SPINOZA
INTRODUÇÃO
O conceito de liberdade tradicionalmente interpretado até Spinoza situa o problema
em torno da vontade e das escolhas feitas pelo indivíduo, mostrando que o homem livre é
aquele que sabe/consegue escolher o que lhe faz bem. O filósofo holandês rompe tacitamente
com a tradição na sua formulação de liberdade levando a discussão a um outro ponto, a saber,
o da total negação do livre-arbítrio, ou seja, a total negação da existência de algum tipo de
possiblidade de escolha para efetuação da ação do indivíduo.
A liberdade proposta por Spinoza é deveras inovadora e faz parte de um sistema
grande e complexo, e, por isso, meu intuito neste trabalho é explicitar da forma mais simples e
clara possível este conceito, sem ser, no entanto, vago ou superficial em demasia. A obra
usada como base neste estudo será a Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras.
Perguntas, tais como: o que é a liberdade para Spinoza? Quais as possibilidades de liberdade
para o indivíduo? Porque e como o filósofo holandês rejeita o livre-arbítrio? O que pauta as
ações humanas? Em que implica a liberdade? E, a mais importante questão neste trabalho:
pode o indivíduo na filosofia de Spinoza ser responsabilizado moralmente por seus atos, uma
vez que o livre-arbítrio não está em cena?, necessitam da retomada de alguns conceitos
importantes e caros à filosofia spinozana, a saber: os conceitos de indivíduo/conatus/
paralelismo.
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O HOMEM, QUEM É ELE?
Na filosofia spinozana é importante perceber que a existência do indivíduo não é
deveras necessária. A necessidade está na substância infinita que é Deus e da qual o ser
singular participa como modo 1. Como dirá RIZIK(2006): “Para conhecer a essência do
homem, é preciso mudar de campo e estudar certas modificações dos atributos de Deus.”2
Percebemos que o filósofo holandês entende o homem de uma maneira diferente, que
o coloca em um outro nível perante todas as coisas e que a compreensão deste passa por todo
um longo caminho de reflexão sobre si e sobre os atributos de Deus. Vê-se então que o
homem nada sabe de si e que é necessária uma mudança de posicionamento acerca do que ele
é e isso deixará claro que, o que o homem sabe é que nada sabe acerca de si mesmo.
O indivíduo para Spinoza é constituído por uma modificação dos dois atributos
divinos conhecidos, a saber Pensamento e Extensão, o que significa que o indivíduo é um ser
que pensa logo, como uma expressão do atributo divino de Pensamento e um corpo, logo,
como expressão do atributo divino de Extensão. Essa constituição do indivíduo supõe que ele
seja uma ser onde mente e corpo são uma e mesma coisa só que expressas de maneira
diferentes3. Essa unidade, no entanto, não significa dizer que mente e corpo se relacionam sob
uma perspectiva hierárquica onde um tem mais poder sobre o outro, mas que o que acontece
em um acontece simultaneamente no out, afinal, esse paralelismo, do qual falaremos mais
adiante, faz com que a ordem das coisas da mente seja correspondente de forma necessária e
perfeita à ordem das coisas do corpo, pois, em última análise são expressões da essência
divina sob vários aspectos.
Como modificação dos atributos divinos, o indivíduo participa de algum modo da
eternidade divina e por participar do divino precisa buscar incessantemente unir-se com Deus
através de uma vida que o afaste das afecções4 que diminuem a sua potência e que o aproxime
1Existe uma divisão clara em Spinoza entre Substância, Atributos e Modos. O indivíduo singular é um Modo
pois é uma expressão dos atributos divino de Pensamento e Extensão, que são os dois atributos conhecíveis ao
homem; estes atributos por sua vez pertencem há uma substância única, absoluta e infinitamente infinita que é
Deus.
2 RIZIK, 2006, p. 92.
3 ESPINOSA, 1973, Ética, parte 2, prop. 7, esc.
4 Afecções ou paixões para Spinoza se dividem em dois tipos, um positivo e outro negativo. Paixões positivas
são aquelas que fortalecem e aumentam a potência do indivíduo de perseverar no ser e paixões negativas o
oposto.
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das afecções que aumentam a sua potência, ou seja, que aumente a capacidade de perseverar
no seu ser.
O PARALELISMO
Ainda na contramão do que estava instituído tradicionalmente e também como uma
resposta direta a Descartes, Spinoza irá conceber mente e corpo como uma e única coisa.
Descartes apresenta mente e corpo como coisas separáveis e distintas 5 e ainda que se
relacionavam sob um aspecto hierárquico6 . O filósofo holandês não aceita esta tese e a refuta
com a concepção de que mente e corpo são modos dos atributos, que por sua vez têm como
causa a substância infinitamente infinita, Deus.
Spinoza entende que só pode haver uma substância e que dessa substância derivam
infinitos atributos7 , os quais só podemos conhecer dois, Pensamento e Extensão. Que esses
atributos são causa de si e desses dois atributos derivam os modos. O filósofo introduz um
conceito de Deus que não é criador, nem uno, nem dotado de livre-arbítrio ou vontade e onde
as criaturas do mundo estariam separadas dele. Ele introduz um conceito de Deus imanente
em todas as coisas que existem 8. Vejamos, contudo, as palavras do próprio Spinoza: “Deus é
causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas” 9; “Tudo que existe, existe em Deus, e por
meio de Deus deve ser concebido; portanto, Deus é causa das coisas que nele existem”10
Sendo Deus causa de todas as coisas, então, segue-se que todas as coisas têm em
alguma medida sua essência. Assim, se os atributos exprimem a essência infinita de Deus na
eternidade e os modos são afecções dos atributos, e portanto, não são causa de si, assim, os
modos são em ato a expressão da infinitude dos atributos divinos. Ter parte em Deus, não
significa, no entanto, que haja algum tipo de interferência causal nos atributos e
consequentemente nos modos. Daí que mesmo não podendo ser concebidos isoladamente,
mente e corpo não determinam nem interferem-se entre si. Vejamos nas palavras de Spinoza
na passagem da EIII PII:
Pelo paralelismo pode-se perceber qual será o caminho necessário percorrer o homem
livre, qual seja, a compreensão e aceitação dos afetos como parte da natureza humana e, a
partir desta compreensão, se esforçar para libertar-se das interferências externas que o tornam
passivo, como podemos atestar na EIII PVI:
"A nossa alma, quanto a certas coisas, age (é ativa), mas, quanto a
outras, sofre (é passiva), isto é, enquanto tem ideias adequadas, é
necessariamente ativa em certas coisas; mas enquanto tem ideias
inadequadas, é necessariamente passiva em certas coisas."
Fica claro que Spinoza entende que agir, ou ser ativo, só será possível enquanto o
indivíduo tiver ideias adequadas. Ser livre então é poder agir segundo ideias adequadas que se
dão na mente e refletem no corpo, libertando-o das causas exteriores que o fazem sofrer.
Assim, a busca pela liberdade passa pela necessidade de o indivíduo esforçar-se por
perseverar no seu ser. Esse esforço será ficará conhecido como conatus.
O CONATUS
Conatus é o esforço que cada coisa faz para perseverar-se no seu ser e por isso mesmo,
é também sua essência atual, como atesta-se na EIII, PVIId11:
"O esforço pelo qual toda coisa tende a perseverar no seu ser
não é senão a essência atual dessa coisa."
Pode-se classificar o conatus de duas maneiras12:
1) como esforço de preservação de determinado estado, ou seja, preservar a própria
existência
2) como princípio de expansão, de aprimoramento ou busca de uma maior
"perfeição", no sentido de que quando o indivíduo é afetado por uma paixão alegre
11A partir de agora, usarei este tipo de abreviação ao fazer citações contidas na obra Ética. Aqui lê-se Ética,
parte 3, proposição 7, demonstração. Pode ainda parecer as letras A, P, D, d, s, c e ap, que significam
respectivamente, Axioma, Proposição, Definição, demonstração, escólio, corolário e apêndice.
12 PEREIRA, 2008, p.74.
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passa a uma maior perfeição, e quando afetado por uma paixão triste, ocorre o
contrário 13.
Conatus, então, é o esforço em tornar-se cada vez mais alegres, ou seja, buscar o que é
útil, que convém à sua natureza14 . E disso resulta nossas ações, a busca por estímulos que
aumentem a nossa potência de agir segundo a nossa própria razão. Por ser esse esforço de
autopreservação, o conatus apresenta-se também como uma força indestrutível, pois Spinoza
acredita que nenhum ser procura sua autodestruição.
O homem livre será aquele que conseguir elevar ao máximo seu conatus.
CHAUI(2001) aprofunda esse sentido dizendo que os homens não possuem conatus, eles são
conatus15. E acrescenta16:
"Sendo uma força interna para existir e conservar-se na existência, o
conatus é uma força interna positiva ou afirmativa[...]. O conatus
possui, assim, uma duração i1imitada até que causas exteriores mais
fortes e mais poderosas o destruam. Definindo corpo e alma pelo
conatus, Espinosa faz com que sejam essencialmente vida, de maneira
que, na definição da essência humana, não entra a morte. Esta é que
vem do exterior, jamais do interior."
Ser determinado conforme a necessidade de sua natureza vai direto ao encontro da tese
do livre-arbítrio, pois os indivíduos não agem por vontade, mas são determinados à existir e
agir por Deus21. Para alcançar a liberdade, o homem deve buscar "autodeterminar-se ou agir
sem ser constrangido por nada exterior à própria razão."22
Autodeterminar-se é agir segundo ideias adequadas ou a partir de suas próprias razões,
ou ser autônomo. Quanto mais ideias adequadas o indivíduo tem, mais autônomo é e
Autodeterminação Livre-arbítrio
1. Se a razão (R) se apresenta ao indivíduo (S) 1. Se a razão (R) se apresenta ao indivíduo (S)
na ocasião apropriada, então, (S) faz (A) na ocasião apropriada, então, (S) faz (A) ou
2. (R) se apresenta a (S) na ocasião apropriada não
3. (S) faz (A) 2. (R) se apresenta a (S) na ocasião apropriada
3. (S) faz (A) ou não
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