que, portanto, abre em maneira notável o espírito que se debruce sobre a
pesquisa científica: “No momento em que se especializam, vocês percebem que seu espírito
se abre. Parece um paradoxo, mas existem físicos que comprovam meu ponto de vista, que
vem nos dizer que o espírito se alarga, ao alcançar uma extraordinária precisão”
(BACHELARD, 1972, p.56).
Bachelard (1972) cita como exemplo da abertura espiritual resultante da
especialização da investigação racional certos detalhes do estudo científico sobre o
mecanismo de combustão do carbônio que exige a presença de um filamento de carbônio o
mais puro possível, do qual se estuda a combustão numa atmosfera de oxigênio à pressão
de um milésimo de milímetro. Faz notar então “a fineza de precisão, a soma de técnicas
necessária para obter-se a pressão de um milésimo de milímetro” (p. 57). Nesta experiência,
diante da pequena ampola de laboratório, o estudioso percebe a presença “de toda uma
sociedade de físicos e de químicos” (p.57). Sem o refinamento da especialização, a
pesquisa científica teria permanecido à altura de resultados empíricos. Pode-se concluir
que, em ciência, a verdade – mesmo se, em última análise, sempre provisória – encontra-se
na elaboração racional da experiência.
Desta vez, Bachelard (1972) equaciona noções contrárias para afirmar que a
verdade dos fatos é uma atividade racional que ilustra, com a imagem da ampola de
laboratório, a noção de um racionalismo aplicado ao concreto. Noção que adquire, portanto,
“um valor humano extraordinário” (p.58), contrariando a noção de um uso da razão frio e
destacado, sem comprometimento com os aspectos de coerência concreta e social dos
estudos desenvolvidos com altos padrões de especialização. Inverte, portanto, a opinião
leiga que costuma descriminar na atividade racional altamente especializada uma tendência
à atrofia do espírito, que na verdade se abre ao promover a especialização das ciências.
Assim, o emergir de “racionalismos regionais” (p.58) no âmbito de especialidades
científicas modernas apresenta como nova característica do pensamento racional, a
necessidade de dedicar-se à definição de “interconceitos” (p.58), o que volta a despertar
191

nossa atenção para a predileção de Bachelard (1972) por âmbitos que evidenciam regiões
de ambivalência entre os saberes.
Considerando o dualismo que divide o racionalismo em geral e regionais, nota-se
que segundo o filósofo, quando o cientista trabalha num domínio regional dos sistemas de
racionalidade, necessariamente, ele se vê obrigado a abandonar a racionalidade geral,
“porque [...] somos obrigados a deixar de lado os temas gerais que proporcionam uma
adesão demasiado fácil; torna-se então necessário entrar em polêmica e organizar
conceitualmente, as relações ocasionadas por tais racionalismos regionais” (BACHELARD,
1972, p.58).
Diante destes novos desafios da razão, Bachelard aponta ainda uma ulterior
característica desta nova démarche da racionalidade, que se estende especializando-se e
superando a generalidade do conhecimento. Apesar de sua vasta extensão, o racionalismo
evolui intensificando o nível de precisão com o qual se segmenta em suas especialidades.
Logo, sempre seguindo em clima de ligeira ambiguidade, o filósofo introduz o
“pensamento axiomático” (p.58-9), como manifestação do valor de fundamento e de
fundação deste novo uso da razão.
Resolve assim o enigma da extrema variabilidade e mutação, constantemente ativo
nas bases do mecanismo conceitual de funcionamento da razão, encontrando em seu
próprio movimento intelectivo a origem do moto dinâmico de sua evolução. Isto por que as
bases da racionalidade constantemente se reorganizam sob a tutela de variáveis que são
axiomáticas. Ou seja, transformam-se, seguindo exigências manifestadas por verdades
evidentes em si mesmas, originando, portanto, novas conceitualizações não só permitidas
nos estatutos da racionalidade, mas também só lidas o bastante para que, sobre elas, o
raciocínio prossiga em sua atividade construtiva e retificadora. Sendo assim, “É necessário
engajar-se numa axiomática como uma modificação da cultura. Uma axiomática representa
precisamente a oportunidade que tem o espírito de rejuvenescer, de se afirmar e se
reorganizar” (BACHELARD, 1972, p.59).
São, portanto, os conjuntos de axiomas que fundam os novos conhecimentos
responsáveis, seja pelas novas especializações, seja pelo desenvolvimento da atividade
científica, que – decididamente – foge ao modelo das construções isoladas de um
pesquisador solitário. Bachelard (1972) adverte que “Construções solitárias não são
192

científicas” (p. 59), confrontando o aspecto de bipolaridade pertinente ao conceito de


ciência que, em sua prática, opõe o isolamento concreto do laboratório à comunidade
espiritual de conhecimentos que fluem entre os membros da cidade científica.
Por esta razão o filósofo considera importante frisar uma nota de ambiguidade que
subsume em si mesma a ideia de liberdade, no aspecto que concerne à criação de
axiomáticas enquanto fundamento de novas teorias: “A liberdade racional é uma liberdade
de difícil definição” (p.59), pois apesar de fundamental, como resulta, por exemplo, da
invenção de múltiplas geometrias, ela não pode ser absoluta. Assim, “Vê-se, por
conseguinte, que o racionalismo axiomático possui simultaneamente liberdades e
necessidades de coerência, desde seu início” (p. 59), diz Bachelard, usufruindo em tal modo
mais uma vez do embate entre termos contrários como modo de precisar detalhes de seu
pensamento epistemológico.
Desta análise crítica da faculdade do raciocínio,79 resulta ao homem racionalista o
mérito singular de pensar e trabalhar o pensamento, através de uma longa preparação que o
torna capaz de buscar o racionalismo lá onde ele está, ou seja, na cientificidade que brota
do exercício inteligível do pensamento científico Somente aplicando o racionalismo – na
prática de uma específica ciência – podemos nos tornar racionalistas. Não recebemos o
espírito científico de berço, adverte Bachelard (1972), segundo o qual não basta conhecer
claramente a verdade: “Podemos ser inteligentes sem sermos racionalistas”80 (p. 60).
No debate que segue à Conferência de Bachelard, podem-se ainda ser colhidos
vários indícios metodológicos da função pedagógica – de calibragem de conhecimentos –

79
Em recente entrevista, publicada nas páginas amarelas da revista Veja de 1/8/2012, o físico Daniel Zajfman -
presidente do Instituto Weizmann de Ciência, em Tel Aviv, Israel – confirma a liberdade do cientista como requisito
fundamental para o desenvolvimento da pesquisa científica. Afirma que os maiores avanços da ciência derivam de
pesquisadores não envolvidos com a solução de nenhum problema específico. Cita como exemplo a criação dos aparelhos
de raio X e a Internet, que não surgiram como soluções para nenhum dilema da humanidade. A Instituição, cuja diretora,
Ada Yonath, recebeu em 2009 o Prêmio Nobel em química, tem como característica própria não focalizar a pesquisa na
solução de problemas imediatos, mas sim, trabalhar com a necessidade de entender o funcionamento da natureza, fonte
inexaurível de novos conhecimentos. Entre os mil pesquisadores e mil estudantes que frequentam o Instituto, curiosidade
e paixão pela ciência são atributos básicos. O israelense aponta também uma característica peculiar do povo de Israel,
como estímulo ao desenvolvimento científico: o hábito da discussão, uma variante do espírito polêmico de Bachelard, pois
“Sem o questionamento audacioso e quase insolente, não haveria avanço na pesquisa”. A aproximação com Bachelard se
dá também na questão da imensa diversificação dos estudos sobre fontes de energia renovável, que abrirá a perspectiva da
discussão sobre dependência de um combustível único, o petróleo. Aqui a solução não será única, mas múltipla e regional,
conforme as características dos países.
80
Concordando com Bachelard, Zajfman afirma: “As descobertas são resultado de intenso trabalho cerebral
dos cientistas. O conhecimento apenas não é suficiente. O conhecimento está disponível com facilidade na
internet e nos livros. Não é porque alguém sabe muito que é capaz de fazer muito. Se fosse assim, qualquer
um poderia se tornar cientista”.
193

exercida pelo embate polêmico – pela oposição de pontos de vista – que se desdobra entre
os especialistas. A discussão de alguns exemplos precisos ilustra o terreno de dualismos e
ambiguidades, privilegiado por Bachelard como campo de teorização da prática científica.
Rejeitando, pois, conceitos apriorísticos do saber, a oposição entre absolutização e
aplicabilidade domina o confronto entre as diversas posições destes representantes diretos
do saber científico.
O primeiro aspecto abordado concerne, em ambiente einsteiniano, ao papel
fundamental atribuído no cálculo da simultaneidade, à “aproximação” (p. 61) que, enquanto
diferencial entre as mecânicas nova e antiga, serve à epistemologia bachelardiana como
definição do conhecimento científico. A renovação de Einstein parte, por conseguinte, da
rejeição do caráter de evidência a priori do conceito de simultaneidade, verdadeiro
“eletrochoque para os filósofos” segundo Bachelard (1972, p.61).
Logo, negando o caráter absoluto à simultaneidade, Einstein a retifica enquanto
conceito experimental, carente de definição nos termos de uma experiência possível. Ou
seja, tecnicamente, trata-se de uma noção ambígua que sendo experimental não pode ser
dada pela experiência: “Não é um conceito imediato! É necessário fabricar este conceito!
Não é um conceito inicial”, afirma Bachelard (1972, p.61).
Portanto, para se definir um conceito como este de simultaneidade, deve-se
construir um sistema de postulados e suposições, configurando uma provável experiência
científica. No caso, afirma-se que um raio luminoso percorre no mesmo tempo o trajeto de
A a B e vice-versa, de B a A. Entretanto, a igualdade temporal não é um dado de
experiência. Os dois tempos, de ida e de retorno “são postulados iguais”, se pode ler em
Bachelard (1972, p. 62). Sendo o postulado, exatamente o princípio não demonstrado de
um argumento ou teoria. Então, as axiomáticas representam estas estruturas de axiomas e
de postulados, sobre cuja validade a ciência não se manifesta. Postulados são afirmados,
quando servem, e basta. Justificam-se pela coerência mesma da teoria que passam a
integrar. Assim funciona a estrutura axiomática do racionalismo.
A definição destas funções basilares não tem sentido algum para o procedimento
científico que se afasta cada vez mais da intuição imediata e primeira da realidade. Por isso
a relatividade, em 1905, rejeita o conceito de simultaneidade absoluta como intuição clara e
194

evidente, fazendo-o para possibilitar o ingresso de certos fatos, inexplicáveis na visão


newtoniana, numa nova e coerente teoria. Surgia assim a teoria da relatividade.
Bachelard nos introduz de tal modo à ideia de um racionalismo que apesar de
manter-se essencialmente engajado e comprometido com a experiência, foge da concepção
tradicionalista de pensamento racional que se instrui, sempre, sobre uma base de
generalidade do conhecimento. Para ele, partir do geral constitui um erro de metodologia
epistemológica. Os postulados que exprimem novidades na ciência manifestam-se em
regiões cada vez mais distantes de nossos conceitos imediatos e intuitivos.
A ciência se afasta progressivamente da intuição primeira. Logo, Bachelard (1972)
foge do racionalismo geral, fundado sobre a clareza e evidência da intuição imediata. Ele
foge do racionalismo generalizante, mostrando a dinâmica do espírito que trabalha no
detalhe de um objeto em particular. Para isto, como visto, em evidente oposição à noção
positivista de racionalidade, vigente em sua época, ele cunha o conceito de racionalismos
regionais: “[...] para mostrar que, mesmo num pequeno setor, o espírito toma ar, o espírito
se generaliza numa atividade que parece particular; e não tenho necessidade de retornar ao
racionalismo tradicional” (BACHELARD, 1972, p.66).
Ullmo (Apud BACHELARD, 1972), um de seus objetores, a propósito dos
racionalismos regionais, concorda com a advertência de Bachelard, que denuncia a ilusão
que se esconde na construção de uma diversidade de axiomáticas como perspectiva
arbitrária de uma possibilidade indefinida de escolha entre teorias justapostas. Cada
“axiomática tem um compromisso com a coerência de toda a ciência contemporânea”
(p.63-4), repete Ullmo, confirmando que no domínio matemático a pressão exercida por
esta exigência de coerência se faz sentir em maneira ainda mais forte:

Em todos estes racionalismos regionais, existe um elemento comum que é


justamente esta busca pela organização de cada uma destas regiões da ciência
através de uma axiomática rígida, por meio de relações capazes de construir
objetos científicos bem definidos que são o suporte desta axiomática. Esta busca
por uma estrutura perfeitamente despojada e inteiramente transparente ao
pensamento “por construção”; quer dizer, o método científico moderno, é comum
a todos os racionalismos regionais (ULLMO apud BACHELARD, 1972, p.64).
195

Ullmo refere-se então a um livro de Juvet, que explica a construção de uma


axiomática matemática — quer dizer, bem no domínio onde a liberdade do espírito é mais
garantida – através da reunião de axiomas um ao lado do outro,

[...]numa construção formal que ainda não é nada, mas que, num certo momento
começa a girar e bruscamente, faz surgir a coerência! Hoje sabemos que,
axiomáticas mais ricas, também provocam em nós este mesmo choque de
objetividade, de realidade, independentemente de nosso pensamento, que
provocam a apreciação de nosso pensamento (ULLMO apud
BACHELARD,1972, p.64).

Jean Beaufret, filósofo heideggeriano, intervém para concluir que este momento de
avaliação da axiomática torna-se algo análogo ao momento poético, sugerindo então “a
presença do poético no coração mesmo da axiomática” (apud ULLMO, in BACHELARD,
1972, p.67), como manifestação de um tema já por si mesmo supra regional, que seria
conveniente tentar decifrar. Em tal modo, Beaufret instiga Bachelard a fazer “o que ele não
quer fazer” (p. 66), ou seja, expor sua alma polarizada durante o debate que segue à
conferência em questão.
Acredita-se, portanto, que seguir a argumentação em suas entrelinhas – por
conseguinte, não se pode evitar as extensas citações que seguirão – fornecerá a rara
oportunidade de colher dados de pesquisa no momento de confronto aberto entre
imaginário e racionalidade, as duas forças dialéticas que, operando em sistema de
dicotomia ambivalente, garantem a atuação de uma dinamogenia do discurso, que anima
também toda a produção intelectual de Bachelard, que logo percebe onde seu interlocutor
deseja conduzi-lo: “O senhor deseja atrair-me ao domínio que eu não quis examinar. É
insidioso, pois realiza muito bem seu trabalho de sedução” (BACHELARD, 1972c, p. 67).
Prepara-se, com estas palavras, a penetrar na região ambígua da convergência de
perspectivas que, por outro lado, sempre se esmerou em manter separadas.
O instante profundo ressoa, como se abrisse o caminho para o coração de um
mistério que se revela, ocultando-se, e se mantém oculto em suas revelações. Momento de
androginia híbrida entre perspectivas de reunião e separação, de abertura e fechamento, que
configuram paradoxos, sob a forma de bipolaridades por inversão; a saber, fazem surgir no
discurso: separações que reúnem e reuniões que separam.
196

Assim Bachelard inicia tecer argumentos temerários sobre o terreno da ambiguidade


dualista que constitui in totum o panorama unitário de sua reflexão:

O Senhor me diz: O Senhor não quer falar sobre a poesia da noite, mas não nos
dirá que não exista uma poesia das matemáticas! Conheço o tema: poderíamos
desenvolvê-lo; mas isto seria bastante perigoso. Seria a consequência das alegrias
matemáticas; teríamos que falar das alegrias do matemático, das alegrias do
físico: existem algumas bem grandes! Eu chamo isto de tonalidade (tonus)!
(BACHELARD, 1972, p. 67, grifo nosso).

Antes de qualquer passo ulterior nesta direção, o filósofo do devaneio poético


adverte seus interlocutores, com severidade, sobre a necessidade de depurar a linguagem
para tratar a delicada questão da convergência de suas vertentes, domínio insidioso, repleto
de miragens, surpresas e enganos. Efetivamente, ele logo nos surpreenderá, confirmando a
separação entre dia e noite, entre racional e poético, no instante mesmo em que nos fez
esperar por uma mistura de perspectivas, por uma contaminação das linguagens que, na
verdade, se adotada, teria representado um posicionamento totalmente antibachelardiano,
enquanto tal mistura cancelaria a tensão mesma que perpetua o dinamismo polar, cuja
recíproca atração, funcionando por oposição, mantém seu vigoroso movimento somente
enquanto perdura, entre as perspectivas que se confrontam, a atividade do magnetismo
polar de exclusão e propensão.
Em seu próximo exemplo, Bachelard diz que todo físico nuclear saúda “com o
chapéu, a transmutação” (p.67); e denuncia com veemência a extrema falsidade, para o
racionalista, daquilo que se lê em todo livro: “a física nuclear realizou o velho sonho dos
alquimistas” (p. 67). “Ora”, diz ele, “se fosse o sonho dos alquimistas, teria sido realizado
pela poesia e não pela ciência. O sonho dos alquimistas é o sonho da noite [...] estamos em
plena poesia metafórica” (p. 67-8).
Não há como opor-se à força do argumento bachelardiano que responsabiliza os
grandes cientistas de não defenderem o valor mesmo de seu espírito, pois:

Poderíamos acumular todos os alquimistas do mundo, jamais, jamais teriam


mexido com um átomo de berilo! É de uma tecnicidade extraordinária! Não era
possível no século passado! É uma realidade humana inimaginável na história das
ciências, e a fortiori nos devaneios dos alquimistas (BACHELARD, 1972c, p.
68).
197

Eis aqui, então, a paradoxal demonstração de vigor da defesa do novo racionalismo,


por parte do epistemólogo sonhador de devaneios poéticos. Somente um espírito científico
poderia lidar assim – com tamanho rigor, disciplina e harmonia – com o sofisticado
equilíbrio de forças que comanda o dinamismo das polaridades que, como visto, devem
manter-se em tensão – evitando recíprocas contaminações – que causariam dano à
autonomia de cada um dos polos que se opõem, acarretando mesmo a supressão ou
cancelamento do inteiro sistema de forças contrárias. Motor dialético da criatividade
intelectual do autor, que sugere a fundamental necessidade de manter a tensão de oposição
vigente entre os potentes princípios de sua convicção ambivalente de fundo, responsável
pela criação de um grande entusiasmo no espírito do leitor, acolhido no seio deste
dinamismo intelectual. Mesmo tendo escrito muito sobre este tema, Bachelard afirma a
impossibilidade de associá-lo “a uma espécie de poética da física” (p. 68), preservando suas
vertentes da possível contaminação recíproca que assinalamos.
Outro interlocutor presente à Conferência, Etienne Souriau (1892-1979), filósofo
especialista de estética, inserindo-se no debate, transfere as objeções ao campo estético,
discordando de Bachelard que, segundo ele: “opõe poesia e racionalismo científico como
noite e dia, colocando toda estética do lado noturno (SOURIAU apud BACHELARD,
1972c, p. 68). Souriau não aceita a rígida dicotomia bachelardiana, nem do ponto de vista
estético nem daquele, mais específico, da teoria do conhecimento, pois, mesmo o
racionalismo designadamente científico também possui uma estética sua: “que é uma
estética da lucidez, da luz. Existe uma estética da luz assim como existe a estética da
sombra” (p.69).
A objeção souriauniana objetiva-se no argumento que prevê, para o bom
funcionamento da razão, antes do dinamismo racional ilustrado por Bachelard, o pré-
requisito de “planos diretores, de instâncias arquitetônicas que me parecem pré categóricas
e que não deixam de ter uma relação profunda com a arte” (SOURIAU apud
BACHELARD, 1972c, p. 68).
Da mesma maneira, o objetor defende como elemento constituinte do ideal da razão,
a existência de valores racionais especificamente estéticos. Ele cita ainda a suposta estética
de Descartes, não só isenta de qualquer oposição ao seu racionalismo, mas sim, vista como
seu elemento de comando, em total harmonia com sua criação. Souriau conclui, portanto,
198

sua objeção, propondo a reflexão sobre a possibilidade de definição do racionalismo sem


considerar: “Tais valores de claridade que revestem um papel atmosférico. Pode-se expor a
essência mesma do racionalismo deixando de lado esta atmosfera que constitui uma poética
do pensamento? Que é certamente uma poética da lucidez” (SOURIAU apud
BACHELARD, 1972c, p. 68-9).
Referem-se os atos da polêmica entre Bachelard e seus dois filósofos opositores,
Beaufret e Souriau, devido à relevância com a qual Bachelard, ao responder às objeções,
desenvolve seu notório talento em tratar – como profundo conhecedor de ambos – os dois
termos de sua radical polaridade, sem permitir que a tensa relação, que os opondo, os
mantém unidos, perca vigor; confirmando, por isto mesmo, a dialética de oposições que
comanda o dinamismo de abertura de um pensamento hermafrodita, custódio da integridade
recíproca dos termos de sua ambígua harmonia de divergência polar.
A dinamogenia ou força de evolução dinâmica – que constitui a raiz profunda de
seu pensar a mutação e movimentos que constituem os ciclos vitais da ciência e da arte
poética – assegura a perpetuidade de seu ímpeto criativo, justamente, preservando os
limites que instituem a arquitetura de suas contradições. Sem o embate de contrários, que se
rejeitando – em múltiplas negações, oposições e inversões – instaura o campo magnético de
forças intelectivas ou espirituais que nutrem seu pensamento, instaurando sua dicotomia de
razão e imaginação, o mecanismo de criação de novidades perderia potência. Assim, a força
de sua criatividade desapareceria. A proliferação de conceitos e imagens, fomento dialético
da contínua atividade de reformulação e retificação que renova o pensamento, aprende a
arte das transmutações instantâneas na prática de um espírito imprudente e maniqueísta,
capaz de transformar a energia que se encerrar nas bipolaridades em novidades para o
conhecimento.
A propósito da objeção de Souriau, Bachelard comenta, en passant, que os
princípios estéticos, chamados em questão por seu interlocutor, constituiriam um
racionalismo regional, sendo que, cada uma das inúmeras regiões de racionalidade traz
consigo “um germe de racionalismo geral” (p.69), que não se trata de uma síntese, mas de
uma “caracterização geral do racionalismo” (p.69). E, referindo-se a metáforas estéticas
citadas por Beaufret, afirma:
Todo matemático gosta, com razão, de falar de beleza em matemática; mas não
deixa de ser verdadeiro que não seria este o fator de criação do racionalista.
199

Quando encontramos um teorema belo, ele é belo depois de ser formulado, pois,
antes disso... miséria! O que é ele? (BACHELARD, 1972c, p.69).

Beaufret (Apud BACHELARD, 1972c) esclarece que aquilo que disse não pretendia
ser um convite à metáfora, mas sim, “uma investigação sobre o comprometimento com o
racionalismo daquilo que Sauriau chama de poética da lucidez” (BEAUFRET apud
BACHELARD, 1972, p.69), que Bréhier (1876-1952) – inserindo-se no debate – diz ser o
mesmo que Bachelard chama de “empirismo do racionalismo” (p.69). Este último lança
então de uma rara e preciosa definição. Rara e preciosa enquanto cunhada por um filósofo
que não ama sínteses nem definições, ao contrário, como visto, para Bachelard, todo
progresso do saber deriva sempre de complexidades progressivas.
Bachelard diz que o racionalismo não é privilégio único de físicos e químicos: “O
racionalismo é uma filosofia que tem algo a fazer, pois está coligada a tarefas científicas”
(p. 70). Dito isto, ele passa a discorrer sobre imagens, afirmando que “a vida nas imagens
não pertence ao reino da imaginação”, pois o que tomamos nas imagens da vida noturna são
as realidades mesmas desta vida noturna. Formula mais uma inversão de termos,
aprofundando o discurso ao defender a seguinte ideia, claramente ambígua: não formamos
imagens, ao contrário, são elas que se formam em nós. Assim sendo “não existe atividade
construtiva no sonho que por isso, à vezes é tão desorganizado. Consequentemente, quando
dizemos que o matemático tem imaginação, não podemos dizer que ele tem um movimento
de imagens” (BACHELARD, 1972c, p.70).
Na ótica deste estudo, sugestionado ou pressionado pelas objeções dos colegas, na
ocasião Bachelard, sem formular teorias nem enveredar-se pelos meandros de discursos
acadêmicos, tece considerações – em tom de conversa entre filósofos – sobre aquilo que
não faz em tantas outras ocasiões e cuja falta, sentimos muito enquanto estudiosos de seu
pensamento. Quer se dizer que se intui nestes breves comentários o mesmo delicado
esforço de distinção comentado anteriormente. Trata-se de distinguir sem amputar, sem
congelar suas vertentes em dois universos em ruptura, distintos sim, mas do mesmo modo,
complementares.
Separação tout court entre razão e imaginário seria o ponto de vista inicial da
psicanálise do conhecimento objetivo, anterior, portanto à abertura efetivada em A
psicanálise do fogo, que bem ao gosto do autor transforma a simples questão do divórcio
200

entre duas opostas perspectivas do pensamento, num universo de pesquisa mais complexo,
como se pode ver através do desdobramento de seus estudos, após o ciclo da metafísica da
imaginação cósmica. Apesar de reconhecer a imaginação que permeia a atividade
científica, imaginação do matemático, no caso; ele se preocupa em distinguir desta, a livre e
total entrega de si ao movimento do devaneio imaginário, que guia a criação do poeta.
Assim, Bachelard salvaguarda a integridade de suas duas vertentes, assegurando,
simultaneamente, o fundamental jogo de forças contrárias que nutre a vivacidade de seu
pensamento. Veja-se então em que termos ele cede à insistência dos interlocutores e passa a
discorrer sobre o imaginário:

Passei dez anos de minha vida estudando as imagens por elas mesmas, assim
como se apresentavam, sobretudo na criação incondicionada da obra poética. Se
alguém diz: Vou fazer uma bela imagem!, ele não a fará; não se pode querer fazer
uma bela imagem. É uma espécie de dom, não do espírito, mas da alma [...] sim,
é uma graça, uma graça noturna (BACHELARD, 1972c, p. 71).

Na verdade, constata-se que entre os estudiosos presentes à Conferência, e


sobretudo entre os que debateram com Bachelard, encontravam-se alguns dos mais
importantes filósofos responsáveis pela renovação do pensamento da época. Além daqueles
cujas objeções já serviram para ilustrar a argumentação desta tese – instaurando, como
visto, uma espécie de base segura, renovadora e estimulante, para o desenvolvimento da
proposta mesma de um pensamento aberto e imprudente, proposição formulada por
Bachelard que, na ocasião, debate livremente, não com tradicionalistas, defensores do
modelo de reflexão filosófica clássico, mas ao contrário, são seus próprios objetores que o
estimulam a ousar ainda mais no campo de abertura dos padrões de uma nova
racionalidade.
Ou seja, além de Beaufret e Souriau, Stéphane Lupasco (1900-1988)81 avança agora
uma objeção análoga, formulada nos moldes de duas questões: a primeira questiona a

81
Stéphane Lupasco, filósofo oriundo da România, formado na Sorbonne, estudando Einstein e a mecânica
quântica, chegou a desenvolver uma lógica não aristotélica, por intermédio de suas objeções ao fundamental
princípio clássico tertium non datur ou lei do terceiro excluído. A teoria lupasquiana prevê a superação do
esquema dualista vigente na lógica tradicional, integrando os valores "verdadeiro" ou "falso" com a noção
ambígua de um terceiro estado possível, que chama: estado-T, situado - além da contraditória bivalência –
num ulterior padrão de complexidade.
201

escolha de Bachelard que, ao invés de usar o termo lógica, a seu ver, mais condizente com
o projeto de modificação dos antigos parâmetros de uso da razão, em grande parte
superados pelas transformações científicas da época, prefere usar racionalismo, termo
historicamente imbuído de significação metafísica, que pressupõe uma estrutura objetiva de
racionalidade do real, o que, em outros termos, dificultaria qualquer projeto de
transformação ou mudança nos modos de desdobramento da racionalidade.
A segunda questão de Lupasco verte sobre os possíveis critérios racionais na
direção desta mudança das funções de racionalidade: “O que justificaria tais
modificações?” (LUPASCO apud BACHELARD, 1972c, p.71). Quais os critérios de um
racionalismo aplicado, que se define, portanto – em suas diferentes aplicações – como uma
forma de racionalidade “incessantemente modificável?” (p.71). Pressente-se aqui o risco de
um círculo vicioso – que surge da tentativa de evitar o pragmatismo de um critério de
mudança fundado sobre o êxito – ao indicar o racionalismo como critério de sua própria
transformação.
Segundo Bachelard (p.72), o termo lógica – em seu formalismo intrínseco –
descreve uma atividade essencialmente vazia, sem relações com a matéria. Trata-se de
“uma atividade que consiste em instalar-se num formalismo absoluto, sem esse voto de
formalização, não se faz lógica [...]. A lógica não se deve aplicar!” (p.72). Por conseguinte,
a qualidade especificamente lógica que Bachelard reconhece à ciência consiste no fato de
que a arquitetura conceitual – com a qual se erguem teorias – deve ser construída segundo
regras tais que evitem contradições. Mas isto concerne à estrutura lógica das linguagens que
permitem a expressão clara do pensamento racional.
Contrariamente, o racionalismo tece uma rede conceitual que prevê a necessidade
de aplicações experimentais. Como atividade axiomática de reorganização de saberes, a
prática racionalista do cientista permite questionar a experiência, possibilitando também
aquilo que o autor qualifica como função específica do filósofo epistemólogo, a saber,
cometer imprudências metodológicas, “dizer coisas exageradas” (BACHELARD, 1972c,
p.73).
202

Tal inovação no procedimento que reúne filosofia e ciência adquire assim o mérito
funcional de promover a abertura82 do pensamento questionador que, sistematizando
interconceitos, nas fronteiras dos conheciments especializados, supera a dependência de
critérios na pesquisa: “Não busco por critérios. Não tenho critérios gerais! Tenho um
critério experimental” (p. 73). Lançando mais uma objeção, Wolff (apud BACHELARD,
1972c, p.74) designa aquilo que Bachelard chama de racionalismo regional como o método
que se aplica a domínios específicos do conhecimento, enquanto o que mais lhe interessa
conhecer seria o que existe de comum entre os vários métodos aplicados aos vários
domínios (p.74). Ele argumenta que sob a variedade de métodos diferentes, reencontramos
as mesmas exigências fundamentais do raciocínio humano:’ é o velho princípio de
identidade e de não contradição que governa sempre o pensamento” (p.74).
Ao mesmo modo, Wolff identifica a busca de uma certa identidade, de certas
invariáveis, em todas as construções científicas83. Trata-se, a seu ver, de uma “orientação
constante do pensamento” (p.74), que impede que cada nova descoberta provoque
explosões na razão. “Somos todos racionalistas”, reage Bachelard (p.74), reduzindo a
intervenção de Wolff à inutil revendicação de uma necessidade de clareza que, na verdade,
constitui a história do racionalismo presente em qualquer manual do ensino de segundo
grau.
O ilustre psiquiatra e filósofo Eugéne Minkowski (1884-1972), teórico do
racionalismo macio, afirma que, ao ouvir Bachelard, “sob influência do clima que o Senhor
soube criar” (p. 74), perdeu de vista a ideia simplista que tinha do termo racionalismo:

Ao ouvir-lhe falar em “tonalidade do racionalista”, interroguei-me francamente se


tal tonalidade provinha realmente do racionalismo ou do homem completo das
vinte e quatro horas, do homem noturno e do homem diurno, que tão
admirávelmente o Senhor sintetizou em sua Obra (MINKOWSKI apud
BACHELARD, 1972c, p.74).

Seguem então as duas questões que Minkowski propõe a Bachelard, provocando o


alargamento da perspectiva traçada na conferência proferida. O primeiro item questiona se

82
Wolff, também presente à Conferência, corrobora a prática de abertura dos saberes: “Hoje em dia todos se
rendem conta que é necessário alargar o racionalismo tradicional”.
83
Como no caso da velocidade da luz em Einstein e a consideração da energia como fator mais importante do
que a massa, na ciência da época.
203

tudo o que não for racionalismo, na vida diurna, tem origem noturna. Em tal modo,
Minkowski defende a existência de fatores extra racionalistas que intervêm na atividade
científica ou filosófica, e sem origem noturna, colaboram em termos de comparação, ao
entendimento da natureza do racionalismo mesmo. A segunda questão minkowskiana verte
sobre a aproximação de dois termos fundamentais da conferência de Bachelard, a saber,
“racionalismo progressivo” e mecanismo do “re” – reorganização, recomeço, renovação – e
questiona se os dois movimentos: de progresso e de renovação, tenham, em nossas vidas, a
mesma origem.
Seria inadmissível a hipótese de um cirurgião que desenvolve sua atividade
inspirado em sonhos noturnos. “Seria uma catátrofe” afirma Bachelard (1972, p.76) em sua
resposta, caracterizando a tonalidade racionalista como qualidade de total dedicação e
adaptação à atividade específica de cada profissão. Reserva, ao contrário, à potência de um
“existencialismo da noite”, a função de prover ao repouso do racionalista, pois “se o
matemático tem sono ruim, não encontrará seus teoremas” (p.76). O psiquismo cansado
necessita bons sonhos, “sonhos aquáticos”...

Tente sonhar que de noite, entre seus lençóis, encontram-se numa água doce,
perfumada e morna! E, consequentemente, recebam todas as potências noturnas!
Mas quando chega o dia, quando se encontram diante de suas folhas de papel, se
forem matemáticos, diante de seus quadros negros, empenhem-se em não
permanecerem na água e na lama! (BACHELARD, 1972c, p.76).

O racionalismo defendido por Bachelard (1972c) poderia definir-se também como a


radical busca por aberturas possíveis, busca que se realiza através do esforço permanente
de formulação de novas hipóteses, a que o filósofo se refere como uma procura por
“circustâncias espirituais diferentes” (p.77), engendrada pela benéfica insatisfação com o
método de pesquisa utilizado. Segundo Bachelard, o método deve sempre ser posto em
discussão. Já se viu ele afirmar a satisfação que o novo cientista deve provar, quando seu
método fracassa. Este tipo de acidente na metodologia aplicada pelo pesquisador, ao
evidenciar a necessidade de uma mudança de método, faz da crise metodológica, da
falência de um método de pesquisa, um momento de grande “benefício para o pensamento
204

científico” (p.77-8)84. O cientista mesmo deve tentar formular contra exemplos que possam
desmentir suas hipóteses, apresentando casos e moldes para os quais o método utilizado não
funciona. Lenoble (Apud BACHELARD, 1972c) se apresenta ao debate, argumentando que
em pleno século XVII, quando Descartes e Galileu fundam seus sitemas de pensamento,
apesar de possuírem a “tonalidade racionalista”, devido aos pouquíssimos fatos e dados de
física matemática dos quais dispunham para formalizar seus axiomas, pode-se pensar que a
fórmula: “A natureza é escrita em linguagem matemática”, tenha sido na verdade um
grande sonho85.
Acredita-se que, ademais, ao tentar investigar o momento específico de troca de
saberes, quando uma metodologia demonstrada infrutífera é substituída por novos
procedimentos de pesquisa, Lenoble toque um aspecto importante para o trajeto que traçado
nesta tese, de individuação de modos de desenvolvimento e progresso do conhecimento, na
contramão do hábito de pesquisa tradicional e acadêmico. Ele introduz sua pergunta,
constatando que Bachelard cita experiências que transformaram tão profundamente o
mundo material – referindo-se às novidades da revolução relativista e quântica – a ponto de
serem consideradas elas mesmas como novas atitudes racionalistas.
Deste ponto de vista, pode-se pensar às profundas transformações no que concerne
mesmo a ideia de realidade, analisada no capítulo 1 dedicado à epistemologia. Relembra-se
que a nova concepção de materia, além de propor um objeto de estudo invisível e quiçá
mesmo inexistente, ousou formalizar também uma concepção material em termos de
energia, de eletromagnetismo quântico, de saltos de eletricidade que mantém coesa a
matéria concreta, constituída, portanto, essencialmente por espaços vazios. Vê-se assim que
efetivamente, experiências realizadas em laboratórios de física tranformaram-se em atitudes
fundamentais à racionalidade científica da modernidade. Tais razões conduzem Lenoble a

84
Identifica-se uma metáfora perfeita da época de novidades derivadas da cientificidade relativista e quântica no retorno –
proposto pelo interlocutor Lenoble – à questão do encontro entre o “homem do dia” e o “homem da noite”, momento
“capital para a ciência, da ideia brilhante, da invenção, da hipótese”. Lenoble focaliza sua interrogação no momento de
troca de saberes, com termo foucaultiano – para quem tal momento permanece um enigma – quando o aparecimento de
uma nova axiomática permite a observação de fatos novos. O que existe entre os dois momentos ou estados da ciência,
entre a falência de um método e a formulação de um novo método? Momento instável “de novas hipóteses, de imagens
que servem como esquema diretivo para uma sistematização possível”.
85
Lenoble (p.78) traça uma analogia entre duas imagens presentes nos escritos cartesianos – a alma que reside
no corpo como o piloto no navio e o homem que carrega uma lanterna mágica – e o homem noturno
bachelardiano.
205

indagar Bachelard sobre a identidade do “dado material destinado a transformar a atitude


racionalista” (p.78). Lenoble questiona:

Não existe aí uma reforma da máquina cogitativa que precede a observação


racional dos fatos [...] eficaz em permitir a observação? Dito em outro modo, não
existe aí, uma vez que um método tenha fracassado, uma atitude racionalista
anterior a uma nova construção que comprovarão os fatos? (LENOBLE apud
BACHELARD, 1972, p.78).

Bachelard (1972) reconhece que, às vezes, na história da fisica, imagens precederam


e guiaram teorias, mas propõe, à atenção dos interlocutores, um exemplo moderno do que
entende por “transformações filosóficas” (p.79), ou seja, aceita o desafio de discorrer sobre
o delicado momento de troca de saberes. Ele se recorda que, quando sentiram a necessidade
de substituir a mecânica classica – habitual e racional, mas insuficiente ao esclarecimento
do funcionamento último da realidade – pela mecânica quântica – inquietantemente
renovadora – muitos filósofos debitaram tal fracasso da racionalidade a uma vingança final
da irracionalidade do real diante da consideração lógica dos eventos concretos.
Neste momento fecundo de crise da vigência de uma forma de saber já superada,
surgem “jovens espíritos, espíritos vivazes, que rapidamente liquidam os conhecimentos
elementares e passam a pensar em termos de mecânica quântica” (BACHELARD, 1972c,
p.79), por eles considerada, afirma Bachelard (1972), como um tipo particular de “clareza
racional” (p.79). O que nos ocorre notar é que tais espíritos jovens e vivazes atuam
promovendo uso tão intenso daquilo que Bachelard chama – sem ulterior definição – de
“princípio de exclusão” (p.79), até que este princípio mesmo acaba por parecer-nos
racional.
Ouça-se o que esta nova racionalidade – jovem e vivaz - tem a dizer, através das
palavras de seu arauto champenois: “Vocês o utilizarão (tal princípio) em maneira tão
fecunda que ele vos esclarecerá problemas realmente impossíveis de serem esclarecidos em
outro modo! [...] Só assim teremos o racionalismo em ato”, conclui Bachelard (1972, p.79),
definindo a delicada – e para a hipótese que defendida neste estudo, fundamental – questão
da distinção entre racional e irracional, no domínio da pesquisa física de laboratório:

E agora, quando veem toda esta contabilidade e esta ordenação, estas guias técnicas!...
Diremos: Este raio, acreditam que seja simples? Não, não! Coloquem-no num campo
suficientemente forte, ele se desdobrará e se desenrolará! Existe, por conseguinte uma
206

considerável riqueza de determinações experimentais. Onde está o irracionalismo? Estava


na base; agora estamos numa racionalidade totalmente ativa. Isto trouxe consigo uma
transformação dos valores racionais. A mecânica quântica é uma mecânica racional; ela
deve tornar-se racional! (BACHELARD, 1972, p. 79-80).

A esta mesma tarefa, entregara-se Bachelard há quase trinta anos: defender o novo
racionalismo quântico, epistemologizar as novidades da experimentação científica. Para
isto, ele in primis deveria estabelecer um novo estatuto de investigação que lhe fosse
próprio e lhe consentisse praticar sem receio toda abertura de pensamento necessária à
compreensão filosófica do novo saber científico. Foi esta a ocasião perfeita para que o
filósofo lançasse mão de seus novos hábitos de reflexão e análise configurada neste estudo
– em termos de dinamismo espiritual – no quadro geral de sua metodologia por oposições e
ambiguidades.
Parece que, em fim de contas, tudo se resolva numa “questão de rapidez de
compreensão” (p.80). A mecânica quântica coloca – natural e rapidamente – os “cérebros
em ação” (p.80), habilitando-os ao deslocamento de compreensão e de racionalidade86 que
parece, portanto, caracterizar o desenvolvimento da ciência tout court, desde sempre
notadamente, nos momentos de renovação efetiva de todo protocolo do saber. A
racionalidade é sempre equívoca e torna-se cada vez mais difícil. Além disto, como
Bachelard mesmo recorda, em outro artigo87 desta coletânea sobre o racionalismo, o
espírito racional prepara seus próprios eventos, liberando-se, portanto, do confinamento
numa experiência racionalista particular: “O espírito científico pode beneficiar-se da
essencial pluralidade de diferentes sistemas de racionalidade” (p.91).
Concluindo o debate, Bréhier (apud BACHELARD, 1972c, p.83) confirma a
acolhimento positivo – por parte de uma audiência de peritos do pensamento
epistemológico – à urgência defendida por Bachelard em entregar-se à tarefa de renovação
da racionalidade dos anos 5088, ao ler (p.83) ao público a carta escrita para a ocasião por M.
Benda, que vê uma essencial continuidade entre a tese de Bachelard e Brunschvicg. Para
ele, Bachelard nega a atitude racionalista legitimamente, pois “existem fatos na natureza

86
Bachelard cita a epígrafe de um livro de FRANK, sobre Einstein: “O que existe de mais incompreensível?
É que o mundo mesmo seja compreensível”. Idem, p.80.
87
O novo espírito científico e a criação de valores racionais (BACHELARD, 1972c, p. 89).
88
O autor defende além do mais, a inserção imediata da mecânica quântica no currículo de formação superior.
Idem, p.80.
207

que não provém do racionalismo [...] existe um mundo de fenômenos que escapará sempre
à explicação racional” (p.83). Realmente, segundo o filósofo, seria uma grande desgraça, se
a ciência conseguisse explicar tudo, “pois no dia em que tudo será explicado, me pergunto
o que teríamos a fazer” (p.83).
Uma última provocação de Bréhier oferece a Bachelard a ocasião que esperava para
expor com vigor seu ultimato intelectual. Não há como voltarmos atrás: “A mecânica
quântica e a física nuclear não podem ser explicadas sobre a base única dos princípios da
física ordinária”89 (p.83).
Após ser focalizada esta asserção bachelardiana, passa-se agora à investigação
entorno da nova noção de corpúsculo, no intuito de analisar em que modo o discurso
retificado da epistemologia bachelardiana, renovando os princípios da física ordinária,
aborda a questão da natureza insólita das partículas atômicas, formulando novos princípios
racionais, com os quais torna-se possível a descrição teórica da novidade quântica e
nuclear.
Antes, porém, misturam-se, brevemente, as cartas na mesa, entre ratio e devaneio,
através da criatividade, como função de uma consciência que raciocina e sonha - em seus
conceitos e em suas imagens - para ressaltar como, em fim de contas, a mesma abertura nos
procedimentos racionais, exigida pela ciência para lidar com os aspectos mais insólitos da
materialidade microfísica, pode ter guiado a atenção e o discurso bachelardiano acerca de
aspectos ambíguos e contraditórios que, a bem ver, terminam por constituir uma técnica de
análise que se adapta muito bem seja à ciência, seja ao imaginário.
Nota-se então que para o primeiro Bachelard, de La formation de l’esprit
scientifique (1996a), a imaginação é a expressão do caos da natureza. É rêverie, como
afirmação da continuidade entre consciência e inconsciência, no decurso de instintos
primordiais e arquetípicos que podem acometer, subjugando, a clareza da reflexão
científica. Com o prosseguir de suas pesquisas, Bachelard reabilita o imaginário poético,
tornando-se receptivo ao aspecto mais criativo da imaginação, não só como faculdade de
produzir imagens, mas também de deformá-las, para induzir no leitor experiências de
devaneio poético e reflexões sobre a criatividade humana.
89
Assim Bachelard responde à ingênua objeção do emérito medievalista, que pedia que lhe citasse um só
texto científico que deixe de lado enunciados no formato: dado isto, segue aquilo, utilizando portanto o
mesmo racionalismo em vigor há trinta séculos (BRÉHIER apud BACHELARD, 1972c, p.83).
208

Em suma, considera-se a renovação da racionalidade anunciada por Bachelard como


um movimento profundo de abertura e alargamento da razão que, além de promulgar e
aplicar o novo estatuto da pesquisa microfísica – e epistemológica em geral – enquanto
consciência que imagina e sonha, compreende em sua reformulação a novidade de uma
teoria estética também inédita enquanto fundada sobre a total rendição da individualidade à
comoção instaurada na experiência imagética do devaneio poético.
Nesse sentido, a compreensão do corpúsculo (BACHELARD, 1951), como
realidade inusitada, de fronteira, apresenta notável desafio à razão humana, não só por suas
medidas infinitesimais e portanto, por sua invisibilidade perante nossos órgãos de
percepção, mas também devido à subversão que requer, dos parâmetros de nossa comum
inteligibilidade. A primeira armadilha que a ciência física contemporânea apresenta aos
diletantes é a convicção do conhecimento e intuição comuns da vida quotidiana, que nos
propõe a ideia de corpúsculo como um corpo minúsculo, e aquela de átomo como elemento
indivisível, último resultado do fracionamento material.

Tais garantias etimológicas indestrutíveis funcionam como um obstáculo à


compreensão da novidade da linguagem da ciência. Como podemos então
aprender a formar noções completamente novas? [...]. As ciências físicas
contemporâneas necessitam de filósofos que reneguem, não somente seus
conhecimentos racionais elementares, como também seus conhecimentos
comuns, para abordar simultaneamente um novo pensamento e uma nova
experiência (BACHELARD, 1951, p106),

A tarefa é difícil, requer a rejeição das convicções de base empirista e realista que
direcionam nosso hábito de percepção comum ao mundo natural circunstante, como quadro
do real e de tudo o que, nele, se dá ao nosso conhecimento. Entretanto, o desafio lançado à
mente é intrigante, enquanto sugere os novos meios de uma tecnologia da percepção que,
subvertendo milênios desse naturalismo gnoseológico, em pouco mais de um século -
tempo bastante breve, em termos de arqueologia do saber - gerou descobertas estonteantes,
sobretudo, nos campos da microfísica e da microbiologia. É o caso do acelerador de
partículas e do mapeamento do genoma humano, como também nas neurociências, no que
concerne às funções específicas dos neurotransmissores cerebrais.
Além disso, aqui será aprofundado o que no primeiro capítulo foi tratado, nos
termos de uma descrição de procedimentos retificados do novo espírito científico,
abordando-se, agora diretamente, a natureza mesma do corpúsculo como enigma de uma
209

objetividade sui generis, enquanto paradoxalmente antagonista às modalidades comuns do


conhecimento humano.
Inicia-se com referência às seis surpreendentes teses com as quais Bachelard,
afastando “intuições preguiçosas” (1951, p.106) circunscreve a realidade corpuscular ao seu
exato contexto axiomático, para discutir em seguida, a contribuição de cada uma à
superação e renovação do antigo saber científico que direcionou o conhecimento rumo à
afirmação de nossa atual tecnologia da contemporaneidade.
Cabe ainda ressaltar que as contradições, oposições e ambiguidades que neste
estudo se indicou como base do procedimento metodológico do bachelardismo, integram
agora a técnica expositiva da natureza mesma do objeto sobre o qual verte a investigação.
Eis aqui as seis teses, segundo Bachelard, 1951, p.106-16):
1. O corpúsculo não é um corpo minúsculo;
2. O corpúsculo não tem dimensões determináveis;
3. Correlativamente, se o corpúsculo não tem dimensões determinadas, ele não tem
forma determinada;
4. Já que não se pode atribuir uma forma determinada ao corpúsculo, também não se
pode atribuir-lhe um lugar preciso;
5. Em diversas circunstâncias, a microfísica coloca como um verdadeiro princípio a
perda de individualidade de um corpúsculo;
6. Enfim, a última tese que contradiz o axioma fundamental do atomismo filosófico:
a física contemporânea admite que o corpúsculo possa aniquilar-se.

Para que se conceba a nova realidade corpuscular, inicialmente, deve-se aplicar o


que se estudou como a ruptura que se instaura entre o conhecimento comum e o
racionalismo científico. As noções trazidas do senso comum tornam-se inúteis, quando
aplicadas no estudo da microfísica das partículas, pois se pensarmos o corpúsculo como um
corpo pequeno, nos moldes da teoria de Demócrito, como átomo indivisível, último
fragmento material, nos colocamos fora do prisma físico contemporâneo - moderno, diria
Bachelard – no qual “O corpúsculo não é um fragmento de substância” (BACHELARD,
1951, p.106). Por si mesmo, em sua configuração microfísica, ele se opõe, recusa e
subverte os recursos comuns da capacidade de conhecimento humano e, portanto, requer
210

adaptação ou invenção de novos meios técnicos e gnoseológicos, todos fruto da pesquisa


aplicada às novidades da ciência física; razão pela qual,
Bachelard propõe uma abordagem via negationis, explicitando tudo o que o
corpúsculo não é, visto que ele não é nada daquilo que se dá ao conhecimento imediato que
rege a vida cotidiana. Efetivamente, ele não é dado, é construído técnica e
matematicamente. Portanto, para abordar a pesquisa física contemporânea – na novidade de
seu pensamento e experiência – torna-se necessário abandonar não somente conhecimentos
comuns, como também todo raciocínio fundado sobre o racionalismo físico cartesio e
newtoniano, com suas noções absolutas e universais, frutos de pseudo-certezas definitivas.
A nova ciência, ao trabalhar com noções ambíguas e paradoxais, nos obriga a abrir a
mente ao novo racionalismo lógico que, a partir de uma axiomática inventada sobre bases
de essência matemática, funda novos procedimentos técnicos, dirigidos e aplicados a
domínios específicos do real. A física de partículas trabalha com a objetividade teórica,
com entidades de pesquisa que, por não representarem fragmentos de substância, ou
melhor, por não terem substância alguma, tão pouco possuem propriedades ou qualidades
substanciais, conforme o vício da antiga física que refletia sobre corpos, avaliando e
medindo suas características empíricas específicas.
Mesmo a velha noção de átomo químico, segundo a organização racional da
experiência de laboratório, fazia-se objeto de um novo estatuto ontológico, antagônico
àquele vigente no precedente estado de desenvolvimento da ciência. Para Bachelard (2004,
p.286): “O infinitamente pequeno é o centro geométrico do nosso assombro. Ele derruba
todas as nossas previsões”. E, referindo-se idealmente às conclusões do I Congresso Solvay
que, em 1911, reuniu em Bruxelas os grandes cientistas envolvidos com a novidade das
ciências físicas - Einstein, Curie, de Broglie, Planck – em torno do tema “La Théorie du
Rayonnement et des Quantas”. Cita Jeans: “A história da ciência ensina que cada grande
progresso feito em direção a uma realidade última mostrou que essa realidade estava numa
direção completamente inesperada.” (JEANS apud BACHELARD, 2004, p. 286). Em
grandes linhas, convém relembrar que se trata nestes termos da mesma tese defendida por
Bachelard (2004) – desde os primórdios de sua pesquisa científica - ao referir-se à realidade
segundo uma dupla acepção já mencionada neste trabalho. A saber, como ser em si, situado
211

além da experiência ou como o constructo resultante de elaborações teóricas. Distante,


portanto, da noção de realidade como existência de um dado concreto.
O realismo é certo na medida em que é impreciso [...] Se o realista quer
fundamentar sua doutrina, terá de fazer como todos: proceder experimentalmente
seguindo uma lenta e regular redução do erro, por meio de uma longa conquista
de probabilidades positivas. Compreenderá então que o mais real é o mais
retificado e que não existe conhecimento primitivo que seja conhecimento
realista. A realidade máxima está no término do conhecimento (BACHELARD,
2010, pp.14 e 19).

Instaura-se assim a polêmica na qual Bachelard terá como interlocutor E. Meyerson


(1859-1933), epistemólogo que defende a ideia de ciência enquanto ontologia capaz de
conduzir à compreensão da natureza mesma das coisas, devido ao vínculo de identidade
que instaura entre a realidade e a ciência que, segundo ele, descreve a essência do real
(MEYERSON, E. Identité et réalité, 1908. Paris - Vrin, 2001). O papel da ciência seria
realizar a busca do ser e da realidade em si. Bachelard refuta a ideia no artigo “Retificação
e realidade” (2004, p.281), onde objeta que o apreendido no real deve ser retificado em
vista de uma construção da realidade. O objeto do novo conhecimento científico é uma
retificação da realidade: “O objeto é o grupo dos fatos perceptivos, é uma série de
percepções suscetíveis de ordenação, ou melhor, é essa ordenação” (2004, p.298).
Logo, a ciência não é ontologia, é uma aproximação retificadora da realidade que
acentua a dinâmica de um pluralismo ontológico, fundamental à noção de ciência como
fundadora de realidades, construídas a partir de suas condições técnicas. Logo, cada estágio
de desenvolvimento da fenomenotécnica produz uma ontologia diferente, criando enfim um
leque de ontologias dispersas ou fracas, pois conforme a condição técnica da aparelhagem
disponível à pesquisa, diferentes tipos de partículas podem ser produzidos na
experimentação do laboratório de física. Sob o pano de fundo desta pluralidade ontológica,
cada corpúsculo será definido e instaurado como real, a partir dos critérios e métodos
utilizados pelos cientistas para apreendê-lo. Por outro lado, ocorre ressaltar que, do mesmo
modo com o qual a fenomenologia bachelardiana do imaginário é explicitamente
ontológica, enquanto revela o que é a realidade da imagem, apesar da polêmica com
212

Meyerson, e em sentido diverso, sua epistemologia também deve ser considerada


ontológica, enquanto saber capacitado à fundação de novos e inéditos níveis do real.90
A noção científica de átomo, já em si mesma, contrariava, enquanto ambígua, o
diktat da realidade empírica. É, portanto, no contexto de uma nova ontologia que Bachelard
distingue, in extremis, a nova realidade infinitesimal. “Arruinaríamos a ciência” diz ele
(BACHELARD, 1951, p.107), pensando, em dois tempos, o elétron - um corpúsculo -
como um pequeno corpo carregado de eletricidade negativa, ou seja, pensando duas
existências sucessivas, primeiro o corpo, e depois, suas propriedades. Prótons e elétrons não
são seres dotados de certas qualidades ou cargas elétricas, “não são partículas materiais
carregadas de eletricidade. Precisamente, eles são já átomos de eletricidade” (1951, p.107 ).
São a única forma sob a qual podemos conhecer a eletricidade91 mesma. Portanto não há
sentido algum em falar de partículas como se consistissem de duas partes: eletricidade e
matéria. “Estamos diante de uma ruptura absoluta entre conceitos da microfísica e
conceitos da física clássica” (1951, p.107). Relativamente a partículas subatômicas, a nova
ontologia corpuscular postulada pelo pensamento epistemológico torna inteligível uma
radical síntese de atributo e substância, cujo resultado é a “realização” do atributo: “Por trás
do atributo “eletricidade” não existe nenhuma substância ‘matéria’” (p.108).
O recurso à noção de atributo da corporeidade, utilizado erroneamente ao descrever
elétrons como pequenos corpos carregados de eletricidade, peca ao tentar elaborar um

90
Nota-se que a polêmica entre Bachelard e Meyerson prossegue, quando este último defende, em: La
déduction relativiste (Payot, Paris, 1925), o ponto de vista que afirma a novidade do saber relativista
einsteiniano como dedução do sistema newtoniano, promovendo uma forçosa visão de continuidade entre o
conhecimento físico de Newton e Einstein. Bachelard lhe responde com “A indução relativista”, que afirma
uma ruptura entre Einstein e Newton. Para Bachelard, indução significa invenção, no caso, invenção com a
qual os novos princípios da relatividade rompem radicalmente com os fundamentos da teoria de Newton.
91
Antes dos estudos e experiências do cientista americano Benjamim Franklin (1706 -1790), a investigação
sobre a eletricidade baseava-se na constatação de fenômenos essencialmente materiais como fricção, atração e
repulsão. Em época de pleno mecanicismo, aplicava-se à eletricidade generalizações das leis da mecânica,
reduzindo-a a atributo de corpos materiais. Franklin identifica as cargas positiva e negativa e demonstra que
os raios eram fenômenos de natureza elétrica. Em tal modo, coliga o eletromagnetismo à eletricidade que
passaria então a ser entendida como fluido que perpassa a matéria e não mais como simples atributo de corpos
materiais. Sucessivamente, o físico e matemático britânico, James Clerk Maxwell (1831-1879), ao cunhar a
teoria moderna do eletromagnetismo, que serviria de base à relatividade restrita de Einstein, completa a obra
de desubstancialização da eletricidade e dos elétrons, demonstrando a propagação de campos elétricos e
magnéticos à velocidade da luz, considerada como fenômeno de propagação de ondas elétricas e magnéticas
(teoria da luz como efeito eletromagnético). Em 1864, Maxwell demonstra que forças elétricas e magnéticas
possuem a mesma natureza, podendo, portanto, converter-se umas nas outras, a segunda do referencial de
pesquisa. Os estudos de Maxwell contribuíram também ao desenvolvimento da mecânica quântica. As noções
de corpo e substância foram assim definitivamente banidas do campo de investigação da eletricidade.
213

contorno realista para uma realidade que, em sua ambiguidade, subverte e desconcerta a
pesquisa física clássica. Elétrons são definíveis somente em contextos de racionalidade
experimental, logo, comportam a interferência desse novo pensamento ontológico capaz de
elaborar a ambiguidade presente nos conceitos da física contemporânea. Uma vez
descritivos de realidades que podem, inclusive, se apresentar ao mesmo tempo, como onda
e como corpúsculo, os elétrons podem estar e não estar em determinadas localizações.
Efetiva-se em tal modo a total ruptura com os procedimentos de base materialista,
utilizados até então pela pesquisa física.
Percebe-se que a noção de corpúsculo – elétrons e prótons – é vetor de
ambiguidades, porque rejeita o aspecto concreto derivado de sua fundação em termos de
substrato material e substancial, ponto pacífico da ciência física anterior. É um erro pensar
a eletricidade como atributo de um corpo material preexistente, seja ele grande ou pequeno.
Aprofundando a categorização antisubstancialista da realidade subatômica, a ciência física
caminha sempre em direção a uma maior abstração, predispondo-se teoricamente à
aceitação da ambiguidade responsável pela caracterização desta nova objetividade, segundo
os moldes de uma ontologia que, portanto, se deve considerar “dispersa”.
O racionalismo aplicado, que propõe Bachelard, acata o trabalho com
ambiguidades, porque inventa e produz, ele mesmo, novos fenômenos que são radicalmente
antitéticos àqueles do positivismo que dominava o panorama intelectual da época. Esses
novos fenômenos são essencialmente construções axiomáticas, donde concluímos que,
devido à realidade não corpórea do corpúsculo, não podemos discorrer sobre cargas
elétricas corpusculares em termos substanciais. Substância deixa de ter sentido, eliminando
tangencialmente qualquer risco de que a nova ontologia da ciência instaure o irracionalismo
no reino material, pois ela se desenvolve num território que se encontra além da noção de
substância, no esquecimento desta.
Neste sentido pode-se dizer que a nova física é determinista, pois constrói, ela
mesma, a realidade que estuda.
A segunda tese paradoxal elaborada por Bachelard decreta a impossibilidade de
determinar as dimensões do corpúsculo. Podemos atribuir-lhe somente uma ordem de
grandeza, uma zona de influência, e já que ele não possui existência empírica concreta será
apreendido a partir da área, onde, no âmbito de uma determinada experimentação, torna-se
214

possível detectar sua atividade, registrando o rastro de sua presença, decorrente de sua
passagem como facho de luz e energia. O corpúsculo é essa zona onde vigora sua influência
e sua atividade. “Logo, o corpúsculo só existe nos limites do espaço em que age. A
existência corpuscular tem caráter essencialmente energético” (BACHELARD, 1951,
p.108).
Além disso, a ordem de grandeza do elétron – 10-13 – é dada pela distância de
aproximação entre dois elétrons, em velocidade limite. “Em tal modo o corpúsculo não é
definido em seu ser, como coisa inerte, mas em sua potência de oposição” (1951, p.109).
Esta forma inédita de medição da dimensão do corpúsculo em termos de dinamismo
ressalta a incompatibilidade da filosofia corpuscular contemporânea com a caracterização
do átomo ou corpúsculo segundo a noção clássica de impenetrável92 – herança do atomismo
filosófico, que perde seu caráter absoluto enquanto diretamente relacionada, pois, com a
ideia de substância – que alguns epistemólogos da época, ainda não conscientes da recente
novidade científica, insistiam em aplicar à realidade atômica. Por isso Bachelard adverte
sobre a necessidade de rejeitar interferências do atomismo filosófico na conceituação da
ciência molecular.
Sem se adentrar no mérito da discussão bachelardiana com a filosofia realista que,
segundo ele, poderia objetar que não conhecemos precisamente a grandeza do corpúsculo
devido à “insuficiência de nossos conhecimentos”, serão evidenciadas duas questões
diretamente coligadas ao tema desta tese. A primeira observação concerne à distinção que
Bachelard faz entre realismo filosófico, que continua a considerar o corpúsculo como um
corpo minúsculo qualquer, que deve, portanto, ser mensurável; e o realismo da física,
sensível à evidente impossibilidade de proceder, segundo a ideia de uma medida absoluta
da realidade subatômica. Não se pode medir elétrons com réguas, pois, a ideia de medida
em termos absolutos e rigorosos aplica-se somente à realidade substancial.
A nova física mede certas zonas de influência atômica, utilizando o conceito
variável de quantas de ação. Em microfísica, a grandeza de um corpúsculo só pode ser
inferida. Razão pela qual a discussão deve, então, verter sobre os métodos de inferência
utilizados. Logo, entre as duas formas de realismo citadas, a única válida é aquela da física
92
Segundo o ponto de vista substancialista da física clássica, na lei moderna dos volumes, os gases eram
considerados conglomerados de moléculas em movimento e sob pressão que, para o pensamento da época,
podiam copenetrar-se, tornando possível a ocupação por dois corpos distintos de um mesmo local do espaço.
215

contemporânea, ou seja, um realismo técnico, segundo o qual um objeto de pesquisa passa


a ser considerado realidade a partir de uma técnica de realização e experimentação. Tal
realismo coliga-se ao idealismo construcionista da matemática.
Trata-se de uma outra explicitação da ruptura com os métodos de conhecimento
comum, utilizados pela física clássica, que impõem à contemporaneidade a necessidade de
oposição ao realismo filosófico do em si e da substância. A medição corpuscular não pode
ser realizada por instrumentos da fenomenotécnica, aplicáveis somente no âmbito da vida
comum. Pode-se somente inferir sua ordem de grandeza no contexto de uma
experimentação que a própria física constrói.
A segunda questão pertinente aos objetivos desta pesquisa indica que, por um lado,
após a afirmação do aumento de precisão da investigação, decorrente do afastamento de
imagens subjetivas – promulgado nas páginas de A formação do espírito científico – vê-se
agora, no aprofundamento do plano de abstração que guia a pesquisa microfísica através da
trama de razão e experimentação, abrir-se um novo espaço para o ingresso da atividade
imaginária no campo de criatividade essencial à atividade do cientista que deve e pode,
portanto, criar imagens sobre planos ulteriores de sua pesquisa. Por outro lado, pode-se ter
então como comprovada a noção de que é o método mesmo da nova ciência que deve
incorporar as ambiguidades teóricas que encontra.
Já que o corpúsculo não tem dimensões determinadas, ele também não tem forma
determinada, afirma a terceira tese bachelardiana que apresenta tal novidade epistemológica
como base da filosofia corpuscular contemporânea. A física atômica constrói um modelo de
sistema nuclear, que descreve o elétron como existência virtual de uma realidade na mente
da comunidade científica, como especificidade técnica de um especial gentlemen
agreement. Sem existência concreta, sem dimensão nem forma geométrica determináveis, a
realidade microfísica das partículas subatômicas constitui o paradoxal enigma que faz
avançar o saber.
Bachelard (1991) refere-se à química de Le Polly, bastante avançada para a época,
que indicava já a possibilidade de referir a direção de conjuntos de corpúsculos. A física
atômica dirá que elétrons assumem certas direções e velocidades. Eles possuem portanto,
uma orientação espacial, um spin que pode ser previsto no trabalho científico com
conjuntos de elétrons. “Parece possível afirmar a existência virtual de direções nos
216

elementos, suscitada pela composição, mas trata-se de uma visão do espírito, pois o
elemento isolado não tem geometria” (p.110).
Prosseguindo na ordem de complexidade das construções químicas, depara-se com
o paradoxo de estruturas complexas, que são mais conhecíveis do que estruturas mais
simples. A geometria atômica será tanto mais ativa quanto mais complexa for sua ordem de
composição, logo, mesmo se os conjuntos de elétrons que constituem o átomo foram
desgeometrizados pela química quântica, passando do átomo à molécula, portanto subindo
na escala de complexidade, a geometria da matéria aparece, fazendo da molécula algo
como um “pequeno corpo dotado de geometria, que possui grandezas determináveis, como
um edifício [...] O químico é um construtor de moléculas que, frequentemente, cria
moléculas [...]. A geometria molecular é uma guia para a química inventiva”
(BACHELARD, 1951, p.111).
Conclui-se então que a realidade corpuscular mais complexa é mais conhecível,
porque conhecemos melhor aquilo que sabemos construir: “Quanto mais participamos à
construção do edifício molecular, melhor o conhecemos” (1951, p.111). Inversamente,
onde não se dá mais conjunção construtiva de corpúsculos, perdemos o ponto de vista
geométrico. A partícula simples, em si, é uma perda de estrutura, o que implica que o
corpúsculo isolado não tem geometria.
Na verdade, a zona de influência e probabilidades que evidenciam a presença do
corpúsculo é sempre resultado de prévias construções fenomenotécnicas, perceptível,
portanto, somente no constructo complexo. Na natureza não se dá a existência de elétrons,
que são criação de uma determinada tecnologia fenomenotecnológica. Logo, o sentido
atribuído ao corpúsculo numa determinada estrutura ou nível ontológico é radicalmente
variável conforme a mudança dessa estrutura, ou seja, as partículas dependem do contexto
no qual são situadas.
Esta extrema variação ontológica da realidade subatômica, até hoje, causa estupor
em certa literatura filosófica da ciência. Por tal razão, Einstein teria afirmado que a física
que construiu poderia ter sido escrita, estando ele fechado numa sala, sem observar o
mundo, pois se trata de uma abstração que surpreende por funcionar uma vez fora da sala.
Um outro cientista, poderia ter elaborado uma construção conceitual diferente. Surge daí o
esclarecimento bachelardiano sobre a noção de determinismo técnico, como inexistente na
217

natureza, porém inscrito pela ciência sobre um mundo essencialmente indeterminado, como
vontade humana de domínio sobre aquilo que se constrói. Um determinismo científico que
desceu do céu à terra, onde na verdade nada é determinado.
As teses prosseguem, delineando inexoravelmente o contorno de uma nova e
extraordinária objetividade racional, que subverte todo pensamento científico clássico,
devido ao dinamismo com o qual acolhe em si, mudanças e transformações. O dinamismo
intrínseco ao núcleo atômico, a saber, a própria dinâmica molecular é o processo mesmo
que determina nosso único meio de conhecimento da realidade microfísica. Visto que,
como foi dito aqui, os cientistas avaliam a presença de corpúsculos através dos fachos de
energia que demonstram sua passagem pelo espaço ou sito tecnológico instaurado na
pesquisa. Daí, em campo de probabilidades, surge a possibilidade de indicações sobre o
spin atômico, ou seja, sobre a orientação que a realidade sub molecular estudada tende a
seguir; elaborando tais informações, a pesquisa pode prever colisões de partículas que
conduzirão a investigação a estágios subsequentes de evolução.
Parece possível concluir que, se por um lado, a epistemologia da primeira metade
do século passado encontrava-se diante do desafio de traduzir, em termos filosóficos, o
profundo e desconcertante teor de subversões causadas à lógica do realismo positivista –
com a qual até então se discorria sobre ciência, expressando nesses termos toda sua
evolução – pelas descobertas concernentes uma nova realidade atômica, em si mesma
repleta de ambiguidades e contradições. Por outro lado, todo antagonismo ínsito no novo
objeto do saber químico e físico complicava-se exponencialmente por tratar-se de uma
objetividade a ser estudada na dinâmica de suas incessantes transformações, e não mais
como a realidade inerte e estática que até então fora alvo da cientificidade.
Nestas primeiras conclusões, encontra-se já a confirmação de uma justificativa
plausível à metodologia com a qual Bachelard, em sua vertente epistemológica - e com o
intuito de esclarecer a vanguarda do pensamento e da prática de laboratórios que já
exerciam esse saber reformado - espelha tal controversa objetividade no dinamismo de
bipolaridades antagônicas, aporias e inversões, que formalizam sua irreverente pedagogia
por contradições.
A quarta tese sobre a realidade paradoxal do corpúsculo que afirma: “Já que não se
pode atribuir uma forma determinada ao corpúsculo, também não se pode atribuir-lhe um
218

lugar preciso. Atribuir-lhe um lugar preciso, não seria como atribuir-lhe efetivamente, do
exterior, e em modo negativo, uma forma?” (BACHELARD, 1951, p.111).
Este é o ponto de ruptura total com a imaginação cartesiana, diz Bachelard,
referindo-se certamente à lei da física newtoniana, que só admite o conhecimento de
realidades cuja posição e direção são claramente determináveis. A física do corpúsculo
contradiz, portanto, um quesito fundamental do realismo filosófico, a saber, o princípio que
exige a existência situada do objeto estudado que, portanto, perde seu valor absoluto,
devido ao princípio de indeterminação de Heisemberg, que impede notícias simultâneas
sobre a posição e o momentum, sobre a direção e o vetor do elétron.
Não há mais sentido algum em situar o objeto num ponto específico do espaço,
mesmo porque, como visto, a principal característica da nova objetividade corpuscular é
seu incessante movimento, razão que imprime o mesmo dinamismo a seus prováveis
métodos de conhecimento. A existência localizada perde a primazia que tinha como
princípio da ontologia pontual, superada cientificamente como determinação
fenomenológica de um dasein, de um “ser aí como consciência com o dedo apontado sobre
as coisas” (BACHELARD, 1951, p. 112).
Bachelard (1951) esclarece que o postulado de designação direta do objeto indica
realismo e fenomenologia como posturas filosóficas fundadas sobre o pensamento da
realidade comum, inaptas, pois, à abordagem da microfísica: “A ciência contemporânea
exige um novo ponto de partida. Ela propõe ao filosofo o curioso problema de um novo
ponto de partida” (p.112).
No domínio da revolução epistemológica instaurada pela descoberta da microfísica,
a aplicação da pesquisa técnica sobre o elétron recusa fenômenos imediatos, gestos
mecânicos e intuições geométricas, considerando que a investigação, mais do que a
situação dos objetos da realidade, volta o olhar para organizações inteligíveis de objetos do
pensamento, para uma numenologia que constitui os objetos da experimentação nuclear,
atômica e molecular. Nota-se que, ao usar o termo numeno, Bachelard não se refere ao
objeto em si kantiano, mas sim ao objeto experimental que, por resultar de uma construção
da inteligibilidade técnica, pode guardar em si ambiguidades e contradições, se comparado
ao objeto comum da experiência cotidiana.
219

Se voltarmos à ordem de grandeza na qual desenvolvemos nossas “Teorias” e enfrentamos


usualmente uma Realidade, poderemos aceitar um dualismo moderado, um dualismo de
aspecto e não de essência, que tende a expressar mais uma relação que uma oposição; está
apto a exprimir a dinâmica epistemológica. Devemos ultrapassar a descrição estática do
conhecimento que propõe precisamente um dualismo inconciliável porque despreza o ato
que une os dois aspectos extremos, experiência e lógica. (BACHELARD, 2004, p. 258).

Reunindo o idealismo, o realismo e o materialismo de Bachelard, pode-se notar que


para alcançar a construção técnica do elétron foi necessário acumular, coordenar e discutir
pensamentos científicos, prolegômenos da técnica, especificamente dita. Os próprios
instrumentos de laboratório, utilizados na experimentação, são complexos técnicos,
acúmulos de teorias. Cada instrumento científico é uma teoria materializada. Deste ponto,
pode-se concluir que o microscópio foi inventado somente porque nele se hipotizava a
existência de algo a ser visto.
Referindo-se à “ordem de pensamentos paradoxais” (p.113), que está tecendo
Bachelard (1951), como visto no caso do dasein como estar aí, afirma a possibilidade de se
recavar objeções à outra locução da experiência comum: estar em. O autor afirma que “Na
verdade, na ciência do núcleo atômico vê-se o caso curioso de um corpúsculo que existe na
saída de um espaço, no qual, provavelmente, ele não existia. Elétrons saem certamente do
núcleo, no curso de certas transmutações” (p.113).
É o caso do acelerador de partículas que bombardeia prótons contra prótons e, da
colisão dessas partículas, possibilita a apreensão virtual de outras partículas, chamadas de
léptons. Ao mesmo modo, pode-se provocar a colisão de partículas, bombardeando umas
contra as outras, para apreender a saída do elétron de um átomo onde ele não existia, antes
da colisão, já que ele mesmo é uma probabilidade existente somente dentro de uma modelo
virtual, construído ao fim da experimentação.
Os paradoxos da localização microfísica examinados por Bachelard neste texto de
1951, já tinham sido objeto de pesquisa no volume de 1937: A experiência do espaço na
física contemporânea, onde demonstra que o realismo é certo na medida em que é
impreciso: “Foi uma surpresa, nos primeiros tempos da era de Bohr [...]. O espaço não era
indiferença ao movimento! Não era uma forma pura [...] A física geométrica tradicional
partia de um esquema ilusório” (BACHELARD, 2010, p.14).
A característica descontinuidade das doutrinas quânticas transforma radicalmente o
cenário de investigação no que diz respeito aos conceitos de espaço e localização,
rejeitando a possibilidade de localização precisa do objeto de pesquisa no campo espacial.
220

A localização torna-se um fenômeno probabilístico e experimental. Qualquer experiência


atômica fornece somente uma probabilidade que pode mudar no caso de uma sucessiva
experiência.
Nota-se assim o surgimento de uma perspectiva de inversão do conhecimento
empírico que se referia à concretude de seu objeto, independentemente do método
específico de sua abordagem. Em microfísica, o método com o qual aproximamos o objeto
experimental, é aquilo que na verdade constitui a objetividade mesma. Bachelard então
indica os extremos de um método certo de pesquisa que situa a realidade no fim e não no
início do conhecimento, invertendo, portanto qualquer parâmetro do saber realista:

[...] proceder experimentalmente, seguindo uma lenta e regular redução do erro,


por meio de uma longa conquista de probabilidades positivas [...] o mais real é o
mais retificado, não existe conhecimento primitivo que seja conhecimento
realista. A realidade máxima está no termino do conhecimento e não na origem
do conhecimento (BACHELARD, 2010, p.19).

Bachelard prossegue, indicando como principal resultado filosófico de sua


exposição de métodos de localização da microfísica, nessa mesma inversão da perspectiva
de objetividade:

A fonte primeira da objetividade não é o objeto, é o método objetivo; não é o conteúdo, é o


continente; não é o termo final da aproximação, é o método de aproximação. Os valores de
certeza estão mais ligados à preparação experimental do que aos resultados da experiência.
Os resultados brutos, isolados, sempre flutuantes, não designam bem o real. É mais seguro
designar o real pelas operações que produzem o fenômeno. O que podemos reconstituir em
uma identidade bem definida é nossa atitude experimental. A objetividade sobre a qual
podemos nos entender é uma objetividade de informação, de enquadramento
(BACHELARD, 2010, p.57).

Outro indício da dificuldade de encontrar o objeto singular deve-se à característica


composição pluralística que constitui a filosofia quântica assim como a microfísica, aliás,
Bachelard apressa-se em afirmar que mesmo alcançando certos elementos, suas
individualidades seriam incertas, fugidias e aleatórias, nada mais que um evento singular
de uma dinâmica essencialmente complexa.

Em microfísica nunca se tem a certeza de experimentar sobre um elemento


isolado pelo simples fato de que não há meios para reconhecer o objeto isolado
[...] em filosofia quântica só podemos falar de “um elemento do real” quando ele
221

“realiza” um caso de localização. Menos que um objeto é apenas uma experiência


[...] complexa e efêmera93 (BACHELARD, 2010, p.25-6).

Em sintonia com a impossibilidade de situar o objeto singular como foco de estudo


da física nuclear, percebeu-se o erro estratégico representado pelo pensamento do elétron
como uma singularidade intranuclear, como um elemento constitutivo da estrutura do
núcleo atômico: “Agora se sabe que não existe elétron no núcleo. De algum modo, é a
dinâmica de expulsão que faz resultar a existência corpuscular, como resultado da
expulsão” (BACHELARD, 1951, p. 113); mais um depoimento a favor do dinamismo
como traço distintivo da realidade, que se vai explorar na parte conclusiva deste trabalho.
De modo que, Bachelard confirma a microfísica como campo, no qual a pesquisa deve
adequar-se ao fundamental e originário dinamismo que, no domínio subatômico, vemos
assumir conotações ontológicas, situando-se na fonte mesma da existência corpuscular:

Mais uma vez, o dinamismo apresenta-se como primeiro princípio a ser


meditado, ocorre uma noção essencialmente dinâmica da micrologia [...]. Quanto
mais se penetra no domínio da microfísica, mais se deve dar importância aos
temas da energia. Somente os objetos do conhecimento comum podem existir
placidamente, tranquilos e inertes no espaço (BACHELARD, 1951, p.113).

Ainda na questão do dinamismo como aspecto essencial do real, cabe ressaltar, por
um lado, a ligação que, em tal modo, se estabelece entre o regime dinâmico que dá origem
às partículas microfísicas e a imagem literária, que também não é estática, ao contrário,
vive somente na mutação de seus instantes, em estado de dinamismo fundamental.
Por outro lado, o movimento revela sua essencialidade mesmo na concepção realista
e materialista que assume Bachelard, ao afirmar a existência de uma realidade que reage às
tentativas de conhecimento, configurando portanto, o dinamismo de resistência como
aspecto primordial do real. A realidade é a sua resistência, resulta das páginas de La terre et
les rêveries de la volonté (1948). Ademais, a realidade subatômica, fruto teorético do

93
Na experiência que prevê a iluminação de uma nuvem de elétrons, direcionando sobre ela um feixe de
fótons, só podemos afirmar existentes os elétrons iluminados experimentalmente pelo choque de fótons.
Portanto, no campo da microfísica: “devemos apreciar a existência em termos de experiência e não podemos
reter afirmações válidas sobre a localização de um objeto fora das circunstancias experimentais de sua
localização”. Refere-se novamente ao caso em que para ver onde está um corpúsculo, temos de iluminá-lo,
realizando uma experiência bastante complexa: “Para a região onde se pressente a presença de corpúsculos
[...] dirige-se então um feixe de luz, um feixe de fótons [...].”. Nesta experiência, podemos apreender não só a
existência, mas também o devir do corpúsculo. Sabendo onde ele está, podemos inferir aonde ele vai,
aumentando a probabilidade de nossas previsões (BACHELARD, 2010, p.27).
222

racionalismo aplicado ao real, reagindo de forma inesperada e imprevisível, em cada


diferente estágio da experimentação, demonstra não ser totalmente um produto da ideia
humana, pois, se assim fosse, o instrumental técnico do laboratório de provas não revelaria
nenhuma surpresa, só confirmaria teorias, ao contrário do que ocorre na experimentação
nuclear.
O quinto paradoxo da microfísica afirma a perda de individualidade do corpúsculo
como verdadeiro princípio do conhecimento. Efetivamente, a individualização de dois
corpúsculos através de suas trajetórias, perde imediatamente seu aspecto de distinção ao
passarmos ao estágio sucessivo da experimentação. Conclui-se daí que o corpúsculo não é
mais do que um modelo teórico, aplicado na explicação de certos fenômenos da física.
Entretanto, o aspecto paradoxal do princípio se reforça ao constatarmos que tal
desindividualização em nada prejudica o processo de conhecimento, ao contrário, ela “nos
proporciona um princípio fecundo, um princípio que explica todo um setor da experiência
positiva”, diz Bachelard (1951, p.114), e, apresentando-se como corolário do princípio de
indeterminação de Heisenberg, renova a noção de indiscerníveis, como novo ponto de
partida da pesquisa técnica.
A microfísica não possui outro meio para reconhecer e individualizar a presença do
objeto isolado, senão o registro do rastro instantâneo da passagem do elétron. Logo,
enquanto Newton, distinguindo bem o percurso de uma bola de bilhar, podia calcular os
segundos utilizados pela bola para atravessar uma distância determinada, a realidade
corpuscular subverte todo cenário da constatação empirista, pois, apesar da utilização de
instrumentos que são do nosso mundo, o universo da ciência não é, definitivamente, o
nosso mundo, no qual resultaria incompreensível uma realidade que possa ser, ao mesmo
tempo, onda e partícula, e logo, ao mesmo tempo, possa ser e não ser.
A novidade de tais princípios rompe abruptamente com as regras do conhecimento
comum. O mundo que vemos num primeiro olhar, de imediato, não é o mundo da física,
que exige outro olhar, um olhar de ruptura. Exige mesmo outra ontologia, já que o produto
da construção técnica e teórica – na qual colaboram matemática e engenharia como duas
vertentes da física – nega a intuição primária, pois, trata-se de um produto que não existe na
natureza.
223

Mesmo no ambiente interno da pesquisa, torna-se difícil compreender todo o


processo de criação da microfísica, pois, enquanto o físico teórico é um matemático, o
físico experimental constrói instrumentos e teorias. Portanto, a pesquisa física não
representa um aprofundamento daquilo que se vê, ela cria sim uma outra realidade. Assim,
a técnica que antes confirmava o que víamos, agora cria e constrói fenômenos.
Retomando a questão dos indiscerníveis, a desindividualização corpuscular
reformula a noção de indiscerníveis em si. Não é mais uma indiscernibilidade em si, pois
são os próprios meios técnicos da experimentação que impossibilita o discernimento das
individualidades, ou seja a própria noção de indiscernível está ligada à experiência
individualizante. Duas realidades serão indiscerníveis se admito o princípio da
individualidade, inversamente, se tal princípio não existe, elas deixam de ser indiscerníveis:

Em fim de contas, deve-se sempre considerar os corpúsculos como raízes de


experiências e jamais como raízes do ser. Com a física, entramos numa ontologia
condicionada pela experiência técnica; não nos serve uma ontologia absoluta que
nos imporia valores refratários à experiência (BACHELARD, 1951, p.14).

Chegamos assim à sexta e última tese sobre a natureza paradoxal e axiomática do


corpúsculo: “a física contemporânea admite que o corpúsculo possa aniquilar-se”
(BACHELARD, 1951, p.115). Ruptura radical com a ideia de permanência absoluta e
indestrutibilidade que o átomo dos filósofos impunha a qualquer ameaça de mudança ou
destruição: “Sem dúvida alguma, existem fenômenos consecutivos à aniquilação de um
corpúsculo [...] desaparecido o corpúsculo, alguma coisa subsiste. Mas essa alguma coisa
não é mais uma coisa”. A ciência decretava assim o fim do atomismo filosófico como
doutrina das coisinhas, o fim do coisismo.
Bachelard (1951) ressalta a indiferença dos filósofos diante dos fenômenos de
criação e aniquilação corpusculares, como indício da fratura existente entre filosofia e
ciência, que permite aos filósofos distinguir entre fenômenos da ciência que, segundo os
mesmos, não concernem à filosofia, e fenômenos da natureza, que consideram assunto sob
sua jurisdição. Assim: “Eles conservam seus absolutos ao mesmo tempo em que a ciência
prova seu (dos absolutos) declínio.” (p.116).
Apesar de provas científicas contrárias ao valor absoluto de certas convicções
fundamentais da filosofia, como a existência de uma natureza feita de coisas, os filósofos
224

não renovam seu pensamento. Mudariam, se percebessem a novidade que constitui a noção
de corpúsculo como resultado de uma construção tecnológica aplicada à realidade. O
Bachelard epistemólogo prioriza a ideia de uma natureza construída pela ciência e, a partir
da oposição entre natureza e conhecimento, admite que a ciência pensa contra a natureza,
ordena seu mundo caótico, “sintetizando incessantemente uma crescente diversidade de
novas matérias” (BACHELARD, 1990, p.4).
O pensamento científico, inversamente à tendência conservadora do realismo
filosófico, reflete continuamente sobre os fenômenos de criação e aniquilação, concernentes
à realidade molecular, para alcançar maior compreensão das mudanças que ocorrem a nível
corpuscular, pois só entenderemos bem a ciência contemporânea se tivermos como base de
reflexão essa contínua transformação daquilo que percebemos sob o apelativo natureza:

Não teríamos aí o esboço de uma doutrina sobre os portais da existência, como


também dos portais das mudanças? No nível da filosofia corpuscular
contemporânea, vê-se que a dialética ser-devir formula problemas inteiramente
novos. Vê-se unir à ontologia corpuscular uma ontologia da transformação
corpuscular (BACHELARD, 1951, p.116).

Bachelard expôs, nas seis teses citadas, teorias e experiências aptas a revelar a
natureza paradoxal do corpúsculo, visando assim ressaltar a ruptura que a reflexão
epistemológica contemporânea instaura em relação às intuições filosóficas do atomismo
tradicional. De acordo com seu propósito, conclui-se, evidenciando aí um modelo da
transformação que a pesquisa científica impôs à racionalidade aristotélico-cartesiana que
procedia, até então, segundo o hábito de um raciocínio lógico fundado sobre conexões de
princípios de certeza absoluta do cogito, o qual, partindo da observação da natureza,
deduzia leis e categorias universais, hipoteticamente, suscetíveis de aplicação a todo e
qualquer ente.
Em tal modo, o rigor do intelecto humano alcançaria o entendimento dos mistérios
de funcionamento e progresso do mundo, considerado segundo o modelo de um mecanismo
perfeito. Os tijolos da construção do universo, que são as partículas como realidade
fundamental da microfísica, revelam-se à experimentação em toda sua impermanência
amorfa, desindividualizada e suscetível de aniquilação, subvertendo assim as regras do
cogito, ao instaurar uma reforma ontológica do conhecível que abre, inexoravelmente, os
225

limites da reflexão intelectual, capacitando-a a abranger em seus domínios realidades –


como as transformações atômicas – incertas e inexatas, antes exiladas na irracionalidade de
suas contradições, ambiguidades e dicotomias.
O domínio da inteligibilidade racional, com o advento da nova física, decreta
anistia, acolhendo paradoxos, antagonismos e inversões que, por sua vez, decretam a
necessidade de reformular os métodos de conhecimento, a partir de novas metodologias
pedagógicas, capazes de lidar em modo didático com esse novo e incerto panorama do
saber.
Para tanto, torna-se necessário, como indica JJ Wunenburger – fundando-se na
importância fundamental da escola no processo de renovação da racionalidade – “que a
comunidade escolar obrigue a razão preguiçosa a entrar em contradição com ela mesma.
Em tal modo, a formação científica torna-se para o espírito ocasião de aprendizado de
resistência e refutação” (WUNENBURGER, 2012). A necessidade de romper com velhos
esquemas do passado, constantemente superados pela capacidade humana de impor-se à
natureza – verdadeiro sentido bachelardiano de determinismo – não constitui nenhuma
novidade na história do conhecimento.
Mesmo o sistema copernicano impôs uma novidade que contrariava a convicção do
senso comum, de uma terra estática no centro do universo. Seu movimento só resultou a
partir de uma complexa reconstrução técnica da dinâmica planetária. Do mesmo modo, a lei
da inércia de Galileu não é observável com os meios do senso comum. Para sua
compreensão é necessário contar com instrumental técnico e conceituação matemática, a
partir dos quais, fundam-se novos objetos do conhecimento que não poderiam existir sem a
ajuda de tal mediação tecnológica. É a fenomenotécnica mesma que, em seu progresso por
complexidade cada vez mais intensa, constitui-se em redes de racionalizações.
O que é novo, como já dito, é a tematização bachelardiana da ruptura entre ciência e
senso comum, como prolegômeno ao estudo do novo conhecimento científico, essencial à
abordagem de métodos de um saber constituído por noções cada vez mais complexas e
distantes do coisismo empirista do realismo ingênuo, ao qual Bachelard se opõe com
fervor, evidenciando a total impossibilidade de uma consideração da noção contemporânea
de átomo sob disfarce ou aparência de fenômeno comum ou usual.
226

Como se pode propor relacionar nossas intuições sensíveis a seres que escapam
de nossa intuição? O tempo dos comportamentos ingênuos terminou. [...] uma
ligação de ideias contemporâneas com dados sensíveis não apresenta mais
nenhum interesse. A ciência contemporânea separou-se completamente da pré-
história dos dados sensíveis. Ela pensa com seus aparelhos e não com os órgãos
sensíveis (BACHELARD, 1951, p. 117).

Ao decretar a falência do coisismo na perspectiva do saber tecnológico


contemporâneo, Bachelard afirma a necessidade de “pensar os fatos de experiência
retirando-se o excesso de imagem que há nessa pobre palavra coisa. É preciso, sobretudo,
retirar da coisa suas propriedades espaciais” (BACHELARD, 195, p. 117). Ele define,
então, toda a variedade de novos objetos da microfísica, “designados pela terminação on –
todos os ons – elétrons, prótons, núcleons, nêutrons e photons... como coisas não coisa [...]
coisas que se singularizam por propriedades que jamais são as propriedades das coisas
comuns” (p.118).
A problemática da atomística contemporânea impõe, portanto, ao espírito científico
e filosófico, em sua abordagem e descrição dos novos fenômenos da ciência, o aguçamento
urgente dessa capacidade de romper com o velho conhecimento, de “liquidar rapidamente
as restrições prudentes do espírito positivista” (BACHELARD, 1951, p.120):

Pode-se então dar essa formula como exemplo da involução do pensamento filosófico.
Efetivamente, a noção de um corpúsculo definido como “um pequeno pedaço de espaço”,
nos reconduziria a uma física cartesiana, a uma física democriteana, contra as quais é
preciso pensar se quisermos abordar os problemas da ciência contemporânea. A noção de
corpúsculo concebida como um pequeno corpo, a noção de interação corpuscular,
concebida como choque entre dois corpos, eis exatamente as noções obstáculo, noções de
bloqueio da cultura contra as quais devemos nos prevenir (BACHELARD, 1951, p. 120).

Aqui Bachelard (1951) localiza, porém, o drama da “explicação na ciência”, ao


perguntar-se se o interlocutor “estará disposto a saber de outro modo” (p. 121), de um
modo que, sem constringir o fenomenólogo à redução da ciência ao saber comum, rompa
decididamente com a “feliz ingenuidade das intuições primeiras” (p. 121). Em tal modo, o
que se observa é uma radical superação da clássica noção filosófica de dado como êxito
primordial da filosofia do construído, sentido bachelardiano do pensamento sobre a
realidade corpuscular contemporânea:

Não se pode nem mesmo dizer que os corpúsculos sejam dados ocultos. Mais do
que descobri-los é necessário inventá-los. Os corpúsculos se situam no limite
227

entre invenção e descoberta, justamente no domínio em que acreditamos estar


ativo o racionalismo aplicado. Eles são precisamente objetos do racionalismo
aplicado (BACHELARD, 1951, p.121).

Ocorre, portanto que os filósofos se eduquem na dialética de evolução corpuscular,


compreendendo a realidade corpuscular desde que “dentro do átomo dos químicos
encontrou-se o átomo elétrico” (BACHELARD, 1951, p.122). A conclusão filosófica de
Bachelard, na questão da natureza corpuscular, nos conduz a ideias expostas em O
racionalismo aplicado, onde se viu que o realismo científico é necessariamente um
realismo em constante elaboração devido à aplicação e progresso do trabalho experimental.
Pode-se então chamar de racionalismo progressivo (p. 124), noção cunhada pelo Bachelard
realista94, que defende, porém, o realismo que a ciência revela ou constrói, que a ciência
inventa tecnologicamente, e não o realismo ingênuo e imediato do senso comum.
O saber científico com suas técnicas de criação de fenômenos exprime em fórmulas
e equações matematizadas, a representação que constrói de uma realidade inacessível.
“Quando seguimos detalhadamente a história da descoberta de certos corpúsculos da física
contemporânea, somos filosoficamente levados a modificar várias noções sobre o caráter
direto do objeto” (1951, p. 157).
Em seu estágio de ciência nascente, a microfísica descobriu-se capaz de produzir e
estudar o comportamento de “seres elétricos” (BACHELARD, 1951, p.157) completamente
novos, produzidos nos sistemas de sua aparelhagem técnica. “As propriedades elétricas dos
corpúsculos pareciam ser doravante os elementos fundamentais da explicação da natureza
das coisas” (p. 157). Bombardeando corpúsculos acelerados, no interior de certos campos
elétricos – câmera de Wilson – tornava-se legível o rastro dessas partículas que iam romper
núcleos atômicos, revelando desconcertantes transmutações de elementos químicos. Este
rápido desenvolvimento da física nuclear, em 1930, por um lado, descobria fenômenos
“surpreendentes”, e por outro, acumulava enigmas insolúveis.
A noção de nêutron, proposta por Chadwick, chega então como resolução para todas
estas incógnitas que as experiências nucleares da microfísica vieram acumulando entre
1930 e 1932. “Podemos então dizer que a objetividade do neutro é, inicialmente, uma

94
Nota-se com frequência, no discurso bachelardiano, a utilização do termo realidade como noção ambígua
que compartilha de uma significação ambivalente, situando-se, geralmente, entre as ideias de algo que está
longe e inalcançável, e, de algo que é construído pela técnica.
228

resposta a objeções” (BACHELARD, 1951, p.158). A história da descoberta do nêutron


ilustra então, como uma noção conceitual, a partir de sua experimentação. É aceita na
ciência pelo grau de esclarecimento com o qual resolve impasses que bloqueavam o
progresso da pesquisa anterior. “Se adotarmos a hipótese do nêutron, todas essas
contradições serão resolvidas num só golpe” (RIEZLER apud BACHELARD, 1951,
p.158).

O nêutron, por não ter nenhuma carga elétrica, escapa ao “senso elétrico” que a
técnica fornece ao homem do laboratório de nossos tempos; o nêutron é
“invisível” na câmera de Wilson. Então, deve-se formular um novo estatuto
ontológico para apreciar sua “realidade”. Em suma, com o nêutron, trata-se de
uma realidade formulada por suas consequências (BACHELARD, 1951, p. 158).

A incessantemente atividade reconstrutora da ciência contemporânea demonstra


através da filosofia do nêutron não somente a rápida evolução do materialismo nuclear,
desde a descoberta do nêutron – que “introduz na ciência um novo tipo de força”
(BACHELARD, 1951, p.159) – mas demonstra também um caso extraordinário no qual
uma descoberta da técnica impõe, por si só, a necessidade de reorganizar toda ciência,
como também a emergência de reformular a própria ontologia epistemológica:

Tal realidade é realmente indireta, é inferida a partir de uma ciência


racionalmente organizada, e a partir de uma técnica que não tinha sido instituída
anteriormente, no sentido de sua detecção. O nêutron nos parece o objeto tipo de
um racionalismo aplicado, objeto inconveniente e inatingível sem um
racionalismo organizador e sem um materialismo técnico (BACHELARD, 1951,
p. 158).

A afirmação da existência do nêutron impôs uma revolução ontológica. Doravante,


os núcleos atômicos passariam a ser considerados em modo novo, como organizações de
prótons e nêutrons, o que certamente faz progredir a ciência, mas não evita um ulterior
estado de complexidade devido ao dinamismo e, por conseguinte, devido às transmutações,
às quais a nova realidade – inventada pela teoria e técnica racional, aplicadas à
experimentação – permanece suscetível. Assim, citando Broglie, Bachelard resume a
questão de prótons e nêutrons:

Hoje preferimos considerar prótons e nêutrons como dois estados de uma mesma
partícula. Com tal hipótese, deve-se dizer que o estado nêutron é um estado
instável da partícula, que possui certa tendência a transformar-se no estado
229

estável, próton, com emissão de um elétron negativo, criado no momento dessa


transformação (BROGLIE apud BACHELARD, 1951, p. 159).

Convém ressaltar que, neste caso de reorganização técnica da ciência, devido à


invenção do corpúsculo neutro, o ulterior nível de abstração alcançado pela microfísica
comporta problemas ontológicos novos, que concernem uma ontologia dispersa de
transmutações e mudanças essenciais da realidade mesma sobre a qual verte a investigação.
O objeto inerte do conhecimento clássico, junto com a ontologia tradicional, construída
com noções absolutas, eternas e imutáveis, tornam-se questões de um passado largamente
superado pela ciência contemporânea: “Os corpúsculos são estados e suas relações são
transformações de estados, inversões de um estado num outro estado” (p. 160). Pode-se
concluir que a metodologia epistemológica bachelardiana, repleta - em seu vocabulário e
em suas análises - de termos que indicam contradições, inversões e bruscas transformações,
não deve mais surpreender-nos, nem muito menos causar escândalo da razão. Ao contrário,
o novo método de Bachelard, ao ressaltar ambiguidades presentes na ciência, manifesta-se
como técnica bem adaptada à realidade dos objetos que investiga: “são várias décadas que o
físico se liberou das intuições puramente formais. Ele sabe que a essência do real é
dinâmica e não geometrica. O pensamento científico sabe organizar conceitos
dinamológicos adaptados aos novos fenômenos” (BACHELARD, 1951, p. 161).
Bachelard traduz a radical novidade da filosofia corpuscular, alertando-nos ao
significado do termo nucléon, que indica o conjunto de prótons e nêutrons em um núcleo,
mas, ao mesmo tempo, “compreende em si mais do que próton e nêutron” (p.162), pois
como nucleon, pode transformar-se respectivamente nos dois estados: próton e nêutron.
Tal possibilidade de mudança no interior do núcleo define uma existência
corpuscular dualizada: o nêutron se transforma em próton e, ao contrário, um próton se
torna nêutron. São dois tipos de transformação radioativa que, porém, não podem ser
atribuídas ao mesmo corpúsculo, porque são observados como fenômeno de multidão
corpuscular, já que temos bem pouca probabilidade de agir duas vezes sobre um mesmo
núcleo. Logo, não podemos imaginar imediatamente uma ontologia rítmica incessante do
próton ao nêutron e vice-versa (p. 163).

Seguindo ideias tão novas, nos convencemos de que um realismo incondicionado que dá
um estatuto ontológico definido aos corpúsculos pode provocar bloqueios no pensamento.
A dinamologia que aqui sucede à ontologia ingênua encontra-se porém num período de
230

constituição. O aparelho matemático necessário à compreensão dessas novas doutrinas das


entidades fundamentais é muito complicado [...]. Acabou o tempo no qual o atomismo era
uma doutrina filosófica simples [...]. O racionalismo que quer servir ao conhecimento
científico, deve incessantemente retomar um exame e uma reforma de suas bases. Trata-se
realmente de uma filosofia que trabalha (BACHELARD, 1951, p.163).

A ação do nêutron nas experiências de transmutação, segundo a técnica do


bombardeamento de núcleos corpusculares põe em jogo incessantes reorganizações
intranucleares, que se tornam principal objeto de estudo da física atômica e nuclear, ciência
em cujo âmago residem transmutações e contradições essenciais da matéria – e da energia
que a constitui – que atribuem à razão a tarefa sui generis de incorporar em plano racional,
situações paradoxais, como os dois casos citados por Bachelard (p.161). Em primeiro lugar,
a experimentação demonstra casos em que nêutrons lentos são mais ativos do que nêutrons
rápidos, afirmação que inverte a própria ordem do real, onde atividade se coliga à
velocidade e se opõe à lenteza.
O segundo paradoxo da experimentação de laboratório refere-se à observação de
que “maços de nêutrons não se enfraquecem ao atravessar uma placa de chumbo de 50 cm
de espessura, enquanto são bloqueados por uma camada de 20 cm de parafina” (p. 162).
Ambos os casos demonstram situações nas quais o máximo nível alcançado pela
racionalidade científica, aplicado no rigor de uma fenomenotécnica constituída, ad hoc, na
vanguarda da experimentação nuclear da época, revela uma realidade material contraditória
e inconstante, que contradiz as convicções milenares do materialismo, do realismo e do
empirismo ingênuos.

3.2 Espaço e repouso: ambiguidades poetizadas

Certamente a melhor estratégia para se enfrentar o tema das mutações que se


encerram nas incontáveis dialéticas de polaridades investigadas por Bachelard encontra-se
na consideração da filosofia poética, fundamental ao pensamento do imaginário literário; a
saber, nas palavras do próprio Bachelard (1994c, p.1): “Se houver uma filosofia da poesia,
essa filosofia deve nascer e renascer no momento em que houver um verso dominante, na
adesão total a uma imagem isolada, no êxtase da novidade da imagem”. Portanto, penetra-
231

se numa perspectiva essencialmente diversa daquela em que se avaliou a retificação da


racionalidade científica. O intuito, ao reunir as duas vertentes neste capítulo conclusivo,
seria este mesmo, ou seja, promover condições de embate e confronto entre características
divergentes que possam servir a evidenciar aspectos fundamentais a cada uma das duas
vertentes do pensamento bachelardiano.
A filosofia poética, do mesmo modo do objeto que lhe é próprio, vive no instante da
comoção do intelecto, da consciência e da alma do leitor. É no átimo inconstante, mesmo se
permanentemente redivivus, que se dá o acesso ao pensamento poético, cujas raízes se
encontram, portanto, numa perspectiva de radical dinamismo do espírito. A filosofia do
imaginário se constrói através de demolições, configurando em seu percurso uma típica
estética de destroços, sempre retomados no incansável renascer da comoção que se instaura
ex novo em cada linha do poema. O objeto de estudo dessa filosofia é a imagem poética
mesma, considerada como um súbito relevo do psiquismo. Um pensamento instantâneo que
renasce sempre diferente de si mesmo.
Um filósofo que formou seu pensamento no Racionalismo ativo nos temas
fundamentais da filosofia das ciências deve esquecer seu saber, romper com
hábitos de pesquisa, se quiser estudar problemas da imaginação poética. Aqui o
passado de cultura não conta, o esforço para construir pensamentos é ineficaz
(BACHELARD, 1994c, p.1).

Bachelard afirma então a atualidade e a novidade psíquica do poema como essência


de seu pensamento estético. O ato poético não tem passado. “A imagem poética não é eco
de um passado. É mais o inverso: a explosão de uma imagem faz ressoar o passado em
ecos” (p.1), o que confirma a divergência entre poesia, que é puro dinamismo
transsubjetivo e epistemologia, enquanto reflexão do intelecto racional, que integra sempre
a nova teoria ao estatuto de ideias que governa cada disciplina científica. A imagem, como
criação autônoma, não se submete ao determinismo da causalidade, é o que resulta
claramente da pertinência com a qual Bachelard trata as noções de novidade e atividade no
reino do imaginário literário, sob a vigência de uma certa forma de ontologia direta, que
dota a imagem de um próprio ser que é também, ele mesmo, puro dinamismo.
O ser da imagem reside em seu repercutir, da mente do poeta àquela de seus
leitores, o que consente a Bachelard, na busca por esclarecimento dos mecanismos da
imaginação, formular uma inversão de termos, ao considerar a repercussão da imagem
como o inverso da causalidade (BACHELARD,1994c, p. 2). Em seu breve perdurar a
232

imagem é sempre novidade. Por isso mesmo não dura, morre ao final de seu instante para
renascer sempre nova. Se durasse, a imagem não poderia ser o devaneio sempre novo que
se impõe e logo morre jovem.
Somente sentindo sua repercussão - como origem de uma total adesão do sujeito à
nova imagem - entramos em contato com o ser das imagens. O ato poético caracteriza-se,
portanto, como evento imediatista, no qual a comoção intimista brota súbito do brilho em
que perdura a criação poética de uma imagem. Somente a fenomenologia da imaginação,
definida rigorosamente como “estudo do fenômeno da imagem poética no momento em que
emerge na consciência, como produto direto do coração, da alma e do ser do homem em
sua atualidade” (1994c, p.2), permite esclarecer filosoficamente o problema da imagem
poética.
Em A poética do espaço, Bachelard (1994c) utiliza especificamente polêmica,
oposição e paradoxo, como recursos metodológicos, para apresentar a noção fundamental
de transubjetividade da imagem. Veja-se como, na economia de seu texto, a referência a
tais mecanismos insólitos na perspectiva de ensaios teóricos, adquire, como defendido neste
estudo, o status de elemento probatório que concorre, em modo decisivo, ao esclarecimento
de suas questões filosóficas. No intento de delinear fenomenologicamente as imagens
literárias, o autor anuncia que modificará o teor de suas análises anteriores acerca do
imaginário, nas quais ainda tentava proceder “fiel ao hábito da filosofia das ciências”
(BACHELARD, 1994c, p.3), a saber, afastando toda interpretação pessoal intimista no
processo de elaboração de sua teoria das imagens.
A busca por objetividade logo se manifesta como inadequada à reflexão sobre as
imagens literárias dos quatro elementos da cosmologia. De modo que, Bachelard introduz
seu ensaio, valendo-se de uma inversão polêmica na própria ordem metodológica da
exposição que tecerá. Abandona o que qualifica como “método da prudência científica (p.
3), que se manifestara como insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação. “Aliás,
a atitude prudente não é já a recusa da dinâmica da imagem?” (BACHELARD, 1994c, p.3),
indaga o autor. Em tom quase existencialista, ele admite sua dificuldade em abandonar
certos hábitos intelectuais, como no caso, a prudência.
A seu ver, tal questão configura-se como autêntico drama da cultura, vetor do
paradoxo inerente à fenomenologia da imaginação que atesta a atração exercida por uma
233

imagem particular e pessoal, sobre outros inúmeros psiquismos: “Como pode um


acontecimento singular e efêmero como o aparecimento de uma imagem poética, reagir
sobre outras almas e corações?” (1994C, p.3); questão que encontrará solução na hipótese
da transubjetividade da imagem, que possibilita a comoção múltipla a partir do ressoar
(retentissement) de uma mesma imagem singular através da pluralidade de instantes e de
consciências. Apesar de já se ter analisado em detalhe o momento no qual Bachelard
substitui o olhar psicanalítico pela abordagem fenomenológica, o que se busca é evidenciar
aqui é seu típico procedimento de recorrer à figura do paradoxo, para introduzir uma
novidade metodológica no âmbito da exposição de seu pensamento.
Justificada em tal modo, a fenomenologia passa a atuar como fundamento
gnoseológico das subsequentes demonstrações do dinamismo vigente no reino do
imaginário poético, abrindo assim a possibilidade de uma consideração, em termos
especificamente filosóficos, do momento em que a nova imagem surge na consciência do
poeta, como evento ou ato de uma consciência criadora que, ao resgatar, deste modo,
dignidade subjetiva ao produto da atividade imaginária, rejeita a abordagem da imagem
enquanto objeto. O recurso à grande tradição de pensamento do ato mesmo de consciência,
disponibilizado pela referência ao termo fenomenologia, lhe consente também resolver
outra ambiguidade latente na consideração da imagem, como êxito do devaneio literário.
Foi referido aqui o fato de a imagem, em seu percurso transubjetivo, apresentar
sempre uma configuração imaginária essencialmente variante e não definitiva, o que muito
dificultaria o trabalho de apreensão da estrutura significante da mesma, em sua permanente
ação de mutação, variação e incessantes inversões, se o filósofo não dispusesse, em termos
inteligíveis, da possibilidade de percepção imediata da realidade específica da imagem
poética, identificada fenomenologicamente como seu próprio retentissement: como visto, o
ser da imagem é sua própria repercussão mental, seu trânsito através de consciências
sonhadoras.
Bachelard afirma ser a imagem uma dádiva gratuita de uma consciência ingênua. É
uma linguagem jovem, ou melhor, uma origem de linguagem que, por conseguinte, existe
antes do pensamento racional. Mais do que uma fenomenologia do espírito, a imagem cria
uma fenomenologia da alma, diz Bachelard (1994c) que, delineando a oposição ou
dualidade entre anima e espírito, a saber, entre imagem e conceito, confirma a necessidade
234

de acumular imagens como documentos sobre a consciência sonhadora. Segundo ele, a


palavra alma em si mesma denota imanação (fôlego, souffle) (1994c, p.5), de modo que, a
própria palavra alma, por si só, já anima um poema. Nada melhor do que o exemplo citado
pelo autor, para caracterizar a divergência semântica existente entre os termos alma ou
imagem e espírito ou conceito, já que o primeiro deles requer o comprometimento da
interioridade emotiva do sujeito, enquanto o segundo se limita ao exercício racional de
junção entre ideias da mente lógica.
O exemplo bachelardiano propõe um exercício de inversão de perspectivas
psicológicas – eis aqui mais uma vez a figura da inversão que assume valor metodológico –
necessário, a seu ver, para a compreensão da pintura que exige a troca da perspectiva
meramente exterior pelo olhar que brota da interioridade:

Para sentir uma tela, a pessoa deve projetar-se no centro que dá origem e sentido
à imagem representada. A alma possui uma luz ou visão interior que traduz no
mundo das cores vibrantes [...]. Para compreender a pintura é necessário
participar de uma luz interior, do foco do qual parte a iluminação da cena. É
necessário viver o sentido íntimo da imagem (BACHELARD, 1994c, p 5).

Logo, ao contemplarmos um quadro, o eixo da percepção não se encontra no


fenômeno exterior. Não é a cena ilustrada que determina minha imagética e emoção. É uma
luz interior que comove, dando sentido à imagem. Voltando ao domínio literário,
compreende-se, em tal maneira, a definição bachelardiana da poesia como “compromisso
da alma” (p. 5) que serve a introduzir a dicotomia de alma e espírito como os dois polos do
que chama de “dialética da inspiração e do talento (idem). Dois eixos necessários e
indispensáveis para estudar os fenômenos da imagem poética, para seguir a evolução da
imagem, desde o devaneio até sua expressão” (BACHELARD, 1994c, p.5). A Poética do
devaneio apresenta então o estudo do devaneio poético como uma fenomenologia da alma,
que descreve o devaneio como uma instância psíquica ambígua que, apesar de confundir-se
com o sonho, não se caracteriza como estado de sonolência pois: “O espírito pode estar
calmo, mas a alma poética está de guarda, sem tensão, descansada e ativa” (1994c, p. 6).
Será agora considerada mais uma polaridade formalizada com clara intenção
metodológica, ou seja, como estratégia ad hoc, para aprofundar a compreensão do
fenômeno poético, analisado sob o duplo parâmetro da ressonância (résonance) e da
repercussão (rétentissement), duas valências intrínsecas ao poema, que reunidas, constituem
235

a “duplicidade fenomenológica” (BACHELARD, 1994c, p. 6) da poesia. Enquanto o


primeiro termo, próprio ao espírito, provoca a dispersão da comoção poética na vida do
mundo, o segundo deles, próprio à alma, é razão de aprofundamento e interiorização na
existência individual, o que acarreta uma “reviravolta do ser” (1994c, p.6) do leitor que
entra em fusão criativa com o ser do poeta ao reconhecer o poema como criação própria.
De modo que: “na ressonância ouvimos o poema, na repercussão nos o falamos, pois é
nosso” (1994c, p.6).
Logo, a dupla virtualidade de ressonâncias e repercussões fundam uma divergência
bipolar que bem se adapta a nos transportar diretamente, com a análise fenomenológica, ao
cerne do mistério que envolve a comoção poética. Foi dito divergente, porque enquanto
ressonâncias, abrem-se à multiplicidade de tonalidades sentimentais dispersas no mundo, a
repercussão reconduz o leitor à unidade de seu próprio ser, em sintonia – harmônica e
unívoca – também com a criação do poeta, realizando portanto, traçados que procedem em
direções opostas, pois enquanto o primeiro procede em abertura ao mundo, o segundo
mergulha fundo na interioridade do sentimento: “A multiplicidade das ressonâncias sai da
unidade de ser da repercussão (da imagem poética)” (BACHELARD, 1994c, p. 6).
Especificou-se aí o desempenho pedagógico com o qual – na visão do presente
estudo – o autor reveste certas figuras do pensamento e da linguagem que expressam
momentos de crise da reflexão, momentos nos quais, devido à complexidade ou
ambiguidade do evento evocado, o próprio discurso linear encontra dificuldade para exercer
sua função esclarecedora, justificando de tal modo o recurso aos termos que denotam
polaridades e ambivalências. Portanto, ao se ressaltar determinados momentos, nos quais tal
terminologia divergente e antinômica integra – como componente insubstituível do discurso
– a didática do texto bachelardiano, pretende-se demonstrar o frequente dinamismo de
negações e inversões como fundamento de uma metodologia da oposição, utilizada na
reflexão bachelardiana como estratégia pedagógica e demonstrativa.
A análise fenomenológica da imagem, nestes termos ambivalentes, configura-se
segundo duas perspectivas: da exuberância do espírito à profundeza da alma. Surge assim a
“dupla dicotomia” entre a exuberância, como figura semântica da exterioridade; e a
profundidade, como figura da interioridade, ambas transcritas no simbolismo do poema,
ambas tomadas enquanto fenômenos da dualidade, entre a ressonância e a repercussão da
236

imagem. Tais dicotomias servem portanto, ao projeto bachelardiano de esclarecimento e


aprofundamento – em termos de estética filosófica – da comoção provada pelo leitor
entregue ao arrebatamento de seu ser, encantado pela força lírica do poema. 95
No quadro de dicotomias traçado pelo método bachelardiano, a profundidade do
poema torna-se um evento ponderável e compreensível – na dinâmica do imaginário –
enquanto derivante da divergência dualista que se funda entre os fenômenos da ressonância
e da repercussão. Além do mais, a análise minuciosa do instante de profunda comoção
poética, ao qual Bachelard acede por intermédio da polaridade analítica que instaura como
tensão entre dois eventos da sensibilidade, vistos acima, lhe permite – como se poderá ver –
ascender a um ulterior nível de investigação, a saber, à análise estética no contexto de
ontologia; pois, em seu repercutir emotivo, a imagem do poeta penetra em profundidade a
emoção do leitor que a faz, portanto, sua, permitindo que se enraíze em sua interioridade,
onde a arte do poeta dará frutos, provocando “o despertar da criação poética na alma do
leitor” (BACHELARD, 1994c, p.7).
Neste processo, em estado de íntima simbiose, a imagem passa a exprimir a alma
mesma do leitor que nela identifica valências afetivas que lhe são próprias, tornando-se,
pois, aquilo que a imagem exprime: “A imagem poética é, ao mesmo tempo, um devir de
expressão e um devir de nosso ser. A expressão cria o ser” (1994c, p.7).
Outro aspecto fundamental à metodologia por oposições que estamos se está
demonstrando nos escritos do filósofo, é a polêmica. Neste sentido, Bachelard (1994c) tece
diversas oposições aos críticos literários, os quais – pelo princípio mesmo de sua atividade
– ao evidenciar uma perspectiva de análise objetiva “sufocam a repercussão, recusam a
profundidade, de onde o fenômeno poético primitivo toma impulso e ponto de partida”
(1994c, p.7). Ele estende esta mesma polêmica aos psicólogos que “ensurdecidos pelas
ressonâncias, desejam descrever sentimentos” (p.7), como também aos psicanalistas que
perdem a repercussão, preocupados com suas interpretações” (p.7). Assim, os
representantes das três categorias: críticos, psicólogos e psicanalistas, todos preocupados
em compreender as imagens, as traduzem, e – ao trair o logos poético – confirmam a
95
Em A Poética do devaneio, Bachelard funda o dinamismo poético do amor andrógino, ao propor o devaneio
à quatro polos, que se dá na projeção idealizante entre Anima e Animus. Trata-se, em suma, desta mesma
estrutura de dupla dicotomia, na qual o amante – ser duplo em si mesmo, pois constituído por Anima e
Animus, idealiza o amado, projetando um ser ideal, que por sua vez também será um duplo de Anima e
Animus, o que, como vimos, leva Bachelard a dizer: “Quando estou só, somos em quatro”.
237

equação italiana: “traduttore traditore” (BACHELARD, 1994c, p.8). Nota-se assim que o
estudo fenomenológico do devaneio poético, valendo-se do instrumento da repercussão das
imagens, manifesta e confirma seu “valor de origem” (1994c, p.8).
Por um lado, propicia a ousada análise bachelardiana a fundação de uma inédita
abordagem da literatura, segundo os moldes de uma ontologia do poético; e, por outro lado,
sem temer ambiguidades – ou melhor, usando-as mesmo como instrumento de pesquisa –
torna-se vetor de uma categorização, também inédita, da novidade semântica instaurada no
psiquismo pela imagem poética, como fundamento da criatividade do ser falante, que
promove, em tal modo, a consciência à condição de origem de novos significados
imaginários.
Outra oposição polar, cujo efeito pedagógico convém ressaltar, instaura a dicotomia
entre o leitor feliz – autêntico fenomenólogo da leitura – que adere total e intimamente ao
encanto das imagens, que lê e relê, sabendo que lhe dizem respeito, e os rigorosos críticos
literários – que tudo sabem e tudo julgam – a propósito dos quais, Bachelard cunha a
paradoxal inversão: “Às avessas do complexo, fazem um simplexo (simplexe) de
superioridade.” (BACHELARD, 1994c, p.9). Ao defender a imagem como acontecimento
psíquico, ele nos alerta também para o novo status da poesia, enquanto fenômeno de
consciência, de uma consciência potencializada em sua sensibilidade lírica, que o autor
qualifica como “iluminada” (1994c, p.9), rejeitando, portanto, o ponto de vista habitual da
crítica literária, que tende à qualificação dos devaneios imaginários como uma forma de
criatividade irracional, proveniente das forças obscuras que povoam o inconsciente.
De modo que, mesmo quando não se refere diretamente a oposições, dicotomias e
polaridades, nota-se em suas demonstrações a força velada de raciocínios
fundamentalmente construídos no eixo de tensão que conecta dualidades, adquirindo, pois,
de imediato, maior evidência e clareza, derivadas naturalmente do embate com
configurações contrárias àquilo que se pretende afirmar.
Em tal modo, a força dinâmica de transformação do verso, que se renova seguindo o
fluxo perene de movimento da imaginação, torna-se objeto de apreensão imediata ao ser
confrontada com as “razões de fixação e forças de centralização” (1994c, p.11)
reivindicadas, ao contrário pela linguagem conceitual. Tal dialética permanente – como
mola de evolução da produção literária e poética – permite que a individualidade do leitor
238

possa reconhecer-se naquilo que lê, mais um fato significativamente paradoxal, que
Bachelard exprime no estupor da constatação de que a imagem poética manifesta sempre
aspectos da totalidade da alma do leitor: “O sujeito falante encontra-se inteiramente na
imagem poética [...], pois, se não se entregar sem reservas, não penetra o espaço poético da
imaginação” (BACHELARD, 1994c, p.11)96.
Na criatividade da imaginação poética, a consciência adquire – através das
surpreendentes configurações de imagens – uma “linguagem nova” (1994c, p.12), feita de
rupturas, oposições e divergências com tudo que lhe é habitual no cotidiano. A consciência
rompe não só com a causalidade do passado, mas também com significados e experiências
do presente, para ingressar no domínio da “sublimação absoluta” (p.12) – que nada sublima
– ao consentir que a imagem permaneça em seu próprio domínio, sem referência a
significados provenientes de âmbitos estranhos àquele da imagem mesma, ou seja, sem
adicionar ou referir a imagem a conteúdos que lhe sejam externos.
Bachelard defende em tal propósito a necessidade de um método de leitura estética
da obra de arte que saiba distinguir entre os dois tipos de sublimação. A saber, aquela usada
na psicanálise que, ao contrário, atribui às imagens valências decorrentes de um juízo
racional; e a sublimação propriamente denominada absoluta, praticada pelos leitores
fenomenólogos, que gozam da imagem mesma, que se expande, repercutindo unicamente
nos valores do ser que lhe é próprio. Tal ruptura com significações exteriores – decorrente
da tutela da imagem em seu estado originário de sublimação absoluta – adquire importância
decisiva para o desabrochar de potencialidades inéditas do poema; sem ela, Bachelard
acredita impossível que a poesia revele sua “exata polaridade” (1994c, p.14)97.
Imagens são inesperadas, surpreendentes e imprevisíveis, por que não buscam
antecedentes que as expliquem, mas são, ao contrário, tomadas – fenomenologicamente –

96
Na mesma ocasião, Bachelard cita o fenomenólogo holandês VAN DEN BERG, J.H. (1914-2012), The
phenomenological approach in Psychology, que, a propósito do contato com as coisas do mundo, propiciado
pela linguagem poética, afirma outro paradoxo: Vivemos constantemente uma solução de problemas que não
tem esperanças de solução para a reflexão (BACHELARD, 1994c, p. 11). O fenômeno poético situa a
individualidade no eixo de seu próprio mundo, feito de relações, paisagens e coisas. A poesia vivenciada em
profundidade nos coloca, pois, em contato com o universo. As coisas nos falam, diz Bachelard (idem).
97
Como de costume, o autor não determina o significado desta polaridade do poético, à qual se refere,
entretanto, considerando que no trecho em questão ele discorre sobre poesia pura, lida em estado de
repercussão poética, e não segundo suas ressonâncias na exterioridade – que abriria o devaneio à mistura da
comoção poética com as paixões da vida – pode-se entender a polarização poética como eixo fundamental na
consideração da autenticidade ou originalidade da imaginação literária.
239

pelo que são em seu próprio ser, ou seja, em sua pura repercussão. Para o autor, trata-se de
“viver o invivido, abrir-se a uma aventura da linguagem” (BACHELARD, 1994c, p.13). A
imprevisibilidade das imagens é o que mais surpreende na poesia, razão principal da
ruptura com o raciocínio lógico e linear de críticos e psicanalistas, cujas causas “não
permitem predizer a imagem literária em sua novidade” (1994c, p.13). Por conseguinte, a
poesia autêntica – aquela que promove nossa libertação – se dá, unicamente, como produto
de “criação absoluta” (p.13). A raridade desta forma nobre de poesia, ao contrário,
frequentemente “misturada a paixões” (p. 14), oferece oportunidade para mais uma
demonstração da pedagogia bachelardiana por inversões. Ele diz: Mas aqui, a raridade e
exceção não confirma, mas contradiz a regra e instaura regime novo (p.14).
Tratando-se de Bachelard (1994c), a novidade da linguagem não poderia senão
derivar da contradição de regras. Confirmando a necessidade que defendera, de não levar-se
a sério e de zombar de si mesmo, após tantas oposições metodológicas, o autor afirma, sem
dúvida com sarcasmo: “Digo em sentido polêmico, embora a polêmica quase não esteja
presente em nossos hábitos” (p.14).
A ruptura fenomenológica com o passado, que permite o livre fluxo da novidade
estética e intelectual, manifesta-se ao olhar bachelardiano na consideração da pintura como
arte autônoma, que supera todo o conhecimento específico de uma época – sobre história e
técnicas da arte – para experimentar novos pontos de partida, que solicitam ao artista a
coragem de um certo “esquecimento do saber, um não saber” (BACHELARD, 1994c,
p.15), posto em prática como técnica de superação do velho conhecimento. Em tal modo, a
nova obra faz-se efetivamente, criação de um início absoluto, livre das técnicas e mesmo da
cultura estética do passado.
Raros artistas alcançaram este vértice da pintura, fundando movimentos e estilos,
que logo se tornam parâmetros para a sensibilidade pictórica, aplicada ao surgimento de
novas tradições no mundo das artes, partindo idealmente de uma ruptura com a prática de
sua época. O mesmo dinamismo de abertura e evolução que instaura tais fluxus de rejeição
ou superação da cultura de determinados períodos determina na arte poética o jogo de
imagens que brilham como “superação de todo dado da sensibilidade (BACHELARD,
1994c, p.15), confirmando assim o não saber como condição da criatividade literária.
240

Para raptar o espírito do leitor, o devaneio ínsito no poema deve transpor o


panorama da cotidianidade, deve fundar uma realidade outra, sobre a qual nada sabemos.
Um território do qual nada se conhece. Campo de tensão estética, na pura oposição
dicotômica entre o evidente e o enigmático, entre o hábito familiar e o estupor do
desconhecido. Essas são as raízes do imaginário lírico que se traduzem em sonhos de uma
alma que mergulha profundo na novidade da imagem. Vê-se, portanto, a ambivalência do
antagonismo bipolar, princípio de toda contradição, chamada aqui para ocupar posição de
prestígio nos quadros da filosofia estética bachelardiana, como condição primária de
possibilidade do evento poético fundamental, a saber, da comoção que se instaura como
gozo do devaneio. “A obra toma tal relevo acima da vida que a vida não a explica mais”,
afirma Bachelard (1994c, p.15), sugerindo o choque com surpresas e imprevistos da arte
como razão de excitação da consciência sensível.
O mesmo movimento de superação da vida real e concreta – movimento em si
dialético, enquanto fundado sobre divergência e oposição – serve como perspectiva para a
demonstração da terapia baseada na ritmoanálise, a saber, no dinamismo psíquico
engendrado pelo estímulo de imagens poéticas que tecem real e irreal, como relativa
polarização de funções psíquicas, como dinamismo fundamental para a fruição do “lucro
psíquico da poesia” (p.17), simbolizados na harmonia interior e no bem-estar que são
proporcionados pela dinamogenia, que atua na base da criatividade do imaginário. Mais
uma vez, a dualidade de parâmetros torna-se eixo demonstrativo das teses bachelardianas.
Neste caso, a riqueza expressiva da função do irreal contribui a evidenciar como, no ato
poético, as condições reais deixam de ser determinantes. Na perspectiva do imaginário, a
imagem literária é vista, pois, como ato psíquico que engaja todo o ser:

A imaginação, em suas ações vivas, nos desliga do passado e da realidade, aponta


o futuro. Com a poesia, a imaginação se coloca na margem onde, precisamente, a
função do irreal vem seduzir ou inquietar – sempre despertando – o ser
adormecido em seus automatismos (BACHELARD, 1994c, p.16/17).

Em A poética do espaço (1957), volta-se a encontrar a mesma dinâmica


demonstrativa fundada sobre argumentos bipolares e dicotomizados, para apresentar os
espaços da intimidade doméstica, segundo o prisma de uma dialética do grande e do
pequeno, da miniatura e da imensidão. Nesta ocasião, Bachelard (1994c) contorna a
possível objeção ao seu pensamento – enquanto antitético – ao afirmar a recíproca oposição
241

de dimensões como cenário interior e não como dado objetivo: “São dois polos de uma
projeção de imagens [...]. Trata-se de uma participação intima no movimento da imagem
[...] a impressão da imensidão está em nós, não está ligada necessariamente a um objeto”
(p. 20).
Seguindo intuições junguianas, Bachelard (1994c) esboça uma topografia do ser
íntimo sobre o traçado da casa, cuja imagem - em seus recantos e refúgios - oferece a
estrutura de análise da alma humana. Para ele, “nossa alma é uma moradia”
(BACHELARD, 1994c, p.19). A poética da casa enriquece aspectos empíricos das
residências ao considerá-los na perspectiva dos valores humanos que, ao se integrarem a
eles, ajudam a sonhá-los. Em tal modo, gavetas, cofres e armários tornam-se “refúgios
efêmeros ou abrigos ocasionais” (1994c, p.19). Ao mesmo tempo em que a residência serve
como dilatação da experiência intimista de quem ali reside, um devaneio protetivo “nos
sugere cantos onde gostaríamos de nos encolher [...]. Só mora com intensidade aquele que
já soube encolher-se” (p.19). Logo, pode-se notar que uma certa dialética do interno e do
externo, do aberto e fechado, dirige o jogo entre exterioridade e intimidade, numa dinâmica
de contrários que funda a tensão semântica essencial à defesa do ponto de vista do filósofo.
Repulsão ou rejeição e atração são termos contrários que, porém, aplicados à imagem da
casa, “não resultam em experiências contrárias” (p.19), afirma Bachelard (1993a),
propondo – como sempre – perspectivas de contrariedade como estímulo à compreensão da
realidade que estuda.
Em A poética do devaneio, de 1960 – que representa a efetiva coroação da
fenomenologia como principal modalidade de abordagem do imaginário poético –
Bachelard (1993a) refere-se, com clara intenção polêmica98, à insustentabilidade de um
método rigoroso, puramente lógico, como instrumento de análise de certos domínios –
como no caso da imaginação literária – nos quais se verifica certo contágio entre
consciência e apelos inconscientes, como cerne mesmo da criatividade estética. Parte-se já,
portanto, da delimitação de um campo de pesquisa essencialmente híbrido ou, como se
poderia dizer, hermafrodita, enquanto fruto de uma coexistência de aspectos contrastantes e
heterodoxos. Nota-se, em tal modo, que a ambiguidade ou ambivalência instaura-se no
98
Bachelard escolhe como epígrafe a citação de Jules Laforgue que já encontramos nesta tese: “Método,
método, que queres de mim? Bem sabes que comi do fruto do inconsciente” (LAFORGUE apud
BACHELARD, 1993a, p.1).
242

momento mesmo em que o autor anuncia o novo objeto de sua pesquisa. Disso depende e a
isso se vincula, seja o dinamismo, seja a evolução de seu universo polarizado na
complementaridade de episteme e devaneio.
Na obra em questão, a metodologia fenomenológica distingue-se decididamente
como uma tomada de consciência, vista essa também em seu aspecto de duplicidade, pois,
se por um lado, representa a possibilidade de comunicação imediata com a consciência
criadora do poeta, por outro lado, esta prise de conscience das imagens volta-se também
sobre a individualidade do leitor, que é conduzido ao movimento instintivo de retorno sobre
sua própria intimidade. Uma dupla consciência de maravilhamento, anuncia Bachelard
(1993a, p.1), que formula outra distinção de complementaridade, ao opor, por um lado uma
consciência de racionalidade, consciência “encadeada na cadeia de Verdades” (1993a, p.1)
e, por outro lado, uma livre e autônoma consciência imaginante.
Dicotomias polarizadoras servem sempre como distinção esclarecedora do campo
de indagação, como no caso do duplo paradoxo que ele formula em seguida, referindo-se à
inversão de uma dúvida recíproca – porém às avessas – que coliga o leitor ao
fenomenólogo, ambos questionando-se sobre a plausibilidade da integração de um método
fenomenológico às imagens literárias. O primeiro interlocutor ideal, não compreende bem
por que “sobrecarregar um livro de devaneios poéticos com questões filosóficas do método
fenomenológico?” (BACHELARD,1993a, p.2) enquanto na mente do segundo, a questão se
põe nos seguintes termos: “por que escolher matéria tão fluida como as imagens para expor
princípios fenomenológicos? (1993a, p.2).
Trançando enigmas e supostas contradições, Bachelard (1993a) prossegue na
enunciação de suas reflexões. A bem ver, concorda-se com o filósofo ao se acreditar que
nada possui maior força demonstrativa do que provocar o embate de uma tese com o seu
contraditório99. Bachelard propõe a prova dos nove de tal procedimento teórico, partindo
igualmente de uma oposição dualista que, no caso, confronta a figura do filósofo –
fenomenólogo – àquela do psicólogo que “descreve o que observa, mede e classifica”
(1993a, p.2):

99
Na história da filosofia, tal técnica demonstrativa desfrutou de grande prestígio, notadamente durante o
período de reflexão metafísica medieval, quando era conhecida como demonstração por absurdo, ou seja,
confiava-se a demonstração da validade de uma proposta ao evidente absurdo do raciocínio que a ela se
opunha.
243

Mas pode um filósofo tornar-se psicólogo? Contentar-se com a observação e


verificação dos fatos, quando já entrou no reino dos valores? Filósofo leu tantos
livros de filosofia! Com o pretexto de estudá-los, de ensiná-los, deformou tantos
“sistemas” de pensamento... (BACHELARD, 1993a, p.2).

Valendo-se desta mesma força demonstrativa que se manifesta no momento em que


ideias contrárias se confrontam numa demonstração, Bachelard (1993a) encontra na
abordagem fenomenológica o modo perfeito de consideração das imagens sempre em
estado de ruptura com alguma precedente configuração da imaginação. A apreensão das
imagens em seu ser mesmo valoriza o sentido de originalidade, acenando, portanto, à
novidade que nela se encerra. Assim, enquanto novo ser da linguagem, cada nova imagem
literária supera e rompe com o precedente estado de uma língua, no sentido de uma abertura
do imaginário ao porvir da linguagem. Nota-se assim que mesmo a questão da novidade de
consciência que se instaura com a imagem, a bem ver, serve para acentuar um permanente
estatuto de oposição e polaridade que determina, no estilo bachelardiano, todo dinamismo
de evolução seja do imaginário poético, seja da racionalidade científica.
Além disto, pode-se ver também persistir a polêmica contra a ideia de pura
objetividade – no campo imagético da poética – instrumento com o qual Bachelard defende
uma fenomenologia da participação criativa do sujeito no ato mesmo de seu devaneio,
revestindo o leitor com o status de fenomenólogo da leitura. Diante do encantamento pelas
conjeturas do imaginário, no instante de tensão entre a criatividade expressa pela imagem
nova e a realidade deixada para trás, o fenomenólogo supera, naturalmente – quase por
instinto criador – qualquer vício prévio de passividade, no ato mesmo em que toma
consciência da mutação dialética, ocasionada pelo lirismo do poema. Mutação bipolar que
transforma radicalmente seja a interioridade do leitor, seja a exterioridade do mundo,
enquanto paisagem na qual decorre a comoção que prova. Sob o prisma da oposição entre
participação e passividade subjetivas, na citação que segue, vê-se Bachelard, mais uma vez,
usufruir do embate entre polaridades dicotômicas como dinâmica esclarecedora de um
aspecto fundamental concernente à tematização da fenomenologia como instrumento de
análise poética, a saber, a intencionalidade e a abertura de consciência que se verificam em
ocasião do evento poético:
244

A fenomenologia não é uma descrição empírica dos fenômenos. Descrever empiricamente


seria subserviência ao objeto, que criaria uma lei de manutenção do sujeito em estado de
passividade [...] o fenomenólogo deve intervir [...] no eixo da intencionalidade. Ah! Que
esta imagem que acaba de me ser dada possa ser minha, verdadeiramente minha, que possa
tornar-se – ápice do orgulho de leitor – minha obra! E qual gloria de leitura se pudesse,
ajudado pelo poeta, viver a intencionalidade poética! É através da intencionalidade da
imaginação poética que a alma do poeta encontra a abertura de consciência de toda
verdadeira poesia (BACHELARD, 1993a, p.4).

Na apresentação do devaneio de leitura, voltam em cena também as figuras


ambíguas e ambivalentes do paradoxo e da antítese, chamadas em questão pelo autor com a
contumaz ponta de orgulho do Bachelard (1993a) ledor de livros, emérito inovador dos
habituais parâmetros da crítica literária, orgulho de um leitor sui generis que inova sem
deixar de lado a intenção normativa de esclarecer sua visada teórica, que realiza, entretanto,
através do caminho tortuoso da complexificação do panorama no qual se desenvolve sua
atividade crítica. Este seria o mesmo trajeto que segue o progresso do conhecimento,
manifestado em seu desdobrar-se, no âmbito das duas vertentes bachelardianas.
Neste sentido – ou seja, complexificando sua investigação – Bachelard (1993a)
anuncia mais um paradoxo radical a propósito de seus livros sobre devaneios poéticos, que
reside essencialmente no fato que, ao considerar o ato de devaneio como um “fenômeno da
distenção ou descontração (détente) psíquica” (p.4), simultaneamente lhe é atribuído o
significado de fuga do real, fuga ocasionada pela mesma dispersão da consciência, que
deveria expressar sua mais refinada criatividade. Logo, eis aqui o paradoxo: “Quando se
devaneia, não é hora de se fazer fenomenologia” (p. 4), que representa a principal atividade
teórica exercida pelo autor em seus escritos sobre o imaginário. No que concerne à antítese,
anunciada neste estudo, esta descreve o hiato ou ruptura localizado nos confins entre a
abordagem do devaneio, segundo moldes psicológicos e racionalizadores, ou ao contrário,
segundo moldes fenomenológicos e participativos.
Como era de se esperar, Bachelard (1993a) não manifesta intenção de apaziguar a
divergência. Ao contrário, afirma claramente o desejo de acentuar o contraste antitético,
derivando seu estudo da tese filosófica que assim defende:

Para nós, toda tomada de consciência é um crescimento de consciência, um


aumento de luz, um reforço de coerência psíquica [...]. Existe crescimento do ser
em toda tomada de consciência. A consciência é contemporânea de um devir
psíquico vigoroso, um devir que propaga seu vigor em todo o psiquismo. A
consciência em si mesma é um ato, o ato humano. É um ato vivo, um ato pleno
245

[...], na linguagem poética a consciência imaginante cria e vive a imagem poética


(BACHELARD, 1993a, p.5).

Ao que parece, defendendo a tese filosófica da tomada de consciência como devir


que acresce a riqueza semântica do ser, Bachelard (1993a) confirma sua postura de
oposição, evidenciando, em última análise, uma estratégia demonstrativa que prevê
momentos de objeção, assumidos no próprio discurso. Tais momentos de negação, ao
serem subsumidos no processo demonstrativo, obtêm, como resultado final, o propósito de
reforçar a clareza e o vigor do raciocínio que se afirma. Assim acontece com a tese
filosófica bachelardiana da tomada de consciência poética, cujo corolário aumenta,
segundo o autor, a dificuldade mesma do problema, apresentado nos seguintes termos: “Sob
que ângulo estudar o devaneio, seguindo lições da fenomenologia?” (1993a, p.5); já que, ao
perder-se em devaneios, a consciência adormeceria, dispersando, por conseguinte, a
conotação intencional que a define como tal.
A solução da contradição – formulada como elemento constituinte da investigação,
vale dizer, com propósito demonstrativo – além de restaurar a clareza do raciocínio,
adquire, pois, mais força e vigor pelo fato mesmo de ter infligido a derrota ao seu
contraditório, vencido pela força expressiva do adjetivo poético que, ao determinar o
devaneio – foco da investigação – como cerne mesmo da poesia, confirma sua aptidão à
abordagem fenomenológica, enquanto estado de consciência sim, porém sui generis;
referido como “devaneio que se escreve” (BACHELARD, 1993a, p.5) como consciência
poética – e, portanto, sonhadora e fantástica – mas dinamizada no poema através da
linguagem, pela palavra escrita ou declamada.
A inextinguível polêmica com o ponto de vista da psicologia clássica, que reduz o
devaneio ao simples abandono à fantasia, serve – em modo antitético – como base para a
valorização fenomenológica do devaneio como “princípio de excitação do devir psíquico
individual” (1993a, p.7). Em tal modo, a imaginação transforma-se em manifestação da
“imprudência que nos afasta das estabilidade” (p.7). A força poética do imaginário resulta
revigorada toda vez que se apresenta uma ocasião de confrontação e embate entre os dois
polos de tensão que dominam, pois, a discussão sobre a constituição do evento poético, seja
nos moldes tradicionais da psicologia do devaneio – que focaliza a história pessoal e
subjetiva – seja na ótica de abertura proposta pela “fenomenologia das imagens criadoras”
(p.11) – que prioriza o teor de inovação, derivado das experimentações linguísticas
246

encenadas no universo sonhado pelo poema, que segundo Bachelard (1993a, p.10), deve
sempre ser tomado como originário “ímpeto de devir humano”:

Devaneios poéticos são hipóteses de vida que alargam nossas vidas, dando-nos
confiança no universo: 1 mundo se forma no nosso devaneio: o nosso mundo.
Mundo sonhado que nos ensina possibilidades de engrandecimento de nosso ser
(BACHELARD, 1993a, p. 7-8).

Em sua crítica ao psicologismo estético, Bachelard (1993a) rejeita a análise bipolar


construída, a seu ver, sobre a redução do inteiro âmbito da questão à oposição entre
pensamento claro e sonho noturno, como se os dois polos exaurissem o campo do
psiquismo humano, condenando o devaneio ao adormecimento e ao torpor inconsciente do
sonho noturno. Sua renovação da atividade de crítica literária, contrariamente, desvia a
atenção intelectual à consideração do devaneio diurno, do devaneio consciente, segundo a
modalidade de consciência que se viu anteriormente aqui, mais aberta e abrangente do que
a mera racionalidade. Assim, mesmo, opondo-se à polaridade defendida pela psicologia,
uma modalidade de divergência polar continua dominando o campo de investigação da
poética.
A oposição de sonho e devaneio, na qual se joga a originalidade do pensamento
estético bachelardiano, se resolve fenomenologicamente, através da intervenção da
consciência da beleza do mundo no momento em que o sonhador noturno “reencontra
esplendores do dia” (BACHELARD, 1993a, p.11), retomando possesso da consciência.
Bachelard define (1993a) o devaneio como ilustração de um repouso do ser, de um bem-
estar individual e profundo e cita de L’homme qui rit, de Victor Hugo: “os momentos
inefáveis em que sentimos em nós alguma coisa que adormece e alguma coisa que
desperta” (1993a, p.11). Estado ambíguo e ambivalente de confins, no qual parecem
misturar-se esquecimento e vigilância, entrega e controle. Na verdade, o devaneio poético
configura uma abertura, em estado de repouso, ao mundo da felicidade interior. Na abertura
da consciência ao encanto de uma realidade – tanto fantástica quanto desejada – o sonhador
do sonho desperto participa “da constituição de um mundo que tenho por objetivo” (p.12).
Prosseguindo nas temáticas derivadas do mecanismo poético de criação de mundos
imaginários, por obra da fenomenologia da imaginação criadora, retorna-se a uma
perspectiva dualista que, por sua vez, se verá desdobrar-se em duas oposições distintas. “A
primeira, entre eu e não eu; a segunda, entre real e irreal” (BACHELARD, 1993a, p.12).
247

Por um lado, o devaneio poético, ao constituir uma nova configuração de mundo - como
panorama para a vivência por parte do leitor de sua total e irrestrita felicidade de leitura -
simultaneamente, lhe oferece também a possibilidade de imaginar para si mesmo uma nova
identidade, coerente à experimentação da nova realidade que acaba de criar-se.
Em tal modo, através da interiorização maniqueísta de novas conotações de
personalidade, o leitor se renova na imaginação de um novo eu, fruto da metamorfose
poética que o fará alcançar seu ideal de felicidade. Um não eu que se torna todo seu, no
processo de dinamogenia que dirige a manifestação de imagens no curso de sua leitura. E,
por outro lado, este mesmo dinamismo que nutre a imaginação do leitor – abrindo-lhe as
portas para a percepção de configurações que são, essencialmente, irreais – finalmente, o
torna livre da necessidade de submeter-se à função do real, fazendo dele um “testemunho
de uma normal e útil função do irreal que protege o psiquismo da brutalidade de um não eu
(mundo) hostil, de um não eu estranho (1993a, p.12).
Opondo-se radicalmente ao costume psicológico de reduzir o devaneio à mera
evasão da realidade, Bachelard insiste no papel fundamental da consciência na dinâmica da
comoção que faz vibrar o leitor de poemas. O fato que defenda a existência e a pertinência
de uma poética do devaneio denota – em suas palavras – a força de coerência da qual
usufrui o leitor que saiba formular e cultivar valores poéticos. “A poesia constitui ao
mesmo tempo o sonhador e seu mundo”, afirma Bachelard (1993a, p.14), distinguindo
especificamente as forças atuantes no sonho noturno, daquelas que constituem o devaneio
da consciência poética, quase a propor metáforas de desintegração e de coesão como seus
relativos referenciais de significação: “Enquanto sonho noturno, pode desorganizar uma
alma, propagar durante o dia as loucuras experimentadas durante a noite, o bom devaneio
ajuda a alma a gozar do seu repouso, a gozar de uma unidade fácil” (p.14).
Ademais, Bachelard (1993a) propõe como meta poética – como objetivo de sua
explanação poética – o estímulo, ou quiçá a realização, de uma utópica inversão:
estimulando a manifestação de uma consciência de poeta, na sensibilidade dos
fenomenólogos da leitura, ele pretende educar-nos em direção à superação de uma fácil
“expressão poética, guiando-nos ao desenvolvimento de uma autêntica consciência de
criador” (p.15). Como sempre, confia o esclarecimento de seus propósitos intelectuais ao
ambíguo jogo de inversão dos termos da demonstração.
248

Com a mesma predileção pelas artimanhas da impermanência – contrariando o


pensamento racional em sua busca milenar por um fundamento absoluto – Bachelard
(1993a) descreve os transtornos criativos aos quais se submete o sonhador de palavras que
vive constantemente as subversões semânticas que brotam, espontaneamente, por obra do
psiquismo devaneante, quando uma palavra interrompe a leitura:

[...] as sílabas da palavra se agitam. Os acentos tônicos se invertem. A palavra


abandona seu sentido, como sobrecarga pesada demais que impede de sonhar. As
palavras assumem então outros significados, como se tivessem o direito de serem
jovens (BACHELARD, 1993a, p.15).

Em tal modo, o fenomenólogo da palavra escrita acata o desafio de devanear o


devaneio, assumindo para si todos os conflitos e riscos que incumbem os devaneios
internos, que acometem a palavra poética. Por tal tangente, ou seja, seguindo a grande
abertura a ininterruptas mutações semânticas, que manifesta o valor imaginário da palavra
poética – totalmente oposto à precisão racional e ao rigor referencial unívoco dos termos
epistemológicos – percebe-se o alcance da dicotomia e dualidade de estilos que deve
desenvolver o escritor que se ocupe, alternadamente, em compor livros poéticos e
científicos. O devaneio sacode e choca o estatuto habitual da linguagem cotidiana,
provocando a erupção de novos estatutos de significação das palavras, despertadas desta
maneira, de sua condição anterior, descrita como “inércia dos fósseis de significações”
(1993a, p.16).
Como visto no capítulo anterior, o tema da dualidade íntima do psiquismo humano,
sob o signo junguiano de Animus e Anima, também contribuem para o fortalecimento do
dinamismo de mutações polares que, além de engendrar, por um lado, contínuas
integrações e discordâncias entre as valências masculinas e femininas de nossas
individualidades, por outro lado, promove o que Bachelard (1993a) chama de “bifurcação”,
em ocasião de jogos poéticos de troca dos gêneros das palavras.
Desta maneira, pelos meandros de antinomias e ambiguidades, o uso frequente das
figuras de inversão e oposição serve como instrumento de aprofundamento da análise dos
parâmetros instáveis da criatividade, no domínio do imaginário literário, instaurando, pois,
em modo definitivo, a divergência como princípio de criação estética. “Todo esquematismo
arrisca mutilar a realidade, mas ajuda a fixar perspectivas”, afirma Bachelard (1993a, p.17),
249

ao propor uma noção de imaginário que beira o hermafroditismo da androginia enquanto,


em modo ambivalente, integra e divide gêneros no eixo polar de sua atividade, entre o
devaneio (la rêverie), que se desdobra em regime de Anima e o sonho noturno que pertence
ao Animus. Neste caso, a bipolaridade dos gêneros serve a delinear a distinção entre os dois
estados complementares do psiquismo sonhador, enfatizando a essência feminina do
devaneio enquanto repouso da alma.
Ao examinar recordações de infância, no ambiente atemporal da casa natal,
Bachelard (1993a) também utiliza o instrumento metodológico de uma distinção polar que
termina por inverter seus próprios termos. Trata-se da difícil distinção entre imaginação e
memória, duas vertentes de um devaneio complexo que, surpreendentemente, integra
sonhos da memória e lembranças do devaneio, referindo-se à infância não somente como
evento do passado, ao contrário, a poetização da casa natal permite o acesso a uma
“infância que dura a vida inteira [...]. Ela anima a vida adulta [...]. Uma criança vem velar
nosso sono” (1993a, p.18). Híbrido de infância e maturidade, o devaneio poético da
moradia originária possibilita o reencontro atual com a criança que fomos e que permanece
como realidade paralela indelével durante toda a vida adulta. Basta um poema para trazê-la
à tona, através de uma “consciência de raiz” (p.19), viva em sua atualidade.
Sofisticando o dispositivo explicativo da inversão, a consideração da atividade de
leitura como específica dimensão que o imaginário poético assume no psiquismo moderno,
sustenta-se sobre a noção de “transposição” (BACHELARD, 1993a, p.22), que esclarece o
procedimento com o qual o autor supera a transitoriedade da experiência temporal e da
palavra declamada, traduzindo conteúdos afetivos em forma de escrita literária que
permanece, conservando a atualidade de vivências poetizadas ao logo do tempo que
escorre. “Em tal modo, visto que o autor não diria aquilo que escreve (p.22), a escritura, ao
tomar a forma final de um livro, torna-se um documento simultâneo de uma realidade do
virtual e de uma virtualidade do real” (p.22), afirma mais uma das inversões teóricas de
Bachelard.
Além disto, a consciência estética com a qual o leitor participa das emoções e dos
estados de afetividade interior narrados – vivenciando-os profundamente, sempre, porém,
como narração e não como experiência direta e pessoal – prospecta, segundo Bachelard
(1993a), a ideia de uma cisão destes dois planos do psiquismo, fusão de polaridades que
250

termina por afirmar a liberdade do leitor, acima da comoção emotiva derivada da leitura.
“Nisso a poesia, ápice da alegria estética, é benéfica (p.22). Conclui o filósofo que,
intensificando o benefício proporcionado ao leitor pela aventura literária das páginas
escritas, formula a bela imagem do paraíso celeste como uma imensa biblioteca.

3.3 A temporalidade dialética

Em verdade, o que parece cada vez mais definir a abordagem científica e estética de
Bachelard é seu esforço permanente em instaurar condições para abertura e mutação no
domínio do trabalho de criatividade intelectual, seja através de conceitos, seja através de
imagens. Por tal razão, antes de tratar a questão da dialeticidade do tempo, abordam-se –
como seu prolegômeno – algumas temáticas específicas como, por exemplo, a posição
fundamental ocupada pela imaginação inventiva na reformulação do saber, tema que traz
consigo a necessidade de se considerar, com atenção, a renovação de postura à qual o novo
dinamismo da mente convoca, seja o sujeito estético – diante da ruptura de esquemas
teóricos do pensamento criativo – seja o cientista ou epistemólogo – diante da criatividade
do pensamento matemático, eixo lógico de evolução da nova epistemologia. Ambos se
confrontam com o movimento de abertura da consciência que dinamiza as regras de sua
atividade de raciocínio e de imaginação. Movimento decretado vigorosamente pela
dinâmica polisignificação da obra bachelardiana.
100
Portanto, como bem demonstra Marlize Rego (2006, 2012) ., em seus estudos
sobre o filósofo da ruptura, a dinâmica das formas de pensamento, que realizam a potência
inventiva da imaginação, apontam para a necessidade de um processo contínuo de invenção
de novos significados e de novas realidades. Logo, enquanto produtora de novas
possibilidades, a imaginação assume o papel de principal responsável pela renovação
artística e científica, rejeitando a noção positivista e realista da realidade como coisa única,
determinada e estática, que teria na arte a sua reprodução, e na ciência, a sua descrição.

100
REGO, M., palestras inéditas: O ato criador na epistemologia de Gaston Bachelard, Simposio Gaston Bachelard:
Razão e Imaginação; BULCÃO, M.(Org.) UERJ, 2006; Filosofia do não: perspectivas do racionalismo contemporâneo –
III. Coloquio Gaston Bachelard, Mestre na arte de criar, pensar, viver. Catarina Sant’Anna (org.). UFBA – Salvador,
2012.
251

Assim, a noção de ruptura traduz o direcionamento do pensamento a novas perspectivas


que surgem sempre do contato direto com a alteridade ou com a negatividade. Nesse caso,
cita-se a retificação com a qual se superam erros e obstáculos, resignificados na invenção
de novas ideias – como produção de novas formas de racionalidade – a partir da atividade
permanente do pensamento dialético de expansão lógica de suas próprias configurações
anteriores.
Aliás, o movimento dialético de reformulação do pensamento traduz exatamente a
atividade do “raciocínio indutor que, segundo Bachelard, é capaz de inventar o real e de
pensar fenômenos inéditos” (REGO, 2006).
Com a nova ciência de elementos e cálculos infinitesimais, a noção de substância
cede lugar àquela de relação, mutabilidade e fugacidade dos conceitos. Com a citação a
seguir, Rego (2006) faz notar que o objeto da teoria da relatividade e da física quântica não
é coisificado, não se submete, portanto – como dito neste estudo – às leis estáticas e
substanciais do realismo:

Ora, a ciência contemporânea pretende conhecer fenômenos e não coisas. Ela não é de
modo algum coisista. A coisa não é mais do que um fenômeno parado [...] já não se pode,
como outrora, conceber os objetos naturalmente em repouso – como coisas – e procurar
em que condições eles podem mover-se [...]. O objeto estabilizável, o objeto imóvel, a
coisa em repouso formavam o domínio de verificação da lógica aristotélica. Perante o
pensamento humano, apresentam-se agora outros objetos que, esses sim, não são
estabilizáveis, que não teriam, em repouso, nenhuma propriedade e, consequentemente,
nenhuma definição conceitual [...]. (BACHELARD, 2009, p. 97-98).

O jogo de contradições e ambiguidades serve para instaurar, em meio às leis do


raciocínio, a suspeita sobre novas possíveis logicidades. Como visto no primeiro capítulo, a
física do micro objeto “dialetiza o princípio da identidade, ou seja, o objeto deixa de ser
idêntico a si mesmo. Aquilo que é, devém, se transforma. Os princípios de identidade e da
não contradição perdem sua força. O ser mesmo perde hegemonia (REGO, 2006).
Assim, Bachelard (1994a) dedica-se à invenção de uma outra lógica, que permite o
acesso à cientificidade contemporânea.

Os nossos hábitos de lógica aristotélica estão de tal forma enraizados que não
sabemos trabalhar nesta penumbra conceptual que reúne o corpuscular e o
ondulatório, o pontual e o infinito. É, no entanto, nesta penumbra que os
conceitos se difratam, que eles interferem, que eles se deformam [...]
(BACHELARD, 1994a, p.99).
252

Em O racionalismo aplicado (1949), Bachelard (1998) propõe um novo vetor


filosófico para a ciência, que parte da inversão de termos, indo do racionalismo para o
empirismo, ou seja, do pensamento à realidade. Logo, a experimentação é substituída pela
previsão matemática. O pensamento matemático exprime, então, essa nova racionalidade
inventiva e não estática. Neste sentido, o próprio surgimento das geometrias não
euclidianas, ao mesmo tempo em que aponta para a mutabilidade da matemática, reflete
também sua capacidade de abertura à conceituação de novos fenômenos científicos, pois,
“pensar o real, na contemporaneidade, significa construí-lo matematicamente (REGO,
2012). Deve-se pôr em evidencia o jogo dialético que fundou o não euclidianismo, jogo que
volta a abrir o racionalismo, a afastar esta psicologia de uma razão fechada, encerrada sobre
axiomas imutáveis. “O pensamento matemático é um programa de experiências a realizar”
(BACHELARD, 1991a, p.25).
A propósito da ciência, ao relembrar o primeiro capítulo desta tese, nota-se que as
novas teorias demonstravam uma outra norma de procedimento da ciência, em oposição ao
antigo conhecimento epistemológico, instaurando o surgimento de uma irremediável
ruptura entre a norma newtoniana e as mecânicas relativista e quântica:

Bachelard afirma que não é possível, a partir das novidades conceituais apresentadas pelas
novas teorias científicas no início do século XX, tais como as geometrias não euclidianas,
as teorias da relatividade e da física quântica, tratar os objetos da realidade de mesma
forma. Ele critica fortemente os princípios da lógica clássica e as inferências
metodológicas cartesianas, considerados, segundo ele, como insuficientes para explicar o
comportamento dos elementos infinitesimais. Esses princípios - identidade, contradição,
terceiro excluído - assim como a evidência e a adequação, previstas pelo método
cartesiano, apesar de estarem consonantes com a física newtoniana, e de descrever com
precisão os fenômenos do mundo das certezas e da comunicação, não sustentam o
funcionamento dessa nova realidade proposta pela microfísica. (REGO, 2012)

Por outro lado, no domínio das artes figurativas e da literatura, nota-se que a
superação bachelardiana da crítica estética – que se viu fundar-se sobre a novidade
psicanalítica – opondo-se à redução do ato criador aos traumas do artista – “redução da flor
ao estrume”, diz Bachelard (1994c. p.12) – instaura, da mesma forma, uma insuperável
ruptura de parâmetros com todo o panorama da crítica estética de sua época que, segundo
ele, pecava ao reduzir o originário impulso de criatividade aos conceitos da mente, à pura
racionalidade do espírito, apesar do encantamento recíproco que vigorou entre psicanálise e
surrealismo. Entretanto, ocorre notar, o aspecto psicanalítico que mais atraiu os surrealistas
foi o realce no qual a nova doutrina da alma apresentava o universo inconsciente, a saber, o
253

oposto exato de uma redução analítica aos conceitos da mente. Surgia assim, com
Bachelard, uma nova posição do sujeito diante da obra de arte, como convite à fruição
enquanto experiência interior, como estímulo ao gozo estético daqueles que sabem deixar-
se comover em profundidade diante da criação expressa em poemas, pinturas ou esculturas.
Em tal modo, se verá convergir a reflexão de dois especialistas bachelardianos – Felício e
Wunenburger – no ponto exato onde se encontra em jogo a evolução mesma de nossa
investigação, a saber, a afirmação do caráter de dinamismo que, reunindo ciência e poesia,
reveste toda obra bachelardiana.
No arco de nossa pesquisa, observa-se que sem uma decisiva ruptura com a linearidade e
regularidade exigidas pelo pensamento lógico analítico, se dificultaria a compreensão do raciocínio
de Bachelard. Toda sua obra encontra-se impregnada por duplos sentidos e significações veladas.
No fluxo de mutação, segundo o qual evolui seu pensamento, viu-se com frequência um mesmo
termo assumir sentidos ambíguos e mesmo contraditórios. Comfrontou-se, então, com a necessidade
de assumir um procedimento de leitura e investigação mais livre e aberto a tais flutuações
semânticas, guiado pela claridade da evidência à qual o discurso bachelardiano, em si mesmo,
sempre reconduz.
A mesma urgência de superação dos rigorosos parâmetros lógicos, vigentes no
domínio da ratio tradicional, que foi visto erguer-se com força teórica no domínio da
racionalidade científica, manifesta-se também, em modo ainda mais evidente, na
perspectiva do imaginário. Em sua filosofia da negação, Bachelard demonstrou que os
princípios clássicos da inteligibilidade do ser – identidade, não contradição e terceiro
excluído – não são absolutos. O espírito deve, portanto, retomar sua fundamental função de
mutação como condição da possibilidade de pensar-se a contemporaneidade; conditio sine
qua non. Excluindo tal urgência de dinamismo da mente humana, o formalismo linear do
pensamento tradicional teria conduzido toda evolução ao impasse.
Este estudo foi assim conduzido a um conceito-chave para a compreensão de toda
produção bachelardiana; aliás, deve-se referir não à singularidade de um único conceito,
mas a um grupo de noções que traduzem, todas, a ideia fundamental do movimento. Parece
mesmo que o segredo da metodologia por ambiguidades, que se busca evidenciar, encontra-
se sob o influxo da ideia de movimento. A rejeição bachelardiana à noção de absoluto –
como origem de imobilismo letárgico – pode ter direcionado o autor à aceitação
incondicional do destino de devir e transcendência do ser, sendo também causa do pulular
254

em seus textos de noções como: dinamismo, evolução, transformação, transmutação,


abertura, renovação, superação, etc., todos em direta relação com a ideia de movimento.
Portanto, como dito, nisso repousa o segredo do desenvolvimento da metodologia
de negações e contradições, com a qual se trabalhou, já que ambiguidades paradoxais,
inversões e polaridades, dinamizam o saber, movimentando o inteiro domínio do
conhecimento, enquanto impedem o repouso nas noções do passado, pressionando o
intelecto e a imaginação em direção às novidades que brotam da permanente renovação de
conceitos e imagens. Todas as imagens materiais primordiais são dinâmicas e ativas. Todas
representam o dinamismo qual lei fundamental do progresso do pensamento. Para o
filósofo, o mobilismo heraclitéio – bem representado no devaneio aquático, que
nescorrendo como água, leva a vida alhures – representa a configuração de uma filosofia
concreta e totalizante que, nas páginas de L’eau et les rêves (1997), soam como segue:

[...] em sua profundidade, o ser humano tem o destino da água que corre. A água
é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o
fogo e a terra. O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto.
Incessantemente, alguma coisa de sua substância desmorona. [...] A morte
cotidiana é a morte da água [...]. (BACHELARD, 1997, pp.8-9)

Será defendida, portanto, a ligação dialética entre os dois grupos de termos: aqueles
que descrevem a negação como mola da metodologia das contradições e aqueles que
afirmam o movimento como chave da dinâmica evolutiva que rege, seja o pensamento, seja
a realidade. No elemento aquático, tal dinamismo de oposições se manifesta claramente:
“Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite. Para
sonhar o poder necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade”. De novo, se
nota não só a estrutura polar, por inversão, da frase – a gota cria e dissolve, gota como
inusitado símbolo de poder – como se vê, também, que se trata de uma polaridade
paradoxal que, alcançando o efeito desejado de dinamização das imagens do elemento
aquático, traduz em poema, um impulso vital inesgotável.
Felício (1994), no estudo já citado, identifica na poética e na epistemologia
bachelardianas a atuação de um método negativo – essencialmente dinâmico e, portanto
dialético – que se opõe ao formalismo estático do pensamento tradicional:
255

Tanto no trabalho da ciência para romper os obstáculos, e que vive das tensões, como na
poética, onde as ambivalências das imagens são ressaltadas, a “dialética dinâmica” é a
base comum da compreensão do papel do imaginário. O cientista deve remanejar seus
conhecimentos, questionando as origens absolutas como falsos pontos de partida; e o poeta
deve propor novos mundos a partir do dinamismo e da abertura da imaginação. Apesar da
diversidade, poética e epistemologia se complementam graças a uma raiz comum: a
“dialética dinâmica” (FELICIO, 1994, p.XII).

Em tal modo, a estudiosa indica em Bachelard a substituição “da identidade estática


do cogito, por uma filosofia aberta” (FELÍCIO, 1994, p.9). Tal noção de abertura – que se
viu ser fundamental na filosofia bachelardiana – a seu ver, seria a causa principal de uma
“dialetização dos princípios” (p.10), da qual a autora traz duas consequências. Por um lado,
a dinâmica de abertura serve como oposição ao “imobilismo abstrato” (p.9) do empirismo e
do racionalismo, considerados dois extremos estáticos. Por outro lado, o dinamismo de seu
procedimento teórico reveste a epistemologia de Bachelard com características de uma
filosofia pluralística que aparece “dispersa ou distribuída” (p.10), tornando o pensamento
científico, um “método de dispersão bem ordenada” (p.10). Acreditamos, porém, que a
caracterização feliciana de “pluralismo disperso” seja adequada para descrever toda
filosofia de Bachelard, e não só sua epistemologia, o que vale como anotação e não como
objeção, pois se sabe que sua reflexão exclui a separação inexorável entre ciência e poesia:

Na meditação bachelardiana, o ponto a ser privilegiado é aquele em que os eixos da poesia


e da ciência se compreendem complementarmente em seu “dinamismo contraditório”.
Compreende-se, pois, que sintaxes da razão não passam de formalizações extremas de uma
retórica ligada ao consenso imaginário geral. O racionalismo não é senão uma “estrutura
polarizante” particular do campo das imagens, ligadas às funções simbólicas do imaginário
que não é mais relegado à pré história do pensamento, um resíduo do pensamento
adequado (FELÍCIO, 1994, pp.114-15).

O segundo polo de convergência crítica sobre o dinamismo bachelardiano refere-se


ao pensamento de Wunenburger (2003), que indica como principal contribuição de
Bachelard, no rastro da epistemologia e da psicanálise, a substituição da “abordagem
estática e formal” (2003, p.29) da filosofia clássica do conhecimento – preocupada em
classificar os “elementos da representação” e as características do conceito e da imagem,
“como tipos de representação canonicamente definidos” – “por uma concepção
“dinamogênica” das atividades intelectuais” (2003, p.29):

Com ele, os processos dinâmicos do sujeito que conhece tornar-se-ão mais essenciais que
as propriedades de representação do objeto. A potência de conhecimento ou de sonho de
nossas representações provêm menos das características internas das ideias ou imagens do
que de uma energia intelectual do sujeito, de um tônus psíquico. A criação de imagens na
256

poesia, como a invenção conceitual na ciência, põem em jogo forças cuja intensidade e
orientação são os fatores essenciais de nosso trabalho intelectual (WUNENBURGER,
2003, p. 29).

O estudioso decreta, portanto, o fim da avaliação de representações unicamente


segundo o critério da adequação à coisa representada. Doravante, serão avaliadas –
“também e sobretudo – segundo o critério da tensão dinâmica do sujeito”
(WUNENBURGER, 2003, p. 30), que enriquece ou empobrece o dado imediato dos
conceitos e imagens. Toca-se, assim, com base nas conquistas teóricas desse ilustre
bachelardiano, um ponto fundamental para a hipótese que está sendo desenvolvida, vale
dizer, a centralidade da dialética no pensamento de Bachelard, que vem a completar sua
renúncia dos “quadros clássicos do pensamento analítico” (2003, p.30). “O termo
“dialética” torna-se quase o emblema de toda filosofia do conhecimento bachelardiana, na
medida em que rediscute, através de todas suas conotações, a primazia da identidade, da
simplicidade, da estabilidade” (p. 30).
Wunenburger (2003) relaciona a centralidade da dialética no pensamento de
Bachelard à sua “vontade de fundar um novo racionalismo, móbil, aberto, complexo”
(p.30), restaurando a potência criativa da imaginação, rejeitada desde o final do romantismo
alemão. Além disso, mais do que a possibilidade de engendrar pensamentos complexos,
através da oposição de contrários - o que já contribuiria bastante com nossa hipótese -
aquilo que mais seduz Bachelard, segundo Wunenburger, é a atividade dialética enquanto
“estado de espírito”, enquanto “escola de pensamento, preocupada com mediações,
complementaridades e trocas mútuas” (p.31). Assim, a seu ver, pensamento dialético
significa renuncia à “especulação passiva sobre as formas”, pois, rejeita o imediato, sob
suspeita de “recobrir uma falsa identidade ou uma falsa simplicidade” (p.31). E concluímos
o breve, mas fundamental, excurso feliciano e wunenburgiano, reconhecendo que: a razão
científica como o devaneio poético definem-se pelo movimento de deformação de seus
conteúdos primários (WUNENBURGER, 2003, p. 31). Sabemos bem que Bachelard
aponta a potência de deformação e renuncia ao imediato, como principal recurso expressivo
e semântico de conceitos e imagens, sugerindo uma abertura à variedade de significados
múltiplos, à garantia não mais do cogito mas do cogitamus, à uma conceitualização mais
aberta e sobretudo mais livre. Afinal: “(...) Espírito e coração, se reconciliam, completando-
se” (BACHELARD, 1992a, p. 57). Ou seja, ele nos ensina a conviver com a ambigüidade e
257

mostra que rupturas e contradições são oportunidades para que novos saberes superem
velhas ilusões.

É necessário abandonar pré conceitos, deixar de lado posturas tradicionais e


buscar nos textos bachelardianos a originalidade polifilosófica de seu
pensamento, no qual posturas consideradas antes, como contrárias e excludentes,
deixam de ser, então, antagônicas (...) Assim, dialética significa recusa do
absoluto, relativização da razão que mostra todo saber como relativo(BULCÃO,
2009, p.64).

Marly Bulcão defende, em Bachelard, a noção de racionalismo como confluência de


ideias opostas, ao identificar os três diferentes sentidos nos quais o autor se refere à
atividade de renovação do saber que é a dialética, ou seja, ele fala em dialética como
diálogo, como cooperação entre polos opostos, e como negação. Em nenhum desses três
significados, Bulcão identifica rígida oposição de termos contraditórios. Para ela, o que
existe ali é “complementariedade, conservação e envolvimento de ideias” (2009, p. 203).
Ainda a esse respeito, nota-se que o uso bachelardiano do termo dialética implica polêmica
com sua tradicional significação101, a saber, tal uso do termo polemiza as noções platônica e
hegeliana de dialética:

(Ao significado tradicional do termo dialética) Bachelard opõe dialética como polêmica
antifilosófica, isto é, como “prática científica” que afirma a existência dos objetos da
ciência e procede por reorganizações totais do saber, sempre prontas para uma nova
fragmentação. O conhecimento é “produção histórica”, enquanto movimento de
totalização e fragmentação sucessivas. A dialética é um movimento recorrente que consiste
em colocar em evidência o sentido que o desenvolvimento ulterior da ciência confere a
uma doutrina anterior, sentido que só emerge a posteriori. Sendo uma dialética recorrente,
o presente dá sentido ao passado, permitindo revivê-lo de maneira transformada e
realizada. Logo, dialética significa: determinação das recorrências inscritas na história da
ciência, ad infinitum, porque a polêmica não se esgota nunca. A dialética é recorrente e
aberta e assim a filosofia da ciência física é a única que se aplica determinando uma
ultrapassagem de seus princípios, isto é, “se ela raciocina, é preciso experimentar; se ela
experimenta, é preciso compreender” (BACHELARD apud FELÍCIO, 1994, P.9). Por isso,
Para Bachelard, ela é a única filosofia aberta (FELÍCIO, 1994, pp.8-9).

101
FELÍCIO, 1994, p.8: “A dialética de Gaston Bachelard é diferente das dialéticas platônica e hegeliana. Em Platão,
dialética equivale à ciência do Bem ou do Uno, ela absorve as demais ciências e surge contra certas concepções dos
sofistas. A dialética como ciência universal é o conhecimento dos elementos de todos os seres. Único método capaz de
revelar o Bem, pois busca penetrar a natureza, a essência de cada coisa. Enquanto as demais artes estão sujeitas às
opiniões, a dialética dá a razão da essência de cada coisa (Platão, A República - Livro VII). Para Hegel, dialética significa
contradição e movimento imanente da negação determinada, movimento reflexionante da consciência rumo ao espírito (in
Fenomenologia do espírito.) e do ser, rumo à ideia (in Ciência da lógica). A contradição é o processo de autoprodução
das determinações que instauram os momentos superados e conservados do particular no seio do universal. Em Platão, a
alternância do Mesmo e do Outro terminam na ideia do Bem, princípio de todas as formas. Em Hegel, a contradição
encontra seu término no Saber Absoluto”.
258

Será então sob o prisma dialético102 de um movimento recorrente, que, em sua


natureza semântica anuncia um estado de desenvolvimento ulterior, capaz de conferir
sentidos novos ao instante anterior, que se refletirá sobre os dois eixos essenciais à noção
de temporalidade instantânea – um tempo constituído por seus instantes – que, em oposição
a duratio animae bergsoniana, Bachelard deriva da reflexão de seu amigo, acadêmico
dijonês, Gaston Roupnel, sobre a mítica Siloe, fonte de juventude espiritual. A unidade
fundamental e positiva do tempo reúne-se, em cada um de seus instantes, à negatividade
que determina seus confins entre o nada de sua anterioridade passada e o nada de sua
posteridade futura. Logo, como ápice de oposições103, o tempo determina-se, então, no eixo
duplo da simultaneidade – em cuja complexidade convive toda diversidade – e da
verticalidade.
A concepção tradicional do tempo como continuidade, com Bachelard, cede lugar à
temporalidade do instante como complexo de simultaneidades instauradas na verticalidade
do poema. A poesia, como “metafísica instantânea” que “num curto poema, transmite uma
visão do universo e o segredo de uma alma” (BACHELARD, 1992a, p.103), é princípio de
simultaneidade que confere unidade ao ser, ao concentrar no átimo de um instante, a
dialética de sentimentos contrários e simultâneos que caracterizam a vida humana. No
tempo do instante, experimentam-se alegrias e sofrimentos. Em tal modo, Bachelard teoriza
a convergência totalizadora de experiências, que constitui em si o instante poético, tomando
essa unidade de fragmentação temporal como definição do tempo tout court, que ademais
se revela como verticalidade, distinguindo-se, pois, essencialmente, do “tempo comum que
foge horizontalmente com a água do rio, com o vento que passa” (BACHELARD, 1992a,
p,104). Surge daí o paradoxo de um tempo que, enquanto prosa da vida comum, é linear,
contínuo e horizontal; e enquanto tempo poético, é vertical. Em seu regime de absoluta
simultaneidade, o instante é pura verticalidade, como eixo de profundidades e alturas.

102
Neste mesmo sentido, Lescure ressalta a dialeticidade do poema, que renega seu próprio sentido e resiste ao próprio
significado como estratégia para escogitar sempre significações inéditas. “O poema é sempre renascente, sempre secreto e
evidente. Segundo o poeta, aos olhos do autor, um livro de outra época pode ser retomado ou renegado. O escritor, no
fluxo de instantes, avançou e, ao reconsiderar seu escrito, percebe significações que, ele mesmo, não concebera. Ademais,
ao escrever um novo livro, sua percepção do precedente muda. Donde resulta que a conduta de vida é o que, enfim,
restitui um significado inédito às primeiras intuições” (LESCURE, J. Introdução à poética de Gaston Bachelard, 1965).
103
Sem poder desenvolver a questão a fundo, colhe-se de qualquer modo a oportunidade de ressaltar aqui outra sintonia
com a reflexão nietzscheana sobre o sentido profundo do trágico, como embate de forças que se reunindo e se
dissociando, incessantemente, configuram e devastam a totalidade do real.
259

O instante poético é complexo, ele comove e consola. Essencialmente, o instante poético é


uma relação harmônica de dois contrários, de razão e de paixão. Antíteses agradam aos
poetas, mas para o encantamento e o êxtase, antíteses devem se contrair em ambivalência.
Aí surge o instante poético como consciência de uma ambivalência excitada e dinâmica.
Na relação entre antítese e ambivalência, o poeta vive num instante os dois termos de suas
antíteses. Invés do tempo masculino e valente que se lança e rompe amarras, invés do
tempo doce e submisso que se lamenta e chora, eis aqui o instante andrógino. O mistério
poético é uma androginia (BACHELARD, 1992a, pp.104-5)

Portanto, somente sob o prisma da dualidade que caracteriza o instante como


verticalidade e simultaneidade, torna-se possível pensar o mesmo como ordenação de um
pluralismo de eventos contraditórios. Temporalidade instantânea é uma ordem
autossincrônica do ser, que recusa a horizontalidade como característica de um tempo que
lhe é estranho, enquanto representa o devir dos outros, das coisas, da vida. Logo, no
instante, a única referência do ser é aquela que o coliga ao centro de si mesmo. Assim, “de
repente a horizontalidade se cancela. O tempo não escorre mais, esguicha” (BACHELARD,
1992a, p.106).
Na verticalidade do instante poético reina a ambivalência de estados contrários,
polos ambivalentes, vivenciados na simultaneidade em que se apresentam; na qual,
facilmente, substituem-se uns aos outros. “Nas trevas, o poeta vê melhor sua própria luz,
diz Bachelard (1992a, p.107). “O tempo vertical, com flutuação de dois momentos
antitéticos, demonstra a reversibilidade do ser, cujo sorriso se lamenta e cujo lamento sorri”
(1992a, p.108). O tempo horizontal de contínuas sucessões, sem rupturas e quebras, não
teria meios para expressar tanta ambiguidade de estados da alma. Só verticalmente,
podemos experimentar essa aposição simultânea. Somente no momento em que sentimos
erguer-se nossa alma.
Na verdade, o instante poético é a afirmação positiva daquilo de nos resulta
ambíguo na coexistência de experiências contraditórias, domínio onde se torna possível
encontrar: “no lamento sorridente a beleza formal da infelicidade”, sugere Bachelard (1992
a, p.108). O instante instaura, assim, a perspectiva de uma dialética de ambivalências
pessoais104.

104
BACHELARD (1992 a, p.109) apud Baudelaire (Mon couer mis à nu): “quando criança, senti no meu coração dois
sentimentos contraditórios: horror e êxtase pela vida”.
260

O ser abandona a duração comum, no ímpeto dessas experiências instantâneas de


sentimentos opostos, porém simultâneos. A sucessão temporal não pode traduzir a
simultaneidade na qual experimentamos tal ambivalência. Contrários tão vivos e
fundamentais, como alegria e tristeza só surgem numa metafísica imediata, cuja oscilação,
vivemos num só instante, através de êxtases e quedas, nos momentos de oposição com os
eventos: o nojo pela vida vem nos pegar tão fatalmente no gozo, quanto o orgulho na
infelicidade. Ambivalência fundamental (BACHELARD, 1992a, p.109)

Fragmentando a continuidade temporal, este ideal de verticalidade é a expressão


perfeita da ambivalência de sentimentos que parece nutrir o dinamismo poético,
permitindo-lhe paradoxalmente evocar: “a unidade de noite e luz como instantes imóveis
[...] negros e claros, felizes e tristes” (BACHELARD, 1992a, p.110). Na verticalidade
temporal do instante, em si mesmo estático, a poesia alcança seu dinamismo. Para
compreender tais ligações instantâneas, Bachelard adverte que o filósofo deve deixar-se
guiar pelo poeta, que sabe viver em estado de ambiguidade, contradições simultâneas,
suprimindo as divisões e dualidades que a filosofia institui entre sujeito e objeto, entre
consciência e realidade: “O poeta anima uma dialética mais sutil. Revela ao mesmo tempo,
no mesmo instante, a solidariedade entre a ruptura e a dissolução das formas”.
(BACHELARD, 1992a, p.111).
O que parece interessante notar é que Bachelard, concomitantemente à noção de
tempo fragmentado em instantes, apresenta a noção roupneliana de uma redenção do ser
através da arte, ideia que se viu adquirir relevo fundamental em sua metafísica cósmica.
Advertindo o leitor sobre o “lote de pesadas contradições” (1992a, p.100) com as quais
formula seu comentário sobre a Siloe, o filósofo confirma a visão de Roupnel, que situa a
raiz de sua ideia de uma “redenção contemplativa do ser” (p.100) na aceitação das
contradições íntimas da vida, o que ajuda a compreender a existência do: “nada absoluto
nas duas bordas do instante” (BACHELARD, 1992a, p.99).
Em grande sintonia com sua própria elaboração teórica da questão das artes, em
termos de mergulho na interioridade, em busca da comoção íntima que resignifica todo
estímulo estético, Bachelard ressalta no pensamento de Roupnel, a centralidade que assume
a intuição estética, enquanto ocasião de escuta da voz interior da consciência. Este intenso
estado de clarividência íntima é a fonte de recursos que possibilita a afirmação de que: “O
ser tem em si mesmo os meios para suas retomadas” (BACHELARD, 1992a, p.97). O
argumento servirá para introduzir a noção de temporalidade instantânea como uma série de
recomeços e retomadas da alma.
261

A bem ver, a questão da retomada de si constitui clara afirmação de um pré-


requisito ao instante vivenciado como experiência impermanente de sínteses sentimentais
dos contrários, como no exemplo citado pelo autor, dos arrependimentos e esperanças que
funcionam, ademais, como confirmação daquilo que se verá tornar-se a convicção de base
para todo o pensamento bachelardiano sobre estética, a saber, a afirmação que qualifica
fracassos e derrotas como momento negativo no percurso de afirmação pessoal, como crise
anterior à retomada. Através da consciência e da razão, tudo pode recomeçar. Cada instante
é em si mesmo um recomeço confiante na potência de fundar coerência entre ideias
contrárias, ínsita na intimidade do coração humano.
Portanto, ao confrontar-se com o tema da dialética do ser na duração, Bachelard
tomará em exame o enigma de retomadas com o qual o espírito mesmo, “contrariando e
colidindo com a vida, faz refluir o tempo sobre si mesmo, para suscitar renovações e
retornos do ser a condições iniciais” (BACHELARD, 1972a, p.VI). Sobretudo, em seu
exercício frequente de meditação através da leitura, o autor percebe que ao esvaziar o
tempo vivido, os próprios fenômenos temporais assumem uma espécie de nova
classificação, segundo diferentes planos de ocorrência no psiquismo. Essa nova
organização temporal de eventos demonstra, por si só, a existência de uma pluralidade de
modos de duração. Ou seja, rompendo a univocidade do fluxo de acontecimentos, ele insere
rupturas no sincronismo do antigo pensamento “tudo escorre e o tempo foge que coligava o
escorrimento das coisas à fuga abstrata do tempo” (BACHELARD, 1972a, p.VI). Logo, do
equívoco brota a nova percepção que possibilitaria a reforma dialética da temporalidade:
"os fenômenos não duram todos do mesmo jeito (...) a concepção de um tempo único,
levando sem volta nossa alma com as coisas, respondia somente a uma visada geral que
resume mal a diversidade temporal dos fenômenos” (BACHELARD, 1972a, p.VII).
Devido à linguagem poética utilizada pelo autor na apresentação da dialeticidade
temporal, visando maior esclarecimento sobre a mesma, integra-se, nesse domínio, maior
frequência de reflexões extraídas diretamente do texto bachelardiano, como também
comentários de seu biógrafo Jean Lescure.
Nota-se assim que, da percepção dessa variedade de ritmos atribuíveis à diversidade
de fenômenos temporais, deriva a nova ideia de uma duração fervilhante de lacunas. A tese
da continuidade bergsoniana cede diante da afirmação de fraturas na duração; base para sua
262

reformulação em termos de dialética, pois, se se perceberem descontinuidades no ritmo de


acontecimentos do psiquismo: “A continuidade nunca está no plano tomado em exame. Por
exemplo, a continuidade de motivos intelectuais reside no plano dos instintos e interesses
(BACHELARD, DD, 1936, p.VII).
Em suma, a continuidade, segundo a qual se concatenam os eventos psíquico,s não é
um dado imediato, é uma obra de reconstrução, uma hipótese de permanência, uma
metáfora que tem por corolário a necessidade de: “fundar a complexidade da vida sobre
uma pluralidade de durações que não possuem nem o mesmo ritmo, nem a mesma solidez
de encadeamento, nem a mesma potência de continuidade (BACHELARD, 1972a, p.VIII).
Vê-se novamente o bachelardismo afastar-se do eixo de conceituações universais
que – na rejeição do particular – funda suas investigações sobre noções únicas e absolutas,
voltando o olhar em direção à busca por uma fundação das durações e permanências da
temporalidade em modo mais real, pois, como ocorre notar, trata-se de uma hipótese de
construção dialética da ideia de tempo que deve traduzir experiências de devir que são
pessoais. Nesta difícil tarefa, Bachelard admite uma dupla fonte de estímulos, ambas
concorrendo à caracterização da produção intelectual como aventura de individualização
concreta do pensamento. Por um lado, ele cita o trabalho do homem no campo como
doutrina viva, apreendida, passeando com o amigo Roupnel entre os vinhedos da
Borgonha: “os campos cultivados são figuras da duração, porque inscrevem o ritmo dos
esforços humanos no espaço, na tensão dialética de trabalho e repouso, de tempo e espaço.
A duração que escorre a fluxo contínuo e regular exprime mal essa dialética vivenciada
(BACHELARD, 1972a, p.VIII).
Por outro lado, constatando que: “Do passado só permanece e dura aquilo que tem
razões para recomeçar (BACHELARD,1972a, pag.VIII), percebe também a noção de
ritmo105 como essencial significado da sintonia de esforços rítmicos que se manifesta

105
Bachelard refere à importância decisiva da obra sobre Ritmanálise, do Prof. Pinheiro dos Santos, da Universidade do
Porto: Praticamos seções de ritmanálise [...] reencontramos serenidade e repouso em ritmos mais naturais e tranquilos,
vivendo essas diferenças temporais bem reguladas. O ritmo interior de retomadas ajuda a curar a alma sofredora com uma
vida e um pensamento rítmicos, liberando antes a alma das falsas permanências, das durações malfeitas, desorganizando-a
temporalmente [...], seguindo adiante com nossa filosofia da negatividade, dissociando o tecido temporal, delirando
ritmos malfeitos, pacificando ritmos forçados, excitando ritmos languidos, buscando sínteses do ser na sintonia do devir,
animando a vida com os timbres ligeiros da liberdade intelectual (BACHELARD, 1972a, p.X).
263

através da ideia de uma temporalidade capaz de descrever cada vida, segundo a cadência de
seu próprio fluir.
O tempo seria então a ritmicidade – ou sistema de instantes – segundo o qual, cada
vivência particular constitui sua permanência no fluxo inconstante do devir; quer dizer, o
ritmo é quem constrói a duração que, respeitando a instabilidade e insegurança da vida e do
pensamento, não devem ser nem muito uniformes, nem muito regulares. São fluxos
dialéticos de vivências singulares, que nascem e morrem em cada instante e, como a
imagem poética, para permanecerem, devem, cada vez, ser retomadas pelo pensamento.
Lescure (1965) afirma que cada instante tem sua claridade investida pela sombra
das potencialidades não vividas que contém: “O que existe do tempo nunca é nada além do
instante que vivemos. Mas, na complexidade do instante presente, podemos viver surpresa
e protesto, coisas passadas e futuras, reconhecimento e projeto” (LESCURE, 1965, in:
BACHELARD 1992a, p.119). Esse tempo interrompido manifesta uma insubstituível
presença: “A consciência que nasce no instante e nele vai morrer torna o passado
inteligível, de uma inteligência viva que excita novas rupturas em direção a novas
surpresas, à invenção de novas experiências. “O homem é só, desolado e abandonado de si
mesmo, isolado do próprio passado pelas margens do instante” (p.127). Esse tempo
esfarrapado representa o heterogêneo, “sem limites nem identidade abordável” (p.127). O
tempo estoura, esfacelando, em cada instante de irrupção do real, num vórtice de aparições
instantâneas, a rigorosa perspectiva de seu projeto. Em cada instante, viver e morrer. “O
homem é uma decisão” (LESCURE, 1965, p. 127).
Para seguir a imponderabilidade do instante, Lescure (1965) propõe então um
“método de leitura descontínuo” de Bachelard (LESCURE, 1965, p.133), “filósofo da
consciência noturna” (p.123) que em cada instante interrompe o curso do raciocínio e segue
verticalidades do instante” (p.133). Em tal modo, torna-se possível – destruindo e
reconstruindo a ordem de sua obra, lendo-a pelo avesso e pelo direito – revelar suas
perspectivas inesperadas. Ademais, esse seria o único tipo de leitura em sintonia com a
consideração da imagem como pura origem, como raiz de realidade e com a temporalidade
do instante como limiar que recomeça sempre, que incessantemente abandonamos e
reencontramos. A cada instante, o instante morre e renasce. A impermanência e
provisoriedade do ser no fluxo do devir seria então o pressuposto lógico do esfacelamento
264

do tempo em instantes, como também da sina humana de sermos “os seres da conversão e
da metamorfose” (p.127, p.141) e da função poética como arte de nos transformar, pois o
homem bachelardiano não é dado, ele se faz.
Seguindo as audaciosas inversões de Bachelard, o tempo instantâneo, em sua perene
possibilidade de recomeços ressalta nossa realidade como sequência ininterrupta de
surpreendentes novidades. “Cada instante é o que dá sentido à história insensata que
vivemos (p.146). “O homem é a vasta energia de sua transmutação. Essa é a sua liberdade”
(p.147). Somos a possibilidade de sermos o que não somos. “Existimos sempre no tempo
de um esguicho” (LESCURE, 1965, p. 148).
265

CONCLUSÃO

A racionalidade e o imaginário foram tratados por Bachelard separadamente porque


considerados como antagonistas. Entretanto, seriam estas duas vertentes da obra e do
homem, realmente, tão independentes e exclusivas? Não seria necessário buscar, a
despeito de uma leitura literal, a unidade profunda destas duas faces de seu pensamento,
que bem formam, como as duas vertentes de uma montanha, um conjunto único, mesmo se
voltadas em duas direções opostas? Tal unidade complexa, ou mesmo unidade de opostos,
que seria também uma harmonia das divergências (concordia discors), poderia encontrar-
se numa teoria geral da criatividade do espírito (razão e imaginação) [...]
(WUNENBURGER, 2011, p.247).

Achamos interessante na conclusão da tese retomar algumas ideias defendidas por


Jean-Jacques Wunenburger, na medida em que estas servem para corroborar o que o
trabalho veio demonstrando ao longo de seu desenvolvimento.
Como vimos, a tese focaliza a evidência com a qual se mostra nos textos
bachelardianos um novo modo de pensar que, tomando impulso na superação crítica do
espírito aristotélico cartesiano, articula em suas demonstrações “esquemas antagônicos” de
formalizações contraditórias e paradoxais que, por sua vez, fundam a possibilidade de uma
inédita inteligibilidade do sujeito e da realidade. “Uma nova lógica pode e deve ser
elaborada [...]. Assim multiplicam-se esboços de uma lógica paradoxal como alavanca para
a compreensão do Real. [...]. Precisamos pensar uma lógica que aceite as contradições, os
conflitos, as oposições”, afirma Wunenburger (1990, p.19). Trata-se de uma exigência da
contemporaneidade que esta tese demonstra ter sido aceita e realizada na obra de
Bachelard, aqui considerada como protótipo do novo regime de pensar a inteligibilidade da
diferença nos moldes de renovação da episteme contemporânea que ao invés de refutar
polaridades e rupturas, encontra aí mesmo, nas redes do antagonismo dualista, o fermento
propício à inovação do pensamento.

O pensamento de uma complexidade viva não pode contentar-se com um alargamento das
categorias do discurso. De modo mais profundo, acha-se posto em causa o próprio
fundamento lógico do pensamento [...]. Poder-se-á então esperar que a razão ponha em
causa as condições axiomáticas consagradas de sua operatividade ou, pelo menos, que ela
atenue, em certas condições, os seus procedimentos de formulação de enunciados, que ela
tenha em conta a violência que impõe às representações de certos fenômenos ou
acontecimentos, [...], não se poderia dar lugar a transgressões lógicas [...] numa
racionalidade plural, disseminatória, que se encontra perante a tarefa temível de fazer
vacilar por vezes os seus próprios princípios constituintes [...] (WUNENBURGER, 1990,
p.153).
266

A primeira conclusão que cabe ressaltar é a de que o novo procedimento intelectual


por ambiguidades aqui investigado – enquanto metodologia de análise da razão e da
imaginação – toma inusitada consistência pedagógica nas páginas de sua poética dos
elementos. Entretanto, ela aí se instaura como consequência da transformação nas leis do
pensamento, decorrente da revolução conceitual que se afirmara, in primis, em âmbito
epistemológico. Portanto, o estudo aqui elaborado, ao invés de separar vertentes, coloca-se
sob o prisma de uma abordagem do bachelardismo, a partir da ideia wunenburgiana
(WUNENBURGER, 1990, p.18 e 2011, p.52) de Unus Mundus ou unidade de fundo.
O trabalho procurou, assim, demonstrar que as situações neste apresentadas nas
quais Bachelard, valendo-se do contínuo confronto de polaridades e oposições, emprega a
divergência como nova modalidade de uma pedagogia reformada, aberta ao encontro da
diferença como alargamento do conhecimento, diante da renovação estética e científica
manifestada, seja nas descobertas científicas, seja nos movimentos da vanguarda artística
do início do século XX. Deve-se, então, ressaltar com toda segurança, a partir de nossa
perspectiva hermenêutica, que é possível afirmar delicadas correspondências entre as duas
vertentes, a partir das quais, desdobra-se uma chave interpretativa do uso metodológico de
oposições polares na obra de Bachelard. Esta tese – por intermédio das inúmeras
referências ao texto bachelardiano – defende, portanto, como sua hipótese primordial, a
demonstração desta função pedagógica da negação.
A tese nos levou à convicção que a investigação do bachelardismo sob o prisma da
possível configuração de uma nova metodologia filosófica fundada sobre inumeráveis
dinamismos da alteridade, exigia não tanto definições terminológicas ou esclarecimentos
sobre os procedimentos intelectuais adotados – postura de pesquisa que o próprio filósofo
enjeitou, abordando diretamente seus argumentos de estudo –. O que se impôs como tarefa
essencial à realização desta meta foi o levantamento do maior número possível de
indicações, a partir do texto mesmo bachelardiano.
Um levantamento das ocasiões de referência direta aos termos dos ambíguos
paradoxos e contradições, que por si só já traduzem a dinamogenia dialética, que se
pretendeu configurar como metodologia própria ao bachelardismo. Considerando as razões
expostas, eximiu-se também da necessidade de definir precisamente o significado lógico
dos termos referentes às duas listas com as quais se trabalhou - apresentadas na introdução
267

desta tese -. A saber, aqueles de uma primeira lista de termos da polaridade dicotômica e,
sucessivamente, aqueles de uma segunda lista - que surgiu com o andamento da pesquisa -
de termos do dinamismo de transformação permanente.
Mais uma vez, tomou-se como guia o próprio autor, que jamais se preocupou em
definir tais termos, utilizando-os segundo seu significado imediato. Portanto, apresentando
o capítulo conclusivo, faltaria somente a referência à indicação bachelardiana da
imprudência como método (1972c, p.11), preciosa sugestão, sobretudo devido à
necessidade de coligar os dois âmbitos de estudo, ciência e poesia, atribuindo à filosofia o
papel de elemento de ligação, sobre o qual foi depositada, portanto, a responsabilidade pela
indicação dos parâmetros comuns, capazes de caracterizar a novidade metodológica aqui
esboçada, como procedimento teórico com o qual o autor enfrenta o desafio inerente aos
dois domínios de sua obra.
Cabe, então, retomar o texto de Wunenburger (1990) para reforçar algumas
conclusões a que chegamos ao término desta tese.
O primeiro aspecto a ressaltar é a nova perspectiva intelectual de transbordamento
da univocidade racional clássica permite a compreensão de outros dois fatores
fundamentais a esta abordagem do pensamento bachelardiano, sob o prisma das oposições
dualistas. Por um lado, o mestre de Lyon ressalta a divergência de sentidos que assume a
noção de “diferenciação” (WUNENBURGER, 1990, pp.251-252), segundo os pontos de
vista opostos do pensamento dualista ou do pensamento identitário. Para ele, este segundo
modo de pensar “continua prisioneiro de um postulado de simplicidade e de
substancialidade das formas (grifo meu). Não consegue gerar um dinamismo fundador de
uma rotação das diferenças” (p.252). Enquanto o pensamento da dualidade “permite
compor conjuntamente homogêneo e heterogêneo, [...] de tal modo que eles se encontram
conjugados segundo maior solidariedade, mas também dispostos segundo a oposição mais
forte” (p. 252).
A nosso ver, tal distinção, mesmo se delicada, constitui fator essencial ao
desdobramento deste trabalho, pois, contrariamente à concepção identitária, a dualidade
atribui ao dado “uma tensão em profundidade, a uma conexão entre polos extremos”, que
veremos constituir o eixo do aspecto ontológico assumido pelo dinamismo bachelardiano,
que desvincula totalmente as ideias de natureza e devir dos conceitos de simplicidade e de
268

substancialidade. Por outro lado, Wunenburger desilude qualquer vã expectativa que a


dualidade – como novo regime de pensamento – possa exaurir o conhecimento do real:

Quaisquer que sejam os modos de abordagem (...), o pensamento acha sempre, diante de
si, um real rebelde, que se esquiva no momento mesmo em que nos aproximamos.
Qualquer ciência, mesmo pluralizada, descobre diante de si um dado que lhe escapa [...]
um excedente. Qualquer saber, simples ou complexo, não é mais que um olhar sobre o
mundo que nos engloba sem que possamos [...] compreendê-lo totalmente. (1990, p. 259).

A tese procurou demonstrar que a nova lógica da dualidade - em seus


procedimentos e categorias abstratas e informais - apresenta propriedades e eficácia que “só
surgem no termo de trajetos desconcertantes” (1990, p.253). Tal condição de sua
manifestação representa uma característica peculiar que esclarece, por si só, a capacidade
que possui o pensamento provocatório de Bachelard de assombrar ou surpreender mesmo
seus estudiosos mais experientes. Pode-se, também, concluir que o pensamento dualista,
apesar do antagonismo de bipolaridade - através do qual se desdobra - enquanto abordagem
da complexidade, não foge à objetivação da inteligibilidade que rege o procedimento de
toda linguagem compreensível. “A dualidade abre uma via nova que, segundo distinção de
Gaston Bachelard, se aparenta com um saber surreal. Ela tenta tornar as coisas inteligíveis
segundo correntes subterrâneas que circulam em profundidade” (1990, p. 255). Ao exercitar
plenamente seu característico dinamismo, a nova razão – em sua abertura à pluralidade –
fomenta a capacidade do saber de retificar a si mesmo, dando oportunidade à criação de
novas estratégias do intelecto:
A modernidade torna-se, pois, motivo para desocultar o real [...] pela
multiplicação de estratégias racionais. Aquilo que convém chamar de crise da
racionalidade contemporânea incita [...] a desenvolver uma sinergia das
linguagens, um ajustamento de sistemas de decifração do mundo. [...] cruzamento
recíproco dos instrumentos intelectuais. [...] Convém munir-se de grande numero
de chaves que permitam destravar as inúmeras fechaduras que abrem para o
labirinto do real (1990, p. 257).

Em tal modo, enumeram-se razões que justificam a retomada do texto


wunenburgiano sobre a razão contraditória, de 1990, na conclusão desta tese, na qual se
demonstra – no arco da filosofia bachelardiana – a função metodológica da dualidade, seja
como alargamento dos limites estreitos da razão clássica, seja como abertura destemida à
transmutação da subjetividade ocasionada pelo devaneio literário. Em tal modo, mostrou-se
como Bachelard inova os domínios da consciência racional e criativa, valendo-se do
antagonismo por bipolaridades como propulsor de renovação do discurso filosófico.
269

Impulsionado por sua extrema paixão pelas novidades expressas no âmbito da abertura
de consciência, Bachelard não hesitou em “confrontar-se com as revoluções científicas da
relatividade einsteiniana e da física quântica, dos anos 20” (WUNEMBURGER, 2011,
pp.9-10). Foi portanto, um dos primeiros filósofos a mergulhar na busca por compreensão
e, sucessivamente, na divulgação das “hipóteses surpreendentes da nova física matemática”
(2011, p.11). Iniciava assim sua duradoura tarefa de formulação de uma nova epistemologia
– coerente com o avanço da pesquisa microfísica – adequada à tradução das retificações
técnicas da ciência, em termos de inteligibilidade filosófica. Nesta missão - pela vertente de
sua expressão poética – Bachelard assume os riscos e incógnitas inerentes ao confronto
com a materialidade universal - no viés dos elementos primordiais - atribuindo
definitivamente o marco da bipolaridade antagônica à sua produção intelectual.

Uma das conclusões importantes a destacar no término da tese é que Bachelard reúne
vida e pensamento através deste seu exemplo pessoal da abertura de consciência que
erguera a princípio de sua nova epistemologia. Cede ao imaginário vislumbrado no
exercício de sua postura de expansão da racionalidade científica, dicotomizando a própria
consciência na polaridade - que conservaria até o final da vida – de alma e espírito,
devaneio e razão, imagem e conceito. Bachelard, em seu “trabalho de abertura e de
construção de conhecimentos” (2011, p.11), nos ensina, assim, a “pensar duplamente”
(2011, p.11).

G. Bachelard se revela assim, como uma figura paradoxal da filosofia contemporânea.


Exercendo a profissão de filósofo universitário, defende o conhecimento científico mais
exigente, como também, o onirismo mais subjetivo, sem jamais dobrar-se às questões
obrigatórias do academicismo filosófico. Promotor dos valores de universalidade da
racionalidade [...]. Fervente defensor da abstração, única a arrancar o homem da
ignorância e do preconceito (2011, p.15).

O “pensamento da mobilidade” com o qual Bachelard investiga a dinâmica interna de


produção de novos conceitos científicos, ao criar a noção de embate com frequentes
rupturas no fluxo de racionalidade, passa a funcionar como motor de auto retificação da
270

razão106. E, “com prazer transgressivo assumido” (2011, p.14), Bachelard, após cunhar
definitivamente a ideia de dinamismo da mente no domínio epistemológico:

[...] começa a explorar a linguagem do imaginário cosmológico, nutrido por


literatura surrealista, psicanálise freudiana e junguiana e, sucessivamente, de
fenomenologia, esta nova filosofia que reconduz à experiência ao coração vital da
consciência (2011, p.14) 107.

Mostrou-se portanto, nesta tese, como os devaneios da matéria – exercendo uma


permanente valorização da função de criatividade da imaginação – por um lado, desvela
polaridades do ser, e por outro lado – ao explorar o simbolismo ínsito nas forças cósmicas –
promove a criação permanente de “significados ambivalentes” (WUNENBURGER, 2011,
p.28) que, em sua abertura, mantém vivo o colóquio de espelhamento criativo entre
singularidades e universo.
A partir da consideração do imaginário cósmico como elemento de ligação na
polaridade que reúne indivíduo e universo, percebe-se que ambos são marcados pelo
dinamismo do devir em que se encontram, como situação originária essencialmente
ambígua e contraditória. Esta percepção conduz à assunção de um postulado do
pensamento que subjaz à filosofia de Bachelard, e que parece afirmar o dinamismo de
transformação como resultante da ambivalência de encontros entre polaridades divergentes.
O encontro entre diversos torna-se motor de configuração de novidades que traduz a
dicotomia como lei do psiquismo ativo. Todo esboço de mudança e transformação surge
inicialmente no domínio do devaneio poético, onde o psiquismo, continuamente, renova

106
«Na grande tradição dos inventores de paradoxos, Oscar Wilde (1854-1900) [...] apresentou o paradoxo como: «a
verdade da minoria, da mesma forma que o chavão é a verdade da maioria... Nós, seres comuns, podemos ver os objetos
apenas em tres dimensões». Quando ouvimos ou lemos um paradoxo, «ganhamos um saber que não tínhamos. Ficamos
mais sagazes e temos consciência disto. E esta é a unica forma válida de saber». Paradoxo em grego significa a expressão
de um ponto de vista contrário à opinião comumente aceita. Como um choque de visões contraditórias. O paradoxo revela
uma verdade básica: a natureza da ambivalência humana». (WILDE, O. Apud BECKSON, K., O melhor de Oscar Wilde.
coletânea de aforismos de Oscar Wilde; Rio de Janeiro: Garamond, 2003, pp.11-13). Beckson indica outros dois
momentos nos quais o esteta do dandismo inglês exprime seu conceito de verdade, extraordináriamente consoante com o
pensamento bachelardiano: «A via do paradoxo é o caminho da verdade. Para testar a realidade, precisamos vê-la na corda
bamba. Quando as verdades se tornam acrobatas, podemos julgá-las» (WILDE. O retrato de Dorian Gray; Apud
BECKSON, 2003, pp.11-13). «Em arte, verdade é aquilo cujo contrário também é verdadeiro» (WILDE, O. A verdade das
máscaras; ensaio, 1895, apud BECKSON,K., 2003, pp.11-13).
107
Relata-se esta citação pelo poder de síntese com o qual o Prof. Wunenburger, em poucas linhas, ao referir as principais
fontes de criação da filosofia estética de Bachelard, além de definir com rigor a função da fenomenologia no pensamento
do devaneio poético, defende também o aspecto fundamental – para a novidade do bachelardismo – da reflexão sobre os
movimentos de vanguarda que o inspiram.
271

suas imagens. “É pela imagem que se produz a mudança” (BACHELARD, 1994b, p.301).
Acreditar nas imagens é o segredo do dinamismo psíquico (1994b, p.297).
Cabe, então, retomar a noção antecipada na introdução deste trabalho, quando se
disse que na busca por antagonismos bipolares, encontrou-se o moto dinâmico, ambos
entrelaçados como núcleo de força da filosofia de Bachelard. Surgiu daí a questão das duas
listas de termos referentes à polarização e ao dinamismo, que esta tese afirmou como
principal vetor de expressão e evolução do pensamento bachelardiano. Portanto, como
tarefa conclusiva, convém agora analisar com atenção o modo no qual estas duas estruturas
de organização e de criação intelectual se afirmam como eixo de inteligibilidade da obra de
Bachelard, a partir da noção herdada do poeta romântico alemão, Novalis, que indicava o
dinamismo do imaginário como fonte do ser e do pensamento (LECOURT apud
WUNENBURGER, 2011, p.29).
Um dos intuitos primordiais da tese foi, pois, demonstrar que a reflexão
bachelardiana apresenta também a noção de dinamismo como centro ao qual convergem
dois temas. Por um lado, encontra-se sua noção de temporalidade fragmentada e
interrompida nos instantes que a constituem. Por outro lado, seu desprezo pelo imobilismo
decorrente da noção de absoluto dirige o pensamento às mudanças do devir – no ideal de
um perene movimento – expresso nos termos da transformação dinâmica que rege o real.
Encontra-se, portanto, na noção de conhecimento como dinâmica de superação e de
renovação, como movimento de aproximação à verdade situada sempre além, o mais
importante vínculo positivo com o desenvolvimento de uma metodologia de contrários, que
desperta o intelecto da preguiça do conhecimento comum, instigando-o à invenção de
novidades.
A deformação de imagens, como significado preciso do termo imaginação, cria
através de devaneios dicotômicos – no jogo de mutações simbólicas – o mesmo efeito de
renovação e progresso gerado em campo epistemológico pelo mecanismo de aproximação à
verdade, na contínua retificação de conceitos científicos. Como se uma insuperável abertura
à ambivalência, ínsita, seja nas imagens, seja nos conceitos, constituísse a produção do
saber estético e científico como evoluções de uma fundamental potência de transformação
das representações de consciência. Em tal modo: “A trajetória filosófica descontinua e a
dupla face, cruza dois tipos de inteligibilidade das operações do espírito” (2011, p. 33),
272

ambos suscetíveis de interpretação positiva através da hipótese aqui defendida de um


mecanismo de produção intelectual essencialmente fundado sobre uma dinâmica de
polaridades. “Como os conceitos científicos, as imagens poéticas só adquirem espessura e
profundidade através de distorções, de alterações de seu conteúdo imediato [...]. Devaneios
vivem essencialmente de contrários em oposição” (2011, p. 48).
Portanto, assim como o enfrentamento do erro gera novo conhecimento, a
imaginação floresce no encontro da resistência material do mundo, que faz brotar a
“dinamologia do contra” (2011, p.49). Toda oposição significa movimento, dinamismo
gerado pelo “princípio de ambivalência” (2011, p.49) que, ao constituir um campo de
forças em oposição (2011, p.49) torna-se fermento de novos saberes, como esta tese se
propôs demonstrar. “Assim, toda imagem fundamental deve poder-se abrir sobre uma
bivalência interior, deixando-se valorizar em dois sentidos contrários” (2011, p.50).

Assim, a intensidade poética das imagens repousa numa espécie de coincidentia


oppositorum, de conjunção paradoxal de seres que se excluem. A combinação das
substâncias imaginárias contrárias dá origem a uma totalidade complexa que vive da
tensão permanente entre seus dois polos [...]. A riqueza da imagem reside sobretudo na
conservação de uma dualidade ambivalente [...]. A bipolaridade é uma organização poética
irredutível [...]. Dialetizar a imagem não consiste mais em reconciliar partes antinômicas,
mas em fazer vibrar juntos as duas vertentes de uma imagem. (2011, p.51-52).

Wunenburger resume toda a estrutura binária da consciência – ressaltada nesta tese


– como manifestação de dois princípios invariantes: a “lei da bipolarização dos núcleos
simbólicos” e a “Lei de relação dos opostos ou da ambivalência” (2011, p.30). No caso da
poética, vê-se, portanto, a oscilação entre os polos de uma mesma imagem gerar a “tensão
bipolar e binária” (2011, p.54) como razão de proliferação de devaneios fecundos. Ocorre
porém, ressaltar que a grande evidência com a qual a dicotomia bipolar se exprime na
poética em nada diminui o valor da afirmação de que ao opor e conectar razão e imaginação
em torno a um esquema dialético, Bachelard inaugurou um novo modo de debate
intelectual bipolar – entre poema e teorema – sobre a questão de uma nova pluralidade de
lógicas fecundas.
A investigação wunenburgiana atinge um ápice de precisão (2011, p.150) ao
elucidar a dicotomia da qual se serve Bachelard ao teorizar duas formas antitéticas de
revelação do ser – as mesmas que esta tese procurou aprofundar em todo seu
desenvolvimento –. Enquanto a ciência constrói abstrações, a filosofia estética funda
273

comoções. A frieza da mente depara-se então com o calor da sensibilidade, num exemplo
único de demonstração direta – através da estrutura complexa e ambivalente de seu próprio
raciocínio – da rede de polarizações dinâmicas que tece como fundamento do real.
Entretanto, nisto mesmo que se acabou de afirmar, surge a chave de volta desta tese,
a saber, o alto nível de especialização da inteligibilidade técnica, constituída na pesquisa
nuclear, revela como fundo do real, um dinamismo originário que colide e contradiz
convicções e assunções da racionalidade ingênua, fundada no olhar preguiçoso e positivista
da razão ocidental, que, por um lado, cede ao encanto aristotélico do contato imediato com
a realidade, logo reduzida a mecanismo de matematizações do cogito cartesiano. Por outro
lado, busca a cura de todo mal empírico – ou seja, do movimento como devir que tudo
arrasta à devastação – na hipostatização de um absoluto de valores positivos, como
fundamento e resolução da fundamental contradição do real.
A racionalidade ocidental em dois mil anos de reflexão resolveu seu essencial
paradoxo, imobilizando o devir nas categorias da metafísica. Portanto, as ambiguidades,
antagonismos e oposições que foram ressaltadas neste trabalho, são tais, somente diante
deste saber paliativo, que não difere muito – em termos qualitativos – do saber comum, é
somente uma sua especialização. A verdadeira inteligibilidade dos procedimentos técnicos
e científicos da contemporaneidade se deixa contradizer, aceita que a realidade se
contradiga e prossegue adiante, aprimora-se em seu próprio erro, qualificando-se, pois,
como conhecimento retificado.
Por isso Bachelard é tão nietzscheano, pois, assume do filósofo do devir, a coragem
diante da inevitável e incessante transformação, aplicando-a como princípio do novo saber
científico. E, ao revesti-la epistemologicamente, permite que seu espírito dance - como todo
filósofo verdadeiro - na analogia que funda no imaginário, enquanto plano de consciência
complementar à razão científica; ambos corajosos e dispostos a assumir a contradição como
característica fundamental do real. Logo, todos os termos que indicam contradição, são tais,
somente diante do realismo ingênuo. O verdadeiro saber científico, usa a contradição como
chave de progresso do conhecimento. E nisto, ciência e imaginário se aproximam, pois
ambos assumem a contradição em sua fundamental criatividade.
274

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