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O
retomou o problema da liberdade, juntamente,
problema da liberdade foi um
com a crítica à liberdade de vontade ou livre-
dos grandes temas da história da
arbítrio no qual seriamos livres para escolhermos
filosofia prática. Várias definições
voluntariamente.
foram articuladas ao conceito de liberdade.
Este artigo tem a finalidade de explicitar
Primeiramente, podemos entender a liberdade
a questão da liberdade humana segundo o
como autodeterminação ou autocausalidade
pensamento do filósofo holandês seiscentista
(ausência de obstáculos externos ou de
que apresenta uma ontologia segundo a qual o
dominação), além disso, a liberdade como
homem tem uma potência para agir e para pensar
necessidade ou como possibilidade ou
visando uma vida ética e livre. Mostraremos,
escolha, segundo a qual a liberdade é limitada
primeiramente, o fundamento ontológico
e condicionada (finita). Deleuze (2002)
presente na obra maior de Spinoza, a saber, a
distinguiu, por exemplo, entre a Liberdade de
Ética, onde será discutido a liberdade divina
indiferença, ou seja, o poder de uma vontade
e o problema do homem enquanto um modo
de escolher ou mesmo de criar e a Liberdade
finito de uma substância (Deus), além disso, a
esclarecida que é o poder de se regular por
questão da potência de Deus. Por conseguinte,
um modelo e de realizá-lo. Segundo Deleuze
será abordada a questão da potência da mente
(2002, p. 89), “Nunca somos livres em virtude
humana enquanto realização ou exercício de
de nossa vontade e daquilo que ela se regula,
liberdade segundo o qual o homem pode tornar-
mas em virtude da nossa essência e daquilo
se livre, ou seja, conhecedor das causas da
que dela decorre.”. Mas, a liberdade (libertas)
natureza que, para Spinoza, seria Deus.
passou a ser, vulgarmente, entendida como
livre-arbítrio da vontade para determinadas Por fim, mostraremos como Spinoza
escolhas. Por conseguinte, existe uma diferença definiu as condições para pensar no homem
entre ser independente para fazer o que quiser livre e, assim, problematizar a superação de sua
e ser livre para fazer aquilo que pode ser feito condição como coisa coagida e determinada em
de acordo com certas condições externas. relação a Deus, o único ser a rigor livre.
filosofia marcada pelo discurso de uma ontologia por si só a agir, pois, “age somente pelas leis
do necessário1. Spinoza ao tratar da liberdade, de sua natureza e por ninguém é coagido.”
associou à necessidade, pois, necessidade e (E1P17). Confirmando com as palavras do
liberdade são concordantes e complementares, filósofo, “[...] só Deus existe pela só necessidade
sendo, pois, a liberdade tanto potência interna de sua natureza (pela prop. 11 e corol. 1 da prop.
da essência da substância (como veremos 14) e age pela só necessidade de sua natureza
adiante) como potência interna dos modos (pela prop. Preced.). Logo (pela Def.7), só ele é
finitos. A ontologia do necessário pressupõe causa livre.” (E1P17C2). Por outro lado, a coisa
uma radicalização com qualquer fundamento da coagida, determinada por outra coisa a existir e
metafísica do possível, da teologia da contingência agir3, seria as coisas singulares ou modos finitos.
e da moral do livre-arbítrio e dos fins. Mas, afinal, Ao definir a coisa livre como aquela que não é
que entende Spinoza por liberdade? Como este determinada por nenhuma outra para existir e
articulou esta questão com uma ontologia e uma agir, Spinoza colocou o problema da Liberdade
ética humana? Para tanto, na Parte I (De Deus) ontológica, ou seja, da Liberdade divina (Deus),
da Ética2, Spinoza expôs o problema da liberdade ponto fundamental para entendermos como esta
a partir das seguintes definições, quais sejam, de se articula com a modalidade finita. Ainda sobre
coisa livre e de coisa coagida: a relação liberdade e necessidade, é sabido que
É dita livre a coisa que existe a partir da só o filósofo holandês, em suas Correspondências
necessidade da sua natureza e determina-se ou Cartas4 havia apresentado para seu amigo
por si só agir. Porém, necessária, ou antes
coagida, aquela que é determinada por Tschirnhaus a ideia de “livre necessidade”, ou seja,
outro a existir e a operar de maneira certa e uma necessidade da essência da própria coisa;
determinada. (E1Def7).
trata-se da diferença não mais de necessidade
A partir desta definição, Spinoza deduzirá e liberdade, mas de liberdade e coação. Assim,
que somente Deus é esta coisa livre, pois, é livre Spinoza retoma a noção clássica de liberdade
por existir pela necessidade de sua natureza e como espontaneidade de uma natureza na
por agir como causa livre, ou seja, determinado ausência de constrangimento externo. Para
Marilena Chauí (2011, p. 273), “Se agir é ser livre
1 Para Deleuze (2002, p. 95), “O necessário é a única
por necessidade de sua própria natureza, operar é
modalidade daquilo que é: tudo aquilo que é, é necessário,
ser determinado pela necessidade de uma causa
ou por si, ou por sua causa. A necessidade é então a terceira
figura do unívoco (univocidade da modalidade, depois da
externa. [...] a coação é uma forma de operar,
univocidade dos atributos e da univocidade da causa.”. Por
mas nem todo operar é uma coação.”.
sua vez, sobre a articulação do necessário com a liberdade, diz
Ramond (2010, p. 47), “Sendo a liberdade necessidade interior
Adolfo Sánchez Vásquez (1999)
e a coação, necessidade exterior, não se tratará, portanto,
de escapar à necessidade (contrassenso corrente sobre a questionou se, num mundo determinado onde
liberdade), mas, de acordo com um esquema bastante clássico
estamos sujeitos às relações de causa e efeito,
da sabedoria, harmoniza-se com ela (IV, apêndice 32).”.
2 A Ética, publicada postumamente em 1677, foi escrita
em latim conforme o modelo geométrico de Euclides 3 Segundo Vásquez (1999, p. 118), “[...] embora o homem
utilizando axiomas, definições, proposições, escólios, possa agir livremente na falta de uma coação externa ou
corolários, etc. Para citarmos esta obra utilizamos as interna, encontra-se sempre sujeito – ainda quando não está
seguintes abreviaturas: Partes (E3, E4, etc.), Prefácio submetido à coação – a causas que determinam a sua ação.”.
(Pref.), Axiomas (Ax.), Definição (Def.), Proposição (P), 4 Para o sistema de citação das cartas ou correspondências
Demonstração (D), Escólio (S), Corolários (C), Postulados de Spinoza, publicadas postumamente, utilizamos a sigla
(Post.), Definição dos Afetos (AD), etc. Exemplo de citação: Ep (Epistolae et responsiones). Exemplo de citação: Ep50
E3P9S para Ética, Parte 3, proposição 9, escólio. para Carta Nº50.
12 Revista Conatus - Filosofia de Spinoza - Volume 9 - Número 17 - Julho 2015
GOMES, Carlos Wagner Benevides. A Potência do Homem livre em Spinoza. p. 11-22.
poderíamos ser livres. Para tanto levanta e a sociedade.”. Embora o pesquisador tenha
três problemas: o determinismo absoluto, o reconhecido também o mérito de Spinoza no
libertarismo e o determinismo compatível que se refere à consciência da necessidade causal
à liberdade. O determinismo absoluto é o como condição necessária da liberdade, ele
princípio segundo o qual tudo no mundo tem esqueceu, todavia, de mencionar a teoria política
uma causa. Neste sentido, como poderíamos spinozana que pressupõe a liberdade também
evitar certas ações que fazemos? Mais ainda. no plano histórico e social e político. Assim, não
Segundo Vásquez (1999, p. 120-121), se o que só pelo conhecimento, mas também pela ação
faço num momento é o resultado de outras ações fundada em causa adequada são formas do
anteriores das quais não conheço como minha homem ser livre em Spinoza.
ação pode ser dita livre? Para Vásquez (ibid., p. Utilizado por Aristóteles até Gassendi
122), por consequência, se não há liberdade no e Hobbes, Spinoza dá o exemplo clássico da
determinismo, também não há responsabilidade Pedra para explicar o problema da liberdade.
moral. Um dos problemas do determinismo Imaginemos que uma pedra é consciente. Uma vez
é que ele não reconhece que o homem “pode arremessada ou jogada de um alto, esta pedra terá
conhecer a causalidade que o determina a queda livre, por exemplo, e com isso ela acreditará
atuar conscientemente, transformando-se assim que tal movimento foi causado por sua própria
num fator causal determinante.”. Sobre o vontade e não por uma ação externa causada por
libertarismo, diz Vásquez, mesmo que o homem outro corpo. Assim, diz Spinoza, são os homens
esteja submetido a uma determinação causal, que acreditam que suas ações e consequências
por fazer parte da natureza e da sociedade, são causas de sua vontade. Spinoza numa carta
seu comportamento moral o torna livre diante ao seu amigo Schuler (mencionando Tschirnhaus
de certos fatores causais. Por conseguinte, o depois de este ter lhe atribuído semelhança ao
indivíduo não rompe, totalmente com as cadeias livre-arbítrio de Descartes em Ep57), descreveu
causais, mas as pressupõem. o exemplo da pedra:
Por fim, sobre a relação entre o [...] uma pedra, por exemplo, recebe de uma
determinismo e a liberdade, Vásquez (ibid, p. causa exterior, que a empurra, uma certa
quantidade de movimento, e tendo cessado
127-128) faz uma consideração spinozana: “[...] o impulso da causa exterior, ela continuará a
o homem se apresenta determinado de fora e se se mover necessariamente. Essa persistência
da pedra no movimento é uma coação,
comporta como um ser passivo; isto é, regido não porque seja necessária, mas porque se
pelos afetos e paixões nele suscitado pelas causas define pelo impulso de uma causa externa.
[...] Seguramente, essa pedra, pois que tem
externas. [...]”. Sendo assim, como o homem consciência de seu esforço e não é de modo
se eleva da escravidão à liberdade? Ser livre é algum indiferente a ele, acreditará que é
bastante livre e apenas perseverar em seu
ter consciência da necessidade, pois, tudo que movimento porque quer. Assim, é esta liberdade
sucede é necessário. Uma das críticas de Vásquez humana que todos se vangloriam de possuir e
que consiste apenas no fato de que os homens
(ibid., p. 128) a Spinoza, consiste no fato de que a têm consciência de seus apetites e ignoram as
liberdade, para o filósofo holandês, ficou apenas causa que lhes determinam. (Ep58).
no plano do conhecimento: “O homem liberta-se O exemplo da pedra explica nada mais
no plano do conhecimento, mas continua escravo que a falsa ideia de liberdade humana a partir
na sua relação efetiva, prática, com a natureza da noção de livre-arbítrio no qual é um absurdo
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GOMES, Carlos Wagner Benevides. A Potência do Homem livre em Spinoza. p. 11-22.
pensar na queda humana (o pecado) como uma epistemológica, pois, segundo Spinoza, “Não é
ação livre. Segundo Chauí (2011, p. 274), há da natureza da razão contemplar as coisas como
uma grande diferença entre a pedra (o homem) contingentes, mas como necessárias.” (E2P44). Em
e Deus: suma, a filosofia spinozana pretendeu diferenciar
[...] a diferença entre Deus e a Pedra não o necessário como aquilo que segue as leis da
consiste na presença de uma vontade no natureza (Deus) e o contingente como aquilo
primeiro e ausência dela na segunda [...]
Deus age pela livre necessidade de sua que está fora da ordem necessária e das causas
essência, enquanto a pedra, em decorrência da natureza, assim como, o possível (como aquilo
de sua finitude [...] entra em movimento e
nele permanece apenas se houver uma causa que pode existir ou não). Spinoza, por exemplo,
exterior que a constranja a mover-se. criticou a ideia de que Deus teria a vontade para
O problema entre liberdade e necessidade escolher entre o melhor dos mundos possíveis
levou alguns correspondentes de Spinoza a (postura tomada pelo filósofo alemão Leibniz).
admitir que não houvesse liberdade numa Segundo Chauí (1999, p. 909), Spinoza negou
filosofia onde há a necessidade e um fatalismo que o mundo pudesse ser produzido por Deus
(segundo o qual todos os acontecimentos estão doutra maneira e noutra ordem e que “este mundo
submetidos a um determinismo absoluto). A ou qualquer mundo produzido por Deus seja um
resposta de Spinoza é que a necessidade não mundo possível, isto é, poderia ser produzido
está apenas nas causas externas, mas na ordem doutra maneira e noutra ordem.”.
e conexão interna de nosso corpo e de nossa Mas, num certo aspecto, Spinoza parece
mente. Necessidade é determinação externa admitir coisas contingentes ou possíveis cuja
e disposição interna do agente. A liberdade existência é indeterminada ao demonstrar, por
humana (como veremos) não é propriedade exemplo, que a essência dos modos não envolve
da vontade, pois, esta não é uma causa livre, existência, ou seja, o homem enquanto modo
ela liga-se à essência e ao que dela decorre. A finito pode tanto existir como não existir, pois, é
liberdade, neste sentido, pode ser uma ilusão determinado por outro modo finito e, assim, até
da consciência segundo a qual esta ignora as o infinito. Um dos grandes problemas que levam
causas, imagina o possível ou o contingente. os homens a ilusão do livre-arbítrio, ou seja, da
Mas, qual o sentido e fundamento da ontologia vontade livre, é a da impotência ou a servidão
do necessário em Spinoza? O filósofo holandês pelos afetos passivos (exposição da Parte IV da
pretendeu mostrar que na natureza, tudo, ou Ética). No Apêndice à Parte I da Ética, Spinoza
seja, as coisas finitas, operam, existem e agem de expôs umas das maiores denúncias de sua
uma maneira certa e determinada, assim, nada filosofia, quais sejam, o problema do finalismo,
poderia ser contingente. Spinoza estabeleceu do livre-arbítrio e da vontade:
uma diferença entre o necessário e o contingente [...] os homens comumente supõem que as
coisas naturais agem, como eles próprios, em
e o possível somente na Parte IV da Ética, mas vista de um fim, mais ainda, dão por assentado
logo na Parte I, diz: “Na natureza das coisas nada que o próprio Deus dirige todas as coisas para
algum fim certo: dizem, com efeito, que Deus
é dado de contingente, mas tudo é determinado fez tudo em vista do homem, e o homem, por
pela necessidade da natureza divina a existir e sua vez, para que o cultuasse. [...] os homens
opinam serem livres porquanto são cônscios
operar de maneira certa.” (E1P29). Além disso, de suas volições e de seu apetite, e nem por
na Parte II, o necessário tem uma relevância sonho cogitam das causas que os dispõem a
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apetecer e querer, pois delas são ignorantes. comportamento teleológico sobre Deus ou a
[...] essa doutrina da finalidade inverte Natureza não conduzem Espinosa a negar o
inteiramente a natureza. Pois o que é deveras caráter teleológico de nosso comportamento,
causa, considera como efeito, e vice-versa. nem tampouco a recusar a validade de todo
[...] Donde terem [os homens] devido formar, e qualquer modelo que permita orientar e
para explicar as naturezas das coisas, essas avaliar a nossa conduta.
noções: Bem, Mal, Ordem, Confusão, Quente,
Frio, Beleza e Feiura; [...]. (E1A). Assim, uma das evidências de pressupostos
No Apêndice, Spinoza mostrou que os teleológicos pode ser encontrada na teoria do
homens buscam coisas acabadas ou perfeitas conatus, pois, se o ser se esforça em prol de sua
conforme seus modos de imaginação (primeiro conservação e de seu útil, logo, poderíamos associá-
gênero de conhecimento), assim, acreditam que los a um finalismo intrínseco do indivíduo. Assim,
agem conforme causas finais. Os homens acreditam alguns comentadores como Victor Delbos, diz
que existe algo simétrico e belo na natureza tal Gleizer (2014, p. 227, nota 17), viram o conatus
como um círculo perfeito. Confundem a ordem como um tipo de finalidade interna. Mas, como
necessária das causas e dos efeitos com uma ordem colocou Laurent Bove (2010, p. 32), “O conatus é
comum imposta pelo imaginário. Por conseguinte, desejo sem objeto porque não é nada mais que a
a ilusão da consciência dos homens que se creem produtividade real em nós e através de nós, que
livres5 porque estão conscientes de suas ações, mas funciona sem finalidade alguma e sem motivação
ignorantes das causas que os determinam. Além alguma.”. Uma das grandes teorias de Bove é a
disso, por conta da ilusão do finalismo6, o homem chamada “Estratégia do conatus”7 segundo a qual
ao antropomorfizar o divino, coloca Deus como existe uma dinâmica resistente do conatus para agir
um ser que irá suprimir a suas necessidades e agirá diante da diminuição de sua potência.
para isso. Mas, sobre a questão se Spinoza não teria O problema do livre-arbítrio, por sua vez,
pressupostos teleológicos em sua filosofia, afirmou bastante criticado pelo pensador holandês, não
Gleizer (2014, p. 217-218): é nada mais que uma ruptura com a concepção
A crítica da validade objetiva dos modelos judaico-cristã de que existe uma liberdade da
imaginativos e a exclusão da legitimidade vontade para escolher ou fazer o que quiser.
da projeção antropomórfica de nosso
Mais ainda. O problema está em relacionar
5 No Breve Tratado, Spinoza já havia postulado o que
seria uma verdadeira liberdade isenta de imaginações e a vontade com liberdade. Spinoza colocou o
preconceitos humanos a partir de valores de bem e mal: problema da vontade da seguinte forma: “A
“[...] não se concebe corretamente em que consiste a
verdadeira liberdade; a qual de modo algum é, como eles vontade não pode ser chamada causa livre, mas
imaginam, podem fazer ou não algo bom ou mau. Ao somente necessária.” (E1P32) Logo, a vontade
contrário, a verdadeira liberdade é apenas, e não outra
coisa senão a causa primeira, a qual não é de nenhuma é apenas um modo de pensar como o intelecto.
maneira coagida ou necessitada por outro, e apenas por A vontade não é livre (coagida), pois, envolve
sua perfeição é causa de toda a perfeição.” (KVI4 §5).
6 Conforme assinalou Teixeira (2001, p. 178), “Em suma, a uma existência determinada como a dos modos
idéia da finalidade, que fundamenta os conceitos vulgares finitos, assim, ela depende, necessariamente,
de perfeição e imperfeição, é uma outra forma daquele
processo de abstração que consiste em pensarmos uma de outras causas. Desta forma, Spinoza rompe
parte qualquer da realidade como se ela se explicasse só por com a concepção cartesiana da vontade do
si.”. Por sua vez, disse Negri (1993, p. 181): “A anomalia
está na perspectiva radicalmente antifinalista da filosofia
7 Segundo Bove (2010, p. 31), “[...] ao falar em estratégia ou
de Spinoza, onde por finalismo se entende – como Spinoza
ação, nossos hábitos mentais nos levam quase inevitavelmente
entende – todo projeto metafísico que submeta a iniciativa
a pensar numa finalidade: uma ‘estratégia para... ’, ‘ação
do múltiplo a uma síntese transcendental.”. para... ’, etc..”.
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GOMES, Carlos Wagner Benevides. A Potência do Homem livre em Spinoza. p. 11-22.
existência necessária. Conforme a ontologia do de Deus. Por ser causa de si, Deus é eterno e
necessário, tudo o que está em Deus é necessário tem uma Potência eterna. A essência da potência
e produz efeitos necessários, pois, não há nada divina não é senão sua ação livremente necessária
de contingente na natureza. Spinoza ora fala de e necessariamente livre. Além disso, Spinoza
potência (potentia) ora de poder (potestas) de identificou também potência e realidade, “Pois,
Deus, mas existe uma diferença? Foram várias as como poder existir é potência, segue que quanto
interpretações para a distinção entre a potência mais realidade cabe à natureza de alguma coisa,
e o poder de Deus. Segundo Chauí (1999, p. tanto mais forças têm de si para existir; [...].”
913), “[...] a potentia se refere à essência de Deus (E1P11S).
enquanto a potestas se refere à capacidade para
3.0 Da Potência da mente e a Liberdade humana
produzir efeitos possíveis [...]”. Assim, diferente da
potência, o poder10 é como uma faculdade segundo Para que a exposição sobre o problema da
a vontade do agente que pode ou não exercer uma liberdade em Spinoza fosse possível foi necessário
ação. Para Negri (1993, p. 248), “[...] A ‘potestas’ uma discussão, como vimos acima, acerca da
é dada como capacidade – conceptibilidade – de liberdade e da potência de Deus (presentes
produzir as coisas; a ‘potentia’, como força que as na Parte I da Ética) que serão pressupostos
produz atualmente.”. Por conseguinte, os termos ontológicos para que possamos pensar numa
potência e poder utilizados nas proposições liberdade (humana) dos modos finitos. Chegamos,
34 e 35 aparecem empregados com o mesmo então, a altura da conclusiva Parte V (Da Potência
sentido e nos leva a compreender que são termos do intelecto ou da Liberdade Humana) da Ética
semelhantes, diferentemente, da tradição que onde Spinoza prefacia o seguinte:
afirma que a potência é a força da essência e o Passo, finalmente, à outra parte da ética,
poder, a faculdade livre para usar ou deixar de que versa sobre a maneira, ou seja, a via
que conduz à liberdade. Nela me ocuparei,
usar a potência. portanto, da potência da razão, mostrando o
Portanto, a potência de Deus, atual, que a própria razão pode sobre os afetos e,
a seguir, o que é a Liberdade da mente ou a
atualizada e atuante, é a capacidade dele ser felicidade; [...]. (E5Pref).
absolutamente infinito e de autoproduzir todas
Spinoza falou de uma potência da
as coisas que se seguem necessariamente na
mente; de qual grau e espécie de domínio
natureza e que são parte da potência infinita11
tem a razão para refrear e regular os afetos.
Para tanto, ele criticou a concepção estoica de
10 Conforme assinalou Chauí (1999, p. 868), “Desde
Aristóteles, o ‘estar em poder de’ situava o livre entre que, dependentes de nossa vontade, os afetos
duas privações de poder: o não poder imposto pelo que é possam ser dominados inteiramente. Segundo
necessário por natureza e o não poder suscitado pelo que
é contingente ou por fortuna. A distinção entre ‘estar em Spinoza, “O afeto que é uma paixão deixa de
poder de’ e ‘não estar em poder de’ em dada pela diferença ser paixão tão logo formemos dele uma ideia
entre o que age por vontade e o que está submetido à
necessidade natural [...].”. clara e distinta.” (E5P3). Um afeto pode ser
11 Sobre o caráter infinito da potência de Deus, diz Rizk considerado tanto um afeto se temos uma ação
(2006, p. 21), “[...] a potência infinita de Deus se exprime
em virtude de seu caráter infinito, numa infinidade de que envolve uma ideia clara e distinta como uma
coisas naturais, que aparecem como seus efeitos, ou seus paixão se padecemos com as ideias confusas e
modos particulares. [...] não se pode separar ou opor a
potência infinita de Deus e a potência singular de tal coisa mutiladas. Assim, quanto mais conhecemos um
natural [...].”.
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GOMES, Carlos Wagner Benevides. A Potência do Homem livre em Spinoza. p. 11-22.
afeto, tanto maior é o nosso poder sobre ele, pois, a essência do homem. Além disso, Spinoza não
“Enquanto a mente entende todas as coisas como fala de império (imperium) da vontade sobre os
necessárias, nesta medida tem maior potência afetos, mas a moderação (moderatio) dos afetos.
sobre os afetos, ou deles padece menos.” (E5P6). Segundo Spinoza, os homens concordam
Spinoza apresentou o que ele chama de remédios necessariamente em natureza se vivem
para os afetos: 1) conhecer os afetos, 2) separa conduzidos pela razão e ele considera esta
os afetos e o pensamento do que imaginamos condução como verdadeira virtude, ao contrário,
(causas exteriores), 3) no tempo, no qual as se afligidos por afetos-paixões, eles podem
afeções das coisas que compreendemos superam ser diferentes em natureza. Mas, segundo o
aquelas que compreendemos confusamente, filósofo holandês, os homens, raramente,
4) a multiplicidade de causas que reforçam vivem somente sob a condução da razão,
aqueles afetos referidos a Deus, por fim, 5) o principalmente, num campo político. Por sua
ordenamento e a concatenação dos afetos entre vez, a mente precisa ser conduzida pela razão e
si pela mente. Ainda sobre a potência da mente, conhecer a Deus, pois, “O sumo bem da mente
Spinoza diz adiante que a mente tem como sumo é o conhecimento de Deus e a suma virtude
esforço e virtude entender as coisas pelo terceiro da mente é conhecer Deus.” (E4P28). Este
gênero de conhecimento (intuitivo). Assim, a desejo de conhecer a Deus desemboca, assim,
potência de pensar da mente é o poder (potestas) no terceiro gênero de conhecimento quando
de entender clara e distintamente os afetos. a mente percebe as coisas sob o aspecto da
Uma ideia verdadeira ou a razão não eternidade (sub species aeterniatis). Assim, a
vence uma paixão simplesmente por serem ideia potência da mente, a condução pela razão e
verdadeira ou razão. Apenas uma paixão vence o desejo de conhecer a Deus, enquanto causa
outra paixão e se for mais forte e contrária que primeira e conhecimento verdadeiro das coisas,
a outra. Diferentemente da hipótese de uma são momentos importantes para a construção
razão onisciente que tem o poder12 ou império de uma liberdade humana.13.
absoluto sobre as paixões como pensaram os Mas, afinal, o que pensou Spinoza sobre
estoicos. Uma diferença assinalada na Ética de a liberdade humana? Mesmo sabendo que os
Spinoza é que, na Parte IV, se diz que somos homens têm a ilusão do livre-arbítrio porque
governados pelos afetos (império da razão sobre são conscientes de suas volições e ações, mas
a fortuna) e que na Parte V temos o governo ignorantes das causas de seus apetites e desejos,
dos afetos (império da razão sobre os afetos). eles podem ser livres? Principal objeto da Parte
Mas, esta diferença nos leva a ideia de que ter V da Ética, a liberdade humana foi uma questão
o governo dos afetos implicaria na separação constante nas obras de Spinoza, como o Breve
entre afeto e intelecto, o que seria absurdo, pois,
segundo Spinoza, o desejo é o afeto que constitui 13 Segundo Cíntia (2013, p. 21), é possível pensarmos
na “possibilidade de uma liberação relativa através da
realização da potência da mente (a liberdade humana
12 Segundo Ramond (2010, p. 65), “A oposição entre como conhecimento das essências singulares e da sua
‘potência’ e ‘poder’ é, de fato, particularmente visível em
dependência em relação à substância ou terceiro gênero
V Pref., onde Espinosa critica Descartes e os estoicos por
de conhecimento) [...].”. Por sua vez, sobre o papel da
terem concebido o domínio sobre as paixões na forma de potência para o processo da liberdade, diz Negri (1993,
um ‘poder absoluto’ da vontade, antes de defender sua p. 250), “Potentia-jus-libertas: o vínculo não poderia ser
própria tese de uma ‘potência da razão.”. mais estreito nem mais determinado [...].”.
18 Revista Conatus - Filosofia de Spinoza - Volume 9 - Número 17 - Julho 2015
GOMES, Carlos Wagner Benevides. A Potência do Homem livre em Spinoza. p. 11-22.
Conforme veremos adiante, Spinoza pensou, na Como dito acima, sobre a liberdade
Parte IV da Ética, o homem livre como aquele que ontológica, Deus, como demonstra Spinoza na
no plano da razão esforça-se para fazer o que é de Parte I da Ética, é o ente absolutamente infinito e
sua real utilidade e que age por necessidade de causa livre, pois, que não tem uma ação coagida
sua natureza, e não por causalidade da vontade. por nada e não depende de nada para existir. Desta
No plano ético, a liberdade seria o conatus corpo/ forma, os modos finitos seriam as modificações
mente como causa adequada de suas afecções, da Substância e coisas singulares que dependem
afetos e ideias; no plano político, a liberdade é o de outras coisas singulares ad infinitum. Por
direito civil e o Estado fortalecido pela potência conseguinte, podemos agora discutir o que seria
da multidão (multitudo).16 Se a diferença entre a principal problemática desta pesquisa, ou seja,
a liberdade de Deus e a liberdade humana é que se é possível uma liberdade dos modos finitos, não
Deus tem o poder sobre o necessário, o possível no sentido ontológico infinito, mas algo relativo
e o contingente e o homem apenas o possível, ao finito, aos homens. Para tanto, analisaremos o
teria o homem uma liberdade relativa? problema do homem livre presente na Parte IV (Da
Conforme mostraremos, é possível Servidão Humana ou as Forças dos Afetos) da Ética.
pensarmos numa liberdade dos modos finitos Mas, é possível o homem livre? Como veremos,
partindo da função ativa e libertadora da Spinoza projeta e lança as possibilidades para a
potência enquanto exercício de liberdade. Sobre figura do homem livre. Mas, seria este homem
a relação entre Potência e Liberdade, diz Bove livre apenas um ideal ou algo em potência?
(2010, p. 70), “Espinosa põe, assim a identidade A quarta parte da Ética tem discutido,
da potência, da existência e da liberdade (se não inicialmente, a questão da impotência humana
se confunde a liberdade com a contingência, (a servidão), a força da fortuna que nos arrasta
mas, ao contrário, se entende por liberdade uma como joguetes do destino e a consequência dos
potência, uma virtude ou uma perfeição).”. afetos tristes para as nossas ações. Mas, bem mais
14 “Por tudo que foi dito se pode conceber facilmente o que além, diz Spinoza: “Não há nenhuma coisa em
é a liberdade humana, que eu assim defino: é uma existência que o homem livre pense menos do que na morte,
firme que nosso intelecto detém por sua união imediata com
Deus para produzir em si mesmo ideias e, fora de si mesmo, e sua sabedoria não é uma meditação sobre
efeitos que concordem com sua natureza, sem que esses a morte, mas sobre a vida.” (E4P67). A partir
efeitos estejam submetidos a causas externas pelas quais
eles possam ser alterados ou transformados.” (KVII26 §9). desta proposição, Spinoza teria rompido com
15 “[...] chamo totalmente livre ao homem na medida a tradição metafísico-platônica segundo a qual
em que é ele conduzido pela razão, visto que assim ele é
determinado a agir por causas que só pela sua natureza se a filosofia seria uma preparação ou meditação
podem entender adequadamente, se bem que seja por elas para a morte.17 A preocupação spinozana consiste
necessariamente determinado a agir. Com efeito, a liberdade
[...] não tira, antes põe, a necessidade de agir.” (TP2 §11).
17 No Fédon, diz Platão (1991, p. 65), “Receio, porém, que,
16 Sobre a liberdade individual e política, diz Chauí quando uma pessoa se dedica à filosofia ao sentido correto
(2011, p. 191): “Assim como a liberdade individual é do termo, os demais ignoram que sua única ocupação
a potência agente do conatus enquanto causa interna consiste em preparar-se para morrer e em estar morto!”.
total de suas ações [...] também a liberdade política é a
Mais ainda, dialogando com Símias, diz Platão (1991, p.
potência coletiva enquanto soberana, e a soberania ou 69), “Assim, pois, Símias, em verdades estão se exercitando
a autodeterminação política só é possível na segurança,
para morrer todo aquele que, no bom sentido da palavra,
uma vez que este pressupõe a desaparição, ou pelo menos
se dedicam à filosofia, e o próprio pensamento de estar
o enfraquecimento, do medo e da esperança, sempre morto é para eles, menos que para qualquer outra pessoa,
marcados por dúvida, instabilidade e inconstância.”. um motivo de terrores.”.
Revista Conatus - Filosofia de Spinoza - Volume 9 - Número 17 - Julho 2015 19
GOMES, Carlos Wagner Benevides. A Potência do Homem livre em Spinoza. p. 11-22.